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Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Mestrado em Estudos de Teatro
Ecos de Vanguarda
Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias
Eunice Lopes Tudela de Azevedo
2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ESTUDOS DE TEATRO
Ecos de Vanguarda
Um esboço para uma compreensão das novas dramaturgias
Eunice Lopes Tudela de Azevedo
Dissertação orientada pela Prof. Vera San Payo de Lemos e apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para a obtenção do grau de Mestre em estudos de Teatro
2012
Resumo
As novas dramaturgias como um afastamento radical em relação ao teatro dramático,
serão, juntamente com uma abordagem seletiva da vanguarda histórica, os focos
centrais das páginas que se seguem. A viagem que se realizará através dos vários
movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX, pretende salientar as
respetivas contribuições para a formação de elementos característicos das novas
dramaturgias.
Com o auxílio da produção teórica de Hans-Thies Lehmann, far-se-á uma
incursão pelas mais variadíssimas concretizações das novas dramaturgias, de maneira
a definir os seus traços principais e de que forma eles se reportam à vanguarda, bem
como a sua aplicação prática em espetáculos contemporâneos. Parte-se de uma breve
análise da Poética de Aristóteles, enquanto texto fundador do drama; um conceito
essencial para levar a cabo o confronto entre teatro dramático e teatro pós-dramático,
para uma melhor caracterização deste último.
Palavras-chave: vanguarda, pós-dramático, novas dramaturgias, teatro
contemporâneo.
Abstract
The main concerns of the present dissertation are the new dramaturgies and their
radical demarcation when it comes to dramatic theatre, as well as a selective approach
to the historical avant-garde that aims at underlining its possible contribution to the
formation of elements that are distinctive of the new dramaturgies.
With the aid of Hans-Thies Lehmann's theatrical theory, an incursion through
the vast array of possible embodiments of these new dramaturgies will be attempted
in a way that allows one to define their most bold stylistic traits and how they can be
traced back to the experimentation of the avant-garde. An analysis often accompanied
by practical contemporary examples of how these traits are applied in today's theatre
will be attempted as well. Our journey begins with a brief presentation of the dramatic
principles enunciated in the pages of Aristotle's Poetics that prove themselves
essential to the comparison between dramatic and postdramatic theatre in an effort to
best describe the latter.
Key-words: avant-garde, post-dramatic, new dramaturgies, contemporary theatre.
Agradecimentos
Queria agradecer, antes de mais, a paciência, a disponibilidade e a
generosidade da Prof. Vera San Payo de Lemos, que tão bem me acompanhou neste
percurso. Deixo, aqui, uma palavra de agradecimento, também, à Prof. Maria Helena
Serôdio, com quem dei os primeiros passos na descoberta do Teatro e cujo rigor,
competência e conhecimento tanto contribuíram para o momento em que hoje me
encontro.
Não poderia, também, esquecer a minha segunda casa, a Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, espaço de crescimento por excelência, e a todos aqueles
que, de alguma maneira, contribuíram para a minha formação, em especial o Prof.
José Pedro Serra e o Prof. Joaquim Manuel Magalhães, figuras fundamentais no meu
percurso académico.
Por último, mas não menos importante, agradeço a meu pai e minha mãe, pela
liberdade e respeito concedidos à escolha do meu próprio caminho, pelo apoio — da
mais variada natureza —, pela dedicação, pela paciência inabalável e pelo constante
esforço sem o qual nada disto seria possível.
Theatre was and is searching for and
constructing spaces and discourses
liberated as far as possible from the
restraints of goals (telos), hierarchy and
causal logic.
Hans Thies-Lehmann
Índice
Introdução 7
Cap. I — Fundações do Drama: A Poética 11
Cap. II — A Vanguarda 21
I. Vanguarda e Modernidade 21
II. Ubu Roi 23
III. O Futurismo Italiano 28
IV. O Caso Russo 40
1) Futurismo Russo 40
2) Outubro Teatral 46
3) Agit-prop e Auto-ativismo 87
V. DADA 105
VI. Antonin Artaud 113
Cap.III — Novas Dramaturgias 121
Conclusão 135
Bibliografia 139
7
Introdução
A presente dissertação pretende ser uma espécie de esboço para um panorama
explicativo das novas dramaturgias, construído através da exposição de alguns dos
seus traços mais marcantes e não tanto uma exploração exaustiva e absoluta das
manifestações do pós-dramático no teatro contemporâneo, tarefa que seria, de certo,
impossível em tão reduzido número de páginas.
O termo pós-dramático utilizado por Hans-Thies Lehmann, na sua obra
Postdramatisches Theater, para apelidar as novas manifestações teatrais que vêm
surgindo desde o final dos anos sessenta apresenta-se um tanto restritivo e com uma
dimensão negativa dada pela utilização do prefixo "pós", uma vez que este transmite
uma ideia de negação e rutura radical com o passado dramático do teatro, facto que
não corresponde à realidade. O próprio autor de O Teatro Pós-dramático sente uma
necessidade de especificar a natureza do prefixo, quando declara que o termo não
pressupõe nenhuma negação cega da tradição teatral, mas antes uma prática que
pretende ir para além do dramático, mas que mantém, frequentemente, uma ligação
8
com essa dimensão mais convencional, ainda que não seja para dele se distanciar.1
Devido a esta possibilidade de equívoco, mas também por ser uma nomenclatura
mais abrangente no que toca às possíveis realizações de um teatro cujo cerne não é
mais o drama, o termo "novas dramaturgias" é aqui preferido em detrimento do
"pós-dramático". A obra de Lehmann será encarada, nas próximas páginas, como
uma base extremamente útil para a elaboração do roteiro das novas dramaturgias, o
que não implica que a autora da presente dissertação subscreva inteiramente as teses
desenvolvidas pelo teórico alemão, que se apresentam, por vezes, um pouco rígidas
na sua aplicação a um tema que é, por natureza, bastante livre e camaleónico e, por
isso, difícil de compartimentar em conceitos fixos.
A presente incursão pelas novas dramaturgias pretende não só dar a
conhecer melhor esta realidade, ilustrando, sempre que possível, a sua realização
prática com exemplos, tanto nacionais como estrangeiros, mas também abordar o
seu relacionamento com as experimentações teatrais levadas a cabo pela vanguarda
histórica. Este momento de afastamento em relação ao passado dramático do teatro
será abordado com vista a uma análise da extensão da influência que os movimentos
de vanguarda tiveram na construção das novas formas da arte do palco. Contudo, ao
abordar as vanguardas e a rutura que elas iniciaram é necessário ter presente que
nem todas as inovações que com elas surgiram têm um caráter completamente
original, uma vez que são conhecidas as influências da Commedia dell'Arte, dos
mistérios medievais ou do teatro isabelino, bem como de outras culturas para além
da ocidental. Digno de nota é, também, alguma divergência em relação ao
radicalismo dos manifestos produzidos pelos vários movimentos no que toca à
realização teatral, uma vez que não apresentaram experimentações tão
1 Cf. Hans-Thies Lehmann, Postdramatic Theatre, Oxon, Routledge, 2009, pp.26-27.
9
profundamente radicais como seria de se esperar, visto que frequentemente se
identificava ainda uma matriz dramática em algumas das concretizações teatrais da
vanguarda. De fora da análise da pré-história das novas dramaturgias ficarão, por
uma questão de economia de espaço físico e de restrição de objeto de estudo,
figuras influentes como Edward Gordon Craig, Erwin Piscator ou Bertolt Brecht,
bem como o Teatro do Absurdo ou o Surrealismo que, mesmo constituindo este
último parte integrante da vanguarda histórica, não teve grande expressão prática no
campo teatral, pelo que o ponto de contacto mais próximo da estética surrealista
será Artaud.
Para dar início a esta reflexão será necessário, num primeiro momento,
definir, de forma sumária, em que consiste o teatro dito dramático, tratado como
ponto de partida através da análise da Poética de Aristóteles, no primeiro capítulo
da presente dissertação, de forma a servir de termo de comparação para melhor
definir o objeto de estudo das próximas páginas. Segue-se um segundo capítulo,
construído cronologicamente, em que se aborda a vanguarda histórica, começando
pela sua ligação com a modernidade, procedendo, depois, à exposição dos
movimentos com maior expressão teatral que a constituíram — o Futurismo Italiano
e o caso russo, que compreende não apenas o Futurismo, mas também as várias
experimentações que se seguiram à Revolução de Outubro, e o Dada —, bem como
à abordagem da prática teatral e reflexão estética de Alfred Jarry e Antonin Artaud.
Alfred Jarry é destacado por Ubu Roi, considerado por muitos como o primeiro
espetáculo de vanguarda, devido à sua natureza profundamente disruptiva em
relação ao teatro convencional, e Artaud é referido principalmente pelos seus textos
teóricos em que este expressa o seu desejo de ver realizado um teatro livre da
estrutura empedernida do drama ocidental, fruto de um teatro que havia esquecido a
sua especificidade. O teatro artaudiano seria completamente pensado a partir da
10
dimensão do espetáculo, que se construía com uma matriz sensorial — não racional
como o drama logocêntrico — que envolvesse por completo o espectador de forma
a abalá-lo por meio da saturação dos seus sentidos.
O terceiro e último capítulo, parte de uma definição sumária do teatro
dramático, bem como de uma breve síntese da rutura trazida pela vanguarda, para
chegar ao tal esboço que pretende servir de base para a análise das transformações
trazidas pelo abandono do texto como cerne do teatro. A partir das alterações
salientadas pretende-se compreender quais as principais consequências da
desconstrução da hierarquia do dramático que se manifestaram ao nível do estatuto
do espectador, do papel do ator, e dos elementos que compõem o espetáculo teatral
— o espaço, a cenografia, a sonoplastia, a iluminação, o texto e a linguagem cénica
— , bem como salientar a influência das novas tecnologias e meios de comunicação
e de como elas se articulam com a cena.
As possibilidades de aplicação do pós-dramático à realidade do espetáculo
são incontáveis. O desaparecimento do jugo literário abriu todo um novo mundo
que pressupõe uma liberdade quase total para a conceção e produção de espetáculos,
para a descoberta de novas formas de receção do momento teatral, para a revisitação
de textos clássicos, para o trabalho do ator, do encenador, e até do autor. Constitui-
se, assim, uma abertura notável, num momento em que o Teatro encontrou um
amplo espaço para além da rigidez da razão, que culmina na oportunidade de este se
reinventar, de se reconstruir como bem entende. As novas dramaturgias constituem,
de certa forma, um retorno do Teatro à sua infância, momento em que, saído de uma
dimensão cerimonial, o seu cerne era ele mesmo.
11
Capítulo I
Fundações do Drama: A Poética
Na sua vasta obra, Aristóteles tratou de temas tão diversos quanto física e retórica
ou música e política. Alguns desses temas estavam intrinsecamente ligados à pólis,
como é o caso do drama, cerne da Poética, obra central deste capítulo. A reflexão
presente na obra nasce após o século de ouro da tragédia ática, sendo posterior à
representação dos grandes textos dramáticos da Antiguidade e, como tal, retira delas
as características que definem o drama, não estabelecendo, a priori, o paradigma
sobre as quais elas se baseiam, não apresentando, portanto, uma natureza
normativa2. Contudo, com o passar dos séculos, a Poética acabou por dar origem a
tratados normativos, estabelecendo regras que se empederniram com as inúmeras
leituras e releituras do texto feitas pela Renascença e classicismo francês.
Nesta obra em particular, Aristóteles propõe-se tratar da
2 Cf. L'Esthétique Théâtrale, Catherine Naugrette, Armand Colin, Paris, 2000, p.89.
12
(...) arte poética em si e das suas espécies, do efeito que cada uma
destas espécies tem; de como se devem estruturar os enredos, se se pretender
que a composição poética seja bela; e ainda na natureza e do número das suas
partes. E falaremos igualmente de tudo o mais que diga respeito a este
estudo, abordando, naturalmente, em primeiro lugar, os princípios básicos
(ARISTÓTELES 2007: 37).
Os princípios básicos referidos pelo autor são, nomeadamente, a mimesis e a
katharsis, uma vez que o primeiro constitui o fenómeno através do qual o drama é
possível e o segundo o seu objetivo último e extraliterário, já que uma tragédia apenas
se torna completa fora de si mesma, ao provocar no seu espectador ou leitor esse
sentimento de purificação.
Aristóteles não foi o primeiro a abordar o tema da mimese, uma vez que Platão
já havia introduzido o conceito na República — a propósito da questão da presença dos
poetas na sua cidade perfeita e se esta seria ou não nociva para a ordem pública e boa
formação dos cidadãos — embora de uma forma bastante diferente daquela que
podemos encontrar na Poética. Para Platão, a mimese não é mais que uma simples
imitação sem technè, "duas vezes mais distante do princípio ordenador da realidade"
(SERRA 2006: 107) — a Ideia —, presente apenas nos casos em que o poeta se
fragmenta e dissimula a sua própria voz assumindo a pele de outras personagens,
fazendo crer ao leitor/espectador que não é ele, mas um outro que lhes fala. Deste
modo, para Platão, nem toda a produção poética tem por base a mimesis, uma vez que
aquela pode ser levada a cabo também por meio de diegesis, ou seja, através da
narração simples, em que o poeta assume a sua voz quando narra os acontecimentos,
evitando a multiplicidade. A mimese é, assim, apresentada na República com uma
13
conotação negativa3, uma vez que se afasta da verdade — tão cara a Platão,
contrariamente a Aristóteles que prefere a constante presença da verosimilhança — já
que pode dificultar a boa formação dos jovens quando o objeto de imitação não é de
índole superior e deturpar a noção do real dos cidadãos, algo que não vemos no
pensamento de Aristóteles, pois reabilita o conceito e, consequentemente, a produção
artística que dele nasce.
Para Aristóteles, a mimese não é uma simples cópia do real e a poesia não é
uma atividade desprovida de technè, mas antes uma obra produzida por meio de um
verdadeiro conhecimento aplicado. Contrariamente ao pensamento de Platão, a mimese
é, na Poética, apresentada com um fenómeno natural4, inseparável da natureza
humana, através do qual o homem se faz homem, levando a cabo a sua aprendizagem,
mas também porque retira da mimesis um certo prazer. Aristóteles não faz a distinção
entre diegesis e mimesis, pois para este autor tudo é mimese, sendo esta última
considerada o fenómeno na base de toda a produção artística5.
Contudo, é feita a distinção entre modo, objetos e meios para efetuar a mimese,
que variam consoante a arte em questão. Entre os meios6 através dos quais se pode
realizar a mimese Aristóteles destaca "o ritmo, a melodia e o metro" (ARISTÓTELES
2007: 39), embora também possa ser levada a cabo por meio da cor, da imagem, do
som, etc. Relativamente ao objeto da imitação, Aristóteles destaca o homem em ação
— o objeto da mimese trágica por excelência —, ainda que, como já foi referido,
consoante a arte, este possa variar. No que toca aos modos7 de imitação o autor
distingue narração de representação, sendo esta última o modo identificado na mimese
trágica e o primeiro o modo através do qual nasce a epopeia.
3 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p.135 4 Cf. Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.42. 5 Cf. ibidem, p.38. 6 Cf. ibidem, p.39 7 Cf. ibidem, p.40
14
A mimese é, portanto, um fenómeno natural de representação do real através do
qual é possível a produção artística, baseando-se num jogo de semelhança e
dissemelhança com a realidade. É através da mimese que o poeta forja um novo
universo, uma realidade forjada num plano distinto do do seu autor, e,
consequentemente, fictício para o espectador que necessita de ter a plena consciência
dessa dimensão ilusória, de modo a que experiencie a catarse.
Chegamos, assim, a outro aspecto essencial da teoria aristotélica: a catarse. Este
polémico conceito8 é encarado como o objetivo último da tragédia, devendo ser
experienciada pelo espectador ou leitor de modo a que neste ocorra a sublimação do
temor e compaixão. Estas paixões são provocadas através de uma identificação com os
heróis trágicos — indivíduos "que não se distinguem nem pela sua virtude nem pela
justiça; tão-pouco caem no infortúnio devido à sua maldade ou perversidade"
(ARISTÓTELES 2007: 61) — em quem o espectador reconhece os traços de uma
humanidade universal, apesar de serem indivíduos de condição nobre e elevada. Deste
modo, o espectador sente receio que desgraças semelhantes lhe possam acontecer, mas
também compaixão ao constatar que um ser, nem bom, nem mau, é vítima de um
"imerecido castigo que, ao abater-se sobre o nosso semelhante, revela a nossa
fragilidade" (SERRA 2006: 170). Assim,
A catarse da piedade e do terror implica, pois, uma aprendizagem
destas emoções; esta aprendizagem consiste numa clarificação, isto é, na
conveniente e apropriada adequação da piedade e do terror aos objectos
devidos, no tempo oportuno e de maneira correcta. A procura de uma
habitualmente justa, equilibrada e proporcionada atribuição de piedade e
8 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p.178
15
de terror às diversas situações é não só esforço educativo, como sinal de
sabedoria (SERRA 2006: 284).
Deste modo, a catarse apresenta-se como um fenómeno de efeito esclarecedor e
fomentador de equilíbrio, através do qual o espectador se liberta das paixões suscitadas
pelo desenrolar da acção, mas também como um fenómeno próprio da tragédia, visto
que é apenas a queda do herói trágico, a mudança da fortuna e o pathos que daí nasce
que provocam tais sentimentos no espectador.
A já referida distância reconhecida entre realidade e ficção, entre plateia e
palco, permite ao espectador viver de forma vicariante as emoções que, quando
realmente experienciadas, seriam demasiado dolorosas e difíceis de comportar
impossibilitando, assim a sublimação das mesmas e consequente aprendizagem, ou
seja, a catarse. Essa tão necessária distância, bem como a identificação anteriormente
referida, nasce da criação de um universo que apesar de real não o é, uma vez que é
apenas uma imitação trabalhada do real, o que significa que a catarse vem no
prolongamento da mimese trágica.
Vimos já que a catarse é um aspecto específico e fulcral ao género trágico do
qual Aristóteles apresenta uma definição um tanto vaga, embora revelando alguns
conceitos fulcrais:
A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa,
dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas
diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da acção e
não da narração e que, por meio da compaixão e do temor,
provoca a purificação de tais paixões (ARISTÓTELES 2007:
47-48).
16
Aristóteles apresenta, então, a tragédia como a mimese de uma ação, levada
a cabo por meio da representação e não da narração — reservada à epopeia —, que
deverá ser elevada e completa, introduzindo, assim, a importante unidade da ação
— a única realmente abordada por Aristóteles, uma vez que a 'Lei das Três
Unidades' provém de uma releitura da Poética feita por Castelvetro no séc. XVI. O
autor refere, também, a linguagem adequada ao género trágico, especificada como
"a que tem ritmo, harmonia [e canto]", e que deverá ser embelezada e composta
"por ‘formas diferentes’", isto é, deverá ser composta por "algumas partes
executadas apenas com metros, enquanto outras incluem o canto.” (ARISTÓTELES
2007: 48). Por último, Aristóteles faz referência ao objetivo da tragédia, a catarse,
atingida, como já foi referido, através da experiência de sentimentos como o temor e
compaixão.
Relativamente à tragédia Aristóteles apresenta não apenas as suas divisões
formais9, mas também, e principalmente, os elementos que a constituem: enredo,
caracteres, elocução, pensamento, espectáculo e música. Estas seis partes que
definem a tragédia estão hierarquicamente organizadas10, por importância, pelo
próprio autor, que dá clara primazia ao mythos — o enredo —, isto é, à estruturação
dos acontecimentos. O enredo é considerado a parte mais importante, uma vez que o
objeto imitado tem por base a ação humana, e é essa mesma ação que, por meio de
um desenrolar natural, provoca o temor e compaixão que conduzem à catarse, pelo
que é essencial que o enredo seja bem estruturado, de acordo com o princípio da
necessidade e verosimilhança. Estes dois conceitos chave da Poética são
constantemente frisados por Aristóteles, não apenas no que toca à estruturação dos
9 “(...) quantitativamente, as partes em que se divide a tragédia são estas: prólogo, episódio, êxodo, parte coral e, dentro desta, o párodo e o estásimo, que são comuns a todas as tragédias (...)." Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.59. 10 Cf. ibidem, pp.50-51.
17
acontecimentos, mas também em relação à construção dos caracteres que
constituem o segundo elemento mais importante da tragédia.
Aristóteles apresenta o carácter como "o que nos permite dizer que as pessoas
que agem têm certas qualidades" (ARISTÓTELES 2007: 48). Os caracteres são factores
importantes no processo de identificação do auditório com a cena, devendo ser bons,
mas não excessivamente, para que seja possível tal processo, mas também para que o
infortúnio que se abate sobre o herói trágico não cause repulsa no espectador, mas
antes compaixão e temor.
Em seguida é referido o pensamento, expresso pela linguagem, que "consiste
em ser capaz de exprimir o que é possível e apropriado" (ARISTÓTELES 2007: 50),
seguido da elocução que é apresentada como a capacidade de "comunicação do
pensamento por meio de palavras" (ARISTÓTELES 2007: 50). As duas últimas partes
que constituem o drama são, claramente, as mais negligenciadas por Aristóteles, uma
vez que o efeito da tragédia pode ser cumprido sem recurso ao espectáculo e música,
sendo esta última vista como "o maior dos embelezamentos" (ARISTÓTELES 2007: 50).
É na recusa da centralidade do opsis — o espectáculo — que Aristóteles funda
a superioridade do género trágico perante o épico, defendida nas últimas páginas da
Poética:
[A] tragédia, tal como a epopeia, mesmo sem nenhum
movimento, produz o seu efeito próprio: de facto, a sua qualidade é
visível através da leitura. (...) E depois, é melhor porque tem tudo que
a epopeia tem (já que até pode usar o mesmo metro) e tem ainda um
elemento que não é de menos importância, como a música [e o
espectáculo], através dos quais se produzem os mais vivos prazeres.
Por conseguinte, tem vivacidade tanto na leitura como nas
representações (ARISTÓTELES 2007: 105-106).
18
Embora não negue alguma importância à dimensão do espectáculo, aquela é
sempre relativa, já que nem sequer é considerada uma questão do domínio da arte do
poeta, mas antes do domínio do corego, que assume a responsabilidade da produção do
espetáculo.
No que toda à estruturação do enredo, Aristóteles insiste, como já foi aqui
referido, no princípio da verosimilhança e da necessidade, apresentado como o que
distingue o poeta do cronista, uma vez que este último relata as coisas como
aconteceram, estando preso aos factos, ao passo que o poeta relata o que poderia ter
acontecido, da forma mais credível possível, mesmo que isso signifique relatar algo
que não é verdade ou impossível. O importante é a verosimilhança (e não a verdade),
para que o espectador acredite no que está a ver e seja envolvido pelos acontecimentos,
tudo para que seja criado um sentimento de identificação com o herói trágico e com a
ação que este pratica, de modo a que sejam produzidos temor e compaixão, e,
consequentemente, a catarse.
O enredo deve ser formado por episódios que sigam uma sequência lógica de
causalidade, e que formam uma ação una e completa, composta apenas pelos
acontecimentos essenciais e de acordo com a verosimilhança, o que não deixa espaço
para o irracional não justificado11. Dentro do enredo Aristóteles distingue aqueles que
são simples "em que os acontecimentos vão progredindo lenta mas seguramente no
sentido da inversão da fortuna, sem surpresa nem paradoxo" (SERRA 2006: 152), como
se verifica em As Troianas, de Eurípides, daqueles que são compostos por ações
complexas, onde têm lugar a peripécia e o reconhecimento. Entende-se por peripécia "a
mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como costumamos dizer, de
acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade" e por reconhecimento "é a
11 Cf. Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p.96.
19
passagem da ignorância para o conhecimento" (ARISTÓTELES 2007: 57),
acontecimentos sempre regidos pela necessidade e verosimilhança.
Em suma, um enredo bem elaborado, para Aristóteles, é aquele que é
(...) simples de preferência a duplo, como pretendem alguns, e que
a mudança se verifique, não da infelicidade para a ventura, mas, pelo
contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade,
mas de um erro grave, cometido por alguém dotado das características que
defini, ou de outras melhores, de preferência a piores.” (ARISTÓTELES
2007: 61).
Aristóteles introduz, nesta passagem, um outro conceito de definição polémica
— uma vez que pode ser interpretado de várias formas12 —, que está na origem da
mudança da fortuna do herói trágico: hamartia. Entendido como um "erro grave"
(ARISTÓTELES 2007: 23), não numa acepção moral, mas antes no sentido de errar o
julgamento, de modo que "a queda não remete directa e primordialmente para uma
culpa que se desdobrava no castigo, mas resulta de um equívoco, de um erro de
cálculo, do qual o agente é mais vítima do que causador" (SERRA 2006: 165),
sublinhando, assim, a vulnerabilidade humana e a arbitrariedade da existência.
Para além da tragédia, Aristóteles aborda, também, a epopeia, em muito
semelhante à tragédia13, divergindo não só na extensão e capacidade de abarcar
múltiplos episódios — algo dificultado pela representação da tragédia —, como no
modo através do qual a mimese se constrói: a narração. Relativamente à comédia,
igualmente comparada com a tragédia, a distinção de géneros é feita apenas através do
12 Cf. Pensar o Trágico, José Pedro Serra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006, p.161 13 Cf. Poética, Aristóteles, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, pp.46-47.
20
objeto imitado, já que na comédia são representados "caracteres inferiores"
(ARISTÓTELES 2007: 46).
Apesar de centrada na tragédia, esta obra contém em si diretrizes aplicáveis a
todo o drama14, e não apenas ao da Antiguidade Clássica, já que se registam
repercussões desta obra durante séculos, mesmo quando o intuito consistia em quebrar
as formas tradicionais, como no caso de Brecht, que, mesmo querendo inovar, fê-lo por
oposição direta ao teatro aristotélico, forjando o seu teatro épico.
Em suma, os conceitos que importam salientar são a mimese aristotélica, a
definição de tragédia dada por Aristóteles e os elementos que a constituem, bem como
o fraco papel do espectáculo na sua composição, por oposição à importância dada ao
enredo que deverá ser bem estruturado, sempre de acordo com a necessidade e
verosimilhança. Esta extrema importância dada ao enredo traduz-se na centralidade do
texto, facto que resulta numa noção de teatro principalmente literária e não tanto
performativa.
14"S'il traite, dans La Poétique, surtout de la tragédie qui est, dans l'Antiquité, le genre dramatique majeur, la définition que nous citons ici est pertinente pour toute pièce de théâtre, quels que soient le genre et l'époque auxquels elle appartient." Les Grandes Théories du Théâtre, Marie-Claude Hubert, Armand Colin, Paris, 2008.
21
Capítulo II
A Vanguarda
I. Vanguarda e Modernidade
O termo vanguarda tem a sua origem na palavra avant-garde, de origem francesa,
utilizada para definir, num contexto militar, a linha da frente de uma ofensiva de
guerra, cuja responsabilidade consiste em liderar os restantes soldados para a
batalha. Aplicado ao campo artístico, o termo é usado, de forma semelhante, para
definir artistas e movimentos que, apesar de terem assumido várias formas,
constituíram sempre a linha da frente do progresso artístico, sendo, frequentemente,
recebidos, num primeiro momento, de forma hostil por um público representativo
dos costumes e valores que essa mesma vanguarda pretendia combater.
Apesar das inúmeras diferenças entre os vários movimentos de vanguarda,
como veremos no desenrolar do presente capítulo, é possível constatar tantos outros
pontos comuns. No entanto, parece haver um sintoma maior na base destes mesmos
22
movimentos: a modernidade entendida como um conceito sócioeconómico, definida
por Ben Singer da seguinte maneira:
(…) uma grande quantidade de mudanças tecnológicas e sociais
que tomaram forma nos últimos dois séculos e alcançaram um volume
crítico perto do fim do século XIX: industrialização, urbanização e
crescimento populacional rápidos; proliferação de novas tecnologias e
meios de transporte; saturação do capitalismo avançado; explosão de
uma cultura de consumo de massa e assim por diante. (SINGER 2004:
95)
Segundo Singer, com o processo de industrialização e desenvolvimento da
sociedade capitalista ocorreu um novo fenómeno de urbanização que levou à
concentração, nas grandes metrópoles, de um elevado número de pessoas, muitas
das quais gravitavam entre as indústrias e os espaços urbanos de lazer
experienciando toda uma série de novas sensações produzidas pela vida da cidade,
repleta de luzes, atrações, novos meios de transporte e um novo ritmo frenético até
então desconhecido. Esta profunda transformação do mundo e do quotidiano do
homem urbano, que se havia tornado "(…) marcadamente mais rápido, caótico,
fragmentado e desorientador (…)" (SINGER 2004: 96), ocorreu num curto espaço de
tempo, trazendo consigo a necessidade de desenvolvimento de um novo modo de
lidar com o mundo, bem como de o apreender e expressar. Foi, em parte, essa tarefa
que o movimento modernista tentou levar a cabo no campo artístico, onde, perante a
incapacidade das formas antigas face a um mundo radicalmente diferente, tentou
elaborar novas e surpreendentes formas de expressão.
A vanguarda, fenómeno heterogéneo, constituiu a dianteira do progresso
artístico no início do século XX, tendo como objetivo primeiro a destruição da
23
ordem burguesa — tanto ao nível dos valores sociais e políticos, como da expressão
artística — abrindo, assim, caminho ao desenvolvimento de novas linguagens,
novas formas e conteúdos que expressassem em pleno o novo estilo de vida e que
exercessem um poder transformador sobre todos os setores da sociedade. Apesar de
se confundir com o movimento modernista, não o esgota. Os modernistas, não
obstante erguerem um espelho crítico perante a sociedade, não intervinham
diretamente no domínio social ou político, nem promoviam, por meio da sua arte, a
transformação da ordem mundial. De forma contrastante, a vanguarda atacava
veementemente a ideologia dominante na sociedade burguesa, criticava as
convenções estéticas em vigor e subvertia as instituições de produção e distribuição
artísticas. Em suma, a vanguarda, constituída por pequenos grupos coesos de não
conformistas, integrava o movimento Modernista, mas devido à postura radical e
opções políticas adotadas pelos artistas que a compunham diferia, assim, da vertente
mais comercial da cultura Modernista (BERGHAUS 2005: 15).
