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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS ESTUDOS JUDAICOS E ÁRABES TELMO JOSÉ AMARAL DE FIGUEIREDO Um nome que faz toda diferença: análise literária de Gênesis 32,23-33 VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2016

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE … · This thesis aims to analyze the pericope of Genesis 32,23-33 which constitutes ... 5 Pode haver uma confusão quando se lê um texto

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

    ESTUDOS JUDAICOS E RABES

    TELMO JOS AMARAL DE FIGUEIREDO

    Um nome que faz toda diferena: anlise literria de Gnesis 32,23-33

    VERSO CORRIGIDA

    So Paulo

    2016

  • TELMO JOS AMARAL DE FIGUEIREDO

    Um nome que faz toda diferena: anlise literria de Gnesis 32,23-33

    VERSO CORRIGIDA

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Estudos Judaicos e rabes do

    Departamento de Letras Orientais da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da

    Universidade de So Paulo, como parte dos

    requisitos para obteno do ttulo de Doutor em

    Letras.

    Orientador: Prof. Dr. Moacir Aparecido Amncio

    So Paulo

    2016

  • FIGUEIREDO, Telmo Jos Amaral de. Um nome que faz toda diferena: anlise literria de

    Gnesis 32,23-33. Tese de Doutorado apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ______________________________ Instituio_________________________

    Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

    Prof. Dr. ______________________________ Instituio_________________________

    Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

    Prof. Dr. ______________________________ Instituio_________________________

    Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

    Prof. Dr. ______________________________ Instituio_________________________

    Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

  • Dedico este trabalho, primeiramente, minha

    querida me, Maria Aparecida Amaral de Figueiredo,

    por sempre ter-me apoiado e desejado o bem. Outra

    pessoa fundamental para que eu tivesse obtido

    sucesso em meus estudos foi a minha querida tia

    Sumie Matai de Figueiredo, que me acolheu em sua

    prpria residncia. Dedico esse estudo, tambm, a

    uma pessoa que muito me inspirou e incentivou a

    intraprender esse caminho, refiro-me ao Prof. Dr.

    Carlos Daghlian (in memoriam). E, finalmente, ao

    clero de minha Diocese de Jales (SP) e ao povo de

    Deus daquela regio que sempre acreditou na fora

    do Bem e do Amor.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Moacir Aparecido Amncio, meu querido orientador, que sempre me

    motivou, vigiou pela minha perseverana e dedicao a esta tese.

    Aos meus bispos D. Luiz Demtrio Valentini (emrito) e D. Jos Reginaldo Andrietta,

    por terem confiado em mim e permitido afastar-me de minhas funes na diocese de Jales (SP)

    para poder consagrar-me a este estudo.

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, pela oportunidade de realizao

    desse trabalho de pesquisa, que foi fundamental para o meu amadurecimento como professor e

    estudioso de literatura bblica.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) que me

    concedeu uma valiosa e necessria bolsa de estudos para que eu pudesse consagrar-me

    totalmente aos estudos e pesquisas.

  • Pouco a Leste do Jordo,

    Registram os Evangelistas,

    Um Ginasta e um Anjo

    Lutaram longa e violentamente

    At que a manh tocou a montanha

    E Jac, cada vez mais forte,

    O Anjo pediu permisso

    Para o Desjejum e voltar

    Assim no, disse o astuto Jac!

    No o deixarei ir

    A menos que me abenoe Estrangeiro!

    E este aquieceu

    A luz volteou os velos de prata

    Alm das colinas de Peniel,

    E o aturdido Ginasta

    Descobriu que derrotara a Deus!

    (DICKINSON, Emily, s/d)

    (Trad.: Carlos Daghlian)

  • RESUMO

    FIGUEIREDO, Telmo Jos Amaral de. Um nome que faz toda diferena: anlise literria de

    Gnesis 32,23-33. 2016. 190 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2016.

    Esta tese tem por objetivo analisar a percope de Gnesis 32,23-33 que constitui um dos

    elementos estruturantes do conhecido ciclo de Jac que integra a histria dos patriarcas de

    Israel na Bblia Hebraica. Jac tomado como um dos principais ancestrais do povo judeu, no

    obstante sua tradio, em alguns perodos da histria, ter ficado em plano inferior quela de

    Moiss, por exemplo. Em Jac convergem as esperanas de uma parte da nao que no se v

    contemplada pela religio oficial que administra um culto a YHWH distante da realidade vivida

    pelas famlias tribais, que habitam no interior, em pequenos vilarejos e no campo. O nome dado

    a Jac, em meio a uma luta, significativo e revelador. Afinal, ele no , nem de longe, a figura

    perfeita, ideal que as tradies religiosas dominantes exigiam para algum ser considerado um

    verdadeiro israelita temente ao Senhor. Sua liderana e dignidade chegam, mesmo, a ser

    questionadas pelo profetismo. No obstante tudo isso, sua pessoa que encarnar, atravs de

    um nome recebido do prprio ser divino, os destinos de Israel. Personagem e indivduo se

    mesclam propositalmente no epnimo Israel, a fim de revelar a verdadeira vocao daquele

    povo.

    Palavras-chave: Jac. Israel. Mudana de nome. Onomstica bblica.

  • ABSTRACT

    FIGUEIREDO, Telmo Jos Amaral de. A name that makes all the difference: literary

    analysis of Genesis 32: 23-33. 2016. 190 f. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras

    e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2015.

    This thesis aims to analyze the pericope of Genesis 32,23-33 which constitutes one of the

    structuring elements of the well-known "Jacob cycle" that integrates the history of the patriarchs

    of Israel in the Hebrew Bible. Jacob is taken as one of the chief ancestors of the Jewish people,

    in spite of his tradition, at some periods in history, to have remained lower than that of Moses,

    for example. In Jacob converge the hopes of a part of the nation that is not seen contemplated

    by the official religion that administers a cult to YHWH far from the reality lived by the tribal

    families, that inhabit in the countryside, in small villages and in the field. The name given to

    Jacob in the midst of a struggle is significant and revealing. After all, he is by no means the

    perfect, ideal figure that prevailing religious traditions demanded for someone to be considered

    a "true Israelite" who feared the Lord. His leadership and dignity even come to be questioned

    by prophetism. Notwithstanding all this, it is his person who incarnates, through a name

    received from his own divine being, the destinies of Israel. Character and individual deliberately

    merge into the eponymous "Israel" in order to reveal the true vocation of that people.

    Keywords: Jacob. Israel. Name change. Biblical Onomastics.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AEC Antes da Era Comum = a.C.

    BH Bblia Hebraica

    BJ Bblia de Jerusalm (cf. bibliografia)

    c. Coluna

    Cf. / cf. Confira / conferir

    EC Era Comum = d.C.

    Ed.

    gr.

    Editor / Editado por

    grego

    heb.: Hebraico

    n. Nota de rodap

    Org. Organizado por / Organizador / Organizao

    p. Pgina

    p. ex. Por exemplo

    sc. Sculo

    Trad. / trad.

    t.

    Traduo ou tradutor

    Tomo

    v. Versculo (da Bblia) ou Volume (nas citaes bibliogrficas)

    vv. Versculos (da Bblia)

  • LISTA DE ABREVIATURAS DOS LIVROS BBLICOS1

    Ab Abdias Ag Ageu Am Ams Ap Apocalipse At Atos dos Apstolos Br Baruc Cl Colossenses 1Cor 1 Corntios 2Cor 2 Corntios 1Cr 1 Crnicas 2Cr 2 Crnicas Ct Cntico dos Cnticos Dn Daniel Dt Deuteronmio Ecl Eclesiastes = Qohlet Eclo Eclesistico Ef Efsios Esd Esdras Est Ester Ex xodo Ez Ezequiel Fl Filipenses Fm Filmon Gl Glatas Gn Gnesis Hab Habacuc Hb Hebreus Is Isaas Jd Judas Jl Joel Jn Jonas J J Jo Evangelho segundo Joo 1Jo 1 Joo 2Jo 2 Joo 3Jo 3 Joo Jr Jeremias Js Josu Jt Judite Jz Juzes Lc Lucas Lm Lamentaes

    1 As abreviaes seguem o sistema proposto pela Bblia de Jerusalm (cf. bibliografia) que um dos mais

    empregados em estudos bblicos. A disposio segue a ordem alfabtica para facilitar a busca.

  • Lv Levtico Mc Evangelho segundo Marcos 1Mc 1 Macabeus 2Mc 2 Macabeus Ml Malaquias Mq Miqueias Mt Evangelho segundo Mateus Na Naum Ne Neemias Nm Nmeros Os Oseias 1Pd 1 Pedro 2Pd 2 Pedro Pr Provrbios Rm Romanos 1Rs 1 Reis 2Rs 2 Reis Rt Rute Sb Sabedoria Sf Sofonias Sl Salmos 1Sm 1 Samuel 2Sm 2 Samuel Tb Tobias Tg Tiago 1Tm 1 Timteo 2Tm 2 Timteo 1Ts 1 Tessalonicenses 2Ts 2 Tessalonicenses Tt Tito Zc Zacarias

  • TRANSLITERAO DOS CARACTERES HEBRAICOS2

    Letras

    (consoantes)

    Nome

    Transliterao

    a alef b bt (sem daguesh)3 b B bt (com daguesh) B g guimel (sem daguesh) g G guimel (com daguesh) G d dalet (sem daguesh) d D dalet (com daguesh) D h h h w waw w z zayin z x Het H j et y yod y

    k / $ (forma final) kaf (sem daguesh) k K kaf (com daguesh) K l lamed l

    m / ~ (forma final) mem m n / ! (forma final) nun n

    s samekh s [ `ayin ` p p (sem daguesh) p

    P / @ (forma final) p (com daguesh) P

    2 O esquema de transliterao e banco de dados foi desenvolvido por Matthew Anstey para uso em BibleWorks.

    Este banco de dados baseou-se na base de dados eletrnica CCAT Michigan-Claremont-Westminster. Ela foi usada

    livremente com a permisso da Sociedade Bblica Alem. O BibleWorks um programa (software) para exegese

    bblica e pesquisas neste campo. um produto da BibleWorks, LLC, de Norfolk (VA) nos Estados Unidos da

    Amrica. 3 Os massoretas empregavam um ponto ou pequeno sinal dentro de letra, denominado daguesh, para indicar: a)

    que a consoante em questo pode ser geminada (duplicada), neste caso o daguesh forte; b) no caso das letras

    ambguas do grupo t p k d g b, aquela com o ponto a oclusiva (chamado de daguesh lene), a que carece de ponto a fricativa; c) que um h final no deve ser considerado como vogal, mas como consoante com significado morfolgico (esse tipo de h final denominado de mappq (cf. LAMBDIN, 2003, p. 28-29).

