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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE EDUCAO FEUSP
HIROMI SHIBATA
Da casa de pau-a-pique aos filhos doutores: trajetrias escolares de
geraes de descendentes japoneses (dos anos 1950 aos anos 1990).
So Paulo
2009
HIROMI SHIBATA
Da casa de pau-a-pique aos filhos doutores: trajetrias escolares de
geraes de descendentes japoneses (dos anos 1950 aos anos 1990)
Tese apresentada Faculdade de
Educao da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Doutor em
Histria e Historiografia da Educao
rea de Concentrao: Histria da
Educao
Orientadora: Professora Doutora Cynthia
Pereira de Sousa
So Paulo
2009
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo
371.98(81.61)Shibata, Hiromi
S5555d Da casa de pau-a-pique aos filhos doutores : trajetrias escolares de
geraes de descendentes japoneses (dos anos 1950 aos anos 1990) / Hiromi
Shibata ; orientao Cynthia Pereira de Sousa. So Paulo : s.n., 2009.
211 p. il., grafs. tabs.
Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Educao.rea de
Concentrao : Historia e Historiografia da Educao) - - Faculdade de
Educao da Universidade de So Paulo.
1. Escolarizao So Paulo 2. Japoneses - Histria -Educao So
Paulo 1950-1990 3. Sucesso escolar 4. Descendente Brasil - Japo 5.
Relaes escola-famlia 6. Grupos tnicos Educao 7. Geraes -
Educao I. Sousa, Cynthia Pereira de, orient.
DEDICATRIA
minha me, Helena.
IN MEMORIAM
Meu pai, Saburo, imigrante japons, a quem devo a alegria de me sentir herdeira de
seu modo de pensar, sentir e agir. Pelas mos dadas quando criana e pelo seu olhar, guardo
grandes lies de vida...
Meu irmo Harugi, cujas iniciativas e lideranas junto colnia japonesa de Ourinhos
(SP), deram-me, em casa, motivos para estudar a primeira gerao de descendentes, em
especial suas formas de projeo social e poltica. Acima de tudo, o amor de um irmo.
AGRADECIMENTOS
Professora Doutora Cynthia Pereira de Sousa, que me acolheu no Programa da Ps-
Graduao, desde o Mestrado, e a quem devo grandes lies de humanidade. Sem o seu apoio,
o Mestrado e o Doutorado no teriam sido possveis. Meus eternos agradecimentos.
Professora Doutora Denice Brbara Catani, de quem tive o privilgio de ser aluna
na Ps-Graduao por vrias vezes. Sempre escolhidas pelo prazer de conhecer e aprender.
Pesquisadora Doutora Clia Sakurai, pelas oportunidades e pelo privilgio de
partilhar de trabalhos na rea da Imigrao Japonesa. A pesquisa do Mestrado levou-me a ela
e o Projeto de Doutorado concretizou-se com seu apoio.
Professora Doutora Shoko Kimura, da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), pela constante ajuda e pela amizade eterna. Obrigada por todo o tempo que
despendeu para as leituras da minha Dissertao e, dessa vez, para as do Doutorado.
Aos Professores Doutores, Helena Nagamine Brando e Roberto Brando, pela
generosidade em repartir... E pelas palavras de fora no momento de angstias e de incertezas.
Ao Professor Doutor Esteban Tuesta, da USP-Leste, por me socorrer na parte do
trabalho referente s estatsticas.
amiga Toskiko Yoshida (Tosca), que me levou at as pessoas as quais se tornaram
importantes para este trabalho.
Aos diversos pais e ex-alunos que se dispuseram a dar entrevistas e que se tornaram
personagens centrais desta pesquisa. Em especial, s famlias Nagamine (Antnio (AT),
Shizuko (SN) e Jos (JN); Nakachima (pais e filhos), Akissue (me, filhas e netas) e
Matsumura (pais e filhas), que foram extremamente generosos em repartir suas histrias e
confi-las a mim. Bater porta da casa dessas famlias foi o primeiro grande desafio desta
tese, mas os resultados dos depoimentos deram-me a certeza de que os protagonistas da
histria precisavam ser colocados em cena.
Ao Coordenador de Histria e Filosofia do Colgio Bandeirantes, Professor Roberto
Nasser, por todo o apoio e confiana depositados para a realizao desta investigao. Nasser,
Muito obrigada pela constante ajuda!
Ao Coordenador do Departamento de Informtica, Eduardo Juliano Tokarz, e ao
Mrcio, que desde 2002 tiveram sempre a grande pacincia para me atender, interrompendo
seus trabalhos. Foram sempre acolhedores e o resultado foi o Banco de Dados, sem o qual
esse trabalho no teria se iniciado. Muito obrigada, Juliano e Mrcio!
Ao Diretor Pedaggico do Colgio Bandeirantes, Professor Pedro Fregonezze, pelos
depoimentos e por repartir comigo parte de sua histria de vida.
Ao Diretor-Presidente do Colgio Bandeirantes, Sr. Mauro Sales Aguiar, pelos
depoimentos que me foram confiados e que se tornaram de fundamental importncia para
introduzir a histria da instituio escolar, neste trabalho. Devo muito a sua generosidade que
me permitiu trabalhar com funcionrios do colgio para a realizao de partes importantes do
meu trabalho.
Siomara Pacheco, pela reviso dos textos e pelas palavras de fora nos momentos
em que mais necessitamos delas.
Carmen Riguengo, pela diagramao dos textos. Quanta pacincia, para ter de me
atender! Muito obrigada!
Elizabeth Luriko Tanaka Seno, Betinha, minha sobrinha e afilhada, no por acaso,
porque parte de uma filha. Do seu jeito, mostrou-me como as geraes mais novas ensinam
para geraes mais velhas.
Ao meu irmo, Kiyoji, que sempre acreditou no que somos capazes de fazer, mesmo
diante das dificuldades e dos sofrimentos decorrentes das perdas.
Minha me, Helena, que me traz tantas alegrias. O empenho pela educao dos
filhos tornou-se um item importante deste trabalho, inspirado na experincia vivida com ela.
Por meio de uma linguagem indizvel, minha me me encaminhou para o Magistrio. Hoje,
depois de muitos anos, tenho a revelao de um de seus segredos: ela sempre quis ser
professora. Muito obrigada!
RESUMO
Este trabalho dirigiu-se investigao de uma das marcas de distino japonesa: o
empenho pela educao dos filhos. O material explorado baseou-se em relatos da trajetria
escolar colhidos, por meio das entrevistas semiestruturadas, de grupos de pais e de alunos de
diferentes faixas etrias, que se escolarizaram a partir do trmino da Segunda Guerra Mundial,
pertencentes a famlias de origem japonesa,. A pesquisa foi realizada entre 2005 e 2008, na
cidade de So Paulo. Foram entrevistados 49 indivduos, entre pais e filhos, diretores e
professores. Optamos por desenvolver a pesquisa com alguns grupos de ex-alunos de
descendncia japonesa do Colgio Bandeirantes (SP), buscando examinar as relaes entre
famlia e escola, assim como a razo do sucesso escolar e influncia da etnia japonesa. Na
essncia, o trabalho baseou-se em uma abordagem que levou em conta o contexto histrico e
a posio dos sujeitos nesses espaos, a fim de compreender as trajetrias escolares dos
alunos e as formas de transmisso domstica do capital cultural. Para fundamentar as
hipteses, tomamos como referncia Pierre Bourdieu, pelas possibilidades de interpretao
oferecidas por meio dos conceitos habitus, capital cultural e capital social. A anlise das
trajetrias permitiu- nos constatar uma dinmica familiar voltada para atender aos desafios do
sistema escolar brasileiro que acabou deixando pouco espao para a evocao das tradies
japonesas.
Palavras-chave: descendentes de japoneses; trajetrias escolares; sucesso escolar;
gesto da escolarizao dos filhos; geraes; famlias.
ABSTRACT
This thesis was meant to investigate one of the outstanding Japanese characteristic: the
effort to educate their children. The data investigated was based on the accounts of the school
trajectories which were chosen by means of half-structured interviews and of groups of
parents and pupils who belonged to families of Japanese origin, from different ages that went
to school after the Second World War. The research was done between 2005 and 2008, in So
Paulo. 49 people were interviewed: the parents and their children, the directors and the
teachers. We decided to develop the research with some groups of ex-students of Japanese
descendent from Colgio Bandeirantes (SP), trying to examine the relationship between
family and school, as well as the success in school of the Japanese ethnic group. In essence,
the thesis was based on an approach that took into consideration the historical context and
how the individuals were set within such spaces, in order to understand the school trajectory
of the students and the ways of domestic transmission of the cultural capital. In order to base
our hypothesis we made reference to Pierre Bourdieu for the possibilities of interpretation
offered by the concept of habitus, cultural capital and social capital. The analysis of the
trajectories allowed us to verify a family dynamic guided to the catering of the challenges of
the school system that left little opportunity to the evocation of the Japanese tradition.
Key words: Japanese descendant; school trajectory; success in school, administration
of the schooling of the children ; generations; families.
SUMRIO
INTRODUO
p. 1
CAPTULO I
O lugar da escola na vida dos descendentes japoneses
e a organizao do espao do ensino paulista
p.
18
CAPTULO II
O Colgio Bandeirantes (SP) como um espao de
ensino na cidade de So Paulo
p.
53
CAPTULO III
A Famlia: o ato da escolha da escola
p.
90
CAPTULO IV
Famlias: a gesto da escolarizao dos filhos
p.
126
CAPTULO V
Trajetrias escolares e profissionais
p.
164
CONSIDERAES
FINAIS
p. 199
REFERNCIAS
BIBLIOGRFICAS
p.
201
ANEXOS
p.
208
1
INTRODUO
De acordo com sua teoria dos meios, Balzac faz longas descries
preliminares dos lugares onde ocorrero as aes dramticas. Antes de tudo,
ele apresenta o contexto explicando a razo dos fatos; isto que faz o
realismo. Somente depois que ele comea a traar o perfil das personagens.
So os retratos que exprimem o realismo de Balzac. Ele comea a abordar
suas personagens do exterior fazendo uma descrio fsica pormenorizada,
revelando-nos seu carter, seus vcios e suas paixes por meio de suas vestes,
de seu semblante e de sua conduta. (M. Brient, 2006).