II. Ubu Roi
Será, certamente, uma tarefa árdua, se não impossível, a tentativa de determinar
exatamente em que momento histórico teve início o movimento modernista —
expressão artística das transformações sociais e culturais trazidas pelo processo de
modernização — e a partir de que altura se começaram a fazer sentir manifestações
da vanguarda na arte do palco. Contudo, parece impossível ignorar a contribuição
de Alfred Jarry como um dos grandes pontos de partida da rutura.
Estreado em Paris, no Théâtre de l'Œuvre, dirigido por Lugné-Poë, em
dezembro de 1896, Ubu Roi contou com apenas duas representações — um ensaio
geral público no dia nove e a estreia no dia dez — perante um público de dimensões
24
reduzidas composto, em parte, por amigos do autor. Mesmo nestas circunstâncias a
reação à criação de Jarry foi, à semelhança de um motim, forte e maioritariamente
negativa desde as primeiras falas controversas, reação semelhante à provocada pelo
texto publicado no início desse mesmo ano, constituindo, assim, um dos maiores
escândalos do teatro francês. Ubu, "(...) uma estranha e violenta comédia inspirada,
sob uma perspectiva grotesca, no Macbeth shakespeariano" (MOLINARI 2010: 354),
de curta duração, apresentava algum dinamismo e economia de meios, centrando-se
no regicídio do Rei da Polónia levado a cabo por Mère e Père Ubu, personagens
movidas pela ganância e estupidez.
A produção de Jarry cobriu-se, logo nos primeiros momentos, de formas
profundamente anti-realistas, quando o próprio autor, envergando um figurino
extravagante, que evocava o estilo clown, se dirigiu diretamente ao público, em jeito
de prefácio, proferindo um discurso algo extenso num tom exagerado, através do
qual partilhou importantes linhas da sua estética teatral e informaçao sobre o
espetáculo. Alguma dessa informação revelava o local da ação — "As to the action
which is about to begin, it takes place in Poland -- that is to say, nowhere." (JARRY,
2003: 3) — que reiterava as qualidades anti-realistas do espetáculo, uma vez que era
constituído por uma tela onde havia sido pintado, de forma quase pueril, uma
mistura de espaços interiores e exteriores — sendo possível, nestes últimos, notar
uma clara mistura de regiões geográficas — onde muito pouco ou até mesmo nada
fazia lembrar a Polónia. Este cenário único concebido para ser simples, ter um
mínimo de adereços e alguma abstração de maneira a exigir ao espectador uma
participação mais ativa através da sua imaginação. Terá sido, de igual forma,
construído com o objectivo de se revestir de intemporalidade e universalidade,
combatendo, assim, o realismo de palco, bastante comum no teatro de então. No
combate ao realismo salienta-se também a entrada e saída em palco das
25
personagens, que ocorria através de uma lareira, bem como a marca de mudança de
cena levada a cabo por cartazes trazidos por um personagem, —"'Father time
figure" (BERGHAUS, 2005: 26) — trajado de um negro formal. A economia de
meios cénicos contagiou também o número de personagens, uma vez que Jarry
utilizava um único ator como representante de um grupo — um soldado em vez de
um exército inteiro —, outro aspecto que, juntamente com a música, combatia o
realismo. A banda sonora, com ecos de feira, composta por Claude Terrasse, fora
produzida apenas por um piano e alguma percussão, contrariamente à orquestra
inicialmente pretendida.
Entre personagens representadas por atores reais, com uma dicção peculiar,
envergando máscaras e movimentando-se de forma alusiva à marioneta,
encontravam-se várias figuras relacionadas com o universo burguês — magistrats e
financiers —, que no terceiro acto transformar-se-iam em autênticas marionetas. Os
figurinos, grotescos e pueris, reforçavam a linha anti-realista, não correspondendo
muitas vezes à boa caracterização dos personagens, apresentando-se estes em vestes
exageradas e excêntricas, como era o caso do próprio Père Ubu que, "com uma
túnica cinzento-aço e um chapéu de côco na cabeça" (MOLINARI 2010: 354), se
assemelhava, segundo as ilustrações originais, a uma esfera gigante da qual
brotavam os membros de Firmin Gémier, ator principal.
Jarry procurou sempre o escândalo e formas de provocar um efeito de
choque no público, algo construído em Ubu Roi pela convergência de todos os
elementos do espetáculo, mas dado principalmente pelo tratamento subversivo da
linguagem. Foi precisamente o jogo da linguagem —'Merdre!' (JARRY 2002: 29) —
que despoletou a forte reação do auditório, uma vez que, a ligeira dissimulação do
termo tabu não foi suficiente para o mascarar. O jogo mantém-se ao longo de toda a
peça em que Jarry desconstrói a linguagem, ignorando regras de ortografia e
26
brincando com as palavras em detrimento da racionalidade, agrupando-as mais pela
sua dimensão sonora do que pela sua capacidade de produtora de sentido (HUBERT
2008b: 161).
Encontramos refletido em Ubu Roi o programa estético de Jarry que prduzia
um teatro total, onde o jogo com os sentidos ocupava um lugar cimeiro em
detrimento da presença do texto. Entre essas opções estéticas — que serviram,
posteriormente, de inspiração a muitos artistas de vanguarda — contam-se "(...) a
violenta agressividade contra o público, o absurdo, o simbolismo sumário, o
grotesco violento ao ponto de se tornar trágico, a dissolução da linguagem, repleta
de neologismos e de expressões sem sentido, a crueldade, a redução da cenografia a
poucos elementos indicativos." (MOLINARI 2010: 354)
A sua conceção estética assentava principalmente, como já foi referido, num
antirealismo marcado15, presente em todas as componentes do espetáculo, uma vez
que Jarry pretendia revitalizar um teatro que ele julgava esgotado pelas formas
convencionais do teatro burguês, encarado então como o papel químico do
quotidiano. Este combate ao realismo encontrava-se presente na cenografia por
meio da simplicidade, uma vez que esta não deveria ser elaborada, antes meramente
sugestiva, para que fosse transmitido ao espectador apenas o essencial do
espetáculo. A presença de elementos cénicos apenas alusivos abriam espaço à
participação ativa do espectador, já que este poderia permitir que a sua imaginação
corresse livremente, bem como refletir na cena a sua subjectividade interpretando-a
como preferisse, pois Jarry não pretendia construir bloqueios à dimensão criativa do
público, nem torná-lo num mero consumidor passivo dos produtos da indústria
teatral. 15 "Cette transformation simultané de l'espace scénique et du personnage, opérée par Jarry, bouleverse la nature
de l'illusion. Le théâtre ne cherche plus à reproduire la réalité (...). Il représente crûment la condition humaine de
façon burlesque." Marie-Claude Hubert, Le Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 163.
27
A sua posição face ao ator contrariava o estatuto de estrela do mesmo, que
permitia que ao ator manipular o texto e o espetáculo em proveito próprio. Jarry
pretendia submetê-lo à visão artística do encenador, mas também do autor do texto,
atribuindo-lhe uma importância menor. O ator deveria trabalhar de forma mecânica,
física, com um tom monótono que contrastaria com os seus gestos expressivos,
pondo, deste modo, a tónica na comunicação não verbal, sendo, assim, influenciado
pelo teatro de marionetas. A utilização da máscara seria também importante, bem
como um aspecto que reforçaria o forte peso da expressão física em detrimento de
uma representação mais focada no aspecto psicológico e de expressão emocional,
assemelhando-se, assim, ao trabalho que Meyerhold desenvolveu com os seus atores
décadas mais tarde.
Também o conteúdo do seu teatro diferia em muito do teatro burguês, bem
como as formas através das quais era expressado. Jarry não optava pela linearidade
narrativa, nem pela psicologização dos personagens, muito menos abordava
assuntos contemporâneos ou trivialidades do quotidiano. Pretendia tratar tópicos
universais de uma forma intemporal e abstrata.
Todos os esforços de Jarry convergiam para um objetivo claro de
desconstrução do teatro dominante: um teatro burguês, estrangulado por convenções
ultrapassadas e esgotado num realismo psicológico, produto de uma indústria que
procurava mais lucro do que expressão artística. Ubu Roi foi orquestrado como uma
bomba que deveria ser atirada a um público para quem o teatro constituía apenas um
espaço de diversão superficial e ostentação. Assim, Ubu tornou-se o símbolo da
estupidez burguesa nos mais variados domínios (STYAN 2004a: 49), facto que
justifica o enorme impacto do espetáculo no século que o seguiu. A sua importância
fora também alimentada pela reação do público e da crítica que, ao produzir duras
apreciações sobre o espetáculo, propagaram a onda de escândalo por toda a élite
28
parisiense (BERGHAUS 2005: 26). A sua popularidade ultrapassou em pouco tempo
as fronteiras francesas, dando a conhecer Jarry e o seu ataque aos valores burgueses
a todos os centros culturais do velho continente. Na Itália, Filippo Tomaso
Marinetti, ao tomar conhecimento do escândalo, entrou em contacto com o autor do
espetáculo, com que manteve correspondência, chegando mesmo a conhecê-lo
numa das suas idas a Paris. Contudo, o reconhecimento da influência de Jarry não se
esgotou no Futurismo de Marinetti, já que foram vários os registos de homenagens
ao seu trabalho, como a que lhe prestou Antonin Artaud, em 1926, juntamente com
Roger Vitrac, com a fundação do Teatro Alfred-Jarry, e Eugène Ionesco, com a
criação do Collège de 'Pataphysique, em 1948.
Ubu Roi é, deste modo, justamente considerado como o primeiro espetáculo
de vanguarda16, tendo libertado o teatro dos grilhões da convenção burguesa. Ainda
que não tenha proposto nenhuma alternativa completa, viável e concreta, para a
formação de novas convenções, certamente terá aberto caminho para uma série de
experimentações levadas a cabo nas primeiras décadas do século XX e sobre as
quais nos debruçaremos nas próximas páginas.
III. O Futurismo Italiano
Alimentados pelas já referidas drásticas mudanças socioculturais e tecnológicas do
fim do século XIX, muitos dos movimentos de vanguarda não só defendiam o
progresso tecnológico, como cantavam a glória das máquinas e o fervor da guerra,
como Filipo Tomaso Marinetti o fez, no primeiro manifesto futurista de 1909,
intitulado Manifesto do Futurismo, que, impresso nas páginas do Le Figaro, obteve
16 Cf. Marie-Claude Hubert, Le Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 161.
29
reações fortes e abalou a boa sociedade parisiense espalhando-se rapidamente pela
Europa como força agitadora.
Pouco tempo após a publicação do primeiro manifesto, Marinetti levou à
cena o primeiro espetáculo futurista — de influência jarryesca —, no Théâtre
L'œuvre de Lugné-Pöe, onde havia sido estreado, anos antes, Ubu Roi. O espetáculo,
Roi Bombance, assumia os contornos de uma sátira de revolução e democracia17. A
produção gerou algum escândalo embora tenha assumido formas menos radicais que
o expectável quando confrontada com as ideias do manifesto de 1909 onde, de
forma violenta, era proclamada a necessidade de uma nova arte, mais adequada ao
jovem mundo moderno, dedicada à velocidade e à luta, às massas, às máquinas e
fábricas (CARLSON 1993: 339).
Foi após o contacto com Jarry e a recusa do seu estatuto de poeta simbolista
que Marinetti, influenciado pelas características mais marcadas da vida moderna —
simultaneidade, dinamismo e velocidade — teve o impulso do Futurismo: o
primeiro movimento organizado de vanguarda e também um dos mais radicais, uma
vez que bebeu do termo original — avant-garde — o seu caráter bélico. Com a
Itália como seu berço e Paris como rampa de lançamento, este movimento
vanguardista, que pretendia ter repercussões em todos os setores da sociedade
através da disseminação artística, considerava-se pioneiro numa guerra contra a
tradição.
Marinetti elegera o teatro como campo de batalha e veículo por excelência
para a propagação da mensagem futurista, não apenas por se encontrar já inserido
no meio como crítico e dramaturgo, mas principalmente pela possibilidade de
intervenção imediata, pelo cariz público e popularidade do meio, que poderia,
17 Cf. RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the Present, London, Thames&Hudson, 2010,
13.
30
através da libertação do espectador da realidade do quotidiano, ter um efeito
libertador na sociedade em geral. (BERGHAUS 2005: 31). Contudo, os Futuristas —
à semelhança dos Dadaístas e Surrealistas — não foram nem grandes teóricos, nem
grandes técnicos do teatro, como refere Molinari18, revestindo sempre as suas
produções de um carácter amador e experimental.
O manifesto, texto convencionalmente político, foi por estes artistas
italianos utilizado para dar a conhecer, de forma original e agressiva, o programa do
movimento que não se esgotava no meio artístico, como já foi referido, havendo,
também, manifestos de cariz político, como é o caso do Manifesto do Partido
Político Futurista (1915), que mostrava ligações ao fascismo. Contudo, os
manifestos mais relevantes no que toca à actividade teatral dos futuristas são o
Manifesto dos Dramaturgos Futuristas, de 1911, e autoria de Marinetti, Teatro de
Variedade, de 1913, também de Marinetti, Manifesto do Teatro Futurista Sintético,
de 1915, produzido por Marinetti em conjunto com Emilio Settimelli e Bruno Corra.
O teatro dominante de então, apelidado de passadista por Marinetti e seus
companheiros, era um mero duplicado do quotidiano, feito de realismo psicológico
e linearidade narrativa; espelho da sociedade burguesa e produto de uma indústria
de entretenimento movida muito mais pelo lucro do que pela expressão artística, ao
qual o público acorria, num desfile de ostentação e vaidade, pela dimensão social do
evento. Tal como acontecera com o programa estético de Alfred Jarry — e de todos
os movimentos de vanguarda —, o teatro futurista formou-se por oposição a este
teatro de digestão. Abertamente influenciado pelo teatro de variedades, Marinetti
considerava-o o mais adequado à sensibilidade moderna, não apenas pelas formas e
conteúdos do espetáculo, ou pela maneira como o espectador era chamado a
colaborar, mas também por ser um produto da modernidade eletrificante no qual
18 Cf. Cesare Molinari, História do Teatro, Lisboa, Edições 70, 2010, 365.
31
Marinetti não reconhecia "tradição alguma, nem mestres, nem dogmas"
(BERNARDINI 1980: 119). Contudo, é possível reconhecer no teatro de variedades
a influência do passado, embora extremamente variada e composta principalmente
por formas menores de entretenimento19.
Radicalmente distinto do teatro passadista, a tónica do teatro de variedades
encontra-se no espetáculo, facto bastante presente na ausência de enredo lógico,
mas também no espaço dado ao improviso do ator no contacto com o público. Com
base na Fisicofolia de que fala Marinetti20, o teatro de variedades compõe-se através
de uma série de números diferentes, — desde acrobacias, a números musicais,
passando pelo clowning e dança, etc. —, onde reinavam a energia e o movimento,
postos em cena de forma bastante dinâmica e breve, mas também absurda. O teatro
de variedades tinha como objetivo primeiro a distração da plateia através da
ativação de quase todos os seus sentidos, trabalhando incessantemente na inovação
e originalidade dos seus actos, de forma a conseguir produzir o espanto no
auditório. Esta interação entre o palco e a plateia, que proporcionava o desenrolar da
ação não apenas no palco, mas por todo o auditório, agradava bastante os Futuristas,
já que pretendiam banir das salas de espetáculo o mero voyeur. A utilização do
cinematógrafo em alguns dos números do teatro de variedades também apelava
bastante aos Futuristas, cuja sensibilidade vibrava com qualquer produto do
progresso técnico e reconhecia nessa utilização mais uma forma para cobrir o teatro
19 "Marinetti admired variety theatre for one reason above all others: because it 'is lucky in having no tradition,
no masters, no dogma'. In fact variety theatre did have its traditions and its masters, but it was precisely its
variety — its mixture of film and acrobatics, song and dance, clowning and 'the whole gamit of stupidity,
imbecility, doltishness, and absurdity, insensibly pushing the intelligence to the very border of madness' — that
made it an ideal model for Futurist performances." RoseLee Goldberg, Performance Art: From Futurism to the
Present, London, Thames&Hudson, 2010, 17. 20 Cf. Aurora Fornoni Bernardini, O Futurismo Italiano. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980, 123.
32
do muito desejado dinamismo, velocidade e simultaneidade contributivas para a
desconstrução de formas teatrais tradicionais.
Este espetáculo anti-académico, primitivo e ingénuo (GOLDBERG 2010: 17),
onde não havia espaço para personagens bem delineadas, criava aquilo que
Marinetti apelidou de "maravilhoso Futurista", composto por uma série de recursos
utilizados no teatro de variedades. Entre eles Marinetti destaca:
1) caricaturas possantes; 2) abismos do ridículo; 3) ironias (…); 4)
símbolos envolventes e definitivos; 5) cascatas de hilaridade irrefreável; 6)
analogias profundas entre a humanidade, o mundo animal, o mundo vegetal e
o mundo mecânico; 7) esforços de cinismo revelador; 8) enredos de frases
espirituosas, de trocadilhos e de adivinhações que servem para arejar
agradavelmente a inteligência; 9) toda a gama de riso e de sorriso para
distender os nervos; 10) toda a gama de (…) imbecilidades, parvoíces e
absurdos que impelem insensivelmente a inteligência até à beira da loucura;
11) todas as novas significações da luz, do som, do ruído e da palavra, com
seus prolongamentos inexplicáveis na parte mais inexplorada de nossa
sensibilidade; 12) um acúmulo de acontecimentos tramitados às pressas e de
personagens empurradas da direita para a esquerda em dois minutos (...); 13)
pantomimas satíricas instrutivas (…). (BERNARDINI 1980: 120)
Também no Manifesto do Teatro Futurista Sintético se encontra o elogio da
guerra e é reiterada a importância do teatro como veículo de propagação das ideias
futuristas devido à extensão do seu alcance junto da população italiana, no entanto, o
tópico principal do manifesto é a importância da síntese no teatro. Em oposição ao
demorado teatro passadista, os Futuristas queriam apresentar um espetáculo assente
na brevidade, de tal modo que propunham que a construção dos mesmos tivesse por
33
base "átimos": atos tão curtos que durariam apenas alguns segundos. Os Futuristas
pretendiam, assim, encenar em poucos minutos e com economia de linguagem e
movimentos, toda uma série de situações, ideias, sensações, factos e símbolos, sem
qualquer tipo de linearidade narrativa ou lógica de enredo, que formariam um
espetáculo altamente dinâmico e breve. Com estes átimos os Futuristas pretendiam
construir um espetáculo baseado, como escreve Bernardini, numa "(…) síntese de
contusão, de choque, cujo propósito era não embalar o espectador mas arrancá-lo,
com uma risada ou um safanão, de seu engodo, para pô-lo defronte da redução ao
absurdo da forma habitual de edificação ou de consolo veiculada pelo teatro"
(BERNARDINI 1980: 23). O dinamismo, brevidade e simultaneidade, que
constantemente reclamavam para o teatro, tinha como finalidade não apenas
desconstruir a convenção, mas também fazer frente à crise que se fazia sentir no
teatro desde o aparecimento do cinematógrafo, cujo carácter de novidade e
linguagem mais próxima da sensibilidade moderna o distanciava do velho teatro
passadista.
Referem, no mesmo texto, a apologia de um teatro sem técnica, ou seja, sem
o peso da tradição dramática que, na ótica futurista, se havia transformado, desde os
Gregos, num dogma empedernido e castrador da liberdade criativa do artista. Esta
renúncia à tradição está bem presente na negação de princípios aristotélicos, como a
verosimilhança, os caracteres bem construídos, a identificação do público com os
personagens, o desenvolvimento lógico de um enredo coerente21, mas também no
reconhecimento da distância da convenção em relação à realidade moderna. Este
teatro "atécnico" pretendia dar um espaço considerável ao improviso no contacto
com o espectador, uma vez que pretendia conseguir um maior envolvimento do
público no espetáculo — de modo a resgatá-lo da sua qualidade de voyeur — bem 21 Cf. ibidem, 180-181.
34
como revolucionar o estatuto do ator ao destruir a ribalta, submetendo-o, assim, ao
projeto do encenador ou do autor.
No Manifesto do Teatro Futurista Sintético é abordada, também, uma série
de formas próprias do teatro Futurista que deveriam substituir os antigos géneros
teatrais:
(…) Abolir a farsa, o vaudeville, a pochade, a comédia, o drama e
a tragédia, para criar no seu lugar, as numerosas formas do teatro
futurista, como: as saídas em liberdade, a simultaneidade, a
compenetração, o poemeto animado, a sensação encenada, a hilaridade
dialogada, a sensação encenada, a hilaridade dialogada, o ato negativo, a
saída em eco, a discussão extralógica, a deformação sintética, a aberração
científica, a coincidência, a vitrina... (BERNARDINI 1980: 23)
Estas formas descritas num estilo irreverente, próprio do manifesto que
pretende mais a agitação que o esclarecimento pleno, nem sempre tornam clara a
realidade prática do programa futurista, mas algumas delas tiveram expressão nas
experiências práticas do movimento podendo ser reconhecidas nos relatos das
serate22. Materializando a verdadeira inovação prática do movimento Futurista —
onde as fronteiras do teatro e performance se esbateram — as serate eram
apresentações públicas das principais ideias do programa futurista transmitidas
através das formas que haviam sido desenvolvidas por estes artistas. Estes
acontecimentos, que tinham lugar num edifício teatral convencional, consistiam
numa mistura de leitura de manifestos com a apresentação das criações artísticas —
22 As of 1910, the term 'Futurist serata' meant: presenting the key ideas of the Futurist movement in a large
theatre and offering the audience examples of how these principles could be translated into performative
language." Günter Berghaus, Avant-Garde Performance: Live Events and Electronic Technologies, New York,
Palgrave Macmillan, 2005, 31.
35
poesia, pintura, teatro e música — que emanaram dos princípios enunciados nesses
mesmos manifestos, constituindo, assim, não apenas um meio de propagação da
mensagem, mas também uma forma demonstrativa dos princípios práticos do
movimento. Em suma, as serate eram soirées literárias transformadas em veículo de
agressão da platéia, bem como dos valores burgueses e da convencionalidade
artística.
Contudo, uma serata não se esgotava no domínio artístico, já que o seu cariz
político era fortemente marcado. Os Futuristas prentendiam, através delas, atacar
todas as esferas da vida pública, combatendo em especial o culto do passado e as
forças sociais que o sustinham (BERGHAUS 2005:33), fazendo propaganda pelo
progresso tecnológico e pela ideologia militarista e nacionalista que defendiam. Foi
nestas soirées tumultuosas que os Futuristas forjaram um novo tipo de declamação,
uma que se caracterizava, principalmente, pela ilustração visual e gestual de textos
poéticos e teóricos, levada a cabo por declamadores preparados para enfrentar a ira
da platéia que, muitas vezes, respondia à provocação dos Futuristas de forma
agressiva, atirando, para o palco, não apenas palavras desagradáveis, mas também
projéteis de todo o tipo23.
A violenta rutura da ilusão teatral, a surpresa, a provocação da plateia e o
apelo à participação do público são recursos que marcavam presença já nas primeiras
serate e constituem as características principais dos espetáculos futuristas, cujos
objetivos primeiros consistiam na libertação do teatro do mercantilismo
estrangulador que se fazia sentir no meio dominante da altura, bem como do teatro
da convenção com séculos de existência e do jugo da moral burguesa. Para tal
23 Cf. ibidem, 33.
36
recorriam a uma série de elementos e inovações, começando por modificar o estatuto
do ator, do autor e do público.
Relativamente ao ator, os Futuristas pretendiam desfazer o preconceito da
ribalta e a sede de aplausos, de modo a que o seu trabalho se submetesse à
autoridade do autor, em vez de se reger pelas opções que o destacariam, muitas
vezes em detrimento do espetáculo (BERNARDINI 1980: 55). Esta alteração na
conduta do ator implica, também, uma mudança no estatuto do autor do espetáculo,
uma vez que lhe é dado maior controlo sobre o mesmo. Salienta-se, também, no que
toca ao autor, a promoção, pelos Futuristas, do
(…) desprezo pelo público, especialmente o desprezo pelo público
das primeiras apresentações, cuja psicologia podemos assim sintetizar:
rivalidade de chapéus e de toilettes femininas, - vaidade pelo lugar que
custou caro, que se transforma em orgulho intelectual, - palcos e plateia
ocupados por homens maduros e ricos, de cérebro naturalmente desdenhoso
e com digestão dificílima, que torna impossível qualquer esforço mental
(BERNARDINI 1980: 53).
Também recomendam, tanto ao autor como ao ator, que experienciem "a
volúpia de serem apupados"24, que, aliada ao já referido desprezo pelo público, se
traduz na libertação de ambos das expectativas deste último, para que possam criar
na absoluta independência e originalidade. No que toca ao público, Marinetti e seus
companheiros de movimento pretendiam que renunciasse ao seu convencional
estatuto de simples voyeur que procurava o teatro como lugar de ostentação e
digestão. No seu lugar, os Futuristas pretendiam um espectador resgatado da
realidade do quotidiano, ativo, pensante, colaborante e aberto a novas experiências. 24 Cf. Aurora Fornoni Bernardini, O Futurismo Italiano. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980, 55.
37
O reportório — radicalmente distinto do do teatro passadista — deveria
"reflectir alguma parte do sonho futurista", produto da vida moderna "exasperada
pelas velocidades terrestres, marítimas e aéreas, e dominada pelo vapor e pela
eletricidade". Deste modo, não deveria cair na habitual trama amorosa, nem na
"fotografia psicológica" ou reprodução da realidade quotidiana, muito menos
deveria basear-se em reproduções históricas (BERNARDINI 1980: 54). Deveria,
antes, servir o movimento com temas relacionados com a vida nos grandes centros
urbanos, com a realidade industrial e progresso tecnológico.
As formas do teatro Futurista construíram-se, principalmente, por oposição à
convenção aristotélica. A verosimilhança, a identificação do espectador com as
personagens, o enredo construído de forma lógica e progressiva, com a extensão
suficiente para se observarem os caracteres em ação apresentavam-se como aspetos a
combater. Os Futuristas queriam um teatro breve, repleto de dinamismo e variedade,
com espaço para o absurdo e recursos comuns a outras artes — como a utilização da
montagem cinematográfica ou clowning — bem como para a introdução da máquina
no espaço teatral. Também as personagens eram forjadas por oposição às do teatro
burguês, uma vez que não detinham profundidade psicológica, embora se revelassem
totalmente na ação, podendo "igualmente esgotar-se em simples gestos de valor
absoluto, ou não existirem de todo, permanecendo a ação entregue aos objetos"
(MOLINARI 2010: 357).
Relativamente à cenografia é importante citar o manifesto Cenografia
Futurista, de 1915, escrito por Enrico Prampolini, um dos principais cenógrafos do
movimento, que apresentou como a grande inovação Futurista no campo da
cenografia o distanciamento da bidimensionalidade constituída por panos de fundo
pintados, frequentemente de maneira realista. Prampolini pretendia enfatizar em
pleno o espaço cúbico do edifício teatral, explorando as potencialidades de um
38
cenário mecanizado e móvel, afastado da estética realista e complementado pelo
trabalho de luz, que o cobriria de uma diversidade cromática criadora de ambientes
adequados a cada cena. Como tal, Prampolini, no manifesto, declara:
Let's renovate the stage. The absolutely new character that our
innovation will give the theatre is the abolition of the painted stage. The
stage will no longer be a coloured backdrop but a colourless
electromechanical architecture, powerfully vitalised by chromatic
emanations from a luminous source, produced by electric reflectors with
multicoloured pares of glass, arranged, coordinated analogically with the
psyche of each scenic action (DRAIN 2003: 23).
Esta conceção dinâmica da cenografia levaria, segundo Prampolini, a uma
conceção de teatro pós-orgânico — de influência craiguiana — em que o ator seria
um elemento obsoleto, sendo substituído por um espaço completamente tecnológico
onde a luz seria, como já foi sugerido, um elemento crucial25. No entanto, este
projeto cenográfico nunca foi realmente aplicado pelos Futuristas — os
Construtivistas russos foram quem mais se aproximou da teoria de Prampolini —
uma vez que, frequentemente, apresentavam uma cenografia bidimensional baseada
na iconografia Cubista, onde o ator se movimentava como uma figura mecanizada
pelo trabalho do corpo estilizado e desfigurada pelos figurinos que o integravam no
projeto de encenação, impedindo-o, assim, de ser o elemento central.
Após uma breve análise do programa Futurista é clara a tónica posta no
espetáculo, em detrimento do texto, facto reiterado pela utilização do verso livre e
daquilo a que Marinetti chamou parole in libertà. Este recurso literário promovia o
25 Cf. Matthew Causey, Theatre and Performance in Digital Culture: From Simulation to Embeddedness,
London, Routledge, 2006, 86.
39
desrespeito gramatical e a utilização das palavras mais pela sua dimensão sonora e
gráfica do que pela produção de sentido, constituindo, assim, um meio de
desconstrução da linguagem. Note-se, também, o total desrespeito pelos textos
clássicos, que os Futuristas pretendiam encenar em poucos minutos, de forma
condensada ou servindo como base para a criação de novos textos construídos, por
meio da montagem, a partir de retalhos de obras canónicas, profanando a sacralidade
de textos aclamados, algo que então constituía fonte de escândalo, mas que na
atualidade é feito de forma relativamente pacífica. No Futurismo, o texto perde o seu
estatuto central, opção reiterada, também, pela apologia da originalidade absoluta e
improviso, já que os Futuristas admitiam construir os seus espetáculos no teatro.