  • C / # (forma final) tsad c q qof q r resh r f sin S v shin t taw (sem daguesh) t T taw (com daguesh) T

    Letras

    (vogais e semivogais)

    Nome

    Transliterao

    a. shew (audvel) a. shew (mudo) a; pataH a x: pataH furtivo4 a;> Haef-pataH a' qamets h ' qamets com final voclico

    (ou qamets h)

    a, segol e h , segol com final voclico

    (ou segol h)

    y < segol formando ditongo (segol yod)

    a/ Haef-segol ae tser y E tser yod (ditongo) h E tser com final voclico

    (tser h)

    ai hiriq breve i ai hiriq longa yai hiriq yod (ou hiriq Male =

    completo)

    a' qamets Hauf5 o a\ Haef-qamets

    4 A transliterao ocorre acima da linha, diferenciando da vogal pataH. 5 Pode haver uma confuso quando se l um texto hebraico no transliterado, porque ambas vogais: qamets e

    qamets Hauf so morfologicamente iguais! A regra geral indica que se l o, portanto qamets Hauf, em uma

    slaba fechada e no acentuada. Uma slaba fechada, normalmente termina em shew, p. ex.: yrIm.v' (l-se: omr). Em algumas partes, onde pode haver confuso, usa-se o mteg um trao vertical curto colocado debaixo de uma

    consoante e esquerda do sinal voclico se houver. Quando h o mteg, ento se l com a.

  • ao Holem hao Holem h wO Holem waw au qibbuts breve u au qibbuts longo W shureq Outros

    Letras

    (consoantes)

    Nome

    Transliterao

    X (sem pontuao caso raro,

    p. ex.: Gn 30,18)

    sin / shin J

    | " mteg6 Acento indicando slaba

    tnica

    6 Cf. a nota anterior.

  • SUMRIO

    INTRODUO 01

    1 A QUE SERVE O NOME? ONOMSTICA E LITERATURA 06

    1. O NOME PRPRIO 06

    1.1. O que o nome prprio 10

    1.2. A que serve o nome prprio 13

    1.3. Noes semnticas bsicas sobre o nome prprio 15

    2. DIFERENTES ABORDAGENS DO NOME PRPRIO 18

    2.1. Semitica 18

    2.2. Psicanlise 24

    3. O NOME PRPRIO NA LITERATURA 25

    3.1. Nomes que revelam a qualidade dos personagens 26

    3.2. Nomes que indicam o local da ao 26

    3.3. Nomes sugestivos do tempo da ao 26

    3.4. Nomes que exercem um papel na estrutura da obra 26

    3.5. Nomes que ressaltam as associaes sinestsicas 29

    4. UMA ANLISE ANTROPOLGICA DO NOME PRPRIO 40

    4.1. As funes dos nomes de pessoas 41

    4.2. Nome prprio como um cdigo social 45

    4.3. Poder e simbologia dos nomes prprios 46

    2 NOMES PRPRIOS NO ORIENTE MDIO ANTIGO E NA BBLIA HEBRAICA 51

    1. O NOME PRPRIO EM CIVILIZAES CONTEMPORNEAS A ISRAEL 51

    1.1. Mesopotmia 51

    1.2. Egito 60

    1.3. Grcia e Roma 63

    2. ONOMSTICA BBLICA 65

    2.1. O nome prprio na cultura hebraica 65

    2.2. Circunstncias que determinam a nomeao das pessoas 70

    2.2.1. Circunstncias particulares do nascimento 70

    2.2.2. Circunstncias externas, contemporneas ao nascimento e simbolismo 71

  • 2.2.3. Influncia da aparncia fsica da criana 72

    2.2.4. Nomes de animais 72

    2.2.5. Nomes de plantas 73

    2.2.6. Nomes teofricos 73

    2.2.7. Outros fatores determinantes na escolha do nome 79

    2.3. A mudana de nome na Bblia Hebraica 80

    2.3.1. Alteraes de nomes impostas por um senhor 80

    2.3.2. Alteraes de nomes impostas por uma interveno divina 81

    2.3.3. Alterao de nome realizada pela prpria pessoa 82

    3. ETIOLOGIAS BBLICAS 83

    3 GNESIS 32,23-33: VISITANDO O TEXTO E A SUA INTERTEXTUALIDADE 87

    1. O TEXTO EM SI 87

    2. ALGUMAS NOTAS DE CRTICA TEXTUAL 88

    3. CONTEXTOS DA PERCOPE 91

    4. A FORMAO DO PENTATEUCO E O CICLO DA HISTRIA DE JAC 101

    5. DELIMITAO E ESTRUTURA 124

    4 MUDAR DE NOME PARA QU? 132

    1. PARALELISMOS INTERNOS BBLIA 132

    2. ASPECTOS INTERNOS PERCOPE 138

    3. COMO FOI INTERPRETADA A MUDANA DE NOME DE JAC 142

    4. O QUE SIGNIFICA ISRAEL 150

    CONCLUSO 189

    BIBLIOGRAFIA 196

  • 1

    INTRODUO

    A Bblia Hebraica (doravante, BH) literatura, enquanto possuidora dos traos

    caractersticos de toda obra literria, pois ela o resultado de uma criao por parte

    de seu autor e, na inteno deste, est destinada a durar ... desinteressada, quer dizer,

    de eficcia no prtica (embora possa haver uma de outro tipo: educao, e satisfao

    do sentido esttico, difuso de ideias e experincias etc.) ... de natureza esttica, quer

    dizer, um de seus objetivos fundamentais proporcionar ao destinatrio prazeres de

    tipo espiritual (TOSAUS ABADA, 2000, p. 18-19, grifos nossos).

    Entre ns, aqui no Brasil, ainda so poucos os estudiosos que se dedicam a esse

    tipo de abordagem da BH como verdadeira literatura. Inclusive, so pouqussimas as

    faculdades de letras que possuem departamentos especficos para esse tipo de

    literatura ou que permitem e possuem mestres capacitados para tal tarefa. Como

    reconhece ALTER (1998, p. 12):

    A ausncia geral deste discurso crtico sobre a Bblia Hebraica mais desconcertante ainda quando nos lembramos de que as obras-primas da Antiguidade grega e latina usufruam, nas dcadas recentes, de uma anlise crtica abundante e perspicaz, de modo que aprendemos a perceber sutilezas da forma lrica tanto em Tecrito quanto em Marvell, complexidade e estratgia narrativa tanto em Homero ou Virglio quanto em Flaubert.

    O motivo para tal, que a Bblia foi considerada durante muitos sculos, tanto

    por cristos quanto por judeus, a fonte unitria e primria da verdade de revelao

    divina (ALTER, 1998, p. 16). Contudo, a Bblia no perde em nada com esse tipo de

    anlise crtica, antes [...] a viso religiosa da Bblia ganha profundidade e sutileza

    exatamente pelo fato de ser transmitida atravs dos meios mais sofisticados da prosa

    ficcional (ALTER, 1998, p. 22).

    Ao servir-me da anlise narrativa para estudar Gn 32,23-33 que trata da

    mudana de nome de um dos principais patriarcas de Israel, como resultado de um

    inusitado encontro noturno que Jac vivencia, pretendo aplicar esse discurso crtico.

  • 2

    Este personagem, denominado Israel seu novo nome o antecessor epnimo que

    fornece motivos de identificao para o seu prprio povo.

    Pois bem, o modo de narrar no indiferente ao sentido que se produz e ao

    seu efeito (SKA; SONNET; WNIN, 1999, p. 7). Alis, a anlise narrativa leva em

    considerao a distino que se deve fazer entre histria narrada, de uma parte, e a

    narrao, de outra. Aqui, por narrao, entende-se a narrao concreta que feita dessa

    histria. O narrador, a voz do texto, tem aqui um papel fundamental. Portanto, a

    narrativa o veculo de uma comunicao entre um emissor (o narrador) e um

    receptor (o leitor), e um dos objetivos principais da leitura estudar a estratgia

    narrativa, isto , as modalidades concretas de que o narrador faz uso na narrativa para

    se comunicar com o destinatrio e apresentar-lhe seu mundo de valores e suas

    convices (SKA; SONNET; WNIN, 1999, p. 7).

    Este estudo se dedicar, justamente, a essa tarefa, ou seja, levantar

    concretamente na narrativa de Gnesis 32,23-33 os elementos que foram utilizados na

    construo literria desse texto, em vista de identificar sua inteno ltima e suas

    consequncias para a interpretao do mesmo. A anlise de textos do Gnesis, sob o

    ponto de vista da narratologia, permitir trabalhar os elementos histricos e culturais

    especficos, que resultaro desse levantamento. Ser muito til, nesse ponto, o

    confronto com a histria e literatura de Israel e dos povos vizinhos, bem como com os

    aspectos culturais da poca. Dever-se- estabelecer, ento, um dilogo multidisciplinar

    a fim de permitir a descoberta daquilo que especfico no pensamento hebraico e

    constitui a elaborao prpria de sua identidade cultural expressa no texto em anlise.

    Para concretizarmos o objetivo de levantar o vu que recobre um nome to

    fundamental na literatura, cultura e histria bblica, como YiSrl, procederemos

    da seguinte forma.

    No primeiro captulo, nos dedicaremos a identificar e esclarecer o que se

    entende por nome prprio, qual a sua finalidade nas lnguas e culturas. Passearemos

    brevemente pela semitica e psicanlise que nos podem ajudar um pouco na

    elucidao dessa funo presente em todas as culturas e etnias. Em seguida, ser o

    momento de nos focarmos mais no uso que a literatura faz de nomes prprios pessoais.

    Poderemos constatar a incrvel variedade de tarefas a eles atribudas: revelando a

  • 3

    qualidade das personagens, indicando o local onde transcorre a ao, sugerindo o

    tempo da ao, exercendo um papel na estrutura da obra literria e, por ltimo,

    servindo para associaes sinestsicas que produzem um efeito especial na obra.

    Fechando o captulo, nos dedicaremos anlise antropolgica do nome prprio,

    interrogando-nos sobre as funes dos nomes de pessoas, o nome prprio como um

    cdigo social e a simbologia dos nomes prprios.

    O segundo captulo ser consagrado a estudar como os nomes prprios so

    utilizados no Oriente Mdio Antigo e na prpria BH. Comearemos abordando as

    civilizaes contemporneas a Israel, ou seja, a Mesopotmia, o Egito, a Grcia e Roma.

    Em seguida, entraremos no universo da cultura bblica, tratando de como as

    circunstncias determinam a nomeao das pessoas na cultura hebraica e analisando

    cada uma delas. Um item ser dedicado questo da mudana de nomes na BH, uma

    vez que este o tema central deste nosso estudo. Concluindo o captulo, exploraremos

    algo sobre as etiologias bblicas, ou seja, as glosas que so includas nos textos a fim de

    fornecer uma explicao para um determinado nome de pessoa ou local.

