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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais A VINCULAÇÃO DAS SOCIEDADES A ATOS DOS SEUS SÓCIOS Daniel Gonçalinho Rasteiro Lisboa 2018

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO ......uma sociedade comercial por quotas, ao conteúdo de uma letra de câmbio 1. 1 Por letra de câmbio entende-se um documento constitutivo

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO

Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais

A VINCULAÇÃO DAS SOCIEDADES A ATOS DOS SEUS SÓCIOS

Daniel Gonçalinho Rasteiro

Lisboa

2018

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais

A VINCULAÇÃO DAS SOCIEDADES A ATOS DOS SEUS SÓCIOS

Dissertação de Mestrado, apresentada à

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Direito – Ciências Jurídico

Empresariais, sob a orientação do Professor

Doutor JOSÉ FERREIRA GOMES.

Daniel Gonçalinho Rasteiro

Lisboa

2018

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Resumo

O estudo desenvolvido, visa a obtenção do grau de mestre em Direito –

Ciências Jurídico Empresariais e centra-se na análise a um caso concreto.

O caso corresponde a uma situação, na qual dois sócios de uma sociedade por

quotas, aceitaram uma letra de câmbio, apresentando-se perante o sacador como

gerentes da sociedade, criando neste uma expectativa de que seria com a sociedade

que estaria a negociar. A questões colocam-se, quando se tem em conta que os

referidos sócios não exerciam funções de gerência, nem haviam recebido poderes

de representação pela sociedade para realizar um ato dessa natureza.

O objetivo geral do trabalho é que este corresponda a um processo de

investigação e aplicação de um conjunto de preceitos jurídicos aos problemas que

do caso decorrem, nomeadamente, sobre as questões de representação das

sociedades comerciais, a relação intraorgânica nas sociedades comerciais, o

exercício da vontade e dos direitos da pessoa coletiva, a relação da sociedade com

terceiros e principalmente, a vinculação da sociedade por atos praticados pelos seus

sócios, quando estes não possuam poderes de representação.

Versando este nosso estudo sobre um caso concreto, ultrapassa de certa

forma a classificação meramente teórica e analítica, para se situar num domínio

prático e que vise responder a problemas reais decorrentes do tráfego jurídico.

A organização do trabalho assenta, num primeiro plano, no enquadramento

do problema na ordem jurídica, seguida da aplicação de uma metodologia adequada

a responder às questões que se levantam, através do estudo do direito substantivo

e da sua aplicação ao caso.

A análise irá versar sobre a estrutura orgânica das sociedades comerciais,

mais concretamente, do papel do órgão administrativo na atividade da sociedade e

sobre a relação entre este e os sócios. Além disso o estudo versa, também, sobre o

instituto da representação voluntária em processo civil e comercial e de outras

teorias que nos pareceram úteis para a pesquisa na tentativa de responder às

perguntas que inicialmente se colocaram.

Palavras chave: Sociedades comerciais, representação orgânica, representação

voluntária, administrador de facto e procuração aparente.

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Abstract

This study regards a mean to obtain a master's degree in Law - Business Law and

focuses on the analysis of a real court case that we encountered by means of our

professional activity.

This case corresponds to a situation in which two partners from a joint-stock

company, accepted a bill of exchange, presenting themselves to the drawer as

managers of the company, creating an expectation that it would be with the

company that he would be negotiating. The problem arises in view of the fact that

said partners did not have managerial functions, nor had they been given powers of

representation by the company to carry out such an act.

The general objective of the study is to establish na investigation process and

application of a set of legal precepts to the problems that arise from the case, namely,

questions regarding representation of commercial companies, the relationship

between the different internal structures of such companies, the exercise of the will

and the rights of the company, the relationship of the company with third parties

and especially the association of society to acts practiced by its members.

Thus, in dealing with a real case, the study goes beyond the mere theoretical and

analytical classification, to be established in a practical field and aimed at

responding to real problems arising from legal traffic.

The organization of this paper, is based on the legal framework of the problem,

followed by the application of an appropriate methodology to answer the questions

that arise, through the study of substantive law and its application to the case.

The analysis will cover the organic structure of commercial companies, more

specifically, the role of the administrative body in the activity of the company and

the relationship between the company and its members. In addition, the study is

also about the institute of voluntary representation in civil and commercial law, and

also about other theories that seemed useful to the research, in an attempt to answer

the questions that were initially posed.

Key words: Commercial companies, corporate representation, voluntary

representation, de facto director and apparent power of attorney.

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ÍNDICE

Capítulo I – Enquadramento ................................................................................................................. 1

1. – Apresentação .................................................................................................................................. 1

2. – A realidade como «óculo da teoria» .................................................................................... 3

3. - O caso: o aceite de uma letra de câmbio em nome da sociedade, por dois

sócios .......................................................................................................................................................... 7

Capítulo II – Representação orgânica e vinculação da sociedade .................................... 11

4. – Introdução .................................................................................................................................... 11

5. – Os órgãos sociais e a representação orgânica. A importância da separação da

qualidade de sócio e de gerente ................................................................................................. 13

6. – A vinculação da sociedade por quotas. ........................................................................... 20

7. - O Administrador de facto. ...................................................................................................... 22

7.1. – Introdução. ......................................................................................................................... 22

7.2. - Critérios para a aplicação da fórmula..................................................................... 24

7.3. – A relevância da formula “de facto” para o caso em análise. ........................ 26

Capítulo III – A representação da sociedade pelos sócios. A representação

voluntária. ................................................................................................................................................... 35

8. – Introdução. ................................................................................................................................... 35

9. - A representação em face da ausência de procuratio. ................................................ 37

9.1. – O abuso de representação e a representação sem poderes. ....................... 39

10. - A representação aparente no Direito civil e comercial. ........................................ 41

10.2. – A representação aparente no ordenamento jurídico português. A

extensão do artigo 23º da Lei da Agência e a procuração institucional. ........... 53

Capítulo IV – Conclusões e breve proposta jure condendo. ................................................ 63

11. Conclusões ..................................................................................................................................... 63

12. Proposta juri condendo ............................................................................................................ 67

Bibliografia ................................................................................................................................................. 71

Jurisprudência Utilizada....................................................................................................................... 73

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Capítulo I – Enquadramento

1. – Apresentação

O presente trabalho corresponde a dissertação de mestrado

profissionalizante em Ciências Jurídico-Empresariais, com vista à obtenção do grau

de mestre em Direito, a apresentar e a defender na Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa.

Arquitetámos a realização desta tese no momento em que, no âmbito da

nossa atividade profissional, nos deparámos com um litígio judicial, que corre

atualmente em instâncias de execução dos tribunais portugueses.

O desafio que configurou a análise e o trabalho desempenhado sobre o caso,

e a abundância de interrogações com as quais nos íamos deparando sempre que

estudávamos e refletíamos sobre o caso, levaram-nos a acreditar que os contornos

do mesmo teriam o potencial de representarem o objeto de um estudo académico

como este que. Foi com isso em mente, que decidimos partir novamente para análise

do litígio, mas desta vez de uma perspetiva académica e científica. É a essa análise,

que este ensaio corresponde.

Importa explicar qual a situação específica a que se reportam os factos em

causa, mesmo que por agora de uma forma simplificada, já que a apresentação dos

mesmos será realizada com mais detalhe a posteriori.

O thema decidendum da ação gira em torno da possibilidade de vinculação de

uma sociedade comercial por quotas, ao conteúdo de uma letra de câmbio 1.

1 Por letra de câmbio entende-se um documento constitutivo de um direito de crédito,

através do qual o sujeito que o emite, o sacador, dá uma ordem de pagamento de uma quantia pecuniária, o saque, a um devedor, o sacado. Essa ordem de pagamento, é realizada a favor de quem esteja na posse da letra, o tomador. O devedor/sacado, assume a obrigação de pagamento da quantia aposta no título através do aceite, expresso através da sua assinatura no rosto do título, tornando-se dessa forma aceitante da letra. Importa ter em mente estes conceitos, para ideal compreensão dos factos que serão enunciados adiante e que assumem um papel importante para o desenvolvimento desta dissertação.

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As dúvidas e indefinições que fomos encontrando durante a análise e

interpretação dos factos, e a consequente eclosão do interesse académico nos

mesmos, estão ligadas a uma particularidade específica do caso.

Acontece que, neste caso verídico, foi dado como facto provado que as

assinaturas apostas no aceite na letra, em nome da sociedade por quotas, eram de

dois sócios desta sociedade. Até aqui, estes contornos não despoletam um interesse

excecional, ou pelo menos, um que justifique um trabalho de investigação.

Mas o sentimento é diferente, se se referir que, na altura em que esses sócios

apuseram a sua assinatura no rosto da letra, não exerciam qualquer cargo de

gerência na sociedade, não tendo sido nomeados por qualquer via prevista na lei,

nem lhes tendo sido atribuído, por parte da gerência, qualquer espécie de poder

representativo que lhes permitisse praticar atos cujos efeitos se reproduzissem na

esfera jurídica da sociedade. Não obstante, no momento em que assinavam a letra,

manifestaram expressamente ao sacador, que possuíam a qualidade de gerentes da

sociedade.

Ora, em virtude desta situação, interroga-se se a sociedade em causa estaria,

ou não, vinculada ao conteúdo dessa mesma letra, ou se os sócios, embora provado

que possuíam apenas essa qualidade, de sócios, e não de membros do órgão

administrativo da sociedade, podem, ainda assim, dispor de legítimos poderes de

representação da sociedade.

Nas circunstâncias em que nos encontrávamos anteriormente, de nós era

esperada uma exposição sobre os factos, que traduzisse um posicionamento final

face aos mesmos. Agora, no domínio da investigação académica, as respostas a estas

questões não podem, com certas exceções, ser apresentadas como soluções

absolutas. Não é esse o objetivo que perseguimos, nem queremos que se entenda

que é o que pretendemos estabelecer com o caminho analítico que formos trilhando.

Responder ao problema que do caso emana, pressupõe, neste contexto, um

estudo sobre uma multiplicidade de disciplinas, que considere diferentes institutos,

teorias e normas. Por esse ângulo, acreditamos que, de igual importância das

conclusões que se alcançarem, é o processo de estudo e de experimentação que lhes

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antecede, e é nele que esperamos que se encontre parte significativa do valor deste

trabalho.

Um trabalho que deverá refletir, assim, um processo de investigação jurídico

analítico e refletivo, desencadeado por, e focado num caso com o qual, nas

circunstâncias que mencionámos, nos deparámos.

2. – A realidade como «óculo da teoria»

Importa, preliminarmente a encetarmos pelo caminho da análise de cariz

técnico-jurídica, perceber quais são as interrogações concretamente manifestadas

por este caso judicial e qual a relação do mesmo com o domínio no qual este estudo

é desenvolvido, o do Direito societário.

Presume-se que a decisão de utilizar um caso judicial verídico como ponto de

partida para um estudo desta natureza, seja algo incomum. Admitimos, conceder

um papel de destaque assinalável a um caso judicial, para que sirva de “bússola” e

orientação para uma análise com a complexidade característica um trabalho com a

essência de uma dissertação de mestrado, tanto pode ser interpretado como uma

decisão original, como estranha.

Aceita-se qualquer uma das leituras, mas não abandonamos a nossa

convicção da vantagem que é possuirmos um “suporte” verídico, que estimule e

sustenha uma análise a ser desenvolvida num plano teórico e abstrato,

especialmente tendo em conta o que se deve procurar com a realização deste estudo.

Para perceber porquê, é importante, primeiro, compreender quais são os

problemas derivados destes factos, quais as questões que irradiam do caso judicial

e qual a relação e utilidade das mesmas para o estudo a desenvolver.

Consubstanciando, há que perceber qual é o problema com o qual nos deparamos, e

ao qual será do nosso interesse dar resposta.

Ora, como enunciámos há pouco, o thema decidendum prendia-se com a

vinculação da sociedade ao conteúdo da letra. A questão é controversa, porque quem

apôs as suas assinaturas no espaço reservado para o aceite da letra, fê-lo agindo,

supostamente, em nome da sociedade, na qualidade de seu representante, sem que

seja evidente que essa posição jurídica seja correspondente à realidade.

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No nosso entender, poder-se-á dividir a ordem de problemas que daqui

emergem, na forma de duas interrogações. São elas: tendo em conta os factos

apresentados, existe fundamento para considerar que os sócios que assinaram a letra

de câmbio, atuavam como legítimos representantes da sociedade? e: em virtude do

resultado alcançado, é possível concluir pela vinculação da sociedade às obrigações

decorrentes da letra?

Em termos simples, e sem querermos estar a iniciar uma abordagem técnica

ao problema, a resposta a estas interrogações terá que envolver uma análise, em

primeiro lugar, à natureza jurídica das sociedades comerciais, como entidades com

personalidade jurídica reconhecida, mas sem capacidade para praticarem atos da

mesma forma das pessoas singulares, por serem “pessoas fictícias”. Tendo isso em

conta, um tratamento dos institutos da representação orgânica e voluntária, como

formas de resolver a limitação associada à coletividade, no que ao exercício do

Direito diz respeito, será fulcral.

Com base nesta análise, prevemos ter elementos suficientes para apresentar

mais do que uma via de resolução, bem como para classificar e avaliar a validade e

relevância de cada uma delas para o problema do caso.

Se queremos resolver o problema da forma cientificamente precisa conotada

com um estudo deste género, é fundamental examinar as normas legais e institutos

jurídicos adequados, identificando contornos dos quais nos possamos servir para

compreender se, nas circunstâncias encontradas no caso em análise, os sócios que

apuseram a sua assinatura na letra, podem, de algum modo, estar, ou não, a

representar a sociedade, ou se é possível concluir pela vinculação da mesma ao

conteúdo da letra de câmbio.

É a multiplicidade de institutos e teorias, e a sua relação e utilidade para o

problema que deste caso desponta, que serve para nós, aqui na qualidade de

observadores e analistas do Direito, de objeto a este estudo. Igualmente, deve-se à

amplitude institucional e teórica, a justificação para conceituarmos os factos

constitutivos deste caso judicial como parte integral deste estudo, por suscitarem

um problema com esta relevância no âmbito científico, que compele o estudo de uma

variedade de abordagens para o resolver.

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Por isso se explica a decisão de conferir relevo a um caso judicial em

concreto. Não só por ter sido o confronto com os seus factos que desencadeou a

nossa reflexão acerca do problema, mas, mais relevante de um ponto de vista

analítico, porque este litígio se mostra tão perfeitamente exemplificativo e simbólico

da multiplicidade de abordagens e institutos apropriados ao problema da

representação e vinculação de uma sociedade comercial, quando está em causa a

inexistência de evidentes poderes de representação.

Além disso, o interesse científico associado com este caso concreto decorre,

também, da possibilidade de estudar o problema da representação sem poderes,

com enquadramento na relação entre a sociedade comercial, os sócios e o órgão

administrativo, com a qualidade importante de permitir uma contextualização e

enquadramento na prática jurídica, tendo em conta a origem factual do problema e

considerando que, por isso, demonstra como a questão é tratada numa conjuntura

jurisdicional autêntica.

Portanto, no nosso entender, possui o presente estudo o atributo de oferecer

uma perspetiva prática do problema, não só por ser desencadeado por um litígio

judicial verídico, mas, especialmente, pela maneira como permite demonstrar o

tratamento a que o problema é sujeito num contexto jurisdicional genuíno, sendo-

nos possível apreciar as consequências práticas provenientes, quer da aplicação das

normas positivas do ordenamento jurídico português, quer da forma de interpretar

a lex scripta, quer até da disposição do julgador para valorizar ou não determinados

institutos extralegais.

Desta forma, não limitamos a construção desta dissertação, e principalmente

das conclusões e soluções que dela advenham, a um plano substancialmente teórico

e abstrato, permitindo o desenvolvimento e exposição de conhecimentos numa

perspetiva prático-jurídica e da sua integração numa realidade jurisdicional.

Conforme explicita CARNEIRO DA FRADA, o «óculo é o caso» e é com recurso

a ele que se conhece e vislumbra a ordem jurídica. A análise deste caso verídico,

oferece um plano para estudar e investigar o sistema jurídico e as soluções jurídico-

normativas. Como explica o Professor, «o método do caso é propugnado enquanto

método estruturante, válido e potencialmente pleno, de transmissão e

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desenvolvimento de conhecimentos; coordenado (…) com a exposição de matérias

de pendor abstrato e generalizador» 2. Não se imagina melhor contexto do que este

para preenchermos este preceito.

Com recurso ao estudo de uma situação verídica, cremos também ir de

encontro aos requisitos estabelecidos pela Faculdade de Direito da Faculdade de

Lisboa para a conceção do grau de Mestre, não só devido à prova de conhecimentos

e capacidade de investigação, mas também por apresentarmos uma base original,

única e verídica, onde possamos integrar os conhecimentos obtidos através da

análise multidisciplinar, confrontando os problemas jurídicos práticos do dia-a-dia

3.

Esclarecemos que não se pretende, de modo algum, assumir um papel de

julgador no exercício da sua atividade jurisdicional. Interessa-nos sim, através do

escrutínio e do exame do ordenamento jurídico português e internacional,

especificamente no domínio do direito civil, comercial e societário, explorar as

melhores formas de abordar e resolver o problema.

Também não pretendemos que se assuma que este trabalho corresponde a

uma extensa crítica à decisão de 1ª instância e aos seus respetivos fundamentos.

Antes, queremos aplicar ao problema a maior variedade possível de soluções que

retirarmos da lei e de outras teorias, nunca prescindido da nossa prerrogativa de

manifestar as nossas convicções a respeito dos instrumentos e institutos

encontrados, valorizando ou censurando a sua aplicabilidade ao problema de

partida, conforme a nossa perceção.

Antes, procuramos a construção de um argumento jurídico-científico, que

classifique conceptual e dogmaticamente o problema, utilizando as soluções que o

Direito vigente oferece, que identifique soluções paradigmáticas compatíveis com o

2 Cit. Manuel A. CARNEIRO DA FRADA – Direito Civil, Responsabilidade Civil, o método do caso,

1ª edição, Coimbra: Almedina, 2006, p. 134. 3 Assim, indo de encontro com o estabelecido pelo artigo 17 º do Regulamento do Mestrado

e do Doutoramento da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Despacho n. º 6322/2016, publicado em Diário da República, 2 ª série – n.º 92 – 12 de maio de 2016.

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sistema jurídico corrente e que, idealmente, potencie a solução de outros problemas

de qualidades semelhantes ao daquele em exame neste estudo científico 4.

Por outras palavras, pretendemos que este seja um trabalho académico no

qual se teorize para responder, ou seja, onde se possa encontrar uma análise cuidada

e clara a sistemas e instrumentos legais de relevo para o problema no nosso

ordenamento jurídico, recorrendo também, quando acharmos que seja no melhor

interesse do objeto do estudo, a doutrina, jurisprudência e disposições normativas

de outros ordenamentos jurídicos. Em simultâneo com este processo de análise,

elaborar-se-á uma reflexão pessoal sobre os méritos e/ou as insuficiências dos

institutos que se investigam para, em conclusão, exibir as teorias mais adequadas e

os instrumentos com maior capacidade de fornecer resposta ou esclarecimento à

nossa interrogação de partida, bem como a outras que possam surgir com o

desenvolvimento da dissertação 5.

Em resumo, sempre com as perguntas que formulámos em mente,

pretendemos com a presente dissertação, enveredar por um processo de descoberta

de uma ponderada e devidamente fundamentada resposta, ou respostas, às mesmas,

através de um estudo detalhado de todos os institutos jurídicos relevantes para as

encontrar.

3. - O caso: o aceite de uma letra de câmbio em nome da sociedade, por dois

sócios

A ação judicial está relacionada com uma mescla de factos que originaram

um processo judicial executivo, que segue os seus trâmites legais na 1ª Secção de

Execução da Instância Central de Lisboa. Note-se, para efeitos da descrição dos

factos, as firmas das pessoas coletivas e os nomes das pessoas envolvidas que serão

4 Seguindo esta estrutura dogmática, cremos estar a cumprir a via para a edificação da teoria

jurídica, conforme defendida por Claus-Wilhem CANARIS, na qual nos apoiamos para este estudo. Cfr. Claus-Wilhem CANARIS – Función, estrutura y falsación de las teorias jurídicas (Tradução de Daniela BRÜCKNER e José Luis de CASTRO), 1ª edição, Madrid: Editorial Civitas, 1995, p. 28-36.

