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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – FAED
CURSO DE PEDAGOGIA – HABILITAÇÃO EDUCAÇÃO INFANTIL
ALICE GROLLI PIMENTEL BRUNA HELENA PINHEIRO
PARA ALÉM DO CUIDADO: AS PRÁTICAS EDUCATIVAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
DA CRIANÇA PEQUENA
FLORIANÓPOLIS
2010
2
ALICE GROLLI PIMENTEL
BRUNA HELENA PINHEIRO
PARA ALÉM DO CUIDADO:
AS PRÁTICAS EDUCATIVAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
DA CRIANÇA PEQUENA
Trabalho de Conclusão de Estágio apresentado ao curso de Pedagogia, habilitação em Educação Infantil, do Centro de Ciências Humanas e da Educação FAED.
Coordenador Geral de Estágio: Profa. Dra. Cristiani Bereta da Silva Orientadora: Profa. Dra. Julice Dias
FLORIANÓPOLIS
2010
3
Dedicamos este estudo uma a outra e à nossa união, que gerou experiências que com certeza serão levadas para o resto de nossas vidas.
4
AGRADECIMENTOS
Agradecemos primeiramente às crianças do G2, que permitiram que
fizéssemos parte desse grupo encantador, tornando possível a realização do nosso
projeto.
Às professoras do G2, e à Creche Municipal Joaquina Maria Peres de modo
geral, pela confiança depositada em nós, proporcionando aos estagiários uma
vivência maravilhosa.
À nossa querida orientadora, Julice Dias, pelas grandes ideias sugeridas,
paciência, e toda a atenção a nós concebida.
Às professoras Arlete da Costa Pereira e Débora Peixe, por nos incentivarem
no início do projeto.
À “tia” Lúcia por nos ajudar com seus dotes de costura e culinária.
E por fim, àqueles que estiveram sempre presentes e participaram dessa
longa jornada conosco, compartilhando vivências, inseguranças, alegrias, fazendo
nossas noites e algumas manhãs mais divertidas, Samara, Ivan, Juliana, Duda,
Thaís, Júlia Starke, Karol, Thaísa, Mari, e toda turma 2007/1.
5
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EI – Educação Infantil
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
PPP – Projeto Político Pedagógico
6
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: A sala do G2.
Figura 2: O parque localizado na parte da frente da creche.
Figura 3: Explorando novos materiais – massinha.
Figura 4: Explorando novos materiais – giz de cera.
Figura 5: Os mascotes.
Figura 6: A colocação dos sexos nos mascotes.
Figuras 7 e 8: As crianças experimentando os pinicos.
Figura 9: Trabalhando o letramento juntamente com a identidade pessoal.
Figura 10: Um dos diversos momentos de contação de histórias.
7
RESUMO
Este estudo é o resultado das nossas experiências obtidas durante o período do estágio de docência na Creche Joaquina Maria Peres, pertencente à rede municipal de ensino de Florianópolis. Nele discutimos questões relativas à identidade pessoal e social das crianças de um ano e seis a meses a dois anos, faixa etária com a qual trabalhamos durante o estágio, passando por questões relativas aos cuidados com o corpo, desfralde e desenvolvimento da autonomia. Além disso, contemplamos durante toda a trajetória aspectos essenciais da prática pedagógica na Educação Infantil, tais como o conceito de infância, organização da rotina, múltiplas linguagens, entre outros que contribuem para o desenvolvimento pleno das crianças. Palavras chave: Identidade pessoal e social. Educação Infantil. Estágio.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................9 2 TRAJETÓRIA DO ESTÁGIO............................ ......................................................11 2.1 O campo de estágio.............................................................................................11 2.2 O Grupo G2..........................................................................................................12 3 A DESCOBERTA DE SI MESMO, DO GRUPO E DE UM MUNDO NOVO.........................................................................................................................16 3.1 A acolhida.............................................................................................................18 3.2 O projeto...............................................................................................................19 3.2.1 Nossos planejamentos......................................................................................19 3.2.2 Nossos registros................................................................................................23 3.3 Autonomia com os cuidados do corpo.................................................................23 3.3.1 O desfralde........................................................................................................25 3.4 O Diálogo com as múltiplas linguagens na EI......................................................28 4 APROFUNDANDO-SE A PARTIR DO CONTEXTO VIVIDO: Os A rtigos............32 4.1 AS DIVERSAS FORMAS DE FALAR DAS CRIANÇAS: As múltiplas linguagens na Educação Infantil..................................................................................................32 4.2 FAZENDO USO DAS MÚLTIPLAS LINGUAGENS: A importância das práticas de alfabetização e letramento com as crianças de Educação Infantil.............................40 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................. .......................................................49 REFERÊNCIAS..........................................................................................................50
9
1 INTRODUÇÃO
A faixa etária das crianças da Educação Infantil (EI) é um período de
descoberta do mundo que as cerca. Na idade próxima aos dois anos essas
descobertas são ainda mais intensas. É nessa etapa que a criança cria suas
primeiras funções simbólicas, desenvolvendo seu imaginário, que é fundamental
para sua construção de noção de mundo. Pensando em propor vivências que
colaborassem com tal construção, a princípio optamos por abordar um tema muito
presente no contexto da EI: a higiene. Entretanto no decorrer da docência
percebemos que tal tema isolado não supria as necessidades e interesses do grupo.
Sendo assim, ampliamos nossa proposta em torno da construção da identidade
pessoal e social. Desse modo, compreendendo o cuidar como ação intimamente
relacionada ao educar, buscamos com tal tema o desenvolvimento da autonomia
das crianças. Procurando ir além do conhecimento delas mesmas com seus corpos,
buscando tais identidades por meio das múltiplas linguagens.
Algumas questões de cuidados e aprendizados sobre o corpo, que
aparentemente nos parecem básicas e próprias de nós seres humanos, adquirimos
com o passar do tempo por meio das experiências do dia a dia. Para a faixa etária
em discussão tais questões são indiscutivelmente necessárias, ainda mais tratando-
se de crianças que permanecem na creche em período integral, e estão fortemente
presentes na rotina diária nos momentos da alimentação, escovação de dentes,
troca de fraldas, do sono.
Partindo disso, nosso principal enfoque foi um tema característico da faixa
etária de dois anos, o desfralde. Esse que é mais do que uma ação de cuidado e
educação. Aliado a isso percebemos que era uma intencionalidade das professoras
bem como uma necessidade das famílias e das crianças. Nesse sentido Rosseti-
Ferreira nos alerta que:
(...) a educação do controle do xixi e do cocô e a aquisição de hábitos de higiene são de interesses das crianças, dos adultos e sociedade como um todo. Nesse período, faz-se necessário o acompanhamento dessa atividade, de forma tranqüila, pelos pais e educadores. Nessa tarefa, a integração família-creche, para compartilhar ações e promover um bom desenvolvimento da criança, é fundamental. (2001, p.141)
Desde o princípio acreditamos que a parceria com a família é essencial, pois o
trabalho com o desfralde necessita de acompanhamento e trabalho contínuo. Por
10
ser um processo longo, no qual cada criança possui um tempo diferente, nossa
intenção foi dar início a esse momento importante e essencial às crianças.
11
2 TRAJETÓRIA DO ESTÁGIO
2.1 O campo de estágio
Nosso estágio foi realizado na Creche Municipal Joaquina Maria Peres,
localizada no bairro Itacorubi, Florianópolis. Inaugurada em abril de 1987, a creche
atende atualmente 145 crianças, com idades entre zero e seis anos em período
integral, que estão divididas nos grupos G1, 2, 3, 4, 5, 6A e 6B. As crianças são em
sua maioria dos Bairros Itacorubi e Morro do Quilombo, havendo em suas famílias
grandes movimentos imigratórios a procura de melhores condições sócio-
econômicas.1
A creche possui um grupo de estudos e planejamentos formados pelas(os)
professoras(es) que trata de questões que vão desde o cotidiano da creche até
discussões acerca de concepções de infância, EI, educar/cuidar, entre outros. A
instituição parte da ideia de que a infância é uma construção social, percebendo as
crianças como sujeitos ativos na sua formação. Desse modo, a creche trabalha com
projetos coletivos com o intuito de integrar as crianças, sendo esses construídos por
todos os envolvidos, adultos e crianças, como por exemplo, os projetos “bem-vindos”
e de alimentação.
No que se refere à equipe de profissionais, a instituição se organiza da
seguinte maneira: uma gestora, uma supervisora, uma auxiliar de ensino efetiva de
40h readaptada, uma de 40h designada, uma professora de Educação Física efetiva
de 20h e outra substituta de 10h, uma professora readaptada na equipe pedagógica,
quatro professoras efetivas de 40h, duas professoras efetivas de 20h, uma
professora designada de 40h, uma professora substituta de 40h, doze auxiliares de
sala efetivos, uma auxiliar CTD e uma volante efetiva, duas merendeiras
terceirizadas e uma efetiva, três funcionários de serviços gerais terceirizados e uma
efetiva readaptada.
