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Universidade de Brasiacutelia
Instituto de Ciecircncias Humanas
Departamento de Histoacuteria
Orientadora Profordf Drordf Diva do Couto Gontijo Muniz
A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia
Dezembro de 2013
Universidade de Brasiacutelia
Instituto de Ciecircncias Humanas
Departamento de Histoacuteria
Orientadora Profordf Drordf Diva do Couto Gontijo Muniz
A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823
Monografia apresentada ao Departamento
de Histoacuteria do Instituto de Ciecircncias
Humanas da Universidade de Brasiacutelia para
a obtenccedilatildeo do grau de licenciadobacharel
em Histoacuteria
Banca Examinadora
Professora Doutora Diva do Couto Gontijo Muniz (Presidente) ndash HISUnB
Professora Doutora Ione de Faacutetima Oliveira ndash HISUnB
Mestre Fabiana Francisca Macena (Mestre e doutoranda pelo PPGHISUnB)
Brasiacutelia
Dezembro de 2013
Agradecimentos
Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus pais Clarissa e Gerson pelo
amor incondicional Jamais chegaria aonde cheguei sem o carinho e apoio de vocecircs Agrave
minha matildee agradeccedilo especialmente por sempre ter se preocupado com a minha
educaccedilatildeo e formaccedilatildeo pessoal Vocecirc eacute a maior responsaacutevel pelo meu sucesso Ao meu
pai por ter mesmo sem querer cultivado o gosto pela Histoacuteria em mim desde pequena
Sou grata por cada incentivo cada sermatildeo cada bom exemplo que vocecircs me deram e
continuam me dando Tambeacutem agradeccedilo ao restante da minha famiacutelia que embora
longe torce por mim em especial agrave minha avoacute Yara que se tornou meu ldquodicionaacuterio
oficialrdquo e umas das primeiras leitoras deste trabalho e ao meu irmatildeo Guilherme pela
assistecircncia
Agrave professora Diva sempre soliacutecita e atenciosa Obrigada por acreditar em mim
pelas orientaccedilotildees precisas pelas aulas inspiradoras e pelo carinho Sua atenccedilatildeo e
dedicaccedilatildeo comigo foram essenciais para a aprovaccedilatildeo no mestrado e para o ecircxito deste
trabalho Eacute muito bom se orgulhar da sua orientadora Estendo este agradecimento aos
demais professores do Departamento de Histoacuteria da Universidade de Brasiacutelia que tive o
prazer de conviver os quais me formaram como historiadora
Da mesma forma agradeccedilo aos amigos que sempre estiveram por perto desde
meus primeiros dias como universitaacuteria ateacute a reta final Agrave turma inesqueciacutevel de
Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria obrigada por me deixar compartilhar com vocecircs as anguacutestias
duacutevidas e deslumbramentos de iniacutecio de curso Um agradecimento especial aos queridos
amigos Naiara Pereira Giovanna Pires Jeacutessica Oliveira Marina Sousa Mariana Valle
Marina de Oliveira ndash suas lindas ndash Rafael Nascimento Allan Aruil Guilherme
Gonccedilalves Camila Aldrighi Mariana Mesquita Pedro Soares Fabiana Macena
Leonardo Abecassis Eduardo Barbosa e Marcelo Brito pelos conselhos livros
emprestados e principalmente pela amizade Sempre me lembrarei de vocecircs com muito
carinho
Natildeo poderia deixar de agradecer aos amigos que fiz no Tribunal Superior
Eleitoral durante meu longo e frutiacutefero estaacutegio Aprendi (e engordei) muito com vocecircs
Tambeacutem agradeccedilo aos amigos ldquode forardquo do curso Paula e Luisa Guedes Luiza Katrein
Kamilla Tharrany e meu namorado Thiago Leonel vocecircs satildeo especiais pra mim Por
fim gostaria de agradecer a todos que de uma forma ou de outra se envolveram na
minha educaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional Muito obrigada
Resumo
O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O
debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava
sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A
mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram
favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam
dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave
forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os
Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal
em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se
apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do
Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade
Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica
Sumaacuterio
Introduccedilatildeo1
1 A liberdade no debate constitucional3
11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8
12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12
2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19
21 Os limites juriacutedicos19
22 O clero brasileiro25
23 O papel da Igreja no Brasil27
3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330
Consideraccedilotildees finais44
1
Introduccedilatildeo
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de
Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na
Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na
votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos
artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de
funcionamento da Assembleia
O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja
Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu
comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado
a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os
deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash
preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da
esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem
entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash
nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute
catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a
manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes
A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil
do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando
nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco
conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico
nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica
constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a
aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira
Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de
ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que
reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual
A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que
o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
Universidade de Brasiacutelia
Instituto de Ciecircncias Humanas
Departamento de Histoacuteria
Orientadora Profordf Drordf Diva do Couto Gontijo Muniz
A LIBERDADE RELIGIOSA NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823
Monografia apresentada ao Departamento
de Histoacuteria do Instituto de Ciecircncias
Humanas da Universidade de Brasiacutelia para
a obtenccedilatildeo do grau de licenciadobacharel
em Histoacuteria
Banca Examinadora
Professora Doutora Diva do Couto Gontijo Muniz (Presidente) ndash HISUnB
Professora Doutora Ione de Faacutetima Oliveira ndash HISUnB
Mestre Fabiana Francisca Macena (Mestre e doutoranda pelo PPGHISUnB)
Brasiacutelia
Dezembro de 2013
Agradecimentos
Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus pais Clarissa e Gerson pelo
amor incondicional Jamais chegaria aonde cheguei sem o carinho e apoio de vocecircs Agrave
minha matildee agradeccedilo especialmente por sempre ter se preocupado com a minha
educaccedilatildeo e formaccedilatildeo pessoal Vocecirc eacute a maior responsaacutevel pelo meu sucesso Ao meu
pai por ter mesmo sem querer cultivado o gosto pela Histoacuteria em mim desde pequena
Sou grata por cada incentivo cada sermatildeo cada bom exemplo que vocecircs me deram e
continuam me dando Tambeacutem agradeccedilo ao restante da minha famiacutelia que embora
longe torce por mim em especial agrave minha avoacute Yara que se tornou meu ldquodicionaacuterio
oficialrdquo e umas das primeiras leitoras deste trabalho e ao meu irmatildeo Guilherme pela
assistecircncia
Agrave professora Diva sempre soliacutecita e atenciosa Obrigada por acreditar em mim
pelas orientaccedilotildees precisas pelas aulas inspiradoras e pelo carinho Sua atenccedilatildeo e
dedicaccedilatildeo comigo foram essenciais para a aprovaccedilatildeo no mestrado e para o ecircxito deste
trabalho Eacute muito bom se orgulhar da sua orientadora Estendo este agradecimento aos
demais professores do Departamento de Histoacuteria da Universidade de Brasiacutelia que tive o
prazer de conviver os quais me formaram como historiadora
Da mesma forma agradeccedilo aos amigos que sempre estiveram por perto desde
meus primeiros dias como universitaacuteria ateacute a reta final Agrave turma inesqueciacutevel de
Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria obrigada por me deixar compartilhar com vocecircs as anguacutestias
duacutevidas e deslumbramentos de iniacutecio de curso Um agradecimento especial aos queridos
amigos Naiara Pereira Giovanna Pires Jeacutessica Oliveira Marina Sousa Mariana Valle
Marina de Oliveira ndash suas lindas ndash Rafael Nascimento Allan Aruil Guilherme
Gonccedilalves Camila Aldrighi Mariana Mesquita Pedro Soares Fabiana Macena
Leonardo Abecassis Eduardo Barbosa e Marcelo Brito pelos conselhos livros
emprestados e principalmente pela amizade Sempre me lembrarei de vocecircs com muito
carinho
Natildeo poderia deixar de agradecer aos amigos que fiz no Tribunal Superior
Eleitoral durante meu longo e frutiacutefero estaacutegio Aprendi (e engordei) muito com vocecircs
Tambeacutem agradeccedilo aos amigos ldquode forardquo do curso Paula e Luisa Guedes Luiza Katrein
Kamilla Tharrany e meu namorado Thiago Leonel vocecircs satildeo especiais pra mim Por
fim gostaria de agradecer a todos que de uma forma ou de outra se envolveram na
minha educaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional Muito obrigada
Resumo
O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O
debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava
sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A
mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram
favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam
dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave
forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os
Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal
em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se
apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do
Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade
Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica
Sumaacuterio
Introduccedilatildeo1
1 A liberdade no debate constitucional3
11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8
12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12
2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19
21 Os limites juriacutedicos19
22 O clero brasileiro25
23 O papel da Igreja no Brasil27
3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330
Consideraccedilotildees finais44
1
Introduccedilatildeo
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de
Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na
Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na
votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos
artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de
funcionamento da Assembleia
O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja
Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu
comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado
a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os
deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash
preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da
esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem
entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash
nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute
catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a
manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes
A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil
do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando
nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco
conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico
nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica
constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a
aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira
Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de
ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que
reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual
A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que
o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
Agradecimentos
Em primeiro lugar gostaria de agradecer aos meus pais Clarissa e Gerson pelo
amor incondicional Jamais chegaria aonde cheguei sem o carinho e apoio de vocecircs Agrave
minha matildee agradeccedilo especialmente por sempre ter se preocupado com a minha
educaccedilatildeo e formaccedilatildeo pessoal Vocecirc eacute a maior responsaacutevel pelo meu sucesso Ao meu
pai por ter mesmo sem querer cultivado o gosto pela Histoacuteria em mim desde pequena
Sou grata por cada incentivo cada sermatildeo cada bom exemplo que vocecircs me deram e
continuam me dando Tambeacutem agradeccedilo ao restante da minha famiacutelia que embora
longe torce por mim em especial agrave minha avoacute Yara que se tornou meu ldquodicionaacuterio
oficialrdquo e umas das primeiras leitoras deste trabalho e ao meu irmatildeo Guilherme pela
assistecircncia
Agrave professora Diva sempre soliacutecita e atenciosa Obrigada por acreditar em mim
pelas orientaccedilotildees precisas pelas aulas inspiradoras e pelo carinho Sua atenccedilatildeo e
dedicaccedilatildeo comigo foram essenciais para a aprovaccedilatildeo no mestrado e para o ecircxito deste
trabalho Eacute muito bom se orgulhar da sua orientadora Estendo este agradecimento aos
demais professores do Departamento de Histoacuteria da Universidade de Brasiacutelia que tive o
prazer de conviver os quais me formaram como historiadora
Da mesma forma agradeccedilo aos amigos que sempre estiveram por perto desde
meus primeiros dias como universitaacuteria ateacute a reta final Agrave turma inesqueciacutevel de
Introduccedilatildeo agrave Histoacuteria obrigada por me deixar compartilhar com vocecircs as anguacutestias
duacutevidas e deslumbramentos de iniacutecio de curso Um agradecimento especial aos queridos
amigos Naiara Pereira Giovanna Pires Jeacutessica Oliveira Marina Sousa Mariana Valle
Marina de Oliveira ndash suas lindas ndash Rafael Nascimento Allan Aruil Guilherme
Gonccedilalves Camila Aldrighi Mariana Mesquita Pedro Soares Fabiana Macena
Leonardo Abecassis Eduardo Barbosa e Marcelo Brito pelos conselhos livros
emprestados e principalmente pela amizade Sempre me lembrarei de vocecircs com muito
carinho
Natildeo poderia deixar de agradecer aos amigos que fiz no Tribunal Superior
Eleitoral durante meu longo e frutiacutefero estaacutegio Aprendi (e engordei) muito com vocecircs
Tambeacutem agradeccedilo aos amigos ldquode forardquo do curso Paula e Luisa Guedes Luiza Katrein
Kamilla Tharrany e meu namorado Thiago Leonel vocecircs satildeo especiais pra mim Por
fim gostaria de agradecer a todos que de uma forma ou de outra se envolveram na
minha educaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional Muito obrigada
Resumo
O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O
debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava
sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A
mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram
favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam
dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave
forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os
Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal
em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se
apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do
Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade
Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica
Sumaacuterio
Introduccedilatildeo1
1 A liberdade no debate constitucional3
11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8
12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12
2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19
21 Os limites juriacutedicos19
22 O clero brasileiro25
23 O papel da Igreja no Brasil27
3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330
Consideraccedilotildees finais44
1
Introduccedilatildeo
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de
Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na
Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na
votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos
artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de
funcionamento da Assembleia
O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja
Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu
comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado
a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os
deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash
preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da
esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem
entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash
nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute
catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a
manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes
A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil
do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando
nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco
conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico
nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica
constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a
aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira
Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de
ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que
reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual
A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que
o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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47
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as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
Resumo
O presente trabalho analisa o intenso debate levado a cabo na Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil (1823) acerca da liberdade religiosa O
debate girou em torno da aprovaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que versava
sobre os direitos individuais dos brasileiros dentre os quais a liberdade religiosa A
mateacuteria foi extensamente discutida envolvendo duas posiccedilotildees distintas ndash os que eram
favoraacuteveis agrave liberdade de culto e os que natildeo o eram ndash que entretanto natildeo estavam
dispostos a renunciar da condiccedilatildeo de fieacuteis da Religiatildeo Catoacutelica especialmente devido agrave
forccedila da tradiccedilatildeo secular do regime do Padroado Reacutegio Para tanto analisamos os
Diaacuterios da Assembleia Constituinte ediccedilatildeo fac-siacutemile publicada pelo Senado Federal
em 1970 bem como o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) a fim de se
apreender a cultura poliacutetica que se forjava no contexto da Independecircncia e do
Constitucionalismo cuja palavra de ordem era liberdade
Palavras-chave Liberdade Religiatildeo Assembleia Constituinte Igreja Catoacutelica
Sumaacuterio
Introduccedilatildeo1
1 A liberdade no debate constitucional3
11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8
12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12
2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19