Como professora do Colgio Bandeirantes, no contato cotidiano com centenas de
alunos de origem japonesa, algumas questes instigaram a minha curiosidade, tais como: Por
que tantos descendentes de japoneses no colgio? Eram as expectativas de xito escolar e de
sucesso profissional? Quais as condies objetivas das famlias que as levavam a escolher o
colgio como a escola ideal para os seus filhos? Qual era o seu perfil socioeconmico e
profissional? Por trs dessas questes, formulava-se um forte interesse em conhecer as
prticas adotadas pelas famlias para promover a escolarizao dos filhos por meio de
investimentos custosos, os quais eram aplicados em instituies privadas de ensino. Em meio
diversidade de etnias, to caracterstica daquele espao escolar, os descendentes de
japoneses chamavam a ateno, e me vi em alguns momentos levada pelo desejo de descobrir
o bairro em que moravam, a casa, a vizinhana, enfim, as relaes com os pais, os hbitos
cotidianos, para entend-los um pouco mais, buscando reconhecer alguns traos comuns das
histrias de vida, de seus comportamentos perante os estudos, a execuo de tarefas, suas
formas de participao durante as aulas e de socializao nos espaos escolares. Em parte, a
curiosidade respondia ao interesse de investigar sobre a permanncia de caractersticas to
freqentemente apontadas aos estudantes japoneses, tais como as de serem bons alunos,
disciplinados e dedicados aos estudos. Essa curiosidade e esse desejo se concretizaram anos
mais tarde, consolidando-se em um projeto de pesquisa que resultou no presente trabalho.
Ento, vi-me diante da porta dos entrevistados, entrando em suas casas, procurando conhecer
tanto o espao familiar quanto o social, mais o primeiro que o segundo, para comear a
escrever sobre suas trajetrias de vida e a de seus pais. Na verdade, trajetrias nas quais se
incluem a minha e a de meus familiares, descendentes da segunda e terceira gerao de
japoneses no Brasil.
O presente trabalho dirigiu-se investigao de uma das marcas de distino japonesa:
o empenho pela educao dos filhos. Em parte, respondeu tambm ao interesse em estender o
2
olhar para alm do perodo abordado na dissertao de Mestrado, ao se examinar o desenrolar
histrico depois da Segunda Guerra Mundial. As investigaes iniciadas no Mestrado
abordaram o universo das escolas primrias criadas pelos imigrantes japoneses no perodo
anterior Segunda Guerra Mundial. A pesquisa estendeu-se de 1915 (data da criao da
primeira escola japonesa, na cidade de So Paulo) at o encerramento do conflito mundial, em
1945. Naqueles quadros, orientados por uma organizao social que respeitava os cdigos de
tica da cultura de origem, o objetivo das escolas foi a formao de japoneses. Colocados
em um contexto restrito de oportunidades educacionais, porm rico de contrastes, os
imigrantes e os nacionais, motivados por interesses igualmente contrastantes, contriburam
para a construo de uma imagem por meio da qual o descendente japons passou a ser
reconhecido sob a marca da distino do bom brasileiro, disciplinado, esforado e
trabalhador, contudo ainda um japons (SHIBATA, 1997). Certamente, o contexto histrico do
perodo, marcado pelo jogo dos interesses polticos e econmicos que envolviam japoneses e
brasileiros, alm dos efeitos de uma histria da imigrao ainda recente, foram importantes na
construo dessa imagem. E a partir dessa compreenso que nos norteamos para
compreender como a marca da distino japonesa, o empenho pela educao, suscitou
novos discursos, novas representaes e novas imagens na sociedade nacional, durante os
perodos que acompanharam o final da Segunda Guerra Mundial.
Objetivos e objeto da pesquisa
A centralidade das questes abordadas no presente trabalho voltou-se para o estudo
das condies nas quais os descendentes e seus pais construram seus projetos de ascenso na
sociedade brasileira, via escolarizao, depois da guerra. O peso da riqueza cultural da famlia
ou do capital cultural familiar sobre as trajetrias escolares dos filhos ocupou o lugar principal
dessa anlise. Por se tratar de uma pesquisa sobre os itinerrios de escolarizao adotados por
membros de um grupo tnico especfico que tem a marca distintiva do sucesso escolar,
atribuda pela sociedade abrangente, buscou-se estabelecer as condies da produo dessas
marcas e como elas foram apropriadas pelos membros da prpria etnia. No limite, busca-se
interrogar sobre as prticas desenvolvidas por esse grupo, as quais acabaram por se constituir
em marcas de sua distino. Nesse sentido, poderamos afirmar, conforme Bourdieu (1979, p.
VI), que os sujeitos sociais se distinguem pelas distines que eles operam; portanto, nada
h de gratuito. So, na verdade, formas de investimento com fins de distino e de afirmao
que visam a uma espcie de nobreza sobre os demais.
3
Ao considerarmos o mbito da histria da educao brasileira, tornou-se importante
entendermos o contexto scio-histrico no qual se constituram as diferentes prticas de
escolarizao e se construram as diversas representaes sociais e tnicas a respeito da
educao escolar dos descendentes de japoneses. Quer dizer, buscou-se indagar de que forma
o contexto atua na criao dos mecanismos de diferenciao, de produo e reproduo
sociais e tnicas. A pesquisa busca, assim, contemplar a rea da Histria da Educao
Brasileira, sem abdicar da interlocuo com a Sociologia da Educao e a Antropologia. Com
esses objetivos, buscamos trabalhar com descendentes de japoneses de diferentes faixas
etrias, que se escolarizaram a partir do trmino da Segunda Guerra Mundial.
Como a inteno era a de estudar a trajetria escolar percorrida, tendo em vista sua
ascenso scio-profissional e a de seus familiares, entendemos que as pessoas escolhidas j
deveriam estar inseridas no mercado de trabalho. Alm disso, como o objetivo maior da
pesquisa era o de avaliar as mudanas e permanncias das prticas escolares adotadas, para
dispormos de uma referncia comum, consideramos importante que esses pesquisados
tivessem vivenciado experincias escolares em um mesmo estabelecimento de ensino. Com
esse refinamento de critrios, optamos por desenvolver a pesquisa com alguns grupos de ex-
alunos de descendncia japonesa do Colgio Bandeirantes (SP), delimitando, portanto, o
objeto da pesquisa cidade de So Paulo.
Vrios motivos justificam a escolha desses egressos do Colgio Bandeirantes como
objeto de estudo na presente pesquisa. Com certeza, no deve ser descartada a vinculao da
pesquisadora a esse estabelecimento de ensino, todavia poderamos comear com o que o
olhar j nos fazia conhecer, ou seja, a presena macia de descendentes de japoneses entre os
alunos matriculados no colgio, especialmente a partir de meados da dcada de 1970. Criado
em 1934, com os objetivos educacionais voltados para os interesses de uma classe mdia
interessada em ascenso scio-profissional, via escolarizao, a instituio de ensino chama a
ateno pela composio tnica de sua populao escolar, destacando-se nela os asiticos e,
em especial, os alunos de descendncia japonesa. Sem margem de dvidas, trs geraes de
japoneses residentes na cidade de So Paulo1 passaram pelos corredores dessa escola ao longo
de sua histria.
A abrangncia histrica do Colgio Bandeirantes constitui o segundo motivo que nos
levou a tomar seus alunos como objeto de estudo. O colgio foi criado em 1934 e, j no ano
1 A populao de descendentes japoneses que procuram o colgio predominantemente paulistana, mas tambm
encontramos alunos oriundos do interior do estado de So Paulo, assim como de outros estados brasileiros, como
Paran e Mato Grosso, por exemplo.
4
seguinte, entre 137 alunos matriculados, encontramos um aluno de descendncia japonesa.
Desse modo, o estabelecimento escolhido constitui referncia para um estudo que pretende
abordar a trajetria da educao escolar dos descendentes japoneses, desde o final da Segunda
Guerra Mundial at os dias atuais.
O terceiro motivo que procura justificar a opo pode antecipar uma resposta
questo acima. As peculiaridades desse grupo de alunos desperta-nos o interesse em
investigar os critrios utilizados para a escolha do melhor estabelecimento de ensino. Em um
estudo sobre a trajetria escolar de jovens provenientes das camadas mdias intelectualizadas,
Nogueira (2000, p. 132) observa a presena de pequenas ondulaes na escolha de
estabelecimentos pela famlia, segundo o grau de ensino. Nessa perspectiva, observa que a
opo pela qualidade do ensino constitui o principal critrio de escolha em todos os nveis
de escolaridade, embora geralmente associado a outros fatores como a praticidade (distncia
da residncia, horrio e preos), a pedagogia aplicada (inovaes pedaggicas e disciplina),
tradio familiar (j freqentada pelos pais, avs, irmos etc.) e mesmo a confessionalidade.
Contudo, ressalta que, medida que se avana na carreira escolar, as razes de ordem prtica
tm sua importncia diminuda no ato da escolha. A preocupao com o vestibular acaba por
impor um refinamento no critrio da escolha. Essa opo pelo Colgio Bandeirantes tanto
pode contribuir para revelar a viso de mundo e de escola apropriada pelas famlias, como
tambm as formas de mobilizao utilizadas pelos pais para a ascenso scio-profissional dos
filhos.
A partir das consideraes acima, o estudo das trajetrias de escolarizao dos
descendentes japoneses como meio de promoo scio profissional constituiu-se no tema
central. Para tanto, foram entrevistados profissionais de diversas reas, os quais encontram-se
no mercado de trabalho,alm de j terem estudado no Colgio Bandeirantes (SP), entre os
anos de 1950 e 1990.
Importa observar que no se trata de um estudo comparativo de instituies escolares,
portanto, outras realidades escolares no sero aqui examinadas. O objetivo deste trabalho
concentra-se no estudo das trajetrias escolares de grupos de descendentes de japoneses, e a
incluso do Colgio Bandeirantes insere-se nos limites do trabalho que busca conhecer as
especificidades dessa instituio de ensino, especificidades estas que levaram as famlias a
escolh-la como a melhor escola para os seus filhos.
O tema na bibliografia consultada
5
A reviso bibliogrfica foi o ponto de partida para nossa investigao. Entre as
principais fontes utilizadas, alm das bibliotecas da FEUSP, FFLCH, Psicologia, PUC-SP,
destacaram-se o Banco de Teses CAPES e o Banco de Teses USP, UNICAMP e UNESP. O
levantamento das produes existentesem teses, dissertaes, livros e artigos em peridicos,
sobre temas paralelos aos da presente pesquisa, permitiu organizar as contribuies das
leituras segundo quatro categorias2 de anlise, reunidas duas a duas da seguinte forma:
famlia e escola, etnia japonesa e sucesso escolar. Cada uma dessas categorias, para fins de
anlise e interpretao, foi subdividida em itens como: trajetria escolar e scio-profissional,
escolha do estabelecimento de ensino, vestibular, consumo cultural e valores japoneses.