    Com o terceiro captulo, iniciamos a abordagem propriamente dita de nossa

    percope (Gn 32,23-33). Primeiramente, nos deparando com o texto hebraico completo

    da mesma, seguido por algumas notas e observaes de crtica textual, que procura

    identificar possveis problemas presentes nos manuscritos bblicos que serviram como

    base para o estabelecimento do texto hebraico que possumos atualmente em nossas

    mos. Aps essa anlise mais tcnica, partimos para contextualizar a nossa percope,

    o que fundamental quando se trata de um texto literrio inserido em meio a uma

    obra completa e, nesta, inserido em um determinado bloco literrio que, neste caso,

    o denominado ciclo de Jac. Pensei que se fizesse necessrio abordar, nem que fosse

    de modo resumido, o processo de formao do Pentateuco/Tor e, no interior deste, a

    evoluo do ciclo de Jac. Afinal, a formao do Pentateuco determinou o modo como

    as unidades literrias foram dispostas em seu interior e a articulao delas entre si.

    Finalmente, o captulo chega ao seu final com a delimitao da percope, agora o nosso

    olhar comea a tornar-se cada vez mais focado em Gn 32,23-33, e um estudo sobre a

    sua estrutura.

  • 4

    O quarto e ltimo captulo de nosso estudo totalmente consagrado ao

    fenmeno da mudana de nome de Jac para Israel. Para isso, parte-se de paralelismos

    com os quais a nossa percope se defronta na BH. Em seguida, faz-se uma anlise mais

    detalhada de cada elemento que compe a percope; para, na sequncia, abordarmos

    como se deu a interpretao da mudana de nome de Jac na literatura bblica, rabnica

    e por parte dos pesquisadores modernos. Ento, chegamos, por fim, anlise que

    concentra o ncleo deste nosso estudo, o significado de Israel.

    Gostaria de chamar a ateno para algumas particularidades metodolgicas que

    adotei na composio deste estudo.

    Primeiramente, a traduo dos textos bblicos citados tomada da Bblia de

    Jerusalm a no ser quando indicado diversamente. Os textos mais diretamente

    relacionados percope, que o objeto central da pesquisa, foram sempre traduzidos

    por mim mesmo. Enquanto que, para os demais textos servi-me da mencionada verso

    bblica em portugus ou de alguma outra mais literal, a qual vem tambm indicada.

    Por uma questo de uniformizao e praticidade, adotei os nomes prprios de

    pessoas, localidades e povoaes empregados pela mesma Bblia de Jerusalm.

    Obviamente, esses nomes diferem, algumas vezes, em muito, do termo original

    hebraico. Por esse motivo, quando o nome mencionado requer uma proximidade com

    o original hebraico, o mesmo mencionado em parntesis.

    As citaes diretas do hebraico so feitas em duas formas: usando os caracteres

    aramaicos quadrados como estamos habituados a encontrar nas edies da BH e nas

    obras afins, ou ento, a transliterao do texto hebraico seguindo um dos sistemas mais

    aceitos e utilizados internacionalmente, que est explicado no item Transliterao dos

    Caracteres Hebraicos, que se encontra antes desta introduo. Devido a uma questo

    de acessibilidade a um maior pblico, preferi empregar mais o texto hebraico

    transliterado.

    Na bibliografia, preferi seguir o mtodo de citar o nome dos autores o mais

    completo possvel. Afinal, uma forma de tornar mais conhecidos e acessveis os

    estudiosos neste campo de pesquisa. Sem falar que, diferentemente da Europa e dos

    Estados Unidos da Amrica, em nosso pas as pessoas so tratadas mais comumente

    pelo nome e no pelo(s) sobrenome(s).

  • 5

    Antes de concluir esta breve introduo, penso ser oportuno fazer recurso a um

    providencial poema que, em muito, auxilia-nos a antecipar o fruto essencial deste

    nosso estudo.

    Refiro-me a um poema de Nelly Sachs, escritora judia radicada na Sucia,

    nascida em Berlim, na Alemanha, aos 10 de dezembro de 1891 e falecida em Estocolmo,

    Sucia, aos 12 de maio de 1970. As suas experincias resultantes da ascenso do

    nazismo na Segunda Guerra Mundial na Europa transformam-na em porta-voz

    pungente para a tristeza e anseios de seus companheiros judeus (NELLY SACHS,

    2016). Alm, claro, de t-la forado a emigrar para a Sucia, onde foi acolhida e

    constituiu uma forte amizade com a afamada escritora Selma Lagerlf. Recebeu o

    Nobel de Literatura de 1966, juntamente com Shmuel Yosef Agnon.

    JACOB Nelly Sachs1 ISRAEL, fruto primeiro na luta auroral onde todo o parto est escrito com sangue no crepsculo. Oh a faca afiada do grito do galo cravada no corao da humanidade, Oh a ferida entre noite e dia que a nossa morada! Pr-lutador, na carne purpera dos astros no luto da ronda nocturna donde chora um canto de pssaro. Israel, que finalmente pariste pra a bem-aventurana graa gotejante de orvalho matutino sobre a tua cabea Mais bem-aventurado pra ns, vendidos pra o esquecimento, gemendo nos bancos de gelo da morte e ressurreio e pelo anjo pesado sobre ns torcidos pra Deus como tu!

    1 Da obra: SACHS, Nelly. Poemas de Nelly Sachs. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Portuglia Editora, 1967.

  • 6

    CAPTULO 1

    A QUE SERVE O NOME? ONOMSTICA E LITERATURA

    1. O nome prprio

    Quando Shakespeare afirmou que uma rosa com qualquer outro nome

    cheiraria como o doce (Romeu e Julieta II.ii.43), no estava expressando, certamente,

    uma ideia que tivesse qualquer fundamento no mundo bblico ou mesmo em

    qualquer outro lugar do Oriente Mdio Antigo (cf. BOHMBACH, 2000, p. 944).

    No mundo antigo, geralmente, um nome no uma mera colocao

    convencional de sons pela qual uma pessoa, lugar ou coisa possa ser identificado, mais

    apropriadamente, um nome expressa uma das propriedades distintivas, ou recorda

    o estado de nimo dos pais por ocasio do nascimento da criana, ou acontecimentos

    polticos importantes na poca do nascimento ou, como nome pessoal teofrico, faz

    uma afirmao sobre Deus (VAN DER WOUDE, 1985a, c. 1176).

    Por isso, conhecer o nome capacita para a comunicao, pois se sabendo o

    nome de algum ou de um deus, podia-se invoc-lo, chamar a sua ateno, faz-lo vir

    at o enunciador do seu nome, enfim, cit-lo. Nesse sentido, conhecer o nome de

    algum significa, at certo ponto, um poder sobre a pessoa conhecida. Isto aparece

    definido de modo magistral por Martin Buber:

    O nome verdadeiro de uma pessoa [...] a essncia da pessoa, destilada, por assim dizer, de sua realidade, desse modo, ela se encontra, por assim dizer, novamente, presente nesse nome. E, mais importante, ela a se encontra presente sob tal forma que qualquer um, conhecendo o nome verdadeiro e sabendo pronunci-lo da maneira prescrita, possa apoderar-se desta pessoa. A pessoa, por si mesma, inacessvel, ela ope uma resistncia. No nome, ela torna-se acessvel, o enunciador dispe dela (BUBER, 1957, p. 58-59).

    Antes de adentrar, propriamente, no estudo do texto da Bblia Hebraica (Gn

    32,23-33) objeto principal desta tese, ser conveniente aprofundar um pouco mais o

  • 7

    significado e funo que o nome prprio desempenha na obra literria tanto bblica

    como extrabblica.

    Essa anlise se faz ainda mais oportuna quando se leva em conta que a teoria

    mais em voga defende que o nome prprio seja um simples ndice, ou seja, uma espcie

    de etiqueta que designaria algo sem significar2. Em semitica o mesmo que admitir

    que o nome prprio no seria um signo. O nome prprio se refere a seu referente sem

    atribuir qualquer informao adicional, conotativa ou de sentido, sobre ele.

    As principais teorias da filosofia da linguagem, fundamentadas sobre a lgica,

    acerca do nome prprio gravitam ao redor da questo se nomes prprios so mera

    referncia ou se possuem alguma identidade com o seus referentes. A grosso modo

    pode-se agrupar essas teorias em: 3

    a) Teoria de John Stuart Mill (1806-1873): este filsofo britnico distingue entre

    sentido conotativo e denotativo, e argumenta que os nomes prprios no incluem

    nenhum outro contedo semntico a uma proposio que indica o referente do nome

    e so puramente denotativos. O processo atravs do qual algo se torna um nome

    prprio a gradual perda da conotao para a pura denotao. Como o caso do

    processo que transformou as proposies descritivas long island (ilha longa) no

    nome prprio Long Island, uma ilha da costa do estado de Nova York.

    b) Teoria baseada no sentido de nomes: Gottlob Frege, matemtico, lgico e filsofo

    alemo (1848-1925), argumenta que se deve distinguir entre o sentido (Sinn) e a

    referncia do nome. Ele tambm defende que nomes diferentes para a mesma entidade

    podem identificar o mesmo referente sem serem formalmente sinnimos. citado o

    2 Entre os principais defensores dessa posio, temos: 1) MILL, John Stuart. A System of Logic, Ratiocinative and Inductive: Being a Connected View of the Principles of Evidence and the Methods of Scientific Investigation. London: John W. Parker, 1843. 2 v. Disponvel em: . Acesso em: 30 jul. 2015 (especialmente no vol. 1, Book I: Of Names and Propositions). 2) BRNDAL, Viggo. Essais de linguistique gnrale. Copenhague: Ejnar Munksgaard, 1943. 3) PEIRCE, Charles Sanders. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Volumes 1-6 edited by Charles Hartshorne and Paul Weiss; volumes 7-8 edited by A. W. Burks. Cambridge (MA): Belknap Press of Harvard University Press, 1931-1935. Disponvel em: . Acesso em: 30 jul. 2015. 4) RUSSEL, Bertrand. Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description. Proceedings of the Aristotelian Society, London; Edinburgh: Williams and Norgate, n. 11, p. 10828, 1911. IDEM. The Philosophy of Logical Atomism. In: MARSH, R. (Ed.). Logic and Knowledge. New York: Capricorn, 1956, p. 177281. 3 Cf. CUMMING, 2013 e PROPER NAME (PHILOSOPHY), 2015. Para uma viso mais exaustiva e detalhada, consultar: LANGENDONCK, 2007, p. 20-38.

  • 8

    seguinte exemplo: embora a estrela da manh e a estrela da tarde sejam o mesmo objeto

    astronmico, a proposio a estrela da manh a estrela da noite no uma

    tautologia, mas fornece informaes reais para algum que no sabia disso. Assim,

    para Frege, os dois nomes para o objeto devem ter um sentido diferente.

    c) Teoria descritiva dos nomes prprios: essa teoria a viso de que o significado de

    um determinado uso de um nome prprio um conjunto de propriedades que pode

    ser expresso como uma descrio que escolhe um objeto que satisfaa a descrio.