21 Os limites juriacutedicos19
22 O clero brasileiro25
23 O papel da Igreja no Brasil27
3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330
Consideraccedilotildees finais44
1
Introduccedilatildeo
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de
Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na
Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na
votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos
artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de
funcionamento da Assembleia
O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja
Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu
comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado
a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os
deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash
preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da
esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem
entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash
nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute
catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a
manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes
A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil
do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando
nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco
conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico
nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica
constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a
aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira
Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de
ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que
reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual
A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que
o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
Sumaacuterio
Introduccedilatildeo1
1 A liberdade no debate constitucional3
11 As ldquoboas novasrdquo do Porto anunciam eacute a vez do Constitucionalismo8
12 A polissemia de sentidos da palavra ldquoliberdaderdquo12
2 As relaccedilotildees institucionais entre Igreja e Estado no Brasil Impeacuterio19
21 Os limites juriacutedicos19
22 O clero brasileiro25
23 O papel da Igreja no Brasil27
3 A discussatildeo sobre liberdade religiosa na Constituinte de 182330
Consideraccedilotildees finais44
1
Introduccedilatildeo
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de
Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na
Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na
votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos
artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de
funcionamento da Assembleia
O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja
Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu
comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado
a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os
deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash
preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da
esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem
entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash
nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute
catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a
manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes
A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil
do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando
nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco
conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico
nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica
constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a
aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira
Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de
ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que
reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual
A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que
o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
1
Introduccedilatildeo
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do Impeacuterio e permite o culto das demais religiotildees sem forma alguma exterior de
Templo Este artigo exprime em poucas linhas um intenso debate travado na
Assembleia Constituinte de 1823 sobre a liberdade religiosa O debate originou-se na
votaccedilatildeo do artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo que foi sem sombra de duacutevidas um dos
artigos mais polecircmicos e extensivamente discutidos ao longo dos seis meses de
funcionamento da Assembleia
O fato de a historiografia sobre o tema relegar tatildeo baixo prestiacutegio agrave Igreja
Catoacutelica no Brasil do seacuteculo XIX elencando a precaacuteria formaccedilatildeo do clero e o seu
comportamento heterodoxo vai de encontro com a riqueza e extensatildeo do debate levado
a cabo na Constituinte quando da montagem do desenho religioso do novo Impeacuterio Os
deputados eleitos agrave Assembleia ndash dentre os quais 26 eram integrantes do clero ndash
preocuparam-se em definir a questatildeo da liberdade religiosa a preservaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
regalista e pombalina herdada de Portugal e as prerrogativas que seriam especiacuteficas da
esfera temporal e da esfera espiritual Apesar de dois universos mentais disputarem
entre si ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade de culto no Brasil ndash
nenhum deputado estava disposto a renunciar da condiccedilatildeo de fiel depositaacuterio da feacute
catoacutelica o que explica o porquecirc de natildeo estar em votaccedilatildeo naquele momento a
manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial do paiacutes
A despeito da precariedade espiritual econocircmica e poliacutetica da Igreja no Brasil
do seacuteculo XIX eacute notoacuterio o envolvimento do clero nas questotildees nacionais ndash seja lutando
nas insurreiccedilotildees dentre as quais a mais famosa foi a Revoluccedilatildeo de Pernambuco
conhecida como ldquoRevoluccedilatildeo dos padresrdquo seja atuando no acircmbito poliacutetico
nomeadamente como deputados e senadores Natildeo se pode negar que a Religiatildeo Catoacutelica
constituiacutea um aspecto fundamental da fisionomia do Impeacuterio do Brasil natildeo eacute agrave toa que a
aclamaccedilatildeo dos dois Imperadores brasileiros o iniacutecio dos trabalhos da primeira
Assembleia Constituinte do paiacutes e as proacuteprias eleiccedilotildees estivessem revestidos de
ldquoauspiacutecios religiososrdquo ocorrendo em meio a cerimocircnias religiosas simboacutelicas que
reafirmavam o papel da Igreja Catoacutelica na sociedade pelo menos no acircmbito ritual
A investigaccedilatildeo deste trabalho pretende percorrer as seguintes questotildees por que
o referido artigo que versava sobre a liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que os
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
2
deputados mesmo os favoraacuteveis agrave liberdade de culto natildeo estavam dispostos a renunciar
agrave condiccedilatildeo de suacuteditos de uma naccedilatildeo catoacutelica Quem eram os deputados que defendiam e
que criticavam a liberdade religiosa e a quais interesses e demandas sociais se
reportavam Qual era o papel da Igreja na sociedade brasileira Que contexto propiciou
o debate sobre liberdade religiosa em um paiacutes pombalino1
Pretende-se pois historicizar o debate da Assembleia Constituinte sobre o tema
levando em consideraccedilatildeo tanto o novo vocabulaacuterio poliacutetico do Oitocentos ndash vocabulaacuterio
segundo o qual as palavras de ordem eram representaccedilatildeo cidadania soberania e
liberdade ndash quanto a manutenccedilatildeo no paiacutes de antigas formas de pensar e agir como a
conservaccedilatildeo de uma monarquia que embora constitucionalista conservava traccedilos
absolutistas como o Poder Moderador
1 A afirmaccedilatildeo paradoxal eacute do brazilianista George Boehrer que afirmou que o Brasil do seacuteculo XIX
permanecia um paiacutes pombalista ndash ou seja fiel agrave tradiccedilatildeo do regalismo herdada do Marquecircs de Pombal
Para a anaacutelise de tal paradoxo cf NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a IgrejaIn
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
3
1 A LIBERDADE NO DEBATE CONSTITUCIONAL
A Religiatildeo Catholica Apostolica Romana continuaraacute a
ser a Religiatildeo do Imperio Todas as outras Religiotildees
seratildeo permitidas com seu culto domestico ou
particular em casas para isso destinadas sem foacuterma
alguma exterior do Templo
Constituiccedilatildeo de 1824 art 5ordm
O artigo 5ordm da Constituiccedilatildeo de 1824 consagra o catolicismo como religiatildeo oficial
do receacutem criado paiacutes aleacutem de permitir o culto domeacutestico e particular ndash sem forma
alguma exterior de Templo ndash das demais religiotildees Esse artigo exprime em poucas
linhas um intenso debate travado durante a Assembleia Constituinte de 1823 acerca da
liberdade religiosa Ainda que a Constituiccedilatildeo tenha sido outorgada por D Pedro I apoacutes a
dissoluccedilatildeo abrupta da Assembleia no episoacutedio que ficou conhecido como ldquonoite da
agoniardquo2 natildeo se pode desprezar a contribuiccedilatildeo desta na formulaccedilatildeo daquela
A Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil foi a
primeira experiecircncia parlamentar do paiacutes e por maiores que fossem suas fragilidades ndash
como a ausecircncia de partidos definidos a hesitaccedilatildeo dos representantes quanto ao papel
que exerciam e a falta de coerecircncia que manifestavam em suas posiccedilotildees3 ndash reuniu de
forma ineacutedita deputados de todas as proviacutencias do paiacutes que natildeo deixaram de representar
os mais diversos interesses em voga cientes de que vivenciavam um momento de
definiccedilatildeo das bases juriacutedicas e poliacuteticas do Estado Imperial
Pedro Calmon em sua introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo fac-siacutemile dos Diaacuterios da
Assembleia descreve o apelo do procurador do Rio de Janeiro e membro do Conselho
de Estado Joaquim Gonccedilalves Ledo ao Imperador para que este convocasse a
Constituinte ldquoA acircncora que pode segurar a Nau do Estado a cadeia que pode ligar as
Proviacutencias do Brasil ao Trono de VAR eacute a convocaccedilatildeo de Cortesrdquo4 O Imperador
acatou a representaccedilatildeo causando ldquoefusatildeo de juacutebilordquo ao Conselho ciente de que a
2 Para descriccedilatildeo detalhada deste episoacutedio cf artigo de Vantuil Pereira para a Revista de Histoacuteria da
Biblioteca Nacional disponiacutevel em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaoartigos-revistaa-longa-
noite-da-agonia (acessado em 26112013) 3 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG Keila e SALLES
Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009 p
386 4 CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do
Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial 2003 s paacutegina
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
4
Constituinte marcaria ldquoa eacutepoca mais faustosa do Brasilrdquo5 O Correio do Rio de Janeiro
celebrou a convocaccedilatildeo em suas paacuteginas
Estaacute convocada a Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil Eacute
dado o passo mais importante e decizivo para a prosperidade e
seguranccedila deste vasto Impeacuterio e quem fez tanto com o Palladio da
Constituiccedilatildeo faraacute o resto Se faltassem Acccedilotildees para levar o Nome de
VAR ao Templo da Immortalidade soacute esta bastaria6
As Instruccedilotildees de 19 de junho de 1822 redigidas por Joseacute Bonifaacutecio e transcritas
integralmente no Correio7 regulamentavam as eleiccedilotildees para a futura Constituinte e
estabeleciam que os deputados seriam eleitos em dois graus os votantes eleitores de
primeiro grau escolhiam os eleitores de segundo grau e estes por sua vez teriam a
incumbecircncia de eleger os deputados Estavam excluiacutedos de votar aqueles que recebiam
salaacuterios ou soldadas os estrangeiros os criminosos e os religiosos regulares8 Os
paacuterocos teriam grande importacircncia no processo eleitoral uma vez que auxiliariam os
Presidentes das Cacircmaras nas eleiccedilotildees ndash chamadas nas Instruccedilotildees de ldquoeleiccedilotildees
parochiaesrdquo9 ndash e se encarregariam de ldquoaffixar nas portas das suas Igrejas Editaesrdquo a
relaccedilatildeo do nuacutemero de fogos (casas) da freguesia tornando-se ldquoresponsaacuteveis pela
exatidatildeordquo10
dessa lista No dia marcado para as eleiccedilotildees preferencialmente um
domingo
reunido na Freguezia o respectivo Povo celebraraacute o Parocho Missa
solene do Espiacuterito Santo (pela maior Dignidade Ecclesiaacutestica) e faraacute ou
outro por elle hum Discurso anaacutelogo ao objecto e circunstacircncias ()
Terminada esta cerimocircnia Religiosa o Presidente o Parocho e o Povo
se dirigiratildeo agraves Casas do Conselho ou agraves que melhor convier e tomando
os ditos Presidente e Parocho assento agrave cabeceira de huma Meza faraacute o
primeiro em voz alta e intelligiacutevel a leitura do Capiacutetulo I e II destas
Instrucccedilotildees () O Presidente o Parocho os Secretaacuterios e os
Escrutinadores formam a Meza ou Junta Parochial11
5 Idem
6 Correio do Rio de Janeiro nordm 53 15 de junho de 1822
7 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
8 MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e as Relaccedilotildees
Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Universidade de Brasiacutelia 1995 p 84 9 Correio do Rio de Janeiro nordm 64 1ordm de julho de 1822
10 Idem
11 Idem
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
5
As Instruccedilotildees tambeacutem determinavam que os deputados uma vez eleitos natildeo
poderiam ldquoescusar-se de aceitar a nomeaccedilatildeordquo12
e deveriam partir para o Rio de Janeiro o
quanto antes incluindo aqueles que se encontravam em Portugal como deputados agraves
Cortes de Lisboa Aleacutem do mais estabeleciam o nuacutemero de deputados por proviacutencia
segundo criteacuterios demograacuteficos proporcionais ao nuacutemero de fogos proviacutencia da
Cisplatina dois Rio Grande do Sul trecircs Santa Catarina um Satildeo Paulo nove Mato
Grosso um Goiaacutes dois Minas Gerais vinte Rio de Janeiro oito Espiacuterito Santo
(Capitania) um Bahia treze Alagoas cinco Pernambuco treze Paraiacuteba cinco Rio
Grande do Norte um Cearaacute oito Piauiacute um Maranhatildeo quatro e Paraacute trecircs deputados13
Foram eleitos 84 deputados constituintes que a 1ordm de maio reuniram-se no
consistoacuterio da Igreja do Rosaacuterio e por volta das 11 horas seguiram para a Capela
Imperial onde o bispo Capelatildeo-Mor do Rio de Janeiro e tambeacutem deputado agrave
Assembleia Dom Joseacute Caetano rezou a missa do Espiacuterito Santo e procedeu ao
juramento sobre os Evangelhos14
Apoacutes a sessatildeo solene de trecircs de maio de 1823 eacute que os
trabalhos efetivamente se iniciaram na Assembleia Segundo caacutelculos de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues a Constituinte realizou 157 sessotildees ateacute ser dissolvida a 12 de novembro
cinco preliminares uma solene duas secretas uma permanente ndash na veacutespera de sua
dissoluccedilatildeo ndash e 148 sessotildees extraordinaacuterias15
O fato de a Assembleia ter sido dissolvida e em seu lugar o Imperador tenha
encomendado uma Constituiccedilatildeo para o Conselho de Estado natildeo diminui sua importacircncia
histoacuterica Sete dos dez membros do Conselho que redigiram a Carta haviam sido
deputados constituintes16
e embora pertencessem ao ldquopartido portuguecircsrdquo ndash o que em
princiacutepio garantia a defesa do Poder Moderador de grande interesse para o monarca ndash
natildeo deixaram de participar ativamente dos vaacuterios debates que tomaram forma ao longo
12
Idem 13
Idem 14
Sob a simboacutelica e significativa busca de ldquoauspiacutecios religiososrdquo cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 121 CALMON Pedro Introduccedilatildeo op cit s paacutegina 15
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Ed Vozes 1974 p 30 apud
MENCK op cit p 124 16
Dentre os 10 membros do Conselho de Estado responsaacuteveis pela redaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1824
foram deputados constituintes sete Joatildeo Severiano Maciel da Costa marquecircs de Queluz deputado pela
proviacutencia de Minas Gerais Luiacutes Joseacute de Carvalho e Melo visconde de Cachoeira deputado pela
proviacutencia da Bahia Clemente Ferreira Franccedila marquecircs de Nazareacute deputado pela proviacutencia da Bahia
Joseacute Egiacutedio Aacutelvares de Almeida baratildeo de Santo Amaro deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Antocircnio Luiz Pereira da Cunha marquecircs de Inhambupe deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
Manoel Jacintho Nogueira da Gama marquecircs de Baependi deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro e
Joseacute Joaquim Carneiro de Campos marquecircs de Caravelas deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
6
dos seis meses de funcionamento da Assembleia Em fins de setembro de 1823 por
exemplo a pauta das sessotildees legislativas da Constituinte era a votaccedilatildeo de um dos
artigos mais polecircmicos do Projeto de Constituiccedilatildeo O Artigo 7ordm que versava sobre dois
dos principais direitos civis ndash liberdade e propriedade ndash dos cidadatildeos brasileiros
suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees estendendo-se ao longo de sete sessotildees
legislativas O texto do artigo garantia ldquoa todos os Brasileiros os seguintes direitos
individuaesrdquo
I A liberdade pessoal
II O juiacutezo por Jurados
III A liberdade religiosa
IV A liberdade de induacutestria
V A inviolabilidade da propriedade
VI A liberdade de imprensa17
Dissolvida a Assembleacuteia e com a proposta de ser ldquoduplicadamente mais
liberalrdquo18
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiria o referido artigo transformando-o em
outros artigos mais especiacuteficos como o jaacute citado Artigo 5ordm que tratava da liberdade
religiosa e o Artigo 179 que garantia em seus 35 incisos a inviolabilidade dos ldquodireitos
civis e poliacuteticos dos cidadatildeos brasileiros que tem por base a liberdade a seguranccedila
individual e a propriedaderdquo19
Os princiacutepios liberais estavam garantidos legalmente
Poreacutem apesar de haver no Brasil oitocentista a infiltraccedilatildeo de ideias liberais e
revolucionaacuterias ndash no sentido de que minavam as bases legais do sistema do Antigo
Regime ndash Emiacutelia Viotti da Costa chama atenccedilatildeo para ldquoos limites do liberalismo no
Brasilrdquo20
que esbarrariam na inexistecircncia no paiacutes de uma ldquoburguesia ativa e
dinacircmicardquo consequecircncia da natildeo realizaccedilatildeo de uma Revoluccedilatildeo Industrial no Brasil
Neste sentido eram as ldquocamadas senhoriaisrdquo que se empenhavam em conquistar e
17
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo apresentado agrave Assembleia Constituinte O Projeto foi redigido por
uma comissatildeo escolhida pelos demais deputados cujos membros eram Antonio Carlos Ribeiro de
Andrada Machado e Silva Joseacute Bonifaacutecio de Andrade e Silva Antonio Luiz Pereira da Cunha (que
tambeacutem assinaria a Constituiccedilatildeo de 1824) Manuel Ferreira da Cacircmara de Bittencourt e Saacute Pedro de
Arauacutejo Lima (uacutenico a assinar o documento ldquocom restriccedilotildeesrdquo) Joseacute Ricardo da Costa Aguiar drsquoAndrada e