Os Futuristas manifestaram, tal como muitos homens do teatro de vanguarda,
— como Piscator ou Meyerhold — a necessidade de um espaço próprio, "o grande
edifício metálico revestido por todas as complicações eletromecânicas"
(BERNARDINI 1980: 183), mais apropriado ao teatro que teorizavam. Contudo, como
tantos outros projetos que popularizaram nos seus escritos teóricos, os Futuristas não
chegaram a materializar este espaço por que ansiavam.
Em suma, o programa Futurista pretendia um teatro síntese: breve, ligeiro,
dinâmico, constituído por uma diversidade de formas, tanto originais como
emprestadas, — principalmente do teatro de variedades —, onde haveria lugar para
a participação do espectador, para a máquina e para a luminosidade moderna em
concordância com a sensibilidade das massas operárias. No entanto, apesar de se
situar em estreita relação com o seu tempo, a decadência do movimento Futurista
foi inevitável e fez-se sentir de forma mais marcada a partir de meados da década de
20, embora a Primeira Grande Guerra tivesse já afetado significativamente este
grupo de artistas — que defendia a guerra como um processo de seleção natural —
ao roubar alguns dos seus mais promissores membros. Os sobreviventes acabaram
40
por adotar estilos mais tradicionais e Marinetti aliou-se às forças fascistas italianas.
O impacto deste movimento — o primeiro movimento de vanguarda organizado —
no panorama artístico europeu do início do século XX, é impossível de negar, uma
vez que deixou como legado muitas das práticas utilizadas pelos movimentos que o
seguiram, tendo tido fortes repercussões que se fazem sentir ainda hoje. Contudo,
tiveram um impacto mais imediato, sendo inegável alguns pontos de contacto com
um outro Futurismo, que floresceu mais a oriente: o Russo.
IV. O Caso Russo
1) Futurismo Russo
Foi no seguimento da Revolução de 1905 — um movimento anti-governamental
desorganizado que esteve na base das mudanças sociais que só se efetivariam em
1917 — que a Rússia experienciou uma maior abertura do país, bem como uma
vitalidade inovadora do panorama artístico russo que levou à importante
transformação que fez de Moscovo um dos centros artísticos mais fortes do
Ocidente e parte integrante do circuito de intercâmbio cultural. Deste esforço de
renovação surgiu o movimento Futurista Russo — encabeçado pela expressão
pictórica seguida de perto pela expressão literária26 — que se dividiu em duas
formulações: o egofuturismo e o cubofuturismo.
O egofuturismo, fundado por Igor Severianin, em 1911, apresentava-se
como radicalmente diferente do Futurismo Italiano, mas também do seu
compatriota, o cubofuturismo. As criações de Severianin cobriam-se de formas
26 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002,
34.
41
decadentes e banais presas no século XIX (RIPELLINO 2002: 13). O cubofuturismo
— mais próximo do Futurismo Italiano, ainda que significativamente diferente —
fez-se sentir a partir de 1910, mas efetivou-se apenas em 1912 com o manifesto
Uma Bofetada no Gosto Público onde se apresentou como um acérrimo defensor da
completa renovação da arte russa; renovação, essa, que deveria ter repercussões a
nível social e político, ajudando ao combate, em todas as frentes possíveis, contra o
marasmo burguês.
Foi através do já referido manifesto que Mayakovsky, Khlebnikov, Burlyuk
e Kruchenykh apresentaram o programa básico do cubofuturismo. Nele
denunciavam um passado castrador da criatividade artística e pouco apropriado à
sensibilidade moderna. Estes jovens artistas pretendiam destruir as formas
convencionais de expressão artística e abrir caminho para a construção de novas
formas que levariam à renovação do panorama artístico. Para levarem a cabo esta
empresa renovadora começaram por atacar a linguagem, desconstruindo a
convenção e recusando formas antigas, rígidas e castradoras. É deste esforço de
desconstrução — semelhante à parole in libertà de Marinetti — que surge o ZAUM,
uma linguagem transmental cunhada por Kruchenyhk, baseada na preferência pela
sonoridade e grafia das palavras em detrimento da produção de sentido das mesmas.
Aplicada principalmente na produção poética, a sua presença na expressão
dramática não se fazia sentir de forma tão frequente, já que os Futuristas acabavam
por dar preferência à inteligibilidade do espetáculo. Contudo, um dos registos da sua
aplicação no palco encontra-se na ópera futurista de Kruchenyhk Vitória Sobre o
Sol, de 1913, fator que pode ter contribuído para a receção polémica da produção.
É impossível negar alguma influência do movimento de Marinetti na génese
do cubofuturismo, contudo é importante salientar que apesar da partilha de algumas
preferências — apologia do progresso técnico, colaboração entre artes e mistura de
42
expressões artísticas no teatro, preferência por formas menores como o circo e o
music-hall, recusa da convenção artística e valores sociais instituídos aliada a um
esforço de renovação dos mesmos, anti-realismo, etc. — estes movimentos diferiam
radicalmente em vários outros aspetos. As opõçes políticas, a visão da relação do
homem com a máquina, a posição que assumiam perante o fenómeno da guerra e
herança cultural constituíam os grandes pontos de divergência, uma vez que os
Futuristas russos — homens de esquerda e pacifistas — olhavam para um passado
mais distante em busca de inspiração para o seu trabalho hercúleo, não se limitando,
como os Italianos, a uma total e veemente recusa de tudo o que fora antes criado
pela humanidade.
A já referida ópera de Kruchenyh, Vitória Sobre o Sol, constituiu, em
parelha com a tragédia Vladimir Mayakovsky, de Mayakovsky, as primeiras e mais
importantes concretizações do programa teatral do movimento russo, apresentadas,
em São Petersburgo, entre 2 e 4 de Dezembro de 1913. Com libretto de
Kruchenykh, música de Matyushin e figurinos e cenografia de Malevich, Vitória
Sobre o Sol, uma ópera profundamente anti-realista, produto do desejo de
mecanização da sociedade e reveladora de uma forte antipatia pela ordem social
burguesa, surge ainda hoje na memória coletiva mais pela contribuição inovadora de
Malevich do que pelo trabalho dos seus companheiros. Foi nesta produção — alvo
de fortes críticas pelo público — que Malevich deu início à exploração das formas
geométricas puras, características do seu suprematismo futuro, apresentando um
cenário completamente abstrato e de influência cubista, como descrito por
Rudnitsky:
Malevich painted the backdrops utilizing pure geometric forms:
his renowned 'black square' appeared for the first time in one of the
43
sketches for this production alongside straight and curved lines, musical
notes, signs resembling question marks. There is no concern for top or
bottom, no allusion whatsoever to any particular place of action: the very
concept of 'place' in his scenery is disregarded. It simply represents a kind
of sombrely abstract background for the actor's performance
(RUDNITSKY 2000: 13).
Este cenário, tal como os figurinos futuristas de dimensões exageradas —
construídos a partir de cartão, mas realçados pelo trabalho de luz — cunharam o
estilo da produção, pois condicionavam os movimentos dos artistas levando a uma
movimentação próxima da marioneta27. As personagens apresentavam-se como
híbridos militarizados — meio máquinas, meio humanas — de carácter grotesco. O
absurdo, qualidade transversal a todos os elementos da produção, encontrava-se
com maior expressão no libretto, caracterizado, por Rudnitsky, não apenas como
pobre e primitivo, mas também desprovido de interesse e pouco refinado, tanto no
sentido como na linguagem, coberto de um energético e ruidoso debitar de discurso
cujo principal objetivo era camuflar o vazio textual (RUDNITSKY 2000: 12).
Também a composição musical, levada a cabo por Matyushin, não se destacava pela
positiva, continuando o registo desinteressante do texto de Kruchenykh.
Já a produção de Mayakovsky teve um sucesso superior, coincidente com a
qualidade do espetáculo, apresentando de forma igualmente anti-realista um texto
muito mais polido que o libretto de Kruchekykh. Esta tragédia, mesclada com
comédia, tinha por base temas muito semelhantes a Vitória Sobre o Sol e
apresentava a figura do poeta Vladimir Mayakovsky como personagem principal,
27 " (…) in Victory Over the Sun the actors wore papier-mâché heads half as tall again as their bodies, and
performed on a narrow strip of stage using marionette gestures to accompany their 'non-sense' words (…)."
Camilla Gray, The Russian Experiment in Art: 1863-1922, London, Thames & Hudson, 2007, 187.
44
sendo as restantes aparentes produções da sua imaginação, que gravitavam à sua
volta em enormes figurinos fantásticos. Estes figurinos, feitos de cartão de um lado
apenas, obrigava os atores a movimentarem-se sempre de lado, no proscénio,
virados para o público, de maneira a ocultar a unilateralidade dos figurinos,
constrastando, assim, com a figura vibrante do poeta que se representava a si
mesmo e se movia livremente sobre o palco, recitando e abordando diretamente o
público, transformando a produção num monodrama assente num grande monólogo
quebrado apenas por modelações no ritmo e entoação do discurso, recurso que
constituiu um dos grandes fatores de inovação da mesma, quebrando barreiras entre
lírica e discurso dramático.
Juntamente com os figurinos, Filonov concebeu uma série de painéis,
iluminados apenas em alguns momentos do espetáculo — prólogo e epílogo —, que
haviam sido pintados com cores vibrantes num estilo pueril e posicionados junto de
um pano de fundo de tecido cru, que serviram de cenário a esta produção mais
acessível à sensibilidade do público do que havia sido a criação de Kruchenykh e
Matyushin.
O teatro futurista russo forjou, assim, espetáculos com intuito renovador,
baseados em recursos que acabaram por ser incluídos, logo após a Revolução de
1917, nas produções dos teatros de vanguarda e no teatro de agitação e propaganda.
Contudo, com o passar dos anos, muitas das características destas primeiras
manifestações futuristas foram lentamente incorporadas nos teatros mais
convencionais28. Entre essas características salientam-se algumas das principais que
marcaram presença nas produções anteriormente referidas, como os temas
apropriados à sensibilidade moderna — centrados no progresso tecnológico, na
28 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002,
121.
45
industrialização e vida urbana —, o anti-realismo e anti-ilusionismo — recorde-se a
interpelação direta do público por Mayakovsky —, bem como a crítica aos valores e
convenções da sociedade burguesa. De notar é, também, a liberdade de criação
linguística, a recusa do cenário convencional e integração de inovações pictóricas
nos mesmos, o trabalho de ator estilizado — contrário à representação naturalista e
frequentemente inspirado pela marioneta —, o uso de figurinos exagerados e não-
naturalistas, o recurso à máscara, o trabalho de luz como forma de dinamização do
cenário que se apresentava muitas vezes como abstrato, não representando nenhum
lugar particular. A colaboração entre artes e a recusa do convencional enredo
aristotélico são também aspetos caracterizadores destas produções.
A atividade dos Futuristas Russos não se esgotava nos seus espetáculos, uma
vez que tinham uma forte dimensão literária e pictórica, mas também de ação direta.
No entanto, o esforço do movimento não teve, nos seus primeiros anos, a
repercussão esperada pelos seus membros que promoviam, também, soirées
literárias — recorrendo muitas vezes à provocação direta do público — onde
apresentavam as suas produções e recitavam a sua poesia em pequenos cabarés.
Frequentemente incompreendidos, eram marginalizados e olhados com
desconfiança e pouca credibilidade, principalmente pelas suas ações de rua através
das quais tentavam intervir, de forma bastante teatral, na realidade quotidiana para a
qual queriam desesperadamente contribuir. Os Futuristas pretendiam que as suas
criações tivessem repercussões sociais práticas, transformadoras da sociedade e dos
valores, mas essa oportunidade só chegou com a Revolução de Outubro, em 1917,
após a qual, durante os primeiros anos do regime soviético, o futurismo teve a sua
grande oportunidade. Apoiantes entusiastas da nova ordem social que prometia uma
Rússia industrializada e livre dos valores burgueses, os Futuristas obtiveram com a
46
mudança política a liberdade de experimentação e criatividade artística por que
tanto ansiavam.
2) Outubro Teatral
A Revolução Bolchevique criou um ambiente de cisão com o passado e constituiu
terreno fértil para a experimentação artística, facto bastante apelativo para a
vanguarda teatral russa. Vsevolod Meyerhold foi um dos primeiros artistas a aderir
esperançosamente e de imediato ao novo regime, enquanto muitos outros se
mantinham numa expectativa desconfiada em relação ao seu sucesso. Para celebrar
o primeiro aniversário da revolução Meyerhold encenou Mistério-Bufo, de
Mayakovsky, que continha em si muitos dos recursos explorados nos estúdios pelos
quais passou. Iniciando a sua carreira como ator no TAM — Teatro de Arte de
Moscovo — em 1898, Meyerhold estreou-se como encenador, depois de abandonar
o palco do TAM, em 1902, com a companhia que fundou, a New Drama Touring
Company. Esta companhia itinerante apresentou, entre 1902 e 1906, espetáculos
com uma forte influência da estética de Stanislavsky, mentor inicial de Meyerhold e
do qual este último se afastou dando origem à dualidade dominante no panorama
teatral russo do século xx, em que o realismo psicológico de Stanislavsky se
encontrava em oposição direta ao teatro da convenção consciente, onde nem ator
nem espectador se perdiam na ilusão (HUBERT 2008a: 264). A estética de
Meyerhold evoluiu gradualmente — passando pelo realismo e simbolismo até
desenvolver o tipo de espetáculo pelo qual é hoje reconhecido — na busca da
"reteatralização" do teatro, estabelecendo as suas bases na realidade física e na
convenção consciente. Este afastamento começou por ser forjado, de forma um
pouco irónica, no ano de 1905, após o convite de Stanislavsky a Meyerhold para
47
que este tomasse as rédeas do Teatro-Estúdio do TAM. Neste Estúdio, em que
Stanislavsky pretendia ver uma extensão do TAM, embora com espaço para
experimentação, Meyerhold construiu uma entidade independente (BRAUN 1998:
41) onde deu início ao desenvolvimento de muitas das inovações teatrais que o
acompanhariam até ao fim da sua carreira e que influenciariam as gerações
vindouras de fazedores de teatro, mas que, devido à ausência de apresentações
públicas das produções do Teatro Estúdio, só mais tarde viriam a ser do
conhecimento geral.
Os objetivos deste Teatro-Estúdio foram legitimidados coletivamente desde
os primeiros passos do projeto e anunciados da seguinte forma:
The first meeting of the members of the Theatre-Studio took place on
5 may, and at this very first meeting the following points were made: 1.
Contemporary forms of dramatic art have long since outlived their
usefulness; 2. The modern spectator demands fresh techniques; 3. The Art
Theatre has achieved virtuosity in lifelike naturalism and true simplicity of
performance, but plays have appeared which require new methods of
production and performance; 4. The Theatre-Studio should strive for the
renovation of dramatic art by means of new forms and new methods of
scenic presentation (BRAUN 1998: 41).
Os seus membros — poetas, atores, músicos, encenadores e cenógrafos —
anunciavam, deste modo, que as formas dramáticas do teatro de então estavam
ultrapassadas e que o espectador moderno necessitava de novas técnicas, tendo o
Estúdio a missão da procura dessas novas formas para a renovação da arte
dramática. Neste laboratório experimental Meyerhold encenou La Mort de
Tintagiles, de Maeterlinck, que constituiu o ponto de partida para o
48
desenvolvimento da estilização do teatro, transformação que levaria à criação de um
teatro onde a fronteira entre géneros fosse esbatida, unificando-o, tornando-o
universal e festivo e, consequentemente, mais próximo do drama da Antiguidade
Clássica. Para Meyerhold o conceito de estilização29 — profundamente anti-realista
— estava intimamente ligado à ideia de convenção e à quebra da ilusão no palco,
pois tanto atores como espectadores deveriam estar cientes da artificialidade do
evento. Com a estilização não se pretende uma reprodução exata, mas antes a
aplicação de todos os recursos necessários para revelar a essência e as
características principais daquilo que se pretendia encenar. O espetáculo torna-se,
deste modo, mais aberto e simplificado, com repercussões não apenas a nível
cenográfico, mas também ao nível do trabalho do ator, do encenador e do estatuto
do espectador.
Nesta conceção de teatro, o ator torna-se o cerne do espetáculo30, libertando-
se não apenas do cenário complexo das produções realistas, que seriam substituídos
por cenários meramente alusivos, mas também do encenador tipo Meiningen, uma
vez que o encenador do teatro estilizado é mais um guia de trabalho e não um
encenador rígido e controlador31. Relativamente ao espectador a mudança ocorre ao
nível da participação do mesmo no espetáculo — mais ativa — uma vez que o seu
estatuto é elevado ao de co-criador, renegando, assim, o estatuto de simples voyeur.
Esta alteração do papel do espectador foi exponenciada pelas mudanças a nível
espacial. Os esforços de transformação do espaço teatral por Meyerhold levaram à
29 "With the word 'stylization' I do not imply the exact reproduction of the style of a certain period or of a certain
phenomenon, such as a photographer might achieve. In my opinion the concept of 'stylization' is indivisibly tied
up with the idea of convention, generalization and symbol. To 'stylize' a given period or phenomenon means to
employ every possible means of expression in order to reveal the inner synthesis of that period or phenomenon,
to bring out those hidden features which are to be found deeply embedded in style of any work of art." Edward
Braun, Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 43. 30 Cf. ibidem, 62 31 Cf. ibidem
49
desconstrução do palco convencional — à Italiana — e a uma maior aproximação
entre palco e platéia, maximizando a participação do público. Outro aspeto que
contribui para esta alteração prende-se com a cenografia alusiva que convida o
espectador a desenvolver o uso da imaginação para completar o espetáculo de forma
subjetiva. Assim, a estilização do teatro não leva à produção de espetáculos
fechados, pois estes apenas encontram a sua completude no espectador32.
Esta transformação total traduziu-se na teoria do "teatro da linha reta" que
Meyerhold apresentou como oposição ao "teatro triângulo", resumindo, este último,
a composição das produções mais convencionais.
Teatro da Linha Reta Teatro Triângulo
Autor Encenador Ator Espectador
No teatro da linha reta33 — baseado numa partilha coletiva do trabalho — o
encenador assimila a essência da obra de um autor, transmitindo-a depois ao ator
que, com base nessas linhas gerais que atuam como um guia, forja o seu trabalho
baseado no improviso, fazendo uso dos recursos que achar necessários para que a
essência da obra seja transmitida com sucesso. É através deste trabalho que a
mistura da essência do autor com a visão do encenador chega, de forma incompleta,
ao espectador que deverá, por meio da imaginação e capacidade interpretativa
individual, finalizá-lo, tornando-se, assim, no quarto criador. Deste modo, o
espetáculo nasce do encontro de duas sensibilidades — a do arte do ator e a 32 Cf. ibidem, 63 33Cf. Edward Braun, Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 51-52
Ator Autor Espectador
Encenador
50
imaginação do espectador — exercidas em liberdade (HUBERT 2008a: 267). Este
papel de co-criador do espectáculo não tem lugar no teatro triângulo que, como se
vê na fig. 2, lhe reserva um lugar exterior de mero observador passivo de uma
produção que lhe é apresentada de forma fixa e completa. Este tipo de teatro é
caracterizado por um esquema triangular34 em que o encenador é o único verdadeiro
criador do espetáculo, constituindo, assim, um sistema mais castrador, em que o
encenador, a partir da obra do autor, concebe uma mise-en-scène detalhada,
elaborada ao pormenor, que o ator deve seguir religiosamente.
Ainda no Teatro-Estúdio, Meyerhold desenvolveu, também, estudos para
uma profunda transformação no método de representação. Não só libertou o ator da
ditadura da visão do encenador omnipotente e da complexidade de um cenário que
lhe influenciava os movimentos, como referido anteriormente, como também
orientou o trabalho do ator para uma plasticidade de movimentos afastada das
palavras, ou seja, para uma plasticidade estatuária que transmitiria um diálogo
interior. A plasticidade não era um elemento novo, mas a forma como Meyerhold a
abordou cobriu-se de novidade, uma vez que o encenador deveria traduzir em
movimentos e poses as relações e emoções humanas construídas pelo autor criando,
deste modo, imagens que permitiam ao espectador penetrar no diálogo interior do
espetáculo (BRAUN 1998: 56). O ator do velho teatro transmitiria esse diálogo
interior por meio de um exagero expressivo; já o novo ator, o de Meyerhold, não
necessitaria de uma expressão tão marcada, tão dramática, para transmitir a
interioridade de cada personagem, dando preferência a uma expressão assente mais
na dimensão física, caracterizada pela objetividade e economia de movimentos.
Meyerhold começa, então, a basear a sua teoria do ator no físico — do exterior para
34Cf. ibidem, 51
51
o interior — contrariamente a Stanislavsky que defendia que se deveria cultivar
primeiro a dimensão psicológica da personagem, para que esta se traduzisse depois
na expressão física da mesma. Surgem, assim, os primeiros sintomas da famosa
biomecânica de Meyerhold que se apresentou em pleno na produção de 1922, Le
Cocu Magnifique, baseada numa farsa de Crommelynck.
Para além do "teatro da linha reta" e dos primeiros passos no
desenvolvimento da biomecânica, Meyerhold desenvolveu, no mesmo Teatro-
Estúdio, uma cenografia arquitectural, livre do jugo das duas dimensões do pano de
fundo pintado de forma realista, bem como da convencional distância entre palco e
platéia, experimentações em que podemos reconhecer o início do construtivismo
cénico pelo qual ficou célebre. Contudo, devido a divergências Meyerhold
abandonou o Teatro-Estúdio, mas não a vontade de inovação. Durante a década de
1910, Meyerhold continuou o trabalho de experimentação, abrindo o seu próprio
Estúdio, em 1913, sob o pseudónimo Dr. Dapertutto. Este novo estúdio contava com
um programa muito completo e diversificado que dava seguimento às descobertas
iniciadas no Teatro-Estúdio do TAM.
A estrutura do Estúdio, com uma divisão em grupos bastante ecléticos,
revela, da mesma forma que o programa, a importância que Meyerhold dava ao
conhecimento da tradição35. Ao contrário dos Futuristas Italianos, que pretendiam
um corte absoluto com o passado, Meyerhold afirmava que na empresa da
construção de um novo teatro era necessário debruçarem-se sobre momentos em
35 "Those who have performed in accordance with the old conventions before joining the Studio are grouped to
form a separate 'Actor's Class'. (...) they are given the opportunity to practise on the vaudevilles of the 1830's
and 1840's and Spanish drama (...) in order to learn those techniques of the new theatre which are closely related
to the commedia dell'arte and the other truly theatrical ages of the theatre. (…) A Grotesque Group is
developing not only completely new acting devices but also its own plays, composed in the Studio (...). Shortly,
two further groups will be formed: a Classical Group and an Eighteenth-Century Group." Edward Braun,
Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 146
52
que o teatro tinha sido realmente teatral, ou seja, direcionado para o espetáculo e
não focado na dimensão literária do teatro, de maneira a selecionar as formas mais
eficazes e transportá-las, de forma adaptada36, para a realidade teatral de então, para
que fosse criado algo realmente novo e apropriado às necessidades daquela altura.
Após análise do programa do estúdio de Meyerhold37 é possível ter uma
noção do nível de exigência do mesmo, já que os atores deveriam dominar áreas
como a dança, a música, a esgrima, bem como apresentar uma excelente forma
física. Este programa era formado por vários domínios, entre eles técnicas de
movimento, técnicas de produção — equipamento de palco, cenografia, luz,
figurinos, acessórios, etc. —, Commedia dell'Arte, análise de peças russas do
séc.XIX, circo, convenções do teatro Hindu, Chinês e Japonês, bem como a análise
das teorias mais comuns de então. Grande destaque era dado à pantomima, ao
movimento e à Commedia, pela sua dimensão de improviso e musicalidade.
Neste Estúdio Meyerhold continuou a formar e aperfeiçoar o seu programa,
que concretizaria em pleno após a Revolução de 1917, cujo primeiro aniversário
comemorou, como já foi referido, com a primeira encenação de Mistério-Bufo, de
Mayakovsky, espetáculo que marcou o início de uma parceria frutífera entre estes
dois homens. Mistério-Bufo foi apresentado como a primeira peça soviética e
revelou-se terreno propício à aplicação dos desenvolvimentos teóricos que
Meyerhold levou a cabo nos seus estúdios. Meyerhold pensou encená-la num dos
teatros imperiais, mas o boicote dos profissionais ainda céticos em relação ao novo
regime obrigou-o a trabalhar com amadores num teatro de dimensões e recursos
mais reduzidos. Esta produção, que recebeu fortes críticas do público em geral e
contou apenas com três representações, foi durante alguns anos o único esforço real
36 Cf. ibidem, 148 37 Cf. Edward Braun, Meyerhold on Theatre, London, Methuen Drama, 1998, 153
53
de produção de um espetáculo inteiramente novo e apropriado à nova realidade
russa.
A produção conjunta de Meyerhold e Mayakovsky revelou-se ruidosa, cheia
de energia e carregada de blasfémia, uma vez que consistia numa paródia adaptada à
realidade de então da famosa história de Noé. Mayakovsky havia escolhido o tema
pela sua familiaridade, num esforço de adaptação a um público novo, trazido aos
teatros pela Revolução, composto maioritariamente por operários e camponeses
com pouca ou nenhuma escolaridade. Não seria, portanto, um teatro muito
requintado e complexo, mas antes um teatro baseado em dualidades claras de modo
a serem apreendidas pelo grosso da platéia, de modo a passar eficazmente a
mensagem da produção que, no fundo, consistia em propaganda pelo novo regime.
Num cenário de dilúvio que representava a revolução mundial contam-se
apenas catorze pares de sobreviventes; sete dos quais formavam um grupo
apelidado de "puros" — representativos da velha ordem, composto por personagens
facilmente identificáveis porque caracterizadas com traços essenciais, entre as quais
se encontravam figuras políticas de destaque do mundo ocidental, figuras religiosas,
figuras comuns num sistema capitalista, etc... — e os restantes sete, os "impuros",
que representavam o proletariado internacional, compunham um grupo homogéneo
liderado por uma figura interpretada pelo próprio Mayakovsky, o Homem Simples
que os guiou através de um inferno repleto de demónios — representados num
estilo próximo do clown — até ao paraíso constituído por uma espécie de utopia
socialista mecanizada onde apenas as máquinas eram servas.
A já referida homogeneização do grupo dos "impuros" fora conseguida
através da uniformidade de figurinos — os prozodezhda, uma espécie de fato-
macaco de cor uniforme que permitia liberdade de movimentos — e de uma
estrutura próxima do coro grego, passando a ideia de um herói colectivo cuja forma
54
de representação era radicalmente diferente da dos "puros". Enquanto os "puros"
eram apresentados à maneira do teatro popular de feira, de forma satírica, por meio
de uma malévola caricatura teatral da classe opressora, os "impuros" apresentavam-
se como oradores políticos de discurso cuidado, tendo-lhes Mayakovsky reservado
o lirismo que cantava a paixão da Revolução, bem como a tarefa de construir um
novo mundo após o dilúvio.
A ideia de um uniforme idêntico para todas as personagens — os
prozodezhda — fora já explorado num dos estúdios de Meyerhold, tendo feito a sua
primeira aparição em público nesta produção. O seu intuito era o de despir o ator de
qualquer artificialidade em que se pudesse basear, deixando-lhe apenas a ténica da
sua arte como apoio. Este recurso foi parte integrante da estratégia de desconstrução
do teatro que caracterizou a estética de Meyerhold durante um período de tempo
significativo, em que ele o despiu de todos os artifícios de maneira a encontrar a
verdadeira linguagem teatral que acabou por reconhecer ser constituída,
principalmente, pelo trabalho do ator.
Os figurinos da produção — dos "puros" —, bem como o cenário, foram
concebidos por Malevich, que apresentou, contrariamente à prestação em Vitória
Sobre o Sol, um cenário ligeiramente representativo, uma vez que se podia
reconhecer em palco um hemisfério azul de grandes dimensões que representava o
Mundo juntamente com alguns cubos que representavam a arca e um pano de fundo
com motivos geométricos. Num formato alegórico tratado com a rigidez da
propaganda, a dualidade entre "puros" e "impuros" era, como já foi referido,
bastante simples e nela se reconhecia facilmente a movimentação das massas, o
conflito de classes e a luta de ideais. As influências desta produção provinham do
teatro popular de feira, pelo clowning e a acrobacia de circo, tendo como único
55
elemento Futurista a apologia de um futuro mecanizado e um certo desdém pelo
passado, incluindo as antigas formas artísticas.
Em Novembro de 1917 todos os teatros russos foram postos ao abrigo do
Estado sob a égide de Anatoly Lunacharsky, o Comissário do Povo para a Eduação
— diretor do Narkompros (Comissariado do Povo para a Educação), uma espécie de
Ministério da Educação e Cultura — que, em 1920, nomeou Meyerhold como
diretor do Departamento Teatral do Narkompros (TEO), encarregando-o de quase
toda a atividade teatral em todo o território soviético. Foi com este cargo que
Meyerhold reforçou a posição dos artistas revolucionários e proclamou o Outubro
Teatral38, um movimento de organização quase militar que anunciou uma enérgica
renovação total da atividade teatral na URSS embora, na prática, não tenha atingido
os seus objetivos radicais. Meyerhold pretendia levar a cabo uma redistribuição
profunda de recursos financeiros e mão-de-obra que visava atingir os antigos teatros
imperiais — que monopolizavam as ajudas estatais por serem considerados dignos
mandatários da tradição teatral russa —, agora denominados teatros académicos,
grupo que compreendia o Bolshoi, o Maly, o TAM e respetivos estúdios, o
Kamerny de Tairov, bem como o Teatro Infantil de Moscovo, que Meyerhold
considerava estagnados na velha ordem e, como tal, castradores da criação de um
novo teatro verdadeiramente soviético.