5 Deste modo, desempenhando a atividade de criação jurídico-científica nos três planos distintos, embora interligados, conjeturados por João BATISTA MACHADO. São eles o plano da descrição ou captação dos dados, que corresponde à procura e interpretação das normas existentes no Direito vigente, o plano da explicação, que se reporta à construção e sistematização de conceitos e instituições jurídicos fundamentais e o plano da aplicação da teoria contruída à realidade, que não é mais que aplicar os resultados obtidos aos casos concretos. Cfr. João BATISTA MACHADO - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra: Almedina, 2014, p. 359.

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utilizados não correspondem aos verdadeiros, em prol da privacidade e demais

garantias e direitos dos intervenientes e para asseverar a integridade e

confidencialidade com que o presente estudo será conduzido. Pela mesma razão, as

datas e quantias pecuniárias em causa também serão distintas daquelas envolvidas

no caso verídico.

Para mais, tenha-se em conta que, para efeitos e no melhor interesse do

objeto da nossa dissertação, assumiremos apenas a relação mediata inerente à letra

de câmbio, ignorando as relações imediatas. Daqui dever-se-á entender, que não

serão neste estudo discutidos os negócios e as relações subjacentes à letra que lhe

deram origem, mas o seu conteúdo e exequibilidade 6.

Igualmente no interesse do nosso objeto de estudo, a descrição que faremos

dos factos será amplamente simplificada, para cumprir os efeitos da utilidade

científica e prática da dissertação, que, no nosso entender, se perderia se

elaborássemos uma desnecessária descrição extensa e excessivamente meticulosa

dos eventos. Dito isto, passemos finalmente a enumerar os dados elementares

inerentes ao caso.

O que para os efeitos desta dissertação importa saber, é o seguinte: foi

instaurada uma ação executiva contra A, B e Albatroz Lda., para pagamento de

quantia certa decorrente de letra de câmbio, que, embora tenha sido apresentada a

protesto à executada Albatroz Lda., não foi objeto de pagamento.

Nos respetivos autos de execução, foram dados como provados os factos que

passamos a enumerar:

1) C, exequente no processo, é titular de uma letra no valor de 500.000€

(quinhentos mil euros), datada de de 20/06/2016. C figura nessa letra como

sacador, sendo o sacado a sociedade Albatroz Lda., executada, que tem por objeto a

exploração e gestão de unidades de restauração e similares;

6 Aqui, conforme o princípio de autonomia do título de crédito face ao direito subjacente ou

fundamental. A esse respeito, refere Miguel PUPO CORREIA que o direito cartular é independente da relação mediata subjacente à relação jurídica anterior ao surgimento da letra. Em respeito a esta exigência dos títulos de crédito, e por não possuírem utilidade para o estudo, as relações anteriores entre os intervenientes não serão levadas em conta. Cfr. Miguel PUPO CORREIA – Direito Comercial, Direito da Empresa, 10ª edição, Lisboa: Ediforum, 2007, p. 445-446.

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2) A letra tem apostas duas assinaturas no aceite, a de A e a de B, sócios,

juntamente com o carimbo da sociedade Albatroz Lda.;

3) À data de emissão da letra a Albatroz Lda. tinha como sócios A, B, D e E.

Nenhum dos sócios exercia o cargo de gerente. Esse cargo competia a F, que não era

sócio da Albatroz Lda.;

4) A não era gerente da sociedade desde 2011. B não era, nem nunca havia

sido, gerente da sociedade. Não foi dado por provado que a algum dos sócios,

houvesse sido conferido um poder de representação da sociedade, quer decorrente

do contrato de sociedade, quer por parte da gerência, quer por deliberação dos

restantes sócios;

5) Na letra consta a frase “Pague-se à ordem da sociedade Magnífica Unip.

Lda.”, sociedade da qual C é sócio-gerente, bem como a assinatura do sacador C e o

carimbo da Magnífica Lda.;

6) Os restantes sócios não tinham, na altura, conhecimento da existência da

letra, só descobrindo através da notificação do protesto apresentado pela

exequente;

7) C e A conheciam-se há 10 anos, tendo durante uma tranche desse período,

A exercido funções de gerente na sociedade. A, quando aceitou a letra, informou o

sacador C que mantinha a qualidade de gerente da sociedade Albatroz Lda.,

omitindo as mudanças ocorridas na gerência;

8) À data de emissão da letra, A e B eram titulares de 90% das quotas da

sociedade Albatroz Lda.;

9) F, gerente da sociedade, confirmou que teve conhecimento da existência

da letra, nunca se opondo ao seu uso, nem tendo questionado os sócios sobre a sua

existência;

10) A Albatroz Lda. obrigava-se, dentro e fora da sociedade, com a assinatura

de um gerente.

Em face destas circunstâncias, o tribunal de 1ª instância, decidiu que, não

tendo a letra sido aceite por um representante legal da Albatroz Lda., a sociedade

não poderia ser demandada, porque nenhuma das assinaturas a vinculava. Em

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resultado, somente os seus subscritores, A e B poderiam responder pelo conteúdo

da letra, concluindo pela absolvição da executada.

Tendo em conta esta dezena de factos, e a respetiva decisão judicial,

pergunta-se: tendo em conta os factos apresentados, existe fundamento para

considerar que os sócios que assinaram a letra de câmbio, atuavam como legítimos

representantes da sociedade, vinculando-a ao conteúdo do documento?

Segundo um processo de investigação com os contornos e os objetivos que

delimitámos, é esta a questão que pretendemos estudar.

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Capítulo II – Representação orgânica e vinculação da sociedade

4. – Introdução

Em regra, é o próprio sujeito que transmite a sua vontade e que acarreta os

efeitos que decorram dessa proclamação. Contudo, limitar o exercício dos direitos

de um indivíduo a estes termos é apenas exequível numa sociedade extremamente

simples, com um sistema jurídico, também ele, muito rudimentar. Um corpo social e

jurídico dessa natureza só pode existir, nos dias de hoje, num plano meramente

teórico.

Ao longo da história, assistimos a uma crescente aglomeração de indivíduos,

em números cada vez maiores, em espaços físicos cada vez mais limitados. Em

consequência dessa concentração, as comunidades tornaram-se cada vez mais

complexas e em função disso, as relações interpessoais tomaram contornos,

também eles, mais intrincados. Para além disso, nestas comunidades emergentes

foram concebidas entidades fictícias, que viriam a ser dotadas plenamente de

direitos, as pessoas coletivas. Ora, esta crescente complexidade das nossas

comunidades, das relações interpessoais e do próprio Direito, justificava uma

ampliação na forma de os indivíduos exercerem a sua vontade e os seus direitos.

Assim se explica o surgimento do instituto da representação. Sucintamente,

por representação, entende-se a atuação de alguém, ora representante, em prol de

outrem, ora representado. Essa atuação, se exercida com a capacidade e nas

circunstâncias impostas pelo Direito vigente, vai produzir efeitos na esfera jurídica

do beneficiário, leia-se, representado, e não na esfera de quem age, como seria

normal se uma posição jurídica só pudesse ser exercida pelo seu titular 7. Podemos

falar assim de uma «legitimidade indireta» em agir, de uma ficção jurídica se

quisermos, já que aquele que age, fá-lo como “substituto” do titular dos direitos e

deveres que são exercidos 8.

7 António MENEZES CORDEIRO – Tratado de Direito Civil, Volume V, 3ª edição, Coimbra:

Almedina, 2018, p. 66. 8 José Alberto GONZÁLEZ – Código Civil Anotado, Volume I, Lisboa: Quid Juris, 2011, p.336.

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12

O instituto da representação pode ser dividido em três modalidades: legal,

voluntária e orgânica 9.

Na primeira, o âmbito dos poderes de representação emana diretamente da

lei, como é exemplo o poder de representar os filhos que está legalmente confiado

aos pais e tutores, conforme o disposto nos artigos 1878º n. º 1 e 1881º n. º 1 do

Código Civil (CC). No caso da representação voluntária, cabe ao representado decidir

se concede poderes representativos a outrem e qual o alcance desses poderes. Já a

representação orgânica, refere-se à representação das pessoas coletivas pelos seus

órgãos.

É através do estudo e da dissecação dos dois últimos conceitos,

representação orgânica e representação voluntária, que esperamos encontrar

conceitos e teorias jurídicas que nos permitam alcançar, num primeiro plano, uma

decifração do problema de partida, e depois, num delineamento mais amplo, que

permitam, como foi proposto, a apresentação de um elenco dogmático que demostre

utilidade, não só num contexto teórico-científico, mas também numa perspetiva

prática.

Por conseguinte, segue-se a nossa análise, em primeiro lugar, e

incontornavelmente, dado desenvolvermos esta dissertação no plano do Direito

societário, à representação orgânica.

Antes disso, porém, há que referir que é discutível a precisão científica de

qualificar a representação orgânica, tal como a representação legal, como

verdadeiras formas de representação, como é o caso da representação voluntária.

Optamos por ignorar a discussão a respeito da conceção da representação legal

como uma forma de representação em sentido técnico, já que o âmbito do estudo

não abrange a matéria da representação legal.

Contudo, uma querela semelhante, mas acerca da representação orgânica,

desperta em nós uma outra atenção, dada a relevância basilar da mesma para o

trabalho. Por isso, discorreremos, com algum detalhe, sobre a ideia.

9 António MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4ª edição, Coimbra: Almedina, 2016, p.

661.

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13

Diga-se que somos do entendimento que, independentemente da posição que

se tome, acerca do grau de exatidão técnica de se considerar a representação

orgânica como verdadeira representação, não cremos estar a incorrer numa

imprecisão por utilizar a expressão representação, para nos referirmos à atuação

das pessoas coletivas.

Isto porque estamos a falar de um esquema de imputação de efeitos que deve,

em termos históricos e dogmáticos, muito ao instituto da representação. Além disso,

a nomenclatura é a mais comumente utilizada, por falta de uma construção

concetual adequada para descrever a forma de atuar da pessoa coletiva pelos seus

órgãos 10.

Como «intérpretes-aplicadores» de normas e teorias, teremos o cuidado de

não alargar o esquema da representação, no correto sentido técnico, a situações

onde não seja aplicável 11. Ainda assim, com base nos argumentos expostos supra,

não nos abstemos de utilizar a denominação representação para nos referirmos ao

regime do exercício de direitos das pessoas coletivas.

Feita esta ressalva, passemos sem mais demora para a análise da

representação orgânica das sociedades, particularmente da sociedade por quotas,

por ser o tipo da sociedade que aqui se discute, e sobre as respetivas formas de

vinculação.

5. – Os órgãos sociais e a representação orgânica. A importância da separação

da qualidade de sócio e de gerente

Qualquer sociedade comercial precisa de uma estrutura orgânica que lhe

permita manifestar a sua vontade. Afinal, as pessoas coletivas, pela sua natureza,

não são capazes de exprimir a sua vontade de forma escrita nem verbal, não são

capazes de agir por si próprias.

Não quer isto dizer, que são completamente incapazes de agir e de exprimir

a sua vontade, muito pelo contrário. São tal como as pessoas singulares, pessoas

reais e completas, capazes de direito, de vontade e de atuação. Embora

10 MENEZES CORDEIRO – Direito Comercial, 4, p. 661. 11 MENEZES CORDEIRO – Tratado…V, 3, p. 82.

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14

singularmente não se caraterizarem por uma essência humana, como as pessoas

singulares, possuem uma estruturação interna, dividida em órgãos, cada um deles

com diferentes funções, que possibilitam a sua organização no plano interno e o

exercício dos seus direitos 12. Deste modo, podemos dizer que é através dos seus

órgãos que a sociedade atua, de forma a transmitir a sua vontade negocial, de forma

livre e pessoal.

Importa revisitar a problemática que mencionámos de, ainda que de forma

breve, no ponto anterior, acerca da existência de uma verdadeira representação na

forma de exercício dos direitos das pessoas coletivas.

Ao contrário da relação entre o representante e o representado, que são

consideradas pessoas diferentes, entendemos que a atuação dos titulares dos órgãos

socias corresponde, juridicamente, à atuação da pessoa coletiva. O órgão não surge

como representante da pessoa coletiva, mas sim como elemento integrante da

mesma, sendo que a sua atuação corresponde, para efeitos jurídicos, à atuação da

própria sociedade 13.

Isto significa que, ao contrário do representante, que apenas pode atribuir ao

representado os efeitos dos atos que levou a cabo, se praticados dentro dos limites

estabelecidos previamente, o ato praticado pelo titular do órgão social é

juridicamente imputado à pessoa coletiva, por se captar que foi a mesma que,

materialmente, o praticou 14 15.

12 José FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização das Sociedades, a Obrigação de

Vigilância dos Órgãos da Sociedade Anónima, Coimbra: Almedina, 2017, p. 700. 13 Não é uniforme o entendimento acerca das diferenças entre a representação voluntária e

a representação orgânica, no que toca ao “titular” do ato praticado, gerando disputa a dúvida em saber se quem o pratica é a sociedade ou o titular do órgão administrativo. Suplantando essa contenda, FERREIRA GOMES esclarece que o Direito valoriza os efeitos do ato e não a “titularidade” do mesmo. Citando o Ilustre Professor: «o Direito não necessita de atribuir um facto a um sujeito para lhe imputar os correspondentes efeitos (…) se a imputação de factos (…) se traduz afinal numa imputação de efeitos, tal como na representação voluntária, então a diferença entre uma e outra é de natureza quantitativa e não qualitativa». Ou seja, mais relevante do que precisar se a prática do ato deve ser reconduzida à sociedade ou ao titular do órgão, é compreender a quem os efeitos do mesmo serão imputados, uma posição que subscrevemos, e que tão bem concretiza o escopo deste estudo. Cit. FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização…, p. 708.

14 Ibidem, p. 701-703. 15 Essa parece ser igualmente a posição de MENEZES CORDEIRO, que constata: «A atuação

dos órgãos é a da pessoa coletiva, numa lógica própria do modo coletivo do funcionamento do Direito». Cit. MENEZES CORDEIRO – Tratado…V ,3, p. 82.

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15

Esta teoria é importante para a definição de órgão social como um «regime

jurídico», integrado no “corpo” da pessoa coletiva, que se destina a balizar e a

«regular a conduta» das pessoas singulares que integram a sociedade, de forma a

garantir a prossecução do objeto social da mesma. O órgão, demonstra subjetividade

nas relações internas com os restantes órgãos e membros sociais, mas no panorama

das relações externas, é apenas um “veículo” de transmissão da vontade da pessoa

coletiva 16.

Mais do que a imputação dos efeitos de um ato, típico resultado da

representação voluntária, a representação orgânica tem o efeito de imputar

juridicamente o próprio ato à pessoa coletiva. Por outras palavras, a prática do ato

não é exercida por um representante, mas sim pela própria pessoa coletiva, através

dos titulares dos seus órgãos 17 18 19.

Sumarizando, não são os administradores que agem pela sociedade, é a

sociedade que age por meio dos administradores 20.

No caso das sociedades por quotas, como a Albatroz Lda., a sociedade do caso

de estudo, é a gerência o órgão que tem a seu cargo a administração da sociedade,

ou seja, ao qual cabe formar e exprimir a vontade imputável à última.

A composição deste órgão está estabelecida no artigo 252º do Código das

Sociedades Comerciais (CSC). Como se denota imediatamente através da leitura do

n.º 1 do artigo, os titulares do órgão são os gerentes, e é a eles que compete a

representação e a administração da sociedade.

16 Cfr. FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização…, p. 708. 17 Ibidem, p. 703. 18 Acreditamos que a teoria da prática do ato pela própria pessoa coletiva, através da teoria

orgânica, afigura-se mais adequada do que entender, por exemplo, que os administradores ou gerentes da sociedade a representam com base numa relação de mandato com a mesma ou com os sócios e a assembleia geral. Por um lado, pela dificuldade em identificar o mandante (é pouco claro se serão os sócios ou a própria sociedade), por outro lado, a autonomia própria dos administradores e gerentes é totalmente contrária com o regime do contrato de mandato. Ibidem, p.701.

19 Não obstante a se atribuir, para efeitos jurídicos externos, a prática dos atos à sociedade, não quer isto dizer que os órgãos sociais não possam ser também alvo de imputação de normas jurídicas. No plano interno das relações interorgânicas, a cada órgão social podem ser aplicadas normas e imputadas ações de forma individualizada. Cfr. Ibidem, p. 711.

20 Cfr. Ricardo COSTA – Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Coimbra: Almedina, 2014, p. 772,

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16

Aos gerentes é concedida a designação para o órgão de administração por

quatro vias possíveis: designação no contrato de sociedade, designação posterior,

eleição pelos sócios ou por nomeação judicial. Sendo nomeados, os gerentes

exercem as suas funções, ou num sistema de gerência singular, composta por apenas

um gerente, ou plural simultânea, se composta por mais do que um gerente 21.

Os gerentes tanto podem ser sócios da sociedade, como não sócios. O facto

do artigo 259º do CSC permitir a nomeação de estranhos à sociedade para o cargo

de gerente, consagra a hipótese de se separar a qualidade de sócio, da qualidade de

gerente. Caso a sociedade escolha pela opção de nomear pessoas externas como

gerentes, é importante, para garantir o regular funcionamento da atividade social,

promover e preservar a clareza da separação das funções e denominações dos

gerentes e os sócios. Essa distinção deve ser cristalina, sob pena de, em caso

contrário, desencadear situações que coloquem em causa a própria organização da

sociedade.

Permitir que não apenas os sócios, mas também indivíduos externos à

sociedade, possam exercer funções de gerência, é uma forma de melhorar a

eficiência das funções administrativas, porque garante a possibilidade de munir o

órgão de profissionalização e especialização. Indo mais longe, é uma forma de

«negação do amadorismo» 22.

Nos primórdios da realidade das pessoas coletivas, aos sócios atribuía-se

uma tripla qualidade: sócios, dirigentes internos e representantes externos. Com a

evolução das sociedades e da atribuição de personalidade jurídica às mesmas, estas

funções foram separadas e distribuídas, numa estruturação mais adequada à

cresceste complexidade da pessoa coletiva.

Por isso, é hoje admitido que os órgãos de administração social sejam

preenchidos por pessoas que não detêm participações sociais na sociedade, mas que

possuem competências técnicas que lhes permitem desempenhar da melhor forma

as funções atribuídas a estes órgãos.

21 João ESPÍRITO SANTO – Sociedades por Quotas e Anónimas, vinculação: objeto social e

representação plural, 1ª edição, Coimbra: Almedina, 2000, p.363-366. 22 Cit. VÁRIOS - Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação Prof. Doutor António

Menezes Cordeiro, Coimbra: Almedina, 2009, p.664

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17

Embora ainda seja possível que uma pessoa assuma a qualidade de sócio e de

gerente simultaneamente, ambos esses atributos funcionam em meios orgânicos

distintos, uma noção que não deve ser desconsiderada 23.

Ainda assim, a separação da propriedade da sociedade, que pertence aos

sócios e o controlo da mesma, atribuído aos gestores e administradores, é uma

matéria de interpretações diversas.

Imagine-se uma sociedade comercial onde o capital social esteja

tremendamente disperso. Essa difusão das participações sociais traduz-se numa

dificuldade para os sócios exercerem a sua vontade sobre a administração, ou seja,

será para eles mais custoso “controlar” o órgão administrativo, de forma a garantir

que o último prosseguirá os interesses da sociedade. Neste caso, embora possuam a

propriedade da sociedade, os sócios não têm o seu controlo 24.