Na categoria famlia e escola, destaca-se a tese de doutorado de Ana Maria Fonseca
de Almeida (UNICAMP, 1999), A escola dos dirigentes paulistas. A autora estudou o modelo
escolar de formao de grupos dirigentes em vigor no pas, tomando como referncia trs
escolas da cidade de So Paulo, que compreendem instituies privadas, uma leiga e duas
confessionais, consideradas escolas de alta qualidade. A pesquisa foi realizada com
entrevistas, aplicao de questionrios e observao do ambiente escolar, por meio dos quais
buscou-se investigar sobre a estrutura do currculo, a organizao do trabalho escolar, as
caractersticas dos professores, dos alunos e das prticas culturais e escolares. Segundo a
autora, a pesquisa ofereceu elementos para uma avaliao das implicaes para a
estratificao social brasileira da situao de quase monoplio do ensino privado sobre as vias
de acesso s universidades mais prestigiadas. Trata-se de uma tese de grande contribuio
para a nossa proposta de trabalho, uma vez que uma das escolas investigadas o
estabelecimento de ensino de nosso interesse. Sem margem de erro, trata-se do nico estudo
existente sobre o Colgio Bandeirantes na categoria de anlise famlia e escola. Nesse
mbito, a pesquisa realizada pela autora oferece contribuies para a abordagem de questes
como o sucesso escolar, trajetria escolar e, particularmente, quanto escolha do
estabelecimento do ensino, ao constatar o alto grau de concordncia entre tipos de famlias
e tipos de escola. A tese constitui-se em uma das importantes fontes de contribuio para o
estudo a que procedemos, mesmo que sob diferentes abordagens.
A tese de Sabrina Moehlecke, Fronteiras da Igualdade no Ensino Superior:
Excelncia e Justia Social (FEUSP, 2004), trouxe importantes elementos de reflexo
relativos ao discurso da democratizao do acesso ao ensino superior no Brasil. A
apresentao das sucessivas reformas universitrias colocou em evidncia as transformaes
2 Categorias so aqui interpretadas como uma espcie de im agregador de informaes (BRANDO, 2000, p.
180).
6
sofridas pelos exames vestibulares em toda sua trajetria, desde sua criao, em 1911, at a
atual Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei 9394/96). O debate apresentado
sobre os limites da democratizao e a seletividade social referentes aos anos 60/70 e, depois,
80/90, permitiu situar o quadro histrico que deu origem s escolas privadas de alta
qualidade e construo das estratgias de escolarizao bem sucedidas pelas famlias de
classe mdia. A igualdade de oportunidades baseada na meritocracia, tpico abordado pela
autora, abriu um importante espao para se pensar como as famlias de origem japonesa
operacionalizam as trajetrias de escolarizao dos seus filhos.
A despeito da maior incidncia de produes nos ltimos anos, em virtude dos
preparativos para a comemorao do centenrio da imigrao japonesa, so poucas as
pesquisas na rea da educao dos descendentes japoneses relativas ao perodo posterior
Segunda Guerra. Estudos que tratam desse perodo podem ser encontrados nos anos 1990,
como os de Camacho (1993) e Setoguti (1996). Nos anos 2000, encontramos a Dissertao de
Mestrado de Zagonel (2003)). Embora abordem a relao entre etnia japonesa e sucesso
escolar, a tendncia encontrada nessas produes foi a preocupao em estabelecer
vinculaes entre a cultura de origem dos imigrantes japoneses e o desempenho escolar dos
seus descendentes nascidos e escolarizados no Brasil.
A partir de entrevistas com estudantes do ensino mdio da cidade de So Paulo,
Camacho (1993) parte do princpio de que o desempenho escolar dos descendentes encontra-
se vinculado aos valores culturais e familiares transmitidos no processo da socializao
primria das crianas. Nesse sentido, o autor destaca trs aspectos que influenciam a formao
dos descendentes: a expectativa da famlia pela ascenso scioeconmica, a influncia de
traos culturais peculiares aos japoneses que sobrevalorizam o processo educativo e as
condies econmicas favorveis.
Setoguti (1999) tambm desenvolve suas consideraes a partir de entrevistas
realizadas com japoneses e descendentes, mas residentes em Maring (PR), representantes das
trs geraes: isei, nisei e sansei, respectivamente, primeira, segunda e terceira geraes nipo-
brasileiras. Sua hiptese foi a de que o xito escolar dos descendentes explica-se pela
bagagem cultural trazida pelos imigrantes japoneses ao Brasil. Para isso, remete a
investigao a alguns aspectos da histria cultural dos japoneses da Era Meiji (1868-1912), j
abordados em outros estudos, inclusive em Shibata (1997).
Zagonel (2003) difere das pesquisas anteriores quanto abordagem adotada,
fundamentando-se em autores como Fredrik Barth e Stuart Hall, e quanto ao pblico
envolvido. O espao de pesquisa compreendido pela autora foram os calouros do vestibular da
7
Universidade Federal do Paran, do ano 2000, filhos de descendentes de japoneses,
matriculados nos cursos de Arquitetura, Medicina, Engenharia Ambiental e Turismo. Segundo
a autora, apesar da influncia da cultura japonesa, seus smbolos tm sido reconstrudos pelos
descendentes como forma de afirmao de sua identidade tnica. Assim, o sucesso acadmico
tem relao com os hbitos culturais japoneses, principalmente a persistncia, a disciplina, os
hbitos de estudo e o desejo de aprender. Observa ainda que, mesmo com as mudanas
experimentadas, os traos culturais permanecem.
A inegvel contribuio de Crisntemo e Espada de Ruth Benedict (1946) para o
conhecimento da cultura japonesa, no mundo ocidental, traduzida pelos inmeros estudos
que dele se derivaram, inclusive as pesquisas de Camacho (1993), Setoguti (1999) e Zagonel
(2003). Valores como: on (devotamento filial distribudo em vrias hierarquias: ao imperador,
ao pai, ao irmo mais velho, ao patro, ao professor), giri (tambm distribudo em diversos
graus hierrquicos, significa o pagamento da dvida pessoal derivada do on), a autodisciplina
e a vergonha (Seken no me) passaram a ser conhecidos por meio da obra de Ruth Benedict
como caractersticas culturais tradicionais japonesas, contribuindo para difundir o modelo de
uma cultura inspirada no esprito japons, princpio bsico do coletivismo, da harmonia, do
equilbrio e da disciplina.
Este trabalho pretendeu somar-se s contribuies das autoras referidas anteriormente,
bem como ampliar os estudos existentes nessa rea, procurando avanar na compreenso das
trajetrias e dos resultados escolares em contextos nos quais os indicadores econmicos e
sociais so bastante favorveis permanncia no sistema de ensino, mas que, como
pretendemos demonstrar, no so suficientes. Acreditamos que, antes da Segunda Guerra
Mundial, realizaes de projetos de vida associados etnia de origem tenham tido mais
espao na medida em que se encontravam condies favorveis para isso, entre elas, a prpria
condio do imigrante japons aqui instalado, assim como a presena do governo japons
na organizao social e cultural dos seus sditos e descendentes (SHIBATA, 1997). No
entanto, aps a guerra, entendemos que as vinculaes com a cultura de origem foram
perdendo seus traos mais fortes em virtude de outros projetos de vida delineados pelos
descendentes japoneses da segunda, terceira ou quarta geraes. inegvel que, num grupo
tnico, a idia de pertencimento constitui-se num fator de agregao e de preservao das
condies que sugerem a identidade dos seus membros. Contudo, entendemos tambm que o
real pode ser, na verdade, relacional, conforme observa Bourdieu (1996, p.18):
8
[...] preciso cuidar para no transformar em propriedades necessrias e
intrnsecas de um grupo as propriedades que lhes cabem num determinado -
momento, a partir de sua posio em um espao social determinado e em uma
dada situao de oferta de bens e prticas possveis.
A nossa inteno a de desenvolver a pesquisa sobre trajetrias escolares, na
perspectiva da constituio e reconverso dos habitus familiares em escolares, consideradas
em diferentes contextos histricos, procurando reconhecer as novas formas de expresso que a
escola engendra em seus alunos, como tambm identificar as configuraes possveis,
partindo da compreenso de que no se captura a lgica mais profunda do mundo social sem
submergir na particularidade de uma realidade emprica, historicamente situada (BOURDIEU,
1996, p. 15).
preciso registrar a carncia de pesquisas sobre a educao escolar dos descendentes
japoneses, especialmente referentes ao perodo posterior Segunda Guerra Mundial, mesmo
tratando-se de pesquisas que envolvam estudos comparativos inter-raciais. Possivelmente,
conforme assinala o pesquisador Kaiz Iwakami Beltro (2004, p. 44), pelo tamanho exguo
desse contingente e pela sua condio socioeconmica igualar e, em muitos casos, at
suplantar a dos brancos. Mesmo no amplo quadro de publicaes verificadas no ensejo das
comemoraes pelo centenrio da imigrao, em 2008, no se encontram produes voltadas
especificamente para essa temtica, com exceo a breves referncias, que, portanto, no se
fundamentam em uma pesquisa de teor cientfico.
Quanto s estatsticas, duas pesquisas devem ser citadas: a de Teiiti Suzuki, de 1958 e
a do Centro de Estudos Nipo-Brasileiro, organizada em 1988. Todavia, ambas pesquisas
oferecem poucas contribuies quanto escolarizao da populao japonesa, referentes ao
perodo posterior guerra; a primeira por ter como limite o ano de 1958 e a segunda por no
apresentar dados sobre o assunto. Nesse quadro, as pesquisas organizadas por Beltro (2004,
2005 e 2008), baseadas nos Censos Demogrficos (IBGE) e em dados do IPEA, tornaram-se
referncias importantes para o presente estudo.
