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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas- FFLCH Programa de Pós-Graduação em Filosofia Cristiano Bonneau FUNDAMENTOS PARA UMA ÉTICA EM LEIBNIZ SÃO PAULO 2015

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas- FFLCH

Programa de Ps-Graduao em Filosofia

Cristiano Bonneau

FUNDAMENTOS PARA UMA TICA EM LEIBNIZ

SO PAULO

2015

CRISTIANO BONNEAU

FUNDAMENTOS PARA UMA TICA EM LEIBNIZ

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, do Departamento de Filosofia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

Orientadora: Professora Dra. Tessa Moura Lacerda

SO PAULO

2015

RESUMO

Bonneau, Cristiano. Fundamentos para uma tica em Leibniz. 2015. Tese (Doutorado em Filosofia) Faculdade de filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo.

Esta tese se constitui na sistematizao de um pensamento tico partir de alguns escritos de Leibniz. O texto estabelece uma relao entre os conceitos de Deus e Mnada nos escritos leibnizianos, como ocasio para desenvolver, partindo destas noes fundamentais, as condies tericas de pensar uma tica. Em um primeiro momento, destaca-se o conceito de mnada, em sua estrutura ontolgica e em seu modo apresentao como uma entidade simples, mas extremamente complexa. A substncia para Leibniz, pela figura da mnada torna-se o modelo para pensar a realidade. A idia de Deus aparece em seguida, como o alicerce racional no qual as substncias existem e agem. Leibniz promove uma apologia de Deus em torno da racionalidade pela qual o mundo se ordena. A totalidade, representada por Deus, permite para Leibniz expor o perspectivismo e a identidade nica de cada substncia. A tica surge da possibilidade de relacionar os conceitos de mnada, indivduo, homem, razo e liberdade no pensamento leibniziano.

PALAVRAS-CHAVE: Leibniz. tica. Mnada. Deus. Liberdade.

RSUM

Bonneau, Cristiano. Fundamentos para uma tica em Leibniz. 2015. Tese (Doutorado em Filosofia) Faculdade de filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo.

Cette thse reprsente la systmatisation de la pense thique partir de quelques crits de Leibniz. Ce texte tablit un rapport entre les concepts de Dieu et Monade dans les crits de Leibniz, comme une occasion de dvelopper, sur la base de ses concepts fondamentaux, les conditions thoriques de la pense thique. Tout d'abord, il y a le concept de monade, dans sa structure ontologique et son mode de prsentation comme une entit simple, mais extrmement complexe. La substance de Leibniz, la figure de la Monade devient le modle pour penser la ralit. L'ide de Dieu apparat alors comme la fondation rationnelle pour lexistence et laction des substances. Leibniz favorise une apologie de l'ide de Dieu comme rationalit, pour la faon dont le monde est ordonn. La totalit, reprsente par Dieu, permet Leibniz dexposer le perspectivisme et l'identit unique de chaque substance. Lthique dcoule de la possibilit de relier les concepts de la monade, lindividu, lhomme, la raison et la libert dans la pense de Leibniz.

MOTS-CLS: Leibniz. thique. Monade. Dieu. Libert.

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ABSTRACT

Bonneau, Cristiano. Fundamentos para uma tica em Leibniz. 2015. Tese (Doutorado em Filosofia) Faculdade de filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo.

This thesis is the systematization of ethical thought from some writings of Leibniz. This text establishes a relationship between the concepts of God and Monad in Leibnizian writings, as an opportunity to develop, based on these fundamental concepts, the theoretical conditions of ethical thinking. At first, there is the concept of monad, in its ontological structure and its presentation mode as a single entity, but extremely complex. The substance to Leibniz, the figure of the Monad becomes the model for thinking the reality. The idea of God appears, then as the rational foundation on which substances exist and also act. Leibniz promotes an apology from the idea of God as the rationality of the way in which the world is ordered. The totality, represented by God, allows for Leibniz expose perspectivism and the unique identity of each substance. Ethics arises from the possibility of relating the concepts of Monad, individual, man, reason and freedom in Leibnizs thought.

KEYWORDS: Leibniz. Ethics. Monad. God. Freedom.

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AGRADECIMENTOS

vida, que de presente deu-me a minha mulher Ana Paula (para mim, somente Ana). Musa de minha inspirao constante, fortaleza de meu castelo da alegria e que transforma todos os problemas em oportunidade para fortalecer a nossa paixo e nos conhecermos ainda melhor. Esta mesma vida, ainda insatisfeita, me deu Enzo e Pierre, cuja coragem, vigor e ternura me fazem levantar sorrindo todos os dias. Sou uma das poucas pessoas que conheci que acertou na loteria.

esta vida novamente, por realizar o meu sonho em ser um professor de Filosofia, mesmo que ainda distante de ser um filsofo. Por permitir-me viver todas as emoes de uma defesa de tese de doutorado, que jamais ousei imaginar como seria, para poder degustar cada momento.

professora Maria das Graas Sousa por me convencer a tentar a seleo para o doutorado da USP. Em especial ao professor Luis Cesar Guimaraes Oliva, pela leitura rigorosa do meu texto, por enfrentar toda a burocracia da universidade sempre sorrindo e me enviar para a Frana sem pestanejar. Tambm ao grande professor Franklin Leopoldo e Silva que sempre faz questo de explicar ao escritor o seu prprio pensamento. Aos mestres Edmilson Alves Azevedo e Claudio Boeira Garcia, pela dose de paternidade, amizade e ensinamento sempre na medida exata e quando necessrio. Em especial minha orientadora, a professora Tessa Moura Lacerda, pelo universo de pacincia e compreenso na horas mais difceis. Por ter me recebido de braos abertos sem sequer me conhecer. Uma prova de coragem e humanidade.

famlia, setor Bonneau, minha me Jane Marli e meu pai Eli, que sempre foram fundamentais para os sonhos de estudante e com muito amor foram o suporte necessrio diante de momentos difceis. Ainda, Luciana, Vincius, Valmor, Elizabete, Fernando, Felipe, Humberto, Gustavo, Guilherme, Leonardo e Diuli, que sempre torceram independente do resultado.

famlia, setor Buzetto, minha sogra Maria da Graa, meu sogro Valquir Jos, que me tratam como filho e eu de presente ganhei mais dois pais. Ainda, nona Judite, Wlademir, Vanderlei, Liane, Deivis, Laiza, Kaque, Kamille, Deison, Dione, Zamir, Marli, Leandro,

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Tamires, Juliane, Gustavo, Gabriel e Gabrieli, que sempre me trataram com muito carinho e respeito. Tio Paulo e tia Saleth, que transformaram Porto Alegre em nossa casa.

Aos churrascos, pescarias e serestas, na presena constante dos colegas e amigos Jonece Mara Beltrame e Anderson dArc Ferreira, leitores e crticos do pensamento leibniziano. professora de gaita de boca e amiga Juciane Beltrame. Ainda, famlia Camillis de Azevedo (Beti, Leon e Jlia) e famlia Persch (Marilete e Artur). Aos meus jovens amigos e colegas de doutorado Mauro Della Bandera e Anderson Aparecido Lima, que me adotaram em minha estada na cidade de So Paulo.

Ao Grupo de Estudos de Filosofia Moderna da Universidade Federal da Paraba, coordenado pelo colega e amigo Srgio Lus Persch e a professora Maria Clara Cescato que acompanharam o processo de confeco da tese me incentivando ao ler e apontar pacientemente cada linha deste texto.

Associao do Professores da Universidade Federal da Paraba pelo constante apoio nas atividades acadmicas.

Universidade Paris I Pantheon-Sorbonne, nas figuras dos professores Mme. Chantal Jaquet e M.Paul Rateau que promoveram uma recepo e acompanhamento de uma dignidade mpar e pautada na compreenso radical, e para minha eterna professora de francs e amiga Mathilde Honigman, por nos confortar em Paris.

Universidade Federal da Paraba, em especial ao Centro de Cincias Aplicadas e Educao e o Departamento de Cincias Sociais pelo apoio qualificao dos professores do CCAE.

Capes e Universidade de So Paulo, pelo apoio financeiro.

SUMRIO

1 INTRODUO...................................................................... 12

2. A MNADA COMO SUBJECTUM DO MUNDO ......................... 17

2.1. Descrio da Mnada em seus atributos fundamentais ......... 28

2.1.1. Sobre as percepes ................................................... 34

2.2. Mnada como perfeio .................................................... 54

2.3. Mnada como possibilidade ............................................... 61

2.4. Mnada como pulso ....................................................... 69

2.5. Mnada enquanto Speculum Vitale .................................... 76

3. SOBRE DEUS ...................................................................... 87

3.1. Descrever a noo de Deus no contexto da Teodicia ........... 95

3.1.1. A escolha livre de Deus: a idia do soberano como Legislador ........................................................................... 96

3.1.2. Mal metafsico, mal fsico e mal moral ......................... 108

3.2. Distino entre Vontades Antecedentes e Vontades Conseqentes ...................................................................... 121

3.3. A positividade do Mundo: Deus desejou o mundo tal qual ele ......................................................................................... 135

3.4. Bem enquanto harmonia ................................................ 144

3.5. A Razo Universal que est em Deus: Possibilidade e Compossibilidade ................................................................. 155

4. O PROBLEMA DA TICA .................................................... 161

4.1. A necessidade do pressuposto ontolgico (mnadas) e do pressuposto ontoteolgico (Deus). ......................................... 167

4.2 Mnada e Subjetividade .................................................. 173

4.3 A Felicidade consiste em conhecer as causas ..................... 182

4.4. Razo e Liberdade ......................................................... 190

11

4.5 A comunidade das mnadas ............................................. 198

4.6 Lngua e Entendimento Universal ...................................... 206

5. CONCLUSO ..................................................................... 212

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................... 226

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1 INTRODUO

Esta tese uma reflexo sobre as possibilidades de

fundamentar uma tica partindo dos escritos de Leibniz. A pesquisa

que segue averigua nos escritos leibnizianos a viabilidade de

organizar1 seus argumentos para afirmar que sua reflexo acerca dos

homens e Deus podem ter uma repercusso de carter tico. Russerl,

na sua crtica Leibniz, manifesta que se o filsofo alemo tivesse

uma tica to fundamentada ou organizada, teramos como resultado

lgico e argumentativo, um texto to slido quanto quele que

apresenta tica espinosiana. O procedimento de escrita de Leibniz,

que consiste em transitar de grandes e por vezes prolixas reflexes

(como o caso, por exemplo, dos Novos Ensaios ou da Teodicia),

e pequenos e densos textos (vide a Monadologia2 ou os Princpios

da Natureza e da Graa fundados na Razo), represesentam grandes

dificuldades desta empresa partir do pensamento leibniziano.