O espaço físico da instituição é amplo, com diversos ambientes que
proporcionam o encontro de crianças dos diferentes grupos, como o hall, o parque
da frente destinado aos pequenos, o parque dos fundos destinado aos maiores, e o
refeitório. As salas destinadas aos grupos não possuem grandes divergências umas
1 A maioria das informações referentes à organização e funcionamento da creche foram retiradas do PPP da mesma.
12
das outras, com exceção da sala do G1, todas possuem mesas e cadeiras em
tamanho reduzido, uma estante com diversos brinquedos, um espelho, um aparelho
de televisão e um DVD. Compõem ainda o espaço físico da instituição três
banheiros conjugados, um banheiro do grupo G6A, uma cozinha, sala de direção e
secretaria e sala dos professores.
Tal organização espacial pode ser refletida através de dois aspectos. Os
espaços de uso coletivo proporcionam ricos momentos de interação e brincadeira.
Fatores que estão explicitamente contemplados no Projeto Político Pedagógico
(PPP) da creche e que vão ao encontro dos Eixos Norteadores da EI. Por outro lado,
observamos na creche certa escassez de recursos materiais, principalmente
brinquedos. Em relatos das próprias educadoras percebemos que os recursos
enviados pela Prefeitura não atendiam a demanda real da creche. Os brinquedos
que existiam na instituição, em sua maioria, foram frutos de doações.
2.2 O Grupo G2
Desde o início tínhamos a pretensão de observar e trabalhar com as crianças
menores, sendo assim, o grupo G2 foi o destinado a nós. O G2 é composto por 15
crianças com idades entre um ano e seis meses a dois anos, por uma professora
que atua em período integral, uma auxiliar no período matutino e outra no
vespertino. A sala do grupo se parece com as demais da instituição, tem um tapete
no centro, uma estante pequena e outra grande que guardam brinquedos e aparelho
de som, um pequeno sofá, um armário pequeno que serve também como trocador,
um armário grande onde são guardados materiais didáticos, e duas mesas
pequenas com algumas cadeirinhas e um espelho. As mesas ficam encostadas num
canto, já as cadeiras na maior parte do tempo permaneciam guardadas no banheiro,
demonstrando assim a pouca utilização das mesas nas atividades realizadas pelas
crianças. Em contraponto, o tapete era o lugar mais utilizado para reunir as
crianças.
13
Figura 1: A sala do G2.
Acreditamos que o espaço físico disponível às crianças e os recursos materiais
não permite diversas possibilidades de exploração, não proporcionando situações
desafiadoras. Uma vez que o espaço por si só não traz tais possibilidades, cabe às
professoras proporcioná-las. Presenciamos algumas ocasiões em que as
professoras do G2 modificavam o espaço, incluindo elementos que criassem novos
desafios às crianças, como túnel, bambolês pendurados no qual as bolas deveriam
ser arremessadas dentro, escorregador, entre outros. Nesse sentido Barbosa (2006,
p. 135) afirma que:
(...) o espaço físico opera favorecendo ou não a construção das estruturas cognitivas e subjetivas das crianças. Ao mesmo tempo, impõem limites ou abre espaço para a imaginação dos adultos que criam ambientes (com o auxílio das crianças) ricos e desafiantes, onde todos têm a possibilidade de ter vivencias e experiências diferenciadas, ampliando suas capacidades de aprender, de expressar seus sentimentos e pensamentos.
Sendo assim, fica claro que a disponibilização e organização dos espaços,
que muitas vezes não recebe a devida importância, é um instrumento que amplia o
universo cultural e conceitual das crianças, na medida em que permite às mesmas
criar e recriar distintas situações. Considerando tais relevâncias acerca do espaço,
acreditamos que as professoras do G2, mesmo não explorando tanto os demais
ambientes da creche, utilizavam bastante a sala do grupo de maneiras diferentes e
dinâmicas.
14
Em relação à utilização dos espaços externos da instituição, eles constituem
uma grande riqueza de possibilidades. Acreditamos que tais espaços sejam
fundamentais para oferecer momentos de liberdade às crianças, nos quais elas
podem vivenciar diversas ocasiões, manifestando-se livremente. Além disso, o
espaço externo representa uma ferramenta a mais para a proposta pedagógica do
professor, na medida em que nele é possível ampliar possibilidades, transformando-
o sempre que desejado.
O parque frontal da creche era o espaço externo mais explorado pelo grupo.
Diariamente as crianças brincavam livremente, muitas vezes interagindo com os
demais grupos. A partir de observações percebemos que esse espaço tão
valorizado pelas crianças, era pouco explorado, no sentido de criar situações
desafiadoras. A maior parte das crianças brincava constantemente nos mesmos
brinquedos, ou das mesmas brincadeiras, demonstrando um domínio acerca do
parque.
Figura 2: O parque localizado na parte da frente da creche.
Sendo assim, durante nossa docência nos preocupamos em planejar
sistematicamente novas situações nesse espaço tão rico. Foram pensadas
propostas de cantigas de rodas, brincadeiras com balão, com bambolês, corda,
túnel, bolas e pintura com guache. Em algumas dessas ocasiões o grupo
permaneceu bastante entretido, como na pintura com guache, porém, em outras se
15
dispersaram rapidamente voltando para os brinquedos de costume. Mesmo em
situações como essas, percebemos um saldo positivo, pois possibilitamos às
crianças experimentarem outras possibilidades nesse espaço por eles tão
internalizado.
Partindo para uma melhor definição do G2, acreditamos que o dinamismo
seja a característica que melhor defina o grupo, se deixando contagiar pelo ritmo da
professora regente. Essa que procura trabalhar bastante as formas de expressões
com o grupo, principalmente as que se referem à corporeidade e musicalização –
como observamos nas brincadeiras e teatros com fantoches; danças; brincadeiras
de roda e cantada, entre outras.
Ao retornarmos ao campo de estágio, no segundo semestre de 2010, nos
deparamos com uma grande diferença no grupo relacionada principalmente com a
linguagem verbal de todas as crianças. Entretanto, no decorrer nas vivencias desse
semestre notamos um avanço também em outras formas de expressão, como no faz
de conta e na linguagem corporal. Durante as contações de histórias e rodas de
música percebíamos muito entusiasmo entre as mesmas, que nesses momentos
utilizam da linguagem verbal e principalmente da corporal para expressarem sua
euforia. No que se refere ao faz de conta, foi incrível presenciar aquelas crianças,
que a principio eram tão pequeninhas para nós, brincarem de fazer bolo de
aniversário com a areia, cantar parabéns e em seguida apagar a vela, ou então,
brincar de fazer e dar comidas aos bonecos.
Outra característica muito forte desse grupo é o gosto pela literatura, o que
foi percebido desde os primeiros contatos. As crianças solicitavam às professoras de
diferentes formas a contação de histórias, algumas delas já pedindo livros
específicos. Acreditamos que tal gosto tenha surgido a partir da estimulação da
parte das professoras, que procuravam narrar as histórias de maneiras diferentes,
algumas vezes em forma de teatro, de música, sempre incentivando a participação
das crianças.
O G2 era um grupo muito querido por toda a creche, principalmente pelas
crianças mais velhas. Durante os momentos em que os grupos se encontravam era
comum vermos um maior, podendo ser uma criança ou qualquer outro profissional
da creche, cuidando de um dos pequenos.
16
3 A DESCOBERTA DE SI MESMO, DO GRUPO E DE UM MUNDO NOVO
A percepção de EI que temos hoje é fruto de uma longa jornada que
modificou profundamente a forma de conceber as crianças pequenas. Podemos
dizer que fruto de mudanças sociais, econômicas e políticas. No princípio, as
instituições que atendiam crianças de zero a seis anos surgiram mais como uma
necessidade das mães, que ingressaram nas forças de trabalho. Simultaneamente a
isso, começam a se desenvolver novas percepções acerca da infância, vendo na
educação uma forma de preparar a criança para as exigências sociais.
Sendo assim, o atendimento público de crianças de zero a seis anos possui
um histórico marcado principalmente pelo caráter médico-assistencialista que
possuía. Diferentemente das classes mais altas, a educação das classes populares
voltava-se para a submissão das mesmas. Baseado em tal fato, as creches e pré-
escolas tinham como foco o cuidar, a assistência, pois era preciso mantê-las longe
dos perigos comuns na sua classe, mantendo-as sob controle:
As concepções educacionais vigentes nessas instituições se mostravam explicitamente preconceituosas, o que acabou por cristalizar a ideia de que, em sua origem, no passado, aquelas instituições teriam sido pensadas como lugar de guarda, de assistência, e não de educação. (KUHLMANN JR., 1998, p. 182)
Com o avanço nos estudos acerca da infância e do próprio pensamento
pedagógico, a criança passa ter outro valor perante a sociedade. Sendo assim,
todas essas mudanças no campo pedagógico e social, acarretaram também em
mudanças legais. Podemos dizer que o primeiro grande marco legal para a infância
e EI contemporânea foi a Constituição de 1988, que definiu uma nova forma de
perceber a criança, vendo-a como sujeito de direitos, devendo esses serem
garantidos e respeitados pelos pais, sociedade e poder público. Além disso, essa
constituição define como direito dos pais a assistência gratuita de seus filhos de até
seis anos de idade em creches e pré-escolas, sendo dever do Estado.