A tese de Clia Sakurai, Imigrao Tutelada. Os japoneses no Brasil (UNICAMP-2000),
constitui-se na referncia principal para tratar das questes referentes histria da imigrao
japonesa no Brasil, correspondente ao perodo anterior Segunda Guerra Mundial. Nossa
pesquisa sobre as trajetrias escolares dos descendentes de japoneses de So Paulo inspira-se
na abordagem usada pela autora para a interpretao da imagem do bom agricultor:
A construo desta imagem de agricultor tem uma histria onde entram inmeras
variveis que vo montando um quebra-cabeas que resulta num dos traos
9
identitrios do grupo como um todo. Esta grande estampa um delimitao, ou uma
das fronteiras tnicas dos japoneses no Brasil. Existem outras, cujos contornos so
essencialmente culturais como a lngua, por exemplo. A reconstituio do aspecto
proposto sobremaneira instigante do ponto de vista da reflexo por ser uma
construo simblica, j que ser bom agricultor no um dado em si, como a
lngua. (SAKURAI, 2000, P. 77, grifos nossos)
A interpretao da imagem do bom agricultor instiga, tambm, no campo da
educao escolar que envolve os descendentes de japoneses, uma reflexo semelhante. Foi
essa leitura feita pela autora que nos inspirou na construo da proposta de trabalho, que
busca discutir o empenho pela educao como uma das marcas da distino dos japoneses
no Brasil.
No levantamento bibliogrfico efetuado, a tese de Almeida (2002) e a dissertao de
Zagonel (2003) so as que mais se aproximam do nosso trabalho, entretanto se distanciam
quanto ao objeto de estudo e abrangncia do perodo abordado. Portanto, sem grande
margem de erro, podemos afirmar que no h estudos desenvolvidos sobre o tema abordado.
Hiptese inicial
A pesquisa realizada permite-nos afirmar que a questo da relao entre educao
escolar e etnia japonesa ainda um objeto em construo. E esse o limite que reconhecemos
e no qual buscamos tecer nossas consideraes, assim como levantar nossa hiptese.
So vrias as evidncias nacionais e internacionais que vo ao encontro da afirmao
de uma relao bem-sucedida entre etnia japonesa e empenho escolar. Na conferncia
realizada na Universidade de Todai (Tkio), em 1989, Pierre Bourdieu no deixa de observar
a importncia excepcional tradicionalmente atribuda educao pelos japoneses (1996, p.
27). Aps uma visita Universidade de Berkeley, na Califrnia (EUA), Mauro de Salles
Aguiar, diretor-presidente do Colgio Bandeirantes (SP), observou a forte presena de
orientais:
[...] quando entrei na escola, eu pensei: estou no Bandeirantes: jeans, tnis, ...
no tm uniformes, e uma quantidade enorme de orientais. E comentei sobre
isso com o diretor [da universidade], e ele falou: toda escola boa no mundo
inteiro tem grande quantidade de orientais. Se voc quiser saber qual a
escola boa numa cidade, procure onde tem bastante orientais. Voc entra no
campus de Berkeley, a a maioria das pessoas so orientais, incluindo
professores tambm. Na academia tambm ... na rea de cincias e tecnologia.
(Entrevista em junho de 2008 - grifo nosso).
10
No Brasil, estudos organizados por Beltro (2005) colocam em evidncia esse
empenho escolar das famlias de origem japonesa por meio de estatsticas. Baseando-se nos
Censos Demogrficos IBGE, de 1940 a 2000, o autor mostra que esse subgrupo da
populao brasileira foi o que apresentou maiores ganhos de escolaridade, permitindo
constatar pelas estatsticas que, ao contrrio da maioria da populao nacional, os japoneses e
seus descendentes no dependeram das iniciativas pblicas para realizarem sua escolarizao.
Alm das teses e dissertaes, destacamos duas publicaes que, pela sua pertinncia
com o tema abordado e suas contribuies, sero comentadas a seguir. Sem, contudo, referir-
se aos japoneses, a coletnea organizada por Franoise Lorcerie, Lcole et le Dfi Ethnique
(2003), serviu-nos de referncia. So vrias anlises sobre pesquisas motivadas pela atual
situao escolar francesa diante da macia entrada de imigrantes no pas, realizadas com a
finalidade de conhecer os efeitos dos processos tnicos sobre os resultados escolares dos
filhos dos imigrados, assim como para a produo ou no do sucesso escolar. A terceira parte
do livro, intitulada Quadro escolar e processos tnicos: discusses. trata particularmente dos
efeitos dos processos tnicos sobre os resultados escolares, tais como o sucesso escolar e a
escolha do estabelecimento. Por se tratar de temas complexos, que se tornaram objeto de
estudo na Frana, somente a partir da dcada de 1990 os autores estabelecem algumas
aproximaes a respeito dos resultados das pesquisas realizadas. Entre elas, destacamos
algumas que vo ao encontro das hipteses iniciais que estabelecemos para o nosso trabalho,
especialmente a questo do sucesso escolar. Consideram os autores que os alunos e famlias
de imigrados, voltados para projetos de mobilidade social por meio do sistema escolar,
tornam-se mais eficientes que outros para defender o que percebem como seu
interesse(LORCERIE, 2003, p.175). Portanto, a identidade tnica torna-se um recurso possvel
de mobilizao para o sucesso escolar.
A Negociao da Identidade Nacional. Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade
no Brasil (2001), de Jeffrey Lesser, contribui para refletir sobre o processo de insero dos
japoneses e descendentes na sociedade nacional, processo este que atravessado, muitas
vezes, por tenses de carter racista acompanhadas de preconceito e de criao de
esteretipos. A negociao das identidades constatada pelo autor durante todo o perodo
abordado, desde o incio do processo imigratrio at os dias atuais, no qual as posies
foram sendo expostas e revistas conforme a reao dos diferentes pblicos. Seu resultado foi
que tanto a sociedade majoritria brasileira quanto as identidades ps-migratrias foram
mantidas em um estado de constante fluxo, de forma que a homogeneizao da identidade
nacional e cultural jamais veio a ocorrer (LESSER, 2001, p. 23). Observa o autor, tambm,
11
como a identidade negociada entre os descendentes desde a dcada de 1950, reconhecendo a
partir desse perodo a formulao de uma identidade mltipla: muitos mestios rejeitam
suas origens japonesas quando em situaes sociais, embora, na esfera econmica, quer se
trate de candidatar-se a um emprego ou de oferecer servios sexuais, prevalea a crena de
que ser japons representa uma vantagem importante (LESSER, 2001, p. 297). Trata-se de um
estudo que envolve as diversas minorias presentes na sociedade nacional (rabes, palestinos,
chineses, coreanos), entretanto atribui relevo negociao das identidades entre os
descendentes japoneses e as demais etnias, oferecendo contribuies importantes para
refletirmos sobre a continuidade e a permanncia dessas relaes entre japoneses e seus
descendentes na sociedade nacional.
Com base nessas consideraes, partimos da hiptese de que as caractersticas
culturais por meio das quais os descendentes de japoneses se auto-designam tm pouco a ver
com as utilizadas pelos grupos tnicos de origem. Mesmo admitindo-se que os descendentes
dem grande valor educao e que a estrutura familiar e as prticas de socializao tenham
contribudo para o cultivo de hbitos de trabalho propcios disciplina escolar e ao xito nos
estudos, entendemos que essas prticas encontram-se menos associadas ao interesse pela
preservao das tradies japonesas originais que s circunstncias histricas em que se opera
o esforo de integrao e de ascenso desse grupo na sociedade brasileira.
Metodologia
O material explorado consistiu em um corpus formado por relatos da trajetria escolar
colhidos por meio das entrevistas semi-estruturadas, de grupos de pais e alunos pertencentes a
famlias de origem japonesa, obtido do quadro de uma pesquisa realizada entre 2005 e 2008,
na cidade de So Paulo. Foram entrevistados 49 indivduos, entre pais e filhos, diretores e
professores.
Os contatos iniciais foram feitos por meio de uma rede de informaes, que se iniciou
com a indicao de amigos, os quais nos levaram a alguns ex-alunos e pais, da resultando
seis entrevistas realizadas. Ao dispormos das informaes do Banco de Dados, chegamos aos
demais entrevistados, que foram localizados por meio da Internet. A partir do contato com os
alunos, chegamos aos pais. Em decorrncia da compatibilidade dos horrios e por sugesto
dos prprios entrevistados, os encontros deram-se geralmente nos locais de trabalho do
pesquisado. As situaes de entrevista nos locais de trabalho possibilitaram a compreenso
12
dos elementos valorizados em determinados espaos, como, por exemplo, a posio do
pesquisado na hierarquia da empresa, bem como a construo de sua auto-imagem enquanto
ex-aluno do Colgio Bandeirantes. Certamente, a leitura dessas imagens foi relevante para as
anlises. Ocasionalmente, os encontros foram marcados em suas residncias.
Posteriormente, com o uso do Banco de Dados, os entrevistados foram classificados
por perodos de matrcula no colgio. Dessa forma, os alunos foram selecionados segundo um
critrio bsico: terem concludo o ensino mdio no Colgio Bandeirantes. Acreditamos que os
resultados dessa investigao com um grupo particular de alunos, considerados em suas
peculiaridades tnicas, sociais e escolares, possam servir para a anlise dos outros
descendentes de japoneses do mesmo estabelecimento de ensino, todavia observamos que se
trata somente de uma amostra piloto que no tem carter representativo, conforme ser
exposto no Captulo III.
Cada entrevista ocupou aproximadamente duas horas. coleta de dados seguiu-se a
anlise qualitativa dos depoimentos e os instrumentos de pesquisa, alm do gravador
(utilizado mediante autorizao do entrevistado), incluram uma sugesto de roteiro, que
sofreu alteraes no decorrer do processo. A pesquisa de campo teve duplo sentido:
inicialmente, como uma instncia de verificao da problemtica e posteriormente, conforme
a participao dos entrevistados, como ponto de partida para o levantamento de novas
problemticas.
Em geral, as questes que acompanharam o Roteiro da Entrevista (ANEXO) buscaram
seguir um movimento interpretativo que partisse do particular para o geral. Conforme a
interao com o entrevistado (local da entrevista, caractersticas do prprio pesquisado), o
roteiro da entrevista foi alterado. Usualmente, iniciamos a entrevista com a retomada dos
tempos do colgio, indagando sobre suas experincias com o ensino, com os professores, os
colegas, funcionrios, coordenadores e direo da escola. Nessa etapa, procuramos dar mais
tempo para a exposio espontnea do entrevistado, especialmente relativa s lies de vida
recebidas no colgio, com a finalidade de apreender sua viso sobre a escola e o mundo. Em
seguida, passamos para o item Escolha da escola, com o objetivo de, por meio de suas
apreciaes, detectar a concordncia entre a escola idealizada e a escola cursada. Depois, com
a finalidade de traarmos sua trajetria scio-profissional e a dos pais, buscamos informaes
a partir da origem scio-econmica, local de residncia de origem e consumo cultural.