Enquanto Russerl se coloca criticamente a esta sistematizao em

Leibniz, Heidegger procura demonstrar a importncia da filosofia

leibniziana para a compreenso da metafsica do ocidente, sobretudo,

da reflexo fundamental promovida pela mnada.

Segundo Heidegger, a monadologia tem um corpo filosfico

profundo, capaz de permitir condies de possibilidade para que a 1 Representar a metafsica de Leibniz ainda mais difcil do que a caracterizao de Espinosa, e quia pelos motivos contrrios. No porque haja um sistema pronto, que conecte tudo, mas porque, via de regra, Leibniz fixava e expressava seus pensamentos, problemas e investigaes apenas esporadicamente, e esses mesmos eram concebidos buscando um constante reesclarecimento. Heidegger, M.-Histria da Filosofia-de Toms de Aquino a Kant. Traduo de Enio Paulo Giachini, Petrpolis, Vozes, 2009. p. 183.

2 La monadologie, dont nous parlerons ici par rfrence au philosophe allemand Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), est au mme temps une ouvre et une thorie: contrairement aux monades, dont elle se veut la doctrine, la monadologie est tou sauf simple. Pasini, Enrico (org). La Monadologie de Leibniz- Gnese et contexte. Associazione Culturale Mimesis, Turin, 2005. p. 5.

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ideia de indivduo se manifeste com toda a sua fora. Este indivduo,

por sua vez, ter repercusses fundamentais nas filosofias vindouras

e funcionar como uma chave interpretativa fundamental para o

entendimento da humanidade na contemporaneidade. A interpretao

heideggeriana da filosofia de Leibniz demonstra, alm do alcance e da

profundidade deste filsofo moderno, uma abertura da reflexo que

parte da idia de indivduo, com consequncias importantes no s

para a histria da filosofia, mas para o enriquecimento da

compreenso da dimenso do homem. Partindo destas questes

fundamentais, o problema que norteia a nossa tese paira sobre a

seguinte questo: como se d a relao entre dois indivduos, ou

entre duas mnadas? Nos Novos Ensaios ou na Monadologia

possvel sistematizar esta reflexo a partir da pergunta de Belaval,

que especula sobre a existncia ou no de uma epistemologia

leibniziana. A relao a que nos propomos pensar como se daria a

relao entre duas mnadas na existncia e como elas coexistiriam

na esfera da ao. Dado que o conhecimento da mnada sobre o

mundo tambm o saber desta sobre outra mnada, entendemos

que a questo que outrora se restringia teoria do conhecimento

avana agora para o campo da tica.

Como seria ento a relao entre as mnadas ou indivduos no

transcorrer da existncia? O conhecimento da natureza das mnadas

poderia nos lanar algumas luzes sobre prpria forma de existncia e

das escolhas que os homens tomaram para si?3 Partimos do

3 Existem dois famosos labirintos onde nossa razo se perde muitas vezes; um diz respeito grande questo do livre e do necessrio, sobretudo quanto produo e quanto origem do mal; o outro consiste na discusso do contnuo (continuit) e dos indivisveis que constituem seus elementos, e no qual deve entrar a considerao do infinito. O primeiro embaraa praticamente todo o gnero humano, o outro influencia somente os filsofos. Talvez eu tenha uma outra oportunidade para me explicar sobre o segundo, e de fazer observar que na falta de conceber mais adequadamente a natureza da substncia e da matria, assumiu-se falsas opinies que levam a dificuldades intransponveis, cujo verdadeiro uso deveria ser o contrrio destas mesmas opinies. Mas se o conhecimento do contnuo importante para a especulao, o da necessidade no o menor para a prtica; e este ser o objeto deste tratado, com as questes que a ele esto ligados, a saber, a liberdade do homem e a justia de Deus.

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pressuposto que possvel promover uma relao entre a idia de

homem e o sistema monadolgico de Leibniz. Estas questes so o

fio condutor da reflexo expressa nesta tese, que intenta vislumbrar

esta problemtica partindo dos escritos de Leibniz e de algumas

interpretaes sobre a sua obra. Em seu primeiro captulo, o texto

procura descrever algumas principais caractersticas que formam a

base do conceito de mnada. Demonstrar a substncia nas suas

condies de percepo e apetio; e ainda, como perfeio,

possibilidade e speculum vitale. Representa a tentativa de colocar a

mnada no centro da existncia, na condio de modelo da prpria

realidade. Neste momento, a mnada apresentada como a

estrutura fundamental do mundo, na descrio dos atributos

fundamentais, e como as caractersticas que envolvem as mnadas

so as condies de possibilidade de sua prpria existncia no

mundo.

importante o desenvolvimento conceitual da mnada,

vislumbrando o argumento leibniziano acerca da substncia

individual, espontnea e autnoma. A noo de autarquia das

substncias torna-se crucial para sustentar a prpria noo de

indivduo e sua condio de perspectiva ou ponto de vista do

universo. A mnada representa o mundo, contudo, sempre partir de

si mesma, em sua condio individual, nica e inviolvel, como parte

representante da totalidade do universo. Para compreender esta

condio ontolgica da mnada e sua constituio enquanto

indivduo, torna-se necessrio explicitar o sentido da totalidade em

Leibniz, tendo em vista contrapor duas noes filosficas

Leibniz Essais de Thodice, in Die Philosophischen Scriffen, herausgegeben von Gerhardt, Berlin. Georg Olms Verlag, 1890 (doravante citado PS, seguido do volume e da pgina).- VI, 7. Seguindo sempre a traduo in: Ensaios de Teodicia- sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Traduo, introduo e notas: Juliana Cecci Silva e William de Siqueira Piau, Editora Estao Liberdade, So Paulo, 2013.

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fundamentais caras a todo grande sistema filosfico: a parte e o

todo. Enquanto a mnada se apresenta como a representante da

parte do universo, Deus, por sua vez tem como significado

fundamental enquanto totalidade.

No segundo captulo, este escrito apresenta a idia de Deus em

suas caractersticas fundamentais. A descrio e apologia de Deus

um dos basties fundamentais da filosofia leibniziana, no apenas

como afirmao da mnada enquanto partcula do universo, mas

como condio ontolgica necessria, no tocante a situar a mnada

em seu protagonismo de perspectiva. Na Teodicia, Leibniz

desenvolve uma longa cadeia de reflexes sobre Deus enfrentando

temas difceis e polmicos, como por exemplo, a existncia do mal.

Este texto procura demonstrar partindo da idia de Deus nos escritos

leibnizianos a importncia da fronteira ontolgica, demarcada por

Leibniz em um primeiro momento, pela distino entre criador e

criatura, passando pelas idias de substncia primeira e substncia

segunda, matria e forma, e finalmente entre o todo e a parte.

Enquanto parte do criador, a mnada se d como coopartcipe

de seus atributos, representando-os sempre partir de suas

condies individuais. Nesta anlise, temas importantes como a

questo da liberdade e do bem enquanto harmonia se tornam

fundamentais para a compreenso da idia de Deus e sua vinculao

com a totalidade. Como se estivesse diante de um espelho, a mnada

reflete o conhecimento, a vontade e a sabedoria divina, na medida

em que Leibniz demarca claramente a distino entre a totalidade

(Deus) e a parte (Mnada). A exposio leibniziana enfrenta

adversrios difceis para afirmar Deus em sua racionalidade; o vnculo

entre razo e bondade; e ainda, como em sua natureza o divino pode

ser considerado absolutamente bom.

A confirmao da existncia e atuao do mal prova como

Leibniz procura exprimir-se em sua leitura da realidade, refletindo

profundamente sobre esta, explicando as razes pelas quais tudo

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est em conformidade com a mais plena ordem e que a natureza e as

mnadas espelham esta harmonia fundamental. Explicitar os

meandros da representao de Deus em sua condio mais absoluta

possvel, torna-se necessria para fortalecer a mnada em seus

pathos de parte do universo. na relao e distino ontolgica entre

Deus e as criaturas que encontra-se a possibilidade de pensar a ideia

de indivduo na filosofia leibniziana e como, a partir destes elementos

possvel refletir ento, na relao entre uma mnada e outra.

Finalmente, no terceiro captulo, intentamos demonstrar as

consequncias desta condio ontolgica fundamental da mnada e

como torna-se possvel, a partir do conhecimento da natureza de

Deus, seno uma sada, pelo menos a tentativa de remediar esta

condio de isolamento do indivduo. Pra tanto, trs momentos se

do de forma essencial: 1) o princpio de razo suficiente, apontando

para um conhecimento adequado da realidade da mnada enquanto

mnada; 2) as condies que levam Leibniz a ser apontado como um

filsofo determinista ou ainda, conformista, so as mesmas que

promovem um conhecimento racional do mundo; 3) a razo se torna,

a partir do fechamento da mnada, o esteio entre um indivduo e

outro, uma constante tentativa de superao de seu fechamento

ontolgico fundamental. A racionalidade torna-se o fundamento da

tica para Leibniz, na medida em que promove uma leitura e insero

adequada da realidade da mnada e mostra que o limite dos

indivduos e as possibilidades de uma relao intersubjetiva se do

apenas na esfera da razo. Razo esta que sempre leva em conta a

vontade, mas que para Leibniz, fiadora das aes dos homens, que

mesmo no tendo a liberdade e a felicidade4 que almejam, ainda so

livres em suas escolhas e podem, mesmo de forma limitada, e na sua

condio humana, optar por este ou aquele caminho. 4 Filsofo: A felicidade s de espritos. Telogo: Com efeito, pois nada feliz se no sabe que . O que tem conscincia de seu estado um esprito. Portanto, nada feliz a no ser um esprito. Leibniz, La profesin de fe del filsofo. In. Escritos Filosficos, ed. E. de Olaso, Buenos Aires, 1982, p. 98.