Francisco Moniz Tavares 18
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 386 19
BRASIL Constituiccedilatildeo Imperial de 1824 Artigo 179 disponiacutevel em
httpplanaltogovbrccivil_03constituicaoconstituiC3A7ao24htm (acessado em 26112013) 20
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo Paulo Editora
UNESP 2010 p 31
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
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2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
7
garantir a liberdade comercial a autonomia econocircmica e o direito agrave propriedade21
ndash o
contraacuterio do que professava o liberalismo claacutessico de Adam Smith baseado na luta da
burguesia contra os privileacutegios da aristocracia22
Da mesma forma ainda segundo a autora a propagaccedilatildeo dos ldquoabominaacuteveis
princiacutepios francesesrdquo coube a uma ldquoelite reduzida se bem que ativardquo excluindo-se
portanto grande parcela da populaccedilatildeo alienada aos debates teoacutericos23
Afirma Viotti
Embora seja evidente a influecircncia das ideias liberais europeias nos
movimentos ocorridos no paiacutes desde os fins do seacuteculo XVIII natildeo se
deve superestimar sua importacircncia () Apenas uma pequena elite de
revolucionaacuterios inspirava-se nas obras dos autores europeus que liam
frequentemente mais com entusiasmo do que com espiacuterito criacutetico A
maioria da populaccedilatildeo inculta e atrasada natildeo chegava a tomar
conhecimento das novas doutrinas () [e] permaneceria alheia agraves
especulaccedilotildees teoacutericas embora pudesse eventualmente ser mobilizada
em nome dos ldquoprinciacutepios francesesrdquo ou em nome da Paacutetria e da
Liberdade palavras que passaram a ter um efeito maacutegico junto agraves
multidotildees24
Apesar das limitaccedilotildees noccedilotildees fundamentais retiradas do ideaacuterio revolucionaacuterio
de fins do seacuteculo XVIII e do liberalismo claacutessico europeu foram ldquoadaptadasrdquo agraves
condiccedilotildees brasileiras e nas primeiras deacutecadas do Oitocentos jaacute faziam parte do
vocabulaacuterio poliacutetico ndash para usar a expressatildeo de Luacutecia Bastos Neves25
ndash do Brasil
Noccedilotildees como liberdade propriedade representaccedilatildeo igualdade soberania (paacutetria) e
cidadania circulavam no cotidiano dos brasileiros do seacuteculo XIX de uma forma
provavelmente mais difundida e compartilhada do que Emiacutelia Viotti chegou a supor
A extensa e polecircmica discussatildeo na Assembleia Constituinte acerca dos direitos
individuais dos brasileiros deve ser entendida como um indiacutecio de circulaccedilatildeo dessas
noccedilotildees na sociedade Ademais o debate constitucional em torno deste tema eacute revelador
de um momento iacutempar na histoacuteria do Brasil onde visotildees antigas e modernas de pensar e
agir coexistiam ndash como a instituiccedilatildeo do Poder Moderador em uma Constituiccedilatildeo de
inspiraccedilatildeo liberal ndash e uma nova cultura poliacutetica foi sendo aos poucos forjada Cultura
21
Idem p 32 22
Idem p 23 23
Idem p 30 24
Idem p 31-32 25
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-1823) Rio de
Janeiro RevanFAPERJ 2003 p 226
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
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NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
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PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
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PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
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PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
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PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
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PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
8
poliacutetica aqui entendida nas acepccedilotildees que lhe datildeo Angela de Castro Gomes e Sandra
Graham quais sejam
A categoria de cultura poliacutetica foi definida como um sistema de
representaccedilotildees complexo e heterogecircneo mas capaz de permitir
a compreensatildeo dos sentidos que um determinado grupo atribui a
uma dada realidade social em determinado momento de
tempo26
Por cultura poliacutetica entendo as regras e limites que por um
lado definem as maneiras pelas quais a accedilatildeo poliacutetica pode ou
natildeo ser expressada e por quem e de outro as maneiras pelas
quais esses pronunciamentos seratildeo ouvidos e atendidos ()
enfatizo o cultural ou seja aquilo que eacute compartilhado embora
natildeo necessariamente de maneira expliacutecita ou completamente
articulada27
11 AS ldquoBOAS NOVASrdquo DO PORTO ANUNCIAM Eacute A VEZ DO CONSTITUCIONALISMO
O Primeiro Reinado em revisatildeo eacute o tiacutetulo do artigo de Gladys Ribeiro e Vantuil
Pereira presente na coleccedilatildeo O Brasil Imperial organizada por Keila Grinberg e Ricardo
Salles A inovaccedilatildeo do texto consiste em propor um alargamento dos marcos
cronoloacutegicos do Primeiro Reinado em prol de uma leitura mais abrangente do periacuteodo
que compreenda
a problemaacutetica da construccedilatildeo do Estado da constituiccedilatildeo da naccedilatildeo de
uma determinada identidade nacional e dos direitos como um todo
(sendo a liberdade o direito basilar de todos) em lapso temporal que se
estenda de 1820 a 183728
26
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas reflexotildees In
SOIHET Rachel et al (Orgs) Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e ensino de histoacuteria Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p 31 27
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de Janeiro 1880
Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero nordm 20 1990 p
212 28
RIBEIRO Gladys Sabina PEREIRA Vantuil O primeiro reinado em revisatildeo In GRINBERG Keila
SALLES Ricardo (Orgs) O Brasil Imperial Vol I 1808-1831 Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira
2009 p 142
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
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2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
9
A escolha de 1820 como marco inicial ndash extrapolando a cronologia mais comum
que situa a Independecircncia como o iniacutecio do Primeiro Reinado ndash decorre dos
desdobramentos da Revoluccedilatildeo do Porto no Brasil das ldquoboas novasrdquo que atravessavam o
Atlacircntico anunciando o triunfo do Constitucionalismo A onda constitucionalista
somada aos interesses econocircmicos da classe dominante estabelecida no Sudeste do
paiacutes29
trouxe agrave tona o desejo de autonomia liberdade e igualdade de direitos com
relaccedilatildeo aos portugueses drsquoaleacutem mar e propiciou a luta pela concretizaccedilatildeo desses direitos
no corpo da lei
Eacute notoacuterio o crescente interesse da populaccedilatildeo brasileira no que diz respeito aos
seus direitos de cidadatildeo30
que passam a ser interiorizados pela sociedade ldquocivilrdquo cada
vez mais vinculada ao aparelho burocraacutetico do Estado Para aleacutem de restringir-se a uma
pequena elite intelectualizada como defendera Emiacutelia Viotti tratou-se de um processo
de significaccedilatildeo que envolveu grande parcela da sociedade brasileira da eacutepoca e que
acabou por constituir o imaginaacuterio do povo e uma identidade nacional (o ldquoser brasileirordquo
em relaccedilatildeo ao ldquoser portuguecircsrdquo31
) Forjou-se uma nova cultura poliacutetica na medida em que
se incorporaram noccedilotildees que natildeo eram totalmente desconhecidas pelos brasileiros mas
cujos significados certamente eram novos Nessa nova cultura poliacutetica a participaccedilatildeo
popular fica evidente ldquotanto por meio de revoltas ou burburinhos quanto usando
mecanismos formais como peticcedilotildees queixas e representaccedilotildeesrdquo32
junto ao parlamento
Outra forma de perceber a participaccedilatildeo popular eacute atraveacutes da imprensa do
periacuteodo Ao analisar o jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Isabel Lustosa
descreve esse impulso de participaccedilatildeo que tomou conta dos brasileiros cada vez mais
desejosos de se engajar nos assuntos puacuteblicos opinando e reivindicando seus direitos
As cartas enviadas aos jornais satildeo fontes importantiacutessimas para se apreender essa nova
29
Idem p 140-141 30
Cf sobre esse assunto RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O primeiro reinado op cit
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das op cit PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na
consolidaccedilatildeo dos direitos do cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina
Brasileiros e cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008 LUSTOSA Isabel
O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de
HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza 2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo
Paulo Alameda 2008 31
Para a definiccedilatildeo dos dois ldquopartidosrdquo formados no contexto da Independecircncia cf RIBEIRO Gladys
Sabina A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado
Rio de Janeiro Relume DumaraacuteFAPERJ 2002 especialmente capiacutetulo 1 32
Para exemplos da participaccedilatildeo popular no Primeiro Reinado cf RIBEIRO Gladys e PEREIRA
Vantuil O primeiro reinado op cit pgs145-147 PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e
poliacuteticas op cit
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
10
cultura poliacutetica sobretudo apoacutes o fim da censura preacutevia e da lei de garantia agrave liberdade
de imprensa nos domiacutenios portugueses (decreto de 1821) Tal praacutetica de envio de cartas
evidencia a convivecircncia tensionada entre elementos novos e antigos do vocabulaacuterio
poliacutetico brasileiro como eacute o caso da carta enviada ao Correio em 24 de maio de 1822
por algueacutem que se autodenominava ldquoAsnordquo
Sr Redator do Correio
() Deu-me a mania para querer saber a razatildeo porque se teima a
escrever nos passaportes = vassalos = e a que pude descobrir mais
coerente ao meu modo de pensar foi a seguinte que assim como haacute
jumentos manhosos como certos homens haacute tambeacutem certos homens
manhosos como jumentos A Deus Sr Redator Muitas recomendaccedilotildees
agraves senhoras DDImprensas porque se elas se natildeo compadecerem dos
nossos corpos natildeo sei que seraacute de nossas almas Sou de VM jaacute sabe
quem um revisor dos passaportes e detestador de tal palavrinha =
vassalos =33
Segundo anaacutelise de Lustosa a preocupaccedilatildeo do autor da carta eacute denunciar os
artifiacutecios de certos homens ndash ldquomanhosos como jumentosrdquo ndash que teimavam em conservar
nos passaportes o termo relativo a um tempo em que havia vassalos e natildeo cidadatildeos Ou
seja
seria um ardil dos absolutistas secretamente desejosos da volta do
antigo sistema O interessante eacute pensarmos como aquela conquista
recente a ideia de direitos do cidadatildeo necessitava de uma espeacutecie de
vigilacircncia permanente para que nem mesmo nos detalhes houvesse a
possibilidade de se voltar ao Antigo Regime34
Outra carta que expressa essa ldquovontade de cidadaniardquo35
e o zelo com o respeito
aos direitos do cidadatildeo eacute a enviada por Joatildeo Joseacute Pereira para o Correio em 28 de
agosto de 1823 protestando contra a discriminaccedilatildeo que ele ndash um homem negro livre ndash
sofrera ao entrar em um teatro no Rio de Janeiro Ele conta
Tenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem livre nascido no
territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilam a alforria
Como eacute Sr Redator que dando-se ao negro e ao pardo escuro uma
33
Correio do Rio de Janeiro nordm 38 24 de maio de 1822 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 18 34
Idem p 16 35
Idem
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
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MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
11
insiacutegnia militar e honras correspondentes ao grau que ocupa ou na
Miliacutecia ou na Igreja ou nas Letras se natildeo permite a esse homem estar
com sua mulher e filhas num camarote na casa da Oacutepera fazendo os
indiscretos liberais e mal-educados os maiores insultos ao infeliz que se
quer divertir e instruir-se naquela casa () Igualdade eacute nome vatildeo36
Joatildeo Joseacute Pereira demonstra estar ciente de seus direitos como o direito de ir e
vir e o direito de igualdade entre os cidadatildeos ao mesmo tempo em que indica uma ideia
de cidadania que era entatildeo partilhada ldquoTenho ouvido dizer que eacute cidadatildeo todo o homem
livre nascido no territoacuterio brasileiro seus filhos e os escravos que alcanccedilaram a
alforriardquo Seu argumento inicial eacute um indiacutecio forte de que tais noccedilotildees de direito e
cidadania circulavam na sociedade
Estudo semelhante foi empreendido por Luacutecia Bastos Pereira das Neves que
analisou um grande leque de publicaccedilotildees tanto da elite brasileira quanto da elite
coimbratilde no contexto da Independecircncia e do Constitucionalismo Segundo a autora apoacutes
a Regeneraccedilatildeo Portuguesa filha das Luzes surgiu um novo vocabulaacuterio poliacutetico que
ampliou os sentidos de termos jaacute conhecidos no mundo luso-brasileiro os quais foram
revestidos de novos significados Entre esses termos destaca-se o vocaacutebulo liberdade
que se tornou ldquoa essecircncia da vida do homem natildeo apenas em seus aspectos relativos agraves
instituiccedilotildees e aos costumes mas nos menores atos da vida individual e da vida em
comumrdquo37
Neste sentido natildeo se pode desprezar a polecircmica gerada em torno do referido
Artigo 7ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo exaustivamente debatido A discussatildeo em torno do
tema liberdade significava consideraacute-la nos muacuteltiplos aspectos da vida social
econocircmica e poliacutetica do cidadatildeo brasileiro ndash tal como sinalizava o ideaacuterio
constitucionalista do momento ndash o que naturalmente era de grande importacircncia para os
assim denominados ldquocidadatildeos brasileirosrdquo que acompanharam de perto todo esse
debate Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira
Quando comeccedilaram a discutir o Projeto de Constituiccedilatildeo as galerias da
Assembleia ficaram lotadas Os populares acompanharam o
posicionamento dos parlamentares sobre os direitos civis e a opiniatildeo
que tinham a respeito de ser membro de uma sociedade poliacutetica () No
decorrer das sessotildees centenas de peticcedilotildees foram encaminhadas aos
36
Correio do Rio de Janeiro nordm 23 28 de agosto de 1823 apud LUSTOSA Isabel O debate sobre os
direitos do cidadatildeo op cit p 16 37
NEVES Lucia Bastos Pereira das op cit p 141
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
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em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
12
deputados () Indicavam avaliaccedilatildeo acurada desses indiviacuteduos com
relaccedilatildeo ao quadro poliacutetico que lhes poderia propiciar um alargamento de
direitos () Podemos entatildeo constatar que a movimentaccedilatildeo nas ruas e
nas galerias da Assembleia Constituinte jaacute indicava a preocupaccedilatildeo de
vaacuterios setores com as decisotildees tomadas pelos constituintes Ao longo
das votaccedilotildees a concorrecircncia na plateia foi aumentando a ponto das
galerias serem pequenas para tamanha participaccedilatildeo38
Os deputados por sua vez debatiam durante horas a fio professando discursos
altamente eruditos com direito a referecircncias de pensadores europeus e norte-
americanos Em conformidade com o que acontecia na sociedade ndash a convivecircncia
tensionada de antigas e modernas formas de pensar e agir ndash os deputados constituintes
retomaram antigas noccedilotildees de liberdade ndash aquela que apoacutes a Revoluccedilatildeo Francesa passou
a ser associada ao Antigo Regime comumente entendida como ldquoliberdade absolutardquo ndash
ao mesmo tempo em que as confrontaram com a nova e liberal acepccedilatildeo da palavra
associada ao moderno Estado civil de direito
12 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA PALAVRA ldquoLIBERDADErdquo
Muitos filoacutesofos e pensadores do mundo ocidental ndash os quais foram amplamente
citados nos discursos de parlamentares brasileiros e nos textos da imprensa do seacuteculo
XIX ndash formularam reflexotildees acerca do conceito de liberdade O que impulsionou essas
reflexotildees certamente foi o reconhecimento de um desejo profundamente arraigado no
ser humano de ser livre Optamos no presente trabalho por destacar duas concepccedilotildees
que eram recorrentes nos discursos da eacutepoca a primeira formulada por Benjamin
Constant no iniacutecio do seacuteculo XIX distinguia dois tipos de liberdade a dos antigos e a
dos modernos a segunda concepccedilatildeo formulada por Thomas Hobbes em meados do
seacuteculo XVII definia a liberdade dentro da loacutegica do Estado civil de direito Ambas as
noccedilotildees de liberdade circulavam no Brasil agrave eacutepoca da Independecircncia
Trinta anos apoacutes a queda da Bastilha o escritor suiacuteccedilo Benjamin Constant fez
ceacutelebre pronunciamento ao Ateneu Real de Paris onde criticava os excessos cometidos
pelos jacobinos apoacutes a tomada de poder na Franccedila Para ele Robespierre e seus
partidaacuterios ao se apropriarem do arcabouccedilo teoacuterico de Jean-Jacques Rousseau
propuseram uma organizaccedilatildeo poliacutetica ldquoanacrocircnicardquo uma vez que optaram por conceber
38
RIBEIRO Gladys e PEREIRA Vantuil O Primeiro Reinado op cit p 151-153
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
13
um tipo de liberdade caracteriacutestica aos povos antigos em uma sociedade moderna A
Franccedila revolucionaacuteria experimentava um governo representativo o que jamais ocorrera
nas sociedades antigas e isto se constituiacutea em uma novidade
Este sistema [representativo] eacute uma descoberta dos modernos e voacutes
vereis Senhores que a condiccedilatildeo da espeacutecie humana na antiguidade natildeo
permitia que uma instituiccedilatildeo desta natureza ali se introduzisse ou
instalasse Os povos antigos natildeo podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema39
Os indiviacuteduos das sociedades antigas eram ldquoquase sempre soberanos nas
questotildees puacuteblicasrdquo40
jaacute que deliberavam em praccedila puacuteblica assuntos de guerra e de paz
votaccedilatildeo de leis julgamentos gestatildeo dos magistrados e todo tipo de assunto puacuteblico ndash e
era isso que consideravam ldquoliberdaderdquo Em contrapartida continua Constant ldquonatildeo
encontrareis entre eles quase nenhum dos privileacutegios que vemos fazer parte da liberdade
entre os modernos Todas as accedilotildees privadas estatildeo sujeitas a severa vigilacircnciardquo entre
elas a faculdade de escolha de culto ldquofaculdade que consideramos como um dos de
nossos mais preciosos direitosrdquo41
Ou seja enquanto os antigos satildeo livres no acircmbito
coletivo e puacuteblico suas escolhas individuais (esferas privada e particular) satildeo
seriamente limitadas
Da mesma forma o indiviacuteduo moderno ldquomesmo nos Estados mais livres soacute eacute
soberano em aparecircnciardquo pelo menos no que diz respeito aos assuntos puacuteblicos
Portanto
O objetivo dos antigos era a partilha do poder poliacutetico entre todos os
cidadatildeos de uma mesma paacutetria Era isso o que eles denominavam