Com o propsito de (re)construir trajetrias de vida escolar e profissional, as
entrevistas iniciadas em 2005 remodelaram-se continuamente, conforme a (re)avaliao das
experincias e das reflexes suscitadas pelas trocas com os participantes, cuja diversidade de
13
posies, de idades e de pensamentos exigiu tanto a reformulao das abordagens das
questes quanto uma postura mais atenta aos detalhes de algumas exposies, que se
revelavam como experincias e reflexes h muito reprimidas e reservadas.
O trabalho de explicitao, que se seguiu ao das entrevistas, revelou-se
simultaneamente gratificante e doloroso diante da complexidade do tema e o necessrio
cuidado com suas transcries. Conforme adverte Kaufmann (1996, p.7), logo na introduo
do seu livro em que tece suas reflexes sobre os significados de uma entrevista
compreensiva, em princpio, a entrevista apresenta-se como um mtodo econmico e de fcil
acesso, uma vez que se imagina que basta ter um pequeno gravador, um pouco de audcia
para bater s portas, engendrar uma conversao em torno de algumas perguntas articuladas
previamente e extrair os dados de informaes considerados necessrios para se desenvolver
um trabalho. No entanto, ao contrrio da improvisao, o pesquisador como um arteso
intelectual que constri sua teoria e seus mtodos, fundamentando-se em suas pesquisas.
Alm dessas questes, h o sentimento de inquietao experimentado no momento de tornar
pblicas as conversas privadas que nos foram confiadas que nos orientou no processo da
transcrio dos depoimentos e de sua insero no corpo do trabalho, evitando-se exp-las aos
desvios de sentido. Para esse cuidado, baseamo-nos em Bourdieu (2003, p. 10), observando as
condies sociais das quais o autor do discurso o produto, assim como sua trajetria, sua
formao e suas experincias profissionais.
A parte inicial da pesquisa, fundamentada no levantamento quantitativo dos alunos,
apoiou-se no Banco de Dados Colgio Bandeirantes, 2004, que, ao longo de 2008, passou
por uma reviso e por complementaes.
Histrico da criao do Banco de Dados
A organizao do Banco de Dados iniciou-se em 2002, mediante um trabalho conjunto
entre a pesquisadora e o Departamento de Informtica do Colgio Bandeirantes, o qual surgiu
da inteno de avaliar estatisticamente o montante de alunos de etnia japonesa que compunha
a populao escolar do colgio desde a sua fundao, em 1934. O levantamento e a digitao
dos dados contou com a participao de funcionrios da Secretaria do colgio e do
Departamento de Informtica. importante observar que o trabalho surgiu da iniciativa da
pesquisadora, mediante o apoio do Coordenador de Histria.
A necessidade de criar um arquivo permanente on-line e de recuperar rapidamente os
documentos legais dos ex-alunos comps-se das seguintes etapas:
14
Triagem de todos os documentos, em papel, disponveis nas pastas individuais de cada
ex-aluno.
Micro-filmagem de todos os documentos oficiais do Colgio Bandeirantes. Nesse
processo, foi criada uma codificao com o nmero dos documentos microfilmados,
ano de ingresso, ano de sada do Colgio, nmero do filme e flash.
Todos esses dados foram cadastrados no sistema de gesto escolar PROGESC.
Usando-se um aplicativo via WEB/Browser, tornou-se possvel fazer busca pelo nome
do ex-aluno e recuperar essas informaes. Com equipamento especfico, recuperam-
se pelo nmero do filme os documentos impressos quando necessrios.
Essa base de dados, disponvel no Banco de Dados Oracle, foi exportada para a
planilha de dados Excel (Windows), em que foi classificada por ano e fornecida uma
tabela para a identificao dos alunos de origem japonesa.
Insero dos ex-alunos japoneses na planilha do Excel, feita pela equipe do
Departamento de Informtica.
Com a base de dados completa em Excel, foi possvel fazer a distribuio das
ocorrncias (Origem Japonesa) por ano e, assim, criar uma visualizao grfica desses
dados.
Setenta anos da histria do colgio, de 1934 at 2004, foram percorridos ao
examinarem-se os documentos de matrcula dos alunos ou a relao dos nomes em arquivos
informatizados. A identificao dos descendentes foi feita por meio dos sobrenomes dos
alunos. De 1934 at 1996 utilizamos os dados do arquivo morto, considerando o ano de
ingresso e de sada dos alunos. Contamos, para isso, com o auxlio de funcionrios da
secretaria do colgio. A partir de 1996, passamos a utilizar a relao de alunos ativos que
constavam em arquivo magntico e a dispor, tambm, dos livros de chamada e de notas.
Como no foi possvel identificar o ano de entrada dos alunos em alguns casos, adotou-se
como critrio, para fins de organizao e uniformizao dos procedimentos, o ano de sada, ou
seja, o da concluso do ensino mdio. Em geral, a identificao prosseguiu sem dificuldades,
com exceo aos casos dos alunos nascidos de casamentos intertnicos ou, por razes de
grafias, quando se tornou necessrio recorrer s fichas de matrculas para buscar os dados que
faltavam.
15
O resultado foi a organizao de um volumoso acervo documental que permitisse tanto
a facilidade de alimentao quanto de navegao por parte do usurio. Para a presente
pesquisa, o Banco de Dados constituiu-se numa fonte documental que continua a ser
vasculhada, indagada e analisada. A partir dele extramos informaes que serviram de ponto
de partida para a organizao e classificao dos dados necessrios ao atual estudo e
investigao. O acervo documental reunido mostrou que:
1. do total de 46 421 alunos que se matricularam no colgio desde sua criao em 1934,
at 2004, 8877 eram descendentes de japoneses (19,13%). A mdia de alunos novos
(total das etnias) a cada ano foi de 664 e a de descendentes foi de 127;
2. entre 1983 e 1999, a mdia de descendentes de japoneses atingiu 29,71% do total de
alunos;
3. a partir de meados da dcada de 1970, a freqncia de descendentes aumentou
significativamente; se em 1975, a populao de alunos da etnia japonesa correspondia
a 6,78% do total de matriculados, em 1992 j representava 32,74%;
4. A questo da participao feminina tambm se fez notar j nos primeiros tempos de
funcionamento do colgio; em 1944, destacava-se uma mulher entre os trs alunos
descendentes e, em 1945, entre 12 alunos descendentes matriculados, seis eram
mulheres.
Conforme os dados do Censo Demogrfico de 2000 IBGE, a populao nikkey do
estado de So Paulo era composta de 694.495 pessoas, correspondentes a 1,9% da populao
do pas3. Se considerarmos que 42,8%
4 ou 296.815 nikkeys encontravam-se no municpio de
So Paulo, podemos imaginar que cerca de 0,2%, ou 599 desses nikkeys, encontravam-se
estudando no Colgio Bandeirantes. Se tivssemos como parmetro a totalidade da populao
em idade escolar da poca, esse percentual aumentaria substancialmente.
O perfil dos entrevistados
Estudar trajetrias escolares de pessoas que se encontram atualmente na faixa etria de
40 anos significa procurar saber o que ocorreu com elas h quase trinta anos, quando
ingressavam na educao bsica, ou seja, na dcada de 1970. Comparar suas trajetrias com
3 Cf. IBGE, Censo Demogrfico 1960/2000. In: BELTRO, SUGIHARA, KONTA, 2008, p. 58 e 59.
4 Cf IBGE, Censo Demogrfico 2000. In: PEREIRA e OLIVEIRA, 2008, p. 22-53.
16
as de seus pais significa recuar um pouco mais no tempo, chegando-se a 50, 60 e 70 anos
atrs, ou seja, nas dcadas de 1930 e 1940. Portanto, ao tomarmos como referncia esses
grupos de alunos egressos do Colgio Bandeirantes nas dcadas de 1950 a 1990, temos o
propsito de percorrer as trajetrias sociais e escolares que as geraes de descendentes
japoneses conheceram a partir do trmino da Segunda Guerra Mundial, particularmente no
estado de So Paulo.O recorte temporal teve como parmetro a inteno de associar a
quantidade da demanda com as peculiaridades do campo educacional correspondentes ao
perodo histrico abrangido, buscando articular as prticas adotadas pelas famlias s
particularidades do momento social vivenciado por elas.
Sem dvida, ao depositarmos nosso interesse em investigar alunos egressos do
Colgio Bandeirantes, delimitamos nosso campo de pesquisa a uma parcela da populao de
escolarizados que no corresponde ao universo dos japoneses e descendentes que residem
nesse pas. Antes, trata-se de um estudo voltado aos grupos que tiveram a possibilidade de
optar, entre os diversos tipos de escola e de ensino, pelo que melhor correspondesse aos seus
objetivos.
Apesar de notarmos uma semelhana, entre os egressos do Colgio Bandeirantes,
quanto s origens socioeconmicas, o exame de sua trajetria levou-nos a identificar algumas
diferenas nas formas de escolha de seus destinos, permitindo-nos antecipar uma observao
de que a condio de classe, ou seja, a posio que ocupam no interior das relaes
econmicas no seria suficiente para oferecer os aportes necessrios para anlise. Outros
fatores indubitavelmente interferem na produo das condies de sua existncia, alm das
econmicas. A fim de buscar as bases empricas do sucesso escolar desses grupos de alunos
de origem japonesa, optamos por fundamentar as hipteses de interpretao da questo a
partir das referncias de Pierre Bourdieu. Justifica-se a opo em Bourdieu pelas
possibilidades de interpretaes oferecidas pelo autor por meio dos conceitos habitus,
geraes, famlia, capital cultural e capital social, conforme sero desenvolvidos no decorrer
dos captulos.
Na essncia, buscamos apoiar-nos em uma abordagem que leva em conta o contexto
histrico e a posio dos sujeitos nesses espaos, a fim de conhecer as razes das prticas e
das formas de pensar, sentir e agir. Percorrer a histria do Colgio Bandeirantes atravs de
recortes temporais uma forma que reconhecemos ser importante, para comear a descrever
as trajetrias escolares de grupos de descendentes de japoneses que passaram por aquela
instituio escolar. Situ-los como alunos ou ex-alunos da instituio uma forma de
conhecer seus valores, seus princpios e suas prticas, assim como entendemos ser necessrio
17
conhecer o espao do ensino paulista para entender as trajetrias da instituio e das
mudanas pelas quais passou desde sua criao. Trata-se de uma forma de apresentar o
contexto para se explicar os fatos e dar sentido s prticas.