Anos mais tarde, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
(Lei 9.394/96) vem a fortalecer ainda mais e ampliar as determinações da
Constituição de 1988. A LDB define a EI como primeira etapa da educação básica, e
“tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade,
em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação
17
da família e da comunidade” (BRASIL, Lei nº. 9.394/1996. Lei de Diretrizes e Bases
da Educação).
No que se refere à EI o que temos de mais recente é a Resolução nº 5/2009,
que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais da EI. Tal documento traz fundamentos,
princípios e procedimentos que devem nortear todo o trabalho na EI, desde as
políticas públicas até questões referentes às propostas pedagógicas e curriculares.
A resolução ainda traz uma nova forma de perceber a criança e o trabalho
pedagógico:
As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL/MEC/SEB, 2009, p. 1)
Um dos principais documentos que contribuíram na construção dessa nova
forma de olhar a criança foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído
em 1990. A partir daí a criança passa a ser vista como sujeito de direitos, sendo um
de seus principais o acesso a uma educação de qualidade. Para isso, a EI, que é o
que tratamos aqui, deve buscar articular as experiências das crianças com os
conhecimentos científicos, culturais, artísticos, entre outros, visando o
desenvolvimento integral das mesmas. Nesse sentido, o trabalho pedagógico
precisa respeitar princípios éticos, políticos e estéticos, sendo norteado por dois
eixos: as interações e a brincadeira.
Com a definição desses novos aspectos para a EI, ocorreu um relevante salto
qualitativo nessa área, que busca uma melhora cada vez mais significativa acerca
da educação das crianças pequenas, vendo-as como ponto central de discussões e
planejamentos.
Toda essa discussão nos embasou para definir o ponto de partida que
tomaríamos, e consequentemente nosso projeto e planejamentos. Tal ponto
consistia em atender as necessidades das crianças e aumentar suas experiências,
buscando sempre promover o desenvolvimento pleno delas, pautando-se nas
interações, múltiplas linguagens e brincadeiras.
18
3.1 A acolhida
Nosso primeiro contato com a instituição foi durante o primeiro semestre de
2010, no qual julgamos ter sido bastante positivo. Tanto pela boa recepção que
tivemos, desde a equipe administrativa, passando pelas professoras e as crianças,
quanto pelo espaço, por ser amplo, bem cuidado e agradável. Nesse tempo fizemos
apenas observações participantes, buscando uma familiarização entre todos os
envolvidos (estagiárias, professoras e crianças). Percebemos um grupo bem
integrado, visto que esse era o segundo ano em que o grupo permanecia junto. No
que se refere à acolhida das crianças, notamos num primeiro momento que elas se
mostravam receosas com nossa presença, algumas até choravam quando
propúnhamos alguma brincadeira. Essa situação com o tempo foi se dissolvendo,
tanto pelo incentivo das professoras em nos incluir no grupo, quanto pelo fato da
nossa constante presença. As professoras do G2, desde o início, nos deixaram à
vontade e incentivavam nossa participação nos momentos da rotina, como nas
refeições, parque, higiene, entre outros. Além disso, elas se preocuparam em nos
interar acerca das características do grupo, como histórico familiar e personalidade
de cada criança, bem como dos projetos e planejamentos desenvolvidos.
O grupo mantinha uma rotina fixa, composta pelos momentos: chegada –
projeto “bem-vindo” e café da manhã -; atividades propostas; parque; higiene –
lavação de mãos –; almoço; higiene – escovação de dentes -; sono. Por esse motivo
percebemos que ela já estava bastante internalizada nas crianças, em várias
ocasiões elas se dirigiam sozinhas aos ambientes, como por exemplo, no momento
do almoço, no qual elas saíam do refeitório e se encaminhavam diretamente ao
banheiro da sala.
Entendemos que a rotina é a organização do tempo e espaço, na EI ela
assume um papel fundamental, o de auxiliar no processo de autonomia das
crianças. Através dos momentos básicos do dia a dia, como o de sono e higiene, ela
permite que as crianças se localizem temporalmente, e se auto-organizarem para
determinado fim. No entanto, acreditamos que tais momentos não precisam ser
rotineiros, ou seja, ações realizadas de forma repetitiva, já incorporada, não
permitindo o novo, o inesperado (BARBOSA, 2006). Contrapondo-se a isso, é
necessário então que haja uma rotina aberta a novas possibilidades, nas quais os
19
momentos básicos podem ocorrer das mais diversas formas, em lugares distintos,
com pessoas, recursos, materiais diversificados, numa hora inesperada, enfim, uma
rotina dinâmica que favoreça a criatividade e a inovação.
3.2 O projeto
Diante as observações feitas durante esse período de primeiro contato,
buscamos em nosso projeto contemplar propostas que fossem significativas para o
grupo e seu desenvolvimento. Procurando abranger temas que fossem tanto dos
interesses das crianças como também propostas inovadoras que desafiassem as
mesmas. Pensando nisso, compartilhávamos nossas ideias e anseios com as
professoras, buscando manter respeito perante a posição das mesmas.
Como mencionado anteriormente, nosso projeto partiu da observação de
uma necessidade típica da idade de dois anos, o desfralde. Para isso, entendíamos
que primeiramente as crianças deveriam alcançar a autonomia em relação aos
cuidados básicos com seu corpo, bem como reafirmarem suas identidades, pessoal
e social. Para que tais objetivos se realizassem era preciso então elaborar propostas
que auxiliassem as crianças a conhecerem melhor seus corpos, promovendo
sempre momentos significativos de interações.
Considerando todas as peculiaridades e áreas que a EI abrange, nos
preocupamos em contemplar as mais diversas linguagens no projeto com o G2, tais
como: o exercício da criatividade e das dimensões do movimento, por intermédio da
linguagem da arte; a apropriação de noções de cuidado e respeito com si e com os
demais do grupo; a linguagem musical, por meio do movimento do corpo e de
diversos sons, produzidos pelas crianças ou não; o exercício da linguagem oral e
escrita, ao conhecerem novas palavras, sons e formas de escrita; a iniciação do
desfralde; e por fim, a possibilidade de vivenciar situações relacionadas à
individualidade e coletividade.
3.2.1 Nossos planejamentos
Planejar é um ato educativo, no qual se define e organiza todas as
intencionalidades do professor. Ele deve ser flexível, permitindo readaptações
20
sempre que necessário (OSTETTO, 2000). Partimos de tal conceito para elaborar
semanalmente nossos planejamentos, neles deveriam conter propostas que viessem
ao encontro de nosso projeto.
Durante o período de docência ficamos preocupadas em realmente pôr em
ação o planejamento no qual acreditamos, flexível e baseado nos interesses e
necessidades do grupo. Sendo assim, tivemos muita atenção com dois aspectos
importantes e que percebemos ser um pouco ausente nos trabalhos desenvolvidos
com o G2, são eles: o de planejar mais de uma atividade, isto é, de proporcionar
situações distintas às crianças, que elas pudessem escolher o que desejam fazer, e
não propor que todas façam sempre a mesma coisa e ao mesmo momento; e o de
pensar os materiais, suas disponibilidades e usos. Essa discussão acerca dos
materiais é bem ampla, e nesse sentido Barbosa (2006) nos explica que os materiais
“(...) são elementos essenciais na organização das rotinas. Sua existência, sua
variedade e sua exploração são fatos que levam a criar alternativas em termos de
atividade para os grupos”. Partindo disso é possível afirmar que a escolha e
organização dos materiais é uma ferramenta que influencia muito na
intencionalidade do professor, podendo ampliar a diversidade de atividades por ele
planejadas, bem como facilitar seu trabalho na medida em que cria e promove
momentos significativos e de prazer às crianças.
No que se refere à realidade vivida com o G2 percebemos que se fazia uso
de poucos materiais, e então procuramos trazer algum deles vistos por nós como
básicos no ambiente da EI, tais como: a massinha de modelar, giz de cera, balão,
jogo da memória e de boliche, pinicos, elástico, esponja, tesoura, cola e
instrumentos musicais. Esses materiais eram utilizados em situações e ambientes
distintos, como forma das crianças expressarem-se, por meio da linguagem da arte,
da música, de brincadeiras, entre outras, que sempre as desafiassem. No decorrer
de algumas propostas com materiais inovadores o grupo se demonstrava bastante
eufórico, bem como era visível que estavam experimentando os materiais, como por
exemplo, na utilização do giz de cera que era colocado na boca e utilizado para
riscar a parede, o chão e as mesas.