Contudo, Lunacharksy refreou o poder de Meyerhold, transferindo a
responsabilidade sobre os Teatros Académicos para o Narkompros, impedindo-o de
levar a cabo a remodelação por que tanto ansiava. Ainda assim, Meyerhold assistiu
38 "The programme 'Theatrical October', advanced by the 'leftists' as its name suggests, presupposed that
theatrical 'revolution' should directly follow the social revolution, that the old art must be destroyed without
delay and a new art created on its ruins. Since the tsarist government had fallen, argued the 'leftists', then all the
old theatres, in their opinion thoroughly 'feudal' and 'bourgeois', should also fall. It seemed to the 'leftists' that
the worker-peasant government was wrong in protecting these theatres hostile to the proletariat." Konstantin
Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 59.
56
a uma sovietização gradual, a um ritmo próprio, dos Teatros Académicos e criou
uma rede de teatros — os Teatros R.S.F.S.R, Russian Socialist Federal Soviet
Republic — encabeçando ele próprio o R.S.F.S.R No.1, criado em 1920 e fechado
em junho de 1921, que ocupou o espaço do antigo Teatro Sohn. Foi este R.S.F.S.R
No.1, que Meyerhold pretendeu lançar sob a influência do já referido Outubro
Teatral, movimento que pretendia dar vida a um teatro alinhado com a Revolução e
com uma dimensão política e social mais marcada que as restantes produções que
então se desenvolviam. O programa deste teatro foi apresentado por Meyerhold
como sendo baseado numa abundância de luz, de boa disposição, de grandiosidade e
entusiasmo contagiante, bem como numa criatividade espontânea e na participação
do público no ato coletivo de criação do espetáculo (BRAUN 1998:170). O seu
reportório, que Meyerhold não receava basear em clássicos atualizados, estava
compreendido entre tragédia e farsa de natureza Revolucionárias39 e cada espetáculo
pretendia refletir a luta e aspirações da classe operária. O texto escolhido para a
estreia, em 1920, foi Alvorada (The Dawn), de Emile Verhaeren, um simbolista
Belga que havia escrito, em 1898, este drama em verso épico que retratava a
transformação de uma guerra capitalista num levantamento proletário internacional.
Meyerhold, em colaboração com um assistente, adaptou o texto simbolista aos
eventos políticos russos dos últimos anos (BRAUN 1998: 163), bem como ao público
para o qual concebeu esta produção. Tornando-o mais acessível, Meyerhold
sacrificou a integridade do texto como o autor o produziu, subordinando-o às
necessidades do espetáculo e respetivo público (RUDNITSKY 2000: 60). Neste
sentido, parece seguro afirmar que em Alvorada Meyerhold libertou o teatro do jugo
da literatura, uma vez que o texto não é mais o cerne desta produção, mas antes o
39 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames &
Hudson, 2000, 60
57
espetáculo em si, — como em várias outras que a seguiram — apresentando, assim,
um Teatro Teatral.
A estreia de Alvorada, que contou com a participação dos alunos de
Meyerhold, coincidiu com a terceira celebração do aniversário da Revolução de
Outubro e apresentou-se com contornos marcados de comício político, presentes
não só nos cartazes de propaganda incitativa espalhados pelo teatro, como também
no estilo declamativo da representação. Os atores, quais oradores políticos, atuavam
sem maquilhagem e dirigiam-se diretamente ao público, num estilo de
representação muito pouco dinâmico, uma vez que permaneciam maioritariamente
estáticos. Contudo, nem todos os atores marcavam presença em palco, pois alguns
encontravam-se distribuídos pela plateia de forma a guiar os espectadores — como
uma espécie de coro grego disperso — para que estes participassem ativamente no
espetáculo, incitando-os a reagir e a interagir com os atores em palco. No entanto,
Meyerhold não esperava a fraca participação do público — explicada, em parte,
pela natureza fria, militarizada e plasticidade estatuária que a produção apresentou
— que se fez sentir até à noite em que a cena, inerente ao texto de Verhaeren, onde
o Mensageiro viria dar a notícia da derrota do inimigo, fora substituída pela leitura
real de um telegrama dando conta da vitória na Guerra Civil, do Exército Vermelho
sobre a última grande ameaça do Exército Branco, a sul do território. A reação então
obtida, de celebração e euforia universal, correspondeu às expectativas iniciais de
Meyerhold de tal forma que este decidiu substituir essa mesma cena pela leitura de
telegramas reais da ROSTA — Agência Telegráfica Russa — ao invés de os afixar
pelos corredores do teatro.
O velho teatro Sohn apresentava-se longe do conforto dos grandes teatros
académicos e detentor de uma atmosfera informal, que coincidia com o ambiente
revolucionário que se vivia nas ruas. Estas características da sala assentavam
58
perfeitamente na encenação que Meyerhold concebeu para Alvorada40, uma
tentativa de renovação do comício revolucionário que havia surgido na vida real,
dando origem a uma espécie de performance meeting. Obrigado a servir-se de um
palco convencional, Meyerhold decidiu transformá-lo por completo num esforço de
adaptação do mesmo ao seu programa teatral. Para tal, despiu por completo o palco
dos seus elementos e levou a cabo a remoção dos bastidores, expondo as paredes de
tijolo do edifício. Destruiu, também, as luzes de ribalta, para depois ampliar o palco
e diminuir a distância do mesmo em relação à plateia, cobrindo parcialmente o fosso
da orquestra, onde construiu uma escadaria utilizada pelos atores durante a
representação. Esta transformação espacial alargou o proscénio, aproximando o
público da ação que decorria em palco, onde se podia observar um cenário ascético
e austero pelos seus contornos abstratos e formas geométricas militarizadas,
elaborado por Vladimir Dimitriev, que conseguiu forjar um ambiente de prontidão
para a batalha. Iluminando este cenário, encontravam-se dois holofotes de estilo
militar instalados nos camarotes e focados na cara dos atores. Estas luzes
direcionadas acompanhavam as luzes do auditório, que permaneceram ligadas
durante todo o espetáculo, reiterando o esforço de harmonização entre palco e
platéia e reforçando a ideia que Alvorada era um espetáculo de comunhão, com
partilha de ambiente e ritmos pelo auditório.
Para a segunda produção do R.S.F.S.R No.1 Meyerhold escolheu a segunda
versão de Mistério-Bufo, encenada no 1º de Maio de 1921, após a peça ter sido
reescrita pelo próprio Mayakovsky, num esforço de atualização da mesma. Esta
segunda versão foi apresentada pelo próprio Mayakovsky como uma representação
heróica, épica e satírica da sua época e continha no prefácio a manifesta vontade,
40 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames &
Hudson, 2000, 60
59
pela parte do poeta, de atualização dos textos em cada encenação (MAYAKOVSKY
1995: 39). Neste espetáculo, radicalizaram-se as transformações espaciais que se
haviam registado em Alvorada, pois aqui a destruição da barreira entre palco e
público foi completa, vertendo o cenário e a ação para o auditório, por meio de uma
longa rampa, onde se podia ver um hemisfério, que descia até à primeira fila de
cadeiras e era utilizada no último ato do espetáculo — em que os "impuros"
alcançavam o seu paraíso mecanizado — para a maximização da interação entre
público e atores, que convidavam a platéia a misturar-se com a ação em palco. Este
cenário, profundamente anti-realista como seria expectável, era composto por várias
plataformas dispostas em níveis diferentes, assemelhando-se a uma construção
composta por andares assimétricos ligados por degraus, que representavam, de
forma vagamente sugestiva, os vários locais da ação. Esta segunda versão de
Mistério-Bufo apresentou-se como uma revista política — género que dava, então,
os seus primeiros passos — onde os elementos circenses e de teatro popular de feira
que marcavam já presença na primeira versão de Mistério-Bufo (1918) se
encontravam ainda mais acentuados e que integrava em si uma celebração
apaixonada da Revolução enquanto ridicularizava os inimigos da nova ordem social
(RUDNITSKY 2000: 62-63).
O programa do espetáculo dava uma ideia do ambiente informal da
produção, uma vez que continha em si a autorização para abandonar ou entrar na
sala enquanto o espetáculo decorria, bem como o incentivo ao público para se
manifestar como bem entendesse, mesmo que isso significasse interagir com os
atores enquanto estes trabalhavam. Um crítico, Emmanuel Baskin, relembra o
ambiente produzido pela natureza anti-realista do espetáculo cuja natureza
comunitária parecia exigir um espaço amplo e um público de massas:
60
There is no stage and no auditorium. There is a monumental
platform projecting halfway into the auditorium. There is the feeling that
there is not enought space for it within these walls. It calls for a city square,
a street. It needs more than these several hundred spectators which the
theatre accommodates. It calls for the masses. It has broken away from all
the machinery on the stage, has elbowed out the wings, the grid, and has
soared up to the very roof of the building. (…) It does not imitate life with its
swaying curtains and idyllic crickets. Actors come and go on the platform-
stage. Before the spectators' very eyes the workers shift, fold, dismantle,
collect, nail together, take away and bring in. The author and director are
here too. The performance ends and some of the actors in costume mingle
with the audience. This is no 'temple' with its great myth of the 'mystery' of
art. This is the new proletarian art… (RUDNITSKY 2000: 63).
Contrariamente à primeira encenação de Mistério-Bufo, que apenas contou
com três representações, esta segunda versão teve muito mais sucesso que a sua
antecessora. Contudo, ambas as produções partilharam figurinos, uma vez que
Meyerhold optou, novamente, pelas prozodezhda, desta vez azuis — tendo
influenciado, com esta opção, o grupo de agit-prop criado em 1923, As Blusas
Azuis, como veremos mais à frente —, que mantinham a sua função de
homogeneização, num quadro vitorioso, dos atores que representavam o
proletariado.
Com o terminar do chamado período do comunismo de guerra veio também
o fim da presença de Meyerhold no TEO, bem como do Outubro Teatral e de
produções como Mistério-Bufo, que bebiam muito do ambiente propagandista
daqueles primeiros anos de instabilidade e conflito que se viveram na infância do
regime socialista. A implementação da NEP — Nova Política Económica —,
61
também em 1921, trouxe de volta, embora com algumas limitações, a iniciativa e
propriedade privadas, ao mesmo tempo que impunha uma rígida disciplina
orçamental relativamente aos fundos estatais, o que acabou por afectar o
financiamento de muitos outros teatros (BRAUN 1998: 167). O ressurgimento, com a
NEP, de uma espécie de burguesia — os NEPmen — também influenciou a
transformação de financiamento e funcionamento dos teatros que inspirou o receio
de um retrocesso na liberdade de criação e inovação artísticas, como salientou
Camilla Gray:
Under NEP a new bourgeoisie arose which was soon in a position to
patronize the arts, unlike the penniless government, and naturally enough this
new art patron inclined towards a familiar form, 'pre-Revolutionary' in every
sense of the term. This return of the old enemy to power disgusted the 'leftist'
artists, but it also meant that they had to look for other means of support, and
industry was the obvious solution (GRAY 2007: 245).
Após o fracasso do Outubro Teatral, Meyerhold apercebeu-se da necessidade
de dar um novo rumo ao teatro e preparou esse futuro no seu mais recente estúdio
experimental, aberto em 1922, o State Experimental Theatrical Studio
(GEKTEMAS), que passaria a ser chamado Teatro Meyerhold (TIM) em 1923, onde
deu início ao treino dos atores segundo o seu novo sistema: a Biomecânica. Fruto da
iniciativa de integração do trabalho do ator numa sociedade que dava os primeiros
passos no caminho da industrialização, Meyerhold desenvolveu um sistema de treino
do ator baseado em exercícios físicos que o ajudavam a desenvolver as competências
necessárias ao movimento cénico e que aproximava a sua técnica do trabalho
operário. A biomecânica — que surgiu da necessidade de renovar também o método
de trabalho e não apenas as formas — pretendia revolucionar o estatuto do ator,
62
tratando o seu trabalho como um fator essencial na organização do trabalho de toda a
sociedade, proporcionando o lazer necessário. Profundamente ligado ao seu tempo,
este sistema baseava-se numa fusão de Construtivismo, Taylorismo e uma seleção
consciente da tradição, pois Meyerhold defendia que o ator ao serviço da nova ordem
social deveria "rever todos os cânones do passado" (BRAUN 1998: 197). A sua
ligação ao Construtivismo prende-se com uma abordagem científica da arte, em que
esta não se sustenta a si própria mas exige uma utilidade e tem uma aplicação
concreta na realidade social. (BRAUN 1998: 198). É a recusa da "arte pela arte", em
simultâneo com a apologia de uma arte ao serviço da Revolução, construída por meio
de um processo de produção consciente que, no caso do ator, é levado a cabo pelo
trabalho do corpo. Esse corpo, instrumento de trabalho por excelência, deveria ser
cultivado ao máximo, de maneira a que o ator fosse capaz de executar qualquer
movimento que lhe fosse pedido. É com base nesta abordagem científica que
Meyerhold desenvolve a fórmula do trabalho do ator, que se materializou da seguinte
forma:
N = A1 + A2
Nesta fórmula, em que N constitui o ator como um todo, Meyerhold divide-o
em dois, sendo A1 o artista que concebe a ideia e formula as instruções necessárias à
execução da mesma e A2 o executante da ideia. Este ator baseia o seu trabalho, como
já foi referido, na premissa física — da qual nasce o fator psicológico que, salienta-
se, não é anulado por Meyerhold, apenas não constitui a base de todo o sistema,
como acontece com o método de Stanislavsky — e na economia de movimentos e de
Ator Construtor
Executante
63
tempo, que surge por influência do Taylorismo. Esta teoria de organização do
trabalho baseava-se na aplicação de princípios científicos testados que tinham por
objetivo a economia de meios, o aumento da produtividade laboral e da eficiência do
trabalhador. Meyerhold, que acreditava num espetáculo pouco prolongado, uma vez
que a atenção do espectador era limitada41, viu nesta teoria a possibilidade de agilizar
o seu teatro, aplicando-a ao trabalho do ator. Tal como um operário, o ator deveria
maximizar o seu tempo — não o desperdiçando na caracterização, ou seja,
trabalhando sem maquilhagem e em figurinos polivalentes que possibilitassem a
execução de qualquer movimento (os prozodezhda) —, aniquilar qualquer
movimento supérfluo que não se traduzisse em significado para o público, ter ritmo,
estabilidade e a completa noção do centro de gravidade do seu corpo (BRAUN 1998:
198). Contudo, todo este domínio físico e rigidez de movimentos deliberados e
essenciais poderiam tornar o ator num mero autómato eficaz, mas ao cruzar-se com a
tradição, inspirando-se no improviso da Commedia dell'Arte, no music-hall, no circo
e até no teatro de marioneta, o ator da biomecânica torna-se completo, expressivo e
dinâmico, como referiu Konstantin Rudnitsky:
(…) biomechanics allows the actor, perfectly controlling his body
and movements, firstly, to be expressive in dialogues; secondly, to be the
master of the theatrical space; and, thirdly, in integrating with the crowd
scene, the grouping, to impart to it his energy and will (RUDNITSKY
2000: 93).
A biomecânica — que se encontrava intimamente ligada com a cenografia
construtivista, uma vez que esta constituía uma plataforma de trabalho adequada ao
41 Cf. Marie-Claude Hubert, Les Grandes Théories du Théâtre, Paris, Armand Collin, 2008, 265.
64
dinamismo e virtuosismo do ator42 — veio a público, pela primeira vez, em 1922,
com O Corno Magnífico (Le Cocu Magnifique), uma farsa trágica do expressionista
Belga Fernand Crommelynck, representada pela primeira vez em Paris, em 1920, por
Lugné-Pöe. O protagonista, Bruno, movido pelo ciúme, obriga a sua mulher a
entregar-se a todos os homens da aldeia a fim de encontrar o suposto amante, sem
que isso o esclareça acerca da suposta infidelidade da esposa (MOLINARI 2010: 351).
Nesta produção de Meyerhold, os atores, que envergavam os já familiares
prozodezhda — desta vez azuis e ligeiramente modificados por Lyubov Popova —,
apresentavam-se sem maquilhagem e representavam a um ritmo vertiginoso,
exibindo a sua excelente forma física e competências acrobáticas ao interagirem com
o cenário, fazendo da farsa trágica de Crommelynck uma demonstração alegre de
piruetas e outras acrobacias, originando um trabalho de ator aparentemente sem
esforço, fruto do cruzamento da biomecânica com o improviso estilo Commedia
dell'Arte. Em Le Cocu Magnifique, o ritmo era tudo, uma vez que a ausência de
cenário, figurinos e maquilhagem obrigava o ator a depender apenas do domínio da
sua técnica que, nesta produção, deveria revestir-se de uma subtileza expressiva no
que toca aos movimentos que deveriam ser executados com a destreza de acrobatas e
a suavidade de dançarinos (RUDNITSKY 2000: 94).
O cenário, como já foi referido, esteve ausente desta produção. Por outras
palavras, Le Cocu Magnifique não contou com um cenário bidimensional
convencional, mas antes com uma construção mecânica que fora pensada por
Lyubov Popova a partir dos elementos essenciais para a representação — rampas,
escadas, passadeiras e afins — que foram depois reduzidos às suas formas estilizadas
e apresentadas num palco que Meyerhold despiu por completo, de tal forma que
expôs a parede de tijolos do edifício, como havia feito no velho teatro Sohn, 42 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002, 132.
65
deixando-o sem bastidores nem proscénio. A estrutura mecânica de madeira
concebida por Popova é descrita por Rudnitsky da seguinte maneira:
Two wooden machines, one a little higher than the other, were linked
together by a bridge. Two staircases descended to the stage floor on the left
and right. The entire apparatus, made from planks and beams, looked
deliberately schematic and possessed the clarity of a blueprint. But it had to be
a moving blueprint.
So three rotating wheels of varying sizes, one black, one white, one
red, were placed between the two machines. On the upper left-hand side was
perched an object that resembled a windmill, although its 'sails' were left in a
skeletal state, latticed rather than solid. Finally, a smooth, inclined plank
descended from the machine to the stage floor so that the actors could
suddendly slide down it (RUDNITSKY 2000: 92).
Das três rodas, referidas por Rudnitsky, que constituíam parte da criação de
Popova, uma, a de cor preta, tinha pintadas as letras CR MM LNCK a branco,
representando o nome do autor do texto, Crommelynck. Esta construção
mecanizada movimentava-se, ora lenta, ora rapidamente, umas vezes por inteiro,
outras por partes, acompanhando o ritmo da representação, parecendo ganhar vida,
durante o espetáculo, bem como um papel próprio ao interagir com os atores, que
dela se serviam como um instrumento de trabalho. Todo este aparato constituía uma
estrutura estranha e evocativa de várias coisas, constituindo um cenário
tridimensional e anti-realista, reduzido aos elementos essenciais e baseado apenas
no poder de sugestão. Desta forma, o espectador era estimulado e convidado a
participar completando o cenário com a imaginação. Le Cocu Magnifique
constituiu, assim, a primeira grande aplicação — senão a única verdadeira — dos
66
princípios do Construtivismo à cenografia teatral. Apresentando-se como um
espetáculo de uma vivacidade coordenada, coberto de pureza de linhas e dinamismo
comum tanto ao trabalho do ator como à cenografia animada por uma mecanização
rítmica, Le Cocu Magnifique foi a resposta de Meyerhold à necessidade de um novo
rumo para o Teatro (RUDNITSKY 2000: 94).
Tendo sido alvo de críticas pela ausência de conteúdo político de Le Cocu
Magnifique, Meyerhold decidiu encenar, em seguida, A Morte de Tarelkin, de
Aleksandr Sukhovo-Kobylin, texto que integrava uma trilogia de sátiras acerca da
corrupção no sistema judicial russo. Esta produção, de 1922, apresentava claras
influências circenses sem qualquer tipo de censura. Contrariamente a Le Cocu
Magnifique, em A Morte de Tarelkin a ação espalhou-se por todo o palco e decorria
virada para o público, cujo espaço a ação acabaria por invadir, esbatendo barreiras
entre espectador e ator. Os atores representaram, novamente, sem peruca nem
maquilhagem e vestidos com prozodezdhas, desta vez concebidos por Varvara
Stepanova, em tecido azul, assemelhando-se a uniformes de prisioneiros ou batas
hospitalares (RUDNITSKY 2000: 95). Relativamente ao trabalho do ator salienta-se,
como já foi referido, a influência circense — uma vez que gritavam e saltavam em
vez de falarem e andarem —, bem como uma representação marcada por um certo
distanciamento que começou a ser usado no teatro profissional por volta desta
altura e que viria a influenciar as companhias de agit-prop russas, mas também a
estética brechtiana. Deste modo, os atores, em palco, entornavam água entre si,
lutavam com paus e cacetetes e interagiam com o traiçoeiro cenário arquitetado, tal
como os figurinos, por Stepanova. O cenário, de natureza construtivista, era
composto por um conjunto de máquinas semelhantes a adereços de circo, dispersas
pelo palco, que à primeira vista pareciam apenas mobília convencional, pintada de
branco, mas que reagiam à presença dos atores; uns adereços repeliam o ator
67
quando se sentava, outros "alvejavam-nos" quando se aproximavam,
proporcionando, assim, um espetáculo recheado de partidas. Relativamente à
iluminação de palco, Meyerhold jogou com o contraste entre a penumbra ao fundo
do palco e uma luz intensa produzida por dois holofotes colocados nas laterais do
palco, que iluminavam o primeiro plano onde os atores se movimentavam, tendo
um impacto imediato na perceção dos espectadores43. Finalizando, recordam-se as
palavras de Vasily Sakhnovsky, citadas por Rudnitsky, que descrevem o conjunto
da produção como um "circo aterrador"44, tornando Meyerhold, juntamente com a
FEKS, pioneiro na fusão entre teatro e circo.
A FEKS — Fábrica do Ator Excêntrico — foi criada em Leninegrado, em
1922, por Grigory Kozintsev e Leonid Trauberg, consistindo num estúdio
experimental de teatro e cinema, que apresentou o seu primeiro espetáculo no
Proletkult de Leninegrado, atualmente São Petersburgo, baseado na comédia de
Gogol, O Casamento. Do texto de Gogol surgiu um espetáculo assente em três atos
que conservou do original apenas alguns episódios desconexos, apresentados sob a
forma de inventário de números de variedades, onde se reconhecia a influência dos
manifestos de Marinetti, bem como a presença do teatro de marionetas, do
clowning, malabarismo e acrobacias circenses, farsa, entre outros elementos,
misturados à maneira do music-hall (RIPELLINO 2002: 154). Nesta produção,
podemos reconhecer traços da conceção de teatro do FEKS que, segundo Angelo
Maria Ripellino, consistia numa sequência vertiginosa de episódios variados
preparados para agitar o espectador, desafiando a lógica:
43 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 95. 44 Cf. ibidem
68
El credo teatral del Excentrismo se articulaba en una secuela de ideas
fulminantes. Ellos concebían el espectáculo como una 'percusión rítmica sobre
los nervios', una 'acumulación de trucos', un 'cancán sobre las cuerdas de la
lógica y del buen sentido'. Meditando la posibilidad de transformar el teatro en
una síntesis de trifulcas, voceríos, acrobacias, persecuciones, en un juego de
transformaciones incesantes, querían asumir las impetuosas cadencias de la
'chechetka' a base del nuevo ritmo (RIPELLINO 2002: 153-154).
Tal como a FEKS, também Sergei Eisenstein — que havia sido assistente de
encenação de Meyerhold, seu mentor, n'A Morte de Tarelkin — era apologista de
um espetáculo que nascesse da fusão entre o circo e o teatro. Seguindo essa estética,
o então jovem Eisenstein estreou-se como encenador, em 1923, com a comédia de
Ostrovsky Enough Stupidity in Every Wise Man, numa produção conjunta com
Serguei Tretyakov, que teve lugar num espaço mais convencional, o Primeiro
Teatro Operário do Proletkult, embora haja registos de produções, levadas a cabo
por esta dupla em espaços menos ortodoxos, como a encenação, na Fábrica de Gás
de Moscovo, de Máscaras de Gás, um original de Tretyakov, datado de 1924. O
cenário desta produção levou à eliminação completa da dicotomia cena-plateia,
proporcionando um contacto máximo entre atores e público por meio de uma pista
alcatifada de reminiscências circenses onde se encontravam tripés, varões, cordas,
anéis, plataformas e outros adereços de circo. Nesta pista, o trabalho do ator
oscilava entre o clowning, a acrobacia e a representação propriamente dita,
havendo, também, a necessidade de competências musicais e de dança por parte dos
atores. A ação, repartida como um programa de circo, dividia-se entre números
circenses, números musicais, números de dança e representação de trechos do texto
de Ostrovsky, interrompidos por projeção fílmica que, por sua vez, provocava uma
69
rutura na linearidade narrativa da ação do espetáculo, recuando no tempo e
mostrando ações passadas que completavam a representação dos atores45. No final
do espetáculo, num tom anti-ilusionista, os atores proclamavam o fim do mesmo e
cumprimentavam o público que, pouco depois, veria rebentar por baixo das suas
cadeiras, um pequeno foguete. Como foi já referido, este espetáculo, que se baseava
no texto de Ostrovsky, retirava dele apenas alguns episódios, o que se traduzia na
ausência de um um respeito absoluto pelo texto, tornando o teatro de Eisenstein
mais direcionado para o espetáculo do que para um teatro mais literário. Nesta
produção, que se revestiu por completo de formas circenses profundamente anti-
realistas ao serviço da sátira política46, era notória a influência dos manifestos de
Marinetti, não apenas na provocação direta do público com fogo de artifício, mas
especialmente na aplicação do que Eisenstein batizou como montagem de atrações.
Desenvolvida no teatro, mas aplicada principalmente na sua carreira como
realizador de cinema, este tipo de montagem, anunciado no terceiro número da
revista LEF, foi primeiramente apresentada ao público na adaptação circense do
texto de Ostrovsky, e tinha como consequência a produção de um espetáculo
cronologicamente não linear com um forte impacto sensorial e psicológico no
público. No artigo publicado na LEF, Eisenstein define atração:
Est attraction (du point de vue du théâtre) tout moment agressif du théâtre,
c'est-à-dire tout élément de celui-ci soumettant le spectateur à une action
sensorielle ou psychologique vérifiée au moyen de l'expérience et calculée
mathématiquement pour produire chez le spectateur certains chocs émotionnels
qui, à leur tour, une fois réunis, conditionnent seuls la possibilité de percevoir
45 Cf. Serguei Eisenstein, Au-delà des Étoiles, Paris, Union Générale d'Editions, 1974, 122-125. 46 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 96.
70
l'aspect idéologique du spectacle montré, sa conclusion idéologique finale
(EISENSTEIN 1974: 117).
Tendo por base estas "unidades moleculares do teatro" (BERNARDINI 1980:
26), as atrações, — onde se reconhecem ecos dos "átimos" dos futuristas italianos —
os espetáculos de teatro, para Eisenstein, deveriam nascer de um forte programa
circense, partindo do texto com que se escolheu trabalhar, sendo constituídos por
cadeias de momentos agressivos que visavam produzir no espectador sensações e
estados de espírito que o agitassem e cuja escolha estava diretamente relacionada
com a mensagem que o encenador queria fazer passar.
A ideia de fusão entre circo e teatro, partilhada por Meyerhold, a FEKS e
Eisenstein, rapidamente se esgotou e deu lugar a uma outra fusão, encabeçada por
Nikolai Foregger, entre o teatro e o music-hall. Foregger organizou, em Moscovo, no
ano de 1921, um pequeno teatro, o Mastfor — The Foregger Theatre Workshop —
onde cultivava o escárnio pelos teatros académicos, bem como pelas peças de
agitação e até pelas produções de Meyerhold. As suas ideias eram, em muito,
semelhantes às que moviam a FEKS e Eisenstein, uma vez que, tal como estes
últimos, Foregger ficara fascinado pela tecnologia e era um apologista da utilização
das ténicas circenses nas produções teatrais. A grande diferença reside,
essencialmente, na fortíssima componente musical pela qual os seus espetáculos se
regiam. O cruzamento de acrobacias de circo e dinamismo cinematográfico,
Foregger orientava a sua estética teatral segundo os princípios do music-hall.
Seguindo esta estética de "music-hallização" do teatro, Foregger desenvolveu uma
técnica de trabalho do ator muito próxima da biomecânica meyerholdiana, embora
simplificada, ao defender que toda a ação teatral é revelada por meio de uma
sequência de gestos e de poses criadoras de movimento que deveria obedecer a um
71
ritmo próprio da dança (RUDNITSKY 2000: 97). Alguns espetáculos que criava
segundo estes princípios nada tinham de político, apresentando-se como meras
coleções de números de variedades com influência norte-americana; outros eram
encenados como revistas cómicas, com um toque de sátira, focando-se em assuntos
contemporâneos populares, cujo texto não bastava só por si, servindo apenas de
elemento de ligação entre os números de dança que constituíam a maior parte do
espetáculo. O Mastfor chegou ao fim, em 1924, consumido por um incêndio, mas a
ideia que nele se gerou, de fundir o teatro e o music-hall, sobreviveu às chamas,
apelando a encenadores como Meyerhold, que, de certa forma, recorreu a esta
estética em algumas das suas revistas políticas.