liberdade O objetivo dos modernos eacute a seguranccedila dos privileacutegios
privados e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas
instituiccedilotildees a esses privileacutegios42
Ou seja ldquoa participaccedilatildeo direta nas decisotildees coletivas termina por submeter o
indiviacuteduo agrave autoridade do todo e por tornaacute-lo natildeo livre como privado enquanto a
39
CONSTANT Benjamin A liberdade dos antigos Comparada agrave dos Modernos Discurso proferido no
Ateneu de Paris 1819 Disponiacutevel integralmente em httpeplorgbrfiles201306012-015pdf p 2 40
Idem 41
Idem 42
Idem p 6 BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo Paulo
Editora Brasiliense 2000 p 8
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
14
liberdade do privado eacute () aquilo que o cidadatildeo exige hoje do poder puacuteblicordquo43
O
poder puacuteblico representado pela figura do Estado liberal ndash em contraposiccedilatildeo ao Estado
absoluto ndash deve garantir e proteger aquilo que a doutrina do direito natural (ou
jusnaturalismo) chamou de ldquodireitos dos homensrdquo segundo a qual
todos os homens indiscriminadamente tecircm por natureza e portanto
independentemente de sua proacutepria vontade e menos ainda da vontade
de alguns poucos ou de apenas um certos direitos fundamentais como
o direito agrave vida agrave liberdade agrave seguranccedila agrave felicidade44
Essa concepccedilatildeo de liberdade relaciona-se com o pensamento dos teoacutericos
contratualistas que procuraram estudar os limites do poder agrave base de uma concepccedilatildeo
geral e hipoteacutetica da natureza do homem A afirmaccedilatildeo dos direitos naturais e a teoria do
contrato social estatildeo estreitamente ligadas a ideia de que o exerciacutecio do poder poliacutetico
apenas eacute legiacutetimo se fundado sobre o consenso daqueles sobre os quais eacute exercido
deriva do pressuposto de que os indiviacuteduos tecircm direitos que natildeo dependem da
instituiccedilatildeo do soberano cuja funccedilatildeo limita-se a permitir proteger e garantir esses
direitos de forma compatiacutevel agrave seguranccedila social
O que une a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo eacute a
comum concepccedilatildeo individualista da sociedade a concepccedilatildeo segundo a
qual primeiro existe o indiviacuteduo singular com seus interesses e com
suas carecircncias que tomam a forma de direitos em virtude da assunccedilatildeo
de uma hipoteacutetica lei da natureza e depois a sociedade e natildeo vice-versa
como sustenta o organicismo em todas as suas formas segundo o qual a
sociedade eacute anterior aos indiviacuteduos ou conforme a foacutermula aristoteacutelica
destinada a ter ecircxito ao longo dos seacuteculos o todo eacute anterior agraves partes45
Thomas Hobbes escreveria em 1651 o Leviatatilde obra considerada de inspiraccedilatildeo
proacute-monaacuterquica46
cuja primeira parte explicitava a doutrina poliacutetica do autor e a
segunda constituiacutea uma criacutetica agrave doutrina oficial da Igreja Catoacutelica acerca das origens
divinas do poder Agrave maneira dos demais pensadores contratualistas Hobbes caracteriza
o estado de natureza (estado natural) em contraposiccedilatildeo ao Estado civil No primeiro
estado natildeo haacute qualquer tipo de autoridade que regulamente as accedilotildees humanas
43
BOBBIO Norberto op cit p 8 44
Idem p 11 45
Idem p 15 46
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre EDIPUCRS 1993
p 17
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(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
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regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
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Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
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2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
15
(contratos) sendo portanto um estado de guerra iminente uma vez que se trata de um
ldquoreino do instinto e das paixotildees desenfreadas da igualdade absoluta e ilimitada da
vontade arbitraacuteria e anaacuterquicardquo47
Sem a autoridade de um soberano essa igualdade e
liberdade absolutas satildeo perigosas para os proacuteprios homens que vivem sem nenhum tipo
de seguranccedila (leis) que os controlem e protejam ndash neste caso o homem torna-se o lobo
do proacuteprio homem
Desta igualdade quanto agrave capacidade deriva a igualdade quanto agrave
esperanccedila de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam
a mesma coisa ao mesmo tempo que eacute impossiacutevel ela ser gozada por
ambos eles tornam-se inimigos E no caminho para o seu fim ()
esforccedilam-se por destruir ou subjugar um ao outro48
Para sair do estado da natureza condiccedilatildeo natural do homem na ausecircncia de um
Estado recorre-se agrave razatildeo (que eacute tatildeo natural aos homens quanto suas paixotildees) Para
Hobbes a razatildeo apresenta-se na forma de normas que garantem os direitos agrave medida
que impotildeem deveres aos indiviacuteduos Eacute a razatildeo dos homens que faz com que optem por
deixar o estado natural (de guerra) para viver dentro do Estado civil
O fim uacuteltimo causa final e desiacutegnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domiacutenio sobre os outros) ao introduzir
aquela restriccedilatildeo sobre si mesmos sob o qual os vemos viver nos
Estados eacute o cuidado com sua proacutepria conservaccedilatildeo e com uma vida mais
satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela miacutesera condiccedilatildeo de
guerra que eacute a consequecircncia necessaacuteria (conforme se mostrou) das
paixotildees naturais dos homens quando natildeo haacute um poder visiacutevel capaz de
os manter em respeito forccedilando-os por medo do castigo ao
cumprimento de seus pactos ()49
Essas ideias sobre direitos naturais cidadania Estado civil liberalismo e
liberdade circularam pelo mundo informando a formaccedilatildeo dos modernos Estados-naccedilatildeo
Elas estatildeo presentes na Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos (1787) na Declaraccedilatildeo dos
Direitos do Homem e do Cidadatildeo (Franccedila 1789) e nas Bases da Constituiccedilatildeo Poliacutetica
da Monarquia Portuguesa documento elaborado pelo Soberano Congresso logo apoacutes o
47
HOBBES Thomas Leviatatilde ou Mateacuteria Forma e Poder de um Estado Eclesiaacutestico e Civil (1651) apud
WOLLMAN Seacutergio op cit p 33 48
Idem p 45 49
Idem p 61
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
16
regresso de D Joatildeo VI agrave Portugal e do triunfo da Revoluccedilatildeo Constitucionalista do Porto
(1821)
A Declaraccedilatildeo Dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo por exemplo formulada na
ebuliccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa assegura logo em seus primeiros artigos os ldquodireitos
naturais inalienaacuteveis e sagrados do homemrdquo nomeadamente ldquoa liberdade a
propriedade a seguranccedila e a resistecircncia agrave opressatildeordquo Em seguida descreve o que a
Assembleia Nacional entendia por liberdade
Artigo 4ordm ndash A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que natildeo
prejudique outrem assim o exerciacutecio dos direitos naturais de cada
homem natildeo tem por limites senatildeo os que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos Estes limites
apenas podem ser determinados pela Lei50
A liberdade tambeacutem aparece como direito individual do cidadatildeo nas Bases da
Constituiccedilatildeo da Monarquia Portuguesa onde eacute definida de forma bem especiacutefica ldquoA
liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei natildeo
proiacutebe A conservaccedilatildeo desta liberdade depende da exata observacircncia das leisrdquo51
Neste
sentido para ser respeitada e considerada como um dos principais direitos individuais
do cidadatildeo precisava ser garantida por meio de uma Constituiccedilatildeo de leis Na
montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio do Brasil natildeo seria diferente
O moderno vocabulaacuterio poliacutetico jaacute chegara ao paiacutes agrave eacutepoca da Assembleia
Constituinte e Joatildeo Soares Lisboa redator do Correio do Rio de Janeiro ndash um dos
primeiros jornais a defender a convocaccedilatildeo de uma Assembleia52
ndash natildeo estava alheio agraves
novas ideias Logo no primeiro nuacutemero de seu jornal lanccedilado em abril de 1822 Soares
Lisboa publicou texto esclarecendo aos leitores a funccedilatildeo poliacutetica de seu perioacutedico
Damos princiacutepio aos nossos trabalhos em huma eacutepoca em que o
despotismo lutando em toda a Europa com a liberdade apenas se pode
conjecturar [que] se triunfaraacute a razatildeo a justiccedila e o sagrado direito do
homem ou a intriga a perfiacutedia a impostura e a escravidatildeo felizmente
para nossos concidadatildeos () doou-nos o Ceacuteu na presente crize hum Rei
bom por caracter hum Priacutencipe liberal ateacute por gecircnio o que natildeo soacute torna
50
Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo Franccedila 1789 Texto integralmente disponiacutevel em
httpfdunlptdocentes_docsmamla_MA_19926pdf (acesso em 05122013) 51
Bases da Constituiccedilatildeo da Poliacutetica da Monarquia Portuguesa Portugal 1821 Texto integral disponiacutevel
em httparqnetptportalportugalliberalismobases821html (acesso em 05122013) 52
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 12
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
17
menos dificultosa a nossa Regeneraccedilatildeo Poliacutetica mas ateacute concilia nosso
respeito e cordial amor para com suas inviolaacuteveis Pessoas debaixo de
tatildeo poderosos auspiacutecios nada temos que recear no desempenho de
nossos deveres ()53
A seguir Lisboa comenta a convocaccedilatildeo de deputados brasileiros agraves Cortes de
Lisboa (1821-1822) explicando assim o conceito de representaccedilatildeo vigente na
sociedade da eacutepoca
Attendendo agrave impossibilidade fiacutezica de reunir-se para deliberar hum
pocircvo em massa era necessaacuterio adoptar hum methodo pelo que se
reunissem fracccedilotildees de Soberania delegando cada porccedilatildeo de Cidadatildeos a
parte que lhes competia em hum dois ou mais deputados54
E continua no que seria uma preacutevia de seu comportamento atrevido e radical
para com o governo de D Pedro I ndash o que lhe renderia uma estadia na prisatildeo apoacutes
publicaccedilatildeo criticando as jaacute citadas Instruccedilotildees para as eleiccedilotildees da Assembleia
Constituinte55
Julgaratildeo alguns enthuziastas que pretendemos justificar o Soberano
Congresso em todos os seus procedimentos ou inculcar que se lhe deve
respeito divino e servil obediecircncia seria isso huma contradiccedilatildeo
manifesta dos princiacutepios liberaes que professamos () e por isso
dizemos que = o Soberano Congresso natildeo tem e natildeo pode ter poderes
absolutos e obra com despotismo quando excede os limites de
authoridade que lhe foi delegada = talvez pareccedila atrevida e falsa
nossa propoziccedilatildeo porque abalizados escriptores como Hobbes
reconhecem que a Soberania he illimitada ou seja exercida por hum
por alguns ou por todos () Com desejo de que os saacutebios nos
illuminem provando melhor o sistema de Hobbes vamos a expor como
a demonstraccedilatildeo da nossa these o sistema de Mr Benjamin Constant
que he o seguinte Natildeo existe sobre a terra nenhuma authoridade
illimitada nem a do Povo nem a de seus reprezentantes nem a dos
Reis () e ateacute nem a da Lei porque sendo esta a expressatildeo da vontade
do Povo ou do Priacutencipe segundo a forma de Governo deve ser
circunscripta nos mesmos limites da authoridade donde humana Os
cidadatildeos possuem direitos individuaes independentes de toda a
authoridade social ou poliacutetica e toda a authoridade que violar estes
direitos torna-se illegiacutetima56
53
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822 54
Idem 55
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo op cit p 15 Joatildeo Soares Lisboa
discordava do modelo de eleiccedilotildees indiretas e atacou pessoalmente a figura do Imperador 56
Correio do Rio de Janeiro nordm 1 10 de abril de 1822
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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47
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antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
18
Concluiacutemos pois que no contexto da Independecircncia e da formaccedilatildeo nacional do
Estado Imperial brasileiro jaacute circulavam pela sociedade as novas acepccedilotildees das
ldquopalavras de ordemrdquo do Oitocentos ndash representaccedilatildeo cidadania soberania e
principalmente liberdade A partir da abertura dos Portos em 1808 a despeito da
proibiccedilatildeo de circulaccedilatildeo de obras contendo os ldquoabominaacuteveis princiacutepios revolucionaacuteriosrdquo
os brasileiros passaram a ter acesso aos principais autores da Ilustraccedilatildeo e aos teoacutericos do
liberalismo Em 1821 quando as ldquoboas novasrdquo do movimento constitucionalista
portuguecircs chegaram ao paiacutes encontraram terreno feacutertil para inflamar o espiacuterito do povo
que passou a se mobilizar para a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil e para a consagraccedilatildeo
dos chamados ldquodireitos individuaisrdquo na sua futura Constituiccedilatildeo
Poreacutem a realidade brasileira era diversa da europeia e da norte-americana e a
conquista dos direitos civis e poliacuteticos conviveu com a manutenccedilatildeo no paiacutes de formas
antigas de poder como a monarquia que apesar de constitucionalista conservava
ldquotraccedilos absolutistasrdquo como o Poder Moderador Aleacutem do mais natildeo se deve perder de
vista que agrave eacutepoca da Independecircncia do Brasil jaacute haviam se passado 30 anos desde a
Queda da Bastilha ou seja chegavam aos portos brasileiros tanto as obras iluministas
quanto as notiacutecias dos excessos e violecircncia cometidos na Revoluccedilatildeo Francesa durante
sua fase republicana ndash o que pode explicar a opccedilatildeo monaacuterquica como forma de governo
poacutes-Independecircncia Tambeacutem o liberalismo apresentou limitaccedilotildees sobretudo no que diz
respeito agrave manutenccedilatildeo da escravidatildeo no paiacutes ateacute fins do seacuteculo XIX
Apesar das ldquopeculiaridadesrdquo do caso brasileiro natildeo se pode negar a influecircncia de
dessas novas ideias no imaginaacuterio coletivo do povo Seja atraveacutes de cartas enviadas aos
jornais de peticcedilotildees queixas e representaccedilotildees ou mesmo da presenccedila popular nas
galerias da Assembleia Constituinte eacute notoacuterio o envolvimento da sociedade civil nos
assuntos do Estado e a constante vigilacircncia para que se assegurassem e respeitassem os
direitos individuais dos cidadatildeos
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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46
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COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
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FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
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LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
19
2 AS RELACcedilOtildeES INSTITUCIONAIS ENTRE IGREJA E ESTADO NO BRASIL IMPEacuteRIO
21 Os limites juriacutedicos
Os historiadores que se dedicaram a estudar as relaccedilotildees institucionais entre Estado e
Igreja Catoacutelica no Brasil Imperial57
frequentemente tecircm caracterizado essa relaccedilatildeo como
complexa ndash para natildeo dizer conflituosa Os conflitos derivavam da ldquodebilidade espiritual
poliacutetica econocircmica e juriacutedicardquo58
a que a Igreja no Brasil estava submetida
Juridicamente a relaccedilatildeo tensionada entre Estado e Igreja decorria do sistema de
Padroado Reacutegio vigente desde o periacuteodo colonial ateacute a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em
1889 Thales de Azevedo explica a instauraccedilatildeo desse sistema no Brasil
Com a criaccedilatildeo do primeiro bispado [na Bahia] introduz-se na Ameacuterica
portuguesa o regiacutemen de privileacutegios seculares e espirituais do padroado
Segundo a bula Super Specula Militantis Ecclesiae [de 1551] por meio
da qual o Papa Juacutelio III institui e provecirc o dito bispado este fica sob o
padroado do soberano portuguecircs pro temporis existentis () Estabelece-
se destarte no Brasil um regiacutemen de subordinaccedilatildeo completa da Igreja
ao Estado absoluto em que a proteccedilatildeo prometida agrave estrutura eclesial e agrave
vida religiosa vem a ser desfalcada consideravelmente pela opressiva
ingerecircncia secular no sagrado59
O regime juriacutedico do padroado eacute uma tradiccedilatildeo da monarquia lusitana estendida
agraves conquistas ultramarinas daquele Reino Para melhor entendecirc-lo eacute imperativo retomar
a relaccedilatildeo entre a Coroa Portuguesa e o Papado desde o princiacutepio Segundo Joseacute
Mascarenhas Menck60
essa relaccedilatildeo eacute antiga e remonta agraves origens de Portugal jaacute que o
primeiro monarca portuguecircs D Afonso Henriques (1143-1185) ofereceu as terras do
57
Cf por exemplo HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo II2
PetroacutepolisRJ Vozes 1980 PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife
Editora Massangana 1982 AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista
espiritual e o padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978 BARROS Roque Spencer M de Vida
religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de (dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira tomo II
vol 4 Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1960 GOMES Francisco Joseacute Silva Quatro seacuteculos de
cristandade no Brasil In MOURA Carlos Andreacute et al (orgs) Religiatildeo cultura e poliacutetica no Brasil
perspectivas histoacutericas Campinas Coleccedilatildeo Ideias10 UNICAMPIFCH 2011 58
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 16 59
AZEVEDO Thales de op cit p 80 60
Para anaacutelise detalhada da relaccedilatildeo entre Coroa Portuguesa e Papado cf MENCK Joseacute Theodoro
Mascarenhas op cit p 44-56
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
20
novo reino a Satildeo Pedro prestando vassalagem ao entatildeo pontiacutefice Celestino II Na
formaccedilatildeo da monarquia lusa portanto Igreja e Estado articularam-se de imediato uma
relaccedilatildeo que perduraria ao longo de seacuteculos e seria herdada pelo Brasil Na visatildeo da
Santa Seacute poreacutem a associaccedilatildeo entre o Papado e o Impeacuterio apresentava uma hierarquia
clara entre os poderes espiritual ndash a dignidade ldquomaior para tomar a direccedilatildeo das almasrdquo ndash
e o temporal ndash ldquoa menor para tomar a direccedilatildeo dos corposrdquo ndash como expressado nas
palavras do Papa Inocecircncio III (1198-1216)
Deus criador do universo fixou duas grandes luminaacuterias no firmamento
do ceacuteu a luminaacuteria maior para dirigir o dia e a luminaacuteria menor para
dirigir a noite Da mesma forma para o firmamento da Igreja universal
como se se tratasse do Ceacuteu nomeou duas grandes dignidades a maior
para tomar a direccedilatildeo das almas como se estas fossem os dias a menor
para tomar a direccedilatildeo dos corpos como se estas fossem as noites Estas
dignidades satildeo a autoridade pontifiacutecia e o poder real Assim como a lua
deriva a sua luz da do sol e na verdade eacute inferior ao sol tanto em
quantidade como em qualidade em posiccedilatildeo como em efeito da mesma