Numa situação completamente inversa, concebamos uma sociedade na qual

o controlo societário está visivelmente aglomerado, num número muito reduzido de

sócios. A aglomeração do capital social em apenas um ou dois sócios, significa que o

domínio do sócio, ou sócios, sobre o órgão administrativo, é muitíssimo intenso.

Não se conclua, no entanto, que este controlo acentuado sobre a atividade do

órgão administrativo, se traduz numa maior eficiência da prossecução do interesse

social. A relação de domínio do sócio controlador sobre a sociedade, permite que

este pressione e guie a administração nos termos que lhe aprouver, eventualmente

em oposição dos interesses da própria sociedade e dos restantes sócios 25.

A subordinação do órgão administrativo às instruções e ordens do sócio

controlador, deve-se, precisamente, à posição de domínio que este exerce sobre a

sociedade, e consequentemente, sobre os seus órgãos. Esta posição de obediência

do órgão administrativo, como explica FERREIRA GOMES, é consequência da «

pressão exercida pelo sócio controlador, do qual depende para assegurar a

continuidade do seu mandato à frente dos destinos da sociedade(…)», pelo que «não

23 Pedro Leitão PAIS DE VASCONCELOS – A Preposição, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2018,

p. 397-398. 24 FERREIRA GOMES – Da Administração à Fiscalização…, p. 40. 25 Ibidem, p.45.

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18

será de estranhar que a administração privilegie os interesses particulares deste

sócio em prejuízo do interesse comum» 26.

Deduz-se então que uma relação de domínio económico de um sócio sobre a

sociedade, pode converter-se numa posição de comando e de orientação sobre o

núcleo orgânico da representação e administração, e até sobre a própria vontade

social, no caso desta soberania influenciar também os restantes sócios.

Devido à reduzida influência do mercado bolsista e do reduzido número de

sociedades abertas em Portugal, são mais comuns as sociedades com um perfil de

relação entre o controlo e a propriedade, mais facilmente identificável com a última

descrição 27.

Tendo isso em conta, cremos estar logicamente consumada a ligação do tema

da relação entre o controlo e a propriedade da sociedade, e das consequências para

a administração social, e este estudo. Se é assinalável a abundância de sociedades

comerciais onde o controlo e a propriedade estão agregados numa só pessoa, ou

num conjunto limitado de pessoas, diga-se que o case study é um reflexo prático

disso mesmo.

Se bem nos recordamos dos factos, a percentagem das participações sociais

detidas pelos sócios A e B era de 90%. Contemplando esta percentagem, há,

obviamente, lugar a uma presunção de relação de domínio expresso e absoluto de

ambos sobre a administração e os restantes órgãos. E se tivermos em conta que o

gerente da sociedade, mesmo conhecendo da existência da letra, da elevada quantia

associada à mesma e da sua utilização em nome da sociedade, não se opôs em

momento algum, nem sequer tendo indagado junto dos sócios, ou ter sido por eles

informado, acerca desse negócio e da sua relação com a sociedade, essa hipótese

parece manifestamente factual.

Efetivamente, no caso de estudo, o domínio exercido pelos sócios A e B sobre

o núcleo administrativo da sociedade, é de tal forma palpável, que nem sequer está

em causa a tomada do controlo da sociedade pela via da influência e comando sobre

o gerente. Antes, os sócios “substituíram-se” a este.

26 Cit. Ibidem, p. 45. 27 Cfr. Ibidem, p.46.

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19

Relembramos que o exercício do poder administrativo, não compete aos

sócios nem à assembleia geral, mas sim aos gerentes. Ignorando essa prerrogativa,

os sócios A e B encetaram atos reservados à gerência, inclusivamente assumindo

perante um terceiro, que perante ele se apresentavam como gerentes da sociedade.

Em causa não está, portanto, uma forma de subordinação da gerência aos

critérios e deliberações dos dois sócios, mas sim um “apoderamento” dos poderes

de gerência por parte destes.

Admite-se que certas decisões dos sócios tenham eficácia externa, e que as

posições negociais de terceiros que com a sociedade se relacionem, possam ser

afetadas por essas deliberações. O que não significa que os sócios possam, tal como

os gerentes, relacionar-se diretamente com o exterior, como “condutores” da

vontade da sociedade.

A atividade deliberativa dos sócios terá impacto sim, na definição da vontade

da sociedade. Mas, de um ponto de vista externo, a vontade social irá desenvolver-

se através da atuação dos gerentes, que previamente foram instruídos a seguir o

arbítrio social 28.

Um preceito explicado nas palavras de João ESPÍRITO SANTO, que refere que

«essas deliberações não são, via de regra, absolutamente auto-suficientes para a

produção dos efeitos jurídicos que a tendem. É que a deliberação, de per si,

corresponde normalmente à formação de uma vontade da sociedade, mas não á sua

declaração perante terceiros» 29.

Aos sócios não cabe, numa sociedade onde sócios não acumulem funções de

gerência obviamente, produzir a vontade social e declará-la externamente. É

necessário que a mesma seja manifestada por um titular do órgão administrativo da

sociedade, leia-se, um gerente ou por alguém a quem um gerente haja conferido

poderes de representação, por via da representação voluntária.

É o gerente que, consciente das decisões dos sócios, expressa a vontade da

sociedade, formada pelos últimos, exercendo assim, a sua competente função

28 João ESPÍRITO SANTO – Sociedade por Quotas…,1, p. 381. 29 Cit. Ibidem, p. 384.

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20

representativa. Sintetizando, é através dos gerentes que age a sociedade, não

através dos sócios.

Não se calcule que aqui se retrata alguma forma de transmissão de

competência dos sócios para o órgão administrativo. São sim, órgãos de natureza e

de funções diferentes. Os sócios, sendo também um órgão da sociedade, e assumindo

até um posicionamento de superioridade face aos outros órgãos, têm funções de

caráter deliberativo e a sua atividade é de índole interna 30, cabendo à gerência as

competências externas e representativas 31 32.

Visto isto, chega a altura de questionar se se depreende do ato de A e B um

exercício de representação orgânica. Tendo em conta o que contatámos, a resposta

é, a nosso ver, manifestamente negativa.

Afinal, A e B, no momento em que assinaram a letra, eram apenas sócios da

sociedade. Não foram designados para funções de gerência no contrato social, não

houve lugar a qualquer deliberação social que produzisse esses efeitos, nem se

verifica a ocorrência de qualquer outra forma de designação.

Na qualidade de sócios, não lhes estão atribuídas as competências

necessárias para representar a sociedade, “personalizado” a sua vontade. A eles

caberá formá-la.

6. – A vinculação da sociedade por quotas.

Visto isto, colocamos a pergunta: poderá, ainda assim, a veemência do

controlo que os sócios exerciam sobre o órgão administrativo, ser fundamento para

que a sociedade se vincule ao conteúdo da letra?

30 Interna, como vimos, porque transmitem aos órgãos representativos, internamente, a

vontade da sociedade. Repetimos, embora esta delimitação da vontade social se crie no seio da sociedade, terá obviamente efeitos externos, embora esses sejam resultados dos atos representativos do órgão administrativo.

31 Raúl VENTURA – Sociedades por Quotas, Volume II, 1ª edição, Coimbra: Almedina, 1989, p. 164.

32 Adicionalmente, convém esclarecer que fazer referência ao órgão composto pelos sócios, não é equivalente a falar de A e de B. Tal como um gerente não é um órgão, mas sim um membro do órgão administrativo, dois sócios também não representam em si a qualidade de órgão, independentemente do seu domínio sobre o capital social da sociedade. A qualidade orgânica dos sócios reporta-se à totalidade dos sócios da sociedade, e não apenas A e B.

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21

Em princípio, a resposta é negativa.

Vimos como funciona a representação orgânica nas sociedades comerciais,

chegando à conclusão de que a sociedade desempenha o exercício dos seus direitos

e vontades no exterior, através do órgão social de administração, embora se devam

interpretar esses comportamentos, como da própria sociedade.

Nas sociedades por quotas, cabe ao órgão administrativo, a gerência, a

administração e representação da sociedade. Por sua vez, serão os titulares do órgão

administrativo, os gerentes, a cumprir com esses encargos, quer pessoalmente, quer

através da atribuição de poderes representativos a outras pessoas, uma

possibilidade que estudaremos mais à frente.

Vimos também que não se confundem, e é no melhor interesse da sociedade

não se confundirem, as qualidades de sócio e de gerente, apesar de poderem

coincidir, nos casos em que um sócio haja sido designado como gerente no contrato

de sociedade ou através de deliberação social, cenários que não correspondem à

situação de A e de B.

Por fim, em vista do concluímos, não avistamos possibilidade de integrar A e

B num esquema de representação orgânica.

Ora, à luz desta conclusão, parece difícil, com os elementos que possuímos de

momento, concluir pela vinculação da sociedade ao conteúdo de uma letra subscrita

por estes dois sócios.

A vinculação da sociedade por quotas define-se nos termos do artigo 260º

CSC. Nele, fixam-se as circunstâncias em que a gerência vincula a sociedade. De

modo simples, do n. º 1 do artigo conclui-se que, não obstante limitações

provenientes do contrato de sociedade ou de deliberações sociais, a sociedade

vincula-se com terceiros pelos atos praticados pelos gerentes, que devem ser

escritos, com a menção da qualidade de gerente 33.

33 Fala-se de uma ilimitação de poderes representativos da gerência. Isto é, quando os

gerentes atuem dentro dos poderes que a lei lhes confere, as limitações resultantes quer do contrato de sociedade, quer de deliberações sociais, não são oponíveis a terceiros, não se colocando em causa a vinculação da sociedade.

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Ora, uma vez que A e B não são membros do órgão administrativo da

sociedade, não há lugar a uma atuação que se possa identificar como de

representação orgânica. Logo, por essa via, está afastada a vinculação da sociedade

ao conteúdo da letra.

Porém, como indicámos no enquadramento do trabalho, para alcançarmos o

resultado pretendido com a presente dissertação, devemos analisar, com algum

detalhe, diversas estruturas jurídicas e institutos legais intrinsecamente

relacionados com o caso concreto, mesmo que não os encontremos no Direito

positivo. É com esse objetivo em mente, que explorámos a figura que apresentamos

de seguida.

7. - O Administrador de facto.

7.1. – Introdução.

Como tivemos oportunidade de assimilar aquando da nossa descrição da

representação orgânica, cabe, nos termos da lei, aos administradores e gerentes da

sociedade, definir as orientações da atividade social, e atuar como forma de

exteriorizar a sua vontade.

Mas, na realidade, como é bem visível através do caso de estudo, nem sempre

são os gerentes e administradores que exercem as tarefas de controlo e gestão que

lhes estão legalmente imputadas.

Como vimos, pode suceder que numa qualquer sociedade comercial, a pessoa

que desempenha as atividades que normalmente estão conferidas aos

administradores, ou que dirige as atividades dos mesmos, que, no fundo, possui o

controlo da sociedade, não é, de facto, administrador. É uma situação que se pode

verificar em diversos casos, por exemplo, no caso de o título de administrador ou de

gerente que possui se encontrar caducado, extinto ou inválido.

Mas esse título pode nem sequer existir. Quem atua como administrador

pode ostentar um título relativo à sociedade diverso, que não lhe confira qualquer

A exceção a esta regra está no n. º 2, que estabelece que as limitações de poderes são oponíveis a terceiro, se este soubesse, ou devesse saber, que o ato estava a ser praticado em inobservância de uma limitação imposta pelo pacto social ou pelos sócios.

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espécie de poderes de administração, mas, não obstante, pratica atos dessa

natureza. Noutros casos ainda, quem exerce o controlo pode até nem ter uma relação

com a sociedade, efetivando-o somente através da influência que exerce sobre os

administradores ou gerentes de direito.

No caso em análise, é claro que quem exercia concretamente o controlo da

sociedade e quem praticava ativamente funções destinadas aos gerentes, não estava

munido de um título formal de gerente.

Por certo, as funções e atividades comuns da gerência ou administração de

uma sociedade comercial, não são necessariamente desempenhadas por quem haja

sido designado administrador ou gerente pela via tradicional da concessão de um

título constitutivo de tal qualidade ou através de nomeações ou eleições dos órgãos

sociais 34.

O que significa que, sem embrago do exercício de administração ou gerência

estar, legalmente, reservado para quem possui a investidura orgânica de um título

válido para o exercer, o que sucede na realidade é que o exercício efetivo das funções

de gerência e administração, não é exclusivamente exercido por quem possui um

título material dessa natureza.

Efetivamente, uma sociedade comercial pode ser gerida por quem atua sem

título de investidura orgânica, por quem atua com base num título suspenso, extinto

ou caducado ou ainda por quem atua com base num título nulo ou que se tenha vindo

a declarar anulado. Em todos estes casos estaremos, perante possíveis

administradores de facto. 35

Embora estas situações sejam comuns, nem a lei societária portuguesa, nem

nenhum diploma legal referente qualquer outro ramo do Direito diga-se, adota um

conceito de administrador de facto. Dada a inexistência de uma descrição legal da

figura da administração de facto, teremos que nos suster nas reflexões da doutrina

sobre este mote.

34 RICARDO COSTA - Administrador de Facto e Representação das Sociedades, in Boletim da

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XC, Tomo II, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 719.

35 Cfr. Ibidem, p. 719.

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24

No nosso entendimento, a mais cabal é a de RICARDO COSTA, que define

administrador de facto como aquele que «exerce concreta e efetivamente os poderes

de gestão-administração de uma sociedade, mesmo que não tenha legitimidade

formal», sendo necessário «surpreender na sua ação uma atividade é de real e

positiva administração» 36.

Ou seja, a administração de facto compreende, na sua génese, o exercício

efetivo de funções e o desempenho concreto de atividades e comportamentos afetos,

tipicamente, a administradores sociais, com a particularidade de que quem os

pratica não é, formalmente, administrador.

Logicamente, uma vez que o legislador não procedeu à construção de um

conceito legal de administrador de facto, não existe de igual modo no Direito

positivo, um enunciação de padrões a identificar para a apreensão do fenómeno da

administração de facto.

Como não é, obviamente, um precito que possamos utilizar

desmesuradamente, há que definir parâmetros.

7.2. - Critérios para a aplicação da fórmula

Se queremos dotar o conceito de alguma utilidade prática, é mister a criação

de uma mescla de requisitos cuja verificação seja necessária para discernir, em

determinada situação, uma que espelhe a existência de um fenómeno de

administração fática.

Relembramos como no início do subcapítulo, ao pronunciar-nos sobre o

exercício efetivo do poder de administração por parte de quem não possui título

formal válido, indicámos a eventualidade da presença de um possível administrador

de facto. O uso da expressão é deliberado, porque antes da análise, sob a “lupa” dos

requisitos indicadores de uma qualidade de administrador de facto, essa qualidade

não pode ser atribuída 37.

36 Cit. Ibibem, p. 719. 37 Por exemplo, condicionar a qualificação da administração de facto à verificação de uma

nomeação por via legal irregular seria uma solução escassa, porque se assim fosse, estaríamos a limitar a aplicação do sistema a administradores cuja nomeação estivesse inquinada de um vício, ignorando o exercício da administração material por parte de quem haja sido destituído, a quem

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Falta-nos agora encontrar um quadro de requisitos que responda a essa

necessidade.

Foram já elencados inúmeros parâmetros e características da administração

de facto, estejam eles relacionados com a continuidade, efetividade, durabilidade, ou

regularidade do exercício das funções típicas de administração. Nem todos os

requisitos já indicados, quer por doutrina quer por jurisprudência, nos são

particularmente úteis nem são mormente necessários 38.

Mais uma vez, acreditamos que a melhor delimitação desse quadro é da

autoria de RICARDO COSTA 39.

Os requisitos sine qua non elencados pelo autor para atribuição da qualidade de

administrador de facto, são os seguintes:

nunca tenha sido titular do órgão administrativo ou de quem não possua qualquer ligação material à sociedade.

38 Elencamos alguns pressupostos, que, no nosso entender, não parecem essenciais para subsumir a existência de um fenómeno de administração fáctica, embora sejam por vezes referenciados. Por um lado, exigências do ponto de vista do relacionamento com terceiros. Alguma jurisprudência e doutrina defendem a necessidade de existência de uma aparência de qualidade de administrador, perante sujeitos externos que se relacionem com a sociedade. No direito alemão, a jurisprudência e o próprio BGH, fixaram como princípio a necessidade da prática de atos associados à administração, não bastando a influência interna exercida sobre os administradores. Na opinião da autora, tal não deve ser exigível, já que as finalidades da construção do conceito apontam no sentido de proteção de terceiros, mas através da tutela da própria sociedade, de forma a evitar situações potencialmente lesivas para terceiros que se relacionem com a mesma. Tendemos a concordar, porque não nos parece que para exercer uma influência categórica e decisiva, quer no seio da sociedade, quer face a terceiros que com ela se relacionem, terá que existir uma “aparência de administração” aos olhos de terceiros. Como vimos, a tónica da administração de facto passa pelo o efetivo desempenho das funções próprias de administrador, funções que podem englobar o relacionamento com terceiros, ou não. Nas palavras da autora: «As finalidades de proteção tidas em conta pela construção de um conceito de administrador de facto apontam em sentido contrário: não se procura pura e simplesmente, proteger a confiança dos terceiros, mas também tutelar a própria sociedade e os sócios, o que torna incompreensível o requisito adicional em causa». Outro requisito que é ocasionalmente estabelecido, é a exigência de que o potencial administrador de facto seja uma pessoa singular. Novamente, o BGH e a doutrina germânica defenderam esta posição, sustentando que a qualificação de pessoas coletivas como administradoras de facto seria impossível. Mais uma vez, rejeitamos a posição, já que, implica também um privilégio para o qual não encontramos justificação plausível, atribuído às pessoas singulares face às pessoas coletivas. Cfr. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA - Administração de facto: do conceito geral à sua aplicação aos grupos de sociedades e outras situações de controlo interempresarial, in A Designação de Administradores, Coimbra: Almedina, 2015, p. 229-230.

39 Como explica o autor acerca da necessidade da construção deste elenco: «Não basta essa outra condição – e as suas circunstâncias ou outras circunstâncias e situações que favorecem a administração de facto, mesmo que vista como situação fenomenológica potencialmente típica de administração de facto, para qualificar por si só e como que automaticamente o respectivo titular como administrador de facto. Por outras palavras, se assim não fosse, arriscaríamos a introdução do conceito de administrador de facto virtual (…)» Cit. RICARDO COSTA- Administrador de Facto…, p. 724.

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1) Atuação positiva no círculo de funções típicas de administração,

nomeadamente no patamar da alta administração;

2) Autonomia própria de um administrador de direito;

3) Cariz sistemático e continuado, com a mesma frequência dos atos

administrativos de um administrador de direito;

4) Recetividade e tolerância da sociedade e dos administradores de direito.

É a verificação destes requisitos, que consubstancia, no entender do autor, uma

administração de facto relevante 40 41 42.

7.3. – A relevância da formula “de facto” para o caso em análise.