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2. A MNADA COMO SUBJECTUM DO MUNDO

Na primeira proposio que compe a Monadologia, est

expresso que a Mnada, de que falaremos aqui, apenas uma

substncia simples que entra nos compostos. Simples, quer dizer:

sem partes.5 Aps demonstrar na idia seguinte que se existe algo,

so as substncias simples e seus agregados, logo em seguida o

texto afirma que nas mnadas, ao se fazerem em partes, no h

extenso, nem figura, nem divisibilidade possveis, e, assim, as

Mnadas so os verdadeiros tomos da Natureza, e em uma palavra,

os Elementos das coisas.6

Em uma das concluses possveis desta primeira parte da

Monadologia podemos afirmar que, se h ou existe alguma coisa,

ento, poderamos chamar de mnadas. No havendo qualquer

substncia, nada haveria de existir. Dado que Deus prefere a

existncia de algo e no o seu inverso, o mundo concentra-se ento

no ser-das-mnadas. Com relao ao cosmos, Leibniz adverte que:

(...) tudo est cheio na Natureza. Existem substncias simples por toda parte (...) e cada substncia simples ou mnada distinta, que faz o centro de uma substncia composta, por exemplo de um animal, esta rodeada por uma massa, composta por uma infinidade de outras mnadas(...)7.

Isto corrobora com a questo que nos leva a afirmar sobre a

natureza da essncia do universo, e nos conduz para o centro da

5Leibniz Monadologie, PS, VI, 1. Segundo sempre a traduo in: Discurso de metafsica e outros textos. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

6 Idem, 3.

7 Principes de la Nature e de la Grce, fonds en raison. PS, VI, 3. Seguindo a traduo in: Princpios da Natureza e da Graa. Traduo de Antonio Borges Coelho. Lisboa, Livros Novo Horizonte. Portugal. Editorial Gleba Ltda.

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metafsica leibniziana. As relaes entre a organicidade dos corpos na

natureza, a sua composio essencial e suas motivaes abrem

caminho at a prpria mnada. Estas importantes idias colocadas

nas proposies escolhidas acima nos apontam para o papel da

mnada dentro de um sistema explicativo sobre o mundo, exposto

pela filosofia leibniziana.

A atuao da mnada central, e quando comparada ao tomo

nos coloca diante da imagem clssica do universo e suas

determinaes. Neste contexto, a mnada ocupa o mesmo lugar

central da substncia, por conseguinte, a nica que compem toda

existncia possvel, mantendo uma diferena necessria que se

justapem apenas com Deus. Fora desta comparao (que aparecer

na relao com a idia de Deus descrita no prximo captulo), o que

temos uma nica realidade substancial que a base fsica e

metafsica de todos os fenmenos. Este captulo se prope a

descrever o conceito de mnada em sua essencialidade e suas

caractersticas fundamentais que lhe permitem ser um ponto de vista

do universo, e sustentar a mnada como um dos pressupostos

fundamentais para compreender a viso leibniziana de mundo.

Nesta perspectiva, a filosofia da monadologia nos serve como o

modelo para a constituio de toda realidade e variedade dos

fenmenos. A partir destas noes fundamentais que a idia de

substncia aparece em Leibniz em toda a sua fecundidade e com os

atributos que lhe podem conferir a capacidade de se realizar

enquanto um ser completo.

Quanto ao que se refere s almas ou s formas substanciais, o Sr.Bayle tem razo de acrescentar que no h nada de mais incmodo para aqueles que admitem as formas substanciais que a objeo que se faz, que elas no poderiam ser produzidas salvo por uma verdadeira criao; e que os escolsticos so de dar pena, quando se esforam para responder a

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isso. Mas no h nada de mais cmodo para mim e para meu sistema que esta mesma objeo, visto que eu sustento que todas as almas, entelquias ou foras primitivas, formas substanciais, substncias simples, ou mnadas, de qualquer nome que as pudssemos chamar, no poderiam nascer naturalmente, nem perecer. E eu entendo as qualidades ou as foras derivativas, ou aquilo que se chama formas acidentais, como modificaes da entelquia primitiva; do mesmo modo que as figuras so modificaes da matria. por isso que estas modificaes esto em uma mudana perptua, enquanto a substncia simples permanece.8

A mnada enquanto paradigma de compreenso de tudo o que

vem a ser existente desvela a preocupao do pensamento de Leibniz

em investigar e explicar a prpria realidade das coisas, em formular

um sistema sobre o mundo. Porm, esta idia basilar da filosofia

leibniziana naturalmente, objeto das mais variadas interpretaes.

Esta ilimitada gama de variaes na leitura da filosofia leibniziana pe

prova a profundidade e riqueza de um sistema filosfico que

intentamos explorar nesta tese9.

O captulo que segue trata da mnada em suas atribuies

essenciais e que a credenciam como representante da prpria

realidade. A questo elencar os elementos que promovam a

mnada como entidade existente e autnoma no universo. Esta idia

8 Essais de Thodice, PS, VI 393.

9 Y no ya porque falten totalmente las referencias a los fenmenos, cuanto porque ests referencias, an sobre abundantes, no estn presentes en ella segn el proceso dialctico de transyeccin en virtud del cual suponemos que las imgenes pueden ser convertidas en Ideas. No queremos decir, con esto, que la Monadologa de Leibniz sea una obra superfina. Decimos que es peligroso pretender entenderla como si fuera una exposicin axiomtica, hipottico deductiva. Decimos que es preciso dialectizarla, restituirla al movimiento ms global de la que forma parte, y que slo de este modo la Monadologa de Leibniz puede llegar a ser el instrumento de una disciplina filosfica. Entendida dogmticamente, como si fuese un sistema axiomtico (modo al que su propria disposicin invita) tan slo puede pretender la consideracin de un mito o de un sistema metafsico dogmtico. Un mito extravagante, no slo porque va contracorriente de multitud de fenmenos de la experiencia comn, sino porque (en cuanto idolon theatr) es un mito que brota de la propia razn filosfica, en lugar de antecederla. Bueno, G. In:Monadologa, Introduo, 1981, Oviedo. p.18

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se apresenta como uma das mais importantes para uma exposio de

alguns pressupostos ticos que possam vir a se desenvolvidos

partindo da filosofia leibniziana. As caractersticas que compem a

autarquia da mnada nos revela um mundo constitudo somente de

partculas e que seguem sempre o mesmo plano da realidade na

medida de sua existncia. Esta lgica, inerente a tudo o que real,

nos leva ao mesmo tempo para uma oposio necessria da filosofia

de Leibniz, em especial na Monadologia: tudo simples, porm

complexo.

Se nos parece adequado fragmentar a realidade em partes cada

vez menores e que os fenmenos sejam explicitados em seus

pormenores a partir de suas realidades mnimas, esta diviso nos

aponta para uma complexidade cada vez maior. Poderamos indagar

em que constitui uma parte, por exemplo, na busca por determinar o

quanto preciso para se ter acesso a ela. A batalha terica

tradicional desta questo aponta a ciso entre as teorias da deduo

e da induo, na luta pela representao do real pela via do particular

ou pelo caminho colocado pela universalidade. O que pretendemos

partir do modelo monadolgico10 de explicao da realidade, tendo

em vista a autonomia ontolgica da mnada para se instaurar como

base irredutvel de todos os fenmenos. Enquanto ponto de partida,

pela teoria monadolgica que acreditamos estarmos providos de

todos os elementos necessrios para esta fundamentao.

Temos a a satisfao mnima de alguns critrios que para

Leibniz, so fundamentais para a explicao de toda realidade: os

princpios lgicos de razo suficiente e de identidade, que sintetizam

as esferas da necessidade e contingncia, das verdades de razo e 10 Fichant, ao discutir a constituio do conceito de mnada comenta que A seqncia aparece lmpida: a substancia reclama uma unidade indivisvel que no se localiza na matria, reside em um tomo formal: aqui a forma substancial toda (re)encontrada. Mas isto, em virtude de um argumento que envolve j a novidade essencial da tese monadolgica. Fichant, M.- Leibniz e as mquinas da natureza. In: Dois pontos. Curitiba; So Carlos, 2005, UFPR p. 37.

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das verdades de fato. A localizao do ponto de partida para a

explicao dos fenmenos nos remete sempre s mnadas. Em um

primeiro momento, a mnada parece encerrar toda realidade fsica11,

condio em que no haveria distino entre a noo de substncia

apresentada na Monadologia e aquela representada pela idia de

tomo.

Porm, o passo seguinte compreender que as caractersticas

fsicas so insuficientes para referir a mnada a sua condio como

modelo da realidade. Pois, os fenmenos no so os mesmos em

nenhum lugar, por mais que estejam compreendidos e ainda por

vezes dentro de uma mesma ordem de sucesso. Imaginar que um

determinado riacho sempre corre para a mesma posio,

independente das estaes do ano ou da presena ou ausncia do

sol, pode nos levar em um primeiro momento a uma cincia sobre o

prprio riacho. Porm, analisando do que so compostas as guas

que fazem o riacho correr, a sua margem e o seu fundo (s para

explicitar um exemplo), veremos as vrias correntes que fazem o

movimento das guas, a mudana constante do leito e da

profundidade. O riacho que continua sua corrida na mesma direo

modificou-se em um momento apenas e apresentou uma riqueza de

fenmenos que para um modelo esttico da realidade, pareceu

sempre o mesmo.

11 Gueroult, aps analise depurada da fsica moderna, principalmente a cartesiana, aponta para as novas exigncias da fsica que aparece como critica Descartes, principalmente pela dinmica de Leibniz. Lensemble de ces observations permet de conclure que si des proccupations de savant ont pu inflchir Leibniz vers la dynamique des forces vives, en accord avec les travaux de Huyghens, les notions de la physique nouvelle loin davoir tre intgres tant bien que mal une mtaphysique antrieurement existante, se trouvaient em plein accord avec les tendances et ls exigences dune mtaphysique en formation, quelles ls confirmaient sur la plupart des points, quelles contribuaient aussi, tant en ce qui concerne la substance, lharmonie prtablie, lindestructibilit du positif, la modeler de nouveau conformment ses aspirations profondes. Gueroult, M.- Leibniz- Dynamique et Mtaphysique. Editions Aubier-Montaigne, Paris, 1967.p. 171-172.