maneira o poder real deriva o esplendor da sua dignidade da autoridade
pontifiacutecia e quanto mais intimamente se lhe unir tanto maior seraacute a luz
com que eacute adornado quanto mais prolongar (essa uniatildeo) mais cresceraacute
em esplendor ()61
Durante as Cruzadas feacute e espada uniram-se na propagaccedilatildeo da Cristandade pelos
territoacuterios conquistados estreitando a relaccedilatildeo entre a Santa Seacute e os monarcas Os reis
portugueses conseguiram atraveacutes de concessotildees papais legitimar suas conquistas
beacutelicas desde que voltadas para a submissatildeo de povos ldquoinfieacuteis ou inimigos de Cristordquo
A primeira bula papal neste sentido foi emitida por Nicolau V em 1455 sendo
confirmada por Calisto III (1456) Sisto IV (1481) Leatildeo X (1514) e Juacutelio III (1550)62
Em troca de legitimaccedilatildeo os monarcas comprometiam-se a zelar pela difusatildeo do
Cristianismo patrocinando a assimilaccedilatildeo e preservaccedilatildeo da feacute catoacutelica entre os povos
conquistados
Ademais desde D Joatildeo III (1521-1557) os monarcas portugueses exerciam o
papel de Gratildeo-Mestres da Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem
de Cristo originaacuteria da extinta Ordem dos Templaacuterios em Portugal Neste sentido
possuiacuteam ao mesmo tempo o poder de ordem civil e eclesiaacutestica de seus territoacuterios
61
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e testemunhas Satildeo Paulo
UNESP 2000 p 135 62
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 44-45
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
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2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
21
incluindo os recentes domiacutenios ultramarinos63
O mesmo D Joatildeo III criou um tribunal
denominado Mesa de Consciecircncia e Ordens cuja principal atribuiccedilatildeo era ldquozelar pela
implementaccedilatildeo e conservaccedilatildeo do culto na Ameacuterica portuguesa cuja colonizaccedilatildeo se
encontrava a essa altura em seus primoacuterdiosrdquo64
Segundo Menck
A tutela dos monarcas lusitanos por sobre a Igreja Catoacutelica em seus
domiacutenios estendeu-se ao longo de toda a histoacuteria da monarquia
portuguesa e cristalizou-se () em trecircs figuras juriacutedicas fundamentais
para a constituiccedilatildeo do Estado lusitano de entatildeo o padroado
(patronatus) o beneplaacutecito ou exequatur e os recursos de forccedila ou
recursos agrave Coroa65
Se para o Papa Inocecircncio III (e para a Santa Seacute como um todo) a autoridade real
subjugava-se agrave autoridade episcopal para os monarcas portugueses sobretudo em razatildeo
das trecircs figuras juriacutedicas acima mencionadas (e que seratildeo retomadas mais tarde) tal
concepccedilatildeo natildeo seria aceita Ainda que o padroado fosse um privileacutegio concedido por
Roma aos reis portugueses estes o entendiam como direito inerente aos monarcas Joatildeo
Fagundes Hauck ao descrever a irritaccedilatildeo de D Pedro I diante das formalidades exigidas
pela Santa Seacute para reconhecer o padroado reacutegio na pessoa do novo Imperador do Brasil
comenta que
tornou-se evidente entatildeo a diferenccedila de conceito de padroado Pedro I
o tinha como direito atribuiccedilatildeo proacutepria do poder absoluto dos reis
quando Roma o considerava como especial privileacutegio concedido pelo
papa em decorrecircncia de funccedilatildeo determinada a evangelizaccedilatildeo dos
territoacuterios conquistados66
Esse choque de interpretaccedilotildees norteou a relaccedilatildeo entre o Papado e a Coroa
Portuguesa durante seacuteculos reverberando na relaccedilatildeo complexa entre o Estado Imperial
brasileiro e a Igreja Catoacutelica no correr do seacuteculo XIX O Padroado Reacutegio eacute portanto
entendido pelos estudiosos como o cerne principal do conflito Estado-Igreja no Brasil e
que culminaria no final do seacuteculo XIX na chamada Questatildeo Religiosa67
Segundo
Rock Spencer
63
Idem p 46 64
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 65
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 47 66
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 78 67
Alguns autores entre eles Nilo Pereira Joatildeo Fagundes Hauck e Rock Spencer localizam a Questatildeo
Religiosa (1872-1875) como o aacutepice do conflito entre Igreja e Estado no Brasil uma verdadeira crise ndash e
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
22
E nem se diga que a limitaccedilatildeo da jurisdiccedilatildeo espiritual e da temporal
uma submetida agrave Igreja outra ao Estado impediria por si soacute a invasatildeo
daquela no domiacutenio secular tais limites satildeo necessariamente arbitraacuterios
(natildeo fora o chamado ldquoreino espiritualrdquo tatildeo histoacuterico como o temporal)
como a proacutepria Questatildeo Religiosa viria a demonstraacute-lo Defendendo-se
como tinha de fazecirc-lo o Estado por sua vez tendia a invadir a esfera da
Igreja pois reconhecendo embora sua incompetecircncia espiritual
exercia ao mesmo tempo o direito de estabelecer os limites dessa
incompetecircncia () Tal regime [do padroado] portanto trazia no seu
fulcro o conflito latente entre a Igreja e o Estado () Sob certos
aspectos aliaacutes espanta-nos agrave primeira vista que tal conflito natildeo se
verificasse mais cedo68
O regime do padroado se trata em sua expressatildeo mais simples de uma ldquotroca
de obrigaccedilotildees e de direitos entre a Igreja e um indiviacuteduo ou instituiccedilatildeo que assume
assim a condiccedilatildeo de padroeirordquo69
No caso do Impeacuterio Portuguecircs o padroeiro era o
proacuteprio monarca Era ele quem ordenava a nomeaccedilatildeo de bispos a criaccedilatildeo de igrejas
bispados e paroacutequias distribuiacutea as cocircngruas para manutenccedilatildeo do clero e recolhia o
diacutezimo dos devotos Aleacutem disso cabia agrave Coroa Portuguesa o instituto do beneplaacutecito
que era o assentimento estatal para que bulas e outros documentos episcopais pudessem
vigorar no territoacuterio portuguecircs o beneplaacutecito (ou exequatur) ldquoera considerado uma
consequecircncia loacutegica do patronatordquo 70
Jaacute os chamados recursos agrave Coroa consistiam em
uma apelaccedilatildeo contra o abuso ou improcedecircncia dos tribunais eclesiaacutesticos De fato
qualquer cidadatildeo portuguecircs bem como qualquer cidadatildeo brasileiro cleacuterigo ou natildeo
poderia recorrer agrave justiccedila civil para que ela corrigisse qualquer sentenccedila de juiz
eclesiaacutestico71
Essas trecircs figuras juriacutedicas ndash o patronato o beneplaacutecito e os recursos agrave Coroa ndash
formavam o ius cavendi expressatildeo latina que significa em traduccedilatildeo livre ldquolei de
cautelardquo 72
Segundo Menck ldquoo ius cavendi era essencial para a manutenccedilatildeo e agrave proacutepria
um provaacutevel cisma ndash protagonizada pelos bispos de Olinda e do Paraacute D Vital e D Macedo Costa e pelo
Imperador D Pedro II que culminaria na prisatildeo dos bispos
68
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 69
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 382 70
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 48 71
Idem 72
Ius em latim significa ldquodireito que assiste a algueacutem direito escrito legislaccedilatildeordquo Cavendi provavelmente
origina-se da palavra latina caveo que significa ldquotomar cuidado guardar-se acautelar-se prevenir-serdquo
In SARAIVA F R dos Santos Dicionaacuterio Latino-portuguecircs 12ordf ed Belo Horizonte Garnier 2006
pgs 196 e 649
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
23
existecircncia dos Estados frente agrave Igrejardquo73
Essencial pois a Igreja Catoacutelica era e ainda o
eacute por definiccedilatildeo uma instituiccedilatildeo universal que desconhece as fronteiras nacionais Sem
o ius cavendi os Estados arriscar-se-iam a ver desautorizados seus proacuteprios poderes por
medidas papais que viessem a afetar a vida civil de seus suacuteditos74
Desta forma os
Estados asseguravam a soberania nacional e em troca a religiatildeo catoacutelica passava a ser
difundida e protegida pelo aparelho estatal uma vez instituiacuteda como credo oficial
Durante a montagem do edifiacutecio legal do Impeacuterio brasileiro poreacutem a situaccedilatildeo
tornou-se delicada Apoacutes a emancipaccedilatildeo poliacutetica do Brasil teria fim a gestatildeo
eclesiaacutestica na figura do soberano uma vez que D Pedro I embora herdeiro do trono
portuguecircs natildeo detinha o poder nem do Padroado Reacutegio nem da Ordem de Cristo que
permaneceriam nas matildeos de D Joatildeo VI ateacute sua morte em 182675
Dessa maneira
ficavam em suspenso todas as ldquoatividades eclesiaacutesticasrdquo que iam desde a criaccedilatildeo de
novas igrejas agrave indicaccedilatildeo e provimento de bispos e paacuterocos Ciente da urgecircncia do
problema o Imperador apressou-se a enviar um ministro extraordinaacuterio monsenhor
Francisco Correia Vidigal para Roma Foi ele encarregado de obter junto a Santa Seacute o
reconhecimento da Independecircncia bem como ldquouma concordata cujo principal escopo
seria confirmar a continuidade dos antigos direitos que em relaccedilatildeo agrave Igreja possuiacuteam
os soberanos de Portugal na pessoa de chefe de Estadordquo76
Cabe ressaltar que quando a
comitiva brasileira chegou a Roma em cinco de janeiro de 1825 tais poderes e
privileacutegios jaacute se encontravam consagrados na Constituiccedilatildeo de 1824 cujo texto
reconhecia a religiatildeo catoacutelica como religiatildeo do Estado
Como as relaccedilotildees diplomaacuteticas entre Portugal e Brasil a esta altura
encontravam-se indefinidas a Santa Seacute preferiu adiar sua resposta por mais de um ano
Apenas depois da ratificaccedilatildeo de D Joatildeo VI ao Tratado de Paz Amizade e Alianccedila (15
de novembro de 1825) que reconhecia a Independecircncia do Brasil o Papa Leatildeo XII
aceitou receber o monsenhor brasileiro77
Digno de nota eacute o post-scriptum das
Instruccedilotildees que foram entregues ao monsenhor Vidigal antes de sua partida a Roma que
refletiam o espiacuterito que animava a diplomacia brasileira em relaccedilatildeo agrave Santa Seacute
73
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 49 grifo nosso 74
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 320 75
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 396 76
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 52 77
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 397
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
24
() se encontrar difficuldades graviacutessimas e mesmo demoras estudadas
servir-se-haacute do argumento mais poderoso que haacute para obrigar SS a que
ajuste quanto antes as relaccedilotildees ecclesiasticas com o Impeacuterio do Brasil
conveacutem saber a necessidade que de dia em dia se torna maior de se
nomearem bispos para as Seacutes vagas em quanto natildeo morrem tambeacutem os
que ainda estatildeo vivos para sagrarem os novos eleitos lembrando que
estaacute assim a Igreja do Brasil no estado perigozo de lhe faltarem os
Bispos e que entatildeo se veraacute SMI na rigorosa obrigaccedilatildeo de nomear os
Bispos e fazellos immediatamente () para evitar a falta total destes
Prelados que produziria dano ao bem espiritual dos Povos Este perigo
deveria SS atalhar para natildeo concorrer para a falta do pasto espiritual
dos povos nem ver praticada a sagraccedilatildeo pelos metropolitas com
prejuiacutezo das prerrogativas de que estaacute em posse o que toda vida deseja
SMI que natildeo aconteccedila jamais e que soacute SMI mandaraacute praticar no
uacuteltimo extremo78
Para Joseacute Menck e Guilherme Neves tais instruccedilotildees equivaleriam agrave ameaccedila de
um cisma79
A missatildeo do monsenhor Vidigal natildeo foi inteiramente bem sucedida A
Santa Seacute reconheceu a Independecircncia do Brasil em 25 de janeiro de 1826 mas a
concessatildeo do Padroado Reacutegio na figura do Imperador foi limitada sobretudo no que
dizia respeito agrave nomeaccedilatildeo dos bispos e paacuterocos a qual a Santa Seacute impocircs vaacuterios entraves
A bula Praeclara Portugaliae (1827) que continha essas limitaccedilotildees teve parecer
contraacuterio na Cacircmara dos Deputados e o Imperador utilizando-se do beneplaacutecito
previsto no Artigo 102 da Constituiccedilatildeo Imperial rejeitou-a no territoacuterio brasileiro
Desde o princiacutepio da montagem do Estado Imperial a relaccedilatildeo entre Estado e
Igreja foi tensionada pelo menos no acircmbito externo Ao avaliarem a bula de 1827 os
deputados brasileiros acusaram-na de ser uma ldquointromissatildeo do Papa no direito
nacionalrdquo80
e antes mesmo da concessatildeo do padroado na figura de D Pedro I pela
Santa Seacute a Constituiccedilatildeo Imperial jaacute consagrava o que entendia ser um direito do
Imperador do Brasil As Instruccedilotildees entregues ao monsenhor Vidigal ilustram a posiccedilatildeo
diplomaacutetica do paiacutes com relaccedilatildeo ao papado Este caso natildeo estendesse oficialmente os
privileacutegios dos monarcas portugueses a D Pedro I arriscaria um cisma entre Brasil e
Roma
Aliaacutes a ideia de separaccedilatildeo natildeo era uma novidade e foi uma ameaccedila constante
durante todo o Impeacuterio Apoacutes a Independecircncia uma parcela do clero brasileiro liderado
78
CALOacuteGERAS Joatildeo Pandiaacute A Poliacutetica Exterior do Impeacuterio Tomo 2 ndash O Primeiro Reinado Vol 387
Satildeo Paulo Editora Brasiliana s ano p 374 apud MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 79
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 53 NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do
Impeacuterio op cit p 397 80
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 398
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
25
pelo Padre Antocircnio Feijoacute e por parte do clero de Satildeo Paulo via a possibilidade de
formaccedilatildeo de uma Igreja nacional cujo centro de unidade seria um Conciacutelio Nacional
desligado de Roma Pragmaacuteticos esses padres achavam que a melhor maneira de acabar
com a inobservacircncia do celibato pelo clero brasileiro seria extingui-lo81
numa clara
afronta aos preceitos da Cuacuteria Romana
De qualquer forma o cisma natildeo chegou a se concretizar nem no iniacutecio do
Impeacuterio e nem mesmo no periacuteodo criacutetico da Questatildeo Religiosa momentos
emblemaacuteticos dos inuacutemeros conflitos de jurisprudecircncia entre Estado e Igreja Catoacutelica
Como avalia Neves dois universos mentais disputavam entre si naquele momento
aqueles que eram a favor de maior separaccedilatildeo entre crenccedila e poliacutetica e aqueles que natildeo o
eram Poreacutem
nenhum deles pretendia abrir matildeo da condiccedilatildeo de fieacuteis depositaacuterios da
tradiccedilatildeo catoacutelica () ambos os lados continuavam a ver na religiatildeo o
fundamento moral da sociedade ainda mais quando esta continha uma
parcela consideraacutevel tatildeo pouco cultivada como era o caso da populaccedilatildeo
brasileira no periacuteodo82
22 O CLERO BRASILEIRO
Haacute um consenso entre os estudiosos que tendem a ver a situaccedilatildeo da Igreja no
periacuteodo imperial como decadente nas palavras de Joatildeo Hauck ldquoo padroado esvaziava
de tal forma a funccedilatildeo episcopal que os bispos natildeo chegavam a constituir um centro de
unidaderdquo83
O papel fundamental antes exercido pelos jesuiacutetas cuja rede de coleacutegios
cobria os pontos mais importantes do litoral natildeo foi assumido por ningueacutem O
episcopado era reduzido e natildeo acompanhava o crescimento populacional contava com
um arcebispado o da Bahia aleacutem de meia duacutezia de dioceses (Olinda Rio de Janeiro
Satildeo Luiacutes Beleacutem Mariana e Satildeo Paulo) e mais duas prelazias (Mato Grosso e Goiaacutes)
todas com recursos escassos O nuacutemero de paroacutequias (aproximadamente 600) era
extremamente pequeno para uma populaccedilatildeo de quatro milhotildees de pessoas o que dava a
81
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 14 82
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 388 83
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 13
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
26
inacreditaacutevel meacutedia de quase sete mil fieacuteis por paacuteroco84
tornando a administraccedilatildeo
episcopal tarefa quase impossiacutevel
Aleacutem do mais grande parte do clero envolvia-se ativamente na vida poliacutetica e
social do paiacutes e sua consciecircncia ldquorevelava-se mais patrioacutetica do que eclesiaacutesticardquo85
Os
padres brasileiros eram antes funcionaacuterios puacuteblicos do que sacerdotes
Parte mais numerosa da elite intelectual do paiacutes a interpenetraccedilatildeo do
religioso e do profano fortalecia a influecircncia do clero que assim
participava ativamente da vida poliacutetica e social assumindo posiccedilotildees
poliacuteticas que vatildeo de um radicalismo extremado com o de Frei Caneca e
dos padres revolucionaacuterios do Nordeste a um liberalismo teoacuterico e
inconsequente86
A formaccedilatildeo teoloacutegica do clero era marcada por forte regalismo87
apoiado na
tradiccedilatildeo lusitana sobretudo pombalina e pelo pensamento jansenista difundido na
Universidade de Coimbra onde muitos padres brasileiros estudaram O jansenismo foi
uma tentativa de reforma da Igreja Catoacutelica no seacuteculo XVII na Franccedila levado a cabo
por Fleming Jansen (1563-1638) Assimilando muitos dos conceitos calvinistas a
reforma pregava a austera piedade a leitura diaacuteria da Biacuteblia e a autonomia em relaccedilatildeo a
Roma88
Logo o clero do Brasil pela sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo nada tinha de ortodoxo
O clero nacional dos tempos pombalinos ateacute agraves veacutesperas da Questatildeo
Religiosa natildeo se distinguia com raras exceccedilotildees por qualquer
demonstraccedilatildeo de ortodoxia Mais frequentadores das letras francesas do
que das latinas mais versados na literatura profana do que nas obras
pias muitos de nossos cleacuterigos estavam saturados dos ideias
iluministas das reivindicaccedilotildees democraacuteticas e liberais da Revoluccedilatildeo
Francesa () Ao lado do ideal iluminista o clero professava
geralmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre a Igreja e o Estado o
mais ferrenho regalismo () Basta dizer que entre os muitos
eclesiaacutesticos que faziam parte da Assembleia Legislativa de 1826 a
84
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio op cit p 384 HAUCK Joatildeo Fagundes op
cit p 81 85
HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 86 86
Idem 87
Regalismo eacute definido pelo Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa como ldquodoutrina que
concedia aos reis o direito de interferecircncia em questotildees religiosasrdquo In HOUAISS eletrocircnico versatildeo
multiusuaacuterio 20093 Instituto Antocircnio Houaiss Produzido e distribuiacutedo pela Editora Objetiva Ltda 88
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 19-25 VIEIRA David Gueiros O Protestantismo a
Maccedilonaria e a Questatildeo Religiosa no Brasil 2ordf ed Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1929 p 29-
32
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
27
1829 contavam-se diversos que natildeo titubeavam em reconhecer o
primado do poder civil89
Alheios e ateacute mesmo resistentes aos ditames da Cuacuteria Romana que assombrada
pelas memoacuterias recentes da Revoluccedilatildeo Francesa condenou todo e qualquer tipo de livro