21
Figura 3: Explorando novos materiais – massinha.
Figura 4: Explorando novos materiais – giz de cera.
Na primeira semana de docência procuramos “rondar” as crianças, queríamos
saber de fato o que elas já sabiam sobre o corpo, bem como apresentar nosso
projeto. Dessa forma, elaboramos um planejamento bem rico, que possibilitasse a
elas momentos de reconhecimento e reaproximação com seus corpos, dos colegas
e professoras. Para isso disponibilizamos música, imagens, jogos e brincadeiras
relacionadas ao corpo humano, enfocando as partes principais e mais visíveis. Além
disso, na segunda semana, construímos dois mascotes junto às crianças, essas que
22
participaram desde o momento de enchê-los e colocar seus sexos até na escolha de
seus nomes, Kiko e Nina. A intenção era que o grupo criasse laços afetivos com os
mascotes para que posteriormente os concebessem como referências nesse
processo de reconhecimento dos corpos e de construção da autonomia. É válido
lembrar que planejamos a presença de Kiko e Nina para até o final do projeto,
durante as atividades e também nos momentos rotineiros, muitas vezes, quando
esquecíamos ou até quando optávamos por deixar os mascotes distantes, as
crianças solicitavam suas participações.
Figura 5: Os mascotes.
Durante a terceira e quarta semana de docência estabelecemos o objetivo
de vivenciar junto ao grupo situações que fortalecessem a importância do cuidado
com o corpo a partir dos momentos da rotina, tornando esses diferentes como de
costume. Para isso trouxemos vídeos e brincadeiras que incentivassem o grupo a
atribuir mais significados aos momentos da rotina, já tão internalizados, como a troca
de fraldas, escovação de dente, almoço e sono.
Por fim, para a última semana planejamos iniciar o processo de desfralde.
Inserimos o penico e a partir dele utilizamos múltiplas linguagens para atribuir seu
significado. Além disso, na última semana com o G2 fizemos uma festa com as
crianças e diferentes brincadeiras de seus gostos.
23
3.2.2 Nossos registros
Os registros eram feitos todos os dias após o estágio, neles relatávamos os
acontecimentos considerados relevantes, como as falas e reações das crianças,
atividades desenvolvidas no dia, considerações pessoais, rotina, entre outros.
Através do registro conseguíamos claramente “visualizar” e a partir daí refletir acerca
de nossa prática educativa. Nesse sentido, Ostetto, Oliveira e Messina acrescentam
que:
O registro diário é a marca de cada educador. É espaço específico de cada um. Não há regras para escrever sua experiência. Não há forma única. Ele recebe a feição, o jeito de cada educador. É uma documentação para si próprio e para o grupo de crianças que coordena, diz respeito a sua particular vivência. (...) é [o ato de registrar] comprometer-se com a coerência de uma prática que vai sendo refletida num processo de formação permanente. (2002, p. 24)
O ato de registrar então não representa um benefício apenas ao professor,
que consegue repensar seus atos e propostas, mas sim ao grupo todo, formado
pelas crianças e professores. Que a partir dele tem seus interesses muito mais
assegurados. Durante nossa docência muitas vezes optamos por refazer nossos
planejamentos em virtude das reflexões contidas nos registros, percebendo que foi
muito mais agradável e significativo para todos os envolvidos.
Nesse sentido é válido colocar que quando as atividades planejadas não
ocorriam da forma que esperávamos os registros serviam como meio de refletimos,
para assim novamente nortear nosso trabalho. Como por exemplo, logo na primeira
semana, quando percebemos que as crianças não estavam se entretendo muito nas
atividades acerca do corpo humano, no início ficamos meio decepcionadas com nós
mesmas, pensando que não tínhamos conseguido planejar algo interessante para
elas. Entretanto, após algumas reflexões percebemos que na verdade o G2 já
possuía consideráveis conhecimentos prévios sobre o assunto. E assim, deixamos
de fazer algumas atividades, focando em propostas distintas.
24
3.3 Autonomia com os cuidados do corpo
Logo no início do projeto o grupo nos surpreendeu com seus conhecimentos
acerca do corpo, durante as atividades percebíamos que as crianças se colocavam
com muita segurança. Dessa forma, como já mencionado acima, algumas atividades
por nós planejadas não ocorreram por julgarmos desnecessárias, podendo tornar-se
maçantes por se tratar de um assunto no qual elas já tinham domínio. O próprio
trabalho das professoras colaborava para que as crianças tivessem essa
apropriação de corpo. Era possível perceber que elas buscavam promover a
autonomia das crianças em diversos momentos, intensificando-se nos de cuidados
com o corpo, como por exemplo, na escovação de dentes, quando permitiam que
elas iniciassem sua escovação de dentes sozinhas; ou então no momento da
alimentação quando só recebiam auxílio às vezes.
Na busca por reforçar tais questões acerca da autonomia, utilizamos muito
Nina e Kiko. Uma preocupação que tivemos foi que eles tivessem características
parecidas com as das crianças, com o intuito de que as mesmas se identificassem
com eles, construindo um laço afetivo. Esse que nos auxiliou a integrar os mascotes
ao grupo. A acolhida de Nina e Kiko ocorreu de modo bastante positivo e tranquilo,
as próprias crianças perguntavam por eles, e na sua presença queriam a todo tempo
inseri-los nas brincadeiras, bem como criavam novas brincadeiras com os mascotes,
em alguns momentos chegando até a ocorrer disputas entre elas. A partir desse tra-
balho com os conhecimentos prévios acerca do corpo, nosso objetivo era então
finalmente iniciar o processo de desfralde junto às crianças.
Figura 6: A colocação dos sexos nos mascotes.
25
3.3.1 O desfralde
O início do processo de desfralde é uma grande conquista para as crianças.
Apesar de diversas fontes, tanto de senso comum quanto de literaturas, afirmarem
que na idade de dois anos as crianças estão fisicamente preparadas para o
desfralde, esse é um processo muito íntimo e pessoal de cada uma. Para que o
desfralde seja feito então de maneira saudável e eficaz partimos da ideia de que é
preciso que a criança o entenda e o aceite. Além disso, outro fator fundamental para
o inicio do desfralde é o aspecto cultural. Nesse sentido Pejon, Romero e Luz
(2010)2 acrescentam que:
(...) a criança de 2 anos já não é mais um bebê, ou seja, começa a ser inserida num grupo maior, que é a sociedade, em que regras coletivas são levadas em conta, tendo a criança que começar a se adaptar a algumas delas. Existe sim então uma intromissão da sociedade, que educa para seguir suas regras. O fator cultural fica claro quando se compara a criança rural, deixada apenas de camisa ou blusa para aprender a urinar e evacuar no quintal, com a criança urbana fortemente pressionada a usar o vaso sanitário e às vezes até mesmo submetida a castigos se sujar ou molhar móveis e tapetes de sua casa.
Assim, podemos considerar que o desfralde é mais do que uma necessidade
da criança de dois anos, passando também a ser uma regra da sociedade.
Acreditamos, diante de tais aspectos, que é importante que esse processo não deva
ocorrer por imposição da sociedade, mas sim conforme o desenvolvimento de cada
uma, considerando seus aspectos fisiológicos e emocionais.
Dependendo da forma em que é abordado o desfralde, ele pode se tornar
traumático para a criança, visto que não é forçando a mesma a sentar-se no penico
que fará com que ela controle seus esfíncteres. Diante a isso é importante analisar
se a criança já sabe diferenciar o xixi do cocô, para assim atribuir mais significado e
sentido ao processo no qual está submetida. No G2 percebemos que eram poucas
as crianças que possuíam essa diferenciação clara, formando-se assim dois grupos
de crianças, aquelas que compreendiam tal diferenciação, mostrando-se
interessadas, em geral formado pelas crianças mais velhas do grupo; e outro
composto pelas crianças que não atribuíam ainda muito sentido a esse processo, ou
que simplesmente se negavam a utilizar o penico para seu devido fim. 2 Disponível em: <http://www.colegioprotons.com.br/compartilhando_experiencia.php.> Acesso em: 3 nov 2010.
26
Constituímos essa divisão dos grupos baseadas principalmente nos
momentos da troca de fraldas, de interação das crianças com Nina e Kiko e nos
trabalhos realizados com os penicos. A partir de tais momentos foi possível aos
poucos percebermos não só a compreensão que cada uma possuía acerca do
processo, mas também suas limitações, como no caso de algumas crianças que
contestavam muito ao trocar a fralda, ou então ao manipular o penico se negavam a
sentar querendo apenas brincar com ele. É válido destacar que os trabalhos
propostos não distinguiam os grupos, o incentivo e estimulo para a utilização dos
penicos eram os mesmos para todas as crianças.