    Quem adotou esse ponto de vista foi Bertrand Russell (matemtico, lgico e filsofo

    do Reino Unido, 1872-1970), o qual alega que o nome se refere a uma descrio, e essa

    descrio, como uma definio, escolhe o portador do nome. A descrio, ento,

    funciona como uma abreviao ou uma forma truncada da descrio. John Searle,

    filsofo da linguagem norte-americano, elaborou a teoria de Russell sugerindo que o

    nome prprio se refere a um conjunto de proposies que, em combinao escolhe um

    referencial nico. Isso foi feito para lidar com a objeo por alguns crticos da teoria de

    Russell de que uma teoria descritiva do significado faria o referente de um nome

    depender do conhecimento de que a pessoa, ao dizer o nome, tem sobre o referente.

    Em 1973, Tyler Burge, outro filsofo norte-americano, props uma teoria descritiva

    metalingustica de nomes prprios que sustenta que os nomes tm o significado que

    corresponde descrio das entidades individuais a quem o nome aplicado.

    d) Teoria causal dos nomes: a teoria histrico-causal teve origem com a obra Naming

    and Necessity (Boston: Basil Blackwell, 1980) de Saul Kripke. Ela edificada sobre a

    obra, dentre outros, de Keith Donnellan, que combina a viso referencial com a ideia

    que o referente do nome fixado por um ato batismal, aps o que o nome se torna um

    designador rgido do referente. Kripke no enfatiza tanto a causalidade, mas sim a

    relao histrica entre o evento de nomeao e a comunidade de falantes dentro da

    qual o nome circula, mas apesar disso essa teoria muitas vezes chamada de uma

    teoria causal da nomeao. A teoria de nomeao pragmtica de Charles Sanders

    Peirce (1839-1914) s vezes considerada uma precursora da teoria de nomeao

    histrico-causal. Ele descreveu os nomes prprios nos seguintes termos:

    Um nome prprio, quando se encontra com ele pela primeira vez, existencialmente conectado com alguma percepo ou outro conhecimento individual equivalente do indivduo que ele nomeia. Ele ento, e s ento,

  • 9

    um Index [ndice] genuno. A prxima vez que se encontra com ele, considera-se como um cone desse ndice. A familiaridade habitual com ele tendo sido adquirida, torna-se um smbolo cuja Interpretante representa-o como um cone de um ndice do indivduo chamado (PROPER NAME [PHILOSOPHY], 2015, p. 3/5).

    Aqui ele observa que o evento de batismo tem lugar para cada pessoa quando

    um nome prprio o primeiro relacionado com um referente (por exemplo, apontando

    e dizendo este Joo, estabelecendo uma relao indicial entre o nome e a pessoa)

    que doravante considerado ser um convencional (simblico em termos peirceanos)

    em relao ao referente.

    e) Teorias de referncia direta: rejeitando as bases das teorias descritiva e histrico-

    causal, as teorias da referncia direta sustentam que nomes juntamente com

    demonstrativos so uma classe de palavras que se referem diretamente ao seu

    referente. Como exemplo, pode-se citar Ludwig Wittgenstein que em seu Tractatus

    Logico-Philosophicus (1921) defende uma posio de referncia direta, argumentando

    que nomes se referem diretamente a um particular, e que este referente seu nico

    significado. A viso mais tardia de Wittgenstein foi comparada com aquela do prprio

    Kripke que reconhece nomes prprios como decorrentes de uma conveno social e

    princpios pragmticos de compreenso dos outros enunciados. A teoria da referncia

    direta similar quela de Mill enquanto prope que o nico significado de um nome

    prprio o seu referente. O filsofo e lgico norte-americano David Kaplan (1979, p.

    81-98) faz uma distino entre termos fregeanos e no-fregeanos, isto , referentes

    teoria de Gottlob Frege. Os primeiros que possuem sentido e referncia e os ltimos,

    no-fregeanos, que incluem nomes prprios e tm somente referncia.

    f) Filosofia continental:4 fora da tradio da filosofia analtica, poucos filsofos

    chamados continentais abordaram o nome prprio como uma questo filosfica. Em

    4 Filosofia continental uma expresso criada originalmente pelos filsofos analticos anglfonos, principalmente estadunidenses e britnicos, para descrever vrias tradies filosficas procedentes da Europa continental, principalmente da Alemanha e da Frana. A expresso compreende, de maneira bastante vaga: a fenomenologia de Edmund Husserl ou Maurice Merleau-Ponty; a ontologia fundamental de Martin Heidegger; a psicanlise de Sigmund Freud ou Jacques Lacan; o existencialismo de Jean-Paul Sartre; diversas correntes do marxismo; o estruturalismo em cincias humanas inspirado por Claude Lvi-Strauss ou Michel Foucault; a semiologia de Algirdas Julien Greimas ou Roland Barthes; a hermenutica de Hans-Georg Gadamer ou Paul Ricoeur; a desconstruo de Jacques Derrida; a teoria crtica da Escola de Frankfurt. O termo utilizado, sobretudo, para descrever uma atividade filosfica por contraste com a filosofia analtica. mais popular nas cincias sociais, esttica, estudos culturais e filosofia do cinema do que nas ditas "cincias duras" (FILOSOFIA CONTINENTAL, 2014).

  • 10

    De la grammatologie (1967), Jacques Derrida refuta, especificamente, a ideia que nomes

    prprios situam-se fora da construo social da linguagem como uma relao binria

    entre referente e signo. Ao contrrio, ele argumenta que os nomes prprios, como

    todas as palavras, esto envolvidos em um contexto de diferenas sociais, espaciais e

    temporais que os tornam significativos. Ele tambm observa que h elementos

    subjetivos de significado em nomes prprios, uma vez que eles conectam o portador

    de um nome com o signo da sua prpria identidade.

    Vamos, a partir de agora, tornar mais claro o aspecto do nome prprio que ir

    nos interessar em nossa pesquisa.

    1.1. O que o nome prprio

    praticamente consensual que a primeira funo do nome prprio de

    identificao. Seria, como se diz em ingls, um identity marker, o representante mais

    importante de uma pessoa. Desse modo, uma pessoa e seu nome so uma s realidade

    (cf. NEUMANN, 2011, p. 324).

    O termo nome prprio chegou-nos atravs dos gregos. Eles empregavam a

    expresso o;noma ku,rion, que foi traduzida em latim por nomen proprium, e significava

    nome autntico, ou um nome mais autntico que outros. Diferenciava-se o;noma

    ku,rion de proshgori,a ou denominao, que era um termo utilizado para descrever

    um nome genrico ou comum (cf. GARDINER, 2010, p. 36).

    O vocbulo grego ku,rion era assimilado a nomes empregados de maneira

    individual, ou seja, que qualificam seres individuais.

    importante constatar que o termo nome mais antigo que palavra.

    Segundo o fillogo GARDINER, inconcebvel que em alguma sociedade,

    mesmo primitiva, tenha faltado a palavra nome. O termo pertence aos estgios pr-

    gramaticais do pensamento (2010, p. 40).

    Isso porque, na antiguidade os povos no se interessavam por palavras em si

    mesmas, elas eram usadas apenas como instrumento para se falar das coisas do mundo

    ao seu redor. Quando se menciona um nome, supe-se que exista alguma coisa

    qual corresponda o som, aquilo que era a fons e origo do nome, sua razo de ser

    (GARDINER, 2010, p. 41).

  • 11

    Ampliando e melhorando a interpretao de Saussure, GARDINER (2010, p.

    91) fornecer a seguinte definio de nome prprio:

    Um nome prprio uma palavra ou um grupo de palavras reconhecidas como indicando ou tendendo a indicar o objeto ou os objetos ao(s) qual(is) ele faz referncia em virtude, unicamente, de sua sonoridade distintiva, sem levar em considerao qualquer sentido que possa possuir esse som, seja aquele desde a origem ou adquirido por este atravs de associaes com o dito ou

    ditos objetos.

    Pode-se questionar se o nome prprio comporta, em si mesmo, algum tipo de

    contedo racional, ou seja, se ele diz alguma coisa da pessoa por ele nomeada. Em

    nossa atual sociedade ocidental, o nome prprio , na maior parte do tempo, uma

    palavra escolhida arbitrariamente para designar algum. uma espcie de conveno

    social prtica (RENAUD, 2007, p. 13). Isso, porm, no corresponde absolutamente

    realidade do mundo antigo, especialmente no Oriente como se ver adiante.

    Em geral, a lingustica contempornea percebe no nome prprio duas

    caracterizaes do signo. Ele , ao mesmo tempo: signo lingustico, possuidor de um

    significante e de um significado, mesmo que mnimo; e signo como substituto, pois ele

    reenvia a um indivduo, mas pode, tambm, valer como smbolo, ou seja, como ato de

    linguagem (LECOLLE; PAVEAU; REBOUL-TOUR, 2009, p. 11).

    Na lingustica, nome uma categoria gramatical que agrupa as palavras que

    designam, seja uma espcie ou representante de uma espcie (nomes comuns), seja um

    indivduo particular (nomes prprios) (RUSSO, 2002, p. 15). No entanto, o nome

    prprio no apenas diferencia ou determina o sujeito, pois ele aponta diretamente o

    objeto no mundo exterior extralingustico. Por isso ele reconhecido na lingustica

    moderna como sendo o portador e exemplo maior da funo de referenciao da

    linguagem (MARTINS, 1991, p. 55). Ele possui a capacidade de remeter diretamente

    a um objeto em especial, um determinado corpo. Como afirma MARTINS: Dado o

    nome, eis o objeto (IDEM). Mais do que isso, porm, o nome significa o ser ao qual se

    refere, mais do que, apenas, enviar a ele.

    Um dos primeiros a sistematizar a questo se os nomes so, meramente,

    formados em funo de uma conveno ou se eles so constitudos em funo de uma

    natureza que, por assim dizer, orientaria o trabalho daquele que nomeia foi o filsofo

  • 12

    grego Plato (428/427 ou 424/423 348/347 AEC), especialmente em sua obra Crtilo5.

    interessante observar que, no perodo em que se legitimam as grandes narraes

    mticas, a palavra manifesta os prprios elementos; ela se identifica com o objeto

    (PINHEIRO, 2003, p. 37-38). O nome um instrumento, segundo Plato, para

    ensinar e distinguir a essncia [das coisas], como a lanadeira para o tecido

    (PLATONE, 2000, p. 139, 388 B-C)6. Portanto, o nome resultado de uma tcnica, uma

    arte, uma produo.

    Em Plato, o nome ser tratado como o signo lingustico de carter convencional capaz de representar uma determinada ousa [essncia]. Essa essncia no pode ser compreendida apenas como um fenmeno emprico e, obviamente, no pode ser relativa a cada homem em particular. [...] A verdadeira funo dos nomes em Plato seria a de nos remeter sua prpria essncia, sua prpria natureza. [...] No dilogo, ela surge como modelo abstrato que o nomoteta [o artfice dos nomes] apreende antes de iniciar a sua tarefa de arteso de nomes (PINHEIRO, 2003, p. 45-46).