22

Todavia, assim como no riacho, o universo sofre mudanas cujas

razes encontram-se indeterminadas para ns, e que, para encontr-

las teremos que vislumbrar as razes que levaram determinada coisa

ou evento aos seus desdobramentos e sua identidade. Lembrando

que tais razes que levam a cabo certo efeito, tem a sua causa em

outra causa, que por sua vez, tem outra razo de ser. Mas afinal,

onde esto as razes que determinam a realidade a se compor da

forma como a percebemos? Num primeiro momento a filosofia da

monadologia de Leibniz preocupa-se em tratar exatamente da

realidade a partir do turbilho de mudanas e movimentos que so

inerentes a ela. A Monadologia, por mais que a primeira vista se

apoie em fixar o ser a partir de um conceito ou idia como a de

Mnada, num segundo momento busca apreender este significado em

seu prprio movimento, tratando essas partculas fundamentais como

ponto de partida e de chegada para toda realidade, em toda a sua

contingncia e necessidade. E ainda, admitindo que a realidade seja

em si mesma o prprio movimento e que a mudana parte

constituinte de todo ser inserido nela.

Em outra perspectiva, buscamos identificar a mnada enquanto

a parte do universo, aquela na qual a totalidade se expressa e alm

do mais, tendo nela como nico modo de sua apresentao. A

Monadologia postula a partir de sua exposio uma metafsica

sistemtica, que coloca a oposio ontolgica entre Deus como a

totalidade e a mnada como a parte deste todo, e nico ponto de

vista de toda realidade possvel. A afirmao da mnada como esta

entidade privilegiada e capaz de representar a realidade nos remete

ao mesmo tempo, simplicidade de uma substncia nica e que nos

serve como ponto de partida, e complexidade desta unidade

substancial que, na medida de sua unio com outras mnadas, na

formao de agregados, vai compondo toda sorte de fenmenos. O

ser profundo na mnada se estampa na descrio de Heidegger:

23

Ns nos relacionamos com o ente, vamos em sua direo e nos perdemos nele, ns somos dominados e possudos por ele. Mas no somente dessa maneira que ns nos relacionamos com o ente, mas ao mesmo tempo somos um ente - isso o que ns prprios somos e, na verdade, no de maneira indiferente, mas de tal forma que justamente o nosso prprio ser nos interessa. por isso que, a exemplo de outros fundamentos, em certa medida, o prprio ser sempre o fio condutor; assim tambm no esboo da Monadologia. O que significa essa funo de fio condutor e o que vem imediatamente tona (existncia), ambas essas coisas permanecem todavia ontologicamente fora de questionamento. O constante olhar para o prprio ser-a, a compreenso do ser e o modo de ser do prprio, proporciona a Leibniz o modelo para a 'unidade' que ele aponta para todo o ente. O ente interpretado em analogia com a alma, a vida, o esprito. Isso se evidencia em muitas passagens. Para se compreender a interpretao leibniziana do ente, rica em conseqncias, decisivo que se tenha uma percepo clara relativamente a esse fio condutor. 12

Heidegger nos lana a uma das questes fundamentais da

metafsica, contemplado pela exposio da Monadologia: a sua

pretenso de se constituir enquanto uma ontologia fundamental e

ainda, a vinculao da substncia com a idia do eu. Neste sentido,

Leibniz sustenta que jamais poderamos ter a idia de ser, se ns

mesmos no fssemos seres, e no encontrssemos o ser dentro de

12 (Traduo livre) Wir verhalten uns zu Seiendem, gehen darin auf und verlieren uns daran, wir sind von ihm berwltigt und benommen. Aber wir verhalten uns nicht nur in solcher Weise zum Seienden, sondern sind zugleich ein Seiendes - dieses sind wir je selbst, und zwar nicht indifferent, sondern so, da gerade unser eigenes Sein uns anliegt. Daher ist, von anderen Grnden abgesehen, in gewisser Weise immer das eigene Sein Leitfaden; so auch im Entwurf der Monadologie. Was diese Leitfadenfunktion besagt und was dabei in den Vorblick gelangt (Existenz), bleibt beides allerdings ontologisch unbefragt. Der stndige Hinblick auf das eigene Dasein, die Seinsverfassung und Seinsart des eigenen Ich, gibt Leibniz das Vorbild fr die >Einheit

24

ns.13 Como parte constituinte do eu, o ser por sua vez parte

irremedivel de toda substncia, ao mesmo tempo em que toda

substncia representa o prprio ser.

Por esta razo,

a idia do absoluto est interiormente em ns como a do prprio ser: esses absolutos no so outra coisa seno os atributos de Deus, podendo-se dizer que so a fonte das idias na mesma medida em que Deus mesmo constitui o princpio dos seres.14

por esta via, que a mnada em sua particularidade

fundamental, liga-se sempre a Deus em sua universalidade absoluta.

O ser parte da constituio monadolgica, assim como a totalidade

se apresenta sempre atravs de suas infinitas partes. A unidade do

ser se d em dois momentos: o primeiro como definira Heidegger, na

sntese entre o que vem a constituir a ordem do particular e a ordem

do universal; e num segundo momento, como o ser se apresenta

enquanto mnada, resultado de uma rede que forja um agregado de

substncias cuja marca a complexidade, mantendo-se sustentado

nesta unidade fundamental habilitada enfim, para alicerar uma

ontologia. Os diversos momentos no interior da mnada e o que ela

representa em sua unidade mantm-se em um estado de pura

atividade dinmica. Cada um destes instantes movimenta o ser para

sua auto-suficincia e de forma decisiva, sua identidade.

Pasini nos aponta para as diversas formas do ser da mnada,

ou os vrios seres que podem ser representados pela idia da

Monadologia. Como o desenrolar de uma questo que nos leva at a

idia de unidade: a metafsica monadolgica resultante no se 13 Noveaux Essais, PS, V, p. 93. Seguindo a traduo in: Os Pensadores, Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano. Traduo de Marilena de Souza Chau Berlinck; Luiz Joo Barana. Editora Abril Cultural, 1a edio, 1974. p. 59. 1974, p. 59.

14Noveaux Essais, PS, V, p. 93.

25

reduz, por outro lado, a mnada e seus fenmenos, mas permite

distinguir trs variedades ontolgicas: a mnada, o puro agregado

fenomnico sem unidade real entre si e a substncia corporal, ou

mquina da natureza.15 Por estas razes que a mnada aparece

como o subjectum do mundo, entidade capaz de se fazer

representante da natureza, dos seres, do eu , de Deus, do mundo e

do universo.

Intentamos neste captulo descrever os atributos que levam a

mnada a assumir a condio de partcula do universo e sua

capacidade de plena independncia, como ente autrquico e livre. A

explicitao dos pressupostos fundamentais da filosofia da

Monadologia nos aponta para dois caminhos paralelos e necessrios,

cuja distino expe uma caracterstica importante para o

entendimento das mnadas e seu universo de fenmenos: a unidade

e a diversidade. Estamos diante de um mundo cuja fecundidade dos

acontecimentos e fenmenos tm a sua razo de ser pela prpria

diversidade de criaturas que por sua vez, no cessam de aparecer.

Cada nova entidade traz consigo uma explicao nica do cosmos

mantendo-se afirmativa enquanto este ser existir, e se transmuta na

medida em que o ser vai se agregando a outros e formando novos

compostos. nico, queremos afirmar, entre os fenmenos deste

mundo, mas eterno na mente de Deus. Na Profisso de f do

Filsofo em 1673, o texto leibniziano forja um debate entre um

filsofo e um telogo, no qual, entre vrias questes, o problema da

variedade e unidade dos fenmenos se torna um expoente. No texto,

Leibniz nos coloca diante desta questo:

15 La mtaphisique monadologique qui en rsulte ne se rduit pas, dautre part, la monade et ses phnomnes, mais permet de distinguer trois varits ontologiques: la monade, le pur agrgat phnomnique sans unit relle, et entreux e a substance corporelle, ou machine de la nature Pasini, Enrico (org). La Monadologie de Leibniz- Gnese et contexte. Associazione Culturale Mimesis, Turin, 2005. p.8.

26

(...) dado que as almas so por si mesmas muito semelhantes ou diferem s por nmero, como se disse nas escolas, ou por certo grau e conseqentemente diferem apenas devido s impresses externas? Qual pode ser a razo da diversidade nessa harmonia universal para que esta alma mais que aquela esteja exposta a circunstncias que ho de corromper sua vontade, ou (o que seria o mesmo), para que se constituam neste tempo e lugar?16

Essa diversidade, enquanto um mistrio de todas as cincias e

sistemas de pensamento que procuram uma explicao sobre o

mundo, tem sua temtica explorada pelo pensamento de Leibniz.

Para tal necessrio expor um sistema argumentativo satisfatrio,

com uma lista de razes ou at mesmo um mapa, que nos d

condies de vislumbrar, nem que seja de relance a idia de

complexidade apontada no universo leibniziano. A mnada, enquanto

busca desta unidade fundamental do ser, surge como o elemento

representante do universo, herdeira de uma perfeio prpria, e que

espelha, mesmo que, de forma refratada e insuficiente, a idia de

Deus.