18
CAPTULO I. O LUGAR DA ESCOLA NA VIDA DOS DESCENDENTES
JAPONESES E A ORGANIZAO DO ESPAO DO ENSINO PAULISTA
Mostrar interesse em estudar as trajetrias escolares e profissionais de grupos de
descendentes de japoneses significa indagar a natureza do renitente discurso relativo ao
empenho pela educao escolar atribudo a eles, o que pode ser feito por meio de exame do
lugar ocupado pela escola e pela famlia na vida desses grupos. Isso requer tambm um
trabalho de reconhecimento das imagens construdas pelos referidos grupos em torno da
escola e da famlia nos diferentes momentos de sua insero na sociedade brasileira.
Neste captulo buscamos, ento, analisar as vinculaes que os japoneses e seus
descendentes estabeleceram com a escola em dois momentos especficos de sua histria no
pas: o perodo anterior guerra e o perodo que se sucedeu ao trmino dela. Nessa
perspectiva, pressupomos que as diferentes posies ocupadas pelos japoneses no espao da
sociedade nacional antes e depois da guerra, em decorrncia das mudanas na distribuio de
bens e de servios, comandaram suas representaes sobre a escola e o papel desempenhado
por ela na construo das trajetrias escolares e profissionais de seus filhos. Desse modo,
procuramos examinar os diferentes contextos histricos que tanto modificaram a vida das
famlias japonesas, quanto interferiram na construo de suas representaes sobre a escola.
Numa primeira etapa da anlise a ser efetuada neste captulo, procuramos expor as
relaes entre as famlias dos imigrantes japoneses e a escola, enfocando as mudanas e as
permanncias pr e ps-guerra. Na segunda etapa, a fim de situar o perodo posterior ao
conflito e considerando que o centro do nosso trabalho seja o estudo das trajetrias escolares
de grupos de descendentes que se prepararam para as carreiras universitrias mais seletivas,
buscamos esboar o espao do ensino no pas,no qual se encontravam organizadas as escolas
secundrias e os exames vestibulares, responsveis pelo acesso aos cursos superiores.
19
1. Um verdadeiro osis dentro da roa: o lugar da escola na vida dos primeiros
descendentes de japoneses.
Por onde vou comear? Vou comear pela roa porque naquela poca o meio
rural era muito atrasado. Pouqussimas pessoas tinham o curso primrio.
Principalmente meus pais que lidavam com trabalhadores diaristas para tocar a
lavoura, tiveram condies de viver esse contraste...normalmente [os
trabalhadores diaristas] eram itinerantes e analfabetos e mesmo os sitiantes, os
fazendeiros...agora o que mais tarde fiquei analisando foi que graas a essa
cultura milenar japonesa, e como meus pais j tinham o curso primrio, aonde
eles iam sempre estavam muito a frente; ento a convivncia e a orientao
familiar foram muito significativas e importantes. Depois de formado, e
depois de muito tempo, que a gente comea a verificar as ligaes que temos
com as preocupaes culturais. [...] a fonte est l... naquela cultura familiar
que eles preservaram e que trouxeram para c. A gente notava que do ponto de
vista cultural vivamos como um verdadeiro osis dentro da roa... s
depois da guerra ... em toda minha vida na roa at 15, 16 anos... a tecnologia
entrou muito depois... quando eu tinha 14, 15 anos meus pais comearam a
comprar trator... isso mostra a cultura do pas na poca. [...]. (JN, 2007 grifos
nossos)
O depoimento de JN, 74 anos, advogado, brasileiro, contribui para mostrar a
experincia acumulada no curso de uma trajetria que teve como origem a histria de seus
pais, imigrantes que se instalaram no Brasil em 1918. Da sua sala de trabalho, em uma
Universidade privada de grande prestgio na capital, onde ocupa um cargo no setor jurdico da
Reitoria, h 47 anos, JN relatou-nos a trajetria de sua vida e da famlia, durante
aproximadamente duas horas. A percepo do contraste de culturas e de uma identidade
distinta encontra-se muito evidente em suas lembranas da infncia e da adolescncia vividas
na roa. A distncia do tempo, as disposies incorporadas e a posio que ocupa atualmente
na Instituio de Ensino Superior so partes importantes de um esquema de pensamento por
meio do qual avalia positivamente os investimentos escolares realizados pelos pais e a
importncia da herana cultural familiar.
JN fez parte da gerao de descendentes de japoneses que nos anos 60 conquistou seu
diploma superior5. Em 1961, ele se formou pela Faculdade de Direito da Universidade de So
Paulo (USP) e o filho caula de uma famlia de 8 irmos, em sua grande maioria tambm
formados pela USP. Com exceo ao primognito, que chegou com apenas 1 ano,
acompanhando seus pais, os demais nasceram no Brasil. Ao longo de uma trajetria como
5 Em Sakurai (1995, p. 147), encontramos a relao de japoneses e descendentes que nos anos 40 haviam
concludo cursos superiores. Entre os que se formaram pela Faculdade de Direito-USP, encontram-se
relacionados doze formandos.
20
colonos, meeiros, arrendatrios e depois como proprietrios de terras, percorrida no entorno
das cidades de Ribeiro Preto (SP) e Uberaba (MG), bem como da ferrovia Mogiana, uma das
regies pioneiras e de grande sofrimento na histria da imigrao japonesa, onde no tinha
nibus, s cavalo... na cidade no tinha nibus, os pais de JN, auxiliados pelo filho
primognito, conseguiram, no decorrer dos anos 50, realizar o sonho de tornar os filhos
doutores.
Este trabalho tem interesse em investigar trajetrias semelhantes, buscando inquirir de
que forma pessoas como JN, seus filhos e irmos, enquanto descendentes de imigrantes
japoneses, conseguiram enfrentar as dificuldades inerentes ao processo de adaptao e
integrao, prprio dos movimentos imigratrios. A pesquisa visa tambm chegar s posies
que ocupam atualmente na sociedade brasileira. Primordialmente, temos o interesse de
examinar as estratgias educativas adotadas pelas famlias de origem japonesa, num espao
escolar que se manteve restrito a uma pequena parcela da populao nacional durante muitas
dcadas, estratgias estas que se transformaram em trajetrias de vida bem sucedidas.
Colocados como imigrantes a partir de 1908, a trajetria percorrida pela maioria dos
japoneses apresentou semelhanas com a histria da famlia de JN. Em grande parte,
lavradores de origem e escolarizados, alm de imigrantes, portanto preocupados com a
poupana rpida para concretizar o sonho do breve retorno para a terra natal, eles viveram,
nos tempos antecedentes Segunda Guerra Mundial, um verdadeiro osis dentro da roa e
aonde eles iam sempre estavam muito frente, conforme o depoimento de JN.
Indubitavelmente, os ingredientes frteis desse osis na roa foram suas formas distintivas
de pensar, sentir e agir, que encontravam razes na cultura familiar e escolar incorporadas no
pas de origem.
No por acaso que a expresso osis na roa empregada por JN. Na verdade, a
metfora empregada exprime uma interpretao sobre a presena dos japoneses no Brasil no
perodo que antecedeu Segunda Guerra Mundial, aspecto que nos remete aos incios do
processo imigratrio japons para o Brasil. Ao entendermos a imigrao dos nipnicos para o
Brasil como parte de uma estratgia da expanso do capitalismo japons que tomava corpo no
sudeste asitico desde os fins do sculo XIX (VIEIRA, 1973; SAKURAI, 1999 e 2000; DEZEM,
2005), preciso destacar que ao entrarem no Brasil esses imigrantes vieram imbudos do
esprito japons6, ou seja, da idia da superioridade racial e cultural de seu povo. Nessa
6 Vale observar que os imigrantes que se encontravam radicados no Brasil na dcada de 1930 vieram, em sua
maioria, orientados por uma poltica educacional nacionalista herdada da Restaurao Meiji (1868). Naqueles
quadros, erigia-se o esprito japons, fundamentado no bushido (cdigo de conduta do samurai que
21
perspectiva, smbolos, mitos e lendas foram evocados nas escolas primrias japonesas, desde
a Restaurao Meiji (1868), a fim de destacar o povo japons como superior, diferente dos
demais.
Considerando-se herdeiros de uma histria e cultura milenares e portadores de uma
formao escolar bsica obrigatria, adquirida em seu pas de origem, os japoneses no Brasil
tanto encontraram motivos para se distinguir da maioria da populao brasileira que no tinha
a escolarizao primria quanto mantiveram disposies para se manter em grupos fechados7.
Nesse contexto, poderse-ia indagar at que ponto esses imigrantes estariam interessados na
integrao no novo meio, j que portavam disposies semelhantes s destacadas por Sakurai
(1995),
Havia o orgulho de ser japons e um certo desprezo pelos gaijin (todos os no
japoneses) e por seus costumes. Os japoneses manifestavam o desejo de se
diferenciar dos gaijin, imbudos desse orgulho, o que se manifestava em todos os
setores de suas vidas. Nos primeiros anos de sua vivncia no Brasil, em particular,
consideravam-se muito superiores aos primeiros vizinhos e companheiros de
trabalho nas fazendas de caf. Isto criou uma tendncia a se agruparem, no
quererem se misturar e resitirem ao aprendizado da nova lngua, distanciando-se
mais dos brasileiros. (p.140).
Tomando-se o imigrante sob esse ponto de vista, podemos aproximar uma
interpretao ao afirmarmos que sua rpida mobilidade espacial e social na rea rural, e desta
para as cidades, encontra explicaes no conjunto das disposies criadas a partir da posio
de destaque assumida naqueles momentos iniciais de sua instalao no pas, e que encontrou
na escolarizao incorporada um dos seus elementos de distino. Consideramos como
exemplos dessas disposies o que Truzzi (2008,p. 78) apresenta como fatores de coeso
entre os japoneses no Brasil: [os japoneses] sobressaram-se pela proporo de alfabetizados,
compreendia a lealdade, a dignidade e a honra), como marco de identificao nacional. A escola deveria educar
o indivduo na condio de sdito que reconhecia sua dvida para com a famlia, o Estado e a coletividade e o
currculo escolar deveria priorizar os ensinamentos da moral (Shushin) e a venerao dos quatro smbolos
nacionais: hino (kimi ga y o), a bandeira, os retratos imperiais e o Kyoiku Chokug (Rescrito Imperial da
Educao) de 1890. Este documento acabou sintetizando os princpios e as virtudes da formao educacional dos
jovens, considerados fundamentais para a uniformizao ideolgica da nao e para a propagao da poltica nacional kokutai. A formao escolar tomava como base os fundamentos da tica do cidado para com o
Estado (a lealdade ao Imperador) e para com a famlia (devoo filial), e da harmonia entre governantes e
governados. Identificava-se a nao como a grande famlia. Vale observar que esses princpios constituem a
base do que conhecemos atualmente como esprito japons. 7 Os desdobramentos dessa fase inicial da instalao foram as medidas restritivas aplicadas durante o Estado
Novo (1937-45), atravs de um projeto nacionalista que visava a combater a considerada inassimilabilidade dos
estrangeiros que se tornavam uma ameaa integridade nacional do pas, como repercusso dos intensos debates
na Constituinte de 1934 sobre o chamado perigo amarelo. A respeito do perigo japons ou perigo amarelo
ver SAKURAI, 2000; LESSER, 2001; HATANAKA, 2002; DEZEM, 2005.