com ideais iluministas e liberais muitos sacerdotes desobedeciam tal proibiccedilatildeo As
bibliotecas do clero brasileiro incluindo o acervo do famoso Seminaacuterio de Olinda
estavam repletas de livros de J J Rousseau Adam Smith Victor Cousin e Emmanuel
Kant90
Natildeo eacute por acaso que muitos padres envolveram-se nos movimentos
revolucionaacuterios surgidos entre fins do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX no Brasil
O fato de que pelo Direito de Padroado que usufruiacutea a Coroa
portuguesa os padres ficavam submetidos diretamente ao poder real
explica em parte a hostilidade dos setores do clero em relaccedilatildeo agrave
Monarquia e sua adesatildeo aos movimentos revolucionaacuterios ()
Ilustrativos dessa adesatildeo dos setores do clero agraves ideias revolucionaacuterias
satildeo os cartazes que se afixavam nas esquinas por ocasiatildeo da Revoluccedilatildeo
de 1817 em que se liam ldquoViva a Paacutetriardquo ldquoViva Nossa Senhorardquo ldquoViva
a Santa Religiatildeo Catoacutelicardquo ldquoMorram os aristocraacuteticosrdquo91
Essa conduta heterodoxa do clero brasileiro ndash sem mencionar a praacutetica
disseminada da inobservacircncia do celibato ndash certamente contribuiu para a paz precaacuteria
entre Estado e Igreja jaacute que
ningueacutem rigorosamente falando levava a peito a defesa das
prerrogativas da Igreja protestando contra as invasotildees do Estado no
domiacutenio espiritual ou por outro lado pretendendo ampliar a jurisdiccedilatildeo
daquela sobre o domiacutenio temporal deste () Reinava assim a paz
embora se tratasse de uma paz precaacuteria que a qualquer instante poderia
ser rompida desde que aparecessem uns poucos campeotildees da religiatildeo
romana dispostos a fazer valer no paiacutes o catolicismo na sua integridade
para tanto invocando o caraacuteter oficial de sua crenccedila amparada pelo art
5ordm da Constituiccedilatildeo92
23 O papel da Igreja no Brasil
Se a Igreja gozava neste contexto de tatildeo baixo prestiacutegio especialmente
devido ao comportamento do clero e via seus domiacutenios e suas atribuiccedilotildees serem
89
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 321 90
Idem p 322 HAUCK Joatildeo Fagundes op cit p 77 e 85 91
COSTA Emiacutelia Viotti da op cit p 34 92
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa op cit p 324
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
28
cerceadas e limitadas pelo Estado ndash tiacutepico de uma relaccedilatildeo ambiacutegua de proteccedilatildeo e
desconfianccedila ndash seria ingenuidade adotar a oacutetica dos padres Heliodoro Pires93
e Joseacute
Geraldo de Carvalho94
que defenderam ativamente o papel da Igreja na formaccedilatildeo do
paiacutes delegando-lhe importacircncia fundamental na Histoacuteria do Brasil Talvez
principalmente se levarmos em conta o fato de se tratar de uma histoacuteria apologeacutetica dos
feitos da Igreja produzida por eclesiaacutesticos
Por mais que esses estudiosos do tema admitam que ldquoo regalismo do periacuteodo
imperial violentou a liberdade da Igreja no Brasilrdquo95
sendo possiacutevel localizar ldquoatitudes e
injusticcedilas clamorosas de poliacuteticos e governantes para com a Santa Igreja e o Papado ()
como a atitude atrevida de Feijoacuterdquo96
natildeo deixaram de combater a visatildeo predominante na
historiografia segundo a qual a Igreja aparece como submissa ao Estado Imperial
Defendem eles que mesmo quando ldquoatenazada pelo regalismo do governo
imperial do seacuteculo XIXrdquo a Igreja ldquonatildeo deixou de pugnar pelos direitos dos mais fracos
e por uma ordem social humana e justardquo97
principalmente porque sempre se mostrou
presente nos ldquoatos mais solenes da vida nacionalrdquo ndash tanto o Senado quanto a Cacircmara
sempre contaram com nuacutemero expressivo de bispos e sacerdotes e eacute notoacuterio o
envolvimento da Igreja na aboliccedilatildeo da escravidatildeo no final do Oitocentos98
Quem estuda a histoacuteria da vida religiosa no Brasil sente-se muitas
vecirczes na contingecircncia de condenar os abusos do regalismo as
violecircncias do padroado os erros e desvarios dos governantes no
periacuteodo colonial e na fase do impeacuterio [] Mas eacute de justiccedila que se decirc o
relecircvo merecido ao prestiacutegio de que usufruiu a Igreja Catoacutelica no paiacutes
durante os seacuteculos coloniais e desde D Joatildeo VI ateacute a repuacuteblica [] em
geral a Casa Real portuguecircsa nosso rei D Joatildeo VI nossos
imperadores respeitaram a religiatildeo e a queriam respeitada e acatada
Ainda que se faccedila restriccedilatildeo quanto agrave mentalidade com que olhavam o
catolicismo natildeo se pode subestimar o bom exemplo que davam
respeitando e conservando as tradiccedilotildees religiosas do povo a
organizaccedilatildeo da Igreja nas capitanias depois proviacutencias as instituiccedilotildees
catoacutelicas no territoacuterio nacional99
93
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo Editora SA 1946 94
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidial de Temas de Histoacuteria da Igreja no Brasil Minas Gerais Editora
Folha de Viccedilosa 1994 95
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 11 96
PIRES Heliodoro op cit p 349 97
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de op cit p 20 98
Idem p 12 99
PIRES Heliodoro op cit p 349
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
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46
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Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
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MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
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Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
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RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
29
Poreacutem embora a histoacuteria produzida por esses eclesiaacutesticos tenha o objetivo claro
de exaltar os feitos da Igreja como o seu prestiacutegio na sociedade cabe aqui levantar
hipoacuteteses que relativizem ou ao menos questionem a submissatildeo da Igreja ao Estado
Imperial brasileiro como defendido por grande parte da historiografia do tema Se a
Igreja gozava de tatildeo baixo prestiacutegio por que entatildeo o Artigo 7ordm do Projeto de
Constituiccedilatildeo que tratava da liberdade religiosa fora tatildeo debatido Por que seu debate
suscitou mais de 30 intervenccedilotildees envolvendo cleacuterigos e natildeo-cleacuterigos Por que num
universo de 84 deputados constituintes 22 (ou 26) eram sacerdotes eleitos pelo
povo100
Por que se fez essencial que os constituintes e a comissatildeo responsaacutevel por
redigir a Carta de 1824 discutissem as atribuiccedilotildees do poder temporal e espiritual bem
como de que maneira a relaccedilatildeo Estado-Igreja herdada de Portugal se transmitiria para a
nova naccedilatildeo
Alegar que tal debate veio agrave tona apenas como expressatildeo de mais um conflito
jurisdicional no qual o Estado se intrometia nos assuntos eclesiaacutesticos explica em parte
a questatildeo Na verdade o Brasil do seacuteculo XIX um paiacutes pombalino marcado por forte
regalismo e pela tradiccedilatildeo do padroado viu coexistir no imaginaacuterio do povo formas
antigas e novas de pensar e agir Um palco privilegiado do embate entre esses dois
universos mentais foi a Assembleia Constituinte de 1823 e os deputados ndash talvez pela
funccedilatildeo moralizante exercida pela Igreja talvez pela forccedila da tradiccedilatildeo catoacutelica herdada
de Portugal ou talvez pela feacute que professavam e juravam manter ndash natildeo deixaram de
discutir a fisionomia religiosa do paiacutes o papel da Igreja no Impeacuterio em formaccedilatildeo e o
direito ou natildeo agrave liberdade religiosa
100
Aleacutem de quatro que natildeo tomaram assento os sacerdotes que foram eleitos para a Assembleia
Constituinte de 1823 eram os seguintes Bispo D Joseacute Caetano da Silva Coutinho pelo Rio de Janeiro
padre Francisco Agostinho Gomes pela Bahia padre Belchior Pinheiro de Oliveira cocircnego Manuel
Rodrigues da Costa padre Joseacute Custoacutedio Dias padre Joseacute de Abreu e Silva cocircnego Francisco Pereira de
Santa Apolocircnia e padre Antocircnio da Rocha Franco os seis pela proviacutencia de Minas Gerais padre Silvestre
Aacutelvares da Silva por Goiaacutes monsenhor Francisco Moniz Tavares padre Inaacutecio de Almeida Fortuna
padre Francisco Ferreira Barreto padre Venacircncio Henriques de Resende e padre Luiacutes Inaacutecio de Andrade
Lima por Pernambuco padre Joseacute Martiniano de Alencar padre Joseacute Joaquim Xavier Sobreira e padre
Manuel Ribeiro Bessa de Holanda Cavalcanti todos pelo Cearaacute padre Joseacute Ferreira Nobre pela Paraiacuteba e
padre Joseacute Antocircnio Caldas por Alagoas Perfazendo um total de 18 sacerdotes ndash 15 padres dois cocircnegos
um bispo e um monsenhor In PIRES Heliodoro op cit p 360
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
30
3 A DISCUSSAtildeO SOBRE LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUINTE DE 1823
Quando para qualquer mateacuteria se pode arrastar o
nome de liberdade inflamam-se logo os espiacuteritos
Marquecircs de Queluz 1828101
Assim que se iniciaram os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Impeacuterio do Brasil o deputado pela proviacutencia do Rio de Janeiro Antocircnio
Luiz Pereira da Cunha sugeriu que se tratasse de nomear uma Comissatildeo de
Constituiccedilatildeo ldquoque haacute de apresentar um Projecto dellardquo102
Decidiu-se que a Comissatildeo
seria composta por sete membros (nuacutemero maacuteximo permitido pelo Regimento Interno
da Assembleia) eleitos por seus pares Procedeu-se entatildeo agrave votaccedilatildeo e saiacuteram
nomeados os membros da Comissatildeo Antocircnio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e
Silva com 40 votos Antocircnio Luiz Pereira da Cunha com 30 votos Pedro de Arauacutejo
Lima com 20 votos Joseacute Ricardo da Costa Aguiar com 19 votos Manoel Ferreira da
Cacircmara com 18 votos monsenhor Francisco Moniz Tavares com 16 votos e Joseacute
Bonifaacutecio de Andrada e Silva tambeacutem com 16 votos103
Quatro meses depois a 1ordm de setembro a Comissatildeo finalmente apresentou agrave
Assembleia o Projeto de Constituiccedilatildeo ldquodepois de ter religiosamente implorado os
auxiacutelios da Sabedoria Divina conformando-se os princiacutepios da justiccedila e da utilidade
geralrdquo104
O teor do projeto composto por 272 artigos passou a ser apreciado pelos
deputados nas sessotildees seguintes ateacute a dissoluccedilatildeo da Constituinte pelas tropas do
Imperador em 12 de novembro de 1823
Em outubro daquele ano passou-se a discutir um dos artigos mais polecircmicos do
Projeto que suscitou grande nuacutemero de intervenccedilotildees o Artigo 7ordm que versava sobre os
direitos individuais dos brasileiros Ainda quando se discutia o sect 1ordm do artigo ldquoA
101
Joatildeo Severiano Maciel da Costa o Marquecircs de Queluz senador do Impeacuterio do Brasil em discurso
proferido no Senado em 10 de junho 1828 apud RIBEIRO Gladys Sabina e PEREIRA Vantuil O
primeiro reinado op cit p 139 e 166 102
Diaacuterios da Assembleacuteia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do Brasil sessatildeo de 5 de maio de
1823 p 25 Os Diaacuterios encontram-se disponiacuteveis integralmente digitalizados tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da Biblioteca Nacional
(httphemerotecadigitalbnbr) 103
Idem 104
Diaacuterios sessatildeo de 1ordm de setembro de 1823 op cit p 689
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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46
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FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
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Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
31
liberdade pessoalrdquo o deputado Maciel da Costa atenta para a necessidade de se definir
no enunciado do paraacutegrafo o que de fato se entendia por ldquoliberdade pessoalrdquo Andrada
Machado responde-lhe defendendo que a Comissatildeo da qual fazia parte ldquonatildeo quizera
dar definiccedilotildees porque reconhecia a difficuldade de as dar exactasrdquo Ele acrescenta que
no caso a definiccedilatildeo se fazia desnecessaacuteria ldquoporque toda a pessoa entendia o que era
liberdade pessoal e que todas as vezes que se definiam cousas de si claras
ordinariamente se escureciam em lugar de se illuminaremrdquo105
Observamos pois em
seu discurso referecircncia agrave liberdade como direito supostamente reconhecido pela
sociedade brasileira naquele contexto vincado pelas ideias constitucionalistas que
movimentaram o cenaacuterio poliacutetico agrave eacutepoca da Independecircncia
A seguir o Deputado Franccedila sugere a supressatildeo de todo o artigo tendo em vista
que a enumeraccedilatildeo dos direitos individuais pode ser prejudicial ldquoporque se pode daiacute
concluir que somente esses Direitos individuaes hatildeo de ser guardados e natildeo outros
muitosrdquo106
Ele continua em provaacutevel alusatildeo agrave Hobbes e agrave noccedilatildeo contratualista de
sociedade
A differenccedila entre o homem natural e o homem social ou a differenccedila
de liberdade de um e outro he a somma das restriccedilotildees que por Direito
se impotildeem o mesmo homem em convenccedilatildeo com os outros homens a
cuja sociedade pertence O que cumpre pois saber-se essencialmente he
o que elle natildeo pode fazer civilmente () Proponho que se suprima o
Art 7ordm e que principie a doutrina do capiacutetulo pelo Art 8ordm que diz
ldquoNenhum Brasileiro seraacute obrigadordquo107
Sua proposta foi rejeitada pela Assembleia que acabou aprovando os sect 1ordm e 2ordm
do artigo sem alteraccedilotildees Poreacutem o proacuteximo paraacutegrafo ldquoA liberdade religiosardquo foi
extensamente debatido dos 84 deputados constituintes 18 tomaram a palavra para
defender ou natildeo a manutenccedilatildeo a liberdade de culto perfazendo um total de 30
intervenccedilotildees No quadro a seguir mapeamos por proviacutencia os deputados envolvidos na
apreciaccedilatildeo do polecircmico paraacutegrafo Nesse quadro identificamos seis deputados
integrantes do clero representando 333 do total de parlamentares envolvidos no
debate sobre liberdade religiosa na Constituinte
105
Diaacuterios sessatildeo de 7 de outubro de 1823 p 184 O discurso completo do deputado natildeo pocircde ser
transcrito pelo taquiacutegrafo que no entanto resumiu-o 106
Idem 107
Idem
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
32
O primeiro a tomar a palavra eacute o deputado Andrada Machado um dos ilustres
irmatildeos Andrada laico que elucida seus pares sobre o teor do paraacutegrafo
Temos neste sect outro direito individual a liberdade religiosa isso he a
liberdade de adorar cada um o Ente Supremo pela forma que melhor lhe
parece Este direito he tatildeo sagrado que eu creio nem deveria entrar no
cataacutelogo dos direitos garantidos porque a relaccedilatildeo de creatura com o
creador estaacute fora do alcance poliacutetico Quando os homens se ajuntaram e
por convenccedilatildeo sacrificaram uma porccedilatildeo de sua liberdade para conservar
a outra seguramente natildeo cederam do direito de adorar a Deus de modo
que lhe parecesse melhor para se sujeitar agrave forma que lhes fosse
determinada poreacutem jaacute que a sociedade chegou a essa desgraccedila uma
vez que ateacute se tem usurpado o domiacutenio do pensamento he preciso com
cuidado estabelecer este direito Por isso a Commissatildeo declarou a sua
garantia para evitar o absurdo de se obrigar o cidadatildeo a praticar o
contraacuterio do que lhe dita a sua consciecircncia ()108
O constituinte Maciel da Costa toma a palavra para manifestar sua repulsa ao
conteuacutedo do paraacutegrafo criticando diretamente Andrada Machado Maciel da Costa
admite apenas como ldquoproposiccedilatildeo filosoacuteficardquo que cada um adore a Deus como quiser
108
Idem p 185
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
33
considerando uma ldquocontradiccedilatildeo notaacutevelrdquo a existecircncia de tal paraacutegrafo em uma
Constituiccedilatildeo feita para brasileiros ndash ldquoisto eacute Catoacutelicos Romanosrdquo ndash que jurava manter a
Religiatildeo Catoacutelica como oficial O deputado acusa o Projeto de cometer apostasia109
Para quem legislamos noacutes Para Brasileiros isto he Catholicos
Romanos Quem representamos noacutes aqui Brasileiros isto he
Catholicos Romanos De quem recebemos procuraccedilotildees De Brasileiros
isto he de Catholicos Romanos E para quecirc Para decretarmos que noacutes
elles nossos filhos nossa posteridade teremos o direito de apostatar da
verdadeira Religiatildeo () Natildeo Sr Presidente natildeo Tal poder natildeo nos foi
outorgado em nossas Procuraccedilotildees e nem podia e nem devia ser110
Ele admite poreacutem que os brasileiros animados com os princiacutepios liberais e
generosos ldquonatildeo querem excluir do seo seio homens uacuteteis ao nosso Impeacuterio nascente soacute
porque elles natildeo satildeo catholicosrdquo Esses ldquohomens uacuteteisrdquo a que Maciel da Costa refere-se
satildeo os estrangeiros que para caacute migravam ndash para ele somente os estrangeiros poderiam
amparados pelo sect 5ordm do Artigo 8ordm do Projeto de Constituiccedilatildeo professar sua feacute
independentemente de ser catoacutelica ou natildeo (desde que natildeo ofendessem o Culto
Nacional) Este direito natildeo se estenderia aos brasileiros povo de uma uacutenica religiatildeo o
catolicismo Para aquele deputado
Tudo quanto noacutes podemos fazer nesse negoacutecio he natildeo consentir que o
Cidadatildeo [estrangeiro] seja perseguido por suas opiniotildees religiosas em
quanto (sic) elle natildeo as espalhar ou pregar de um modo sedicioso natildeo
consentir que o Cidadatildeo seja espionado ateacute no interior de sua famiacutelia
para saber o Governo suas ideias e mesmo o modo com que elle observa
os preceitos religiosos e tirar daqui motivo para denuacutencias
perseguiccedilotildees etc porque em rigor de direito poliacutetico a alccedilada do
Governo paacutera nos actos puacuteblicos que offendam a tranquumlilidade e o
respeito devido ao Culto Nacional111
O padre Manoel Rodrigues da Costa que participara da Inconfidecircncia Mineira
em 1792112
depois de vaacuterias consideraccedilotildees sobre os ldquoperversos dogmas de Calvino de
109
Apostasia no sentido biacuteblico significa o abandono ou negaccedilatildeo da feacute ldquoOra o Espiacuterito afirma
expressamente que nos uacuteltimos tempos alguns apostataratildeo da feacute por obedecerem a espiacuteritos enganadores
e a ensinos de democircniosrdquo (1Tm 41) 110
Idem p 185-186 111
Idem p 186 112
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 131
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
34
Lutero e de muitos outros heresiarcas que se quizeram erigir em reformadoresrdquo113
propocircs a rejeiccedilatildeo de todo o artigo que muito lhe ultrajava
Na verdade estabelecer-se entre noacutes como Artigo Constitucional uma tal
liberdade muito me tem escandalizado Se natildeo tiveacutessemos uma Religiatildeo
Revelada pela qual Deos nos fez conhecer como o devemos adorar
tanto interior quanto exteriormente poderia admitir-se essa liberdade
religiosa poreacutem noacutes temos essa Religiatildeo Revelada que devemos manter
() Eu natildeo venho aqui para expender argumentos Theoloacutegicos mas
venho obrigado da minha consciecircncia sustentar a veracidade do
juramento que prestei () Portanto Sr Presidente para natildeo ser perjuro