A publicação LEF — e mais tarde Novy LEF —, já referida anteriormente a
propósito da colaboração com Eisenstein, apresentou-se como o arauto de um
movimento que, de certa forma, assumiu a posição de sucessor do Outubro Teatral: a
renovação artística ao serviço da Revolução, que havia falhado quase tão
rapidamente quanto Meyerhold a proclamara enquanto diretor do Narkompros. A
Frente Artística de Esquerda (LEF) foi fundada em 1923, juntamente com a
publicação homónima, por Vladimir Mayakovsky, sendo, inicialmente, um
movimento artístico coeso cuja ideologia assentava nas ideias Construtivistas, no
Taylorismo e na estética concebida por Vyacheslav Ivanov, um poeta simbolista,
filósofo e crítico, que havia desenvolvido as suas ideias nos primeiros anos do século
XX. Ivanov, um homem alheio às artes do palco, concebeu uma utopia teatral que,
apesar de nunca ter sido concretizada em pleno, mostrou a sua força ao influenciar
teóricos do teatro, principalmente membros da LEF e do Proletkult, que se deixaram
seduzir pela dimensão coletiva da teoria de Ivanov, embora reticentes em relação à
natureza ritualista da sua estética. Para este homem, aparentemente preso ao passado,
72
o teatro era visto, em potência, como a mais poderosa das artes, sendo perfeitamente
capaz de substituir a religião numa sociedade cuja fé decaía significativamente
(RUDNITSKY 2000: 9). De maneira a conseguir cobrir o teatro de uma dimensão
religiosa, Ivanov defendia um regresso às antigas tradições ritualistas, à tragédia ática
e aos mistérios medievais, afastando-se da realidade do teatro burguês, seu
contemporâneo, forjando, assim, uma ideia de teatro de ação coletiva. Ivanov
defendia que o público não procurava mais o espetáculo, que estava saturado da
ilusão, e que era preferível oferecer-lhe ação, ou seja, Ivanov defendia, em palco, a
praxis, não a mimesis. Para levar a cabo esta tarefa transformativa do teatro, Ivanov
propunha, essencialmente, uma mudança radical do espaço teatral, que traria uma
quebra com a noção convencional de palco italiano, bem como com as luzes de
ribalta, de maneira a criar um espaço completamente aberto, semelhante à orchestra
dos anfiteatros gregos. Deste modo, seria abolida, na totalidade, a distância entre
palco e plateia, modificando, consequentemente, a natureza da relação entre público
e atores, levando à partilha da ação entre todos, tornando o espetáculo numa
performance coletiva baseada no improviso, no canto coral e na dança (RUDNITSKY
2000: 10).
Com Mayakovsky à cabeça, a LEF teve um impressionante rol de
colaboradores — entre eles Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Lyubov Popova,
Varvara Stepanova, Alexander Rodchenko, Sergei Tretyakov — reunidos num grupo
ideologicamente coeso que se apresentava como "uma associação livre de todos os
trabalhadores de arte da esquerda revolucionária" (EMÍLIA 1973: 77). A publicação
esteve desde o início intimamente ligada com o Construtivismo, movimento fundado
por Tatlin em 1919, mas cuja grande oportunidade surgiu no teatro com algumas das
produções de Vsevolod Meyerhold, anteriormente enumeradas. Composta por
Construtivistas e Futuristas, a LEF tinha como objetivo primeiro a criação de formas
73
estéticas que tivessem repercussões na realidade quotidiana da URSS, como recorda
Ripellino:
El LEF se proponía intervenir activamente en el desarrollo de la
sociedad soviética y erradicar las predilecciones oleográficas, creando un
nuevo hábito, nuevas formas de vida inspiradas en la técnica y en el
industrialismo. 'El LEF luchará por un arte que sea construcción de la vida'
se lee en el primer número de la revista homónima (RIPELLINO 2002:
130).
Esta opção revela a estética Construtivista do grupo, uma vez que os membros
da LEF defendiam uma arte utilitária, transformadora da vida e propagandista
relativamente à nova realidade social russa. Outros pontos de contacto com o
Construtivismo, partilhados, também, com o Futurismo, prendem-se com a fixação
pela máquina e pelo progresso técnico aliada a uma forte repulsa por tudo o que
restava da velha ordem, principalmente formas artísticas. Relativamente ao teatro, a
LEF mantinha uma posição de desconfiança, mesmo quando se tratava de teatro
vanguardista ou revolucionário, sempre que este se baseasse em ficção, uma vez que
segundo a teoria do movimento, todas as formas de ficção corporizavam resquícios
de um passado a eliminar. O que lhes interessava realmente era a exploração de
novas formas ligadas ao jornalismo; interessava mais o facto, o documento, do que a
fantasia, pois pretendiam registar o momento em que viviam e não conservar a velha
ordem47. O pouco entusiasmo nutrido pelo teatro foi reiterado na preferência pelas
novas formas de comunicação de massas, como a rádio, o cinema ou a imprensa, não
reconhecendo no teatro, que acreditavam sobreviver por inércia, uma dimensão
47 Cf. Angelo Maria Ripellino, Mayakovsky y El Teatro Ruso de Vanguardia, Sevilla, Editorial Doble J, 2002, 130.
74
social significativa. Apesar da importância menor atribuída ao teatro, muitos dos seus
membros colaboraram, com sucesso, em produções revolucionárias da época —
Mayakovsky, Popova, Stepanova, Eisenstein, etc... — para desagrado de alguns dos
seus camaradas. A LEF, à semelhança das fusões do teatro com outras artes que
foram já aqui referidas, esgotou-se de forma relativamente rápida, entrando em
decadência por meio da fragmentação, havendo, no final, apenas um grande
denominador comum a todos os seus membros: o desdém pelas formas artísticas e
valores sociais do passado, o que impossibilitou uma decisão concertada sobre o
rumo a tomar na construção de uma nova cultura socialista (RUDNITSKY: 91).
Em concordância com os princípios da LEF estava Meyerhold e os seus dois
teatros, que se encontravam no ativo em simultâneo, — o TIM, já aqui referido, e o
Teatro da Revolução —, um experimental, e o outro, o da Revolução, um teatro de
massas, onde a preocupação da rentabilidade económica fomentada pela NEP exercia
a sua influência, uma vez que nele apenas tinham lugar espetáculos cujas práticas de
construção fossem de eficácia comprovada.48 Em parceria com dois membros da
LEF — Lyubov Popova e Sergei Tretyakov — Meyerhold construiu um novo
espetáculo, A Terra em Tumulto (The Earth in Turmoil), em 1923, onde regressava à
revista política, género que utilizou pela primeira vez na segunda versão de Mistério-
Bufo. O texto, baseado no melodrama La Nuit, do dramaturgo francês Marcel
Martinet, de 1921, surgiu pela mão de Sergei Tretyakov, que criou uma versão
bastante alterada do texto original. Foi esta última versão, a de Tretyakov, que serviu
de base para a criação de Meyerhold que se apresentou sob a forma de uma revista
política dedicada à I Grande Guerra e ao dealbar da Revolução de Outubro. Esta
produção, fragmentada em episódios individuais praticamente independentes entre si,
que se apresentavam, alternadamente, de forma trágica ou em estilo de farsa, 48 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 102.
75
construiu-se através da montagem, característica que, juntamente com a existência de
uma tela para projeções, demonstrava uma influência cinematográfica. Para além da
influência do cinema era possível reconhecer, no cenário de Popova, ecos
construtivistas, uma vez que a sua criação, em estilo de colagem, combinava a
presença em palco de uma estrutura mecânica semelhante a uma grua, que Popova
apelidou de 'máquina-foto-placard', com objetos reais de natureza militar — macas,
armas, veículos —, slogans luminosos e, como já foi referido, a projeção fílmica49.
Salienta-se, também, relativamente ao cenário, a não existência de uma cortina e de o
palco se apresentar como uma plataforma ampla e aberta, iluminada por holofotes. A
presença dos atores não se limitava ao palco construtivista, pois, durante o
espetáculo, acabavam por invadir a plateia pelo corredor central do teatro. Meyerhold
continuou a trabalhar no registo da revista política apresentando, em 1924, no TIM,
um espetáculo baseado no clássico de Ostrovsky, escrito em 1870, A Floresta.
Tal como em The Earth in Turmoil, Meyerhold recorreu à montagem para a
construção deste espetáculo, mais especificamente à montagem paralela, um recurso
versado no cinema mudo da altura, mas até então inédita na arte do palco. Dividida
em trinta e três episódios que não obedeciam à linearidade cronológica da comédia
de Ostrovsky, esta produção nasceu de uma adaptação do texto clássico à época da
encenação, tendo sido introduzidas no espetáculo questões da atualidade russa50,
embora mantendo grande parte da integridade do texto original. Para além da
presença da linguagem cinematográfica, Meyerhold recorreu, também, a formas
circenses e ao teatro popular de feira, apresentando um espetáculo alegre que
combinava um lirismo elevado com uma pitada satírica. Contrastante com as suas
produções anteriores, A Floresta fugiu à austeridade visual de espetáculos como Le
49 Cf. ibidem, 138. 50 Cf. Konstantin Rudnitsky, Russian and Soviet Theatre, Tradition and the Avant-Garde, London, Thames & Hudson, 2000, 178-179.
76
Cocu Magnifique, principalmente devido à conspícua ausência dos prozodezhda a
que Meyerhold havia habituado o seu público, apresentando, desta vez, os seus atores
em figurinos e perucas coloridas prontos a encarnarem máscaras sociais num palco
que começava vazio e se enchia gradualmente de um festival de cores berrantes.
Apesar de fragmentada, esta produção de sucesso era coesa, apresentando unidade
interior, pois todos os seus elementos, mesmo contrastando entre si, tinham em
comum um certo exagero. O exagero era transversal ao lirismo, à sátira e aos
figurinos, tendo sido o grande aglomerador do espetáculo.
Ainda em 1924, Meyerhold voltou a fazer uso da montagem textual com D.E.
(Give Us Europe), cruzando o romance Trust D.E. de Ilya Ehrenberg, com excertos
do romance Der Tunnel, de Bernhard Kellerman e algumas obras de Pierre Hamp e
Upton Sinclair51. O contexto desta produção está intimamente ligado com as
transformações que se fizeram sentir no tecido social moscovita, frutos da
implementação da NEP. O ambiente cultural e social da cidade, altamente permeável
às influências de uma Europa ocidental, era composto por uma dualidade flagrante:
de um lado, aqueles que se alinhavam culturalmente com a Europa, encarada como
decadente; do outro, a juventude soviética que era vista, no contexto da nova ordem
social, como o saudável exemplo a seguir (RUDNITSKY 2000: 103). Foi neste
contexto que surgiu esta revista política em três atos, composta por quinze episódios,
cada um com um estilo de representação próprio e independentes entre si, mas todos
com algum tipo de ligação com o tema central que assegurava a coesão do
espetáculo, construído em redor de uma dualidade muito marcada e reiterada por
todos os elementos que o compunham — desde o cenário à música, passando pelos
figurinos e trabalho de ator — feita da oposição entre representações satíricas de uma
Europa decadente e de representações mais realistas da sociedade soviética. O enredo 51 Cf. Llewellyn H. Hedgbeth, "Meyerhold's "D. E." in The Drama Review: TDR, Vol. 19, No. 2 (Jun., 1975), Cambridge, Massachussets, MIT Press, 24.
77
desta produção permitia uma forte componente de propaganda soviética, uma vez
que o proletariado saía vencedor de um combate direto com o Ocidente, deitando por
terra o plano de domínio mundial de uma organização capitalista formada por
milionários americanos, a D.E, cujo propósito consistia em travar as ideias
socialistas52.
O cenário, da autoria de Ilya Shlepyanov, foi um dos elementos mais
importantes e inovadores desta produção, apresentando-se com contornos
construtivistas, mas desta vez muito mais dinâmico, já que permitia a célere
transformação do mesmo nos mais diversos lugares necessários à encenação. A
construção de Shlepyanov era composta por cerca de dez painéis de madeira pintados
de um vermelho tijolo forte que se assemelhavam a paredes móveis distribuídas pelo
palco como necessário, pois eram suportadas por rodas que o público não via. Aliado
aos painéis de Shlepyanov encontravam-se várias telas para projeção, uma central de
grandes dimensões e duas laterais de tamanho mais reduzido. Na tela central eram
projetados os títulos dos episódios, o local em que estes tinham lugar, as personagens
envolvidas em cada um, bem como a atitude do encenador perante a ação que
decorria em palco. As duas telas laterais eram usadas para projetar informação sobre
as duas forças que se opunham, bem como slogans de propaganda, retratos de líderes
do partido e citações de discursos de Lenine. Assim, as telas contribuíam para
produzir um sentido mais amplo, complementando o trabalho dos atores, mais uma
vez assente na biomecânica, bem como numa forte utilização da pantomima, já que
vários episódios eram caracterizados por uma quase total ausência de diálogo, dando
espaço ao movimento.
Como anteriormente referido, o trabalho do ator era um dos recursos que
ajudavam a construir a dicotomia Ocidente/URSS por meio de um contraste entre
52 Cf. ibidem.
78
personagens. As personagens representativas de uma Europa decadente eram
interpretadas de forma grotesca, como máscaras sociais, ao passo que estava
reservada uma interpretação mais realista e séria aos atores cujo papel estava ligado
ao universo soviético. Os figurinos por eles envergados perpetuavam o já referido
contraste, na medida em que as personagens ocidentais apresentavam-se vestidas de
forma exagerada, mais próxima do clown, tendo sido construídos com grande
atenção ao detalhe e cores berrantes. Regista-se, contudo, uma fraca utilização dos
prozodezhda, reservados apenas aos ajudantes de palco.
Na feitura deste espetáculo construído, como se pode notar, a partir de
contrastes, Meyerhold viu na música mais um elemento para reforçar essa natureza
dupla, contando com a presença de uma banda jazz e uma orquestra que marcaram o
ritmo dos diferentes episódios. Aos episódios dedicados ao ocidente correspondia
uma banda sonora ocidental, plena de temas e géneros musicais populares na altura,
como o fox-trot, e àqueles episódios relativos ao universo soviético correspondiam
temas mais adequados ao contexto, como a Internacional. Tal como a música,
também a iluminação ajudava a marcar o ritmo quase cinematográfico da produção.
A iluminação não criava ambientes nem caracterizava estados de alma, mas servia
antes para acompanhar a ação que se desenrolava por todo o palco consoante os
episódios, tanto podendo ser estática como criar grande dinamismo ao piscar
freneticamente.
Em 1926, Meyerhold regressou a Gogol, encenando um dos grandes marcos
da sua carreira, O Revisor (The Government Inspector), no TIM, onde apresentou
uma nova mudança na sua estética, aproximando-se, aparentemente, da conceção
teatral do TAM. Nesta produção, que suscitou algumas críticas negativas pela forma
como foi abordado o clássico de Gogol, Meyerhold aliou uma dimensão psicológica
subtil à sátira mordaz, equilibrando a produção entre os limites do autêntico e do
79
exagero. Num tom sombrio, Meyerhold pôs a descoberto tudo aquilo que
considerava errado no país e que condenava veementemente, tendo contrariado a
abordagem convencional que transformava o texto em uma comédia estilo vaudeville
e obscurecia a sua dimensão social. Encarando o texto como uma síntese de realismo,
hipérbole e fantasia, embora reconhecesse, também, a presença de uma dimensão
cómica, Meyerhold escolheu enaltecer o seu efeito perturbador decidindo não se
cingir apenas ao texto original. Desta abordagem nasceu uma montagem textual
diferente das que até então havia feito com base nos clássicos, uma vez que estas
últimas assentavam, em grande parte, no respeito pela integridade do texto original.
Contudo, com O Revisor, Meyerhold trabalhou o texto a partir de vários textos de
Gogol, incluindo a primeira versão da peça, datada de 1835, à qual juntou linhas
isoladas de The Gamblers, Marriage e Vladimir of the Third Degree, adicionando,
também, pedaços das Histórias de Petersburgo, criando um texto bem mais extenso
que o original. Dividido em 15 episódios individuais, aos quais Meyerhold atribuiu
um título próprio e uma organização cronológica coincidente com o original de
Gogol, este texto constituiu a base de um espetáculo mais extenso que fora depois
aumentado, também, pela forte utilização de pantomima e de tableaux vivants. Esta
intervenção ao nível do texto marcou mais uma mudança no seu processo criativo,
cimentando o seu papel como autor da produção — chegando até a apresentar-se
como tal no material promocional do espetáculo — contribuindo, uma vez mais, para
a autonomia do papel de encenador. Nas alterações ao texto, Meyerhold pretendeu
não apenas evitar os traços mais cómicos, dando-lhe o já referido tom sombrio, de
maneira a exacerbar a dimensão trágica do mesmo, mas também eliminar o
provincianismo do texto, passando a ação de uma pequena localidade para a cidade
grande. Estas alterações almejavam a recriação, à sua maneira, não apenas do texto
de Gogol, mas de toda a sua época e de todo o passado que a Revolução havia
80
anulado, de maneira a introduzir o tema — transversal a toda a produção — do
passado cinzento e sem vida que culminou na cena final, em que Meyerhold
substituiu as personagens por manequins estáticos.
O cenário, de Viktor Kiselyov, pretendia evocar, de forma complexa, a
atmosfera da década de 1830, mantendo, contudo, a fidelidade aos princípios
tayloristas da economia de tempo, tendo, para tal, construído um cenário que
combatia a elaborada e morosa mudança de cenário. A cenografia foi, em O Revisor,
encarada de forma diferente, não havendo sinais de um construtivismo marcado que
pusesse a nu as paredes do edifício teatral, desta vez ocultas por um semicírculo feito
de imitação de mogno polido e composto por onze portas duplas, cuja secção central
se abria para deixar passar um palco móvel, de dimensões reduzidas, que parava a
sua marcha no centro do palco onde se encontravam três luzes verdes suspensas. Este
truck-stage chegava silenciosamente para encarar o auditório de frente já com os
atores e o cenário preparados. Cada cena neste palco móvel, que surgia da penumbra
como se trouxesse para o presente um passado abafado, era executada com a maior
exatidão e economia de meios, visto que o reduzido espaço para representação e o
elevado número de atores num palco tão pequeno tornava difícil a interpretração.
Dos atores exigia-se, assim, um domínio absoluto das técnicas da biomecânica, as
únicas que permitiam a execução dos movimentos estritamente necessários, com
precisão e integração no trabalho coletivo do elenco, bem como uma perceção aguda
de todos os elementos em palco e respetivos movimentos.
A recriação minuciosa, por parte de Meyerhold, do majestoso estilo imperial
russo, com todo o bronze, a seda, os brocados e a porcelana que isso implicava,
causou alguma perplexidade entre o público, uma vez que aproximava o defensor do
teatro da convenção do estética do TAM, de uma forma mais marcada que a
observada na sua produção anterior, O Mandato. Contudo, esta aproximação era
81
apenas aparente, visto que todos os objetos de época em palco tinham um subtil
toque de exagero, fugindo a um realismo estrito, que acentuava o trabalho do ator e
causava maior impacto visual. Esta opção estética marcou mais uma viragem no
trabalho de Meyerhold em direção a um novo realismo; um realismo seu e, como já
foi salientado, distinto daquele praticado pelo TAM, uma vez que se caracterizava
por uma transformação e adequação de uma certa noção do real para o palco e não
uma mera — embora minuciosa — reprodução da realidade que procurava a criação
da ilusão perfeita, forjando, assim, uma nova tradição teatral. Tal como em D.E., a
banda sonora teve um papel importante neste espetáculo, uma vez que a poderosa
atmosfera de época que Meyerhold recriou era sustentada, em parte, pela partitura
complexa que fora concebida para a produção (BRAUN 1998:217). Outro recurso que
Meyerhold voltou a aplicar em O Revisor prende-se com o cinema e a influência que
a linguagem própria deste meio artístico exerceu nas cenas de maior relevância,
orquestradas como um grande plano cinematográfico, de maneira a explorarem ao
máximo o potencial expressivo da representação (RUDNITSKY 2000: 191).
Meyerhold, num esforço de convergência com o programa do poder dedicou-
se à encenação dos clássicos — ainda que de uma maneira muito sua —, produzindo,
também, espetáculos que incidiam sobre a realidade então vivida, como se constata
nas produções que criticavam os malefícios da NEP ou os problemas da sociedade
russa, como a burocracia, fortemente atacada em um dos espetáculos que nasceram
da última parceria entre Meyerhold e o seu poeta de eleição, Vladimir Mayakovsky,
O Percevejo e Os Banhos.
Após O Revisor, Meyerhold começou a pensar no próximo projeto do TIM,
Eu Quero Uma Criança (I Want a Child), baseado no texto de Sergei Tretyakov.
Chegou até a ensaiar a produção, em 1928, mas a censura impediu-o de o apresentar
ao público devido ao forte conteúdo do texto, que constituía, em grande parte, o
82
motivo pelo qual Meyerhold tanto ambicionava criar este espetáculo. O texto, com
forte conteúdo sexual, centrava-se na polémica questão da eugenia, muito em voga
na Rússia soviética, expressada através da protagonista, a jovem comunista Milda,
que regia a sua vida amorosa por esse mesmo princípio. Devido à natureza
controversa do tema Meyerhold idealizou o espetáculo de uma forma distinta dos
anteriores, transformando o seu teatro numa espécie de arena que seria rodeada de
público por todos os lados. A conceção cénica de El Lissitzky maximizava não
apenas o espaço do velho teatro, mas principalmente a participação dos espectadores,
integrando-os mais na ação, elaborando, assim, uma espécie de performance-debate,
aberta a todos os presentes. Contudo, havia, dispersos pelo auditório, oradores
selecionados para liderar a discussão, uma vez que teriam uma opinião mais 'correta',
promovendo um debate mais 'produtivo' (RUDNITSKY 2000:198).
Ao ver os seus planos para a única produção que verdadeiramente lhe
interessava caírem por terra, Meyerhold regressa aos clássicos e decide levar à cena,
nesse mesmo ano, Woe to Wit, um espetáculo que assinou como autor da produção,
construído a partir da comédia satírica de Alexander Griboedov, Woe From Wit, de
1824, transformado, a partir da primeira versão do original, num drama romântico. O
enredo centra-se no herói, Chatsky, e na sua incursão pelas teias da sociedade
burguesa, meio que acaba por abandonar, desiludido e desconfiado, jurando nunca
mais voltar, após sofrer um desgosto de amor e de ter sido engolido pela
superficialidade, interesses e intrigas da pequena burguesia moscovita. Já em
produções anteriores, como em O Revisor, se havia notado uma certa aproximação
ao naturalismo do TAM, aqui reiterada não apenas pela ausência dos prozodezhda,
mas também pela apresentação dos figurinos, da autoria de N. Ulyanov,
extremamente detalhados e de época. Todavia, estavam longe do naturalismo do
TAM, apenas parecendo participar da estética do teatro de Stanislavsky a um olhar
83
desatento e incapaz de reconhecer neles a mistura de épocas e a proveniência
francesa, já que Ulyanov os concebeu com base numa colagem de estilos tão
diversos como o directório, o primeiro império ou o da restauração, que
demonstravam o excesso de ornamentação e completa falta de gosto na
caracterização dos personagens representativos da sociedade moscovita do velho
regime.
O cenário, de Viktor Shestakov, foi construído, novamente, de acordo com
princípios construtivistas e dinamizado pela ajuda de plataformas e painéis móveis
revestidos de cores intensas, que, tal como em O Mandato, permitiam uma rápida
mudança de cenário, fomentando, assim, a economia de tempo, sempre presente nas
produções de Meyerhold. Em Woe to Wit não houve, mais uma vez, preocupação
alguma em ocultar as paredes do edifício teatral. Não havia pano de boca, bastidores
ou luzes de ribalta. O som de um gongo assinalava o final de cada episódio; este
recurso tão simples contribuía para a manutenção da quebra da ilusão atenuando
qualquer realismo aparente. Os adereços, presentes em número reduzido, constituíam
apenas o essencial necessário à caracterização dos espaços recriados no jogo cénico,
servindo, também, para a criação de efeitos cómicos, como a mesa de banquete de
dimensões excessivas utilizada numa das cenas finais.
A música, como em quase todas as criações meyerholdianas, marcou presença,
em Woe to Wit de forma muito importante, servindo, nesta produção, de ajuda à
recriação da época do texto. A sua importância transparece através da intenção de
Meyerhold em integrar a música na encenação de uma maneira tão marcada ao ponto
de a sua ausência constituir uma grave lacuna no conjunto da produção. De resto, a
música e a musicalidade foram sempre aspetos cruciais na sua arte. A importância da
componente musical para Meyerhold é definida por Law do seguinte modo:
84
(…) music was a vital tool of communication in the theatre, equally
as important as speech, gesture and movement. He believed music could
convey an emotional tonality or psychological coloration far more
effectively than by any other means. Meyerhold also liked music for its
ability to impose and maintain form in a production. (…) Music forced the
performer to keep within well-defined limits. Even in scenes where no
music was used, Meyerhold wanted the performer to feel time on the stage
the way a musician does'. This is one reason why he advocated a return to
the ancient system of chronométrage, the exact timing of each
performance, as a means of controlling form and tempo (LAW 1974:91).
Meyerhold encenou em 1929, com absoluto respeito pelo texto de
Mayakovsky, O Percevejo; espetáculo que veio resolver o problema de reportório em
que o teatro de Meyerhold se encontrava. Estreada a 13 de Fevereiro, esta comédia
satírica de sucesso fora dividida em duas partes distintas: a primeira, passada na
contemporaneidade; a segunda, projetada no futuro, mais precisamente, em 1979.
Para a cenografia da primeira parte, Meyerhold solicitou a colaboração de um jovem,
mas conhecido coletivo de artistas, os Kurkyniksy. A conceção cénica da segunda
parte ficou a cargo de Alexander Rodchenko, que criou um ambiente fantástico,
assético e desprovido de humor, repleto de luzes e gadgets prateados que
caracterizavam um futuro soviético completamente mecanizado, completado por
figurinos híbridos que sugeriam uma mistura de homem com robô, concebidos
também por Rodchenko, semelhantes aos de Malevich para Vitória Sobre o Sol, mas
com uma natureza militar muito mais marcada. Já os figurinos da primeira parte
foram adquiridos diretamente em lojas moscovitas para demonstrar ao público quão
feia e pretensiosa era a moda de então. Relativamente ao trabalho do ator salienta-se
a utilização de pantomima complementar ao texto de Mayakovsky, bem como uma
85
diferença de interpretação de uma parte do espetáculo para a outra. Na primeira
parte, que culminava nas núpcias de Ivan Prisypkin e de Elzevir Renaissance, o
trabalho do ator revestia-se de uma qualidade caricatural ao representar os vícios e
costumes da pequena-burguesia, seguindo a linha de um vaudeville grotesco (BRAUN
1998: 236).
A composição musical ficou a cargo de Dmitri Shostakovich, que havia
concebido um interlúdio para a conclusão da primeira parte do espetáculo, num tom
grotesco e tempestuoso, após o qual a ação era transportada cinquenta anos para o
futuro, bem como o protagonista, Prisypkin, descongelado como uma prova
arquelógica do passado e tratado como um animal de laboratório. A sátira, desta vez,
não se focava num passado pré-revolucionário, mas concentrava-se antes, de forma
muito mordaz, nos problemas do Estado soviético, focando não apenas os resquícios
da velha ordem que teimavam em prevalecer, mas também a conduta de alguns
camaradas que se deixavam fascinar por um estilo de vida pequeno-burguês. A
comédia foi igualmente criticada por considerarem que Mayakovsky exacerbou o
perigo de uma pequena-burguesia ainda prevalecente, mas principalmente por
assumir os contornos de uma sátira, género que deixou de ser bem recebido no
ambiente cultural soviético, sendo os principais críticos a Associação Russa de
Escritores Proletários — a RAPP. Esta associação cultural, fundada em 1925, tinha
por missão a construção de uma nova cultura soviética, em consonância com as
linhas do partido e baseada na supremacia da arte proletária, que deveria assentar no
materialismo dialético e, consequentemente, numa estética realista, facto que
esclarece a crítica feita a O Percevejo. Este espetáculo não integra a lista dos
trabalhos mais inovadores de Meyerhold, todavia, constitui um esforço de
convergência com a necessidade de espetáculos focados numa dimensão mais
contemporânea, bem como um dos resultados da procura de formas mais complexas
86
de teatro com peso político, numa altura em que, com o consolidar do poder
soviético e a transformação do público, as antigas formas mais rudes e simples de
agitação estilo placard, como as registadas em Mistério-Bufo, não tinham mais lugar.
Meyerhold decide encenar uma segunda comédia satírica, também de
Mayakovsky, Os Banhos, no TIM, em 1930. Com estreia a 16 de março, este "drama
em seis atos com circo e fogo-de-artifício" (BRAUN 1998: 238), não escapou à
censura do partido que viu no texto de Mayakovsky uma sátira demasiado
provocadora, opinião formada, segundo Edward Braun53, pela influência de críticos
com um peso partidário que viam na sátira um género nocivo à nova ordem social e
preferiam uma abordagem artística mais realista, sintomas que deixavam a
descoberto o aparecimento do Realismo Socialista. Ora foi exatamente esta atitude
que constituiu, juntamente com a burocracia, o principal alvo da sátira em Os
Banhos. Em algumas cenas era utilizado um grande painel, semelhante a persianas
venezianas, coberto de slogans críticos concebidos em rima por Mayakovsky que
foram igualmente distribuídos pelas paredes do auditório.
O palco, desta vez como nas primeiras produções pós-revolução de
Meyerhold, apresentava-se completamente despido, revelando a parede traseira do
edificio e toda a zona dos bastidores. O cenário, a cargo de Sergei Vahktangov,
arquiteto e filho do encenador, era composto pelos já referidos elementos de
propaganda, bem como por uma estrutura semelhante a um andaime de altura
elevada, composto por uma série de plataformas e escadarias desniveladas.
Desde o cenário, aos figurinos, passando pelo trabalho do ator, tudo se movia
entre dois pólos opostos. A nível do cenário, o pesado conforto do escritório de
Pobedonossikov, repleto de um mobiliário bruto de escritório, como uma grande
cadeira de cabedal e uma série de telefones, contrastava com a construção de
53 Cf. ibidem
87
Vahktangov, utilizada para "ascender" rumo ao futuro. Em relação aos figurinos, o
contraste encontrava-se ao nível da diferença entre a contemporaneidade da
indumentária dos burocratas e os prozodezhda futuristas dos inventores, que
marcavam o seu regresso ao teatro de Meyerhold, após a total ausência em alguns
dos seus espetáculos. O trabalho do ator era também contrastante, novamente à
semelhança de Mistério-Bufo, construindo uma dualidade entre "puros" e "impuros",
formando dois grupos coesos, mas distintos, por meio do trabalho especifico da
linguagem — uma prosa contemporânea para os burocratas e uma poesia fantástica
para o futuro — e movimentos.