Para o Professor, a verificação destes requisitos caracterizadores de um

fenómeno de administração de facto fundamenta, em virtude da execução de tarefas

40 Ibidem, p. 723. 41 Análoga à do administrador de facto é a figura do administrador de facto indireto. Embora

não mereça neste estudo um destaque semelhante ao primeiro, por não revelar o mesmo interesse prático, não queríamos deixar de apresentar uma breve definição do conceito. Este tipo de administrador de facto, exerce os seus poderes de administração através da influência e domínio que possui sobre os administradores de direito, ou até sobre administradores de facto diretos, mantendo-se sempre “na sombra” na perceção de terceiros e da sociedade. Dada a particularidade da figura, os critérios sine qua non a observar para a sua qualificação como administrador de facto são ligeiramente distintos. Uma vez mais, encontramos em RICARDO COSTA a melhor delimitação dos mesmos. Da mesma forma que os poderes exercidos pelo administrador de facto direto têm que se equivaler àqueles do patamar da alta administração social, a influência exercida pelo administrador de facto indireto terá que incidir sobre os administradores de direito ou de facto direto, de forma a que se traduza numa influência sobre a alta administração social. A influência de que falamos, sobre os círculos da alta administração, tem que se traduzir em ordens e imposições concretas, e não em meras instruções ou indicações, de forma que se possa considerar que tal influência condicione e obrigue os administradores a atuarem da forma indicada pelo administrador de facto indireto. Por último, a influência exercida sobre a alta administração, traduzida no acatamento de ordens e direções por parte dos membros da mesma, tem que ser exercida de forma sistemática e recorrente, não sendo possível classificar um sujeito como administrador de facto indireto, se exercer uma influência meramente pontual sobre os órgãos sociais e administradores. Assim, e aproveitando os requisitos referentes ao administrador de facto direto, concluímos que o administrador de facto indireto é aquele que, apesar de não possuir título administrativo válido para exercer funções de administrador, e embora não exerça tais funções de forma direta, ou seja, através do exercício de uma atividade típica de administração na primeira pessoa, exerce-as através de uma influência instigadora apontada diretamente ao núcleo da alta administração social. Temos, portanto, uma influência que se traduz num exercício de administração positivo, de imposição e direção sobre os administradores de direito, ou mesmo até sobre administradores de facto diretos, exercido de forma sistemática, e tolerada pela sociedade e por esses administradores, que acatam recorrentemente as suas imposições e ordens. Ibidem, p. 719 ss.

42 Neste ponto, citamos de novo o autor, que refere: «É justamente a natureza e a fisionomia do exercício das funções e atribuições que se realizam pelo sujeito oficiosamente administrador que se configuram como instrumento para chegarmos a uma condição jurídica adicional e distintiva sempre que o sujeito apresente essa outra condição, qualificação ou denominação jurídica na sua relação com a sociedade». Cit. Ibidem, p. 722.

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administrativas e do usufruto dos poderes de administração, uma conjuntura de

relevante administração social, o que por sua vez, é razão para a atribuição de um

título de natureza funcional, que habilite a participação do administrador de facto

na exploração da atividade social e ao acesso às tarefas administrativas.

No fundo, pretende-se legitimar uma atividade, que já é de efetiva

administração, expandindo a aplicabilidade comum da figura, como dispositivo a

aplicar no âmbito das relações internas da sociedade, ou como um instrumento

meramente sancionatório, de prevenção de atividades fraudulentas 43.

O maior impacto desta proposta, e o que apresenta manifesta pertinência

para o nosso estudo académico, é a redefinição extensiva do conceito de

administrador, expandindo-o para além do modo clássico da designação formal do

administrador de direito, para passar a abranger também sujeitos que

desempenham comprovadamente funções e poderes de administração, embora não

possam ser considerados administradores de jure.

Consubstanciando, atribuir ao administrador de facto um papel

juridicamente relevante, facultando-lhe um título administrativo legitimador da sua

atividade, implica uma igualdade de trato no plano jurídico, dos administradores de

facto e dos administradores de direito 44. Nessa perspetiva, admitiríamos a

existência de duas formas de reconhecimento de uma relação de administração:

uma fundada na existência de um título formal válido e outra comprovada através

da verificação dos requisitos de legitimação do administrador de facto.

43 Digamos que limitar a utilização da figura do administrador de facto a técnica

sancionatória para prevenção de violação de normas, não só é uma perspetiva limitada como também contraditória. Senão vejamos: por um lado rejeita-se a aplicação da noção de administrador, ao sujeito cuja atividade no seio da sociedade preenche os requisitos que identificámos, por outro implica-se a vinculação dos mesmos a obrigações que incumbem, por lei, sobre os administradores de direito. Como explana RICARDO COSTA: «(…) essa linha acaba, contraditoriamente, por inutilizar em parte deveras eloquente o alcance dogmático de não se considerar indefetível a designação formal para identificar os sujeitos a quem se imputam as funções e as responsabilidades gestórias e, de outra banda, a individualização dos critérios de identificação e aplicação da disciplina societária a esses sujeitos que ilegitimamente exercem tarefas análogas às dos administradores formalmente legítimos (…)» - Cit. Ibidem, p. 731

44 O que não significa que se defenda a equiparação total do administrador de facto ao administrador de direito, não estando em causa uma relação de igualdade plena com a correspondente figura de direito. O que sucede é: dada a verificação de uma real e efetiva atividade de administração, dispensa-se a tarefa de selecionar as normas aplicáveis aos administradores de facto, e evita-se a aplicação de normas e preceitos diferentes, a situações que são muito semelhantes, ou mesmo idênticas.

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A teoria de equiparação da qualidade de administrador de facto ao

administrador de direito tem o potencial de produzir, aqui num plano meramente

teórico, relevantes consequências se aplicada ao caso em análise.

Uma das questões mais intrinsecamente relacionadas com a figura da

administração de facto é, precisamente, a vinculação da sociedade pelos atos destes

administradores 45.

A indefinição da questão, que tem relevância, é reflexo da posição, a nosso

ver, pouco acertada, do legislador não consagrar a figura no ordenamento jurídico,

especialmente onde faria mais sentido, no domínio societário 46.

A solução, não se encontra, pois, englobada num qualquer preceito legal

diretamente direcionado para o administrador de facto e para a possibilidade de

vincular a sociedade. Pode estar, antes, na exploração do conceito do administrador

de facto jus societariamente relevante, e da consequente extensão da capacidade de

vincular a sociedade destes administradores.47

Propor a equiparação legal do administrador de facto ao administrador de

direito, teria reflexos na capacidade de do primeiro atuar e manifestar a vontade da

sociedade, que se equipararia aquela detida pelo titular de jure do um órgão de

administração, já que relação orgânica com a sociedade seria equiparável, e a

capacidade de “representação” e vinculação também.

Pode questionar-se se o carácter fáctico da posição do administrador, não

constituiria causa de oponibilidade para alegar a ineficácia do ato. Não cremos que

assim seja.

Como vimos no anterior capítulo, aludindo ao princípio de ilimitação dos

poderes representativos dos gerentes e administradores, a lei prevê a eficácia de

atos praticados sed contra das limitações impostas pelo contrato social, das direções

dos órgãos de gestão ou de deliberações dos sócios, que tenham impacto direto na

45 PAIS DE VASCONCELOS – A preposição,2, p. 406 46 Assim ibidem, p. 408 e RICARDO COSTA – Os Administradores de Facto das Sociedades

Comerciais, Coimbra: Almedina, 2014, p. 84. 47 Ou então, como indica PAIS DE VASCONCELOS, através da aplicação dos artigos 248º e

249º do Código Comercial (C. Com). – A preposição,2, p. 406

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esfera jurídica de terceiros de boa-fé que se relacionam ou que se relacionaram em

algum momento com a sociedade.

Acreditamos que a aplicação do princípio de ilimitação de poderes dos

titulares dos órgãos sociais, é igualmente incidente sobre os administradores e

gerentes de fato, se adotarmos a teoria da sua equiparação legal aos gerentes de

Direito.

Para além disso, não vemos motivos que possam fundar a oponibilidade ao

ato, quer por terceiros quer pela própria sociedade.

Por um lado, «aos terceiros (…) não interessa o motivo pelo qual um sujeito

assume (de direito ou de facto) uma determinada posição jurídica, mas o facto

objectivo da assunção de um determinado tipo de atividade (…)». Ao terceiro «pouco

importará (…) sob qual veste tenha sido realizada uma determinada actividade

gestória, mas antes que essa actividade tenha sido realizada por um determinado

sujeito e em determinadas condições» 48.

Menos motivos vemos, para a oponibilidade da sociedade aos efeitos de atos

praticados por administradores de facto. Se estamos recordados, um dos critérios

de verificação obrigatória para revelar uma situação de administração de facto é a

tolerância que a superintendência levada a cabo pelos sujeitos a quem é atribuído o

título funcional de administrador de facto, colhe no seio da sociedade. É ponto

assente que o administrador de facto jus societariamente relevante age com a

anuência total, ou pelo menos manifestamente significativa, da sociedade e dos seus

órgãos. Se assim é, que razão existe para propor o despreendimento entre o sujeito

que pratica o ato, da sociedade 49?

Na realidade, o administrador de facto, por todas as razões que vimos a priori,

exteriorizaria o seu comportamento, como se o da sociedade com a qual se relaciona

organicamente se tratasse, assim como um administrador de direito. É por essa

razão que, hipoteticamente, o sujeito titular do título funcional e legitimado como

administrador jus societariamente relevante, representaria e vincularia a sociedade

48 Cit. RICARDO COSTA – Administrador de facto…, p.741. 49 Há que dar relevância ao facto de o administrador de facto com legitimação jus societária

ser aceite pela sociedade e não atuar como um qualquer usurpador de funções, mero representante sem poderes ou falsus procurator. Cfr. Ibidem, p. 738 e 739.

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nos termos comuns da representação e vinculação associada aos administradores

de direito.

Por isso deve «a sociedade deve ficar vinculada ao reflexo externo perante

terceiro que a sua tolerância ou aceitação acerca da sua própria organização», não

podendo recorrer à situação fática do administrador, que, de uma forma ou outra,

ajudou a criar, para se distanciar da sua atuação 50.

Por descuramento consciente da teoria do administrador de facto, ou por

irreflexão sobre ela, a representação externa e vinculação da sociedade pelo

administrador de facto não colhe particular aquiescência junto da lei e da

jurisprudência em Portugal, o que não surpreende, uma vez que administrador de

facto é raramente alvo de atenção por parte do administrador português 51.

50 Cit. Ibidem, p. 743. 51 O legislador, apesar de consagrar a figura do administrador de facto em alguns diplomas,

nunca o concretiza. Encontramos referências ao conceito na Lei Geral Tributária, no Código Insolvência e da Representação de Empresas, até no Direito penal se discutindo a figura (sobre uma possível aplicação do artigo 12º do Código Penal ao instituto). Não obstante, embora as referencias existam, ainda não se vislumbra uma definição legal do conceito. A possibilidade de apor um preceito no CSC relativo à figura foi avaliada pela CMVM em 2006, no âmbito do processo de consulta pública n.º 1/2006, foi entendida como desnecessária. Como explica ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, «No caso da legislação societária, ter-se-á entendido que os arts. 80. º, 83. º e 84. º do CSC permitiriam dar resposta a um conjunto de situações que cairiam no âmbito da figura. Além disso, a responsabilização por via dos arts. 72. º ss. não estaria excluída, pois a tarefa de explorar a figura do administrador de facto sempre haveria de ser deixada aos tribunais e à doutrina, sendo, afinal, um problema de interpretação do direito vigente». Cit. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA - Administração de facto…, p. 228. Estranhamos esta posição. Afinal, o fenómeno de administração e gestão de facto é comum no meio societário, pelo que não se compreende a razão para que o legislador, tendo consciência da relevância da figura no círculo do direito comercial, ignore o instituto, logo com particular desdém, na lei base do direito societário, o CSC, onde, em princípio de razão, será o campo de aplicação mister do conceito. Além disso, colocar na jurisprudência a responsabilidade de definir o conceito, não foi, por ventura, a melhor escolha. Como expõe JOÃO CABRAL: «Efectivamente, se há uma nota que paute o tratamento que a figura do administrador de facto tem recebido em sede casuística é a total falta de critério. Podemos, na verdade dizer que o único dado seguro e previsível com que os titulares dos corpos sociais podem contar é que a sua responsabilização apenas estará excluída se não se tiver verificado qualquer ingerência – independentemente da sua intensidade – na actividade social». Cit. JOÃO DOS SANTOS CABRAL - A responsabilidade tributária subsidiária do administrador de facto, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Vol. I, Coimbra, 2009, p. 261. Noutros ordenamentos jurídicos, contudo, o legislador não se coibiu de estabelecer conceitos e critérios para definir o administrador de facto. O caso mais simbólico, é a secção 251 do Companies Act de 2006, a principal fonte de matéria legislativa de sociedades comerciais do Reino Unido. Aqui, o shadow director é definido como «a person in accordance with whose directions or instructions the directors of the company are accustomed to act», em tradução livre: «uma pessoa cujas intruções e direções os administradores da sociedade estão habituados a seguir». Na common law o destaque dado ao de facto e ao shadow director é significativo e a concretização dos conceitos é comum. Veja-se por exemplo, nesta obra de 1987: «A person who has not been duly appointed a director, or who has become disqualified from being a director, is not a de jure a director, but since a person in such a position may actually act as a director, he may be a director de facto» Cit. C.M. SCHMITTHOFF - Palmers Company Law, Volume I, Londres: Stevens&Sons, 1987, p. 893.

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Mas no caso que nos propusemos a analisar, são levantadas problemáticas

que, na nossa perspetiva, podem ser abordadas com recurso a estas ferramentas. O

elenco de ideias que fomos exibindo, da administração de facto e a sua relevância no

contexto jus societário e consequente asserção de uma equiparação da figura à

administração de direito, pode ser de utilidade assinalável, não só para este estudo,

como para o direito societário.

Temos bem presente que de identificar os sócios não gerentes como

administradores de facto, de equiparar a figura à administração de direito e de

garantir pela via legal que a sociedade se encontra vinculada ao conteúdo da letra,

com base na equiparação implícita de todas as mesmas regras legais e estatutárias

respeitantes aos administradores de direito aos administradores de direito (sem

exceção, claro está, das que dizem respeito aos poderes representativos e ao modo

de exercer os poderes de representação da sociedade) é uma possibilidade que é,

por enquanto, apenas colocada num plano meramente abstrato, ainda para mais na

ordem jurídica nacional, onde o conceito não recebe a atenção que deveria.

Como refere RICARDO COSTA: «falta, manifestamente, norma expressa que,

ao menos para certos efeitos, equipare a posição de quem exerce de facto a função

administrativa à do administrador regular e validamente nomeado» 52.

Subscrevemos a frase, mas ainda assim, julgamos que mesmo expondo estas

ideias num quadro teórico-analítico, podemos mostrar como esta teoria pode,

potencialmente, ajudar a resolver uma situação verídica, que tantas dificuldades

pode suscitar. Vejamos como se aplicariam estes critérios, ao caso em análise.

Aplicando os requisitos que enumeramos para depreender uma

administração de facto jus societariamente relevante a posição e atividade dos

sócios A e B, que obteríamos as seguintes conclusões.

Em primeiro lugar, a sua atividade depreende-se claramente como uma de

positiva administração e não uma que se baste na mera influencia no gerente

formalmente designado, como é o caso para os administradores de facto na sombra.

Como vimos, a atuação é de tal forma real que os sócios chegam a substituir o papel

52 RICARDO COSTA – Os administradores…, p.84.

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e a agir como se tivessem os poderes de um gerente de jure. Isto é de tal modo

evidente, que esta dissertação se baseia num caso onde, tal como um gerente de

direito, dos sócios apresentaram-se a um terceiro como representantes da

sociedade, e apuseram a sua assinatura mencionando essa qualidade numa letra, de

fora a vincular a sociedade. A virtude positiva do comportamento destes dois sócios

é inegável.

Por outro lado, também parece certa a autonomia com que agiam, não nos

sendo relatado qualquer limitação imposta por outros sócios, o que acaba por ser

lógico, tal o domínio económico e a disparidade no controlo do capital social de A e

B para os restantes sócios.

A natureza sistemática e continuada da atividade de A e de B é aqui, o ponto

que levanta mais dúvidas, por termos um conhecimento limitado da sua atividade

na sociedade. Ainda assim, dados os contornos deste caso em específico e da

natureza da relação com o órgão administrativo e com os restantes sócios, não

parece ser uma inferência demasiado arriscada afirmar que comportamentos como

o aqui em análise, ocorriam com muita, ou pelo menos, com assinalável frequência.

Por último, é obvio que a atividade destes sócios colhia a aceitação e

tolerância dos restantes órgãos, pelas razões que expusemos supra.

Visto isto, parece-nos ser possível confirmar uma atuação típica de

administração de facto relevante de A e de B, passível de resultar na conclusão pela

sua equiparação a um gerente de direito.

Em resultado desta conclusão, os atos de A e B entrariam, agora sim, no

âmbito da representação orgânica e a possibilidade de vinculação da sociedade por

essa via, já seria uma hipótese a considerar.

Admitida esta hipótese no plano experimental, como concluíamos acerca da

questão acima?

Sabemos que os gerentes devem praticar atos integrados na sua esfera de

competência, necessários e convenientes á realização do objeto social da sociedade

e com respeito pelas deliberações dos sócios, como estabelece o artigo 259 º.

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Este artigo não visa delimitar a competência da gerência, mas sim estabelecer

o caráter funcional dos seus poderes e a sua subordinação às deliberações dos

sócios, o que representa a ideia que transparecemos anteriormente, de que o poder

de representação dos gerentes é inicialmente fundado através do exercício do poder

de decisão dos sócios, na assembleia geral. Por sua vez, a formação dessa vontade

será transmita aos terceiros, na forma de indicações e instruções, e estes irão formar

e manifestar essa vontade de acordo.

Contudo, os gerentes podem, mesmo assim, agir a contrario, das deliberações

da assembleia geral ou do próprio contrato social, hipótese prevista no art. 260 º n.º

1 do CSC.

Contudo, essas limitações aos poderes representativos por deliberação ou

contrato social, têm uma eficácia meramente interna. Não se depreende que os

gerentes que ajam em contrário das deliberações dos sócios o façam numa atuação

sem poderes. Ou seja, a sociedade considera-se vinculada ao ato em causa, mesmo

que tenha sido realizado em situação como a descrita, não obstantes a exceções de

possível oponibilidade, prevista a partir do previamente referido 260º n.º 2 53.

A relevância da norma, prende-se sobretudo com a «fronteira» demarcada

para os poderes administrativos dos gerentes, por parte dos sócios.

A violação das decisões do órgão deliberativo, por parte dos titulares do

órgão representativo, cria indefinições na determinação da vinculação da sociedade

aos atos praticados pelo gerente que foi contra a posição social demarcada pelos

sócios. É essa indefinição que o artigo 260 º do CSC visa regrar 54.

Contudo, o problema da vinculação já não se coloca se estes poderes se

reunirem na mesma pessoa ou pessoas, ou seja, se quem pratica o ato em

representação da sociedade é a mesma pessoa que possui o poder decisório de

direcionar e estabelecer a vontade da sociedade. Nestes casos, os obstáculos à

vinculação são nulos, por ser absurdo falar que o poder representativo vai contra

53 João ESPÍRITO SANTO – Sociedades por Quotas…, 1, p. 430. 54 Ibidem, p. 430.

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alguma disposição do órgão decisório, uma vez eu estão reunidos na mesma

pessoa.55.

Ora, como vimos, o domínio do poder decisório reunido nos sócios A e B é

expresso, de tal forma que acabam por se sobrepor á própria gerência, agindo no

lugar dela, com uma intensidade tal que nos levou a abrir a possibilidade de lhes

atribuir o título funcional de administrador.

Assim sendo, admitindo pela equiparação de A e B à qualidade de gestores, e

consequentemente, da capacidade de ambos para agirem em representação da

sociedade, aliada ao expresso controlo do poder do órgão decisório, levam-nos a

concluir que, nestas circunstâncias, seria possível concluir que a sociedade estivesse

vinculada ao conteúdo da letra de câmbio.

Para a parte final deste estudo, e na perspetiva da sua natureza prática,

guardamos uma pequena proposta juri condendo que, a nosso ver, é de relevante

discussão, especialmente no domínio societário.

55 Ibidem, p. 431.

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Capítulo III – A representação da sociedade pelos sócios. A representação voluntária.

8. – Introdução.

Embora tenhamos concluído que a vontade da sociedade comercial se

manifesta por meio dos seus órgãos, cuja atividade corresponderá a uma atuação da

própria sociedade, fizemos referência a que nada impedia a pessoa coletiva de, tal

como uma pessoa singular, constituir representantes.

Se a sociedade, através dos seus órgãos, decidir, voluntariamente, atribuir a

outrem determinados poderes representativos, entra-se no domínio da

representação voluntária.

Numa definição simples, podemos descrever a representação voluntária,

como uma declaração de vontade de um representado, ou dominus, expressa através

de um representante, ou procurator, que não é o titular do interesse, sendo que o

efeito dessa declaração produzirá efeitos na esfera jurídica do dominus, e não do

procurator 56.