A substncia leibniziana capaz de evocar a dificuldade que

consiste em eleger um elemento capaz de dar conta do mundo criado

por Deus. A riqueza do mundo igual quantidade infinita de

possibilidades na idia de Deus; reproduz fielmente a capacidade da

ao de Deus, na medida em que uma criatura age por si s; reflete

a complexidade do clculo divino da criao, quando temos, por

exemplo a distino entre uma flor e um animal, e entre este mesmo

animal e um homem, nos quais as comparaes nos levam para

dificuldades em encontrar semelhanas e nos proporcionam elencar

diferenas, cada vez maiores. Essas distines nos remetem ao que

Leibniz denomina graus, infinitos e revelam, sobretudo, a teia de

relaes em que cada substncia encontra-se dissolvida:

16 Leibniz, La profesin de fe del filsofo. In. Escritos Filosficos, ed. E. de Olaso, Buenos Aires, 1982, p. 140.

27

Cada Mnada com seu corpo orgnico particular faz uma substncia viva. Assim no h unicamente vida por toda a parte, junta aos membros ou rgos; mas existe mesmo uma infinidade de graus nas Mnadas, umas dominando mais ou menos sobre as outras. Mas quando a Mnada tem rgos to ajustados que, por seu meio, existe relevo e distino nas impresses que estes recebem e, por conseqncia, nas percepes que os representam como, por exemplo, quando, por meio da figura dos humores dos olhos, os raios da luz se encontram e agem com mais fora; isto pode ir at o sentimento, isto , at uma percepo repetvel ou acompanhada de memria, a saber, de que um certo eco permanece muito tempo para se fazer ouvir na ocasio prpria. E um tal vivo, chama-se animal, como a sua Mnada se chama alma. E quando esta alma se eleva at a razo, ela algo mais sublime, e contam-na entre os espritos, como ser explicado em breve. verdade que os animais esto algumas vezes no estado de simples vivos e suas almas no estado de Mnadas simples, a saber quando suas percepes no so bastante distintas para que se possam lembrar delas, como acontece num profundo sono sem sonho ou num desmaio. Mas as percepes que se tornam confusas devem esconder-se nos animais pelas razes que direi seguidamente. Assim bom distinguir entre percepo, estado interior da Mnada que representa as coisas externas, e a apercepo, que conscincia ou o conhecimento reflexivo deste estado interior, o qual nunca dado a todas as almas, e nem sempre mesma alma. E foi por falta desta distino que os Cartesianos erraram, no tendo em conta as percepes de que no nos apercebemos, como o povo no tem em conta os corpos insensveis. Foi tambm o que fez crer aos mesmos Cartesianos que s os espritos que so Mnadas, que no h alma nos animais e, ainda menos, outros princpios de vida. E se chocaram, demasiadamente, a opinio comum dos homens ao recusar sentimentos aos animais, em contrapartida, acomodaram-se, demasiadamente com os preconceitos do vulgo ao confundir um longo desmaio, que vem duma grande confuso das percepes, com uma morte a rigor em que cessaria toda percepo, o que confirmou a opinio mal fundada da destruio de algumas almas e a m opinio de alguns espritos demasiadamente presunosos que combateram a imortalidade da nossa.17

17 Principes de la Nature e de la Grace, PS, VI, 4.

28

Temos a a noo de substncia compreendida nas idias de

alma, esprito, ser vivente, vida, substncia viva. Cada uma destas

distines bem nomeadas, no aponta fugazmente para o que vem a

ser a substancialidade da mnada, mas nos coloca diante do ser das

coisas do mundo e sua natural complexidade. A mnada se

fundamenta como um labirinto em si mesma, por vezes determinada

simplesmente pela afeco dos compostos a que pertence, por outras

capaz de pensar como Deus, no em sua plenitude, mas em suas

pequenas partes.

2.1. Descrio da Mnada em seus atributos fundamentais

Eleger uma substncia enquanto representante legtima de toda

realidade possvel e buscar derivar de seus atributos os fundamentos

para todos os fenmenos, torna a filosofia de Leibniz, uma busca pela

idia de unidade18. O centro da idia de substncia para onde

convergem todos os raios que compe a essncia do ser aponta para

a Monadologia; temos na teoria fundamental que explicita o organon

da mnada como a fase final de um sistema terico que se prope a

18 Aps discutir os problemas acerca de um sujeito fundante em Descartes, Heidegger faz a transio para analisar a filosofia de Leibniz, procurando demonstrar como surge enquanto unidade de compreenso a idia do subjectum O subjectum aquilo que suposto e sub-metido ao actus, aquilo com que algo diverso pode contingentemente se juntar. Nisso que vem ao encontro acidentalmente, no accidens, o advir concomitantemente presena, isto , um modo do presentar, se torna inaudvel. Aquilo que reside sob e aquilo que suposto (o subjectum)assumem o papel de fundamento, sobre o qual o algo diverso colocado, de modo que o suposto tambm pode ser concebido como aquilo que se encontra sob e com isso, antes de tudo como algo que continuamente. Subjectum e substans designam o mesmo, o propriamente contnuo e efetivamente real, que suficiente para realidade efetiva e para a continuidade, e que, por isso se chama substantia. Heidegger, M. Nietzsche. Traduo de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007. Vol. II., 2007, p. 331.

29

explicar a realidade. Por mais que se busque um conceito definitivo

que esteja habilitado o suficiente para explicitar a realidade em todas

as suas possibilidades, a questo fundamental deste filsofo moderno

a convico maior de que h uma ordem inexorvel ao interior de

todas as coisas e que a mnada aparece como representante desta

organizao que marca a beleza e harmonia do universo.

Por isso, a idia de Deus, explicitada no captulo seguinte

constitui um dos pilares conceituais desta tese, e serve como

contraponto para a idia de mnada. Essas leis que manteriam a

ordem do universo e a sua possibilidade de apreenso, como j

ilustrara a tradio de pensamento iniciada com Galileu e Descartes,

so constituintes de tudo o que existe e so capazes de se expressar

para o homem, entre outras formas, como entes de razo,

logicamente dispostos, e como a prpria expresso da mais elaborada

racionalidade, seja pela via da matemtica, seja pela geometria. A

tradio na qual esto inseridos os filsofos modernos representa um

movimento de contestao da explicao do mundo sem um sujeito

que capaz de conhec-lo.19

As regras que dobram os fenmenos diante da racionalidade

geram muitas controvrsias e polmicas, porm, o que se admite

como ponto de partida para a explicao da realidade a presena de

leis que conduzem os fenmenos sempre com a mesma ordem, como

verdades de razo capazes de iluminar o prprio mundo contingente.

19 (...)de posse desses dois instrumentos (a bssola da matemtica e o farol da experincia), vamos poder e devemos arriscar-nos no mar alto do saber. Bem entendido, devemos renunciar a esperana de arrancar alguma vez s coisas o seu segredo, de penetrar no ser absoluto da matria ou da alma humana. Mas o seio da natureza nos est francamente aberto se entendermos por isso a ordem e a legalidade empricas. nesse ponto central que vamos nos estabelecer a fim de, a partir da, avanarmos em todas as direes. A potncia da razo humana no est em romper os limites do mundo da experincia a fim de encontrar um caminho de sada para o domnio da transcendncia, mas ensinar-nos a percorrer este domnio emprico com toda segurana e a habilit-lo comodamente. Cassirer, E. A filosofia do Iluminismo. Traduo de lvaro Cabral, Editora da Unicamp, Campinas, 1994, p.31.

30

O dualismo de tradio platnica, levado ao extremo de sua doutrina

prev o antagonismo entre o mundo das idias e o mundo dos

fenmenos. Esta ciso se rompe na harmonia entre esprito e

matria, que sujeitos a um mesmo plano, se convertem em

realidades necessrias, cada qual em sua esfera particular, para a

compreenso do mundo fenomnico em geral. Leibniz j no opera

seu pensamento neste dualismo de contrrios para fundamentar seu

sistema filosfico, mas no plano da coexistncia das foras, como

corpo e alma, natureza e graa.

Imaginar por exemplo que toda a matria est sujeita a

gravidade universal, nos impede de no aceitar que um corpo

qualquer seja lanado de uma altura considervel sem que este

objeto no sofra as conseqncias desta lei. Chegando ao seu

destino, temos um objeto quebrado, amassado ou estilhaado,

demonstrando que a mesma ordem se d para um diamante de

pouqussimos quilates ou um menir gigantesco. A razo uma

condio inerente da existncia de qualquer substncia.

Enxergo todas as coisas ordenadas e ornadas para alm de tudo o que se havia concebido at agora, a matria orgnica em toda a parte, nada de vazio, estril, negligenciado, nada de excessivamente uniforme, tudo variado, mas com ordem; e, o que ultrapassa a imaginao, todo o universo em miniatura, mas sob um olhar diferente, em cada uma de suas partes, e at em cada uma de suas unidades de substncia.20

A unidade substancial presente na idia da mnada detm

inmeras interpretaes. A primeira questo nos remete para a

crtica ao cartesianismo no que tange a dualidade da substncia. A

mnada tem como significado a superao de uma metafsica da 20 Noveaux Essais, PS, V, p. 136.

31

substncia concebida seno como dividida, pelo menos expressa em

duas unidades distintas. A proposta monista de Leibniz visa

estabelecer em sua plenitude a constituio unitria e dinmica de

todas as criaturas. Estamos diante do desenvolvimento da polmica

suscitada pelo dualismo cartesiano e sua interpretao (vide como

exemplo o paralelismo)21, que busca uma causa do movimento

ulterior ao prprio fato de algo se mover.

Se a famosa ma de Newton tem a sua queda, e sendo um

objeto inanimado ou sem vontade prpria, a questo, a saber, a

razo pela qual a fruta caiu daquela forma. Se o matemtico ingls

estivesse dormindo, poderamos especular que a ma fora

arremessada por algum que teria a inteno de acert-lo. Neste

caso, o corpo necessita sempre de uma fora que lhe estranha para

poder se mover. Ou poderamos afirmar, que ele tivesse sonhado

com a ma chocando-se contra sua cabea. A histria de Calvino, ao

descrever as aventuras do Cavalheiro Inexistente, demonstra os

problemas desta questo, que se alastram, por exemplo, na

complicada relao entre corpo e alma.

A armadura do cavalheiro, tal qual nosso corpo, aponta para um

vazio de determinaes e que se prope a mover esta massa para

alm dela mesma. Ao mesmo tempo, ao desmembrar as partes que

compem a armadura, ou o corpo, no encontramos ali nada que

possa ser a causa da animao desta figura, j que se ausentam

mquinas ou engrenagens que pudessem moviment-la de acordo

com um objetivo especfico. Do outro lado da questo, a estrutura de

ferro seria apenas um objeto inerte, um meio sem sua finalidade,

caso no houvesse nela qualquer princpio que a levasse de um lado

para o outro, realizando assim uma determinada ao.

21 Deleuze atribui Leibniz a criao do termo paralelismo, enquanto recurso para definir a concepo dos modos da substncia segundo a filosofia de Spinoza. DELEUZE, G. Spinoza et le problme de lexpression. P. 96, 1968.

32

A histria descrita por Calvino revela um dos problemas mais

fecundos da Filosofia e que remetem ao campo de inmeras

discusses. As relaes entre: corpo e alma; razo e vontade; uno e

mltiplo; conduzindo-nos, no apenas s dificuldades de refletir e

demonstrar estas questes e seus avanos, mas, sobretudo,

insuficincia das cincias em dar conta desta montanha de

problemas. Ora, esta problemtica insere-se nas tentativas de

explicao das estruturas que compem a realidade e resultam em

grandes sistemas filosficos. A proposta terica leibniziana nos lana

luzes capazes de esclarecer seno as respostas para estas questes,

pelos menos as dificuldades em que esto circunscritas estas

reflexes.