A doutrina do Realismo Socialista irrompeu pelo panorama artístico russo, por
volta de 1934, homogeneizando-o e purgando-o de todos os artistas que não se
conformavam em produzir de acordo com as orientações do Realismo Socialista,
tendo sido perseguidos e executados por não se vergarem perante a nova estética — a
única admitida — como foi o caso de Meyerhold que, em Junho de 1939, foi preso e,
a 2 de Fevereiro de 1940, executado.
3) Agit-prop e auto-ativismo
A pesada mão do Realismo Socialista não se fez sentir apenas nos teatros
profissionais, tendo sido, também, o derradeiro golpe num fenómeno que surgiu
durante os anos de Guerra Civil, logo após a Revolução de Outubro, quando, por
todo o país, se alastrou uma febre teatral de iniciativa própria e propagandista. O
teatro de agitação e propaganda54 levado a cabo por coletivos amadores operários e
estudantis, mas também por soldados do Exército Vermelho mobilizados para as
54 O teatro de agitação e propaganda pode definir-se como uma forma radicalizada de teatro político cujo intuito primeiro é a transmissão de uma mensagem específica com uma ligação estreita com o contexto em que os espetáculos se inserem.
88
frentes de guerra, desenvolveu-se em paralelo com a vanguarda teatral russa,
movimento com o qual acabou por trocar impressões, mantendo um diálogo de
formas e conteúdo entre o mundo profissional e a dimensão amadora do teatro
russo. Salienta-se que nem todo o auto-ativismo era agit-prop, uma vez que uma
parte significativa dos coletivos amadores não tinham uma veia militante marcada e
as formas teatrais com as quais construíam os seus espetáculos estavam longe da
inovação trazida pela vanguarda ou que alguns coletivos como As Blusas Azuis
integravam nos seus espetáculos. Contudo, o inverso também se aplica — nem todo
o agit-prop era auto-ativismo — como pudemos constatar com as produções
profissionais de Meyerhold. Na enciclopédia dirigida por Dennis Kennedy55 o agit-
prop vem caracterizado do seguinte modo:
A form of political theatre which presents urgent social issues
from a partisan viewpoint by means of bold rhetorical techniques.
Agitprop aims to inform and mobilize its audience. (…) Agitprop
presentations were structured as a series of punchy and fast-moving
sketches containing references to topical and local news. Intelligibility
was ensured by sloganistic banners, songs, mass chants, heroic tableaux,
stereotyped or satirical characterizations, emblematic props and
costumes, direct address, and audience participation (KENNEDY 2003a:
38).
Este teatro, muitas vezes amador, mas sempre militante, cresceu à margem
das instituições oficiais embora, durante alguns anos, tenha sido apoiado pelo
Partido devido à dimensão didática dos espetáculos e à importância dos mesmos na
55 Dennis Kennedy (ed.), The Oxford Encyclopedia of Theatre and Performance, vol.I, A-L, Oxford, Oxford University Press, 2004, p.38.
89
divulgação da ideologia comunista pelas localidades mais remotas do país. Era um
teatro também fortemente anti-literário, pelo que se focava totalmente na dimensão
do espetáculo, afastado da realidade dos Teatros Académicos. Outro aspeto que o
diferenciava do trabalho de uma instituição profissional convencional era a
dimensão completamente coletiva de criação dos espetáculos, uma vez que a
seleção de temas a serem abordados em palco era feita por todos os membros tendo
em conta as necessidades de um público que se confundia com os próprios artistas
amadores. Esta prática era também alargada a todas as outras áreas que interferiam
na produção do espetáculo. Os textos, quando originais, eram redigidos
coletivamente ou por um comité criado para o efeito, e o mesmo processo era
repetido relativamente aos figurinos, música e cenografia ou qualquer outra área
necessária à feitura do espetáculo.
A prática teatral destes coletivos era condicionada por uma série de fatores,
principalmente de natureza económica, devido aos reduzidos recursos financeiros
que possuíam, obrigando à escolha de formas teatrais práticas, mas eficazes na
transmissão da mensagem, e cenários com uma forte mobilidade — já que estes
coletivos raramente tinham um sítio físico próprio, podendo atuar ao ar livre, em
quartéis, nas fábricas, em escolas, cafés, clubes de operários e em qualquer espaço
que lhes disponibilizassem — muitas vezes simples e reduzidos a uma tela com
formas geométricas pintadas ou alusivo à representação, mas raramente realista,
complementada com alguns adereços, como posters de propaganda ou objetos que
ajudassem a caracterizar o espaço cénico ou os atores em personagem.
O seu caráter amador estava presente também no estilo de representação,
que, regra geral, não se apresentava de forma convencional ou marcada, baseando-
se frequentemente no improviso. O trabalho do ator, que tinha muitas vezes uma
dimensão física acentuada — o que explica a influência que a biomecânica teve em
90
alguns dos coletivos — pretendia despertar no espectador uma atitude crítica e não
tanto apelar ao seu lado mais emocional, o que nos recorda, em parte, o estilo de
representação brechtiano que viria a ser desenvolvido poucos anos depois. As
produções eram feitas de modo a chegar ao máximo de pessoas possível, o que
implicou uma adequação a um público que, nos primeiros anos do regime, era muito
pouco letrado ou até mesmo analfabeto, originando espetáculos simples, curtos,
construídos a partir de rudes dicotomias e com linguagem acessível e clara. Os
temas abordados brotavam do contexto social e político do seu tempo e eram quase
sempre fruto das necessidades da população, ou do Partido, na construção da nova
ordem social, pelo que se centravam sempre em assuntos com aplicação prática — o
que demonstra também na dimensão amadora uma queda para uma arte utilitária —
da mais variada natureza e em consonância com o novo regime. Salientam-se, aqui,
apenas alguns dos temas normalmente abordados, como boas práticas de higiene,
práticas de agricultura, assuntos de política interna e internacional, a emancipação
da mulher, mobilização da população por uma causa, luta anti-religiosa,
consolidação da imagem do Exército Vermelho, as cooperativas, o alcoolismo, a
importância da alfabetização, etc...
O desenvolvimento do agit-prop compreendeu três fases distintas: uma
primeira, de 1917 a 1921, que correspondeu à sua aparição de forma espontânea
numa época de grande convulsão social; uma segunda fase, a intermediária, de 1922
a 1926, caracterizada por uma reorganização do género e inserção do mesmo no
aparelho cultural institucional; e uma terceira, e última, fase, de 1927 a 1932, em
que se regista uma decadência progressiva, pela sua natureza contrária ao Realismo
Socialista (BABLET 1977: 15-16). Na primeira fase, vivida nos anos do comunismo
de guerra, a proliferação de coletivos amadores foi, como já aqui se referiu, muito
intensa, pelo que a sua abundância impossibilita um levantamento exaustivo dos
91
mesmas, de maneira que apenas se salientaram alguns, escolhidos pela sua
importância, alcance e influência na criação de mais círculos auto-ativos e de
agitação e propaganda, bem como pelas suas formas inovadoras. São eles, o TRAM
e As Blusas Azuis.
O TRAM — ou o Teatro da Juventude Operária — surgiu, oficialmente, em
1925, na cidade de Leninegrado, como fruto de um clube dramático de sucesso,
criado em 1919 pela mão de jovens ansiosos por participarem ativamente na
construção e consolidação do então recente regime soviético, mas cuja idade os
impedia de combater nas frentes da Guerra Civil. Muitos dos seus membros
integravam o Komsomol — a juventude comunista —, mas outros tantos eram
apenas simpatizantes, embora todos desejassem ser mais agitadores do que artistas.
O TRAM foi, desde os seus primeiros passos até ao seu desaparecimento, passando
por um processo de profissionalização, sempre liderado pela visão artística de
Mikhail Sokolovsky. Num primeiro momento o TRAM focava-se essencialmente
em temas de agitação política, passando, a partir de 1926, a dedicar-se quase
exclusivamente à agitação dos costumes, influenciando a forma de viver da
juventude de Leninegrado. Apesar de ter sido fundado com um espírito de auto-
ativismo exclusivamente amador e inteiramente dedicado à juventude, como
salientou Rudnitsky:
[t]he theatre's programme presupposed that only productions
dedicated to the lives of young workers would be produced on its stage,
and that only the young workers themselves would collectively create
these productions, writing the plays and performing them as well.
TRAM's stage categorically renounced the desire to have anything in
common with 'real' theatres: the plays of professional dramatists and the
92
skills of professional actors were both rejected (RUDNITSKY 2000:
203).
O TRAM acabou por se profissionalizar, em 1928, sob a égide de
Sokolovsky, recebendo o estatuto de Teatro de Estado, com todos os benefícios e
aspetos negativos que isso implicava. Por um lado, o apoio financeiro era maior e
conquistaram um espaço físico próprio, por outro, o seu reportório começou a ser
condicionado, principalmente a partir de 1934, com a imposição das diretrizes do
Realismo Socialista, que levou a uma reestruturação do coletivo. Para que este
encaixasse melhor no novo programa estético do regime o TRAM de Leninegrado
viu-se obrigado não apenas a encenar os clássicos e autores soviéticos consagrados
em vez de continuar a produzir os seus próprios textos, bem como a criar
espetáculos realistas com um trabalho de ator em concordância, mais
individualizado e com uma marca psicológica forte. A sua natureza e missão
originais foram, deste modo, postas em causa, e o TRAM, já em declínio, foi, em
outubro de 1936, fundido com o Teatro Vermelho, dando origem ao Teatro de
Estado da Juventude Comunista Leninista.
O TRAM organizava-se em "grupos" especializados em cada uma das áreas
que intervinham na concepção e produção dos espetáculos sempre com o objetivo
comum de propaganda. Para além do grupo dramático e do grupo literário, havia
também uma secção de artes plásticas, onde a pintura convencional de cavalete,
embora tivesse o seu lugar era relegada para segundo plano, pois era dada
preferência a formas mais inovadoras e práticas de expressão plástica que serviam,
após concretização, não apenas para a decoração de clubes locais e espaços
públicos, mas também para a feitura dos próprios espetáculos. Tarefa semelhante
estava guardada para o setor da dança e música, sendo esta última utilizada de
93
forma diversa nos espetáculos, podendo ser mero acompanhamento, mas também
completar a caracterização de personagens e fazer a ligação entre episódios. O teatro
não era, como podemos constatar, a única atividade deste coletivo, uma vez que
tinha, também, por objetivo a dinamização da vida social e cultural da cidade, tendo
igualmente preocupações ao nível da educação cívica e política, da qual constituem
bons exemplos os debates públicos promovidos em torno dos temas mais
significativos para a juventude soviética.
Foi da criatividade dos seus membros que nasceram os textos encenados
pelo TRAM desde a sua estreia, que aconteceu, mais precisamente, a 21 de
novembro de 1925, com um original de Arkadi Gorbenko, um jovem de raízes
operárias, Sachka, A Peste, uma peça de costumes que retrata a história de um
jovem rebelde e indisciplinado, a quem o estudo pouco ou nada diz e cujas
companhias são apresentadas como prejudiciais. Seguiram-se muitas outras peças,
entre as quais se salientam Tempestade na Fábrica, de 1926, de Dmitri Tolmatchev,
uma peça de agitação construída a partir da habitual dicotomia proletariado versus
inimigos de classe; A Rotina Quotidiana, do mesmo ano — apresentada mais de
duzentas vezes, número demonstrativo do seu sucesso — que aborda a dificuldade
de adaptação à realidade de um trabalho quotidiano monótono vivida por um jovem
que inicia a sua vida ativa já no período da NEP, fruto de uma parceria entre Moura
Kachevnik e Pavel Marintchik. Também de 1926, Uma Pequena Burguesa de Pavel
Marintchik — onde são abordados temas como a emancipação da mulher e a sua
relação com o novo regime, a igualdade entre os sexos e a boa conduta no
matrimónio — e uma segunda contribuição de Gorbenko, em 1927, intitulada O
Padrinho ou Sachka, A Peste no Campo, onde é resgatada a figura do jovem
rebelde.
94
Os temas destes, como de todos os textos apresentados pelo TRAM de
Leninegrado, brotavam, não da inspiração dos seus autores, mas das discussões
promovidas entre os seus membros. Uma vez aceite, pela coletividade, como um
tema útil e representativo dos interesses dos jovens, era iniciado um processo de
construção do espetáculo — sempre em grupo — partindo da busca de formas
cénicas, bem como de uma linha a seguir no desenvolvimento do raciocínio que
culminaria na transmissão da mensagem principal ao público (BABLET 1977a: 113).
Nestas discussões coletivas, todos os membros participavam, desde os autores aos
atores, passando pelos músicos, cenógrafos e técnicos de palco. Os assuntos
tratados, sempre ligados, como já foi referido, à vivência da juventude, dividiam-se
entre os costumes e os temas de propaganda política e industrial. Todos estes temas
eram trabalhados de forma aberta, dando origem a espetáculos, de certa forma,
incompletos, o que pressupunha uma participação ativa e crítica dos espectadores,
ou seja, um espetáculo do TRAM nunca se apresentava como fonte hermética de
soluções, mas antes como um espaço de problematização de questões essenciais à
vida, de maneira a fomentar o debate público, que, de resto, acompanhava quase
sempre as suas produções, tendo lugar no final da representação.
Os personagens que habitavam o reportório do TRAM eram, quase sempre,
jovens comunistas de proveniência operária, alguns divididos entre hábitos antigos e
novos costumes, gerados com base nas contradições da nova sociedade soviética,
espelhando conflitos profissionais, familiares e amorosos. Estas personagens
esquemáticas, com pouca consistência dramática, nem sempre se apresentavam
donas de uma conduta exemplar; característica propositada, uma vez que assumiam
uma função didática, fazendo crítica de costumes em palco, onde ostentavam
atitudes contraditórias, embora adequadas ao meio social em que se inseriam.
Contudo, nunca assumiam uma dimensão psicológica nem apresentavam traços de
95
individualização, sendo mais semelhantes a máscaras sociais, como constatou
Amiard-Chevrel:
Les auteurs ne cherchent d'ailleurs pas du tout à montrer les
variations subjectives d'un être complexe dans une situation donnée, mais à
soumettre au jugement collectif des comportements caractéristiques de leur
groupe social, mis en situation. Ces personnages 'dialectiques' selon le terme
des animateurs sont l'une des originalités du TRAM et ont prête le flanc aux
attaques de ses ennemis (BABLET 1977a: 115).
A marca da diferença do TRAM, ou seja, a sua qualidade auto-ativa
demarcada da dimesão profissional do teatro, revelou-se, também, na atitude do
coletivo em relação aos seus intérpretes. A palavra "executante" era preferida em
detrimento de "ator", o que, de certa forma, também distanciava o trabalho do
jovem coletivo do teatro do passado, posição demonstrativa da aversão por tudo o
que era reminiscente da velha ordem. O trabalho do executante não assentava numa
dimensão psicológica e individualizada, mas antes no trabalho do corpo — à
maneira meyerholdiana — : dinâmico, ritmado e exigente. Inicialmente os
executantes eram amadores pouco versáteis, mas competentes para o estilo de
representação que surgiu naturalmente nos espetáculos do TRAM. As exigências
feitas ao executante ideal constituem uma boa caracterização do trabalho de
representação feito nos espetáculos do coletivo:
Un interprète tramiste doit savoir parler, discuter, convaincre, sur
scène et dans la vie, avec un texte préparé avec ses propres phrases: il doit
savoir chanter, pratiquer les jeux de masse et la danse populaire, et
organiser des ensembles auto-actifs en ce sens, et toujours le faire bien, en
96
bon ouvrier de choc. Il doit posséder son corps et ses mouvements par un
entraînement gymnique et acrobatique (BABLET 1977a: 120).
Todavia, a profissionalização do coletivo trouxe novas exigências e pôs a
descoberto as fraquezas dos intérpretes, notórias fora do estilo habitual. Até então
haviam sido operários de dia e executantes de noite, mas depois de 1925 foi-lhes
exigida não apenas uma dedicação exclusiva ao TRAM, passando a ser
remunerados pelo trabalho de interpretação, mas também um maior domínio da sua
técnica. A incapacidade para a representação naturalista levou à criação de um
programa de ensino, com uma duração de três anos, cujo programa incidia
principalmente no treino de voz e elocução, embora abordasse também história do
Teatro, desporto e cultura física, dança, música e algumas técnicas particulares
como o improviso, a pantomima, caracterização do ator, etc.
As produções do TRAM, apesar de se revestirem, frequentemente, de
características próprias das peças de costumes, não se encaixavam nos tradicionais
moldes cénicos utilizados para encenar peças daquela natureza, uma vez que
constituíam não apenas uma síntese do trabalho de cada um dos grupos do coletivo
— que concertavam os seus esforços de forma específica para cada espetáculo
encenado, embora as formas de que se revestiam não sofressem muitas alterações de
espetáculo para espetáculo — mas também pela sua natureza híbrida de teatro de
agitação e teatro de vanguarda. De forma sucinta, pode-se dizer que a técnica —
cenografia, iluminação, sonoplastia e trabalho de ator — utilizada pelo TRAM
nascia do contacto com a vanguarda profissional, mas o seu espírito e missão era
comum ao teatro de agitação e propaganda. Nos espetáculos do jovem coletivo,
eram introduzidas peças musicais cantadas e comentários ao diálogo, bem como
momentos de dança e de exibição física que afastavam as produções do TRAM das
97
tradicionais peças de costumes. Outro aspecto característico dos seus espetáculos
prende-se com a interrupção do diálogo de maneira a dar-se uma comunicação
direta entre executantes e público a quem era explicada ou evidenciada uma questão
importante, como faria um conferencista. Outros espetáculos apresentavam-se mais
na linha do jornal vivo de A Blusa, abordada com maior pormenor mais à frente56,
sendo constituídos por uma sucessão rápida de episódios, comunicados e paradas
coletivas (BABLET 1977a: 116). Em alguns espetáculos faziam uso dos novos meios
de comunicação, seguindo as experimentações dos teatros profissionais de
vanguarda com linguagem e ritmos cinematográficos e atribuindo também à rádio
um papel de destaque.
Apesar da diversidade de formas, todos estes espetáculos partilhavam uma
disrupção da linearidade cronológica, sendo constituídos, por meio da sucessão de
episódios de duração díspar que misturavam espaço e tempo, através de um
processo de montagem. As cenas, apesar de fragmentadas, não apresentavam
validade individual como episódios independentes, uma vez que só quando
articuladas entre si é que faziam sentido. Desta maneira, os espetáculos do TRAM,
fruto, como já foi referido, da fusão do teatro de agitação e da experimentação dos
teatros profissionais de vanguarda, apresentavam-se como debates — fazendo
lembrar o estilo de The Dawn57. Este estilo é caracterizado por Amiard-Chevrel da
seguinte forma:
[l]a fable traditionnelle est brisée au profit d'une construction
'dialetique'; les personnages ne sont pas des 'caractères', psychologiquement
justifiés, dont le destin attire le public; chaque personnage est une 'unité
56 Vid. p.99. 57 Vid. p.57.
98
dialectique de contradictions' qui aide le public à comprendre et à résoudre un
problème politique le concernant (BABLET 1977a: 117).
Ao conseguir um espaço próprio, em 1925, após o processo de
institucionalização, a necessidade de mobilidade deixou de condicionar as
produções do TRAM, principalmente a nível cénico. A cenografia do TRAM
baseou-se, num primeiro momento, na apresentação de um mínimo essencial de
acessórios em palco que ajudavam à caracterização dos lugares cénicos, à frente de
um simples pano de fundo meramente sugestivo. No entanto, o cenário
complexificou-se com a estabilização num local próprio, passando a apresentar
elementos simples de inspiração construtivista, como uma escadaria, utilizada no
espetáculo Tempestade na Fábrica, que serviu de base para a dimensão física do
trabalho do executante, mas também estruturas mais intrincadas como a utilizada
em Pierrot la Cloche Réfléchit composta por escadarias que ligavam plataformas
desniveladas e semi-cilindros de metal rebitado que tanto eram apresentados do seu
lado côncavo como do convexo assinalando interiores e exteriores.
O TRAM de Leninegrado foi um verdadeiro sucesso, constituindo não
apenas um marco importantíssimo no auto-ativismo, mas também uma forte
influência na juventudo facto constatado pela criação de vários TRAMs por toda a
Rússia soviética. Tal como o TRAM, também A Blusa Azul de Moscovo deu
origem a imensos coletivos semelhantes por todo o território russo.
As Blusas Azuis foram coletivos artísticos ambulantes, abertamente
políticos, direcionados para espetáculos de agitação e propaganda que, durante os
anos vinte, surgiram por toda a União Soviética, sendo a moscovita a primeira,
constituindo o modelo seguido por todas as outras que foram posteriormente
instituídas. Criada em outubro de 1923, por Boris Yuzhanin, o seu nome deriva dos
99
figurinos usados em palco por todos os seus membros, que tiveram origem nas
prozodezhda de Meyerhold. Eram fatos de trabalho, de cor azul, que substituíam os
figurinos convencionais, uniformizando o coletivo em palco e permitindo, também,
mobilidade total e economia de tempo na caracterização. Este coletivo deu os seus
primeiros passos em atuações que tinham lugar em clubes operários e cantinas
fabris. Ligada, desde a sua fundação, ao Instituto de Jornalismo de Moscovo, —
embora tutelada, a partir de 1924 pela União dos Sindicatos de Moscovo —, A
Blusa moscovita organizou um periódico próprio que contou com oitenta fascículos
onde constam reproduções dos melhores sketches apresentados em palco, bem como
fotografias e indicações cénicas.
A história do coletivo pode ser esboçada com o foco em três fases distintas,
descritas por Claudine Amiard-Chevrel58, pelas quais A Blusa passou. A primeira,
compreendida entre 1923 e 1926, é a verdadeira fase do jornal vivo, em que este foi,
juntamente com o sketch de agitação política, a forma exclusiva de espetáculo
utilizada pel'A Blusa. O conteúdo destes espetáculos, compostos por uma espécie de
resumo das questões atuais, seguido de um número especial dedicado a um aspeto
particular, era essencialmente político e inspirado nas questões contextuais, sempre
ligadas à vida dos operários locais. Apesar do seu nome, jornal vivo, na prática, o
espetáculo não assumia a forma de um verdadeiro jornal impresso, embora
oferecesse alguma variedade de 'artigos'. Durante este primeiro período o processo
de construção dos espetáculos era verdadeiramente coletivo, uma vez que tinha
início no círculo dos correspondentes que recolhiam a informação — ou
diretamente do meio local em que a Blusa se inseria ou a partir de telegramas da
ROSTA — e que, em seguida, a facultavam ao círculo literário que procedia a uma
58 Cf. Claudine Amiard-Chevrel, "La Blouse Bleue" in Théâtre Années Vingt, Le Théâtre d'Agit-Prop de 1917 -
1932, Tome I: L'URSS - Recherches, Denis Bablet et. al. (dir), Lausanne, La Cité, 1977, pp.99-109.
100
seleção de temas que depois trabalhava de forma cénica. O círculo dramático e o
musical ficavam, posteriormente, encarregues da representação e interpretação do
espetáculo, sempre em estreita colaboração com o círculo de artes plásticas, cuja
principal função era a cenografia.
A segunda fase, que compreende os anos 1927 e 1928, apresentou uma
transformação dos métodos e tom utilizados pela Blusa nos seus espetáculos, que já
não se encontravam limitados apenas ao jornal vivo e peças de agitação política. O
aparecimento de géneros mais diversos aplicados à realidade soviética, como a
revista, o vaudeville, operetas, melodramas e comédias ligeiras, números
humorísticos de variedades, etc., foi motivada por um reconhecimento, pela parte do
poder, do esgotamento do simples trabalho de agitação que animava A Blusa na sua
primeira fase. Esta intervenção implica uma quebra na iniciativa própria do
coletivo, bem como uma maior exigência artística, que se acentuou na terceira e
ultíma fase da vida deste coletivo, que teve lugar entre 1928 e 1930, durante a qual
o peso do controlo da União dos Sindicatos de Moscovo, organismo que tutelava a
Blusa desde 1924, aumentou consideravelmente.
No entanto, durante a sua fase de maior atividade independente, As Blusas
pretendiam combater tanto a preocupação estética pura, como a agitação desprovida
de formas cénicas e literárias apropriadas, procurando construir espetáculos
equilibrados, que fossem simultaneamente plenos de conteúdo e completos no que
toca à dimensão cénica e performativa, optando, deste modo, por recorrer a técnicas
desenvolvidas pela vanguarda, passando, também, pela herança do teatro popular
russo, bem como por formas próprias como o living newspaper, ou "jornal vivo".
Esta forma, uma espécie de teatro documento, surgiu por necessidade, nos círculos
operários e clubes de província, dado que o grosso da população russa era iletrada e,
consequentemente, impossibilitada de se manter atualizada em relação aos
101
acontecimentos importantes do seu tempo. Perante esta incapacidade surgiram
leituras públicas dos periódicos diários que foram tornadas mais complexas
progressivamente, tendo sido introduzidos elementos que captassem melhor a
atenção dos ouvintes, tornando as leituras mais dinâmicas e mais próximas dos
espetáculos de A Blusa, que, normalmente, combinavam a representação dos
assuntos noticiosos, divididos em episódios de curta duração e auxiliados por
elementos pictóricos como posters e slogans que integravam os cenários, com
acrobacias e números de dança musicados.
Contudo, A Blusa Azul não se pautou apenas por formas por ela criada,
como já foi referido, buscando na tradição popular uma série de formas menores
que integrou nos seus espetáculos de maneira adaptada, tendo uma atitude próxima
de Meyerhold, com quem partilhavam um olhar crítico sobre a herança cultural,
selecionando o que nela encontravam de mais apelativo para depois adaptar à nova
realidade soviética. Nessa incursão pelo passado, A Blusa recuperou géneros como
o melodrama, a opereta, o guignol e o vaudeville, bem como algumas ténicas
circenses e personagens típicas do imaginário popular russo. Todavia, essas
pequenas formas, que substituíram gradualmente o jornal vivo, não foram apenas
fruto de um trabalho de recuperação, uma vez que também nasceram de uma atitude
inovadora, como é o caso do cabaret rouge, processo de agitação, peças alegóricas,
entre outras.
Os espetáculos de A Blusa, nos primeiros anos da sua existência, em que o
jornal vivo era o cerne, apresentavam uma estrutura fixa, cujo início era marcado
por uma entrada coletiva dos atores em palco — acontecimento semelhante a uma
parada militar — ao som de uma marcha, constituindo, assim, o primeiro de muitos
momentos musicais que surgiam ao longo do espetáculo, visto que todos os temas
principais eram, muitas vezes, apresentados em forma de canção. Um resumo do
102
tema principal era apresentado, após a entrada em cena dos atores, em jeito de
editorial de um jornal, que, por sua vez, era seguido da exposição dos temas
secundários, feita de forma breve. Em seguida, passavam pelo palco crónicas
diversas, artigos críticos, telegramas e um ponto de situação da política
internacional, bem como monólogos ritmados, tanto em prosa como em verso, que
abordavam hábitos e costumes. Havia também uma rubrica humoristica que
antecedia o final do espetáculo, assinalado por uma parada semelhante à inicial, por
meio da qual todo o elenco abandonava o palco.
Os personagens que animavam os espetáculos de A Blusa eram máscaras
sociais e personificações da mais variada natureza, não havendo lugar para qualquer
caracterização individual, geralmente divididas numa simples dicotomia de
revolucionários e inimigos de classe. Os temas que estas personagens apresentavam
variaram consideravelmente ao longo dos anos, visto que eram fruto de um
contexto específico, selecionados em função da situação internacional, bem como
da realidade social e política russa. Não divergiam muito do que foi já
anteriormente referido como temas comuns aos coletivos de agit-prop. Num
primeiro momento, em que o jornal vivo era a forma eleita de espetáculo, os temas
tinham um forte cunho político, mas, a partir de 1927-1928, essa dimensão política
perde força e A Blusa segue um novo rumo, mais focada nos costumes, chegando,
por vezes, a abandonar por completo os temas de agitação. Tal como Meyerhold,
também A Blusa acedeu ao apelo anti-burocrático do Partido, tendo-se dedicado, de
forma semelhante, aos problemas de industrialização a partir de 1929-1930. No
âmbito deste último tópico, abordavam temas concretos e práticos, como técnicas
de trabalho e produção fabris, ritmos de produção, a presença das mulheres nas
unidades fabris e toda uma panóplia de assuntos relativos à indústria. No processo
evolutivo dos temas abordados pelo coletivo operário é notória uma inversão da
103
forma de tratamento dos temas, uma vez que, inicialmente, lutavam por alcançar
objetivos, promovendo assuntos, ao passo que, nos seus últimos anos de atividade,
A Blusa optou por um método mais combativo, batendo-se contra um assunto
específico, usado esporadicamente por entre números de divertimento puro.
No que toca à composição dos textos, salienta-se a brevidade, a clareza e a
linguagem simplificada — embora muitas vezes sob a forma de verso adaptado à
voz coletiva — que os revestiam de uma qualidade próxima do cartaz de
propaganda política. Estes textos eram frequentemente baseados na dicotomia
inimigos da classe / proletariado russo e seus aliados, que seria depois adaptada
consoante as necessidades trazidas pelo tema abordado, fosse ele um evento
político nacional ou internacional. Os diálogos que constituíam os textos eram
construídos sobre a premissa de personagens apresentadas como máscaras sociais, o
que implicava resumirem-se, muitas vezes, a uma síntese pré-concebida das
posições de cada um dos tipos sociais consoante o tema do episódio em questão.