É um fenómeno que, para ocorrer corretamente, não se encontra livre de

pressupostos. Em primeiro lugar, deve o representante manifestar objetivamente a

sua qualidade como tal, ou seja, deve transparecer que a sua atuação é no interesse

de um representado e produzirá efeitos na esfera jurídica do último. Em adição, ao

representante devem ter sido atribuídos, pelo representado, poderes que lhe

permitam agir em seu nome. Por fim, deve o representante atuar nos limites

estabelecidos para os poderes de representação e nunca para além dos mesmos 57.

Os poderes conferidos pela representação voluntária fundam-se na

procuração, um negócio jurídico pelo qual alguém cede a outrem, de forma

voluntária, poder para o representar, definindo previamente o âmbito e os limites

dos poderes de representação que atribui 58.

56 Maria HELENA BRITO – A Representação Sem Poderes – Um Caso de Efeito Reflexo das

Obrigações, in Revista Jurídica, n º 9 e 10, Lisboa: Associação Académica de Lisboa, 1988, p. 19. 57 Ibidem, p. 17-18. 58 Por procuração pode entender-se, por um lado o ato do representado conferir ao

representante poderes de representação, por outro, o documento respeitante à exoneração do negócio. Cfr. MENENEZES CORDEIRO – Tratado…V,3, p.128.

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A vontade do dominus em ser representado, é transmitida e marcada pela

procuração, o alicerce do poder de representação de natureza voluntária, como

denota o artigo 262º do CC. Sem a verificação de uma anterior manifestação de

vontade em ser representado da parte do dominus, expressa através da procuratio,

o comportamento de quem age em nome de outrem não se considera ratificado, não

se podendo concluir uma situação de representação voluntária.

Na origem da procuração está, na grande generalidade dos casos, uma

relação anterior à celebração do negócio, entre representado e representante. A essa

relação, à qual o legislador se refere no artigo 264 º, n.º 1 do CC, como a relação

jurídica que a determina (a procuração, entenda-se), chamamos relação de gestão 59.

59 É amplamente discutida a dependência da procuração da sua relação de gestão. Pode

argumentar-se a tese defensora da abstração e autonomia da procuração, admitindo que esta possa existir como um ato isolado sem necessidade de relação subjacente encontramos por exemplo. Por um lado, não se encontra na lei, especificamente, no artigo 262 º, n. º 1 do CC., uma disposição que preveja algo mais do que estritamente a vontade expressa do dominus para a validade da procuração, nunca estabelecendo como validade, os termos ou a existência de uma relação subjacente à procuração. Esta escolha pelo descuro da relação subjacente tomada pelo legislador será o reflexo legislativo de uma perspetiva abstrata da procuração e de uma forma de assegurar a segurança e a certeza no tráfego jurídico, uma vez que obrigar o terceiro a certificar-se da validade da procuração, indagando acerca da existência e validade de uma relação anterior entre o representante e o representado, seria completamente inoperante para com o correto fluxo do tráfego jurídico Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária em Direito Civil, Coimbra: Almedina, 2004, p. 515- 523. O argumento da desconsideração da relação subjacente com suporte na decisão do legislador não nos convence, de todo. O facto de o legislador não prever explicitamente a importância da relação subjacente, não implica minimamente que a mesma não tenha importância, já que, afinal de contas, também não declara explicitamente que para a procuração só tem relevância em si mesma, na sua natureza abstrata, e tudo o que a precede é irrelevante. PEDRO DE ALBUQUERQUE, refere que o silêncio do legislador, no que à relação subjacente à procuração diz respeito: «em nada abona a favor da tese da total separação entre o acto de concessão dos poderes de representação e a relação interna a ela subjacente», sendo por isso o preceito normativo «perfeitamente compatível com a negação da abstracção da procuração». Cit. Ibidem, p. 527. Aliás, em oposição, é possível identificar disposições normativas que parecem apontar para a necessidade de associação da representação ao negócio gestório, como é o exemplo do artigo 1178º, n. º 2 do CC. Quanto ao argumento seguidor do sentido da defesa da tutela do tráfego jurídico, parece-nos levantar questões mais relevantes. De facto, concordamos com a defesa dos interesses de terceiros, garantindo a segurança e tutela do tráfego jurídico, sem os obrigar a depender da diligência insuportável de conferir a verdade da situação de representação, um tema ao qual daremos mais destaque adiante. Refere o PEDRO DE ALBUQUERQUE, que, se existir mesmo uma natureza ou essência da procuração, essa vai no sentido da sua ligação como a relação gestória, isto porque a representação se concretiza como um modo de um gestor e um dominus se ajudarem, a procuração está intrinsecamente ligada a uma relação interna entre ambos, não é abstrata. A teoria da abstração revestirá um excessivo caráter positivista, ignorando a própria origem da representação, que sempre se configurou como um reflexo e uma projeção da vontade das partes, no âmbito e contexto das relações externas. A relação de representação não é, por isso, indissociável da relação subjacente. Cfr. Ibidem, p. 529-534. Se não fosse o caso, como se justificaria o princípio do artigo 265º, n. º 1 do CC, que determina uma causa extintiva da procuração, a relação jurídica que lhe serve de base. Esta previsão, mostra uma dependência vital entre a validade da procuração e a existência de uma relação saudável e em vigor entre representante e representado. Por isso, entende-se que para existir procuração tem que haver,

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São várias as realidades fundamentadoras de relações de gestão inerentes ao

poder de representação. Uma procuração forense que confira poderes a um

advogado para representar o seu constituinte numa variedade de atos, ou um

contrato de trabalho subordinado que confira ao trabalhador poderes para

representar o empregador, são exemplos de relações de gestão. Desses contratos

nascerá a relação jurídica que permite que uma das partes desenvolva uma

atividade a favor da outra, vinculando-se esta última aos efeitos da atividade que o

primeiro desenvolva no âmbito desses poderes.

Essas relações, na maioria dos casos, fundamentam-se numa relação de

mandato, o negócio tipicamente subjacente à procuração 60. Mesmo que não o sejam,

a relação de gestão subjacente a qualquer situação de representação voluntária

aproxima-se sempre da relação de mandato 61. Por um lado, uma das partes obriga-

se a praticar atos jurídicos em nome de outra. Por outro, o representante

(mandatário) deve agir no interesse e na posição jurídica do representado

(mandante).

9. - A representação em face da ausência de procuratio.

Como se aplicam estes preceitos ao caso de estudo?

Vimos que para concluir por uma situação de representação voluntária, é

necessário identificar, cumulativamente: que o representante aja em nome do

representado, e que lhe hajam sido atribuídos, poderes de representação, através,

não só de uma declaração de vontade do dominus, mas de formalidades

antes de tudo, uma relação identificável entre representado e representante, que fundamente a emissão da vontade do dominus em ser representado. No mesmo sentido, também Pedro Leitão PAIS DE VASCONCELOS defende o papel da relação subjacente como indissociável da procuração, argumentando que, e cita-se, «É na relação subjacente que se encontra o conteúdo, onde está estabelecido ou de onde resulta o critério do comportamento de cada um, dominus e procurador (…)». Cit. PAIS DE VASCONCELOS – A Procuração Irrevogável, 2ª edição, Coimbra: Almedina, 2016, p. 59. Também António MENEZES CORDEIRO parece dar esta relevância à relação gestória: «A efetiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio base (…) a extensão da procuração, as suas vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por que eles devam ser exercidos dependerão, também, do contrato-base». Cit. MENEZES CORDEIRO – Direito Comercial,4, p. 666.

60 MENEZES CORDEIRO, Tratado…V,3, p. 95 61 MENEZES CORDEIRO - Tratado…V, 3, p.113. Também MENEZES CORDEIRO - Direito das

Obrigações, Volume III, 2ª edição, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, p. 298-299.

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preliminares, levadas a cabo pelo mesmo, informando o representado do alcance

dos seus poderes 62 63.

Ora, analisando os factos, verificamos que o primeiro requisito está, sem

dúvida, preenchido. Os sócios afirmaram que estavam a assinar a letra em nome da

sociedade, e que inclusivamente, possuíam poderes para o fazer, enquanto gerentes

da sociedade.

Não somos capazes, contudo, de depreender dos factos que enunciamos,

qualquer forma de manifestação da sociedade, enquanto representada, no sentido

de atribuir a A e B, poderes de representação.

Não há qualquer menção a um negócio anterior subjacente a uma concessão

de poderes de representação, nem é possível depreender uma relação semelhante à

do mandato.

Sabemos que o funcionamento da representação voluntária depende de um

negócio jurídico, através do qual um dominus confira a um procurator poderes para

atuar eficazmente em seu nome, negócio que é dominado pela procuração.

Vista a ausência de procuratio, não nos parece possível concluir que entre a

Albatroz Lda. e os sócios A e B, exista uma relação de legítima representação

voluntária.

Aqui chegados, temos, mais uma vez, que procurar no sistema jurídico

instrumentos que possam ser aplicados à problemática que emerge desta conclusão,

ou seja, a possibilidade de concluir pela vinculação, ou não, da sociedade, desta vez,

tendo em conta a falta de procuração e de poderes representativos, de forma a

encontrarmos possíveis decifrações que se afigurem adequadas e lógicas, para o

caso em análise.

62 MENEZES CORDEIRO – Tratado… V, 3, p.115. 63 Citando o Acórdão da Relação (Rl.) do Porto, Processo nº 604/04.2TBMMV-A.C1: «A

validade da representação pressupõe os seguintes requisitos: a) - Uma actuação em nome e por conta de outrem – o representante deve agir esclarecendo a contraparte que os efeitos da sua intervenção se reflectem na esfera do representado, logo terá que invocar expressamente essa qualidade, actuando como o próprio representado o poderia licitamente fazer; b) - Dispor o representante de poderes de representação (…)» Cit. Rl. do Porto, 29-mai-17, (Jorge Arcanjo), Proc. nº 604/04.2TBMMV-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.

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9.1. – O abuso de representação e a representação sem poderes.

O problema pode ser, em primeira instância, reconduzido às previsões legais

da representação sem poderes e do abuso de representação. Estes institutos,

embora diferenciados, articulam-se com as disposições relativas à modificação,

cessação ou inexistência de procuração 64. Assim sendo, vejamos que conclusões

podemos retirar da análise a ambos.

Antes de tudo, é importante não confundir os conceitos. Embora se

aproximem, representam situações diferentes e a sua distinção deve ser esclarecida

65.

Como estabelece o artigo 268º do CC, falamos em representação sem

poderes, ou falta de poderes de representação, quando alguém leva a cabo

determinada atividade representativa, sem que para tal lhe tenha sido atribuído o

respetivo poder de representação.

Em princípio, o negócio deve ser considerado nulo, uma vez que não se

verifica a fundamental legitimidade para representar e produzir efeitos na esfera do

dominus. É possível que, ainda assim, se conclua pela vinculação do dominus, se ele

ratificar o negócio. Por ratificação deve-se assim entender, o ato jurídico através do

qual o “representado” escolhe acolher o negócio concluído pelo falsus procurator, na

sua esfera jurídica 66.

No caso do abuso de representação, previsto no artigo 269º do CC,

pressupõe-se a existência formal de poder representativo e a atuação do

representante dentro dos limites formais da procuratio. Contudo, apesar de o

representante agir no quadro formal dos seus poderes, abusa deles, isto é, agindo

materialmente contra os fins da representação.

64 MENEZES CORDEIRO – Tratado…V, 3, p. 150. 65 Verifica-se o cuidado desta distinção, nos acórdãos do STJ de 23-set.-09, (Salvador da

Costa) Proc. 04B2716, STJ de 2-jun.-15, (Hélder Roque), Proc. 505/07.2TVLSB.L1.S e Rl. de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc. 164/05.7TBVLF.C2, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt.

66 Não se deve depreender que a ratificação representa um modo do dominus, aprovar o ato e o comportamento do “representante”. O dominus, mesmo que reprove a conduta do agente que em seu nome agiu, pode mesmo assim, entender que os efeitos do negócio efetuado pelo falsus procurator lhe possam traer algum benefício, e por isso ratifica-o, mesmo que censure a conduta do agente. Cfr. MENEZES CORDEIRO – Tratado…V,3, p. 151.

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Diferente, portanto, da representação sem poderes, que se aplica aos casos

em que o “procurator”, não possua qualquer poder representativo.

No caso do abuso de representação, a eficácia do ato dependerá do terceiro

conhecer, ou dever conhecer, da situação de abuso 67 68. O abuso de representação

é, pois, o exercício de inerentes poderes de representação, mas de uma forma que

vai contra a relação subjacente ou em violação do contrato que dela resulta.

Por sua vez, no que à representação sem poderes diz respeito, estipula o

Acórdão da Relação de Coimbra de 10-fev.-15, com o número 164/05.7TBVLF.C2,

relatado por Isabel Silva, que: «a lei sanciona-a com a ineficácia do negócio em

relação ao dominus; contudo, e porque o representado pode até ter interesse no

negócio, a lei prevê a possibilidade de este o ratificar; fazendo-o, o negócio adquire

total eficácia, desde o momento da atuação do representante, como se nunca tivesse

havido qualquer vício» 69. Ou seja, em princípio, o negócio é ineficaz em relação ao

dominus, embora, como já dissemos, caso o ratifique, ele cairá na sua esfera jurídica

70.

Não havendo ratificação, o negócio mantém-se, mas é ineficaz quanto ao

“representado”, ficando apenas o terceiro a ele vinculado. No caso do abuso de

representação, a eficácia do negócio dependerá de se apurar que o terceiro conhecia,

ou devia conhecer do abuso.

Feita esta breve exposição compreende-se que , como patenteia o Acórdão

do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 23-set.-09, com o número 04B2716,

relatado por Salvador da Costa, independentemente da classificação conceptual pela

67 Cfr. Rl. de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc. 164/05.7TBVLF.C2, disponível em

www.dgsi.pt

68 O grau de diligência do terceiro, deve segundo PEDRO DE ALBUQUERQUE, encaminhado com as teorias de TANK e Raúl GUICHARD ALVES, apurar-se de modo «abstrato» e «objetivo», isto é, em consideração à relação com o representante e à do último com o principal, indagando-se se o terceiro possuía ou não, meios viáveis para controlar a veracidade da relação de representação. Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A representação voluntária…, p.800-801. 69 Cit. Rl. de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc. 164/05.7TBVLF.C2, disponível em www.dgsi.pt.

70 MENEZES CORDEIRO explica que a ratificação permite a eficácia do ato na esfera jurídica da pessoa por conta da qual foi praticado, não se devendo confundir com uma forma de concessão de poderes de representação. MENEZES CORDEIRO – Tratado… V,3, p. 120.

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qual se conclua , em princípio, salvo uma disposição específica, o negócio é sempre

ineficaz face ao principal 71.

Ou seja, a presunção inicial é a da não vinculação do “representado” ao

negócio, não se partindo do princípio que o negócio produz efeitos na sua esfera

jurídica. As formas para a vinculação do “representado” passam pela sua ratificação

do negócio, no caso de o “representante” atuar sem poderes de representação, ou no

caso do abuso de representação, a falta da boa-fé do tertius, caso conhecesse ou

devesse conhecer da situação de abuso.

Não quer isto dizer que se defenda que a qualificação por uma ou outra

designação é indiferente. Como chamámos há pouco à atenção, são duas figuras

diferentes, com pressupostos distintos e que devem ser diferenciadas.

O que se refere é que, independentemente da figura aplicável, que no nosso

caso, parece não levantar grandes dúvidas, será a da representação sem poderes, já

que concluímos pela ausência de poderes representativos, o que impede a

possibilidade do abuso de poderes de representação, o resultado é a conclusão de

falta de legitimidade representativa para agir de uma determinada maneira.

Em resultado dessa ilegitimidade, o “representado”, neste caso a sociedade,

só se vinculará aos efeitos do negócio se o ratificar. Não é presumível a sua

vinculação, mas o seu desprendimento do negócio.

Ora, tendo isto em conta, nova interrogação surge. Existirá alguma forma de

concluir pela vinculação da sociedade, sem que a mesma tenha que a receber

propositadamente na sua esfera jurídica? É a pergunta que pretendemos responder

no ponto seguinte.

10. - A representação aparente no Direito civil e comercial.

Mesmo numa situação de ausência de poderes de representação, existe, na

lei, forma de vincular a sociedade aos atos destes sócios, que não pela via da

71 Como explana o douto tribunal: «Assim, a representação com falta de poderes por parte do

representante para a prática do acto respectivo, tal como o abuso de representação, neste caso se a outra parte o conhecia ou devia conhecer, têm o mesmo efeito de ineficácia em relação ao

representado». Cit. STJ, de 23-set.-2008 (Azevedo Ramos), Proc. 08A2239, disponível em

www.dgsi.pt.

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ratificação do negócio concluído por representante sem poderes? Os interesses de

terceiros e a vinculação social, encontram-se garantidos mesmo numa situação onde

inexista procuração e poderes representativos?

Colocando a questão de forma diversa, de uma perspetiva jus positiva,

podemos considerar os institutos e princípios estabelecidos pela lei portuguesa

como suficientes para servirem de resposta, ou, caso contrário, pode-se entender

que a lei, da forma como está construída atualmente, demonstra insuficiências para

tratar com clareza de um problema desta natureza?

Vejamos se através de uma análise às disposições legais do CSC, CC e outros

diplomas legais, poder-se-ia concluir pela vinculação da sociedade ao conteúdo da

letra.

A resposta parece ser negativa. De uma primeira leitura da lex escrita, não

encontramos fundamento para sustentar positivamente a possibilidade de um

negócio levado a cabo por um falsus procurator sem poderes de representação

atribuídos e sem o conhecimento do dominus, consagrar, não obstante, a validade do

negócio.

O artigo 268º n. º1 do CC, é nesse sentido claro, quando estabelece que o

negócio que uma pessoa sem poderes de representação celebre em nome de outrem

é ineficaz em relação a este. Interpretando a norma, conclui-se que,

independentemente das circunstancias, não há lugar à apreensão de legítimo poder

representativo, muito menos de produção de efeitos na esfera jurídica de outrem,

no caso em que não tenham sido atribuídos poderes de representação pela normal

via voluntária, legal ou orgânica 72.

Como já tivemos a possibilidade de estudar, no que à sociedade por quotas

diz respeito, o CSC, no seu artigo n. º 260º, estabelece que os atos praticados pelos

gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere,

vinculam-na para com terceiros, embora possa a sociedade ser igualmente

representada por procuradores ou mandatários nomeados, sem que exista uma

72 Cfr. Paulo MOTA PINTO – Aparência de poderes de representação e tutela de terceiros,

reflexão a propósito do artigo 23º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de Julho, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1993, p.613.

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cláusula contratual expressa nesse sentido. O artigo 252º, n. º 6 do CSC é, nesse

aspeto, esclarecedor.

Como concluímos previamente, em qualquer dos casos, por via de um

fenómeno de representação orgânica ou voluntária, os efeitos do negócio

repercutem-se, não na esfera do representante, quem de facto concluiu

pessoalmente negócio, mas sim do representado. Esse é, aliás, o princípio fundador

do poder de representação, conforme a previsão do artigo 258 º do CC: «O negócio

jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos

poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último».

Contudo, será que encontramos na lei civil e comercial, uma referência à

vinculação do “dominus” a obrigações contraídas em seu nome, por sujeitos que não

possuem poderes de representação.

Já que o presente estudo brota de uma relação cambiária, comecemos a nossa

investigação por aí, e vejamos se no diploma legal regulador das letras e livranças, a

Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças (LULL) encontramos resposta à nossa

interrogação 73.

Estabelece como segue, o artigo 8º da LUUL: «Todo aquele que apuser a sua

assinatura numa letra, como representante duma pessoa, para representar a qual

não tinha de facto poderes, fica obrigado em virtude da letra e, se a pagar, tem os

mesmos direitos que o pretendido representado. A mesma regra se aplica ao

representante que tenha excedido os seus poderes».