Em relação ao grupo de crianças que se mostravam mais interessadas, nos
surpreendemos com a desenvoltura das mesmas, que apesar de não fazerem xixi
ou cocô, sempre aceitavam tirar suas fraldas e sentar no penico, algumas ainda
depois desses momentos recusavam-se a colocar as fraldas novamente, pois se
sentiam à vontade daquela maneira. Nas ocasiões em que alguma criança fazia xixi
recebia muitos elogios de todos, até mesmo dos colegas que se entusiasmavam.
Figura 7: As crianças experimentando os pinicos.
27
Figura 8: As crianças experimentando os pinicos
Entretanto, incentivos e estímulos não devem partir apenas por parte da
instituição, é fundamental que no ambiente familiar a criança receba a mesma
atenção. Sendo assim, o desfralde deve ser um acordo em que ambas as partes
estejam comprometidas. Nesse aspecto, a parceria entre a proposta ofertada e as
famílias ocorreu de forma facilitada devido ao laço estabelecido entre as professoras
do grupo com os familiares das crianças. De acordo com as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a EI:
O trabalho com as famílias requer que as equipes de educadores as compreendam como parceiras, reconhecendo-as como criadoras de diferentes ambientes e papéis para seus membros, que estão em constante processo de modificação de seus saberes, fazeres e valores em relação a uma série de pontos, dentre eles o cuidado e a educação dos filhos. O importante é acolher as diferentes formas de organização familiar e respeitar as opiniões e aspirações dos pais sobre seus filhos. (BRASIL, MEC/SEB, 2009, p.13)
Sendo assim, é imprescindível que haja o diálogo entre ambas as partes, no
qual os responsáveis saibam e possam participar do que ocorre no cotidiano de
suas crianças. Partindo disso, logo ao iniciar nosso projeto nos preocupamos em
esclarecer às famílias os objetivos, por meio de um bilhete simples e direto, mas
pensado para que essa comunicação ocorresse da melhor forma possível. No final
28
do estágio percebemos que tal parceira ocorreu tranquilamente, pois o projeto foi
recebido muito bem tanto pelas famílias quanto pelas crianças e professoras.
3.4 O Diálogo com as múltiplas linguagens na EI
O processo educativo-pedagógico deve integrar as múltiplas linguagens, isto
é, contemplá-las no seu dia a dia, possibilitando distintas experiências às crianças.
Essa é uma afirmação prevista nas Diretrizes Nacionais para a EI, e na qual desde o
início de nossa docência nos preocupamos planejar. Com o intuito de enriquecer a
discussão vale colocar a seguinte afirmação contida nesse mesmo documento:
As propostas curriculares da Educação Infantil devem garantir que as crianças tenham experiências variadas com as diversas linguagens, reconhecendo que o mundo no qual estão inseridas, por força da própria cultura, é amplamente marcado por imagens, sons, falas e escritas. Nesse processo, é preciso valorizar o lúdico, as brincadeiras e as culturas infantis (BRASIL, MEC/SEB. 2009, p.15)
O acesso às múltiplas linguagens então é mais do que um meio de promover
novas experiências às crianças, é também um direito das mesmas, na medida em
que trabalha aspectos essenciais a inserção delas no mundo social. Para que isso
de fato aconteça o professor tem a função social de elaborar propostas que
envolvam as múltiplas linguagens.
Partindo disso, procuramos sempre abordar as diversas formas de
expressão em nosso período de vivência com as crianças. Entretanto, no começo
não sabíamos ao certo de que maneira esse trabalho se configuraria, que propostas
iríamos trazer, visto que nosso intuito era atender as reais necessidades e
interesses do G2. Sendo assim, ao longo dos trabalhos realizados com o grupo foi
possível detectar alguns aspectos nos quais percebemos ser de seu interesse para
por em prática, como por exemplo, os diversos momentos de contação de história
em que promovemos e que elas sempre adoraram. Além disso, estávamos atentas
em também propor experiências inovadoras com formas de expressão que
percebíamos estar pouco presente no trabalho das professoras do grupo, como ao
abordarmos alfabetização e letramento.
Dessa maneira, diversas vezes nossos planejamentos foram refeitos com a
intenção de dar mais a “cara” do grupo, o que ele realmente gostava e necessitava,
29
sempre com a ideia de propor desafios e ampliar o repertório cultural das crianças
do G2. Sendo assim, conforme seus interesses e necessidade eram programados
trabalhos mais intensificados com determinadas linguagens. Apesar disso, a procura
em trazer sempre as diversas formas de expressão, mesmo que de forma menos
contempladas, era constante. Para ilustrar isso que estamos colocando é válido
relatar a significante proposta que desenvolvemos com as crianças voltada a
alfabetização e letramento, que surgiu após verificarmos a ausência de tais, desde
trabalhos com desenho até a falta de relações feitas entre oralidade e escrita.
Sendo assim, inicialmente trouxemos algumas propostas de desenho
coletivo e pintura individual com giz de cera para o grupo. Acreditamos que a
contribuição dessa forma de expressão é muito valiosa na faixa etária do G2, na
medida em que o desenho é uma etapa que antecede a aquisição da escrita, bem
como consiste na representação gráfica de gestos que posteriormente passam a ser
representações simbólicas e gráficas dos objetos (MELLO, apud FARIA, 2009). A
relação do grupo com as propostas voltadas ao desenho foi de modo geral de
experimentação, poucas crianças utilizaram o giz de cera para pintar ou desenhar o
que foi oferecido, preferindo explorar esse novo objeto de formas distintas,
colocando-o na boca, desenhando as paredes, mesas e chão e até mesmo para
brincar.
No que se refere à linguagem escrita acreditamos que assim como as
demais, é um direito da criança pequena. No entanto é pouco contemplada no
contexto da EI, se restringindo em geral apenas a pré-escola, como forma de
preparar as crianças para o ingresso ao ensino fundamental. Segundo as Diretrizes
Curriculares Nacionais para EI:
(...) a linguagem escrita é objeto de interesse pelas crianças. Vivendo em um mundo onde a língua escrita está cada vez mais presente, as crianças começam a se interessar pela escrita muito antes que os professores a apresentem formalmente. (...) O que se pode dizer é que o trabalho com a língua escrita com crianças pequenas não pode decididamente ser uma prática mecânica desprovida de sentido e centrada na decodificação do escrito. Sua apropriação pela criança se faz no reconhecimento, compreensão e fruição da linguagem que se usa para escrever, mediada pela professora e pelo professor, fazendo-se presente em atividades prazerosas de contato com diferentes gêneros escritos, como a leitura diária de livros pelo professor, a possibilidade da criança desde cedo manusear livros e revistas e produzir narrativas e “textos”, mesmo sem saber ler e escrever. (BRASIL, MEC/SEB, 2009. p.15 e 16)
30
Dessa maneira, procuramos aliar nosso tema central, identidade pessoal e
social, a proposta com alfabetização e letramento desenvolvendo um rico trabalho
com o nome de cada criança. A ideia era que tais nomes ficassem sempre visíveis a
todos do grupo, permitindo a interação constante entre os mesmos. Partindo da
escolha dos nomes dos mascotes elaboramos cartelas para escrever em roda os
nomes de Nina e Kiko, aproveitando tal momento para também escrever e ler
juntamente com as crianças os seus nomes. Após as crianças estarem com suas
cartelas disponibilizamos giz de cera para pintarem. A reação delas foi de bastante
euforia, algumas se mostraram orgulhosas com suas cartelas, exibindo-as a outras
pessoas como algo que lhes pertencia, outras preferiram brincar, amassar, pintar e
chegando ao ponto de até rasgar as cartelas. No final as fixamos com fita
transparente no chão da sala de forma aleatória, a escolha desse local se deu pelo
fato de ser um acesso fácil e ainda muito explorado pelo G2.
Figura 9: Trabalhando o letramento juntamente com a identidade pessoal.
Outra forma de contribuir com o processo de alfabetização e letramento é o
trabalho com as literaturas infantis. Essa que é permeada por possibilidades
distintas e que torna o trabalho pedagógico dinâmico, na medida em que oferece à
criança o desenvolvimento da imaginação, criatividade, de interpretação acerca das
vivências reais, entre outras, bem como instiga a curiosidade proporcionando prazer.
31
Desde o período de observação percebemos que a linguagem literária estava
fortemente presente. As professoras sempre promoviam as contações de história e
disponibilizavam livros para o livre manuseio, ações essas por diversas vezes
solicitadas pelas crianças. Acreditamos que tal incentivo veio a contribuir
significativamente na construção positiva dessa relação do G2 com a literatura. Esse
incentivo com certeza posteriormente virá a desenvolver nas crianças o gosto e
prazer em explorar o mundo da escrita.