    Alm de utilizar a palavra instrumento para definir a funo do nome,

    Plato lana mo da hiptese de nome como imagem (gr.: eikn). O nome uma

    imagem (ideia) que corresponde a um objeto. O nome deve estar afinado ao seu

    modelo (ideia, em grego, edos). No entanto, o papel de quem atribui o nome se realiza

    pelo dilogo. Plato o denomina de legislador (gr.: nomoteta), atividade da qual nem

    todos os homens so capazes7. Isso porque a natureza da linguagem ambgua,

    cabendo ao filsofo, no papel do dialtico, ajuizar sobre o melhor significado a atribuir

    a um nome dentro de um determinado contexto (MONTENEGRO, 2007, p. 376).

    Nesse sentido, o nomeador possui um papel ativo, isto , adequar o nome s coisas.

    5 uma obra platnica de datao incerta, alguns estudiosos atribuem sua redao tanto ao perodo anterior composio de Repblica como posterior. Repblica teve sua composio iniciada nos anos oitenta, e o ponto culminante da mesma teria sido nos anos setenta do IV sculo AEC (cf. RADICE, 2000, p. 1081). O dilogo em Crtilo versa sobre a justeza dos nomes a partir do exame realizado por Scrates das teses divergentes de Hermgenes e Crtilo. Segundo Hermgenes, os nomes so resultantes de pura conveno, podendo esta ser tanto individual quanto coletiva; para Crtilo, discpulo de Herclito e mestre de Plato anteriormente a Scrates, os nomes espelham a natureza das coisas e esta no seno o constante fluxo. Scrates chamado para tentar uma conciliao... (MONTENEGRO, 2007, p. 369). 6 Texto original grego: ;Onoma a;ra didaskaliko,n ti, evstin o;rganon kai. diakritiko.n th /j ouvsi,aj w[sper kerki.j

    ufa,smatoj. 7 Portanto, Hermgenes, no prprio de todo homem estabelecer o nome, mas a um arteso dos nomes. E este , como parece, o legislador, que, entre os homens, o mais raro dos artesos (PLATONE, 2000, p. 139, 388E-389A). Original grego: Ouvk a;ra panto,j w= Ermo,genej o;noma qe,sqai a vlla, tinoj ovnomatourgou /\ ou-toj devsti,n w`j e;oiken o ` nomoqe,thj o]j dh, tw /n dhmiourgw /n spaniw,tatoj e vn a vnqrw,poij gi,gnetai)

  • 13

    Esse papel supervisionado pelo dialtico8, com sua atividade de fazer perguntas e

    dar respostas. Pode-se encontrar, aqui, uma contraposio com a BH, onde Deus

    aparece, logo no incio, chamando (verbo heb.: wayyiqr), ou seja, dando nomes s

    coisas que ele vai criando (cf. Gn 1,5.8.10). A palavra de Deus formadora, ou seja, ela

    cria aquilo que nomeado (wayy mer lhm Gn 1,3.6.9.11.14.20.24.26). A palavra,

    nesse sentido, possui a essncia da coisa que formada. Algo semelhante se passa com

    Ado (heb.: dm) em Gn 2,19, quando Deus lhe traz todos os seres vivos da terra para

    serem nominados por ele. No entanto, h uma diferena fundamental, pois o homem

    no criador, ou seja, ele nomeia os seres criados, mas no os faz vir vida.9

    Interessante observar que Ado no vem nomeado, explicitamente, por Deus nem no

    primeiro nem no segundo relato da Criao (cf. Gn 1,26-27; 2,7). Contudo, quando

    Deus manifesta sua vontade de fazer (heb.: na`S Gn 1,26) o homem, no fundo,

    ele j o nomeou, chamando-o de Ado, que significa homem (heb.: dm). Ado,

    em seu ato de nominar, adequa os nomes s coisas que esto diante dele, ele parte da

    natureza delas, mas no as forma (cria). Mesmo assim, chama ateno a importncia e

    diferena do ser humano em relao s demais obras da Criao. Enquanto estas

    recebem nome do Criador to logo so formadas, o ser humano participa da Criao

    como colaborador de Deus ao, tambm, poder nomear os demais seres vivos.

    1.2. A que serve o nome prprio

    Ao relacionarmos os nomes prprios aos nomes comuns, percebe-se que pode

    haver usos anlogos entre ambas categorias, porm h outros que so especficos aos

    nomes prprios. Vejamos:

    1. Estabelecimento de correspondncia entre um nome prprio e um indivduo. Este uso toma duas formas: a) eu dou ao meu interlocutor o nome de um indivduo que ele tem sob seus olhos ou que eu descrevo por uma descrio definida: esta Paris, eu vos apresento Alberto Dupont, o pai

    8 E a quem sabe interrogar e responder chama-o de outro modo que dialtico? [...] obra do legislador, ao que parece, fazer um nome sob a direo do dialtico, se os nomes devem ser adequados (PLATONE, 2000, p. 140, 390 C-D). No original grego: To.n de. evrwta /n kai. a vpokri,nesqai e vpista,menon a;llo

    ti su. kalei /j h; dialektiko,n* [...] Nomoqe,tou de, ge wj e;oiken o;noma e vpista,thn e;contoj dialektiko.n a;ndra ei v me,llei kalw /j ovno,,mata qh,sesqai) 9 O texto hebraico explcito em afirmar que: wayycer yhwh(dny) lhm min-h|dm Kol-Hayyat

    haSSd wt Kol-`p hamayim (Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do

    campo, e toda a ave dos cus..., Gn 2,19).

  • 14

    de Jos chama-se Jlio... b) eu indico ao meu interlocutor a coincidncia entre um indivduo e um nome j conhecido dele, Eis Paris, Tiago... Esses dois usos so bastante paralelos para os nomes prprios e os nomes comuns, a nica diferena reside na referncia nica do nome prprio. 2. Uso referencial nico: Tiago veio. o uso normal do nome prprio. 3. O Batismo: Eu te batizo Pedro.... H um uso bem particular do nome prprio: quando acontece de se dar um nome novo a uma categoria de objeto, o batismo de indivduos, ato social por excelncia, o nico ato suscetvel de dar nascimento a um antropnimo. Trata-se de um contrato com base em um performativo: eu te batizo..., eu te chamo..., eu te nomeio.... E parece haver em todas as lnguas expresses do gnero... a cerimnia do batismo (que ns tomamos no sentido geral de doao do nome) que explica o carter arbitrrio com o qual nos aparecem os nomes prprios: eles so arbitrrios enquanto colocados. Ademais, a teoria dita teoria causal dos nomes prprios repousa sobre a existncia do batismo: se os nomes prprios devem ser transmitidos de pessoa a pessoa, fixando cada vez nela a referncia, precisamente porque, se esta cadeia se interrompe, no se pode mais saber a que se refere o nome prprio. 4. Uso vocativo: Pedro, venha aqui!. Trata-se de um ato de linguagem que G. G. Granger chama de interpelao... para G. G. Granger, de fato, na interpelao que se manifesta a especificidade semiolgica do nome prprio (MOLINO, 1982, p. 17).

    Essa questo est unida da identidade. H de se superar que a identidade do

    nome prprio se reduza relao entre dois nomes a = b, como propunha Gottlob

    Frege em sua clssica distino entre Sinn e Bedeutung, ou seja, sentido e denotao (cf.

    FREGE, 1971, p. 102-126). No entanto, a virtude simblica do nome prprio no pode

    se esgotar nesta referncia a algo.

    O nome possui a funo de designador individual, ou seja, especificar algum,

    destacar algum em seu contexto ou classific-lo, segundo o modo de compreenso de

    Lvi-Strauss. Esse etnlogo identifica dois tipos extremos de nomes prprios: (a) o

    nome como uma marca de identificao que confirma, pela aplicao de uma regra, a

    pertena do indivduo nomeado a uma classe pr-ordenada; (b) o nome como uma livre

    criao do indivduo que nomeia, e que exprime, por meio daquele que ele nomeia, um

    estado transitrio de sua prpria subjetividade (LVI-STRAUSS, 1962, p. 240). No

    entanto, o pesquisador chega a uma concluso um tanto radical, quando afirma que

    jamais se nomeia: classifica-se o outro, se o nome que se lhe d em funo de

    caractersticas que ele tem; ou se classifica a si mesmo se, acreditando estar dispensado

    de seguir uma regra, nomeia-se o outro livremente: isto , em funo das

    caractersticas que se tem (IDEM). Muitas vezes, reconhece Lvi-Strauss, ambos os

    fatores interagem-se.

  • 15

    Nesse aspecto, o nome prprio como um classificador, como exprime Lvi-

    Strauss, encontra-se um aspecto questionvel, pois:

    A nomeao obedece a princpios de classificao, mas esses princpios no se correspondem e no constituem um sistema, eles se unem ao infinito. E aqui que se manifesta uma diferena fundamental entre classificao e nomeao: o indivduo no uma espcie. [...] Uma espcie definida por uma classificao hierrquica nica, um indivduo portador de uma infinidade virtual de classificaes independentes; no primeiro caso, as classificaes servem para classificar; no segundo, o indivduo dado como um ponto de partida o suporte de classificaes mltiplas e independentes que servem apenas para enriquecer sua definio social (MOLINO, 1982, p. 18).

    No entanto, diferentemente de Lvi-Strauss, podemos ver tanto no tipo de

    nomeao como classificao de algum como naquele de nomeao como

    autoclassificao, no o contedo classificatrio, mas a forma em si mesma. O que

    ocorre em ambos os casos a manifestao de um ato de linguagem da relao locutor

    (quem nomeia) e interlocutor (quem nomeado), mesmo que este ltimo o seja em

    potencial, uma vez que ainda no tm conscincia. O fato do interlocutor (o nomeador)

    exprimir-se a si mesmo nesse ato, algo secundrio, o essencial que sua prpria

    presena no ato de nomeao faa dele uma interpelao. [...] o nome prprio tal

    porque ele pode funcionar em uma interpelao (GRANGER, 1982, p. 28-29).

    1.3. Noes semnticas bsicas sobre o nome prprio10

    No caso do nome de pessoas, portanto, o nome prprio possui uma funo de

    interpelar, o mesmo nem sempre se d no caso dos demais nomes prprios. E no se

    interpela algo vazio de contedo. Portanto, deve haver uma pressuposio de sentido

    no nome prprio, uma vez que ele conota alm de denotar o indivduo ao qual se refere.

    Por esse motivo, ou seja, em razo de sua natureza pragmtica, o nome

    prprio, especialmente de pessoas, no pode ser substitudo por uma descrio

    definida do ser nomeado, como acreditava, por exemplo, Russell. Ele possui o que

    certos linguistas chamam de halo de conotaes (GRANGER, 1982, p. 34). O prprio

    Granger explica melhor tal conceito:

    10 Para uma abordagem mais exaustiva e detalhada dessa questo, consultar: LANGENDONCK, 2007, p. 84-118.

  • 16

    Entendemos aqui, por essa palavra, dois efeitos, eventualmente conjuntos. De uma parte, a conotao metasimblica, que atribui a um signo propriedades que dependem seja do subsistema da lngua ao qual ele pertence, seja do uso particular que se faz dele em certo discurso. De outra parte, a conotao parassimblica que nasce do valor expressivo conferido aos aspectos no estritamente pertinentes do signo. certo que o jogo dessas conotaes, quase que liberadas de todo entrave, confere ao nome prprio um poder potico excepcional. [...] desta maneira que o nome prprio, embora se afaste pela sua funo essencialmente pragmtica de toda referncia semntica, pode ter um sentido (GRANGER, 1982, p. 34-35).