A mnada surge como um alvitre que visa superar a diviso

impetrada pela filosofia cartesiana, que apresenta srias dificuldades

na sua interpretao acerca do desenvolvimento dos fenmenos. A

mnada compreende a noo de uma substncia completa, da

plenitude do ser, representao de Deus e reflexo de tudo o que

constitui o universo. Enquanto subjectum22 do mundo pela entidade

mondica em que este encontra a sua mais imediata representao.

Para fundamentar esta condio de sujeito da prpria realidade

torna-se necessrio demonstrar e desenvolver as caractersticas

fundamentais das mnadas. Dentre os atributos que fazem parte do

ser do ente da mnada, podemos distingui-los em duas ordens

possveis. A primeira ordem aponta para as noes de percepo,

apercepo e apetio. Neste nvel de atributos, o que temos a

22 It is helpful to think of substances as functioning in the way theoretical entities function in scientific theories. Such entities as germs and elastic, moving atoms are postulated by the theory as a way of explaining a set of regularities in the world. The existence of such things cant be directly confirmed, but they are used to rationalize and make more intelligible what is observable. Similarly, substances (except in the case of the one which is oneself) cant be directly observed but can be used to explain what is known, or what is in the evidence base.- Hartz, G. Leibnizs Final System- monads, matter and animals. Taylor and Francis e-library, New York, 2006, p.50.

33

capacidade da mnada promover a mudana e sua atualizao, no

que tange a possibilidade de um indivduo se relacionar a partir de si

mesmo com outro, seja na esfera da racionalidade ou no.

A segunda ordem dos atributos embasa o processo de

identidade e autarquia das mnadas. Nessa classe ns temos as

idias de possibilidade, perfeio, apetio, repraesentatio mundi e

ainda speculum vitale. O conjunto destas noes nos d a dimenso

da complexidade da mnada e as razes pelas quais, esta pode ser

considerada como o ente representante do mundo. A proposta de

desenvolver uma "doutrina da Monadologia" nos leva a separar cada

atributo da mnada e analis-lo em suas mincias. O que podemos

vislumbrar que a capacidade de percepo da mnada est

intimamente atrelada ao seu grau de perfeio, ao mesmo tempo em

que as apeties garantem sempre a condio de representao do

mundo e espelho vivo do universo.

Todas estas condies levam a mnada a ser uma entidade

puramente dinmica, capaz de representar o ser em todas as suas

mudanas e mesmo em suas aparentes contradies. Afinal, Leibniz

entende que na ordem dos indivduos, no podemos inferir que

existam dois seres exatamente iguais, considerando ento, que

mesmo preciso todas as Mnadas diferir entre si, porque na natureza

nunca h seres perfeitamente idnticos, onde no seja possvel

encontrar uma diferena interna, ou fundada em uma denominao

intrnseca.23

O isolamento atribudo a toda identidade, singularidade ou

substncia possvel graas ao grau de perfeio contida em cada

unidade substancial existente. O entendimento sobre o princpio dos

indiscernveis passa pela idia de perfeio contida em todas as

mnadas ou substncias existentes. Por possuir uma gama de 23 Leibniz, Monadologia, 9

34

atributos que lhe do a condio de promover-se enquanto

autarqueia, a Monadologia parece desenvolver um legado sobre o

indivduo24, que mesmo em sua solido absoluta e seu estado

ontolgico nico no universo, continua a partir de si mesmo a

impulsionar-se e ser a causa de seu prprio movimento. Por outro

lado, cercar a substncia de atributos que lhe confiram condies de

independncia nos prepara para pensar na idia de liberdade em

Leibniz e da, fundar um problema tico, que no contemple somente

a idia de bem ou mal, mas que garanta a ao das substncias que

so capazes de faz-la. Poder e escolher agir, mesmo vinculado pela

escolha de cometer uma ao ou no, j nos livra do determinismo

absoluto e nos coloca no plano da liberdade.

A descrio da mnada apresenta a substncia em condies

plenas de se manter existente e compor toda realidade. Cada atributo

enriquece a idia da mnada e lhe confere a condio de ens

realissimum, capaz de ao e, sobretudo, e representar em sentido

pleno a ordem do cosmos.

2.1.1. Sobre as percepes

Em acordo com uma idia comum de percepo apresentada

pelos empiristas, somos encaminhados para pensar na relao entre

sujeito e objeto ou naquilo que se apresenta somente como fora do

eu. No entanto, para Leibniz esta idia adquire um sentido amplo e

24 (...) a nova essncia da realidade efetiva comea a transpassar na totalidade e expressamente o todo do ente de maneira dominante. Desta forma, desdobra-se o comeo da metafsica que permanecer o fundamento histrico da modernidade. Heidegger, M. Nietzsche. Traduo de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007. Vol. II., 2007, p. 341.

35

complexo, tendo em vista que a reduo mecanicista ou emprica

desta questo traria srios prejuzos para o entendimento das

diversas nuances em que o problema insurge. O elemento metafsico

retira a idia de percepo deste carter puramente reducionista de

uma realidade material, no servindo mais a mquina como uma

analogia totalmente adequada para explicar os processos nos quais

as relaes entre sujeito e objeto podem ser estabelecidas. Tendo em

vista esta problemtica, Leibniz aponta que:

(...) deve-se confessar que a percepo e o que dela depende inexplicvel por razes mecnicas, isto , por figuras e movimentos. Pois, imaginando haver uma mquina, cuja estrutura faa pensar, sentir e perceber, poder-se- conceb-la proporcionalmente ampliada de modo, a poder-se entrar nela como num moinho. Admitindo isso, ao visit-la por dentro no se encontraram l seno peas impulsionando-se umas s outras, e nada que explique uma percepo. Portanto, essa explicao s deve ser procurada na substncia simples, e no no composto ou na mquina. E apenas isso, precisamente, o que se pode encontrar na substncia simples: percepes e suas modificaes. Tambm s nestas podem consistir todas as aes internas das substncias simples.25

As vrias possibilidades de interpretao envolvidas na noo

de percepo a partir de Leibniz, e como este processo se d no

interior da mnada, apresentam-se como questes importantes para

compreender a natureza da relao da substncia com o mundo e das

partes com a totalidade. Esta questo crucial nos permite demonstrar

duas questes importantes. A primeira demonstra que, existe uma

relao da mnada com o mundo externo enquanto a impossibilidade

de negao da experincia de mnada sobre outra; a segunda,

estabelece sumariamente que esta ligao tem seu limite sempre

estabelecido pela estrutura monadolgica do ser.

25 Leibniz, Monadologia, 21.

36

A anlise de Belaval, especificamente sobre as percepes

aponta para a separao desta condio da mnada em duas frentes

de anlise: uma, psicolgica, apelando para a idia de espelho vivo

do universo; e outra sob a tica da fsica, buscando alicerar-se na

perspectiva de um dado ponto em um sistema de coordenadas na

qual seria possvel definir a sua localizao e at mesmo a sua fora.

Enquanto, sob o aspecto psicolgico a percepo comum a todas as

mnadas, na esfera da geometria e da fsica, a sua intensidade ser

determinada pela sua relao com o conjunto. Estas duas frentes se

complementam estabelecendo a condio da mnada em relao a

totalidade de fenmenos que a circunda.

Juntamente com os apetites e apercepes, a percepo

compe o ncleo no qual a mnada mantm a capacidade de

atualizao de si, a condio a priori para conhecimento de alguns

aspectos de sua realidade e de forma especfica, sua situao

enquanto perspectiva do universo. Portanto, a descrio das

percepes e sua natureza so uma condio necessria para a

explicitao dos mecanismos e dispositivos que fazem parte da noo

da substncia da mnada. Ao adentrarmos nesta questo, nos

deparamos com outro aspecto importante relativo ao problema das

percepes, compreendido por Leibniz como as pequenas percepes.

Estas refletem o limite causal dos fenmenos e a complexidade da

prpria percepo e sua posterior tomada de conscincia, ou,

apercepo.

As pequenas percepes terminam por considerar

determinaes no interior na mnada que afetam decisivamente a

sua percepo sobre a unidade dos fenmenos. E ainda, considera

que a percepo corresponde ao processo de relao entre as

unidades existentes representadas pelas substncias completas em

seus agregados, que se apresentam sempre em sua unicidade e

identidade. No processo de percepo, a mnada tem para si um

37

mecanismo capaz de ordenar a multiplicidade26 e tornar o fenmeno

que se lhe apresenta de forma bruta, agora distinto na medida de

suas possibilidades.

Portanto, trataremos neste item da idia de percepo em

Leibniz e seus desdobramentos; num primeiro plano, o que o autor

identifica como sendo o estado da percepo e suas caractersticas

fundamentais; num segundo plano, como uma percepo fruto do

processo de montagem e entrelaamento das pequenas percepes,

e como estas nos levam ao cabo de uma noo de inconsciente em

Leibniz.27 Dois momentos so importantes no tratamento do tema em

Leibniz. O primeiro se d na discusso com Locke sobre a natureza

do conhecimento, em que Leibniz defende a existncia das idias

inatas. Com o problema/proposta do inatismo aparece a questo

sobre o papel desempenhado pela atividade da percepo e,

sobretudo, a defesa da existncia e atuao das pequenas

percepes.

Num segundo momento, a percepo tratada como atributo

da mnada e se liga aos apetites e conscincia (apercepes). Isso

demonstra a importncia do tema e como o seu esclarecimento

contribui para compreender por um lado, a mnada enquanto

entidade fechada, e por outro, como ser capaz de dar conta das 26O estado passageiro, envolvendo e representando a multiplicidade na unidade ou na substncia simples, precisamente o que se chama percepo, que deve distinguir-se da apercepo ou da conscincia, como adiante se ver. Foi este o ponto onde falharam os Cartesianos, ao desprezarem as percepes inapercebidas. Eis a razo de sua crena que s os espritos so Mnadas e que no h almas dos irracionais e outras Entelquias, confundindo com o vulgo um longo atordoamento com a verdadeira morte, o que os fez cair, ainda, no preconceito escolstico das almas completamente separadas, e chegou mesmo a fortalecer os espritos mal orientados na opinio da mortalidade das almas. Leibniz, Monadologie,PS, VI, 14

27 Sobre a leitura acerca de uma idia de inconsciente em Leibniz, o livro de Richard Herbertz, Die Lehre vom Unbewussten im System des Leibniz (A teoria do inconsciente no sistema de Leibniz), indica esta possvel interpretao sobre a obra de Leibniz. Partindo das discusses entre Locke e Leibniz sobre a questo das idias inatas, Herbertz desenvolve a sua hiptese sobre uma noo de inconsciente na filosofia leibniziana. Georg Holms Verlag, Hildesheim-New York, 1980.