Figura 10: Um dos diversos momentos de contação de histórias.
As utilizações feitas com as diferentes formas de expressão enriqueceram
significativamente o nosso trabalho desenvolvido com o G2. Além disso, contribuiu
para a ampliação de repertório das crianças, pois puderam experimentar e explorar
as múltiplas linguagens de maneiras diversificadas. Ao ler um livro não nos
restringíamos em apenas relatar a história, mas sim buscávamos relacionar com as
cores, formas geométricas, mostrar a escrita, os números, e tudo aquilo que fosse
possível. Fica claro então que as múltiplas linguagens inter-relacionadas promovem
muito mais experiências significativas a todo o grupo, tanto às crianças quanto às
professoras.
32
4 APROFUNDANDO-SE A PARTIR DO CONTEXTO VIVIDO: Os A rtigos
4.1 AS DIVERSAS FORMAS DE FALAR DAS CRIANÇAS: AS MÚ LTIPLAS
LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
PIMENTEL, Alice Grolli3
Resumo
Basear o trabalho pedagógico no desenvolvimento pleno e integral da criança significa proporcionar subsídios para isso. As múltiplas linguagens na Educação Infantil visam dar oportunidades para que a criança se manifeste nas suas mais variadas formas, não priorizando umas em detrimento de outras, propiciando assim, que a criança expresse seu modo de ver e interpretar o mundo, bem como transformando-o para melhor resignificá-lo. Dessa forma, ela produz cultura e se apropria das demais.
Palavras chaves: Múltiplas Linguagens. Formas de Expressão. Educação Infantil. Introdução
Num mundo letrado como hoje, onde ocorre a super valorização da escrita, e
na maior parte das vezes só são válidas expressões feitas por esse meio, as
crianças de 0 a 5 anos que não compreendem tais códigos, são prejudicadas pois
suas formas de expressão não são aceitas pela sociedade em geral. Além do que, é
do senso comum acreditar que as crianças pequenas ainda não possuem vontades
de expressão, pois o adulto é quem sabe tudo aquilo que é imprescindível para a
criança. Dessa forma é preciso que haja um lugar na sociedade no qual a criança e
suas necessidades venham em primeiro lugar, que permita a livre expressão dos
pequenos, por meio de linguagens acessíveis a eles.
No universo da Educação Infantil (EI), que é permeado de ludicidade e
descobertas, e pensado especialmente para os pequenos e suas necessidades, a
criança encontra maneiras e possibilidades de manifestar seus anseios, fantasias,
sua imaginação. Devem ser oferecidas para as crianças como forma de expressar-
se o desenho, a modelagem, a dança, a música, o faz de conta, a oralidade, entre
3 Acadêmica da 8ª fase do curso de Pedagogia, Habilitação em Educação Infantil, da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
33
outras possibilidades. Uma vez que vivemos numa sociedade letrada, a linguagem
escrita não deve ser deixada de lado, mas ao contrário deve ser trabalhada
juntamente com as demais linguagens. Sendo assim, as múltiplas linguagens por
desempenharem tal papel constituem-se como parte dos eixos de trabalho centrais
da EI.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para EI
(BRASIL/MEC/SEB, 2009), o trabalho do professor deve garantir experiências que
permitam à criança o contato com diferentes linguagens, nas quais ela possa
adquirir um progressivo domínio sobre as mesmas, sendo elas, a linguagem
dramática, plástica, musical, gestual e verbal. Dessa forma:
As experiências promotoras de aprendizagem e consequente desenvolvimento das crianças devem ser propiciadas em uma frequência regular e serem, ao mesmo tempo, imprevistas, abertas a surpresas e a novas descobertas. Elas visam a criação e a comunicação por meio de diferentes formas de expressão, tais como imagens, canções e música, teatro, dança e movimento, assim como a língua escrita e falada, sem esquecer da língua de sinais, que pode ser aprendida por todas as crianças e não apenas pelas crianças surdas. (BRASIL/MEC/SEB, 2009, p. 15)
Portanto, as experiências promovidas pelo professor não devem ser fixas,
mas sim estar abertas ao imprevisto, garantindo desse modo que a criança traga
também suas contribuições para que assim, ela crie novos significados a estas
experiências, dando-as novos sentidos. Permitir e aceitar aquilo que a criança traz
de suas vivências anteriores é considerá-la sujeito ativo na sua própria formação,
possibilitando à mesma que construa experiências que sejam significativas para si.
Meu interesse em aprofundar as questões referentes às múltiplas linguagens
se deu após o estágio de docência realizado na Creche Joaquina Maria Peres, no
bairro Itacorubi em Florianópolis. Durante o estágio, trabalhamos com o grupo G2,
formado por crianças de idades entre um ano e seis meses até dois anos de idade,
além de uma professora e uma auxiliar. O G2 é um grupo bastante integrado devido
ao longo período que já estão juntos4, podendo ser descrito por duas características:
autonomia e dinamismo.
Percebemos no decorrer do estágio que a rotina diária é bem delimitada. Os
tempos e espaços que a compõem são bastante conhecidos pelas crianças, que
4 O grupo está junto desde o G1, sendo esse o segundo ano em que crianças e professoras convivem diariamente.
34
sentem-se à vontade para se locomover entre a sala e o refeitório no momento do
almoço, ou dirigir-se sozinhas ao banheiro para fazer sua higiene, ou ainda circular
entre o hall e o parque. Essa rotina já interiorizada pelas crianças, permite a elas o
desenvolvimento da autonomia. Não pretendo aqui me aprofundar sobre a discussão
acerca da rotina. Outro fator em que as crianças demonstram ter bastante
autonomia é nas brincadeiras em sala. Não é sempre preciso que as professoras
proponham brincadeiras, elas mesmas as criam e as organizam utilizando todo o
espaço da sala e brinquedos a elas disponíveis.
O dinamismo presente no grupo, acredito ser influência da professora. Essa é
uma pessoa muito expressiva, capaz de se transformar em muitas. Dessa forma, ela
contagia e incentiva a expressividade das crianças. O G2 é um grupo que dança,
canta, brinca, interpreta, ouve histórias a todo o tempo. Tanto que mesmo sem
terem sua linguagem oral totalmente desenvolvida, já se fazem entender, bem como
suas vontades e necessidades.
As diferentes linguagens
As crianças, mesmo ainda quando não se apropriaram totalmente da
linguagem oral, encontram outras formas de se expressarem. No entanto é
importante que elas sejam incentivadas a usarem esses diferentes meios, sendo o
professor o principal responsável por isso, criando cada vez mais novas
experiências, nas quais as crianças possam dar novos significados e interpretações.
O brincar é uma atividade própria da criança, sendo uma das suas principais
linguagens, na qual seus gestos, sons, guiados pela imaginação e intencionalidade
da criança, resultam numa forma dela se expressar, e também apropriar-se do
mundo a sua volta, resignificando-o e reinterpretando-o a sua maneira e sempre que
necessitar. As crianças têm a capacidade de imitar e representar qualquer objeto e
situação que desejar. O ato de transformar um objeto em outro possibilita
reinterpretar as funções e sentidos desses objetos, auxiliando no descobrir tudo
aquilo que a cerca. Ainda nas brincadeiras de representação, é possível à criança
assumir diferentes papéis sociais, como o de mãe, pai, professora, filho, entre
outros, sendo dessa forma compreender a sociedade e seus jogos sociais.
35
Enquanto brinca a criança tem também a possibilidade de lidar com questões
que a afligem e seus conflitos:
Nesse aspecto, a atitude – lúdica – de quem brinca não é de simples prazer e de um fácil contentamento; é um viver a tensão das escolhas, dos conflitos, dos limites, do fazer e dos desfazeres das ações e imaginações em que o brincante experimenta o equilíbrio e o desequilíbrio, o contraste e o semelhante, a união e a desunião. (PEREIRA apud CARVALHO, 2005, p. 24)
Nesses momentos é possível que a criança encontre formas de solucionar
essas questões, chegando assim a tal equilíbrio. No decorrer do estágio, havia
crianças que ainda não se sentiam à vontade para iniciar seu desfralde, uma menina
que fazia parte do grupo, encontrou nos mascotes da sala uma forma de tratar essa
questão. Sempre nos momentos em que os mascotes e os pinicos ficavam
disponíveis às crianças, ela os colocava sentados nos pinicos, esperava uns
instantes e depois fazia movimentos como se estivesse limpando o bumbum deles.
Quando perguntávamos o que ela estava fazendo, ela respondia que eles haviam
feito coco ou xixi e apontava para o pinico.
Essa brincadeira foi a forma por ela encontrada de demonstrar que estava
tentando superar seus medos, para depois iniciar esse processo. Fica claro que no
brincar a criança expressa desde suas formas de perceber o mundo, seus medos e
conflitos bem como alegrias.