    Para Granger, o nome prprio , s vezes, ao mesmo tempo, ndice e smbolo.11

    Por isso, o nome prprio pode veicular um sentido conotativo de forma icnica,12

    completando a trade peirceana do signo em relao ao objeto que ele substitui. Pode-

    se tomar como exemplo o apelido do pintor italiano Giorgio Barbarelli (Castelfranco,

    Itlia). Ele era denominado de Giorgione, um aumentativo que refletia a sua

    corpulncia. Caso substitussemos esse apelativo pelo seu sobrenome, Barbarelli, que

    designa a mesma pessoa, a proposio continuaria a ser verdadeira, pois estaramos

    falando da mesma pessoa.

    A palavra Giorgione, sem se reduzir absolutamente a uma descrio, transpe na funo de nome prprio um nome cujo interpretante13 um signo icnico isto , que se parece de algum modo ao seu objeto destacado pelo aumentativo italiano. Como um nome prprio, a palavra deve neutralizar essa carga icnica sobreposta, como ele neutralizaria de mais a mais todo sentido que ele possa conotar (GRANGER, 1982, p. 36).

    11 Smbolo uma das classificaes de Charles Sanders Peirce (as outras duas so: cone e ndice) que organiza os signos conforme a relao entre eles e o objeto que eles substituem. O smbolo resulta da conveno. A relao entre o signo e o objeto que ele representa arbitrria, legitimada por regras. Ex.: a pomba branca smbolo de paz, um retngulo verde com um losango amarelo, crculo azul e estrelas um dos smbolos do Brasil, mas em nenhum desses casos h relao de semelhana ou de associao singular; trata-se de regras, leis, convenes. ndice resulta de uma singularizao. Um signo indicial o resultado de uma relao por associao ou referncia. A categoria indicial se evidencia pelo vestgio, pelos indcios. Ex.: rastros de pneus, pegadas ou cheiro de fumaa no se parecem com os objetos que eles substituem (pneus, animais ou a fumaa), mas ns associamos uns aos outros, respectivamente; so exemplos de signos indiciais (AS TRICOTOMIAS PEIRCEANAS CLASSIFICAO DOS SIGNOS, 2012, p. 2). 12 O cone o resultado da relao de semelhana ou analogia entre o signo e o objeto que ele substitui. Ex.: um retrato ou uma caricatura so semelhantes aos objetos que eles substituem; eles so signos icnicos (IDEM). 13 Interpretante na prpria definio do criador desse conceito, Charles Sanders Peirce, o efeito do signo, isto , a ideia que o signo provoca, cria na mente do intrprete. O signo aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para algum. Dirige-se a algum, isto , cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo (PEIRCE, 2012, p. 46).

  • 17

    O nome prprio em si mesmo no se refere que a indivduos em geral. No se

    pode explicar o contedo semntico de um nome como Joo, por exemplo. Sabemos

    que Joo14 o nome de uma pessoa do sexo masculino. Nos primrdios da

    lingustica, o russo Roman Osipovich Jakobson (1896-1982), dizia que o nome prprio

    no podia ser definido que pela devoluo/transmisso do cdigo ao cdigo: Joo

    significa uma pessoa nomeada Joo. Com isso, esse estudioso denuncia a circularidade

    de tal definio (cf. JAKOBSON, 1963, p. 177). Mas h linguistas que discordam dessa

    afirmao dizendo ser ela enganosa. Isso porque, o cdigo, que se esforam de

    descrever dicionrios e gramticas, no remete a si mesmo para caracterizar um nome

    de pessoa quando diz a palavra baleia que designa um animal (GRANGER, 1982,

    p. 27). A funo semntica da palavra Joo no depende circularmente do cdigo,

    mas da enunciao. Fixadas as circunstncias da enunciao, a descrio torna-se

    possvel.

    A significao do nome prprio, como se constata, complexa, pois se podem

    encontrar diversas camadas de significao que correspondem ao seu funcionamento

    distinto: a) ora como uma marca pura, isto , uma etiqueta que visa um objeto singular;

    b) ora como um designador rgido que mantm a invarincia da referncia ao

    indivduo mesmo em meio s modificaes espaciais, temporais e pessoais; c) ora

    como um classificador, que indica a classe a qual pertence o objeto individual

    designado pelo nome, como o caso de Joo, um prenome de ser humano; d) ora

    como uma descrio definida que serve de representao identificadora, como o caso

    de explicar o sentido do nome prprio a quem o ignora, por exemplo, Joo foi um

    dos discpulos de Jesus Cristo (cf. MOLINO, 1982, p. 16).

    Assim sendo, o nome prprio induz uma sria indefinida de interpretaes

    mais ricas e mais carregadas de afetividade do que so os interpretantes dos nomes

    comuns, como o indica a funo literria e potica dos nomes prprios (IDEM).

    14 Etimologicamente falando, sabemos que este nome adentrou em nossa lngua portuguesa atravs do latim (Ioannes), que, por sua vez, provm do grego (Ionnes). Entretanto, a sua etimologia primitiva encontra-se na lngua hebraica: !nxwy (Ynn), forma reduzida de !nxwhy (Yhnn), que pode significar Deus [YHWH] propcio, Deus mostrou favor, Deus foi clemente ou Graa Divina.

  • 18

    O nome prprio de pessoas serve, portanto, para fins que ultrapassam o

    meramente designativo, referencial e denotativo. Ele situa-se no campo conotativo mais

    amplo.

    2. Diferentes abordagens do nome prprio

    importante perceber as diferentes nuanas que o nome prprio pode

    adquirir de acordo com o tipo de abordagem que se faz dele. Por isso, um rpido e

    despretensioso percurso por algumas das cincias que se ocupam deste argumento

    pode fornecer um quadro mais amplo do seu significado. No item anterior j vimos a

    abordagem desse tema atravs da Filosofia da Linguagem. Ver-se- agora a:

    2.1. Semitica

    Podemos, a grosso modo, entender a semitica como a teoria geral dos modos

    de produo, funcionamento e recepo dos diferentes sistemas de signos que

    permitem a comunicao entre indivduos e/ou coletividades de indivduos

    (GRANDE ENCICLOPDIA LAROUSSE CULTURAL, 1998, p. 5.317). Assim sendo,

    ela aborda o nome prprio como um signo simblico que representa um sujeito e,

    enquanto smbolo, o prprio sujeito, como se a palavra fosse o ser encarnado

    (IDEM).

    Enquanto significante, o nome prprio organizador em seu conjunto dos

    efeitos do significado. Mais que um ndice, ele um texto que se oferece ao

    deciframento, na concepo de Lacan (RUSSO, 2002, p. 20). Desse modo, o nome

    prprio resumido numa palavra-texto como um conjunto de significaes do outro

    (RUSSO, 2002, p. 22), o qual impele o ser a estabelecer relaes ao identificar-se.

    Um dos primeiros pensadores, seno o primeiro, a designar as palavras como

    sinais/signos foi Agostinho (354-430 EC). O estudo do sinal (semitica), e em

    especial do sinal lingustico ocupa um lugar privilegiado na filosofia de Agostinho.

    Para ele, o tema do ensino fundamental e sinal e linguagem so partes constitutivas

    desse processo de aprendizagem. Agostinho observa a importncia dos sinais na vida

    humana. Afinal, todos os seres se dividem em sinais e significveis. Em De magistro ele

    afirma que todos os sinais so coisas, ainda que nem todas as coisas sejam sinais. No

  • 19

    entendimento de Agostinho, os sinais so coisas de certo tipo especial. O que eles tm

    de especial que so coisas que se usam para significar; e o significar (ou representar)

    tem como principal incumbncia ensinar aos demais (BEUCHOT, 1986, p. 14)15.

    Em sua obra De magistro (concluda em 389 EC), ele afirma a Adeodato, seu

    interlocutor imaginrio no dilogo, mas seu prprio filho na vida real:

    Entendeste certo: creio tambm teres notado, apesar de haver quem no concorde, que, mesmo sem emitir som algum, ns falamos enquanto intimamente pensamos as prprias palavras em nossa mente; assim, com as palavras nada mais fazemos do que chamar a ateno; entretanto, a memria, a que as palavras aderem, em as agitando, faz com que venham mente as prprias coisas, das quais as palavras so sinais. (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 324) 16

    Algo que nos interessa mais de perto nesta pesquisa a distino operada por

    Agostinho entre nome (nomen) e palavra (verbum). H certo distanciamento entre o nome

    e a coisa significada por meio de uma palavra da qual o nome simplesmente, um

    sinal. Uma palavra sinal de uma essncia ou de uma coisa, mas nunca coincide com

    o prprio sinal17. Aqui encontramos algo que se ope concepo bblico-judaica,

    como se viu no item anterior (Lingustica). Citemos Agostinho para tornar essa tese

    mais clara:

    Acho que a diferena seja esta: o que significado com o nome significado tambm com a palavra; como, pois, nome palavra, assim tambm rio palavra; mas nem tudo o que significado com a palavra significado tambm com o nome. Tambm aquele "si" (se) com que comea o verso por ti

    15 Como afirma Agostinho em De magistro: H todavia, creio, certa maneira de ensinar pela recordao, maneira sem dvida valiosa, como se demonstrar nesta nossa conversao. Mas, se tu pensas que no aprendemos quando recordamos ou que no ensina aquele que recorda, eu no me oponho; e desde j declaro que o fim da palavra duplo: ou para ensinar ou para suscitar recordaes nos outros ou em ns mesmos... (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 323). Texto original latino: At ego puto esse quoddam genus docendi per commemorationem, magnum sane, quod in nostra hac sermocinatione res ipsa indicabit. Sed si tu non arbitraris nos discere cum recordamur, nec docere illum qui commemorat, non resisto tibi: et duas iam loquendi causas constituo, aut ut doceamus, aut ut commemoremus vel alios vel nosmetipsos... (AUGUSTINUS, 2006, c. 1195). 16 Texto no original latino: Recte intellegis: simul enim te credo animadvertere, etiamsi quisquam contendat, quamvis nullum edamus sonum, tamen quia ipsa verba cogitamus, nos intus apud animum loqui, sic quoque locutione nihil aliud agere quam commonere, cum memoria cui verba inhaerent, ea revolvendo facit venire in mentem res ipsas quarum signa sunt verba. (AUGUSTINUS, 2006, c. 1195-1196). 17 No te parece que todos os sinais significam uma coisa distinta da que so, como quando pronunciamos este nome trisslabo animal de modo algum significaremos aquilo que ele mesmo ? (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 331). Original latino: Num omnia signa tibi videntur aliud significare quam sunt, sicut hoc trisyllabum, cum dicimus, Animal, nullo modo idem significat quod est ipsum? (AUGUSTINUS, 2006, c. 1200).