38

eventuais mudanas que ocorrem para alm de si mesmas, que

refora plenamente a sua atividade dinmica. A percepo

corresponde a uma atividade inerente a todas as mnada e como um

movimento necessrio que aparentemente faz com que o ser lance-se

para fora de si. E ao mesmo tempo, a atividade perceptiva promove

um retorno da substancia a si mesma e todas as suas

potencialidades.

Nosso ponto de partida se alicera nas seguintes proposies: a

mnada est sujeita ininterruptamente percepo; perceber

corresponde ao modo de ser da mnada no mundo. Na passagem

abaixo, Leibniz nos d o tom sobre seu entendimento acerca das

atribuies das percepes no processo do prprio reconhecimento de

toda a sorte de fenmenos que constituem as atividades das coisas

do mundo:

Se examinarmos bem a questo a nica certeza que nos percebemos, e que percebemos coerentemente significa que se percebe de modo tal que se pode dar razo de tudo e que tudo se pode predizer. A existncia consiste nisto: em perceber observando certas leis, pois do contrrio, tudo seria como um sonho.28

Ao expressar-se sobre a percepo e sua natureza, Leibniz

parece nos conduzir em um primeiro momento ao reduo da

percepo aos limites do sensrio. No entanto, ele dimensiona que,

para sairmos de um estado anlogo ao sonho ou mesmo uma espcie

de aturdimento (em que os animais vivem, por exemplo) a percepo

por si s no nos basta. Deste ponto so aladas outras dimenses

que promovem um tratamento daquilo que a mnada, em sua

primeira vista, percebeu de modo cru e direto.

Mesmo assim, insiste que, na maior parte de nossas vidas,

agimos reduzidos ao simples empirismo, como se na maioria das 28 Leibniz, La profesin de fe del filsofo. In. Escritos Filosficos, ed. E. de Olaso, Buenos Aires, 1982,p.147.

39

vezes no passssemos de animais ou at mesmo, coisas. As

percepes tomam um espao importante na existncia das mnadas

e so determinantes nas atividades que estas exercem no mundo.

Podemos refletir sobre a matria e seus componentes, tema que

suscitou polmicas importantes entre os gregos, principalmente na

metafsica aristotlica e seus herdeiros, e que alou uma tradio de

problemas cuja soluo, na proporo em que estas questes se

encorpam, tornam-se mais difceis. Na medida em que pensadores

como Locke, Berkeley, Descartes ou Malebranche sistematizam as

condies de relacionamento do conhecimento com o mundo, esta

questo alimentada novamente em toda a sua complexidade, e

retorna na tentativa de explicar o fenmeno pelas prprias condies

em que este aparece.

Leibniz, ao envolver-se em profundidade com esta discusso,

assimila a matria como parte do resultado do processo de unidade

do real, reflexo da prpria unidade do ser da mnada. Ele admite a

relao entre percepo e matria, porm no reduz as duas como

condio a priori de toda realidade. Se o que consideramos material e

mutvel o que nos aparece enquanto fenmeno, as determinaes

desta realidade encontram-se em substratos ainda mais profundos e

que a percepo funciona apenas como porta de entrada e no como

um momento completo da relao entre sujeito e objeto. A matria

aqui no mais entendida como algo passivo, espera de uma forma

para completar alguma condio esttica. Mas como parte de uma

unidade dinmica ainda maior, capaz de movimento e mudana, que

a mnada por sua vez, plenamente capaz de reconhecer. O

reconhecimento da relao entre o que parece inerte- a matria- e a

sua plena mudana a forma, traduzindo na dinmica plena do

prprio movimento, o que entendemos por percepo.

necessrio considerar que a matria, tomada como um ser completo (isto , a matria segunda, oposta

40

primeira, que constitui algo de puramente passivo, e por conseguinte incompleto), apenas um acmulo, ou o que disso resulta, e que todo acmulo real supe substncias simples ou unidades reais, e, quando se considerar ainda o que da natureza dessas unidades reais, isto , a percepo e as suas conseqncias, transferimo-nos por assim dizer para um outro mundo, isto , ao mundo inteligvel das substncias, ao passo que anteriormente estvamos apenas entre os fenmenos dos sentidos.29

A mnada um ser capaz de ao30 e constitui uma

substncia viva.31 Essa condio dinmica da substncia, que em

grande parte representa a fsica desenvolvida por Leibniz, tem como

uma de suas conseqncias mais importantes, o atributo perceptivo

da mnada. A idia de atributo revela-se a partir da disposio inata

da mnada em perceber, investindo-a de uma condio natural para

que esta atividade ocorra e aparea como uma forma importante nas

relaes entre as substncias.

Imaginando um quadro de Czanne, cujo tema a paisagem;

as rvores do quadro tomadas separadamente de seu pano de fundo

ou do rio que flui ali por perto nos aparecem como pequenos borres,

tal qual em uma massa amorfa. Uma ilustrao desta condio se d

nas Metamorfoses de Ovdio, que ao descrever os primeiros

29 Leibniz, Noveaux Essais, PS, V, p.260. 30 Leibniz, Principes de la nature e de la grace, PS, VI, 4.

31 Cassirer reitera que a idia compreendida pela substncia monadolgica no se encerra como um ponto puramente metafsico ou matemtico. A mnada leibniziana no uma unidade aritmtica, puramente numrica: uma unidade dinmica. p.52. Em outro comentrio expe o seu pensamento acerca da relao mnada- substncia. As mnadas so os sujeitos donde o devir extrai integralmente seu princpio e sua fonte. O princpio de sua eficincia, de seu progressivo desenvolvimento, no a relao mecnica de causa e efeito, mas uma relao teleolgica. Cada mnada uma verdadeira entelquia que se esfora por desenvolver e aumentar a sua essncia, por elevar-se de um certo grau de elaborao em outro mais perfeito. Aquilo a que chamamos processo mecnico nada mais , portanto, do que o aspecto exterior, a representao e a expresso sensvel do processo dinmico que se desenrola nas unidades substanciais, nas foras orgnicas. Cassirer, E. A filosofia do Iluminismo. Traduo de lvaro Cabral, Editora da Unicamp, Campinas, 1994, p.121.

41

momentos do mundo, afirma sobre este quem dixere chaos. Ao nos

distanciar da pintura, o borro colorido, que parecia uma volta

perdida do pincel, insurge como uma copa de folhas verdejantes que

se alinha no horizonte com as outras figuras do quadro. Mas, o que

aconteceu com a nossa percepo que num primeiro momento estava

perdida no denso verde inominvel, e que em seguida ergueu-se de

seu pesadelo sem sentido e vislumbrou em seus detalhes a floresta

que ali pulula? Se a percepo no pudesse fazer este movimento de

buscar sempre o sentido e unidade da cena em que ela est inserida,

lhe restaria apenas admitir que no mundo domine no outra coisa

seno o caos. A percepo aparece como esta capacidade da mnada

em vislumbrar a mudana, do contrrio, o mundo permaneceria em

sua plenitude imvel.

Este exemplo nos ilustra o seguinte problema: mesmo diante

do que parece sem sentido algum perante as tentativas da percepo

em organizar o que lhe apresentado, o ato de perceber no cessa

em nenhum momento. A menos que a substncia desaparecesse do

mundo, acarretando a morte e interrupo definitiva de suas

percepes. A percepo prova da condio vital da mnada,

circunstncia de sua participao no mundo escolhido por Deus e

possibilidade de descoberta do prprio sentido deste mundo em que

ela est inserida. Se a desordem se apresenta perante os olhos, como

em uma figura isolada do quadro supracitado, mesmo assim, a

percepo no pra em nenhum momento a sua busca pelo

ordenamento do que lhe dado. A sucesso do tempo e do espao

depende desta capacidade plena da percepo em atualizar-se

(apetio) perante o que se apresenta diante dela. Se fosse de outra

maneira, nenhuma ordem ou unidade teriam acesso para a mnada e

o prprio estado racional do mundo careceria de qualquer exemplo

para a existncia.

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A substancialidade da mnada est diretamente ligada ao

mundo que se apresenta para ela, em primeiro lugar, sempre sob a

forma das percepes32. Desta maneira, nosso ponto de partida se

estabelece ao apresentar perante a natureza de toda substncia, a

habilidade que esta tem de perceber. Por conseguinte, as mnadas

tm a capacidade plena de se fazerem percebidas ao mesmo tempo

em que podem perceber, formulando toda a realidade sobre o que

Heidegger denomina de vis activa33. Leibniz escreve:

No temos livre arbtrio para perceber, mas sim para atuar. No depende de meu arbtrio que o mel me parea doce ou amargo nem tampouco depende de meu arbtrio que se parea verdadeiro ou falso o teorema que prope que o nico que lhe compete examinar o que aparece. Qualquer um que afirma algo, consciente de uma sensao ou de uma razo presente, ou pelo menos, de uma recordao presente que se refere sensao passada, ou da razo passada que se refere percepo34.

32 O esclarecimento de Kant sobre a tese do mundo em sua substancialidade, portanto existncia enquanto percepo relevante, dado que ele toca em seu comentrio, no mesmo ponto levantado nesta tese. Por isso Leibniz, pelo fato de representar-se todas as substncias como noumena, fez de todas elas- mesmo dos elementos da matria, depois de ter-lhes tirado em pensamento tudo o que pudesse significar relao externa, por conseguinte tambm a composio sujeitos simples dotados de capacidade representativa, em uma palavra, mnadas. KANT, I. Crtica da Razo Pura.Traduo de Valrio Rohden e Udo Maldur Moosburger. Ed. Nova Cultural. So Paulo, 2000. p. 215.