Durante o brincar, os gestos das crianças também nos dizem muito. A forma
como seus corpos se colocam, a amplitude dos gestos nos demonstram como a
criança se sente naquele espaço, naquele momento, corpos encolhidos nos cantos
dos espaços são formas de demonstrar timidez ou insegurança, ao contrário de
quando há bastante movimentação, por exemplo.
O trabalho com a expressão corporal pode ser realizado por meio da dança,
da imitação de animais e personagens, da exploração com objetos, entre outros.
Essas atividades permitem à criança desenvolver sua corporeidade, incentivando a
expressividade de sentimentos através da linguagem não verbal, aproximando
crianças e adultos, contribuindo também para o desenvolvimento da coordenação
motora, concentração, memória, sensibilidade, e além do que são atividades que
proporcionam bem estar. No momento que dança, a criança pode imitar o professor,
mas também manifestar-se livremente permitindo o que sua criatividade possibilitar.
36
Muito próxima à linguagem corporal, encontra-se a música. Por meio dela é
possível trabalhar diversas questões relacionadas à linguagem corporal, uma vez
que muitas das músicas infantis são acompanhadas de coreografias, ou fáceis de
serem interpretadas. No entanto a utilização da música na EI não se restringe
apenas a essas atividades, ou pelo menos não deveria. A música permeia toda a
vida do ser humano, estando presente em todas as culturas. Na nossa cultura
ocidental a música é uma forma de linguagem, muito usada para se expressar
emoções, sentimentos, ideologias. (NOGUEIRA, 2003).
A música na EI, aparece como mais uma forma de brincar, no qual o cantar, a
exploração de diferentes sons, fazem parte de vivências relacionadas ao mundo
sonoro, que fazem parte de toda nossa vida. Do mesmo modo que contribui para o
desenvolvimento motor da criança, através da noção de ritmo, batida, a música é um
rico meio de trabalhar questões cognitivas e afetivas. A criança quando incentivada
a cantar, sem importar-se com afinações e coisas do tipo, está sendo incentivada
também a manifestar-se sem vergonha ou medo, aumentando sua auto-estima.
Além disso a música é forma de socialização, permitindo a criação de laços entre
crianças e adultos.
A linguagem musical é também um recurso muito rico para auxiliar na
apropriação da linguagem oral. As crianças com as quais convivemos durante o
estágio estavam a todo tempo em contato com a tal linguagem, ora ouvindo, ora
cantando. Algumas delas já apresentavam um rico vocabulário, expressando-se
muito bem oralmente.
Outra forma de linguagem muito presente na EI é a linguagem plástica. A
pintura, a modelagem, o desenho também são maneiras de a criança representar
aquilo que compreende, anseia e deseja. Devido a tal fato, os desenhos infantis têm
sido muito usados como instrumento de pesquisa a fim de compreender o
pensamento da criança e suas percepções sobre o mundo:
(...) o desenho seria um instrumento oferecido para que, (...) pudéssemos conhecer mais sobre os olhares e concepções que as crianças pequenas têm de seu universo, que é também por elas construído, vivenciado, imaginado, desejado, desenhado. (GOBBI apud FARIA, 2002, p.87)
Tendo o desenho esse caráter de simbolizar aquilo que a criança pensa e
sente, é importante que ela tenha a possibilidade de se expressar livremente, não
37
sendo incentivada a fazer cópias e desenhos estereotipados, pois esses inibem a
criatividade, não permitindo que ela manifeste-se. Por isso, é importante também
que sejam disponibilizados às crianças diversos materiais, desde giz de cera, lápis
de cor, canetinhas, tinta guache, entre outros, para que as produções se tornem
cada vez mais ricas.
Outro aspecto sobre o desenho e apontado por Mello (2009) é percebê-lo
como uma representação gráfica do gesto, que aos poucos se torna uma
representação gráfica e simbólica dos objetos. Para a autora essas formas de
expressão se constituem como base para o aprendizado da escrita, pois elas são o
intermédio entre o gesto e a escrita, a representação. Nas palavras de Mello (apud
FARIA, 2009):
(...) entende-se que a representação simbólica no faz de conta e no desenho é uma etapa anterior e uma forma de linguagem que leva à linguagem escrita: desenho e faz de conta compõem uma linha da comunicação – às formas superiores da linguagem escrita. Essa forma superior da linguagem escrita deve ser entendida como o momento em que o elemento intermediário entre a realidade e a escrita – a linguagem oral – desaparece e a escrita se torna diretamente simbólica, ou seja, percebida como uma forma de representação direta da realidade. (p. 25)
Ou seja, durante o desenvolvimento da criança ela passa a representar seus
gestos e entendimentos através dos desenhos, que nesse sentido estão conjugados
à oralidade, à medida em que a criança insere-se ainda mais no mundo letrado,
sentindo necessidade de exercer domínio sobre a escrita, ela passa a representar
esses gestos e entendimentos através de palavras. A aquisição da linguagem escrita
deve surgir à criança a partir de sua vontade. É importante que desde pequena ela
tenha contato com diversos gêneros literários, e outras formas de escrita,
incentivando assim seu letramento. Mas a alfabetização deve ocorrer de forma
natural, sem que haja cobranças da aquisição da escrita ainda na EI.
O encontro de todas as linguagens
Considerando que o trabalho na EI visa o desenvolvimento pleno e integral da
criança, utilizar cada linguagem de forma isolada acaba por não favorecer esse
processo, pois fragmenta a ação, não permitindo que se tenha uma visão geral,
logo, dificultando o olhar como um todo. O trabalho com as múltiplas linguagens
38
deve ser realizado de forma contextualizada, entendendo que elas complementam
umas às outras, como fica claro nas Diretrizes Curriculares Nacionais para EI:
É necessário considerar que as linguagens se inter-relacionam: por exemplo, nas brincadeiras cantadas a criança explora as possibilidades expressivas de seus movimentos ao mesmo tempo em que brinca com as palavras e imita certos personagens. Quando se volta para construir conhecimentos sobre diferentes aspectos do seu entorno, a criança elabora suas capacidades linguísticas e cognitivas envolvidas na explicação, argumentação e outras, ao mesmo tempo em que amplia seus conhecimentos sobre o mundo e registra suas descobertas pelo desenho ou mesmo por formas bem iniciais de registro escrito. (BRASIL/MEC/SEB, 2009, p. 15)
Sendo assim, o trabalho pedagógico integrando as múltiplas linguagens torna-
se mais rico, pois possibilita que a criança adquira novas habilidades, ampliando
suas competências. Dessa forma, os espaços devem permitir que a criança sinta-se
bem naquele local, onde ela possa soltar sua imaginação, criando e inventando
brincadeiras e situações. É importante que ao preparar os espaços se pense nas
mais diversas possibilidades de linguagens, propiciando um ambiente rico, lúdico
que permita as diferentes formas de expressão das crianças, e também as
interações dela com os objetos, com os adultos e com as demais crianças.
Portanto, pensar a prática pedagógica pautada nas múltiplas linguagens exige
que o tempo e espaço da EI seja organizado em prol das crianças e com o auxílio
delas, de forma a desafiar suas diferentes formas de expressão, da motricidade à
imaginação. Barbosa (2006) já nos alerta que a organização do espaço implica uma
série de valores, uma vez que traduz um modo de perceber a infância, o
desenvolvimento das crianças, o papel do professor e as concepções defendidas
pelos adultos.
Além da organização do espaço é importante pensar na organização do
tempo e dos materiais disponíveis. Sabe-se que a prática pedagógica pauta-se
numa rotina, na qual são organizadas as atividades rotineiras, como alimentação,
higiene, sono, e as demais propostas. Assim como os espaços, a rotina deve ser
feita pensando nas reais necessidades da criança, equilibrando brincadeiras auto-
organizadas pelas crianças e propostas pelos adultos, momentos de interação de
grande e pequeno grupo, uso dos espaços internos e externos, entre outros
aspectos. Deve ser uma rotina flexível, na qual a criança possa participar de sua
construção. Do mesmo modo os materiais disponíveis às crianças devem permitir
39
que elas os explorem de diferentes modos. Conforme dito anteriormente, quanto
mais rica a disponibilidade de materiais, mais significativas serão as experiências
vivenciadas.
Considerações Finais
Vivemos num contexto cultural e histórico onde todos o interpretam, o
resignificam e o transformam de acordo com os valores e crenças priorizadas em
cada época. As crianças, à sua maneira, também contribuem para esse processo.
Nas interações com os adultos elas se apropriam dos conhecimentos culturais e,
portanto humanos. No entanto é quando elas interagem com outras crianças que
elas constroem suas próprias culturas, as culturas infantis, pelo modo diferente de
ver o mundo em relação ao adulto.