ao juramento que temos prestado de manter e defender a Religiatildeo
Catholica Romana he que eu requeiro que natildeo passe mas seja excluiacutedo
semelhante Artigo114
Monsenhor Francisco Moniz Tavares embora cleacuterigo natildeo concordava com a
postura dogmaacutetica e intolerante de Rodrigues da Costa Sua argumentaccedilatildeo eacute mais
liberal ldquoComo jaacute ningueacutem receia ser queimado vivo como herege ou heterodoxo por
discordar da opiniatildeo de theoacutelogosrdquo diz Tavares ldquonatildeo devo eu igualmente recear de
dizer francamente a minha opiniatildeo sobre tatildeo importante mateacuteriardquo115
Alegando que a
consciecircncia eacute um santuaacuterio onde nenhum poder humano tem o direito de penetrar o
deputado defende a liberdade religiosa ldquoum dos Direitos mais Sagrados que pode ter o
homem na Sociedaderdquo116
natildeo sem antes reiterar e assegurar a todos a sua devoccedilatildeo agrave
uacutenica e verdadeira religiatildeo o catolicismo
Sigo a Religiatildeo Catholica Apostoacutelica Romana conheccedilo por princiacutepios
que Ella he a uacutenica e verdadeira poreacutem tambeacutem conheccedilo que a
convicccedilatildeo iacutentima da verdade natildeo authorisa a proscriccedilatildeo dos que erram
Nasci no grecircmio dessa Religiatildeo e pretendo mediante os auxiacutelios da
Divina Graccedila nella viver e morrer mas se por desventura (o que Deos
natildeo permita) a Graccedila me abandonar () e eu passar a seguir outra
Religiatildeo natildeo desejarei ser perseguido nem inquietado no exerciacutecio
dessa religiatildeo adoptada e persuado-me que o Nobre Deputado que
acaba de fallar tambeacutem natildeo desejaria ser perseguido Isto posto como
poderei jaacute mais (sic) deixar de approvar este artigo117
E ele continua requerendo igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros
ldquoOra se isto succede com os estrangeiros se elles natildeo podem deixar de ser protegidos
113
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 189 114
Idem p 189-190 115
Idem p 190 116
Idem 117
Idem
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
35
embora natildeo sigam a Religiatildeo Catholica Romana hatildeo de os Brasileiros ficar de pior
condiccedilatildeordquo118
Sobre a possibilidade de estarem os deputados cometendo perjuacuterio e apostasia
por votarem a favor da liberdade religiosa conforme acusara Rodrigues da Costa o
tambeacutem padre Henriques de Resende tomou a palavra Louvando o zelo do deputado
com o juramento prestado agrave Constituiccedilatildeo (de manter a Religiatildeo Catoacutelica como Religiatildeo
de Estado) Henriques pondera que a ldquopureza do Catholicismo que felizmente
professamos natildeo lucra com a intoleracircnciardquo119
Ele mostra-se favoraacutevel ao paraacutegrafo
mas sabendo que ldquoos inimigos dos princiacutepios liberaisrdquo os espiavam propotildee uma
alteraccedilatildeo em seu enunciado para que natildeo houvesse brechas na interpretaccedilatildeo do texto e a
hegemonia da Igreja Catoacutelica fosse mantida Ele propotildee que se mude o enunciado para
ldquoUma razoaacutevel liberdade religiosardquo Alguns membros o apoacuteiam outros como os
constituintes Sobreira e Ferreira Barreto deixam a sala incomodados120
com a ideia de
uma ldquorelativardquo liberdade religiosa adjetivaccedilatildeo que sem duacutevida comprometia a ideia de
liberdade em sua essecircncia
O proacuteximo a falar eacute o deputado Joseacute da Silva Lisboa que se posiciona a favor da
supressatildeo do artigo pois este representava um risco tratando-se de um direito ldquomal
soante e de escacircndalo dos ouvidos piosrdquo pois certamente causaria a impressatildeo no Povo
de que
Se pretende tirar-lhe a sua Religiatildeo ou diminuir-lhe a justa estimaccedilatildeo e
preferecircncia della concedendo-se illimitada faculdade aos naturaes do
Brasil de desertarem da Religiatildeo de seo Paiacutes e publicamente seguirem e
professarem seitas e heresias de Paizes estrangeiros121
Para ele em nenhuma Constituiccedilatildeo de grande naccedilatildeo onde haja uma religiatildeo
dominante ainda que tolerante a outras religiotildees se permitiu essa ldquoliberdade totalrdquo que
seria a liberdade de perjuacuterio e de apostasia
Sr Presidente no meu entender Liberdade Religiosa considerando as
circunstacircncias do Brasil vem a ser Liberdade de Perjuacuterio e Liberdade
de Apostasia pois havendo todos os Cidadatildeos brasileiros jurado
guardar a Religiatildeo Catholica declarar-se agora em Constituiccedilatildeo que he
118
Idem p 191 119
Idem p 192 120
Idem 121
Idem
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
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PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
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PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
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48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
36
seo direito individual ter Liberdade Religiosa he o mesmo que declarar-
se que pode perjurar e prescindir de seo Juramento sendo Apostata da
Religiatildeo122
Silva Soares para combater a liberdade religiosa cita o exemplo da Revoluccedilatildeo
Francesa que ldquoprincipiando-se por declamaccedilotildees contra a Intoleracircncia requereu a
Toleracircncia absoluta do Governo sobre Objectos Poliacuteticos e Religiososrdquo originando
muitos abusos e severas desordens Para ele
os Cabalistas abusaram logo das successivas concessotildees de toleracircncia e
derrubaram o Governo estabelecido e as suas proacuteprias novas
Constituiccedilotildees aliaacutes cheias de Declaraccedilotildees dos Direitos do Homem e de
liberdades na Administraccedilatildeo e Religiatildeo que o Povo Francez (que antes
era mui subordinado e Catholico) nunca imaginara nem reclamara Os
Representantes da Naccedilatildeo por fim foram intolerantiacutessimos de tudo que
se oppunha agraves opiniotildees do partido dominante e ocasionaram matanccedilas e
horribilidades () chegando as mais furiosas a suffocar a Religiatildeo
Catholica com todas as Comunhotildees Christatildes e ainda publicamente
assumiram o Atheismo123
Afirmando que no Brasil natildeo havia muitos praticantes de outras seitas ndash o fato
de denominaacute-las seitas e natildeo religiotildees demonstra preconceito por parte do conservador
deputado ndash conceder tal liberdade religiosa seria colocar em perigo a moral e os bons
costumes da Igreja Catoacutelica pois desta forma surgiriam Congregaccedilotildees e Templos das
mais diversas religiotildees ldquoQue escacircndalo viria disso ao Povordquo questiona ele ldquoQue Pai
de famiacutelia natildeo deseja criar seos filhos nos dogmas e preceitos do Cathecismordquo Ele
termina seu longo discurso de forma profeacutetica e ameaccediladora ldquoCeacuteos Que futuros se nos
preparatildeordquo124
O deputado Andrada Machado ferrenho defensor da liberdade religiosa
replicara Silva Lisboa tatildeo rapidamente e os ldquosussurros das galeriasrdquo125
ndash sussurros
daqueles que acompanhavam as sessotildees e lotavam as galerias da Assembleia
Constituinte para acompanhar as sessotildees ndash eram tatildeo altos neste momento que o
taquiacutegrafo natildeo pocircde acompanhar o seu discurso
122
Idem p 193 123
Idem p 194 124
Idem p 194-195 125
Idem p 195
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
37
O deputado Francisco Carneiro foi o proacuteximo a falar Um dos principais
redatores da Carta de 1824126
afirmou tratar-se de uma mateacuteria poliacutetica e natildeo teoloacutegica
Essa posiccedilatildeo de separaccedilatildeo entre as esferas do poder temporal e espiritual foi recorrente
em vaacuterios discursos na Assembleia Muitos deputados realizavam autocriacutetica por
discutir no acircmbito do Parlamento e portanto do Estado as prerrogativas que em tese
eram da alccedilada da Igreja Apesar da observaccedilatildeo criacutetica ao paraacutegrafo ele natildeo deixou de
ser amplamente discutido pelos constituintes cientes de que seu papel na Assembleia
era o de desenhar a fisionomia do Estado Imperial ndash e a Igreja Catoacutelica mostrava-se
fundamental para esse desenho
Mesmo com a criacutetica Francisco Carneiro defendeu a liberdade religiosa
dizendo estar persuadido de que ldquoeste paraacutegrapho he um dos que mais honra fazem aos
illustres Redactores do Projecto de Constituiccedilatildeordquo127
O deputado segue defendendo sua
posiccedilatildeo argumentando que nem Jesus Cristo pregou a obrigaccedilatildeo de algueacutem receber
contra a sua vontade a Revelaccedilatildeo
Daqui se segue claramente que nenhum indiviacuteduo nenhuma colleccedilatildeo de
indiviacuteduos nenhuma authoriadade humana por mais legiacutetima ou
respeitaacutevel que seja he competente para se interpor entre o homem e
Deos e para obrigar pela forccedila o mesmo homem a ter esta ou aquela
religiatildeo128
O constituinte Carneiro de Campos tambeacutem se mostrou favoraacutevel agrave manutenccedilatildeo
do paraacutegrafo por acreditar que natildeo cabia ao Estado impor crenccedilas ou fazer ingerecircncia no
ambiente da religiatildeo assunto para ele circunscrito agrave esfera privadaparticular Ele
refuta assim os argumentos levantados por Silva Lisboa segundo os quais uma vez
permitida a liberdade religiosa o catolicismo seria facilmente substituiacutedo pelas religiotildees
heterodoxas Para Carneiro de Campos a verdadeira crenccedila de um cidadatildeo natildeo depende
de um artigo constitucional mas de uma posiccedilatildeo de foro iacutentimo de cada um
Falando humanamente (eu repito aqui esta advertecircncia para me natildeo
complicar com os misteacuterios incompreensiacuteveis da Graccedila e evitar
suspeitas sobre a minha crenccedila) () a minha consciecircncia a minha
crenccedila e as minhas opiniotildees satildeo de tal sorte minhas que a ningueacutem
mais podem pertencer ellas residem bem recatadas no santuaacuterio o mais
126
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas op cit p 134 127
Diaacuterios sessatildeo de 8 de outubro de 1823 p 195 128
Idem
38
impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
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2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
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impenetraacutevel da minha onde nem as Leis nem o governo nem os
homens podem ter ingerecircncia soacute Deos entra ali () O Estado e a
Religiatildeo satildeo cousas mui distintas e perfeitamente separadas uma natildeo
pode ter ingerecircncia na outra129
Ele conclui sua defesa fazendo um apelo aos deputados para que natildeo se desviem
ldquodas mais depuradas luzes do seacuteculo que vivemosrdquo afirmando que para ser livre natildeo
basta que a pessoa e os bens do cidadatildeo estejam defendidos da opressatildeo ldquohe tambeacutem
necessaacuterio que o seo espiacuterito desembaraccedilado das cadeas da Tirannia possa seguir em
liberdade de ideias que elle julga verdadeiras uacuteteis e necessaacuterias a sua felicidaderdquo130
Nos discursos seguintes tanto Carneiro da Cunha quanto o Vergueiro foram
favoraacuteveis agrave manutenccedilatildeo do paraacutegrafo O primeiro falou sobre a importacircncia de se
ldquorespeitar nos outros o que queremos que se respeite em noacutesrdquo ressaltando que ldquoas
luzes do seacuteculo nos mostram que a todos devemos abrir a porta que disto natildeo pode
resultar ao Brasil mal algumrdquo131
Para ele o presente e o futuro do paiacutes natildeo estavam
ameaccedilados por conta da liberdade religiosa
Na sessatildeo do dia seguinte o deputado Franccedila que anteriormente pedira a
supressatildeo de todo o Artigo 7ordm retoma a palavra para criticar os redatores do Projeto de
Constituiccedilatildeo pois estranho lhe parecia ldquoser de uma Constituiccedilatildeo o tratar-se nella de
cousas de outro Mundordquo132
Desta forma ele retoma a questatildeo das competecircncias e
distinccedilotildees entre os poderes da Igreja e do Estado revelando a influecircncia do Regime do
Padroado e da tradiccedilatildeo regalista pombalina segundo a qual o Estado deveria ingerir nos
assuntos eclesiaacutesticos
Significativamente o deputado Silva Lisboa volta a falar alegando que na
sessatildeo passada ficara ldquomui destroccedilado com o alluviatildeo da eloquecircncia de tantos honrados
Membros que se opposeram agrave minha opiniatildeordquo133
Ele insiste em ressaltar usando de
toda sua erudiccedilatildeo os males da liberdade religiosa Em longo discurso Silva Lisboa
repete os argumentos de sua fala anterior a manutenccedilatildeo de tal paraacutegrafo seria
ldquoinconsequenterdquo para a Religiatildeo Catoacutelica a Naccedilatildeo brasileira formada de Catoacutelicos
129
Idem p 197 130
Idem p 198 131
Idem p 199 132
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 205 133
Idem p 205
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
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Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
Bibliografia de apoio
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Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
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padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
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(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
ed Satildeo Paulo Difel 1974
BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo
Paulo Editora Brasiliense 2000
BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S
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46
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e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
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COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
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GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
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LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
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PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
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PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
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PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
39
Romanos natildeo demandava tal liberdade de culto e os constituintes perjurariam o
juramento que haviam feito reconhecendo o catolicismo como Religiatildeo do Estado
Reiterando tal posiccedilatildeo Maciel da Costa que jaacute discursara contra a liberdade
religiosa pediu a palavra novamente O deputado nas palavras de Joseacute Honoacuterio
Rodrigues ldquoa figura mais reacionaacuteria da Constituinterdquo134
repetiu que a Constituiccedilatildeo
estava repleta de enunciados vagos que ldquoadmitem tatildeo variadas significaccedilotildeesrdquo135
e que
por tal razatildeo o debate estendia-se por tanto tempo Maciel da Costa contestando o
artigo afirmou que o povo brasileiro natildeo era um agregado de selvagens e que em
termos de religiatildeo jaacute se encontrava perfeitamente consumado Ele tambeacutem elogiou o
ldquosaudaacutevel respeito agrave Religiatildeordquo que funcionava como um ldquogrande freiordquo para um povo
ldquocuja maioridade natildeo tem estudos filosoacuteficosrdquo136
Compatiacutevel com sua postura elitista
ele avalia e prescreve a liberdade religiosa desejada pelos brasileiros ndash a de professar
tranquilamente e publicamente a Religiatildeo do Estado e somente ela
Qual seraacute pois a liberdade religiosa que o Povo brasileiro desejaraacute A
uacutenica que podia desejar e quer que lhe seja garantida pela Constituiccedilatildeo
poliacutetica que se vai formar e da qual na verdade necessita muito e vem
a ser a que as Authoridades puacuteblicas o deixem livre e tranquumlilo no
exerciacutecio puacuteblico da Religiatildeo Santa que professa que nisso nenhuma
outra ingerecircncia tenham senatildeo a necessaacuteria para manter a ordem e a
tranquilidade puacuteblica137
Em seguida manifestaram-se Montesuma que defendeu o paraacutegrafo e
Francisco Carneiro que repetiu os argumentos liberais de seu discurso anterior
Montesuma afirmou que a seu ver
os illustres Authores do Projecto quiseram soacute declarar que a
Constituiccedilatildeo na parte Religiosa natildeo seria menos liberal do que nas
outras isto he que na Constituiccedilatildeo Brasileira reconhecendo os direitos
inalienaacuteveis e imprescriptiacuteveis do Cidadatildeo tambeacutem reconhecia que o
homem tem de prestar a Deos o Culto que lhe ditar o seo coraccedilatildeo ()
porque assim como noacutes queremos que o Cidadatildeo seja livre em quanto
(sic) Cidadatildeo tambeacutem o devemos declarar livre como homem
Religioso138
134
RODRIGUES Joseacute Honoacuterio A Assembleia Constituinte de 1823 Petroacutepolis Editora Vozes 1974
apud MENCK op cit p 138 135
Diaacuterios sessatildeo de 9 de outubro de 1823 p 210 136
Idem 137
Idem p 211 138
Idem p 212
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
Bibliografia de apoio
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Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o
padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
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(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
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(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
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e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo
II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
40
A seguir falou Aacutelvares da Silva padre da proviacutencia de Goiaacutes e Almeida e
Albuquerque deputado por Pernambuco aleacutem do Bispo Capelatildeo-Moacuter do Rio de
Janeiro Dom Joseacute Caetano da Silva Coutinho O taquiacutegrafo natildeo conseguiu acompanhar
os discursos mas a respeito das palavras do Bispo comentou ser um ldquolargo e erudito
discursordquo e que o orador ldquodesapprovando toda a espeacutecie de perseguiccedilotildees fanatismos ou
barbaridades parecidas com os procedimentos do extinto tribunal do Santo Ofiacuteciordquo
igualmente natildeo podia admitir a ldquotoleracircncia legal de todas as Religiotildeesrdquo139
Naturalmente a maior autoridade eclesiaacutestica na Assembleia Constituinte o Bispo do
Rio de Janeiro mostrava-se relutante em aceitar tal artigo sob risco de haver uma
toleracircncia legal para a proliferaccedilatildeo das demais religiotildees o que feria os interesses da
Igreja no monopoacutelio da profissatildeo de feacute no Brasil e ia de encontro com a tradiccedilatildeo de
seacuteculos do Padroado Reacutegio
Por fim o deputado Andrada Machado que se responsabilizara desde o
princiacutepio pela redaccedilatildeo do paraacutegrafo retomou a palavra para responder a Maciel da
Costa Silva Lisboa e ao Bispo Silva Coutinho ndash os principais criacuteticos ao teor do
paraacutegrafo ndash afirmando ser sim da alccedilada de uma Constituiccedilatildeo mesmo que de uma
naccedilatildeo catoacutelica a garantia da liberdade religiosa Finaliza ele fazendo alguns deputados
manifestarem-se em apoio
Sr Presidente Eu reconheccedilo a necessidade drsquouma Religiatildeo no Estado
nem admito sociedade sem Religiatildeo mas qual he a caracteriacutestica da
Religiatildeo He o respeito e a veneraccedilatildeo da creatura para o creador por
tanto (sic) todas as Religiotildees em que he esta caracteriacutestica satildeo
referindo-se a este mundo tatildeo boas quanto a Catholica Romana ()
noacutes pobres humanos tatildeo fracos e tatildeo faliacuteveis natildeo nos devemos metter a