Ora, de uma primeira apreciação da norma, percebemos que a mesma, visa

regular a possibilidade de sujeitos, não possuindo poderes suficientes para

representar outrem, aporem a sua assinatura na letra, intervindo na relação como

representantes de quem não tinha poderes para representar. Neste caso prevê-se a

vinculação do conteúdo dos falsos representantes 74.

73 Lei Uniforme relativa às letras e livranças, estabelecida pela Convenção assinada em

Genebra, em 7 de junho de 1930, aprovada em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de março de 1934, e ratificada pela Carta de 21 de junho de 1934.

74 Explicando a estatuição da norma, cite-se o acórdão do STJ de 1 de abril de 2008, referente ao processo n.º 08A246, relatado por MÁRIO MENDES:

«Sem qualquer margem para dúvida o artigo 8º da LULL cria um regime imperativo de responsabilidade do pseudo-representante, nas expressivas palavras de Ferri “é a lei que considera

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Sem embrago, não encontramos aqui a resposta ao problema. Pelo

estabelecido na redação do artigo, conclui-se pela vinculação ao conteúdo da letra

de quem se arrogou como representante sem o ser. Em virtude da norma, no caso

concreto A e B estarão vinculados ao conteúdo do documento cambiário, o que

corresponde, aliás, à conclusão alcançada pelo julgador de primeira instância.

Ora, a conclusão a que chegamos através dos conceitos manifestados no

acórdão supra, é a seguinte: no âmbito do artigo 8º da LULL, e para efeitos de

vinculação ao conteúdo da letra, é indiferente a qualidade em que a assinatura é

aposta, se como gerente, se como representante da gerência, não sendo necessário,

para a produção normal dos efeitos decorrentes do título, que se exponha em qual

das qualidades se intervém 75.

Da passagem por estas normas, não encontramos, em primeira análise, uma

previsão que preveja especificamente a possibilidade de um negócio levado a cabo

como não escrita a indicação da representação e mantém firmes os efeitos da subscrição pelo pseudo-representante” (…)”» Cit. Acórdão do STJ, de 1-abr.-2008 (Mário Mendes), Proc. 08A246, disponível em www.dgsi.pt.

75 Neste acórdão do STJ, de 16-mai.-1991, relatado por Pereira da Silva, o tribunal debruça-se sobre a “qualidade” do gerente que apõe a sua assinatura na letra, admitindo a validade da assinatura de procurator ao qual a gerência atribua poderes de representação. Ainda assim, não deixa a validade do ato estar dependente de concretos e válidos poderes de representação. “O artigo 8 da Lei Uniforme de Letras e Livranças estabelece o principio de que ficara individualmente vinculado aquele que, em representação de outrem, apuser a sua assinatura em qualquer letra ou livrança, desde que não tenha poderes para o efeito. Mas tal normativo, embora não se dirija directamente a permitir a assinatura por procuração, pressupõe claramente a sua admissibilidade. No entanto, para que os efeitos da representação se produzam, e indispensável, - segundo os diversos autores, (…) "que o representante aponha a sua assinatura na letra como tal, isto e, que ele declare assinar em nome do representado, claramente especificando a pessoa deste ultimo", (…) A partir daqui entendeu-se na primeira instancia que a pessoa que assinou a livrança como gerente da embargante devia declarar que o fazia por procuração e não o fez, e, por isso a sociedade não ficara vinculada. (…) Poder-se-ia dizer que a pessoa que assinou a livrança como gerente da sociedade embargante não o era, ou melhor, não era nenhum dos seus sócios gerentes, e, nessa medida, tinha de fazer a indicada declaração. - Nada disso. O problema situa-se no campo da representação das sociedades e da responsabilidade das mesmas perante terceiros pelos actos dos seus gerentes. Quem contrata em nome da sociedade, invocando a sua qualidade de gerente, não tem que especificar se e gerente nomeado no pacto social, se e gerente eleito na assembleia geral ou se e gerente por procuração. Apenas tem que provar que e gerente, e ainda, (se lhe for exigido), que tem poderes para o acto. Ora no caso presente interveio um individuo que se intitulou gerente da embargante. Resta saber se o era, ainda que por procuração. Se o era, e tinha poderes para o acto, a embargante não pode deixar de estar vinculada». Cit. Acórdão do STJ, de 16-mai.-1991 (Pereira da Silva), Proc. 080549, disponível em www.dgsi.pt.

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por um falso representante, sem o conhecimento ou a posterior ratificação do

negócio por parte do representado, ter efeitos na esfera jurídica do último.

Ainda assim, vejamos se as nossas conclusões sobre o problema da

vinculação da sociedade, nos termos do caso de estudo, são diferentes se focarmos

a nossa atenção nas normas relativas à proteção de terceiros

Encontramos no 266 º CC, o preceito formulado pelo legislador para proteger

a confiança de terceiros de vicissitudes internas da relação entre representado e

representante que possam afetar o negócio. O artigo começa por estabelecer no n. º

1, que «As modificações e a revogação da procuração devem ser levadas ao

conhecimento de terceiros por meios idóneos, sob pena de lhes não serem oponíveis

senão quando se mostre que delas tinham conhecimento no momento conclusão do

negócio». Para além destas, «As restantes causas extintivas da procuração não

podem ser opostas a terceiro que, sem culpa, as tenha ignorado» 76.

Quanto à tutela de terceiros que se relacionassem com um falso procurador,

está essa situação regrada pelo artigo 260º do CC, cuja epígrafe é “justificação dos

poderes do representante”.

Da análise da previsão normativo, parece-nos estar implícito um ónus que

denominamos de “autotutela”. Atribuímos esta designação ao conteúdo da norma,

porque a mesma, visando a proteção de terceiros que se deparem com uma

procuração viciada, limita-se a conferir ao terceiro de boa-fé o direito de exigir do

representante a prova dos seus poderes, caso contrário correrá por sua conta o risco

da invalidade do negócio 77.

76 Na sua base, a norma baseia-se numa teoria de aparência jurídica, que tenta explicar a

produção de efeitos da procuração que se encontra extinta. Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado…V, 3, p. 141.

77 Portanto se conclui que a possibilidade dada ao terceiro, que se relaciona com outra pessoa através de representante, de exigir a demonstração da existência de poderes representativos suficientes para prática do ato em questão, é a forma que o legislador oferece para prevenir situações de representação sem poderes ou de abuso de representação. Cfr. JOSÉ ALBERTO GONZALEZ – Código Civil… I, p.338. Somos da opinião de que, mais do que uma “possibilidade” conferida ao terceiro, este dispositivo assume-me quase como uma “obrigação” para um terceiro precavido, já que é a única proteção que lhe será conferida em caso de situações de falsa representação. Atente-se, não falamos deste instrumento de proteção como uma obrigação para o terceiro no sentido técnico. Mas, em virtude da limitação de aplicação de outros institutos, ela assume um papel fundamental, de cariz simbolicamente incontornável, para o terceiro que se queira defender de situações de aparência.

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Podemos entender que, com a limitação da proteção de terceiros a estes

preceitos, o legislador terá intencionalmente e expressamente excluído quaisquer

outras formas de tutela de terceiros e de admissão de procuração não representativa

78, de forma a privilegiar e defender o «interesse fundamental do representado em

não lhe serem impostas vinculações (…)» 79.

O interesse do terceiro pela execução do negócio, com justificação na boa-fé

do mesmo, não justificaria, na perspetiva do legislador, a prevalência sobre os

igualmente importantes interesses do representado em não ver produzidos na sua

esfera jurídica, negócios que o mesmo não subscreveu 80.

Uma posição que denotaria um claro interesse do legislador em proteger o

princípio da autonomia privada, que oferece às partes envolvidas em determinada

relação, o poder de regular a sua própria vontade, através da liberdade de

estabelecer o conteúdo e a disciplina da relação 81.

Pode conceber-se, em defesa da opção do legislador, que, para além da

preferência pelos efeitos do representado, e do entendimento pela suficiência da

literalidade da lei, esta rigidez normativa da tutela de terceiros, é a forma de

construir um regime propositadamente limitativo do alcance dos poderes de

representação e vinculação envolvidos num ato subscrito por um falsus procurator,

que se apresentasse como representante a um terceiro de boa-fé 82.

Confessamos que todos estes argumentos denotam, na nossa opinião,

fragilidades.

Atente-se, por exemplo, à defesa do regime estabelecido pelo CC com base no

princípio da defesa da autonomia privada e dos direitos do representado.

Manuel CARDEIRO DA FRADA constata que, embora a autonomia privada

tenha vindo tradicionalmente a prevalecer, a intervenção do legislador em sentido

adverso a esse interesse, não é apenas admissível, como é por vezes fundamental

78 PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 992-995. 79 Cit. Ibidem, p. 995. 80 Ibidem, p. 994. Também MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 614. 81 PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 995. 82 PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 992-993.

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para o normal crescimento ideológico e de segurança do ordenamento jurídico 83.

Achamos que, no âmbito da “representação” por falsus procurator, uma intervenção

desse género se justifica.

Como já reconhecemos, posicionamo-nos contra a limitação à “autoproteção”

por parte do terceiro, como forma de tutela. Por exemplo, no domínio onde é estudo

se conduz, no contexto de tráfego comercial, não se pode esperar que o terceiro

intervenha junto de todos os procuradores com que se deparar, pedindo-lhes a

justificação dos seus poderes de representação, sem que isso afete de forma

manifestamente negativa o fluxo das relações e das boas práticas comerciais 84.

Para além desse aspeto incontornável, também há que colocar em causa a

hipótese de o dominus não ser merecedor de proteção sob o princípio da autonomia

privada, nos casos em que, por exemplo, tenha contribuído para a situação de

aparência ou de ausência de representação 85.

Além disso, propor uma maior amplitude da tutela de terceiros não implica

uma salvaguarda total de todos os seus interesses negociais, independentemente da

sua própria posição face ao negócio. Tampouco se defende a automática vinculação

do representado, quando se evidencie uma situação de aparência jurídica.

Não entendemos que o terceiro, mesmo de boa-fé, esteja livre de encargos,

nomeadamente quanto à diligência que deve mostrar, para conhecer da

legitimidade do procurador e da validade da procuratio. Ainda assim, entendemos

que, em certos casos, há lugar, e deve haver lugar, a uma proteção especial da

posição do tertius face à do dominus 86.

83 Como explica o autor: «Há, de facto, um mínimo de justiça e/ou de decoro de

comportamento que é irrenunciável para qualquer ordem jurídica. Está aí um cerne de ordem pública (contratual), sem a qual o sistema jurídico português igualmente e não pode compreender. Perante situações extremas, há proibições e exigências de comportamento a que todos se hão de ater». Cit. Manuel CARDEIRO DA FRADA - Autonomia Privada e Justiça Contratual. Duas questões, nos 50 anos do Código Civil, in Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017, p. 239 ss.

84 Também para essa perspetiva aponta MOTA PINTO: «No domínio mercantil, por exemplo, a possibilidade de confiar nos poderes de representação de outrem é um elemento importante para a “segurança dinâmica” da actividade comercial (…) não sendo exigíveis a este (terceiro) delicadas e morosas investigações sobre a legitimação representativa das pessoas com quem tem de contratar (…)». Cit. MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 616.

85 Cfr. Ibidem, p. 618. 86 Cfr. Ibidem, p. 618.

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No respeitante aos argumentos da suficiência da interpretação literal da lei e

da adequação da rigidez da mesma ao problema da tutela de terceiros, não os

reputamos, de todo, como argumentos válidos.

Subscrevemos na totalidade a posição de MOTA PINTO, quando refere que, e

citamos: «O argumento literal é consabidamente limitado, tendo sido ultrapassadas

as orientações interpretativas que amarravam o intérprete ao leito de Procusta da

letra da lei (...)» 87 88 89.

Já quanto à exclusão de uma atenção especial à tutela de terceiros e da

representação sem poderes por parte do legislador, é uma posição que, nas palavras

de MOTA PINTO, não se compreende se se traduz numa «lacuna oculta», ou antes

um «silêncio eloquente» 90. Face a essa indefinição, podemos muito bem seguir, em

concordância com a posição PEDRO DE ALBUQUERQUE, o entendimento de que a

ausência no ordenamento jurídico nacional de um regime de tutela de terceiros que

se relacionem com um falsus procurator, poder ser entendida como uma forma do

legislador «deixar a via aberta a um ulterior aperfeiçoamento do tráfego» 91.

Assumindo essa possibilidade, não vemos impedimento em explorar fórmulas que

o alcancem, já que as disposições normativas que vimos, denotam limitações no

âmbito da tutela de terceiros em situações como aquela que se verifica no caso

análise.

Neste ponto da análise podemos até presumir que, antes da tutela de

terceiros, o legislador esteve mais preocupado em regular a justificação dos poderes

87 E em particular, da insuficiência desta limitação à interpretação literal no que toca ao tema

em discussão: «Sem dúvida que, pela natureza do conflito de interesses em causa, se impõe cautela nesta matéria, mas a simples formulação do artigo 268 º não nos permite excluir in limite formas de tutela de terceiros face à procuração diversa das resultantes, sobretudo, do artigo 266 º» Cit. MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 614.

88 Também parece concordar PEDRO DE ALBUQUERQUE, que aponta para uma cada vez mais distinta insuficiência do elemento literal da lei, como princípio orientador mister da interpretação jurídica, afirmando inclusivamente que foram, e citamos: «ultrapassadas, em grande parte, as orientações interpretativas que amarravam o aplicador do direito à letra da lei (…)» Cit. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 1000.

89 Igualmente segue BATISTA MACHADO: «É claro que a interpretação das normas se torna indispensável para a sua aplicação. É também claro que a construção e legitimação são meios indispensáveis para fazer transparente e apreensível a uma visão global o complexo do ordenamento jurídico». – Cit. BATISTA MACHADO - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 9 ª Edição, Coimbra: Almedina, 1996, p. 360.

90 MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 614-615 91 Cit. PEDRO DE ALBUQUERQUE – A Representação Voluntária…, p. 999.

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do representante, justificação alicerçada na possibilidade que tem o terceiro de

exigir que o procurador mostre a prova dos seus poderes 92 93 94.

Mas para nós, na persecução do objeto desta dissertação, a maior limitação à

aplicação de qualquer uma destas normas, prende-se com a total ausência de

procuração e de poderes de representação por partes dos sócios A e B.

Recorde-se como, no caso do artigo 260 º, a aplicação do artigo se destina,

pelo n. º 1 a situações de modificação ou de revogação de uma procuração, ou por

aplicação do n. º 2, aos restantes casos de extinção da procuratio.

A norma visa proteger os interesses de terceiros de modificações ou da

cessação repentina de uma procuração. Pode-se até dizer que o artigo 260 º nem

sequer prevê uma verdadeira tutela do terceiro da aparência, mas antes uma

inoponibilidade da revogação ou outras causas de extinção da procuração. Ou seja,

assenta numa pré-existência de certos poderes de representação atribuídos por via

da representação voluntária ou orgânica 95.

Contudo, como já concluímos em relação ao caso em análise, não foi conferida

aos sócios, procuração atributiva de poderes de representação, nem pela via da

representação voluntária, nem pela via da representação orgânica (salvo a

possibilidade de depreender um fenómeno de administração de facto dos sócios, e

consequentemente equiparação da sua qualidade à da qualidade de administrador

de jure).

O problema que do caso decorre não se prende com a extinção ou revogação

de uma procuratio e requer uma solução diferente do que a simples oportunidade

conferida ao terceiro de pedir a justificação dos poderes representativos. Neste caso

de estudo, a proteção do terceiro e a vinculação da sociedade dependem de uma

situação de confiança depositada numa aparência jurídica, criada por falsos

92 Paulo MOTA PINTO - Aparência de Poderes de Representação…, p.605-606. 93 Para além do domínio civil, também no regime do direito comercial a tutela de terceiros

que se relacionem com um falsus procurator parece seguir a premissa da justificação dos poderes do representado, como denota, por exemplo a disposição do artigo 249º do CSC. Cfr. MOTA PINTO - Aparência de Poderes de Representação…, p.609-610. 94 Veja-se por exemplo como no caso do 266 º do CC, «(…) a diferença reside no ónus da prova; na hipótese do n.º 1, o representado terá de provar que os terceiros conheciam a revogação; no segundo, a invocação da boa-fé caberá aos terceiros» Cit. MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4, p. 670.

95 Ibidem, p. 618.

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procuradores, que não possuíam poderes de representação, embora isso

manifestassem.

Ora, alargar o artigo 266 º a situações onde, simplesmente, falte procuração

é impossível. O que temos é um instrumento de proteção de terceiro, que não foi

informado da cessação do instrumento de representação. Na falta desse

instrumento desde o início, nada permite a aplicação do 266º CC 96 97.

Para além disso, e como já fizemos menção, as disposições do 260 º CC são

insuficientes quanto as situações em que o dominus tenha fundado a situação de

aparência, uma possibilidade que, neste estudo, teremos de levantar 98.

Deparados com este problema, questiona-se: mesmo em face da ausência de

procuração e de poder de representação, pode o representado (no nosso caso a

sociedade Albatroz Lda.), ainda assim, vincular-se aos atos do representante (os

sócios)?

Para responder, há que fazer referência aos esforços de outros

ordenamentos jurídicos, como o alemão, espanhol, italiano, francês e até mesmo na

common law, para desenvolverem sistemas de tutela da confiança de terceiros,

bastante mais amplos do que o criado pelo legislador nacional, com base na

confiança depositada por esses, numa situação de aparência 99. Todos reconhecem

que é mais útil não restringir a tutela de terceiros a modificações ou à extinção da

procuração 100.

96 Nas palavras de MENEZES CORDEIRO: «a previsão protetora assenta num instrumento de

representação efetivamente existente, cuja cessação não foi comunicada ao terceiro (…) Na falta de procuração e mesmo em situações de tolerância ou de aparência, nada há que, objetivamente, faculte a aplicação do referido artigo 266 º» MENEZES CORDEIRO Cit. Tratado… V, 3, p. 144.

97 Também nesse sentido segue PEDRO DE ALBUQUERQUE: «quando a atribuição dos poderes de representação está ligada, segundo as conceções do tráfego, à concessão de determinada posição admite-se estar-se, em regra, na presença de uma comunicação concludente segundo a qual teria sido concedida uma procuração ao proposto. Naqueles casos nos quais isso não aconteceu,de facto, e o proposto não goza de quaisquer poderes, depara-se com uma Scheinvollmacht (procuração aparente)». Cit. PEDRO DE ALBUQUERQUE - A representação voluntária…, p. 1021.

98 Cfr. MOTA PINTO – Aparência de poderes…, p. 618. 99 Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE - A representação voluntária…,, p. 1002 e MOTA PINTO,

Aparência de poderes…, p. 622 100 Refere MOTA PINTO, que esses ordenamentos jurídicos, de uma ou outra forma, não

esgotaram a tutela de terceiros que se relacionam com um falsus procurator na proteção contra modificações ou contra a extinção da procuratio, nem na capacidade do terceiro em pedir justificação dos poderes do representante. MOTA PINTO, Aparência de poderes…, p. 626.

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Podemos aproveitar algum destes esforços jurídicos para aplicar no nosso

mosaico jurídico? A resposta é positiva.

Olhando para o ordenamento jurídico tudesco, em particular para o Código

Civil alemão, vemos nos artigos § 170, § 171, § 172 e § 173, uma estrutura jurídica

de tutela de terceiros, distinta daquela prevista pelo legislador português, no artigo

266 º do Código Civil. Superficialmente, digamos que essas normas preveem que o

poder de representação, uma vez conferido pelo representado, só deixará de

produzir efeitos até que a sua cessação seja comunicada ao representado. Estabelece

o § 173, que não aproveitam da aplicação dessas regras, os terceiros que

conhecessem, ou devessem conhecer, da cessação da procuração 101.