  • 20

    proposto e aquele "ex" (de) do qual tratamos to longamente, guiados pela razo, at chegarmos presente questo, so palavras, mas no nomes, e muitos outros exemplos semelhantes podemos encontrar. Pois, como todos os nomes so palavras, mas nem todas as palavras so nomes, julgo estar clara a diferena entre palavra e nome, isto , entre o sinal daquele sinal que no significa nenhum outro sinal e o sinal daquele sinal que pode significar outros. (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 331). 18

    Portanto, para Agostinho, a palavra nome (nomen) significa nomes, tais

    como: Roma, Rmulo, virtude, rio etc.; portanto, o nome significa nomes, ou se

    significa a si mesmo, autopredicativo ou autorreferencial [...]. Alm disso, todo nome

    palavra, e toda palavra signo; portanto, h signos que se significam a si mesmos

    (BEUCHOT, 1986, p. 19). Esse conceito fica mais claro nas prprias palavras de

    Agostinho:

    E no assim tambm para o nome [nomen]? Este, pois, significa os nomes de todos os gneros, e "nome" mesmo um nome de gnero neutro. Ou, se te perguntasse que parte da orao nome, no poderias responder-me acertadamente dizendo "nome"? [...] Portanto, h sinais que, entre as outras coisas que significam, significam tambm a si mesmos (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 332).19

    Na prtica, Agostinho acabar pendendo, durante o dilogo De magistro, para

    uma compreenso convencionalista da linguagem. Ele admitir que o significado das

    coisas no se encontra no nome que lhe damos, pois ele um palavra, portanto, signo

    de alguma coisa. Mas para conhecer-se algo preciso haver a prvia experincia

    sensitiva ou mental/intuitiva dessa mesma coisa.20 Finalizando, para tornar ainda

    mais claro o pensamento agostiniano, podemos mencionar essa sua outra explanao:

    18 Texto original latino: Hoc distare intellego, quod ea quae significantur nomine, etiam verbo significantur; ut enim nomen est verbum, ita et flumen verbum est: quae autem verbo significantur, non omnia significantur et nomine. Nam et illud, si, quod in capite habet abs te propositus versus, et hoc, ex, de quo iam diu agentes in haec duce ratione pervenimus, verba sunt, nec tamen nomina; et talia multa inveniuntur. Quamobrem cum omnia nomina verba sint, non autem omnia verba nomina sint, planum esse arbitror quid inter verbum distet et nomen, id est inter signum signi eius quod nulla alia signa significat, et signum signi eius quod rursus alia significat. (AUGUSTINUS, 2006, c. 1200). 19 Original latino: Quid? nomen nonne similiter habet? Nam et omnium generum nomina significat, et ipsum nomen generis neutri nomen est. An si ex te quaererem, quae pars orationis nomen, posses mihi recte respondere nisi nomen? [...] Sunt ergo signa, quae inter alia, quae significant, et se ipsa significent. (AUGUSTINUS, 2006, c. 1201). 20 Veja-se o que Agostinho diz: Quando as duas slabas com que dizemos caput (cabea) repercutiram pela primeira vez no meu ouvido, sabia to pouco o que significavam como quando ouvi e li pela primeira vez saraballae. Porm, ouvindo muitas vezes dizer caput (cabea) e notando e observando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela denotava aquela coisa que, por t-la visto, a mim j era conhecidssima. Mas antes de achar isto, aquela palavra era para mim apenas um som, e

  • 21

    Com as palavras no aprendemos seno palavras; antes, o som e o rudo das palavras, porque, se o que no sinal no pode ser palavra, no sei tambm como possa ser palavra aquilo que ouvi pronunciado como palavra enquanto no lhe conhecer o significado. S depois de conhecer as coisas se consegue, portanto, o conhecimento completo das palavras; ao contrrio, ouvindo somente as palavras, no aprendemos nem sequer estas. Com efeito, no tivemos conhecimento das palavras que aprendemos nem podemos declarar ter aprendido as que no conhecemos, seno depois que lhes percebemos o significado, o que se verifica no mediante a audio das vozes proferidas, mas pelo conhecimento das coisas significadas. Ao serem proferidas palavras, perfeitamente razovel que se diga que ns sabemos ou no sabemos o que significam; se o sabemos, no foram elas que no-lo ensinaram, apenas o recordaram; se no o sabemos, nem sequer o recordam, mas talvez nos incitem a procur-lo. (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 350)21

    Assim, as palavras e, por conseguinte, os nomes no tm o poder de nos ligar

    s essncias ou s coisas mesmas, elas so somente lembradas aps (a posteriori) o nosso

    contato com as coisas, que as palavras e nomes significam.22

    Na semitica moderna, o nome prprio assumido, por alguns, como um

    signo, no sentido semitico do termo, ou seja, alguma coisa que reconhecida por

    algum como indicao de algo (VOLLI, 2012, p. 31). Nesse sentido, exemplos de

    signos poderiam ser a fumaa para o fogo, a bandeira branca para a rendio e o

    semforo que obriga a parar ou avanar. O signo um nvel extremamente simples,

    quase abstrato do sentido (VOLLI, 2012, p. 32). Por isso, o signo uma relao que liga

    um significante a um significado (IDEM):

    aprendi que ela era um sinal quando encontrei aquilo de que era sinal, o que aprendi no pelo significado, mas pela viso direta do objeto. Portanto, mais atravs do conhecimento da coisa se aprende o sinal do que se aprende a coisa depois de ter o sinal. (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 349). Texto original latino: Etenim cum primum istae duae syllabae, cum dicimus caput, aures meas impulerunt, tam nescivi, quid significarent, quam cum primo audirem legeremue sarabaras. Sed cum saepe diceretur caput, notans atque animadvertens, quando diceretur, repperi vocabulum esse rei, quae mihi iam erat videndo notissima. Quod priusquam repperissem, tantum mihi sonus erat hoc verbum; signum vero esse didici, quando, cuius rei signum esset, inveni, quam quidem, ut dixi, non significatu, sed aspectu didiceram. Ita magis signum re cognita quam signo dato ipsa res discitur. (AUGUSTINUS, 2006, c. 1214). 21 Texto original latino: Verbis igitur nisi verba non discimus, immo sonitum strepitumque verborum; nam si ea, quae signa non sunt, verba esse non possunt, quamvis iam auditum verbum, nescio tamen verbum esse, donec, quid significet, sciam. Rebus ergo cognitis verborum quoque cognitio perficitur; verbis vero auditis nec verba discuntur; non enim ea verba, quae novimus, discimus aut, quae non novimus, didicisse nos possumus confiteri, nisi eorum significatione percepta, quae non auditione vocum emissarum, sed rerum significatarum cognitione contingit. Verissima quippe ratio est et verissime dicitur, cum verba proferuntur, aut scire nos, quid significent, aut nescire; si scimus, commemorari potius quam discere; si autem nescimus, nec commemorari quidem, sed fortasse ad quaerendum admoneri. (AUGUSTINUS, 2006, c. 1215). 22 Agostinho define significar como: Pois, quando falamos, fazemos sinais, donde provm a palavra significar (fazer sinais signa facere). (SANTO AGOSTINHO, 1973, p. 334). Texto original latino: Cum enim loquimur, signa facimus, de quo dictum est significare. (AUGUSTINUS, 2006, c. 1198).

  • 22

    SIGNIFICANTE23

    SIGNO = ________________

    SIGNIFICADO24

    importante delimitar o objeto de nosso estudo, pois o nome prprio possui

    uma larga abrangncia. As diversas categorias de nomes prprios podem ser reunidas

    entorno de trs polos25:

    a) dimenses da pessoa ego (so os antropnimos, nomes de animais e

    apelativos ou ttulos), um prolongamento desta dimenso, seria o polo da

    produo humana, seja ela simblica ou material, como o caso de nomes de

    instituies, nomes de produtos da atividade humana, nomes de smbolos

    matemticos e cientficos;

    b) dimenso de espao hic (nomes de lugares);

    c) dimenso do tempo nunc (nomes de tempos), cf. MOLINO, 1982, p. 6-7.

    Diante dessa heterogeneidade praticamente impossvel dar uma definio

    simples e coerente de nome prprio. Sendo uma categoria lingustica, ilusrio,

    segundo Molino, procurar definir, de modo decisivo por critrios no ambguos

    (IDEM) o nome prprio. Pode-se, ento, chegar ao ponto de se afirmar que no existem

    nomes prprios, j que no h para eles uma definio completa?

    Certamente, no, porque a escolha no entre categorias definidas e a confuso onde tudo misturado com tudo. O nome prprio uma categoria mica, uma categoria semiterica, nascida da reflexo mi-terica, mi-prtica do locutor, do gramtico-pedagogo e do linguista sobre sua lngua: com seus contornos e contedo indecisos, ela existe, no entanto. E, para explic-lo, o melhor instrumento , no momento, aquele fornecido pela noo de prottipo, utilizado frequentemente pela psicologia cognitiva e aplicado, algumas vezes, anlise lingustica. Pode-se definir, bem grosseiramente, o prottipo da seguinte maneira: a cada palavra ou conceito est associado um conjunto de

    23 Significante seria a parte fsica da palavra, ou seja, sua grafia e fontica (SAUSSURE, 2012, p. 107). 24 Significado seria o conceito transmitido pelo significante. Portanto, significante e significado so duas faces da mesma folha (signo = palavra que possui sentido) (SAUSSURE, 2012, p. 107). 25 Esses polos seguem a dxis, que uma caracterstica da linguagem humana que consiste em fazer um enunciado referir-se a uma situao definida, real ou imaginria, que pode ser: a) quanto aos participantes do ato de enunciao (1 pessoa o que fala; 2 pessoa aquele a quem se dirige a fala; 3 pessoa todo assunto da comunicao, que no sejam a 1 e 2 pessoas); b) quanto ao momento da enunciao (dxis temporal); c) quanto ao lugar onde ocorre a ao, estado ou processo (dxis espacial) (DXIS, 2009).

  • 23

    atributos que constitui o prottipo do conceito e ao qual se compara todo objeto para julgar se ele se classifica ou no sob esse conceito (MOLINO, 1982, p. 7).

    Em nosso estudo, claramente, nos interessar o nome prprio em seu primeiro

    polo, isto , aquele da dimenso da pessoa. Afinal, lidaremos com antropnimos e o uso

    que deles faz a literatura, aqui no caso, a hebraica antiga. Antes, porm, convm

    observar que este uso no prerrogativa, apenas, da literatura hebraica. Ele permeia e

    tem um lugar especial na literatura universal.