Relativamente à representação destes espetáculos, salienta-se a importância
capital do trabalho do ator, que se regia por uma recusa do apelo ao lado emotivo
dos espectadores — recusa, essa, reiterada pelo conteúdo do texto — e foco na
racionalidade crítica do público. O ator de A Blusa, completamente afastado de uma
atitude criadora da ilusão, não deveria ser um ator versado na expressão do
psicológico, como preferiria Stanislavksy, mas antes, de uma maneira mais próxima
à conceção meyerholdiana, um intérprete com uma capacidade física e domínio
corporal excelente, complementadas por uma versatilidade absoluta. Todavia, o
intérprete ideal de A Blusa não deveria ser apenas um agitador puro, versátil e capaz
de se integrar na coletividade, pois havia, também, a preocupação da existência de
convicções políticas marcadas aliada a uma conduta moral irrepreensivel à luz da
ética proletária e costumes soviéticos, mesmo fora do palco. O palco, esse, era
104
regido por uma necessidade de mobilidade e adaptabilidade, bem como por recursos
financeiros escassos, restrições que se traduziam na ausência de qualquer
construção cénica. Amiard-Chevrel recorda o habitual cenário de A Blusa da
seguinte maneira:
Sur un fond de rideaux, des affiches, des placards, des panneaux
légers surgissent au moment opportun, posés ici ou là, accrochés à un
costume, tenus par un acteur. Quelques accessoires symboliques en carton
peint, des bancs ou des chaises dont les combinaisons permettent des effets
infinis — tels sont les seuls éléments de décor. Les placards et les calicots
portent des inscriptions, des chiffres, des diagrammes, un drapeau national
pour iindiquer un pays, le nom du personnage que l'acteur incarne.
(BABLET 1977a: 106)
A Blusa não se preocupava com movimentos ou correntes estéticas, pelo que
os seus espetáculos eram feitos com recurso às mais variadas formas sem qualquer
tipo de restrição, havendo, no coletivo, uma predileção especial pela voz, pelo
movimento, assim como pelo recurso à tradição popular (BABLET 1977a: 106). A
voz mantinha uma presença marcada devido às origens do jornal vvo, que deixou
nos espetáculos de A Blusa a marca da recitação, levada a cabo de forma alternada,
por um intérprete individual e pela voz coletiva. No entanto, a voz não se esgotava
na palavra falada, visto que os espetáculos tinham, também, números musicais. As
"leituras" quer corais, quer individuais, eram marcadas por uma elocução dinâmica,
que dividia o texto consoante o sentido do mesmo, ritmando-o de maneira a
destacar-lhe as principais ideias, com a ajuda, também, de pausas enfatizantes e
entoações apropriadas. A declamação era frequentemente acompanhada de música
105
— elemento também importante para o coletivo que tinha uma secção encarregada
apenas dessa tarefa —, criada por um piano e um acordeão ou, ocasionalmente, por
uma pequena orquestra, que pautava o ritmo da produção.
O movimento era um dos componentes mais importantes do jornal vivo — o
que reforça a tónica posta no trabalho do ator pela ausência de uma cenografia
elaborada — e organizava-se pelo sentido global do texto representado e não tanto
pelo conteúdo de cada segmento. A movimentação dos atores tomava as mais
variadas formas, gravitando entre a dança e a acrobacia, com ritmos diversos,
chegando até à mímica — do movimento das máquinas fabris, por exemplo —
passando pelo clown. Deste modo, compreende-se melhor a aproximação do
trabalho do ator de A Blusa à teoria da biomecânica, bem como a estética
profundamente anti-realista dos espetáculos deste coletivo.
V. DADA
O movimento Dada surgiu, oficialmente, em 1916, no ambiente neutro de
Zurique, pela mão de um casal alemão, Hugo Ball e Emmy Hennings, que havia
abandonado o seu país de origem motivado pela conjuntura política e social de uma
Europa em plena Grande Guerra. O entretenimento noturno oferecido pelos cabarés
era já popular na Munique que abandonaram, cuja vida era caracterizada, em parte,
por um meio artístico bastante boémio, realidade estranha à cidade em que
posteriormente se instalaram e onde criaram o Cabaret Voltaire, marco
importantíssimo na história do movimento, que se revestiu de traços partilhados
com a filosofia iluminista e com a espontaneidade do cabaré (DACHY 2005: 11).
106
Originado sob a influência do cruzamento do abstracionismo pictórico e da
vanguarda poética, Dada proclamava uma insurreição total, pretendendo obter
repercussões a nível social e político, mas também na mentalidade das pessoas,
através da renovação completa do conteúdo, das formas e dos processos de criação
artística. Dada foi, da mesma forma, um fruto do grito de revolta de uma juventude
profundamente afetada pelas consequências devastadoras da I Grande Guerra e que
apresentava como objetivo primeiro fazer tábua rasa dos valores sociais e políticos
que haviam conduzido o velho continente ao estado de devastação e sofrimento em
que se encontrava. A expressão dessa revolta tomou como suas formas elementares,
produzindo uma arte que se apresentava revestida de uma certa ingenuidade pueril,
aspeto que se reflete, desde logo, no batismo de um movimento59 que pretendia,
também, dar origem a uma crise no seio da própria Arte. Todavia, a tomada de
posição destes artistas estava longe da ingenuidade que caracterizava as suas
criações, uma vez que constituíam uma arte radicalmente nova cujo caráter
revolucionário extravasava a dimensão estética atingindo o domínio do político.
Recorrendo, como tantos outros movimentos de vanguarda, ao manifesto
para expôr as linhas mestras do seu programa, o DADA fez uso para o efeito, da
mão de Hugo Ball em 1916 e, posteriormente, em 1918, da de Tristan Tzara. No
manifesto de 1916 a incidência sobre a palavra e a linguagem é bastante clara,
demonstrando uma preocupação mais literária, embora se apresente Dada, logo nas
primeiras linhas, como uma nova tendência artística que se tornaria, por certo,
rapidamente popular. Ao longo do texto constata-se frequentemente a importância
59 Apesar de haver várias versões acerca da génese do nome do movimento, que variam consoante a fonte do
testemunho, é geralmente aceite a ideia que tem por base o acaso, tendo sido o nome retirado de um Larousse de
forma aleatória, tendo apenas por critério uma sonoridade que assentasse bem na grande maioria das línguas e
que não fosse uma palavra corrente com um significado fixo. Assim, Dada foi o termo escolhido "parce qu'il
représentait ce sentiment de naïveté, ce sens de pureté, d'art naturel, d'art intuitif" (DACHY 2005: 15-16).
107
da simplicidade como uma das principais características do movimento que se
mostrou, também, como a solução para a cisão com a racionalidade ocidental; para
a rutura com o jornalismo banalizador da linguagem e com a ordem e moral
burguesas. Relacionada com a banalização da palavra encontramos outra questão
essencial no manifesto de 1916: a desconstrução da linguagem como veículo de
inovação. Ball foi uma das figuras capitais no processo, por meio dos seus poemas
sonoros, apresentados da seguinte forma no já referido manifesto:
I shall be reading poems that are meant to dispense with conventional
language, no less, and to have done with it. (…) I don't want words that other
people have invented. All the words are other people's inventions. I want my
own stuff, my own rhythm, and vowels and consonants too, matching the
rhythm and all my own.60
Já o manifesto de Tzara, de 1918, consideravelmente mais longo e ilustrado,
contém informação um pouco mais objetiva acerca deste novo sintoma. Nele, Tzara
expressa também o desejo de rutura lado a lado com a necessidade de uma
transformação completa da sociedade em que se inseriam, assim como uma crítica à
moral e valores burgueses. Digno de nota é, também, a descrição que faz do novo
artista; do artista DADA:
The new painter creates a world whose elements are also its
means, a sober, definitive, irrefutable work. The new artist protests: he
no longer paints (symbolic and illusionistic reproduction) but creates
directly in stone, wood, iron, tin, rocks, or locomotive structures
60 Vid. http://www.ubu.com/papers/ball_dada-manifesto.html
108
capable of being spun in all directions by the limpid wind of the
momentary sensation.61
Contudo, Tzara não se cinge ao artista, uma vez que aborda, muito
brevemente, a questão do espectador, do recetor da obra de arte, que, apesar de
pouco desenvolvida, permite já notar uma certa vontade de mudança em relação ao
tradicional estatuto passivo, mostrando uma atitude que pretende torná-lo mais
autónomo, mais ativo.62 Ao longo do texto de 1918 há, também, um reforçar quase
constante da importância da subjetividade e do individuo, preferido em detrimento
da comunidade em relação à qual mantinham uma atitude de desconfiança. A
apologia da liberdade, da simplicidade, da espontaneidade e da sensibilidade está
também presente, bem como uma revolta contra a estética realista, a psicologia e a
lógica. Num testemunho separado do manifesto, mas igualmente significativo,
Tzara caracteriza Dada como detendor de
(…) un but humain, un but éthique extrêmement prononcé! L'écrivain
ne faisait aucune concession à la situation, à l'opinion, à l'argent. (…) Dada
n'était seulement l'absurde, pas seulement une blague, Dada était l'expression
d'une très forte douleur des adolescents, née pendant la guerre de 1914 et
pendant la souffrance. Ce que nou voulions, c'était faire table rase des valeurs
en cours, mais, au profit, justement, des valeurs humaines les plus hautes...
(DACHY 2005: 34).
Em termos práticos o Dada expressava-se através de novas formas de
produção artística, sendo a colagem e o acaso as mais significativas. A colagem era
61 Vid. http://www.ubu.com/papers/tzara_dada-manifesto.html 62 "This world is neither specified nor defined in the work, it belongs, in its innumerable variations, to the spectator", ibidem.
109
utilizada muito frequentemente, tanto a nível das artes plásticas, como também de
produção de texto, sendo um bom exemplo desta última aplicação os poemas que
Tzara foi convencido a construir através de recortes de palavras, em vez de
caligrafados. O acaso era, do mesmo modo, um processo legítimo de produção
artística, utilizado, alguns anos mais tarde, de forma sistemática, por Marcel
Duchamp.
Ball e Hennings, apesar de fundadores do Cabaret Voltaire, não foram os
únicos impulsionadores deste movimento que, após um período de forte
internacionalização — o Dada marcou presença também em Berlim, Paris, Nova
Iorque e até em Tóquio — conheceu o início do seu declínio em 1922 — na
"Conferência sobre Dada" em que Tristan Tzara proclamou a morte do movimento
— que viria a acentuar-se no ano seguinte. Juntamente com Tristan Tzara, Jean Arp,
Richard Huelsenbeck, Sophie Taeuber e Marcel Janco, Ball e Hennings criaram e
dinamizaram um espaço de expressão artística livre e subjetiva, mais literária e
pictórica que teatral, embora com uma componente performativa muito grande,
ligado à tradição do cabaré.
O Cabaret Voltaire, cuja atividade tinha como objetivo assinalar a existência
de uma realidade alternativa ao conflito bélico e patriotismo que inundavam a
Europa daquela época, bem como às convenções artísticas burguesas, fora decorado
com os contributos dos artistas que acudiram ao anúncio de Ball, formando um
coletivo de indivíduos independentes, que pretendiam reger a sua vivência por
novos ideais. O Voltaire não se limitava a ser um espaço de mostra da aplicação
prática do Dada às artes plásticas, uma vez que constituiu, também, palco para as
soirées de leitura performativa que rapidamente agitaram a vida cultural de Zurique.
A noite de estreia, a 5 de fevereiro de 1916, marcou o início de uma curta vida — o
110
cabaré, contrariamente ao movimento, durou apenas cinco meses —, que atraiu uma
multidão para a sua pequena sala, foi publicitada da seguinte maneira:
Cabaret Voltaire. Under this name a group of young artists and writers
has been formed whose aim is to create a centre for artistic entertainment.
The idea of the cabaret will be that guest artists will come and give musical
performances and readings at the daily meetings. The young artists of
Zurich, whatever their orientation, are invited to come along with
suggestions and contributions of all kinds (GOLDBERG 2010: 56).
Esse primeiro espetáculo aconteceu com a presença de uma pequena
orquestra de balalaikas que entoavam canções populares russas, acompanhadas de
números de dança tradicional, ao qual se seguiu um número musical em francês
oferecido por Emmy Hennings e leitura de poemas originais por parte de Tzara,
escritos em romeno, a sua língua materna. Muitas noites semelhantes à primeira se
seguiram, por vezes dedicadas a uma nacionalidade específica — como noites
russas ou francesas — em que foram recitados poemas de Kandinsky, Blaise
Cendrars, Laforgue, entre outros, alternados com números musicais. Salienta-se,
também, a leitura de Ubu Roi de Jarry, por Jean Arp, a 14 de março de 1916, no
âmbito de uma noite francesa.
O material para estas soirées era recolhido do trabalho individual de cada
um dos artistas de um coletivo que se forçava constantemente a inovar a sua
produção. Foi sob a égide deste esforço que surgiram, pela primeira vez, a 30 de
março de 1916 a leitura simultânea de versos de Henri Barzun e Fernand Divoire,
juntamente com um poema composto por Tzara, Huelsenbeck e Janco. Ball
descreveu o conceito de poema simultâneo como um recitativo contrapontual no
111
qual pelo menos três vozes falavam, cantavam, assobiavam e produziam barulhos
da mais variada natureza em simultâneo, de tal forma que nem sempre o discurso
era produzido de forma clara o bastante para se lhe assimilar o significado, havendo
um maior efeito sonoro que literário (GOLDBERG 2010: 58). Outro aspeto original
destas noites foram os já referidos poemas sonoros de Ball, próximos da parole in
libertà de Marinetti e do Zaum, cuja leitura de 23 de junho de 1916 foi registada no
seu diário com alguns pormenores referentes ao figurino por ele utilizado:
(…) on his head he wore 'a high, blue-and-white-striped witch
doctor's hat'; and his legs were covered in blue cardboard tubes 'which came
up to my hips so that I looked like an obelisk'; and he wore a huge cardboard
collar, scarlet inside and gold outside, which he raised and lowered like
wings. He had to be carried onto the stage in the dark and, reading from
music stands placed on the three sides of the stage, he began 'slowly and
solemnly': gaji beri bimba/ glandridi lauli lonni cadori/ gadjama bim beri
glassala (…) (GOLDBERG 2010: 61).
Para além do figurino extravagante, que lhe condicionava em muito os
movimentos, obrigando a uma postura essencialmente estática, Ball trabalhava a
voz de uma forma que aproximava o seu tom dos cânticos religiosos da igreja
católica, adotando a cadência ancestral das lamentações sacerdotais (DACHY 2005:
27). Todavia, não foram apenas Ball e Tzara, com as suas inovações poéticas, que
dinamizaram a atividade inédita do Cabaret, uma vez que digna de registo é,
também, a contribuição feita por Marcel Janco ao trazer para o espaço máscaras da
sua autoria, que parecem ter sido ponto de partida para um novo ambiente mais
arrojado e performativo. As máscara, feitas de cartão, corda e tinta, sob a influência
de um certo primitivismo tribal, eram demonstrativas da influência de culturas
112
alheias à ocidental — como aconteceria também, embora com maior relevância, na
estética artaudiana — mas também bastante moderna. Estes acessórios não só
pareciam pedir figurinos à altura, como todo um novo trabalho de corpo nas
performances dadaístas que se revelaram mais exageradas e influenciadas por uma
certa loucura.
Foi também Marcel Janco quem pintou uma representação destas soirées,
mas foi Jean Arp que a traduziu em texto:
On the stage of a gaudy, motley, overcrowded tavern there are several
weird and peculiar figures representing Tzara, Janco, Ball, Huelsenbeck,
Madame Hennings, and your humble servant. Total pandemonium. The people
around us are shouting, laughing, and gesticulating. Our replies are sighs of
love, volleys of hiccups, poems, moos, and miaowing of medieval Bruitists.
Tzara is wiggling his behind lie the belly of an oriental dancer. Janco is playing
an invisible violin and bowing and scraping. Madame Hennings, with a
Madonna face, is doing the splits. Huelsenbeck is banging away nonstop on the
great drum, with Ball accompanying him, on the piano, pale as a chalky ghost
(GOLDBERG 2010: 60).
Após este primeiro momento vivido no Cabaret Voltaire o movimento
tornou-se mais popular, mais público e, de certa forma, também mais "oficial",
incorporando um maior planeamento nas suas atividades. A sua essência ingénua e
espontânea havia sido posta em causa, pelo que Ball afastou-se, tendo Tzara
ocupado a cabeça do movimento. Sob a liderança de Tzara salienta-se o
aparecimento de uma revista, a Dada, bem como de eventos de maior dimensão, as
grandes noites Dada, que eram, em muito, semelhantes às serate futuristas,
113
animadas por uma variedade de números de poesia, música, dança e performance,
cujo intuito principal era o choque do e com o público.
O Dada desenvolveu-se numa total liberdade de fusão artística, através da
qual foi possível conjugar sob um só tecto dança, máscaras e figurinos
extravagantes, happenings, manifestos, poesia sonora e simultânea, o cruzamento de
culturas; tudo. Com Dada tudo era possível. Estes artistas opuseram à pesada
herança cultural que não podiam mais abraçar, uma originalidade e inventividade
constantes, bem como uma relação direta e subjetiva entre o artista e a sua arte,
combatendo, deste modo, uma submissão do mesmo às convenções estéticas em
vigor. Contudo, o Dada foi perdendo, gradualmente, a sua força, de forma
proporcional ao aumento da sua popularidade e alcance tornando-se um movimento
cada vez mais exausto à medida que se tornava maior, mais público, mais difundido,
mais oficial.
VI. Antonin Artaud
Figura carismática da história do teatro, ligada brevemente ao movimento
surrealista, Antonin Artaud foi mais homem de teoria que de prática, embora tenha
fundado o Teatro Alfred Jarry (1926-1928), juntamente com Roger Vitrac, tendo
encenado um número reduzido de peças de entre as quais a adaptação da obra de
Shelley Les Cenci, de 1935, é recordado como a mais significativa. O seu
misticismo e linguagem fantástica um tanto vaga fascinou durante décadas muitos
praticantes das artes de palco que encontraram nos seus escritos uma liberdade
criativa muito distante da visão aristotélica do teatro.
Tal como todas as expressões de vanguarda anteriormente referidas, Artaud
opunha-se à tradição ocidental e respetiva cultura empedernida que, na sua ótica, era
114
contrária à verdadeira cultura que deveria ser primitiva e espontânea. Esta cultura
ocidental consagrada era a grande influência na base do teatro que então se fazia e
que Artaud desprezava, uma vez que o considerava vazio de espírito, embora
demasiado carregado no que tocava à configuração cénica e espacial, opinião que se
destaca, desde já, como uma crítica da estética realista e convenções de teatro
burguês. Contudo, Artaud refere a necessidade e o seu desejo pessoal de recuperar
um certo ambiente sombrio presente nas tragédias gregas — uma importante parcela
da tradição cultural ocidental — para formar o seu novo teatro. Este teatro
procurado por Artaud fazia uso de todos os recursos possíveis de se utilizar em
palco — gestos, sons, luzes, barulhos (ARTAUD 1994: 12) —, bem como de uma
radical desconstrução da linguagem e consequente afastamento das formas
aristotélicas que eram, como referido no primeiro capítulo, centradas em textos com
um enredo logicamente encadeado e discurso racional.
O seu esforço de edificação de uma nova estética teatral pretendeu traduzir-
se em um teatro que tivesse um efeito semelhante ao de uma praga quando esta
contagiava uma localidade. Por outras palavras, Artaud pretendia que o espetáculo
se repercutisse em um efeito caótico de destruição da ordem de tal forma que levaria
à libertação e purificação dos vivos. O seu teatro pretendia, deste modo, ser um
veículo para a desintegração da ordem social vigente; a burguesa, que, tal como
acontecia com o teatro que dela brotava, Artaud pretendia ver destruída. A praga, tal
como o seu teatro, poria a descoberto a desordem latente, levando-a ao extremo e
libertando tanto conflitos como o inconsciente reprimido, manifestando-se como
uma crise total após a qual nada resiste para além da morte ou purificação extrema
(ARTAUD 1994: 31). Outra consequência a advir deste espetáculo praga prende-se
com a revelação ao homem da sua dimensão mais sombria e mais escondida,
facultando-lhe uma noção mais verdadeira de si mesmo que o convidaria a agir, face
115
ao destino, de forma superior e heróica, como aconteceria, talvez, com a tragédia
clássica.
A apologia da cultura oriental em detrimento da ocidental constitui um dos
leitmotiv da obra artaudiana. No teatro ocidental que, então, era regido
exclusivamente pela ditadura do discurso não havia o devido lugar para os
elementos que ele considerava essenciais à teatralidade, como a linguagem do gesto,
a mímica, a pantomima, as posturas, atitudes, entoações objetivas, em suma, tudo o
que era especifico da teatralidade (ARTAUD 1994: 40). Artaud encontrou todos estes
elementos conjugados de forma equitativa, bem como a distância necessária perante
o drama psicológico, no teatro oriental, em especial no de Bali, situado no extremo
oposto do teatro burguês e que Artaud descreve da seguinte forma:
In the Oriental theater of metaphysical tendencies, as opposed to the
Occidental theater of psychological tendencies, this whole complex of
gestures, signs, postures, and sonorities which constitute the language of stage
performance, this language which develops all its physical and poetic effects
on every level of consciousness and in all the senses, necessarily induces
thought to adopt profound attitudes which could be called metaphysics-in-
action (ARTAUD 1994: 44).
Não era apenas o distanciamento do texto dado pela linguagem cénica do
teatro de Bali que Artaud admirava, uma vez que apreciava, de forma semelhante, a
dimensão ritualística em que aquele se baseava por ter preservado uma tradição
milenar que continha em si os segredos da verdadeira teatralidade expressados
através de uma mistura de dança, música e pantomima. Contudo, o teatro de Bali
não descurava a dimensão mais próxima do teatro ocidental, dando alguma
116
importância, também, ao enredo. É com as palavras de Artaud, espectador atento e
fascinado, que aqui se esboça uma caracterização deste teatro:
[It] begins with an entrance of phantoms; the male and female
characters who will develop a dramatic but familiar subject appear to us first
in their spectral aspect and are seen in that hallucinatory perspective
appropriate to every theatrical character, before the situations in this kind of
symbolic sketch are allowed to develop. (…) mechanically rolling eyes,
pouting lips, and muscular spasms, all producing methodically calculated
effects which forbid any recourse to spontaneous improvisation, these
horizontally moving heads that seem to glide from one shoulder to the other
as if on rollers, everything that might correspond to immediate psychological
necessities, corresponds as well to a sort of spiritual architecture (…)
(ARTAUD 1994: 53-55).
Outro aspeto que seduziu profundamente Artaud e que é, de certa forma,
referido na citação anterior, relaciona-se com a preponderância absoluta do papel do
encenador cujo poder criativo neutralizava o poder do texto. Era esse o nível de
controlo do espetáculo que Artaud pretendia alcançar, não deixando margem para
improviso. Esta presença dominadora do encenador implicaria uma curtíssima
margem de manobra para o ator que, apesar de essencial ao espetáculo, seria apenas
um títere, estatuto que, certamente, encheria de orgulho Gordon Craig.
Os temas do teatro de Bali eram vagos, abstratos e muito gerais, ganhando
vida apenas por meio dos artificios de palco, que se impunham perante os sentidos
através de uma utilização diferente do gesto e da voz, e contribuiam para um
afastamento da função de lazer, tão comum no teatro ocidental. O teatro balinense
117
estava longe de ser um divertimento, revestindo-se de uma qualidade cerimonial que
pretendia criar estados espirituais afastados da realidade quotidiana.
Para Artaud, o ocidente havia prostituido a ideia de teatro (ARTAUD 1994:
37), facto que encarava como consequência de este revolver essencialmente em
redor da dimensão literária, oferendo ao texto o lugar de topo na hierarquia dos seus
constituintes, uma realidade que se esbateu desde então, mas que durante séculos
regeu a convenção teatral no ocidente. A desilusão de Artaud com esta supremacia
do texto no teatro vem do facto de ele não o considerar como um elemento
característico do palco, mas antes como algo exclusivamente literário que pertencia
a uma esfera artística completamente diferente. O teatro precisava de procurar a sua
própria linguagem; uma linguagem concreta e física, construída por tudo o que
pudesse ocupar o palco e que tivesse por alvo primeiro os sentidos, em vez de
encarar a razão como filtro primário, como sucedia com o discurso. Esta linguagem
direcionada para os sentidos deveria, acima de tudo, satisfazê-los; preenchê-los, por
meio de uma poesia do espaço distinta da da palavra, que materializaria a nova
linguagem necessária ao teatro que Artaud idealizava e que tinha por objetivo a
produção de imagens materiais equivalentes às palavras, isto é, teria por objetivo a
criação dos hiéroglifos referidos, por várias vezes, nos seus textos críticos. Esta
poesia espacial foi definida por Artaud da seguinte forma:
(…) this poetry in space capable of creating kinds of material
images equivalent to word images. (…) This very difficult and complex
poetry assumes many aspects: especially the aspects of all the means of
expression utilizable on the stage, such as music, dance, plastic art,
pantomime, mimicry, gesticulation, intonation, architecture, lighting, and
scenery (ARTAUD 1994: 38-39).
118
Para que esta linguagem pura, de valor ideográfico, fosse eficaz necessitava
de ser concreta, ou seja, de produzir significado de forma objetiva através da sua
presença ativa em palco. Por conseguinte, Artaud não admitia a presença em palco
de elementos meramente superficiais e decorativos, alheios à produção de
significado que poderia ser criado por meio de combinações de linhas, formas,
cores, objetos no seu estado natural, mas também através de uma linguagem do
gesto.
Tal como a praga e o teatro oriental, a crueldade constitui outro conceito
central na sua obra, que o próprio Artaud sente necessidade de clarificar por não
coincidir com a noção convencional do termo. A palavra crueldade deveria ser
tomada num sentido mais amplo e não na sua dimensão de agressividade física, uma
vez que, para ele, significava rigor, intenção e decisão implacáveis, irreversibilidade
e determinição absoluta perante o espectador (ARTAUD 1994: 101). O teatro da
crueldade deveria ser, acima de tudo, um veículo de agitação dos sentidos e dos
nervos do espectador, que era, literalmente, o elemento central à volta do qual o
espetáculo acontecia. Este espetáculo total fazia-se por meio dos mais variados
recursos, desde som, a luz, objetos modificados, gestos, movimentos, cores, etc. O
trabalho sonoro seria constante e estimularia o público por meio de sons, barulhos e
gritos orquestrados não apenas pelo que representariam, mas também pela sua
capacidade de ativação e agressão dos sentidos. A luz seria trabalhada de forma
semelhante ao estímulo sonoro, salientando a sua capacidade sugestiva e poder de
invasão dos sentidos. Lado a lado com o jogo de luz e sonoplastia surgiria o
dinamismo da ação, que não pretendia ser mera reprodução da vida quotiana, mas
antes comunicação de forças em estado puro. Artaud propôs, assim, um teatro feito
de imagens violentas que agrediam e hipnotizavam os sentidos do espectador, longe
119
da psicologia, do realismo e do discurso racional como elemento central; um teatro
que encenasse forças naturais e que provocasse no espectador um transe sensorial.
O ator da crueldade seria, como já foi referido, um instrumento do
encenador, envergando figurinos geométricos, distintos da indumentária moderna,
de reminiscências ritualistas, que o fariam parecer um hieróglifo animado. O
trabalho deste ator era baseado numa certa objetividade e economia do gesto, bem
como num domínio fortíssimo da mímica, levado a cabo num espaço radicalmente
diferente do espaço teatral convencional, que revolucionaria a relação entre palco e
auditório. O espetáculo total que Artaud defendia deveria ter lugar num espaço
amplo, com um lugar central reservado ao núcleo da ação — mas que não era
efetivamente um palco — e que permitisse rodear o espectador por todos os lados,
destruindo qualquer barreira entre público e atores, maximizando a comunicação
entre ambos, de formar a tornar o espectador mais ativo. A arquitetura ideal para um
espetáculo total é descrita por Artaud como um espaço aberto,
(…) enclosed by four walls, without any kind of ornament, and the
public will be seated in the middle of the room, on the ground floor, on
mobile chairs will allow them to follow the spectacle which will take place
all around them. In effect, the absence of a stage in the usual sense of the
word will provide for the deployment of the action in the four corners of the
room. Particular positions will be reserved for actors and actions at the four
cardinal points of the room. The scenes will be played in front of
whitewashed wall-backgrounds designed to absorb the light. In addition,
galleries overhead will run around the periphery of the hall as in certain
primitive paintings. These galleries will permit the actors, whenever the
action makes it necessary, to be pursued from one point in the room to
120
another, and the action to be deployed on all levels and in all perspectives of
height and depth (ARTAUD 1994: 96-97).
Os temas do teatro da crueldade eram escolhidos com o espetáculo em
mente, sendo constituídos por matérias universais ou históricas, do conhecimento
geral, para que o público não se perdesse na dimensão racional do espetáculo ao
focar a sua atenção na compreensão do enredo. Este espetáculo incluiria música,
dança, pantomima e mímica, fazendo uso de movimento, harmonia e ritmo sem
obedecer a qualquer hierarquia.
Em suma, o teatro que Artaud procurava deveria ser altamente estimulante a
nível sensorial e cuidadosamente planeado de uma ponta à outra. A sua natureza
surpreendente seria composta por súplicas, gritos, aparições, figurinos de inspiração
ritualista, que se encontrava também no trabalho da voz, harmonia, ritmo, música,
objetos de dimensões peculiares, cores, movimentos, elementos de uma extrema
diversidade que se conjugaria para a produção de uma linguagem teatral pura,
formando hieróglifos produtores de sentido, como alternativa à forte presença do
texto. Todavia, apesar do manifesto desgosto em relação à autoridade do texto no
teatro ocidental, Artaud não pretendia bani-lo por completo do seu espetáculo ideal,
mas antes desconstruir a linguagem de uma forma reminiscente da teoria surrealista,
concedendo-lhe apenas a importância que lhe é reservada no onírico. O teatro por
ele defendido materializava-se, desta forma, num espetáculo primitivo e intemporal,
dotado de uma universalidade próxima da da tragédia ática.