Estas normas compõem um esquema de tutela de proteção de terceiros,

diferente daquele presente na lei portuguesa, com uma atenção particularmente

dirigida para a aparência de representação 102, teoria jurídica que pretende explicar

a eficácia dos efeitos decorrentes de atos de representante, cuja procuração se tenha

extinguido, sem o conhecimento do terceiro 103. Essencialmente, a teoria prediz que,

mesmo que a procuração deixe de conservar validade, por extinção ou qualquer

outro facto, a sua eficácia mantém-se, com o fito de salvaguardar os melhores

interesses de terceiros, que possam ser ludibriados com situações de aparência de

representação 104.

Como vimos anteriormente, não é possível integrar no artigo 266º do Código

Civil, um princípio de proteção de terceiros, nos termos tratados acima, porque os

preceitos do CC não são compatíveis com um esquema de tutela da confiança em

“representante” em ausência de poderes representativos. A confiança é apenas

101 Baseando-nos na tradução de Carlos Melon INFANTE – Código Civil Alemán (BGB),

Traducción directa del Alemán al Castellano acompanhada de notas aclaratórias, com indicación de las modificaciones habidas hasta el ano 1950, Barcelona: Bosch, 1955, p.33.

102 Como explica MENEZES CORDEIRO, o artigo 266º não se aproxima das disposições do BGB, por derivar do artigo 1396º do Código Civil Italiano, correspondendo até a uma reprodução quase literal do mesmo. MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4ª edição, p. 671.

103 Ibidem, p. 671 ss. 104 Nas palavras de MENEZES CORDEIRO «No essencial, ela entende que a procuração se

extinguiu efetivamente; todavia, mercê da aparência e para tutela de terceiros, ela mantém alguma eficácia» Cit. Ibidem,4, p. 671.

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protegida no Direito Português, como vimos, através da boa-fé do terceiro e no

abuso de direito 105.

Há que recorrer a outros institutos, conciliáveis com uma tutela de interesses

de terceiros em situações, como a do nosso caso de estudo, em que não exista

procuração.

No Direito alemão, dois institutos decorrem do princípio de tutela da

confiança de terceiros, princípio com expressão nos artigos do BGB que enunciámos

e na doutrina e jurisprudência 106. Falamos das figuras da procuração tolerada e da

procuração aparente.

Ambas, como dissemos, caracterizam-se como instrumentos derivados do

princípio da tutela da aparência de representação no domínio comercial, e visam

proteger terceiros de boa-fé. Esses, em resultado da estruturação naturalmente

complexa das empresas com as quais se relacionam, facilmente são iludidos pela

criação de situações de aparência, que os podem induzir em presunções erróneas,

podendo estes institutos valer como forma de salvaguardar os seus interesses.

Na procuração tolerada, alguém admite, repetidamente, que um terceiro se

arrogue como seu representante. Caso se verifique esta situação, ao representante

reconhecem-se verdadeiros poderes de representação, mesmo sem procuração

válida. Alerte-se, isto não implica a concessão de uma verdadeira procuração, é antes

uma forma de tutela de terceiros que, por força da confiança, é imputada ao

“representado” por força do comportamento do “representante” 107. Diga-se que

este esquema só dispõe de validade quando o terceiro que se relaciona com a

sociedade se encontre de boa-fé, ou seja, quando não fosse exigível que conhecesse

ou que devesse conhecer a falta de procuração 108.

105 MENEZES CORDEIRO – Tratado…V, 3, p. 144. 106 Sobre o progressismo do Direito alemão, nomeadamente em alusão ao princípio da

aparência, citamos OLIVEIRA ASCENSÃO: «É mais uma vez o direito alemão a comandar a evolução do direito comunitário. É sabido que naquele país os princípios da aparência e da confiança vigoram muito para além do que acontece nas outras ordens comunitárias. Neste caso, há mesmo um princípio de tutela do tráfego, como entidade abstracta que leva até nesse país a tornar irrelevante a boa fé de terceiros no domínio das sociedades de capitais, no que respeita a actos ultra vires» Cit. OLIVEIRA ASCENSÃO - Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, Lisboa, 1993, p. 316.

107 Cfr. MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial, 4, p. 672. 108 Cfr. RICARDO COSTA: “(…) De todo o modo, o terceiro não poderá ver a sociedade vinculada

se, mais uma vez de acordo com as circunstâncias do caso, se concluir que conhecia ou devia conhecer

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Já a procuração aparente, é semelhante à procuração tolerada no ponto em

que pressupõe que alguém se arrogue “representante” de outrem, com a

particularidade de o fazer sem o seu conhecimento e aceitação explícita e prévia 109.

O reconhecimento de poderes de representação está, neste instituto, baseado

na presunção de que o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível e de um

comportamento cuidadoso, nomeadamente na vigilância dos seus subalternos,

deveria ter a capacidade de impedir a situação 110. Aqui teremos então dois

elementos, um primeiro sendo subjetivo, a aparência de representação e um

segundo, objetivo, que será a negligência do “representado” 111. No caso de

verificação de ambos os elementos, estaríamos perante uma situação de

representação aparente.

Há que mencionar que, tal como para a procuração aparente, estes princípios

só valem caso o terceiro esteja de boa-fé, ignorando, sem culpa, a falta de

legitimidade do representante, confiando na situação de aparência que não

corresponde à realidade. A existência de negligência, ou a falta dela, do terceiro em

desconhecer da situação de falta de poderes bastantes de representação é, aliás, um

requisito básico para a imputação do ato ao “representado”.

10.2. – A representação aparente no ordenamento jurídico português. A

extensão do artigo 23º da Lei da Agência e a procuração institucional.

Existe no Direito português vigente, um dispositivo que reúne em si a

capacidade de transpor a teoria da aparência para o nosso ordenamento jurídico.

a ausência de legitimidade ou a legitimidade bastante para o acto e, não tendo chamado a si os passos necessários para esclarecer a situação, mesmo assim (ou seja, negligentemente), contratou” – Cit. RICARDO COSTA - Administrador de Facto…, p. 756.

109 Cfr. PINTO MONTEIRO: “(…) não andará, assim, porventura, a “representação aparente” muito longe da “representação tolerada ou consentida” (mas não necessariamente, até porque, apesar do seu comportamento, que contribui “para fundar a confiança do terceiro”, pode faltar ao principal a consciência da declaração, caso em que nos termos do artigo 246º do Código Civil, não poderá recorrer-se à ideia da de declaração tácita, relevando autonomamente o problema da “representação aparente”” - Cit. PINTO MONTEIRO - Contrato de Agência, anotação ao Decreto-Lei Nº 178/86, de 3 de Julho; 5ª edição, Coimbra: Almedina, 2004, p. 108.

110 Cfr. MENEZES CORDEIRO: “Porém, o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível, designadamente na vigilância dos seus subordinados, poderia (e deveria) prevenir a situação” – MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial 4ª edição, p. 673.

111 Vide MENEZES CORDEIRO - Direito Comercial 4ª edição, p. 673.

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Falamos do artigo 23º n. º1 do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, relativo

ao contrato de agência, de seu título, precisamente, “Representação aparente”, que

dispõe como segue:

«O negócio celebrado por um agente sem poderes de representação é eficaz

perante o principal se tiverem existido razões ponderosas, objetivamente

apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança

do terceiro de boa-fé na legitimidade do agente, desde que o principal tenha

igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro».

Deste preceito, conclui-se que, para obtermos a eficácia do negócio celebrado

pelo agente, face ao principal, é necessário que exista uma relação com um terceiro

de boa-fé, protagonizada através de uma atuação aparente, isto é, sem autorização

prévia do principal, da qual o terceiro, justificadamente, depreenda a representação

como sendo legítima. Ademais, para a existência dessa relação de aparência, terá

que ter contribuído o principal, sob pena da norma não se aplicar.

O artigo 23º do Contrato de Agência vem então responder, de uma forma

decisiva, comparativamente com o restante panorama jurídico existente, à

necessidade de abordar os efeitos de atos praticados por falsus procurator 112.

Como explana MOTA PINTO, «este artigo concretizou uma evolução de louvar

constituindo um rasgo do legislador no sentido de preencher a necessidade, deixada

em aberto pelo CC, de dispensar a tutela aos intervenientes no comércio jurídico que

tratam com um falsus procurator» 113.

Descoberto o potencial prático da norma, considera-se viável uma aplicação

generalizada do disposto no artigo 23º da Lei da Agência, da figura da procuração

aparente, a situações exteriores ao foro do regime do contrato de agência,

designadamente, de forma a admitir a procuração aparente como um instituo

integrante do Direito comercial?

112 «é exactamente essa necessidade de tutela de terceiros, especialmente acentuada no

domínio mercantil, que (…) o artigo 23º visa satisfazer» Cit. MOTA PINTO – A aparência… p. 591. 113 Ibidem, p. 645.

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A opinião generalizada é no sentido positivo, que se justifica a aplicação da

norma, a todos os contratos de cooperação ou de colaboração 114.

Em sentido lato, podemos retirar do artigo 23º da Lei da Agência, os

seguintes requisitos necessários para depreender uma situação de aparência que

justifique a tutela de terceiros de boa fé: uma atuação em nome alheio, um terceiro

de boa-fé, uma situação de confiança justificada por parte deste na legitimidade

representativa do agente e que essa confiança possa ser, de alguma forma,

reconduzida ao principal 115.

A doutrina, idealizando a aplicação extensiva do artigo, criou a figura da

procuração institucional. A procuração institucional acaba por ser como que uma

forma de transposição da teoria da aparência para o ramo onde mais influência tem,

o comercial, onde a natural «opacidade» das relações entre representados e

representantes é particularmente confusa para terceiros 116.

O conceito parte do princípio que, tendo em conta que, como concluímos, não

admite o direito português uma direta e expressa tutela da confiança de terceiros na

aparência, nos casos em que falta procuração, pode, numa situação de relação

institucional, isto é, enquadrada numa organização complexa e permanente, por

representar uma realidade sociocultural diversa, justificar-se a integração da tutela

da aparência.

MENEZES CORDEIRO refere que, perante situações meramente individuais,

em que o tertius contrate com um representante de outra pessoa individual, a

previsão do artigo 260º, que se recorde, confere ao terceiro a possibilidade de exigir

ao procurator a prova dos seus poderes, garante ao terceiro de boa-fé que se

resguarde de situações de modificações ou e extinção da procuração. Mas no caso

em que esse terceiro se relacione com uma organização, em cujo nome o agente atue

114 Assim António PINTO MONTEIRO – Contrato de Agência, Anotação ao Decreto-Lei Nº

178/86 de 3 de Julho, 5ª edição, Coimbra: Almedina, p. 109-110, MENEZES CORDEIRO – Tratado… V,3, p.145. e também PEDRO DE ALBUQUERQUE – A representação voluntária…, p. 1054-105, que refere doutamente que «apenas se deverá aceitar como ponto de partida a ideia segundo a qual as regras excepcionais não comportarão aplicação analógica. Porém, quando for possível descobrir uma maior proximidade, efectiva e concreta, entre determinada situação a regular e a norma excepcional do que entre aquela e a norma geral, deverá deixar-se a porta aberta para uma eventual aplicação da norma excepcional». Cit., PEDRO DE ALBUQUERQUE – A representação voluntária…, p. 997.

115 MENEZES CORDEIRO – Tratado V…,3, p. 145. 116 Cfr. Ibidem, p. 1061.

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e que, dadas as circunstâncias, se justifique a crença nos seus poderes de

representação, terá lugar a procuração institucional 117.

O exemplo representativo desta situação, oferecido pelo autor, prende-se

com a absurdidade que seria se, qualquer um de nós, invocasse perante um

empregado de caixa do supermercado, que justificasse os seus poderes, de modo a

salvaguardarmos as nossas expectativas de não estarmos a lidar com um falsus

procurator e de não estarmos dependentes de uma posterior ratificação do dominus

para alcançar os efeitos normais e previsíveis do negócio 118.

Nesse caso, não será o terceiro a ter que empenhar tentativas de averiguação

de legítimos poderes de representação, a confiança é «imediata, total e geral»

presumindo-se que cabe ao principal «manter a disciplina na empresa,

assegurando-se da legitimidade dos seus colaboradores» 119.

A sua designação é, portanto, presságio do âmbito no qual opera. Num

contexto em que uma pessoa, de boa-fé, contrate com um terceiro que garante atuar,

com poderes de representação, em nome de determinada organização que, pela sua

natureza, não permite que seja viável que a tutela dos interesses de terceiros se

regre pela prorrogativa de pedirem provas de poderes dos seus representantes 120.

Como já transparecemos, a complexidade estrutural inerente à pessoa coletiva, é

propensa a criar, na perspetiva de terceiros, constante dubiedade e incerteza acerca

de existência efetiva de legítima capacidade representativa. O que,

costumeiramente, leva os terceiros a confiar, de forma leviana, na autenticidade

dessa capacidade.

117 Ibidem, p. 146. 118 Ibidem, p. 146. 119 Cit. Ibidem, p. 146. 120 Nas palavras de MENEZES CORDEIRO: «Perante um pretenso representante isolado, a

pessoa que, com ele, contacte deve tomar precauções, inteirando-se da existência e da extensão dos seus poderes. Mas quando depare com uma organização na qual se integre o pretenso representante, a confiança legítima é imediata: ninguém, na caixa de um supermercado, vai interpelar o empregado no sentido de este comprovar os seus poderes de representação. Nesta área, especialmente relevante para o Direito comercial, opera uma procuração institucional eficaz, independentemente da sua qualidade intrínseca», conclui descrevendo a teoria como institucional «que uma procuração aparente limitada a esse circunstancialismo», entenda-se, o da relação do terceiro de boa-fé com uma estrutura organicamente complexa. Cit. MENEZES CORDEIRO – Direito Comercial 4ª edição, p. 674-675.

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De facto, num contexto como este, a figura da procuração institucional faz

todo o sentido, ainda para mais tendo em conta a posição tomada, quer pelo

legislador, quer em seguimento, da jurisprudência, em defender os terceiros que se

relacionam com este tipo de coletividades.

O legislador e a jurisprudência, têm seguido a via da proteção de terceiros,

em situações de incerteza quanto à vinculação da sociedade, para com obrigações

decorrentes de atos violadores das regras da representação. Veja-se por exemplo,

do que nos dá conta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n. º de processo

08A2239, relatado por AZEVEDO RAMOS:

«Verifica-se uma forte corrente doutrinal e jurisprudencial no sentido de

atribuir primazia aos interesses de terceiros de boa fé, relegando-se para as relações

internas as consequências inerentes ao eventual desrespeito das regras de

representatividade constantes do pacto social. (…) Na composição abstracta dos

conflitos de interesses que podem derivar do exercício ilegítimo de funções de

representação, em caso de gerência plural, o legislador inclinou-se para a protecção

de terceiros, por serem eles que se defrontam com maiores dificuldades no

conhecimento concreto das regras de representatividade da sociedade» 121.

É uma inclinação lógica, porque os terceiros que contratam com a sociedade

não têm, nem devem ter, que se preocupar com a existência de limitações

estatutárias ou de vícios formais que limitem ou impeçam o exercício de poderes de

representação. Não podem, pois, as consequências decorrentes de tais limitações,

afetar os terceiros que contratem com a sociedade.

Nesse sentido, valorize-se a posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, quando refere

o seguinte: «Considera-se que o tráfego mercantil não é compatível com a

repercussão sobre os terceiros das anomalias dos órgãos sociais. Os terceiros que

contratam com a sociedade não têm que conhecer semelhantes limitações: não se

lhes pode impor um ónus exaustivo de informação, que prejudicaria a fluidez do

121 Acórdão do STJ, de 23-set.-2008 (Azevedo Ramos), Proc. 08A2239, disponível em

www.dgsi.pt.

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comércio jurídico. Nem interessa afinal perguntar se conheciam ou não que o órgão

atuava ultra vires.(…)» 122.

Sendo esse o panorama jurisprudencial e doutrinário em que nos

mobilizamos, não encontramos razão impeditiva de experimentarmos, no melhor

interesse do estudo, fazer uso adequado da figura da procuração institucional, e

também da procuração aparente, como teoria originadora do primeiro conceito,

justapondo-a ao que ao caso efetivo diz respeito.

Mas estará a tutela de terceiros que se relacionem com sujeitos sem

procuração, á teoria da representação institucional? Como há pouco dissemos,

MENEZES CORDEIRO explica que, numa situação negocial individual comum, o

terceiro pode sempre recorrer às previsões dos artigos 260º e 266ºdo CC. Já em

casos em que se insira uma estrutura empresarial complexa, para o ilustre

Professor, aí sim se justifica que o terceiro não tenha que se preocupar com a

existência ou não de procuração, estando protegido por uma proposição decorrente

doa artigo 23º da lei da agência.

Embora, como frisámos, o julgador de primeira instância tenha optado por

uma elementar aplicação do disposto no artigo 260º do CSC, encontramos na

jurisprudência, sentenças que não hesitaram em invocar a figura da procuração

aparente, ou distintivamente, da procuração institucional.

Para demonstrar esse facto, citamos o seguinte acórdão, proferido pelo

Tribunal da Relação de Lisboa, de 25 de novembro de 2011, relatado por Maria

Manuela Gomes:

“Dispondo o art. 23º do DL 178/86, sob a epígrafe “Representação

aparente” que: “1. - O negócio celebrado por um agente sem poderes de

representação é eficaz perante o principal se tiverem existido razões ponderosas,

objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem

a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do agente, desde que o

principal tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do terceiro”, deve tal

cláusula geral ainda que prevista para o contrato de agência, ser aplicada

122 Cit. Direito Comercial, Vol. IV, Sociedades Comerciais, p. 316.

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extensivamente à generalidade dos casos em que esteja presente a mesma razão de

ser, isto é, em todos os casos em que se justifique a tutela da confiança de terceiros que

contratem com empresas cuja moderna organização interna, regra geral complexa,

foge, de todo, ao conhecimento e controle desses terceiros”. 123

Mas a teoria da aparência, a transpor-se para o nosso ordenamento jurídico,

só poderá ser utilizada num contexto deste género? Para descobrir, vejamos como

se poderia aplicar esta teoria ao nosso caso em análise, descobrindo se os seus

precitos cabem na sua factualidade.

A verdade, é que esta situação parece, a nosso ver, demonstrar distinções

com uma situação tipicamente associada à aplicação da figura da procuração

institucional.

Voltemos ao exemplo do funcionário de caixa do supermercado. A verdade é

que essa pessoa com as quais nos deparamos e da qual esperamos algum tipo de

relação com o dominus, possui, normalmente, claros sinais distintivos que permitem

tomar essa decisão (uniforme, o exercício de funções tipicamente conotadas com um

empregado caixeiro de supermercado).

Não cremos que neste caso, isso se depreenda. Como já referimos, a

aparência de poderes de representação num contexto institucional depende dos

dados socioculturais vigentes e a inserção orgânica do representante. Ambos os

requisitos são enunciados partindo do princípio que devem ser apreendidos,

obviamente, pelo tertius. Neste caso, C poderia depreender uma situação de

representação com base destes fundamentos?

A verdade, é que C, como qualquer pessoa, quando se dirige ao supermercado

e se dirige aos balcões de pagamento, depara-se com uma pessoa que utiliza os sinais

distintivos do comerciante e que está visivelmente inserida no estabelecimento

físico do empresário, a exercer funções típicas de um caixa de supermercado.

123Acórdão da RLx, 25-nov.-2011 (Maria Manuela Gomes), Proc. 1062/2001.L1-6, disponível

em www.dgsi.pt.

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Face a essa situação, não parecem existir grandes possibilidades que C,

deparado com isto, duvide que aquela pessoa não esteja inserida na estrutura

orgânica daquela sociedade.

Diferente, é o case study. Neste caso, a inferência de C em acreditar que A e B

possuíam poderes de representação, por exercerem funções no órgão

administrativo da sociedade, prende-se, como provém dos factos, de uma relação

anterior com A, quando este era gerente.

Não cremos que se assemelhem. Os dois sócios não se apresentaram perante

C com sinais nem títulos ou documentos dos quais se depreendessem poderes de

representação e funções de gerência, mas apenas com a menção de que eram

gerentes.