22
72, 9%; possibilitou ler jornais, ter acesso a manuais tcnicos, freqentar cursos para a
formao de cooperativas e estudar e com isso ficaram mais coesos.
A partir desses dados, o que se apresentava como mais inslito ao olhar dos imigrantes
japoneses era a precariedade das condies escolares encontradas no Brasil. Basta, para isso,
observar que quando, em 1934, foi institudo o ensino obrigatrio no pas, apenas 36,7% das
crianas em idade escolar freqentavam as escolas primrias no Estado de So Paulo.
Segundo Bittencourt (1990, 125), o que chama a ateno para o nmero reduzido de alunos
a falta de escolas e o estado de pobreza da populao. Nesse contexto, os jornais japoneses
que circulavam entre os imigrantes contribuam para acentuar a preocupao com os estudos:
Ainda que se tornem prsperos economicamente, se no cuidarem da educao dos filhos,
eles se tornaro uns caboclos. Do futuro dos nossos filhos depende o nosso tambm (Jih
Notcias do Brasil, 01/01/1932, p. 4 grifo nosso). A representao negativa dos caboclos
produzia reaes em cadeia, que tanto estimulavam as resistncias integrao quanto
introjetava no imaginrio o receio dos filhos tornarem-se meros trabalhadores braais,
alertando os pais de que a educao dos filhos, mesmo diante das dificuldades, no poderia
ser relegada. Portanto, ao lado da luta pela sobrevivncia, que inclua o rduo trabalho na
lavoura e o perigo da malria, a escolarizao dos filhos passou a se constituir numa das
preocupaes centrais, mesmo que nem sempre bem sucedida.
Algumas peculiaridades da imigrao japonesa contriburam para fundamentar essas
preocupaes e tambm para oferecer respostas e orientaes. Em primeiro lugar, diante da
exigncia da imigrao em grupos de famlias, a entrada de crianas tornou-se expressiva,
especialmente no segundo perodo do processo imigratrio, entre 1924 e 1941. Em segundo
lugar, preciso observar o carter estatal assumido pela imigrao japonesa para o Brasil.
Para incentivar a instalao dos japoneses em ncleos coloniais, o governo de Tkio tanto
ofereceu apoio produo agrcola e sericicultura, voltadas para o mercado japons, quanto
subsidiou a criao de escolas, alm de outros servios. (VIEIRA, 1973; SAKURAI, 1999 e
2000). Takeuchi (2202, p. 59) observa que, em Lins (SP), um dos ncleos sob orientao
japonesa, encontravam-se servios tais como agncias de correio, associao esportiva, jornal,
tipografia, escolas, casa bancria, cooperativas, clnica, livraria, farmcias e igrejas, que
garantiam a autonomia aos japoneses, os quais no precisavam depender dos recursos
brasileiros.
Em 1927, sob a iniciativa do consulado japons de So Paulo, traou-se um plano de
educao cujo objetivo era a dupla escolarizao das crianas, que deveria resultar da
combinao entre o aprendizado do idioma ptrio, a ser recebido numa escola etnicamente
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orientada, e o ensino da lngua portuguesa, numa escola brasileira, como forma de adaptao
ao novo meio. Para executar esse plano, o governo japons criou associaes educacionais
que passaram a apoiar as iniciativas dos imigrantes para criar suas prprias escolas. Na grande
maioria das vezes, para responder necessidade da dupla escolarizao, diante das
precariedades que afetavam a situao escolar no pas, no mesmo prdio construdo pelos
imigrantes passou a funcionar tambm, em horrio distinto, ,nos moldes do ensino brasileiro,
a escola primria ,com a finalidade de atender populao dos ncleos e de suas adjacncias.
No entanto, fora da rea de incentivos japoneses, a perspectiva de se construir uma
escola, bem como a de assegurar sua instalao e funcionamento era muito restrita. Na
condio de imigrantes, a oportunidade de oferecer uma escolarizao formal aos filhos,
freqentando paralelamente a escola japonesa e a escola brasileira, dependeu, sobretudo, da
disponibilidade de recursos da famlia e do local em que se instalavam.(SHIBATA, 1997). Na
condio de colonos ou mesmo de arrendatrios tornava-se mais difcil, especialmente se
habitavam reas afastadas das concentraes de japoneses. O irmo primognito de JN d-
nos idia do grau de isolamento em que viviam: eu me lembro, em 1923, quando morreu o
imperador, morava perto de Conquista, regio de Minas Gerais...e a teve homenagem, eu me
lembro...tinha mais de 10 famlias japonesas... mas tudo separado por kilmetros. Alm
disso, naquele tempo, 50 anos atrs, no tinha escola na zona rural.
As dificuldades provocadas pelo isolamento contribuem para explicar o nmero dos
que restaram sem escolarizao, conforme consta na tabela seguinte.
Tabela 1.1 - Imigrantes japoneses sem escolarizao, em 1958.
Faixa etria Nmero %
25-34 anos 17 441 7,6
35-44 anos 5 382 11,6
45-54 anos 1 276 27,8
Fonte: Suzuki, 1969, p. 47.
O quadro dos sem escolarizao, tanto para imigrantes (3,2%) quanto para
descendentes (4,4), encontra explicao em Suzuki (1969, p.47), para quem os grupos entre
35 e 54 anos, constitudos de imigrantes que chegaram ao Brasil antes da idade escolar, no
perodo pr-guerra, encontraram mais dificuldades para freqentar escolas devido ao quadro
24
desfavorvel encontrado na fase inicial de sua instalao, decorrentes de problemas de
adaptao associados s precariedades de ensino encontradas no pas.
No resta dvida, portanto, que a possibilidade de se dedicar ao estudo, em perodo
integral, freqentando escola japonesa e escola brasileira, tornou-se privilgio das crianas e
adolescentes que j viviam em ncleos coloniais, ou daqueles que se beneficiaram por se
instalarem como colonos, meeiros ou arrendatrios, prximos a essas reas de concentrao
de japoneses. preciso esclarecer , todavia, que nem todos os imigrantes se instalaram desde
o incio como colonos. Uma pequena parcela de imigrantes (5%) conseguiu entrar j com
pequenos lotes adquiridos por meio de compra intermediada por companhias de colonizao,
que formaram ncleos no Vale do Ribeira e em cidades como Bastos, Pereira Barreto, Sete
Barras (SAKURAI, 2004). No entanto, quando no se avizinhavam dessas alternativas, a
soluo era a de colocar os filhos em escolas isoladas das reas rurais ou nos grupos escolares
das cidades, quando estudar passava a significar, ento, ter de enfrentar longas caminhadas,
de 10 a 12 km. Os resultados dessa maratona escolar, com diferentes caractersticas, podem
ser evidenciados no Censo Demogrfico da colnia japonesa, de 1958.
Tabela 1.2 - Tipo de escola freqentada no Brasil por geraes
Imigrantes Descendentes
Nmero 25 126 203 335
Escola brasileira 79,8 88,1
Escola brasileira e escola japonesa 15,5 11,2
Somente escola japonesa 4,7 0,7
Fonte: SUZUKI, 1969, p. 45.
A anlise desses resultados permite algumas consideraes. Em primeiro lugar, apesar
da preocupao com a transmisso da educao japonesa aos filhos, declarada pelas
autoridades japonesas, por meio das iniciativas do consulado japons, assim como das
associaes educacionais e veiculada pelos jornais, tal iniciativa no se efetivou para a grande
maioria das famlias,considerando-se a freqncia escola japonesa. Quanto ao tipo de escola
freqentado, a Tabela 1.2 mostra-nos que a maioria dos descendentes (88,1%) freqentou
somente escolas brasileiras; 11,2% cursaram paralelamente a escola brasileira e a escola
japonesa; e um nmero bem reduzido, apenas escola japonesa (0,7%). Pressupe-se, desse
modo, que a educao informal, por meio das relaes familiares e de trabalho, deve ter
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desempenhado papel importante nesse processo de transmisso, para a grande maioria dos
descendentes que freqentou apenas a escola brasileira. Em segundo lugar, a distribuio
espacial das famlias foi a grande determinante do tipo de escolarizao destinado aos filhos.
A escola japonesa atendia ao pblico que vivesse no entorno dela, independentemente de
serem filhos de colonos ou filhos de proprietrios. Localizados em rea de menor
concentrao japonesa, os pais de JN, por exemplo, aps cinco anos no Brasil, quando j
haviam se tornado pequenos proprietrios, escolheram matricular os filhos em escolas
brasileiras, optando pela instalao destes nas cidades.
Os dados do Censo de 1958 permitem-nos afirmar, portanto, que os benefcios do
plano de educao traado pelo consulado japons atingiram apenas uma pequena parcela das
crianas (11,2%) e de suas famlias e que as demais, sujeitas prpria sorte, traaram os
destinos escolares dos filhos conforme suas possibilidades e disposies para estabelecerem
planejamentos prprios. Excludos daquele sistema escolar japons constitudo no Brasil,
88,1% dos descendentes cresceram e foram escolarizados, em sua grande maioria, nas escolas
brasileiras, impossibilitados de acionar junto s autoridades e s associaes educacionais
japonesas ,a seu favor, as reservas do capital de relaes sociais e das vantagens resultantes de
posies privilegiadas ocupadas pelas famlias dos 11,2% das crianas. Contudo, a exemplo
dos primos pobres analisados por Srgio Miceli (1979, p. 26-27), muitas das famlias dos
primos pobres japoneses, por meio de estratgias que buscaram priorizar a escolarizao,
mesmo que mais tortuosas, no deixaram de assegurar que seus filhos chegassem a se tornar
doutores. Tal fato constitui-se num dos objetos de anlise neste trabalho.