121
Capítulo III
Novas Dramaturgias
O teatro dramático assenta num domínio absoluto do texto, que constitui o
topo de uma estrutura fortemente hierarquizada, onde os elementos verdadeiramente
teatrais — como a cenografia, o trabalho de luz e de som, os figurinos, etc. — são
relegados para segundo plano, como salientado no primeiro capítulo, concebidos
segundo as necessidades de um enredo logicamente construído com base numa
linearidade cronológica. Neste teatro, regido pela unidade de tempo, de ação e de
lugar, a dominância da comunicação intra-cénica é notória, bem como a exclusão de
qualquer elemento ou fenómeno exteriores ao cosmos fictício criado. Ao espectador
do teatro dramático é oferecido o desenrolar de um enredo de forma lógica e de
compreensão relativamente fácil, havendo uma comunicação de significado através
de signos teatrais que são normalmente apresentados de forma enfatizada e
ordenada, sendo-lhe reservado um papel de observação relativamente passiva, uma
vez que o espetáculo assume uma forma acabada que transmite o significado fixo
pelo texto, limitando-se o espectador a preencher as lacunas previsíveis. O estatuto
122
do ator no teatro dramático resume-se a um veículo de produção de sentido, por
meio da mimesis, que deverá encarnar personagens bem delimitadas, de carácter e
dimensão psicológica convenientemente desenvolvidos. O espaço do teatro
dramático é um lugar fechado sobre a ficção, que pressupõe uma barreira entre o
palco e a plateia, havendo uma distinção clara entre onde uma começa e a outra
acaba.
Com a vanguarda chegaram a recusa das formas convencionais e a
desconstrução da linguagem — recorde-se a parole in libertà de Marinetti, o Zaum
de Khlebnikov ou as aventuras linguísticas do movimento Dada — e o teatro entrou
na era da experimentação, enveredando por um caminho de recusa do texto como o
seu cerne e de maior preocupação com os elementos que tinham um carácter mais
teatral, tal como desejou Artaud. Isto implicou não apenas uma nova liberdade
concedida às artes de palco, mas também a perda de referências consagradas em
termos de construção e receção de espetáculo. Foi necessário, então, uma procura
por novas formas, mais adequadas a uma teatralidade marcada. Contudo, muito do
que foi feito pela vanguarda não constituiu uma rutura tão radical assim, uma vez
que alguns espetáculos ainda mantinham certos traços dramáticos, como a
representação mimética ou a conceção assente na representação de mundos fictícios
provenientes de textos literários, como foi o caso do teatro de Meyerhold.
Foi a partir dessa nova liberdade, trazida pelo esforço de distanciação da
vanguarda em relação à tradição cultural e artística, que se forjaram muitos dos
traços que caracterizam hoje as novas dramaturgias e que contribuíram para dar ao
teatro uma nova direção, libertando-o do jugo da literatura, desconstruindo a sua
ligação com o drama. Essa desconstrução atingiu um nível de maior intensidade a
partir das décadas de sessenta e setenta do século XX, momento do verdadeiro
123
aparecimento das formas pós-dramáticas. A partir deste marco, o teatro como mera
produção mimética de sentido sintético torna-se, em grande parte, uma miragem.
O espectador do teatro dramático é geralmente encarado como um mero
voyeur63, alguém que se limita a observar a ação em palco — embora nunca de
forma totalmente passiva, porque a ela reage, acabando sempre por influenciar o
texto performativo, como nos lembra Erika Fischer-Lichte — e que não goza de um
papel especialmente ativo. Esta realidade foi desafiada por Vsevolod Meyerhold ao
propor uma alternativa ao que ele chamava de teatro triângulo64, que reservava ao
espectador um local exterior à estrutura triangular de criação do espetáculo,
limitando-se a observar e receber um significado acabado. A alternativa
materializou-se na conceção do teatro como uma cadeia em linha reta, que contava
com o espectador como co-produtor do espetáculo, integrando-o na estrutura
criativa, visto ser necessário um esforço de síntese da sua parte para ultrapassar o
desafio apresentado pela desconstrução da linearidade cronológica e unidade
espacial que, muitas vezes, marcavam os espetáculos do encenador revolucionário.
Também os Futuristas Italianos pretendiam um espectador mais ativo, e até
participante, usando, para o efeito, a provocação direta e a agressividade, de
maneira a forçá-lo a sair da anestesia da observação. Artaud pensou, de forma
semelhante, um novo papel para o espectador do teatro da crueldade, visto que, tal
como muitas outras figuras de vanguarda, criticava o papel passivo reservado ao
espectador no teatro ocidental. Com a estimulação extrema dos sentidos e a
transmissão de significado através de uma escrita hieroglífica construída por meio
da utilização livre dos elementos teatrais, Artaud forçava o espectador a uma
produção crítica e sintética de sentido, integrando-o no centro do espetáculo,
63 Recorde-se as posições dos Futuristas Italianos e de Antonin Artaud sobre o espectador do teatro dramático, expostas no segundo capítulo desta dissertação. 64 Vid. p.49.
124
tornando, por conseguinte, o seu papel muito mais significativo no produto teatral
final. É este papel ativo, integrado no espetáculo — por vezes literalmente, como no
caso do Teatro Invisível de Augusto Boal ou do espetáculo de Christoph
Schlingensief, Bitte liebt Österreich (Por Favor Amem a Aústria), de 200065 — que
é reservado ao espectador das novas dramaturgias. A fragmentação e a
simultaneidade da escrita cénica levam-no à dispersão da sua atenção pelos vários
signos apresentados em palco, processo que o obriga a uma seleção dos elementos
que mais o cativam e que este julga serem mais significativos para retirar do
espetáculo a(s) ideia(s) nele presentes para serem colhidas. Não há mais um
significado finito, fruto da visão autor ou do encenador, como acontece no
dramático, ou até no teatro de Meyerhold, que apesar de reservar alguma liberdade
ao espectador que deseja ativo, baseava-se frequentemente numa interpretação do
texto literário a ser aplicada ao palco. Nas novas dramaturgias o espectador
emancipa-se, como afirma Rancière66, tornando-se intérprete ativo, e a receção do
espetáculo faz-se através do recém-descoberto poder de associação e dissociação,
tratando-se "de ligar o que se sabe com o que se ignora; trata-se de os sujeitos serem
ao mesmo tempo performers que põem em jogo as suas competências e
espectadores que observam o que estas competências podem produzir num contexto
novo, junto de outros espectadores" (RANCIÈRE 2010: 28).
Também o ator vê o seu papel tradicional posto em causa. O seu trabalho
deixa de ter como fundamento exclusivo o princípio mimético devido à diminuição
da importância do texto dramático que, por sua vez, provoca uma desconstrução do
antropocentrismo, relegando a ação humana para segundo plano. De nota são,
também, espetáculos como os do coletivo Rimini Protokoll, em que não há a
65 Vid. http://www.schlingensief.com/index_eng.html 66 Cf. O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, Lisboa, Orfeu Negro, 2010.
125
utilização do ator profissional, mas antes o que o coletivo apelida de "especialistas
do quotidiano", pessoas convencionais, sem formação artística, que sobem ao palco
para dar ao auditório testemunhos de base real.
Nas novas dramaturgias a fisicalidade é frequentemente acentuada67, porque
o corpo do ator não se limita ao estatuto de mero signo produtor de sentido e passa a
valer por si mesmo, como signo teatral, não precisando de obedecer a uma
representação de estilo naturalista, como salientou Lehmann:
The body becomes the centre of attention, not as a carrier of
meaning but in its physicality and gesticulation. The central theatrical
sign, the actor's body, refuses to serve signification. Postdramatic
theatre often presents itself as an auto-sufficient physicality, which is
exhibited in its intensity, gestic potential, auratic 'presence' and
internally, as well as externally, transmited tensions (LEHMANN
2009: 95).
Esta fisicalidade das novas dramaturgias manifesta-se de várias formas,
oferecendo-se, muitas vezes, de maneira chocante e provocatória, criando corpos
violentados, deformados ou incapacitados, que se desviam da norma provocando no
espectador um fascínio, mas que também problematizam o seu papel enquanto
responsável pelo espetáculo, especialmente nos casos em que o limiar da dor é
transgredido perante um olhar permissivo da plateia. O afastar do corpo da
dimensão significante põe fim à leitura e interpretação dos seus movimentos como
um texto complementar ao enredo e o corpo passa a demonstrar-se apenas a si
próprio por meio dos gestos, movimentos e ritmo que produz. O ator pode ser,
67 Podemos aqui estabelecer um ponto de contacto com a biomecânica de Meyerhold, que dava aos seus espetáculos uma forte dimensão física, embora o princípio pelo qual se regessem os seus atores fosse ainda mimético.
126
também, um mero porta-voz, como acontece no teatro de Elfriede Jelinek, onde a
desconstrução das personagens é levada ao extremo, tornando o ator mero veículo
de transmissão dos seus textos fragmentados (LEMOS 2009: 4). Por último,
salientam-se aqueles casos em que o ator se apresenta a si mesmo sem qualquer
esforço de construção de uma ilusão — recurso que dificulta a distinção do real e do
fictício — como em Entrelinhas, de Tiago Rodrigues, em que Albano Jerónimo se
apresenta como ele próprio.
A fronteira entre o ator e o espectador pode ser também esbatida através da
incorporação direta do público no espetáculo e não somente através do seu estatuto
de intérprete ativo, anteriormente abordado através do conceito de espectador
emancipado. O espectador é, frequentemente, forçado a interagir com os atores e a
definir, em primeira mão, o rumo do texto performativo. Um exemplo prático deste
tipo de espetáculo materializou-se em Chegadas68(2011), concebido pelo Teatro do
Vestido, em que as atrizes abordavam o espectador, questionavam-no, conduzindo-o
entre os vários espaços onde o espetáculo decorreu, e tornaram-no personagem ao
implicá-lo diretamente na ação. Esta fusão de papeis69 só foi possível devido a uma
transformação a nível do espaço — radicalmente distinto do espaço convencional,
uma vez que o local onde ocorreu o espetáculo foi o apartamento lisboeta que
funciona como sede do coletivo — que, por meio da sua dimensão reduzida, fez do
espetáculo um acontecimento intimista, proporcionando uma relação estreita entre
atrizes e público, ambos colocados no mesmo plano, destruindo o cosmos fictício
essencial ao teatro dramático.
A transformação do espaço constitui outro fenómeno presente nas novas
dramaturgias, cuja génese remonta à vanguarda histórica. O desenvolvimento de
novas formas de espetáculo trouxe consigo a necessidade de novos espaços teatrais 68 Vid. http://teatrodovestido.org/blog/?page_id=4261 69 Cf. Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, p.124.
127
que pudessem ser palco mais adequado para as experimentações em curso. Como
constatado no segundo capítulo, Meyerhold começou por modificar radicalmente a
arquitetura do espaço convencional posto à sua disposição, que despiu por completo
para melhor o adaptar à estética das suas encenações, projetando, nos últimos anos
da sua vida, a construção de um edifício teatral que suprisse todas as suas
necessidades enquanto encenador. As atividades levadas a cabo pelo TRAM em
espaços públicos são também representativas da necessidade de libertação do teatro
relativamente ao espaço que lhe era convencionalmente reservado. Não podemos
deixar de salientar, também, os espetáculos nos clubes operários postos em cena
pela Blusa Azul, nem as representações excêntricas de Eisenstein e Tretyakov
levadas a cabo em fábricas moscovitas. Por último, mas não menos importante,
relembramos, aqui, a detalhada descrição que Artaud fez do espaço adequado ao seu
Teatro da Crueldade70. Em todas estas alterações espaciais desejadas pela vanguarda
um dos pontos comuns consistia na necessidade de alteração do espaço do teatro
para um maior contacto do público com o espetáculo, destruindo a barreira entre
palco e auditório, obstáculo à verdadeira comunhão. Semelhante necessidade surgiu
com as novas dramaturgias, para as quais a disposição do espaço do teatro à italiana
não fazia mais sentido, uma vez que este se organizou com base nas necessidades de
um teatro dramático. O teatro passou, então, a procurar espaços novos — muitas
vezes espaços com uma função primária que em nada ligada ao teatro, e que ao
serem utilizados como sala de espetáculo permitem que o público os veja com um
novo olhar estético — ora amplos e de grande escala, ora de dimensões mais
reduzidas, criando um espaço mais íntimo, mas sempre fora da norma do espaço
convencional. A procura de espaços públicos, presente já na vanguarda histórica,
mantém-se nas novas dramaturgias, da qual o já referido Bitte liebt Österreich de
70 Vid. p.118
128
Schlingensief é um ótimo exemplo, encenado no espaço em frente à Ópera de
Viena, com a qual o cenário contrastava profundamente, visto ser composto por um
aglomerado de contentores de transporte de mercadorias vedado de forma
semelhante a um estaleiro de construção civil. O espaço enquanto edifício teatral
alcança, com as novas dramaturgias, um papel que ultrapassa o da mera moldura da
ação dramática, passando a apresentar-se a si próprio. Chega, também, a ser co-
produtor de espetáculos que se moldam à sua arquitetura, tomando para si um lugar
central em muito distinto do papel secundário que o teatro dramático lhe atribui.
Este elemento do espetáculo teatral ganha um novo fôlego, também, num teatro que
Lehmann apelida de "teatro da voz", em que a importância do espaço é capital, uma
vez que é o veículo principal do som, por ele definido da seguinte maneira:
The postdramatic theatre here is a theatre of the voice, the
voice being a reverberation of past events. (…) The condition for the
theatre of the voice is an architectural space which through its
dimensions enters into a relationship with individual human speech,
with the imaginary space of this voice. (…) [T]he space equally
becomes a player in its own right (…). Intrigue, story or drama are
hardly present; instead distance, emptiness and in between space are
turned into autonomous protagonists. The actual dialogue takes place
between sound and sound space, not between interlocutors. The
figures each speak on their own. (LEHMANN 2009: 76).
O espaço cénico das novas dramaturgias não é constituído, como o do teatro
dramático, pela norma da unidade de lugar, em que reina a via intermédia71, situada
71 "The renunciation of conventionalized form (unity, self-identity, symmetrical structuring, formal logic, readability or surveyability (…) the refusal of the normalized form of the image, is often realized by way of recourse to extremes." Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, p.90
129
algures entre um espaço saturado de signos e um espaço minimalista. Esta nova
conceção do espaço opta por um desses extremos, preferindo ou a pletora72 —
presente no espetáculo de 2010, Uma Família Portuguesa, em cena no Teatro
Aberto — ou a privação quase total de signos representados em palco. Ambos os
extremos exigem mais do espectador do que o espaço cénico convencional, uma vez
que através da saturação de signos é exigido ao espectador uma observação crítica
com poder de síntese, e a ausência deles pressupõem um colmatar de lacunas com o
auxílio da imaginação de cada espectador, recurso frequentemente utilizado nos
espetáculos da Cornucópia.
Com o desaparecimento de uma dramaturgia regulada pelo texto literário o
espaço cénico abre-se para uma dramaturgia visual, o que não implica que seja
organizada em termos exclusivamente visuais, apenas que se rege por uma lógica
própria e não se molda às necessidades do texto. A ausência de hierarquia dos meios
teatrais potenciou uma forma de conceção de espetáculo que não só poderá
incorporar formas de arte exteriores ao Teatro — criadas autonomamente para um
espetáculo para o qual todas convergem, método usado já na conceção dos
espetáculos do auto-ativismo russo —, como ter por base os mais variados recursos
de linguagem cénica. Entre essa panóplia imensa de recursos destacamos a recusa
da síntese de sentido, construída, em parte, por meio da fragmentação do texto
literário (quando há), bem como do texto cénico. Esta fragmentação destruidora das
unidades dramáticas é, muitas vezes acompanhada da heterogeneidade e
simultaneidade de signos com valor equivalente — a parataxis referida por
Lehmann73 —, bem como de processos de montagem e colagem textual, que
trazem para o palco textos de natureza não-dramática, que tanto podem ser criados
diretamente com a cena em mente, como parte da produção textual de Elfriede 72 Cf. Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, pp.90-91 73 Cf. ibidem, p. 86
130
Jelinek, ou adaptações de obras com teor filosófico, por exemplo, que dão origem a
uma vertente das novas dramaturgias que Lehmann apelida de "ensaio cénico"74 e
que define como sendo espetáculos que oferecem uma refleção pública sobre temas
particulares e não uma ação dramática (LEHMANN 2009: 112). Tanto a
simultaneidade, como a montagem, a colagem e a fragmentação podem ser
identificadas em várias produções da vanguarda histórica: nos trabalhos mais
esteticamente revolucionários de Meyerhold, no ritmo frenético dos Futuristas
Italianos, nas experimentações de Dada com a linguagem. As novas dramaturgias
assumem, assim, em termos cénicos, uma concretização semelhante à de uma
paisagem, que se apresenta perante o olhar atento do espectador, como um todo a
ser contemplado de forma subjetiva.
A musicalização da cena, presente já na conceção teatral e marcação cénica
meyerholdianas, constitui também uma característica das novas dramaturgias. Esta
musicalização não implica que a música como tal tenha um papel absolutamente
central no espetáculo, mas sim a aplicação à cena dos princípios da musicalidade. O
palco das novas dramaturgias apresenta-se, assim, como um espaço de polifonia, de
multiplicidade de vozes onde a sonoplastia ganha, também, uma preponderância
para além da produção de sentido, podendo forjar ambientes e realidades sensíveis.
O esbatimento de fronteiras é, como constatado a propósito do ator e do
espectador, uma característica notória das novas dramaturgias. Uma das mais
importantes manifestações desse fenómeno ocorre entre a delimitação do real e a do
cosmos fictício que, para o teatro dramático, deveria ser bem clara, mas que, no
contexto das novas dramaturgias é constantemente desafiada. Para ilustrar a
irrupção do real no teatro75 salientamos as produções do já referido coletivo Rimini
74 Cf. Postdramatic Theatre, Hans-Thies Lehmann, Oxon, Routledge, 2009, pp.112-114 75 Cf. ibidem, pp.99-104
131
Protokoll e a utilização de "especialistas do quotidiano", bem como Entrelinhas de
Tiago Rodrigues, referido anteriormente a propósito do estatuto do ator. Contudo,
esta intrusão do real na ficção é mais eficaz quando a sua autenticidade se mantém
indecifrável, questionando a posição do espectador, como nos recorda Lehmann:
(…) when the real asserts itself against the staged on stage, then this is
mirrored in the auditorium. When the staging practie forces the spectators to
wonder whether they should react to the events on stage as fiction (…) or as
reality (…), theatre's treading of the borderline of the real unsettles this
crucial predisposition of the spectators: the unreflected certainty and security
in which they experience being spectators as un unproblematic social
behaviour (LEHMANN 2009: 104).
Tal como todos os outros elementos teatrais a linguagem também se
autonomiza com o desaparecimento das estruturas dramáticas, fenómeno já presente
nas experimentações da vanguarda histórica através de um esforço de desconstrução
da linguagem. O seu papel deixa de se resumir ao diálogo produtor de sentido
passando a ser utilizada da forma mais variada. Um exemplo desta libertação é a
ideia de superficies de linguagem justapostas de Jelinek, que joga com a montagem
textual e decomposição da língua alemã, como nos recorda Vera San Payo de
Lemos:
Essas superfícies de texto ou superfícies de linguagem, termos cunhados
por Jelinek como elementos característicos do seu teatro, são tecidas com
base na intertextualidade, na montagem ou composição de citações de textos
de vários autores e várias proveniências, da cultura erudita e popular, do
132
sublime ao trivial, retiradas da publicidade, política, filosofia, música,
literatura, fotografia, televisão e internet e depois reelaboradas em jogos de
linguagem, de ritmos e de sonoridades, associações de palavras, inversão de
sílabas, num processo musical, como uma fuga e as suas variações, um
concerto de vozes, em que se reflecte a formação de pianista e organista da
autora (LEMOS 2009: 4-5).
O texto, como já foi referido, perdeu o seu estatuto hegemónico, tornando-se
apenas mais um dos constituintes da cena, e não um elemento independente e todo-
poderoso, que, quando marca presença, é sempre de forma desfigurada e
desmembrada (LEHMANN 1997: 57). Com as novas dramaturgias surge uma noção
mais ampla de texto, sendo possível a identificação de três tipos de texto: o texto
linguístico, o texto cénico e o texto performativo. O texto performativo, por
oposição ao texto dramático, não necessita do diálogo para subsistir, uma vez que é
construído em conjunto entre palco e auditório, e contém em si o material
linguístico e a dimensão cenográfica que interagem com a situação teatral criada no
momento (LEHMANN 2009: 85). Outro aspeto importante relativo ao texto
linguístico das novas dramaturgias prende-se com a intertextualidade e
possibilidade de criação de novos textos a partir de fragmentos de textos pre-
existentes, incluindo clássicos consagrados submetidos a um processo de
desfiguração, iniciado por algumas expressões da vanguarda histórica.
O contexto da sociedade atual, caracterizada pelo aparecimento de novas
tecnologias e meios de comunicação de massa é essencial para a compreensão deste
novo teatro, uma vez que em estreita relação com esta realidade surge outro aspeto
das novas dramaturgias, partilhado com as vanguardas históricas: a utilização da
tecnologia em palco, que tanto pode ser pontual, como constituir a base do
133
espetáculo, definindo fundamentalmente a conceção teatral. Contudo, há outra
forma de intermedialidade que se manifesta apenas pela incorporação de linguagens
de outros meios de comunicação no espetáculo teatral. No que toca à primeira forma
de intermedialidade, a pontual, salienta-se como exemplo Radio Muezzin, dos
Rimini Protokoll, cuja projeção vídeo não dominava por completo o espetáculo,
embora tivesse um papel fundamental na abertura espacial do mesmo, uma vez que
através deles o espectador viajava até ao Cairo, experienciando o quotidiano de cada
uma das figuras que se apresentavam em palco materialmente e cuja presença
acabava por ser dominante. Em relação à forte utilização de novos meios de
comunicação tomamos como exemplo a presença de tecnologia vídeo em tempo
real, apresentada em simultâneo com a figura do ator, em Agamémnon ou vim do
supermercado e dei porrada ao meu filho, do Coletivo 84, apresentado em 2011 no
Teatro Municipal S.Luiz. A terceira forma de cruzamento entre teatro e novas
tecnologias, aquela em que apenas a linguagem dos meios de comunicação é
incorporada no espetáculo, pode dar origem a um teatro dito "cinematográfico" —
noção bastante próxima das experimentações da vanguarda russa, principalmente à
estética de Eisenstein — através da utilização de processos de montagem temporal e
espacial, semelhantes aos utilizados no cinema, que impõem ao teatro um ritmo
parecido com o do grande ecrã, afetando o tempo como o teatro dramático o
conhecia. O tempo dramático é, por natureza, homogéneo, de maneira a contribuir
para a construção de um enredo lógico e coerente. Nas novas dramaturgias foi
desenvolvido um tempo próprio — que combate a unidade e a ilusão —, inerente ao
texto performativo, que surge como um tempo partilhado composto pelo tempo real
e o tempo da situação encenada.
Em suma, as inúmeras manifestações teatrais que caracterizam as novas
dramaturgias surgem a partir do momento em que o texto perde o seu estatuto
134
central e a estrutura dramática, fortemente hierarquizada segundo uma lógica
coerente, se desfaz, possibilitando a concretização de um espetáculo
verdadeiramente teatral, onde todos os elementos que o constituem se encontram no
mesmo plano de valorização.
135
Conclusão
A vanguarda histórica constituiu um momento artístico heterogéneo movido por um
objetivo comum: o combate contra uma pesada tradição cultural e respetivas formas
artísticas que não se adequavam como formas de expressão das novas gerações que
haviam crescido no tumulto social e político do início do século XX. As suas
experimentações, que se fizeram sentir em todos os campos artísticos, foram
levadas a cabo através de processos de desconstrução das formas antigas originando
uma liberdade artística significativa.
Ao teatro, as vanguardas trouxeram modificações relativas ao espaço
convencional, esbatendo, ou até eliminando, a fronteira entre palco e público, o que
resultou numa alteração do papel do espectador que, no teatro convencional,
baseava-se essencialmente na observação. O ator também viu o seu estatuto
transformado por teorias assentes na premissa física — e não tanto numa dimensão
mais convencional de psicologismo e individualização —, como a biomecânica de
Meyerhold. Novas formas de conceção cénica, como o construtivismo e a
136
estilização tomaram o lugar de cenografias realistas, cujo principal objetivo era a
criação de uma ilusão que servisse de moldura a um teatro fortemente dramático. As
experiências com a desconstrução da linguagem, bem como os exercícios de
reinterpretação dos clássicos abriram caminho a uma nova atitude em relação ao
texto e, consequentemente, em relação ao espetáculo enquanto tal, dando maior
importância aos elementos mais específicos da teatralidade. A fragmentação cénica
e textual, bem como a montagem e colagem, entre outros aspetos presentes nas
novas dramaturgias, podem ser reportadas, também, às inovações da vanguarda
histórica que, apesar de se anunciarem de forma radical, nunca se separaram
completamente de uma matriz dramática.
Nos diversos movimentos de vanguarda — e aqui Artaud destaca-se — há,
quase sempre, um desejo de retorno ao primeiro momento do teatro, em que este
possuía ainda uma dimensão ritualística acentuada, apresentando-se
maioritariamente como espetáculo. Num esforço de reteatralização, quase todas as
expressões da vanguarda se direcionaram para as origens do teatro, canalizando
algum primitivismo, ou buscaram inspiração em estéticas mais direcionadas para o
espetáculo, como a Commedia dell'Arte. Apenas os Futuristas Italianos parecem
constituir, de certo modo, a exceção, pela sua forte aversão ao cânone e a tudo o que
se revestia de formas antigas, às quais opunham uma vigorosa apologia de tudo o
que era novo, especialmente quando produto do avanço tecnológico.
A matriz dramática baseia-se, essencialmente, numa estrutura fixa,
fortemente hierarquizada, composta pelos elementos teatrais que se encontram
subjugados pelo domínio absoluto do texto literário. Este último constitui veículo,
por excelência, de um enredo construído de forma lógica e coerente, assente na
unidade da ação, bem como na unidade de lugar e de tempo. É precisamente quando
se inicia a desconstrução da trindade drama — mimesis — ação, que se abre espaço
137
para o nascimento das novas dramaturgias, cuja concretização poderá ser levada a
cabo da mais variada forma, sendo a recusa da síntese, o jogo com a densidade de
signos, a intertextualidade, intermedialidade, heterogeneidade, simultaneidade; a
montagem, a colagem e a fragmentação apenas algumas características mais
preponderantes. Esta fragmentação, encontrada no lugar da unidade coerente do
teatro dramático, apresenta uma noção estilhaçada do real, o que não implica que o
teatro se tenha demitido completamente de uma função representativa, mas antes
que a leva a cabo de uma nova forma, mais próxima da experiência humana que não
se faz por meio de uma compreensão total e absoluta do real, visto que o ser
humano perceciona o mundo através de cinco sentidos distintos. Apesar das
diferenças claras, não há uma divisão bem demarcada e intransponível entre o teatro
dramático e as novas dramaturgias, quando estes conceitos se aplicam à realidade. A
convivência de elementos das duas vertentes num mesmo espetáculo é possível,
pelo que alguns recursos teatrais que constituem, regra geral, marca acentuada de
uma nova dramaturgia — por desconstruírem os pressupostos aristotélicos presentes
no teatro dramático — marcam também presença no teatro mais convencional.
Com as novas dramaturgias, após a libertação da tirania do texto, o teatro
iniciou uma busca por um lugar seu, de significação para além do logos; um lugar
que Lehmann abordou com o auxílio de um exemplo trabalhado por Julia Kristeva,
a partir de um termo platónico: chôra. Este termo, cunhado em Timeu para designar
“o espaço, que não acolhe a destruição e fornece o lugar a todas as coisas que têm
geração, [e que] é captável por meio de um certo raciocínio bastardo, não
acompanhado de sensação e dificilmente credível (...)” (PLATÃO 2004: 99), é aqui
utilizado para definir um novo espaço para o teatro, situado no limite da lógica e da
razão (LEHMANN 1997: 56). Para este novo espaço, “olhemos como num sonho”
(PLATÃO 2004: 99), tal como Artaud pretendia olhar o Teatro através da
138
Crueldade, visão nunca plenamente concretizada, mas que acabou por contribuir
para a fogueira onde ardeu grande parte do logocentrismo do palco ocidental. Esta
nova noção de teatro, em que ele é encarado como um espaço aberto a infinitas
possibilidades de criação, implica uma linguagem definida por uma multiplicidade
de vozes e desconstrução de um sentido fixo, devolvendo, assim, ao teatro o seu
acentuado estatuto de espetáculo. Ocorreu, também a redescoberta do seu potencial
comunicativo, ao ser transferido o foco que outrora incidia sobre o diálogo interno –
feito no palco, entre personagens – para um diálogo externo; para uma comunicação
com um espectador ativo que constrói, em si, a síntese do espetáculo de uma forma
subjetiva e livre de um pensamento conduzido. Este processo de síntese faz-se,
frequentemente, através de um teatro paisagem; uma noção ampla e aberta que nos
remete para um tipo de teatro que não conduz o olhar do espectador para a única
fonte de sentido em cena, deixando-o livre para observar o palco e assimilar
significados como bem entender, tal como faria quando confrontado com uma
paisagem natural. Neste teatro a dramaturgia visual é um elemento de extrema
importância, embora isso não signifique que seja um espectáculo completamente
livre da palavra, mas antes um espectáculo livre da hierarquia dependente da razão.
Como referido na introdução, a presente dissertação não pretendeu prestar-se
a um estudo exaustivo que abarcasse todas as expressões possíveis das novas
dramaturgias, mas antes contribuir para uma compreensão sumária do que constitui
este novo rumo dado ao teatro e de onde ele partiu para chegar até nós, em parte,
como uma vanguarda amadurecida e em paz consigo mesma, sem necessidade de
uma demarcação agressiva em relação às formas antigas, comas quais é hoje capaz
de conviver. O teatro encontrou-se a si próprio e à sua especificidade, regressando a
si mesmo para apreciar o seu verdadeiro papel enquanto espetáculo.
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