Visto isto que conclusões se retiram?

Aplicar os preceitos da aparência a este caso mostra-se complexo e as

interpretações podem ser diversas.

Em primeiro lugar, não acreditamos que se possa defender que A e B se

insiram numa estrutura orgânica permanente, associada a uma realidade

sociocultural como aquela exemplificada por MENEZES CORDEIRO, de um

supermercado.

Porém, no interesse do caso, se admitirmos que a tutela da aparência possa

operar fora desta realidade institucional, é possível a aplicação dos requisitos

desfibrados do artigo 23º da Lei de Agência. Afinal, os requisitos são os mesmos, a

procuração institucional é simplesmente uma teoria que defende que estes

preceitos apenas têm lugar numa situação de relação de um terceiro com boa fé com

uma complexa estrutura orgânica, com vários trabalhadores, agentes e serviços.

A verdade é que podemos admitir que não se subsume por aqui a utilidade

da teoria da aparência. Afinal, vemos uma situação que, potencialmente demonstra

uma situação de aparência, mas que não surge integrada num contexto institucional,

a nosso ver.

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Para os efeitos teórico-académicos que perseguimos, admitamos a aplicação

destes critérios aos factos, para verificar como se aplicariam os requisitos ao caso,

um por um.

Em primeiro lugar, não há dúvida que A e B atuaram em nome da sociedade,

um facto que já por diversas vezes repetimos.

Chegarmos a uma definição quanto aos outros requisitos, contudo,

demonstra-se mais complexo. O segundo e o terceiro requisito podem fundir-se num

só, ou seja, a existência de um terceiro que possua razões justificativas para confiar

nos poderes de representação de A e B.

Como vimos, não pode C afirmar que se deparou com uma situação, como

com uma caixa do supermercado, em que a posição orgânica dos representantes

fosse evidente. É relevante, contudo, e poderá levar-nos a conclusões diferentes, se

tivermos em conta que os dois sócios utilizaram o carimbo da sociedade no

momento de assinar a letra. Ora, é verdade que a posse de carimbos da gerência da

sociedade é um sinal de que existe uma relação entre A e B e a sociedade.

Se bem que não estaríamos inclinados para assegurar a tutela dos interesses

de C através da teoria da aparência, com base na mera confirmação da qualidade de

sócio de A, a verdade é que a posse do carimbo da sociedade é motivo gerador de

confiança.

Por último, para a confiança nos poderes de representação de A e de B, deve

ter contribuído o principal, isto é, a sociedade.

O preenchimento deste requisito é uma decisão difícil. Por um lado, é verdade

que os sócios da Albatroz Lda., excetuando A e B claro, apenas tiveram conhecimento

da existência da letra através do protesto, apresentado por C. Representará isso um

desconhecimento e “inocência” da sociedade na fundamentação da situação de

aparência? Como vimos, o “órgão” societário constituído pelos sócios, é contribuído

por todos os sócios, não apenas A e B. Portanto, a concluir por um conhecimento da

sociedade desta circunstância, e mais ainda para um contributo da mesma para a

criar, é de considerar se não teriam todos os sócios, como proprietários da sociedade,

conhecer essa criação da situação de aparência.

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Não cremos, porque, para este efeito, achamos incontornável a já conhecida

relação de domínio, demonstrada pela titularidade de 90% do capital social detido

por A e B. Além disso, titular do órgão responsável por executar externamente a

vontade da sociedade, o gerente, conhecia a letra, optando por não se opor à sua

emissão.

É caso para referir que se denota uma confusão de esferas jurídicas entre a

da sociedade, e a dos sócios. O controlo formal e material e a relação de domínio que

exercem sobre a sua sociedade é tão intenso que a separação de esferas jurídicas se

torna pouco clara.

Por este motivo, somos da opinião que os dados do caso podem ser

considerados como uma situação passível de ser abrangida pela tutela da aparência,

embora que não surja, no nosso entender num domínio institucional.

Apesar disso, dadas as circunstâncias do caso, é subsumível ainda assim uma

situação de procuração aparente, por preenchimento dos pressupostos.

Relembramos, esta não deve ser entendida como uma resposta absoluta e

necessariamente estabelecida. Como vimos, a aplicação destes pressupostos ao caso

não foi feita livre de dúvidas. Mas, ainda assim, por existirem a nosso ver

fundamentos para que, propondo a possibilidade de aplicar os princípios da

procuração aparente a este caso, se conclua pela vinculação da sociedade ao

conteúdo da letra, a hipótese tem, num plano académico que parte do prático,

interesse.

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Capítulo IV – Conclusões e breve proposta jure condendo.

11. - Conclusões

O problema em análise, baseou-se num caso judicial específico. Nesse, dois

sócios de uma sociedade por quotas, apuseram a sua assinatura no aceite de uma

letra de cambio, juntamente com o carimbo da sociedade. Esses sócios, na altura em

que assinaram a letra de câmbio, não exerciam funções de gerência na sociedade,

nem lhes haviam sido conferidos poderes de representação.

Não obstante, os dois sócios informaram expressamente o sacador que eram

gerentes da sociedade, e que por isso a representavam. Vimos também que os sócios

detinham entre si 90% do capital social. O gerente da sociedade, embora soubesse

da existência da letra, nunca se opôs.

O tribunal de primeira instância decidiu no sentido da não vinculação da

sociedade, com o fundamento de que, uma vez que os sócios não possuíam poderes

representativos, a sociedade não podia estar vinculada;

Para tecermos as nossas considerações sobre o caso, abordámos os institutos

da representação orgânica e da representação voluntária, como vias de vinculação

da sociedade por atos de pessoas individuais.

Concluímos que as pessoas coletivas manifestam a sua vontade através dos

seus órgãos, que agem não em representação destas, mas como sua parte integrante.

Em resultado, os atos dos órgãos são diretamente imputados à pessoa coletiva.

Nas sociedades por quotas é à gerência que que cabe a administração da

sociedade.

Vimos como nem sempre essas delimitações funcionam na vida real. O caso

em estudo é demonstrativo de como as relações de domínio no seio da sociedade

podem viciar por completo a face da organização societária.

Explicámos como não cabe aos sócios a prática de atos com direto impacto

externo, devendo caber a cada órgão as suas atribuições. Por isso concluímos que

não havia lugar a uma situação de representação orgânica por parte de A e B.

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Ainda assim, esta relação de domínio dos sócios sobre a sociedade, levou-nos

a concluir que nem sempre são os gerentes os verdadeiros titulares do controlo da

sociedade. Pode verificar-se que alguém exerça funções de real e positiva

administração, como neste caso, sem que tenha legitimidade para o fazer.

Daí, abordamos a figura do administrador de facto, a nosso ver, um instituto

que, particularmente no âmbito do direito societário, possui extrema relevância,

embora não seja esse o entendimento do legislador.

Com base na teoria do administrador de facto jus societariamente relevante,

compreendemos o verdadeiro alcance e utilidade da figura para o direito societário.

Em especial, porque se presume que um administrador de facto possa ser

equiparado a um administrador de direito, dadas as semelhanças no que ao

exercício de funções de administração diz respeito.

Se aplicada ao caso em análise, vemos como poderíamos, por estes critérios,

depreender pela atividade de gerência de A e B, que de facto existe, mas que, com

base no Direito vigente, não é possível concluir.

Concluindo pela qualidade fática da gerência de A e B, seria possível integrar

os seus atos numa conduta de representação orgânica da sociedade que dominam e

de que são, de facto, administradores.

Assim, se denota como a aplicação desta figura poderia, salvo opinião em

contrário, resultar em soluções mais justas e mais de acordo com a realidade.

Enquanto o legislador decidir ignora-la, embora exista e tenha aplicabilidade,

situações como estas não podem contar com mais esta via de solução, uma que até

pode ter preponderância.

Esperamos que, conforme grande parte de outros ordenamentos jurídicos, o

legislador português adapte a figura e a concretize no nosso ordenamento jurídico,

em especial no ramo do Direito societário.

Para além da via da representação orgânica havia a explorar a via da

representação voluntária.

Dos factos que compõe o caso, não conseguimos depreender uma situação de

relação de representação voluntária entre os sócios e a sociedade. Visto isso, vimos

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como a lei portuguesa está contruída para responder a situações do género. Da

análise da previsão normativa, parece-nos estar implícito a preferência pelo ónus do

terceiro de exigir do representante a prova dos seus poderes, em caso de situações

onde se suspeite a ausência de poderes representativos.

De facto, parece que, antes da tutela de terceiros, o legislador esteve mais

preocupado em regular a justificação dos poderes do representante, do que em

proteger situações de aparência de representação. A maior limitação à aplicação de

das normas de tutela de aparência do Direito Civil e comercial, prende-se com a falta

de previsão para lidarem com total ausência de procuratio. Recorde-se como, no

caso do artigo 260 º, a aplicação do artigo se destina, pelo n. º 1 a situações de

modificação ou de revogação de uma procuração, ou por aplicação do n. º 2, aos

restantes casos de extinção da procuratio.

A norma visa proteger os interesses de terceiros de modificações ou da

cessação repentina de uma procuração. Ou seja, assenta numa pré-existência de

certos poderes de representação atribuídos por via da representação voluntária ou

orgânica.

Os preceitos do CC não são, então, compatíveis com um esquema de tutela da

confiança em “representante” em ausência de poderes representativos. A confiança

é apenas protegida no Direito Português, como vimos, através da boa-fé do terceiro

e no abuso de direito.

Dada esta assinalável limitação do Direito português nesta matéria, há que

recorrer a outros institutos, conciliáveis com uma tutela de interesses de terceiros

em situações, como a do nosso caso de estudo, em que não exista procuração.

No Direito alemão, dois institutos decorrem do princípio de tutela da

confiança de terceiros, princípio com expressão nos artigos do BGB que enunciámos

e na doutrina e jurisprudência. Falamos das figuras da procuração tolerada e da

procuração aparente.

Na procuração tolerada, alguém admite, repetidamente, que um terceiro se

arrogue como seu representante. Caso se verifique esta situação, ao representante

reconhecem-se verdadeiros poderes de representação, mesmo sem procuração

válida. Já a procuração aparente, é semelhante à procuração tolerada no ponto em

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que pressupõe que alguém se arrogue “representante” de outrem, com a

particularidade de o fazer sem o seu conhecimento e aceitação explícita e prévia.

O reconhecimento de poderes de representação está, neste instituto, baseado

na presunção de que o “representado”, se tivesse usado do cuidado exigível e de um

comportamento cuidadoso, deveria ter a capacidade de impedir a situação.

Existe no Direito português vigente, um dispositivo que reúne em si a

capacidade de transpor a teoria da aparência para o nosso ordenamento jurídico.

Falamos do artigo 23º n. º1 do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, relativo ao

contrato de agência.

A opinião generalizada é no sentido que se justifica a aplicação da norma, a

todos os contratos de cooperação ou de colaboração. Vimos como, no interesse do

caso, é possível a aplicação dos requisitos decorrentes do artigo 23º da Lei de

Agência.

Voltando à nossa pergunta de partida “tendo em conta os factos apresentados,

existe fundamento para considerar que os sócios que assinaram a letra de câmbio,

atuavam como legítimos representantes da sociedade, vinculando-a ao conteúdo do

documento?, concluimos que:

1. Pela via da representação orgânica em primeira análise a resposta parece

ser negativa. Vimos que a representação das sociedades comerciais está reservada

ao seu órgão de representação, a gerência;

2. Contudo, existe um instituto que aplicado ao caso pode levar-nos a concluir

de forma diferente, acerca da representação orgânica. Falamos da administração de

facto que neste caso se pode colocar a hipótese de que os dois sócios preenchem os

requisitos necessários de uma administração de facto relevante;

3. Na tentativa de resposta à pergunta inicial abordámos também a

possibilidade da representação da sociedade por parte dos sócios por via da

representação voluntária. Concluímos que essa via não seria adequada por evidente

ausência de procuração.

4. Contudo, a vinculação da sociedade ao conteúdo da letra poderia estar

garantida se se entender que existe uma relação de procuração aparente. Nesse caso,

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por via da aplicação extensiva dos preceitos do artigo 23 da Lei da Agência, a

sociedade poderia estar vinculada ao conteúdo da letra, por força da aparência

criada em terceiro de boa-fé.

12. - Proposta juri condendo

Para finalizar este trabalho, achámos que teria interesse apresentar uma

forma de resolução nossa, de um problema que encontrámos no decorrer do nosso

estudo: a falta de concretização do administrador de facto no ordenamento jurídico

português.

Uma via de incorporar o administrador de facto na lei, passaria pela aposição

de cláusulas de equiparação do administrador de facto ao administrador de direito,

através de transformações e/ou adaptações à atual redação de normas legais

dirigidas, ou com implicações sobre, os administradores de direito. Com a criação de

cláusulas desta natureza, garantiríamos a incorporação do estatuto do

administrador de facto relevante societária e juridicamente no ordenamento

jurídico português, além de se estabelecer legalmente, a equiparação prática do

instituto ao da administração de direito, como consequência da sua relevância jus

societária.

Esta transformação legislativa, traduzida através de disposições legais novas,

ou através da modificação de normas já existentes, poderia ser alcançada com a

criação ou alteração de disposições normativas, para que previssem a equivalência

dos administradores de facto aos administradores de direito, ou por cláusulas

especificamente dirigidas à aplicabilidade do estatuído na norma, ao administrador

de facto.

Independentemente da forma levada a cabo para alterar a lei, o resultado

seria idêntico, e seria o pretendido. Deste modo, não seria necessário a leitura e

interpretação do disposto na norma, por via de uma interpretação normativa

específica e extensiva, para que as normas produzissem o efeito desejado, nem

tampouco, a aplicação da figura estaria restringida a algumas situações balizadas

por determinados preceitos normativos já em vigor. Antes, a aplicação e definição

da figura dependeria, direta e inequivocamente, da lei escrita, que admitiria a sua

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relevância na realidade do direito societário, estabelecendo os parâmetros para a

sua caracterização e estipulando os contornos da sua aplicabilidade.

Colocando tudo isto em prática, exemplifiquemos como poderíamos alcançar

este desígnio através da introdução da fórmula “de facto” a normas relativas a

administradores. Imagine-se, por hipótese, a seguinte redação do artigo 260 º, n. º 1

do CSC:

“1- Os atos praticados pelos gerentes, ainda que de facto, em nome da sociedade e

dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não

obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos

sócios”.

O resultado jurídico em concreto desta norma modelo, seria, naturalmente, a

garantia legal de que os administradores de facto vinculariam a sociedade, nos

termos exatos da vinculação associada aos administradores de direito. Extraímos

essa informação da norma, não através de uma interpretação extensiva condizente

com a realidade jurídica atual, mas sim de uma interpretação simples, direta e

restrita 124.

Outra possibilidade, com fins idênticos, passaria pela introdução de um item

específico para o administrador de facto, em disposições que incidissem sobre a

administração e sobre a gerência social. Um exemplo disto, seria a seguinte

composição do artigo 409º do CSC, este relativo também à vinculação, mas nas

sociedades anónimas:

“1- Os atos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos

poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as

limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos

acionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.

124 Podemos considerar a hipótese de a sociedade invocar que, dada natureza meramente

funcional da sua relação com administradores ou gerentes de facto não estar sujeita a uma obrigação de registo para efeitos de formalização, a ausência da qualidade de administrador é oponível a terceiros. A essa alegação, poderia o terceiro responder que inexiste essa inevitabilidade de constatação da qualidade de administrador de facto para efeitos registrais, uma vez que esse estatuto jurídico-funcional se adquire diretamente pela lei, quer através da interpretação de normas inclusivas do conceito, quer pela identificação do concurso de requisitos. Cfr. RICARDO COSTA, Administrador de Facto…, p. 743.

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2- (…).

3- (…).

4- (…).

5- Vinculam igualmente a sociedade, nos termos do n. º 1, os atos praticados por

administrador de facto” 125.

Como se depreende, apenas com o acréscimo de uma alínea relativa ao

administrador de facto, fica estabelecida a equiparação do instituto administrativo

fático à administração de direito, permitindo, tal como no exemplo acima, que a

vinculação da sociedade por administrador de facto seja assegurada por lei.

A determinação legal e objetiva da aplicação de disposições normativas

específicas ao administrador de facto, extinguiria a necessidade de refletir acerca de

que dispositivos legais do administrador de direito seriam ou não transferidos para

o administrador de facto, uma vez que essa identificação estaria já estabelecida pela

lei.

Contudo, continuaria a existir a inevitabilidade de depreender um fenómeno

de administração fática quanto a um sujeito, previamente à aplicação dos

dispositivos legais correspondentes. Não cremos que realizar esse reconhecimento

fosse para nós um obstáculo significativo, uma vez que já possuímos o concurso de

pressupostos necessário para responder a essa necessidade. Falamos,

naturalmente, do concurso relativo à apreensão do título executivo-funcional de

administrador de facto jus societariamente relevante.

Esse concurso de requisitos, sobre o qual anteriormente discorremos,

assume, portanto, um papel fundamental para a consagração legal do administrador

de facto, independentemente da forma escolhida para a incorporação na letra da lei.

Afinal, de pouco serve criarmos normas especialmente dirigidas à atividade

administrativa e gestória de facto, se depois, devido à falta de um elenco claro de

características de exigível apreensão, não sejamos capazes de identificar, com

certeza e convincentemente, um administrador ou gerente de facto. É, por

125 Cfr. RICARDO COSTA, Administrador de Facto…, p. 733.

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conseguinte, primordial, a criação de uma cláusula explicativa da definição e do

conteúdo incorporado no conceito de administrador de facto, para efeitos legais.

Uma vez que já possuímos os preceitos necessários, na forma dos requisitos

substanciais da atuação do administrador de facto jus societariamente relevante,

estamos aptos a conceber um arquétipo normativo, que permitisse a introdução de

uma cláusula dessa espécie no CSC.

Com isso em mente, imaginamos que uma norma que alcançaria esse escopo

seria, aproximadamente, algo da seguinte variedade:

“Para efeitos do disposto no presente Código, considera-se administrador ou

gerente de facto quem, desprovido de nomeação formal regular ou carente de título de

administrador ou de gerente válido, atue, de forma positiva e acentuada, no círculo de

funções típicas de administração ou de gerência, com a vontade e intencionalidade de

agir nesse sentido, beneficiando da autonomia própria do administrador ou gerente,

de forma sistemática e continuada e com a complacência dos sócios e/ou dos restantes

administradores ou gerentes.”

Efetivamente, este protótipo normativo não é mais do que a transposição

para a letra da lei, do conjunto de requisitos cumulativos que descrevemos

anteriormente. Cremos que desta forma, estaria garantida uma descrição

suficientemente precisa do conceito, asseverando que o administrador de facto de

jure se manifestasse corretamente como uma mais valia para o direito societário.

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VASCONCELOS, Pedro Leitão Pais de – A Preposição, 2ª edição, Coimbra: Almedina,

2018.

Page 79: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO ......uma sociedade comercial por quotas, ao conteúdo de uma letra de câmbio 1. 1 Por letra de câmbio entende-se um documento constitutivo

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Jurisprudência Utilizada

Supremo Tribunal de Justiça, de 23-set.-2008 (Azevedo Ramos), Proc. 08A2239;

Supremo Tribunal de Justiça, de 16-mai.-1991 (Pereira da Silva), Proc. 080549;

Supremo Tribunal de Justiça, de 23-set.-09, (Salvador da Costa) Proc. 04B2716;

Supremo Tribunal de Justiça, de 2-jun.-15, (Hélder Roque), Proc.

505/07.2TVLSB.L1.S;

Tribunal da Relação de Coimbra de 10-fev.-15, (Isabel Silva) Proc.

164/05.7TBVLF.C2;

Tribunal da Relação do Porto, Proc. nº 604/04.2TBMMV-A.C1, de 29-mai-17,

relatado por Jorge Arcanjo;

Tribunal da Relação de Lisboa, 25-nov.-2011 (Maria Manuela Gomes), Proc.

1062/2001.L1-6;