Tabela 1.3 Nvel de educao da populao de descendentes de 15 anos ou mais
Faixa de
idade
Ano de
nascimento
Nmero Primrio
%
Secundrio ou
acima %
Escola
japonesa
15 - 19 1939-1943 47 475 60,9 37,8 0,3
20 - 24 1934-1938 36 496 68,5 29,2 0,6
25 - 29 1929-1933 20 059 75,8 20,9 0,8
30 - 34 1924-1928 9 623 78,7 16,9 1,6
35 - 44 1914-1923 8 666 78,7 12,2 2,5
45 ou mais At 1913 365 69,6 14,2 2,2
Fonte: Conforme dados do Censo Demogrfico da Colnia Japonesa de 1958. In: Suzuki, 1969, p.47.
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Notamos a porcentagem restrita daqueles que freqentaram a escola japonesa em todo
o perodo. Dessa forma, observamos que a partir dos anos 30, as restries ao ensino da lngua
japonesa, conforme o Cdigo de Educao no Estado de So Paulo e mais tarde, em 1938, as
leis da nacionalizao do ensino, contriburam para a reduo do fluxo de alunos para essas
escolas.Nesse sentido, a reduo da freqncia de alunos a partir de 1934, no ensino primrio,
pode estar indicando, pois, o aumento de indivduos sem escolarizao. Observa-se, ainda,
que o nvel de educao aumenta com a reduo das idades para os descendentes,
especialmente em direo ao ensino secundrio, indicando a preocupao das famlias com a
continuidade dos estudos dos filhos, tendo em vista o carter propedutico desse nvel de
ensino, em especial para o perodo que estamos tratando. Vale observar que a freqncia s
escolas secundrias no era comum para a poca, especialmente se considerarmos o quadro
rarefeito de ofertas desse nvel, conforme iremos abordar mais adiante.
Superficialmente, os imigrantes de origem japonesa aparentavam uma certa
uniformidade em funo de seus traos fsicos, da nacionalidade e lngua comuns, dos hbitos
alimentares, dos padres de habitao que no apresentavam diferenas significativas e do
nvel educacional. No entanto, a despeito da aparente homologia entre os imigrantes,
conforme percebida pela sociedade abrangente, em que todos os japoneses eram igualmente
identificados como japo e mais comumente interpelados como japons, no processo da
ocupao dos espaos fsicos, as distines entre os iguais foram se afirmando no interior
do prprio grupo, levando-se em conta a acumulao de recursos e a relao dos sujeitos com
a escola japonesa. Alguns critrios de diferenciao acabaram sendo introduzidos para
estabelecer uma hierarquia entre os imigrantes japoneses. A possibilidade de freqentar a
escola japonesa passou a se constituir em critrio de distino queles que poderiam dispor
desse privilgio. Afinal, eram nessas escolas, e mediante as prticas pedaggicas
desenvolvidas as quais lembravam o modelo de ensino das escolas japonesas, que os filhos se
aproximavam das tradies culturais dos pais, da histria dos seus antepassados, assim como
aprendiam a ser japons. Para os pais, a escola japonesa era o lugar da conservao das
lembranas, o local para perpetuar as tradies e, acima de tudo, o templo sagrado da
formao dos jovens. (Handa, 1987).
Nessas escolas, o objetivo do ensino do idioma japons era o de transmitir a
sensibilidade da cultura japonesa. Assim, o professor no se preocupava muito com o
aprendizado da gramtica japonesa, mas com o desenvolvimento de posturas, do respeito
hierarquia, da disciplina, da responsabilidade, da cooperao, da solidariedade e da devoo
aos pais e aos heris destacados nas guerras, nas lendas e na histria do Japo. As aulas de
27
literatura constituam os momentos culminantes em que todos os heris evocados nos mitos e
nas lendas japonesas ganhavam vida, principalmente por meio da extraordinria oratria do
mestre, a qual era repetida pelos alunos. Com essas prticas cotidianas, as aulas na escola
japonesa, onde predominavam a rigidez do contedo, a memorizao e a reprovao,
tornavam-se diferenciadas das aulas na escola brasileira,. Alm disso, o currculo escolar
inclua as aulas de kend, arte marcial que remontava poca dos samurais e era baseada no
manejo de espadas de bambu ou de madeira, cujo objetivo era o de cultivar entre crianas e
adolescentes os hbitos de lealdade. Estimulavam-se, tambm, as artes cnicas, cujos temas
principais eram voltados aos picos ou s lendas populares japonesas. As crianas e os
adolescentes eram instrudos na oratria com textos produzidos em aulas de lngua japonesa.
O objetivo da escola era o de educar as crianas de origem nipnica para serem
cidads brasileiras, mas que se lembrassem de sua ascendncia e de que pertenciam etnia
japonesa. Afinal, o projeto de expanso do capital japons no Brasil dependia da participao
dos imigrantes e mant-los como japoneses apresentava-se como imposio desses interesses.
Disso decorre o importante papel atribudo escola e queles que se vinculavam a ela.
Portanto, presa a uma rede de interdependncias que interessava aos japoneses, a
escola contribuiu para verticalizar as relaes entre eles. Inequivocamente, a escolarizao e
todos os benefcios dela decorrentes serviu como uma forma de estabelecer distines entre os
japoneses e a sociedade abrangente. Entretanto, tambm no espao dos prprios imigrantes,
ao criar uma rede de relaes de interdependncia (ELIAS, 1981, p. 108) em torno dela, a
escola japonesa acabou se constituindo em um instrumento de diferenciao e de
hierarquizao entre eles.
Dessa maneira, a posio central da escola na sede das colnias no foi produto do
acaso e a sua importncia desvelava-se pelo lugar atribudo a ela pelos imigrantes. Nesse
sentido, a escola tornou-se ponto de aglutinao e de referncia, uma vez que, alm do lugar
da educao dos filhos, tambm era o da confraternizao dos membros da comunidade.
Administrada pela associao local, sempre constituda por um presidente, tesoureiro e um
representante dos negcios educacionais, a escola constituiu-se em ponto de referncia e a
partir dela esboou-se uma hierarquizao entre os imigrantes que levavam em conta, alm
de suas posses, tambm sua funo e posio ocupada na estrutura social, que tinha no topo o
consulado japons e os representantes das associaes educacionais.
Segundo Handa (1987), ao contrrio do que ocorreu aps a guerra, quando aqueles que
tinham dinheiro passaram para a camada superior da sociedade, por serem escolhidos para
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cargos de destaque ou como lderes das comunidades com o professor houve inverso de
valores.
Antigamente, os que haviam ocupado cargos de chefes de aldeia no Japo ou
aqueles que possuam instruo acima do nvel ginasial eram escolhidos como
presidentes das associaes japonesas ou para cargos importantes dentro da
comunidade. E os esforos efetuados para conseguir doaes ou contribuies
para a construo de escolas junto aos consulados, conseguiam manter para
tais pessoas o respeito dos demais membros do ncleo elevando-se assim a
sua posio social. (p. 803).
Pela posio ante a escola e pelo domnio da lngua japonesa, o professor (sensei),
dispondo de capital das relaes sociais, representava autoridade reconhecida pelos membros
da comunidade, mesmo no tendo a formao especfica para a ocupao do cargo. Todavia, o
seu prestgio era legitimado pelos imigrantes em funo do capital cultural (o tipo de
escolarizao e, sobretudo, a fluncia de comunicao decorrente do domnio da lngua
japonesa) que o dispunha a desempenhar as tarefas determinadas. Partimos de Bourdieu
(1979) para afirmar que a posio ocupada pelo professor, ante a escola, tendia a ser
reproduzida no esprito e na linguagem dos japoneses e acabava por operar como categorias
de distino e de prestgio, ou seja, de poder. Ser professor significava dispor de um capital
distintivo dentro da comunidade, pois a vinculao com a escola determinava a posio do
indivduo no quadro das relaes sociais estabelecidas entre os imigrantes japoneses, um valor
que se perpetuava como o de uma nobreza que adquiria o ttulo mesmo no o possuindo desde
a origem.
Com base nessa interpretao, podemos afirmar que a escola japonesa no apenas se
constituiu em espao para a afirmao da identidade tnica do grupo japons como tambm
acabou se transformando, na configurao social que se estabeleceu, numa instncia de
classificao dos sujeitos por meio do que Norbert Elias (2000, p. 23) chama de
sociodinmica da estigmatizao, ou seja, pela introduo de uma figurao especfica que
levava em conta a fluncia no idioma japons,a qual permitia fixar o rtulo da superioridade
ou da inferioridade, fazendo prevalecer um grupo sobre o outro. O estigma associa-se a um
tipo de fantasia coletiva que contribui para afirmar a imagem que cada pessoa faz de sua
posio no grupo por meio do domnio da lngua japonesa e,sobretudo, para legitimar o poder
de um sobre o outro.
O respeito hierarquia foi reproduzido pelos imigrantes no espao que ocuparam na
sociedade brasileira durante os anos que precederam guerra, tomando por base a posse do
capital cultural e, por meio dele, a criao de todo um sistema de relaes sociais. Nesse
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quadro, em que esses indivduos se encontravam mais centrados em suas tradies culturais e
histricas, ser institudo na posio de professor e dominar a lngua japonesa passou a
significar um ato de distino, ou seja, uma forma de estabelecer diferenas entre eles.
Critrios que de certa forma passaram a fundamentar os discursos daqueles que ainda hoje
buscam preservar poderes e prestgios com base nessa tradio, a qual foi construda em um
contexto em que o espao social permitiu que se criassem formas prprias de organizao.
Poucos ficaram sob a rbita da influncia da escola japonesa, por estarem afastados,
tanto social quanto geograficamente, da frao dirigente dos japoneses que se encontravam no
Brasil. Entretanto, interessante observar que na primeira fase da imigrao (1908-1941) as
associaes e as organizaes coletivas foram muito importantes para a manuteno da
identidade dos imigrantes, visando ao enfrentamento das situaes adversas, bem como ao
bom resultado dos seus empreendimentos (SAKURAI, 2008, p. 20). Alm das escolas
japonesas e das associaes locais organizadas pelos imigrantes, jornais em lngua japonesa
comearam a se estabelecer no decorrer do primeiro decnio da imigrao e tornaram-se
veculos de divulga