dar como padratildeo o nosso modo de pensar () Se algum Cidadatildeo se
desvia da Religiatildeo de seo Paiz nem por isso o Estado o deve perseguir
e que a Igreja se limita a chorar por elle140
Colocou-se finalmente em votaccedilatildeo a mateacuteria discutida Propondo o Presidente
da sessatildeo que o paraacutegrafo passasse ldquotal qualrdquo constava no Projeto de Constituiccedilatildeo este
foi aprovado Com efeito dos discursos a que tivemos acesso nos Diaacuterios isto eacute
aqueles que foram transcritos pelos taquiacutegrafos contabilizamos os que eram a favor da
139
Idem 140
Idem p 213
41
liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
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Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
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2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
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Editorial 2003
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para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
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MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
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Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
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1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
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PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
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liberdade religiosa aqueles que natildeo o eram e aqueles que propuseram alteraccedilotildees ao
enunciado do artigo (aceitaram-no ldquocom ressalvasrdquo) Verificamos pois que a maioria ndash
oito deputados ndash votou pela manutenccedilatildeo do paraacutegrafo como exposto no quadro abaixo
Posteriormente apesar de a maioria dos constituintes ter sido favoraacutevel ao tema
a Constituiccedilatildeo de 1824 suprimiu o referido artigo e o substituiu por outros dois o artigo
5ordm que mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial do Impeacuterio e permitia os demais
cultos sem forma alguma exterior de Templo e o sect 5 do artigo 179 que assegurava que
ningueacutem poderia ser perseguido por motivo de Religiatildeo desde que respeitasse a do
Estado e natildeo ofendesse a Moral Puacuteblica Eacute importante ressaltar que dos deputados que
participaram da polecircmica discussatildeo sobre liberdade religiosa na Assembleia trecircs
redigiram a Constituiccedilatildeo de 1824 Carneiro da Cunha Franccedila e Maciel da Costa Apesar
do parecer favoraacutevel agrave liberdade de culto sinalizada por Carneiro da Cunha o exposto
na Carta de 1824 apontava para a disposiccedilatildeo do Imperador em manter as prerrogativas
do poder temporal sobre o espiritual a ingerecircncia do Estado nos assuntos da Igreja
consoante agrave tradiccedilatildeo do regalismo pombalino
Poreacutem a julgar pela manutenccedilatildeo do catolicismo como religiatildeo oficial no texto
constitucional observa-se uma tendecircncia presente nos debates constituintes e jaacute
apontada por Guilherme Neves segundo a qual embora duas posiccedilotildees mentais se
enfrentassem ndash os que eram a favor e os que eram contraacuterios agrave liberdade religiosa ndash
nenhum deputado desejava renunciar agrave condiccedilatildeo de suacutedito de uma Naccedilatildeo catoacutelica Por
diversas vezes ao iniciarem seus discursos os constituintes reiteravam sua crenccedila na
uacutenica e verdadeira Religiatildeo Daiacute decorre o fato de natildeo se estar debatendo se o
catolicismo seria ou natildeo a uacutenica religiatildeo mantida pelo Estado professada por seus
cidadatildeos excetuando-se o caso dos estrangeiros Por mais influentes que fossem os
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
Bibliografia de apoio
ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o
padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de
(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
ed Satildeo Paulo Difel 1974
BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo
Paulo Editora Brasiliense 2000
BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S
(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
Brasileira 1970
46
CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo
II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
42
ldquoabominaacuteveis princiacutepios francesesrdquo a tradiccedilatildeo regalista e pombalina no Brasil do seacuteculo
XIX ainda era muito forte sem contar que a Igreja e o clero ainda envolviam-se
ativamente na vida social e poliacutetica do paiacutes sendo difiacutecil separar as esferas do poder
temporal e espiritual
Portanto mesmo as posiccedilotildees mais liberais vinculadas agravequeles que defendiam a
liberdade religiosa natildeo explicitavam nenhum tipo de negaccedilatildeo da Religiatildeo Catoacutelica ou
de postura contraacuteria e ateacute adversaacuteria agrave Igreja Pugnavam isso sim pela separaccedilatildeo das
esferas dos poderes temporal e espiritual mostrando um pensamento ldquoagrave frente de seu
tempordquo inspirado pelos princiacutepios liberais mas que soacute foi concretizado com a
Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica no final do seacuteculo
Os deputados liberais cientes da posiccedilatildeo de herdeiros da tradiccedilatildeo das Luzes
defendiam que os brasileiros deveriam gozar dos mesmos direitos que os estrangeiros
no que tange agrave liberdade de culto uma vez que entendiam como vaacutelida a maacutexima ldquonatildeo
faccedila aos outros o que natildeo gostaria que fizessem com vocecircrdquo Foi recorrente nos discursos
desses deputados alusotildees a praacuteticas de intoleracircncia religiosa traduzidas em
perseguiccedilotildees preconceitos e violecircncias Para eles uma vez assegurada a Religiatildeo
Catoacutelica Romana como oficial ndash isso natildeo estava em questatildeo ndash o Estado deveria permitir
os demais cultos o que natildeo significaria necessariamente a transferecircncia de fieacuteis do
catolicismo para as demais religiotildees Por fim defendiam que a escolha religiosa dizia
respeito ao foro iacutentimo de cada cidadatildeo e que natildeo deveria haver ingerecircncia do Estado
sobre ela
Jaacute os deputados mais conservadores sobretudo os que integravam o clero ou que
representavam os interesses da Igreja Catoacutelica acusavam o outro grupo de cometer
apostasia e perjuacuterio sob argumento de que haviam jurado zelar e proteger a Religiatildeo
Catoacutelica enquanto se fizessem deputados da Assembleia Constituinte do Impeacuterio
Quanto agraves perseguiccedilotildees e violecircncias que poderiam resultar da intoleracircncia religiosa
defendiam-se dizendo que natildeo se tratavam mais de ldquotempos baacuterbarosrdquo Consideravam o
substrato moral do catolicismo como fundamental para controlar a populaccedilatildeo brasileira
em sua maioria inculta Temiam que uma vez que se passasse o paraacutegrafo tal como o
era seu enunciado confundiria o povo brasileiro por permitir vastas significaccedilotildees e as
mais diversas interpretaccedilotildees Por fim argumentavam esses deputados natildeo haver no seio
da Naccedilatildeo brasileira numerosas seitas distintas da catoacutelica que justificassem o
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
Bibliografia de apoio
ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o
padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de
(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
ed Satildeo Paulo Difel 1974
BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo
Paulo Editora Brasiliense 2000
BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S
(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
Brasileira 1970
46
CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo
II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
43
dispositivo legal da liberdade religiosa e justamente por natildeo serem tatildeo expressivas natildeo
se deveria legislar para elas e sim para o povo brasileiro catoacutelico por essecircncia
Afinal a Constituiccedilatildeo que se pretendia duplicadamente mais liberal acabou por
ser no que tange aos assuntos religiosos mais restritiva do que o Projeto de
Constituiccedilatildeo votado na Assembleia Tratou-se na Carta de 1824 de perpetuar a tradiccedilatildeo
do regime do padroado e do regalismo portuguecircs mantendo a Igreja Catoacutelica como
culto oficial do paiacutes e sob o domiacutenio do Estado Ocorreu tambeacutem uma negociaccedilatildeo entre
liberais e conservadores laicos e cleacuterigos para finalmente se chegar a um consenso em
torno da questatildeo Concedeu-se uma liberdade religiosa com restriccedilotildees o brasileiro que
desejasse abandonar a feacute catoacutelica para professar outra religiatildeo poderia fazecirc-lo desde
que a cultuasse no acircmbito particular sem forma alguma exterior de Templo Esses
brasileiros assim como os estrangeiros que para caacute viessem natildeo poderiam ser
perseguidos por motivos de religiatildeo uma vez que respeitassem a moral cristatilde vigente e
o Culto Nacional
Por questatildeo de espaccedilo e tempo natildeo nos foi possiacutevel adensar o tema tal como
originalmente pensamos de modo a investigar os desdobramentos dessa restritiva
liberdade religiosa no cotidiano social Natildeo resta duacutevida de que sobretudo a partir da
segunda metade do seacuteculo XIX o dispositivo legal da liberdade religiosa foi argumento
mobilizado pelos estrangeiros que para caacute vieram a fim de conseguir autorizaccedilatildeo para
realizar publicamente seus cultos e praacuteticas religiosas Conveacutem lembrar poreacutem que
tanto os escravos praticantes das religiotildees africanas quantos os imigrantes (sobretudo
ingleses e norte-americanos) praticantes do protestantismo foram presenccedilas que
cresceram e se articularam na sociedade forccedilando a partir da metade final do
Oitocentos a alteraccedilatildeo do que previa a Constituiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave liberdade religiosa
Mas essa eacute uma questatildeo a ser investigada posteriormente
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
Bibliografia de apoio
ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o
padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de
(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
ed Satildeo Paulo Difel 1974
BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo
Paulo Editora Brasiliense 2000
BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S
(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
Brasileira 1970
46
CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo
II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
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MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
44
Consideraccedilotildees Finais
A afirmaccedilatildeo de George Boehrer presente na introduccedilatildeo deste trabalho na qual
ele afirma que o Brasil do seacuteculo XIX eacute um paiacutes pombalino pode e deve ser retomada
Mesmo com a abertura dos portos em 1808 com a entrada dos ideais iluministas
liberais e constitucionalistas mesmo com o surgimento de uma nova cultura poliacutetica e
um novo vocabulaacuterio poliacutetico o Brasil paradoxalmente permanecia um paiacutes
pombalino fiel agrave tradiccedilatildeo regalista herdada da monarquia portuguesa
O fato tanto da Constituiccedilatildeo de 1824 quanto da Constituinte de 1823
delimitarem a fisionomia religiosa do Impeacuterio demonstram um esforccedilo por parte dos
deputados de definir as atribuiccedilotildees e competecircncias das esferas espiritual e temporal
com a eventual supremacia dos interesses do Estado sobre os interesses da Igreja
Afinal a Constituiccedilatildeo mantinha o catolicismo como religiatildeo oficial poreacutem a ldquoproteccedilatildeordquo
vinha acompanhada de boa dose de desconfianccedila refletida na manutenccedilatildeo das figuras
juriacutedicas no texto constitucional do regime do padroado do beneplaacutecito e dos recursos
agrave Coroa que traduziam o mais puro regalismo ndash expressavam portanto a coexistecircncia
natildeo sem tensotildees de foacutermulas novas e antigas no paiacutes de pensar e agir
45
Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
Biblioteca Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
Bibliografia de apoio
ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Impeacuterio
Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
AZEVEDO Thales de Igreja e Estado em tensatildeo e crise a conquista espiritual e o
padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de
(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
ed Satildeo Paulo Difel 1974
BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo
Paulo Editora Brasiliense 2000
BOEHRER George A Igreja no Segundo Reinado In KEITH H H EDWARDS S
(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
Brasileira 1970
46
CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo
II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
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Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
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Referecircncias Bibliograacuteficas
Fontes primaacuterias
1 BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Impeacuterio do
Brasil ndash 1823 Tomo I II e III Brasiacutelia Senado Federal Conselho Editorial
2003 s paacutegina ndash Disponiacuteveis integralmente tanto no site da Cacircmara dos
Deputados (httpimagemcamaragovbrconstituinte_principalasp) quanto da
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2 Jornal Correio do Rio de Janeiro (1822-1823) Disponiacuteveis nos ite da Biblioteca
Nacional (httphemerotecadigitalbnbr)
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Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010
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padroado da Bahia Satildeo Paulo Aacutetica 1978
BARROS Roque Spencer M de Vida religiosa In HOLANDA Seacutergio Buarque de
(dir) Histoacuteria Geral da Civilizaccedilatildeo Brasileira O Brasil monaacuterquico Tomo II V 4 2ordm
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BOBBIO Norberto Democracia e liberalismo trad Marco Aureacutelio Nogueira Satildeo
Paulo Editora Brasiliense 2000
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(orgs) Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
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46
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e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
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Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
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Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
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as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
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Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
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1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
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Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
46
CALMON Pedro Introduccedilatildeo In BRASIL Diaacuterios da Assembleia Geral Constituinte
e Legislativa do Impeacuterio do Brasil ndash 1823 Tomo I Brasiacutelia Senado Federal Conselho
Editorial 2003
CARVALHO Joseacute Geraldo Vidigal de Carvalho Temas de Histoacuteria da Igreja no
Brasil Viccedilosa Editora Folha de Viccedilosa 1994
COSTA Emiacutelia Viotti da Da Monarquia agrave Repuacuteblica momentos decisivos 9ordf ed Satildeo
Paulo Editora UNESP 2010
FEITOZA Pedro Barbosa de Souza ldquoQue venha o Teu Reinordquo estrateacutegias missionaacuterias
para a inserccedilatildeo do protestantismo na sociedade monaacuterquica (1851-1874) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Universidade de Brasiacutelia 2012
GOMES Angela de Castro Histoacuteria historiografia e cultura poliacutetica no Brasil algumas
reflexotildees In SOIHET Rachel et AL Culturas poliacuteticas ensaios de histoacuteria poliacutetica e
ensino de histoacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileiar 2009 p141-160
GRAHAM Sandra Lauderdale O Motim do Vinteacutem e a Cultura Poliacutetica do Rio de
Janeiro 1880 Revista Brasileira de Histoacuteria Reforma e Revoluccedilatildeo Satildeo Paulo
ANPUHMarco Zero nordm 20 1990
GRINBERG Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831)
Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
HAUCK Joatildeo Fagundes et al (orgs) Histoacuteria da Igreja no Brasil ensaio de
interpretaccedilatildeo a partir do povo Segunda eacutepoca A Igreja no Brasil no seacuteculo XIX Tomo
II2 PetroacutepolisRJ Vozes 1980
LUSTOSA Isabel O debate sobre os direitos do cidadatildeo na imprensa da
Independecircncia In XXV Simpoacutesio Nacional de HIstoacuteria - Simpoacutesio temaacutetico Fortaleza
2008 Linguagens e praacuteticas da cidadania no seacuteculo XIX Satildeo Paulo Alameda 2008
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
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WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
47
MENCK Joseacute Theodoro Mascarenhas O Parlamento Imperial a Liberdade Religiosa e
as Relaccedilotildees Estado-Igreja no Brasil (1823- 1889) Dissertaccedilatildeo de mestrado
Universidade de Brasiacutelia 1995
NEVES Guilherme Pereira das A religiatildeo do Impeacuterio e a Igreja In GRINBERG
Keila e SALLES Ricardo (orgs) O Brasil Imperial vol I (1808-1831) Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2009
NEVES Luacutecia Bastos Pereira das Corcundas constitucionais cultura e poliacutetica (1820-
1823) Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2003
PEDRERO-SANCHEacuteZ Maria Guadalupe Histoacuteria da Idade Meacutedia textos e
testemunhas Satildeo Paulo UNESP 2000
PEREIRA Nilo Conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil 2 ed Recife Editora
Massangana 1982
PEREIRA Vantuil A longa lsquonoite de agoniarsquo In Revista de Histoacuteria da Biblioteca
Nacional s nordm 2 de janeiro de 2012
PEREIRA Vantuil Peticcedilotildees liberdades civis e poliacuteticas na consolidaccedilatildeo dos direitos do
cidadatildeo no Impeacuterio do Brasil (1822-1831) In RIBEIRO Gladys Sabina Brasileiros e
cidadatildeos modernidade poliacutetica 1822-1930 Satildeo Paulo Alameda 2008
PIRES Heliodoro Temas de Histoacuteria Eclesiaacutestica do Brasil Satildeo Paulo Satildeo Paulo
Editora SA 1946
RIBEIRO Gladys S A liberdade em construccedilatildeo identidade nacional e conflito
antilusitano no Primeiro Reinado Rio de Janeiro Relume-Dumaraacute 2002
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
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DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
48
WOLLMAN Seacutergio O conceito de liberdade no Leviatatilde de Hobbes Porto Alegre
EDIPUCRS 1993
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013
49
DECLARACcedilAtildeO DE AUTENTICIDADE
Eu Ceciacutelia Siqueira Cordeiro declaro para todos os efeitos que o trabalho de
conclusatildeo de curso intitulado A liberdade religiosa na Assembleia Constituinte de 1823
foi integralmente por mim redigido e que assinalei devidamente todas as referecircncias a
textos ideias e interpretaccedilotildees de outros autores Declaro ainda que o trabalho eacute ineacutedito e
que nunca foi apresentado a outro departamento eou universidade para fins de obtenccedilatildeo
de grau acadecircmico nem foi publicado integralmente em qualquer outro idioma ou
formato
Ceciacutelia Siqueira Cordeiro
Brasiacutelia 16 de dezembro de 2013