33 O conceito de vis activa apresentado pela anlise de Heidegger, como uma das grandes novidades da idia de substncia em Leibniz. A vis activa , por conseguinte, um certo agir, mas no a ao na realizao propriamente dita; ela uma capacidade, mas no uma capacidade em repouso. Designamos o que Leibniz aqui visa tender para ... melhor ainda, para poder exprimir o especfico, de certa maneira j efetivado, momento de agir, o impelir, pulso. HEIDEGGER, M. A Determinao do Ser do Ente segundo Leibniz. Traduo de Ernildo Stein.- So Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores, p.218. A vis activa se coloca como contraposio potentia activa, cuja herana escolstica moldou a noo de substncia como devir.

34 Leibniz, Animadversiones in partem generalem Principiorum Cartesianorum. PS, IV, p. 356. Seguindo a traduo In: Escritos Filosficos, ed. E. de Olaso, Buenos Aires, 1982, p. 417.No tenemos libre arbtrio al percibir sino al actuar. No depende de mi arbtrio que la miel me parezca dulce o amargo ni tampoco depende de mi arbitrio que me parezca verdadero o falso el teorema que se proponesino que o nico que lo compete es examinar lo que aparece. Cualquiera que afirma algo es consciente de uma sensacin o de uma razn presente, o por lo menos, de um

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As percepes encontram-se inseridas de forma natural e

positiva na prpria substncia. Portanto, como parte constituinte da

substancialidade da mnada, em especial a espiritual, e pode ser

considerada como um fator irremedivel para a constituio cognitiva

do sujeito. Leibniz confirma que as percepes se estabelecem como

uma atividade na qual a mnada no pode se eximir ou sair, se

mostrando, conclusivamente, como a condio a priori de sua relao

com o mundo.

Para Leibniz, o fato de que a percepo uma ocorrncia

necessria35, no determina que esta acontea de qualquer forma,

em estado catico. A percepo antes de tudo um processo

extremamente organizado, dado que o movimento interno da

substncia que ordena e sintetiza a multiplicidade em uma unidade.

Esta unidade, por sua vez, desponta no simples. Contudo, apesar da

simplicidade que tem por trs de si, a prpria multiplicidade guarda

sempre o complexo. A percepo d conta das unidades em suas

mudanas, promovendo sempre a atualizao desta substncia na

medida em que sua multiplicidade se manifesta. Caso no ocorresse

desta forma, a realidade apareceria esttica para a percepo, e a

mnada estaria presa ao fenmeno, sem ter capacidade alguma de

acompanhar seu movimento e desenvolvimento. o estado da

recuerdo presente que se refire a la sensacin pasada, o de la razn pasada que se refiere a la percepcin.

35 E de modo nenhum se segue da que a substncia simples possa existir sem qualquer percepo. Isso impossvel, pelas razes acima apontadas: pois nem poderia perecer, nem de igual modo subsistir sem alguma afeco, que precisamente a sua percepo. Quando h, porm, uma quantidade grande de pequenas percepes, e nestas, nada distinto, fica-se atordoado, como quando se anda roda continuamente num mesmo sentido sobrevindo uma vertigem que nos faz desmaiar e no nos consente distinguir alguma coisa. Durante algum tempo, a morte pode produzir este estado nos animais. Leibniz, 2000, 17. importante conceber que a existncia contingente. No entanto, uma vez existindo, a percepo na mnada se torna necessria.

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substncia que Leibniz denomina como torpeza como aturdimento, ou

a prpria morte.

Portanto, corresponder a um ponto de vista do universo no

significa apenas ser um representante fixo de uma unidade que

aparece sempre idntica a si mesma. Em ltima instncia, a

capacidade plena de acompanhar esta unidade em seu dinamismo,

revelando as suas mudanas em toda a sua complexidade. A criao

infinita de mnadas por Deus revela a perpetuidade do movimento do

cosmos, portanto, o carter incessante de aparecimento de novos

representantes da realidade, confirmados pela sua capacidade nica

de refletir o universo, cada uma em sua maneira particular. E ainda,

em cada um destes representantes da realidade ou mnadas, Deus

aponta para sua complexidade, na medida em que esta pode

acompanhar o movimento incessante do universo, devido ao prprio

movimento infinito que por sua vez, ocorre dentro de si mesma.

O que por ventura considera-se como acontecimento exterior

substncia, na medida em que esta percebe as novas coordenadas

dos pontos (neste caso, mnadas ou partculas) na existncia,

corresponde tambm mudana interior da prpria unidade que

percebe. Ou seja, esta passa de um ponto a outro dentro de si

mesma, atualiza-se, desvelando sua natureza complexa e sua

identidade puramente dinmica. As mnadas se tornam as

representantes legtimas dos fenmenos porque elas so capazes de

manter e suportar a multiplicidade na unidade, a simplicidade na

complexidade e, sobretudo, guardar em si e proporcionalmente, a

fecundidade e riqueza do universo e de Deus, que por ora, sempre

aparece como fora da prpria substncia.

A dificuldade de compreender as funes das percepes na

natureza da mnada aumenta, na medida em que Leibniz classifica as

percepes em duas espcies, que so distintas e complementares: a

primeira, nomeada simplesmente como percepo e a segunda,

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conhecidas como pequenas percepes (petites perceptions). Tendo

como origem comum os sentidos, so tambm confirmadas por

Leibniz como uma das fontes de nossos conhecimentos, sempre

formando um conjunto com a reflexo. Os sentidos36, de acordo com

a natureza ontolgica de cada substncia, so os canais de acesso de

toda substncia ao universo. Belaval explica que a percepo

sempre a conscincia de um objeto presente.37 Esta definio indica

que a perceber no fundo um processo que, juntamente com as

apeties e as apercepes, fazem parte da lista de atributos que

permitem mnada computar a mudana.

Este movimento ocorre concomitantemente no interior da

substncia e fora dela, levando em considerao, que, independente

do fenmeno ser considerado externo a esta ou aquela mnada, os

limites nos quais os seres aparecem esto sempre na mnada que

percebe. Dada externamente, a realidade vm a se estruturar todas

as vezes internamente na mnada, dando-se neste momento a

percepo. Instantaneamente, a mnada transforma o real em

unidade, conferindo-lhe seguir um sentido e um significado38.

Mesmo confusamente, a mnada detecta neste aparente

desordenamento dos fenmenos, um ponto de apoio ao qual ela pode

vir a atualizar o seu interior. Isto independente ainda se o que

36 Principes de la Nature e de la Grace, PS, VI, 4. Porm, quando a mnada tem rgos to adaptados que relacionados a eles as impresses que recebem apresentem relevo e distino e, por conseguinte, h relevo e distino nas percepes que as representam (por exemplo, quando mediante a configurao dos humores dos olhos se concentram os raios de luz e atuam com maior fora) , ento pode-se dizer que h sentimento, a saber, uma percepo acompanhada de memria. Isto , uma percepo cujo eco perdura muito tempo, para fazer-se ouvir no momento preciso. A nota de Olazo tambm assaz importante. Aqu se advierte claramente la jerarqua de trminos metafisicos-gnosilogicos que propone Leibniz: impresin/percepcin/sentir. Este ultimo es algo ms que una simple percepcin. Ed. cit.-p. 599. 37 Belaval, Y. tudes Leibniziennes-de Leibniz Hegel. ditions Gallimard, 1976, p.143.

38 Leibniz, De modo distinguedi phaenomena realia ab imaginariis, PS, VII, p. 319.- Porm, assim como o ser se explica mediante um conceito distinto, o que existe se explica mediante uma percepo distinta. Olazo, Ed. cit- p.265.

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permanecia para alm dela se constitui como verdadeiro ou no.

Nestas condies, Leibniz escreve que:

Ns prprios experienciamos uma multiplicidade na substncia simples, quando verificamos que o menor pensamento apercebido envolve variedade no objeto. Portanto, quem reconhece a alma como substncia simples, deve reconhecer esta multiplicidade da Mnada. E Bayle no devia encontrar, neste ponto, dificuldade alguma, como encontrou em seu Dicionrio, no artigo Rorarius.39

A percepo, portanto, corresponde porta de entrada da

experincia que a mnada tem com o mundo e ainda, a ocasio que

permite a atualizao do seu prprio ser. Cada mnada um centro

de percepo40, e enquanto tal, opera sempre na medida em que se

encontra viva no universo. A percepo justape a mnada ao

conjunto dos fenmenos, e conseqentemente, em relao s outras

mnadas. Sem as percepes, o mundo ser-nos-ia inacessvel, dado

que, o que teramos como imagem da existncia seria o primeiro

estmulo ao qual tivssemos acesso, e como em uma fotografia nica

e eterna, a realidade seria para ns, finita e esttica.

Analisaremos por fim as pequenas percepes. Leibniz as

apresenta de modo claro e simples, e as integra ao processo do

conhecimento quando desenvolve a sua argumentao contra Locke.

Se existem idias inatas, ou seja, anteriores a toda experincia

sensvel, necessrio investigar qual a natureza destas idias e de

que forma elas participam do processo de formao do conhecimento.

As percepes aparecem como estes movimentos inatos da mnada,

que representa a sua forma de estar no mundo. Ir de encontro ou

no ao fenmenos e eventos corresponde a uma disposio na qual a

39 Leibniz, Monadologia, PS, VI, 16

40 Belaval, Y. Ed. cit.-p.144.

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substncia encontra-se verdade de fazer qualquer tipo de escolha, no

sentido de no querer mais perceber. Simplesmente, as percepes

ocorrem e ainda, ininterruptamente, sem que possamos cess-la ou

mud-la. Leibniz esclarece que:

Essas pequenas percepes, devido s suas conseqncias, so, por conseguinte mais eficazes do que se pensa. So elas que formam este no sei qu, esses gostos, essas imagens das qualidades dos sentidos, claras no conjunto, porm confusas nas suas partes individuais, essas impresses que os corpos circunstantes produzem em ns, que envolvem o infinito, esta ligao que cada ser possui com todo o resto do universo. Pode-se dizer que, em conseqncia dessas pequenas percepes, o presente grande e o futuro est carregado do passado, que tudo convergente (smpnoia pnta, como dizia Hipcrates), e que, na mais insignificante das substancias, olhos penetrantes como o de Deus poderiam ler todo o desenrolar presente e