    Por ser um signo, um nome um portador (significante) de significado, isto ,

    ele tem sentido para algum. Ionescu (1994, p. 306) afirma, com razo, que um rpido

    exame de algumas das obras mais relevantes da literatura universal prova,

    indubitavelmente, o fato de que em um texto de fico os nomes prprios so

    altamente significativos e sempre cumprem uma finalidade potica.

    Seguindo o quanto afirmado por Barthes:

    O Nome prprio dispe de trs propriedades que o narrador reconhece reminiscncia: o poder de essencializao (uma vez que ele designa apenas um nico referente), o poder de citao (uma vez que se pode chamar, escolha, toda a essncia inserida no Nome, ao proferi-lo), o poder de explorao (uma vez que se desdobra um Nome prprio exatamente como se faz com uma lembrana): o Nome prprio , de qualquer modo, a forma lingustica da reminiscncia. [...] o Nome prprio se oferece a uma explorao, a um deciframento: ele , ao mesmo tempo, um meio (no sentido biolgico do termo), no qual preciso mergulhar, banhando-se indefinidamente em todos os devaneios que porta; e um objeto precioso, comprimido, embalsamado, que necessrio abrir como uma flor (BARTHES, 1967, p. 151).

    Barthes discorda dos principais expoentes da Filosofia da Linguagem que vo

    de Peirce a Russell que viam no nome prprio algo que designaria, mas sem nada

    significar. Para Barthes o nome prprio um signo volumoso, isto , cheio de

    sentido, que nenhum uso chega a reduzir, nivelar, contrariamente ao nome comum

    (IDEM). Ao analisar o uso que o escritor francs Marcel Proust (1871-1922) faz dos

    nomes prprios em seu monumental romance la recherche du temps perdu (Em busca

    do tempo perdido), publicado de 1913 a 1926, Barthes percebe que ao lidar com os nomes,

    Proust estava gerindo as significaes essenciais de sua obra. E o romancista toma o

    nome prprio como um verdadeiro signo em suas duas dimenses, como nota Barthes:

  • 24

    [...] de um lado, ele pode ser lido sozinho, em si, como uma totalidade de significaes, numa palavra, como uma essncia (uma entidade original), diz Proust), ou se preferirmos, uma ausncia, pois o signo designa aquilo que no est l; e de outro lado, ele mantm com seus congneres relaes metonmicas, estabelece a narrativa: Swan e Guermantes no so, somente, duas estradas, dois flancos, so tambm dois foneticismos, como Verdurin e Laumes (BARTHES, 1967, P. 156).

    O nome, portanto, no seria nada se no fosse articulado com o seu referente,

    pois entre a coisa e a aparncia desenvolve-se o sonho, como constata Barthes (1967,

    p. 156). H uma motivao para que acontea a relao entre significante e significado no

    caso do nome prprio, na perspectiva proustiana, identifica Barthes. Seria um

    copiando o outro e reproduzindo em sua forma material a essncia significada da coisa

    (e no a coisa mesma) (BARTHES, 1967, p. 157). Nesse sentido, Proust, sempre

    segundo Barthes, cr que a virtude dos nomes seja ensinar, como ocorria em Crtilo de

    Santo Agostinho, conforme vimos acima. A palavra literria, portanto, deveria ser lida

    no como o dicionrio a explicita, mas como o escritor a constri (BARTHES, 1967,

    p. 158). O nome prprio uma caracterstica lingustica capaz de construir a essncia

    dos objetos do romance. Tomando de emprstimo um famoso axioma, afirmaramos

    que: Pode-se dizer que o prprio da narrativa no a ao, mas o personagem como

    nome prprio (BARTHES, 1970, p. 197). O nome, penetrado pelos recursos

    paradigmticos da obra, obriga a uma leitura que ultrapassa a superfcie do texto, faz

    confluir narrao, personagem, nome e lngua (CRUZ, 2006, p. 65).

    2.2. Psicanlise

    O nome prprio individualiza, identifica e personaliza o sujeito. Assim, o

    conjunto de signos que forma o nome prprio, alm de servir de marca formal

    designativa do indivduo para os outros, para a sociedade, constitui-se como

    referencial nico para o sujeito: ele o vive como sendo ele mesmo (MARTINS, 1991,

    p. 43). Para o sujeito, o nome mais que um signo, ele o seu elemento fundador, uma

    vez que, ele coloca o sujeito no espao da interlocuo humana. Ele permite ao

    indivduo no se perder na multido de corpos. Ele , desse modo, o articulador do

    vivido com o mundo da linguagem (MARTINS, 1991, p. 46).

    O nome prprio passa a construir o cerne daquilo que o sujeito mais preza, ou

    seja, o seu prprio eu. Quem d o nome no quem o recebe, e aquele que o recebe,

  • 25

    no o solicitou. Isso porque, o ser nomeado a partir do desejo de outro ser. A

    identidade da pessoa ser definida ao longo de sua vida, apesar do nome que ela porta.

    o sujeito que necessita apropriar-se das significaes que lhe foram dadas, fazendo

    a sua prpria interpretao.

    3. O nome prprio na literatura

    Aquilo que se viu nos itens anteriores torna-se ainda mais vlido quando se

    analisa as culturas mais antigas da humanidade. Quando mais nos afastamos no

    tempo, mais as culturas ancestrais percebiam o ato de nomear algum como tocar-lhe

    na prpria personalidade. O pesquisador V. Larock se pergunta, com razo:

    Ser que estamos to longe, s vezes, de emprestar aos nomes, como [faziam] os no civilizados, uma sorte de realidade objetiva, um prestgio e um poder que ultrapassam extraordinariamente sua significao literal ou sua funo social? No experimentamos, ao pronunciar nosso prprio nome, em certas circunstncias, um sentimento confuso que beira seja ao orgulho, seja ao temor? Ns no cercamos, ainda, de cerimnias religiosas ou profanas o ato da primeira denominao? E os ritos mgicos praticados sobre o nome, so to raros dentre o povo? Os poetas no exploraram frequentemente esta sorte de misteriosa correspondncia que se estabelece entre a tonalidade de um nome e a fisionomia do personagem a quem esse nome pertence? (LAROCK, 1932, p. 13).

    O fillogo e linguista italiano Bruno Migliorini (1896-1975) recorda uma

    circunstncia interessante da vida do renomado escritor alemo Johann Wolfgang von

    Goethe (1749-1832). Este ficou descontente com um epigrama que outro conhecido

    escritor, crtico literrio, filsofo e telogo alemo, Johann Gottfried von Herder (1744-

    1803), escrevera sobre o seu sobrenome. Ento Goethe teria recordado a Herder que

    um nome de famlia no como um manto que lhe est pendurado por cima e que se

    pode arrancar e rasgar, mas uma veste perfeitamente adaptada, ou como a pele

    crescida juntamente com ele, e que no se pode raspar e arranhar sem fazer mal

    tambm a ele (MIGLIORINI, 1927, p. 6). Portanto, Goethe concedia ao nome prprio

    uma conexo direta personalidade, o que lhe confere um carter mais especial que

    um simples nome comum. Como afirma Barthes (1970, p. 74): Quando semas

    idnticos atravessam vrias vezes o mesmo nome prprio e parecem nele se fixar,

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    nasce um personagem. Portanto, o nome prprio ficcional o lugar de um processo

    semntico fundamental para a gramtica da narrativa (NICOLE, 1983, p. 236).

    Devido a isso, o nome prprio na fico ultrapassa a mera identificao do

    personagem e a continuidade desta referncia ao longo da narrao. H outras

    propriedades excepcionais no interior do processo ficcional de identificao.

    Seguindo o linguista e lexicgrafo ucraniano radicado no Canad Jaroslav

    Bohdan Rudnyckyj (1910-1995), especialista em etimologia e onomstica, Dirce Crtes

    Riedel (s.d., p. 77-78) identifica as seguintes funes literrias do nome prprio:

    3.1. Nomes que revelam a qualidade dos personagens:

    a. Como na obra de Nikolai Gogol (1809-1852), Taras Bulba, um romance

    histrico, cuja primeira verso de 1835 e o ttulo revela o nome do

    personagem principal. Esse velho e poderoso cossaco ucraniano por ser

    arredondado (gordo), possui uma aparncia de bulba, que significa

    batata. Assim sendo, essa palavra, na funo de nome prprio, substitui

    uma extensa descrio realista do personagem e serve de base para que a

    nossa imaginao reproduza a pintura do heri fictcio.

    b. Algo semelhante ocorre com o nome do personagem principal de Almas

    Mortas, do mesmo Nikolai Gogol, publicada em 1842. O nome dele Pvel

    Ivnovitch Tchtchicov, sendo que este ltimo nome, Tchtchicov, possui um

    som que sugere alguma coisa instvel. De fato, o personagem um perptuo

    viajante em busca da fortuna, aps ter sido demitido do servio pblico por

    desonestidade.

    3.2. Nomes que indicam o local da ao.

    3.3. Nomes sugestivos do tempo da ao.

    3.4. Nomes que exercem um papel na estrutura da obra:

    a. Recurso mais comum na poesia moderna. H exemplos de adaptao

    musical do nome ao contexto lrico, quando usado por razes musicais,

    condicionado pela organizao de toda a frase e pelo ritmo. O valor

    estrutural dos nomes prprios fica claro nas oposies que o escritor,

    dramaturgo e ensasta brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) realiza em

    seu poema intitulado Cntico dos Cnticos para Flauta e Violo ao mencionar

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    as amadas e a Amada Maria Antonieta d'Alkmin, com quem se casou em

    1942, ano, alis, de composio do referido poema. Vejamos:

    No quero mais A inglesa Elena No quero mais A irm da Nena No quero mais A bela Elena Anabela Ana Bolena Quero voc Toma conta do cu Toma conta da terra Toma conta do mar Toma conta de mim Maria Antonieta d'Alkmin (ANDRADE, 1974, p. 184)

    b. Algo semelhante encontra-se em Os Irmos Karamzov, obra do escritor russo

    Fidor Dostoivski (1821-1881). Neste romance escrito em 1879, os irmos

    so todos enegrecidos devido suas taras. O nome prprio Karamzov

    estrutura o romance, pois a primeira parte do nome, kara, significa negro. Em

    um conto do mesmo autor, O senhor Prokhartchin, escrito quando

    Dostoivski tinha apenas 25 anos de idade (1846), contata-se o mesmo

    fenmeno. A relao do nome com o que ele significa uma temtica

    essencial deste conto. O tradutor, ensasta e escritor ucraniano radicado no

    Brasil Boris Solomonovitch Schnaiderman, quando traduziu e analisou este

    conto, destacou a funo do uso do nome prprio na obra de Dostoivski.

    As suas constataes podem ser ampliadas para vrias outras obras

    literrias alm daquelas deste autor russo:

    Este uso dos nomes prprios significativos nem sempre tem a funo de colocar desde o incio mscara na personagem, definindo-a. s vezes, s depois da leitura que se percebe a relao entre o nome prprio e o papel da personagem. o caso, por exemplo,