Para que essas culturas infantis sejam ricas é necessário criar condições para
isso. O trabalho com as múltiplas linguagens permite à criança o contato com as
mais diversas experiências, nas quais ela pode dar novos significados ao mundo à
sua volta, manifestando-se de forma que tenha sua criatividade e imaginação
respeitadas e incentivadas.
O uso dessas diferentes linguagens, utilizando-as de forma conjugadas, nas
quais uma complementa a outra, proporciona que a criança tenha certo domínio
sobre essas linguagens, sabendo além de manifestar-se por elas, interpretá-las, nas
suas mais variadas formas. Essa leitura das linguagens é fundamental para a
construção de uma leitura de mundo crítica.
Além disso, a oportunidade de vivenciar diferentes experiências, por meio de
diversas linguagens, contribui imensamente para a ampliação do repertório cultural
das crianças. No entanto para que esse repertório seja ainda mais diversificado, é
interessante que o professor traga aspectos e manifestações de outras culturas, não
tão acessíveis às crianças. Assim, o objetivo principal da EI de proporcionar o
desenvolvimento pleno e integral da criança é alcançado da melhor forma possível.
40
4.2 FAZENDO USO DAS MÚLTIPLAS LINGUAGENS: A importâ ncia das práticas
de alfabetização e letramento com as crianças de Ed ucação Infantil
PINHEIRO, Bruna Helena5.
Resumo
Este artigo é fruto das vivências concebidas no período do estágio de docência, ele está voltado à discussão da importância das práticas de alfabetização e letramento com as crianças de zero a seis anos de idade. Caracterizando tal prática como um direito da criança pequena ao seu desenvolvimento integral por via do acesso às múltiplas linguagens, bem como a sua inserção social em nossa sociedade letrada. Desmistificando assim, alguns conceitos acerca de alfabetização e letramento, bem como problematizando as práticas pedagógicas e a função social do professor de Educação Infantil, que deve estar sempre a favor da ampliação do repertório cultural das crianças. Palavras chave: Alfabetização. Letramento. Educação Infantil. Introdução
Nosso campo de estágio era verdadeiramente rico e recheado de
possibilidades. Ele foi realizado na Creche Joaquina Maria Peres, localizada no
bairro Itacorubi em Florianópolis. As crianças com as quais trabalhamos tinham de
um ano e seis meses até dois anos de idade, e estavam inseridas no grupo titulado
por G2. Tal grupo possuía um forte laço afetivo entre todos os envolvidos, crianças,
professoras e familiares, bem como era muito dinâmico, estava sempre em
movimento.
As crianças do G2 estavam a todo o momento nos surpreendendo, na medida
em que tinham muita autonomia, reconheciam e atribuíam significados a tudo que as
cercavam naquele espaço, principalmente no que se referia às atividades rotineiras
– momento do parque, sono, refeitório, higiene, entre outros. Percebemos que tais
atividades eram plenamente dominadas pelo grupo. A partir daí começamos a sentir
falta de propostas sistematicamente organizadas pelo adulto e sua correspondente
intervenção pedagógica, nesse mesmo espaço já tão internalizado, que desafiassem
as crianças. Nesse sentido fez-se um trabalho, no qual víamos muito pouco, voltado
5 Acadêmica da 8ª fase do curso de Pedagogia, Habilitação em Educação Infantil, da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
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à alfabetização e letramento, elementos fundamentais para comunicação em nossa
sociedade letrada, bem como de direito da criança pequena.
Sabemos que tais desafios não seriam só impostos às crianças, mas também
às professoras. Essas que precisariam largar de mão o planejamento espontaneísta,
baseado nas atividades rotineiras e em algumas possibilidades que surgem no
decorrer do dia a dia, e sistematizá-lo, isto é, traçar uma intencionalidade definida e
planejá-la. O ato de planejar sistematicamente garante ao professor muito mais
credibilidade no trabalho desenvolvido com as crianças, quando contempla os
interesses e necessidades de todos os envolvidos. É válido ressaltar que
sistematizar não significa apenas demarcar objetivos, ou até mesmo atividades
específicas, mas sim programar vivências significativas que podem ser
reconstruídas ao longo da caminhada (OSTETTO, 2000).
Durante o trabalho com o G2 ficou muito claro o fato de que as crianças já
possuem muitos conhecimentos sob tudo que as cercam. Em diversos momentos
elas conseguiam nos dizer, por meio de gestos, chorinhos, expressões faciais e
muitas vezes até pela oralidade o que achavam das coisas, o que queriam ou não
queriam.
Em meio a essa discussão partimos do princípio de que a criança está
inserida em um universo de conhecimentos e informações desde o seu nascimento
e não fica neutra diante a tudo isso. Muito pelo contrário, ela faz sua leitura de
mundo atribuindo significado a tudo que a cerca. Dessa forma, podemos afirmar que
a criança começa a se alfabetizar muito antes de entrar na escola, no momento em
que passa a identificar os objetos de sua realidade.
Além disso, o domínio da leitura e da escrita é instrumento fundamental para
a inserção numa sociedade letrada como a nossa. Tal domínio auxilia-nos a
compreender os conhecimentos historicamente produzidos, a nos comunicar, a
registrar, entre outras. É válido lembrar que não defendemos o domínio técnico da
escrita e leitura, no qual consiste na mera codificação e decodificação dos códigos
escritos, pois esse por si só não atende às exigências do mundo social. Idealizamos
a formação de indivíduos alfabetizados e letrados, que reconheçam os usos e
funções da escrita, bem como sua cultura, para que assim possam se posicionar
criticamente perante as suas relações com os outros e com o mundo em que vivem.
(MORTATTI, 2004).
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Diante a tudo isso a Educação Infantil (EI), sendo a primeira esfera da
educação básica, tem o dever de contemplar/iniciar, com as crianças de zero a seis
anos, o processo de alfabetização e letramento. Tal iniciação não deverá se
restringir ao ensino das letras, mas sim contemplar o universo de conhecimento das
diferentes formas do discurso escrito, as suas possíveis estruturas e situações a
serem utilizadas
Ampliando o conceito de alfabetização e letramento
A concepção de que o processo de alfabetização e letramento se inicia na
pré-escola para preparar as crianças ao ingresso no ensino fundamental ainda é
muito disseminada e praticada em diversas escolas infantis, que desconhecem ou
mesmo desvalorizam as múltiplas linguagens e formas de expressão, bem como
descartam a possibilidade de propor trabalhos voltados ao início do processo de
alfabetização com as crianças bem pequenas.
Alfabetizar é disponibilizar o acesso ao mundo da escrita, é a possibilidade
das pessoas transitarem pelos discursos da escrita e terem condições de operarem
criticamente com os modos de pensar e produzir dessa cultura escrita. E aliado à
alfabetização surge também o conceito de letramento, que é o entendimento da
função social da escrita, que oferece possibilidades de sua utilização como um
instrumento culturalmente produzido. Além disso, segundo Mortatti (2004) o
letramento possui uma outra preocupação na medida em que:
Letramento está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas funções e seus usos nas sociedades letradas, ou, mais especificamente, grafocêntricas, isto é, sociedades organizadas em torno de um sistema de escrita e em que esta, sobretudo por meio do texto escrito e impresso, assume importância central na vida das pessoas e em suas relações com os outros e com o mundo em que vivem. (p. 98)
Dessa forma fica claro que a importância de alfabetizar e letrar vai além da
formação de indivíduos críticos, mas implica também na preparação para a vida no
mundo social. Visto que em nossa sociedade letrada a prática de escrita e leitura
são exigências básicas.
Como pudemos observar alfabetização e letramento possuem conceitos
distintos, mas que em nosso anseio por uma educação de qualidade precisam
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mesmo estar juntos, chegando até ao ponto de se misturarem. Pois na sociedade
em que vivemos somente o fato de ser alfabetizado não basta, bem como não
garante que a pessoa seja letrada (MORTATTI, 2004). Portanto, se separarmos
esses conceitos, pensando-os como processos distintos, corremos o risco de não
atender às exigências pessoais e sociais de nossa sociedade.
Ao discutir a presença de um ensino voltado à alfabetização e letramento na
EI, Mello (2005) faz um interessante alerta às instituições que muitas vezes acabam
por separar as formas de expressão, como o desenho, o faz de conta, a escrita, a
leitura, entre outras. A autora realça a importância das múltiplas linguagens na
formação humana da criança, não podendo privilegiar algumas numa determinada
etapa esquecendo-se de outras. Para ilustrar melhor isso podemos citar o seguinte
exemplo: as escolas de EI enfatizam o trabalho com os desenhos, faz de conta, com
o lúdico em geral; e por outro lado a pré-escola e as séries iniciais trabalham com as
primeiras letras, enfocando na escrita. Nesse sentido Mello (2005) acrescenta que:
Tais atitudes e capacidades [formas de expressão] formam as bases necessárias para apropriação da escrita. Por isso, quando defendo a necessidade de a criança – seja na educação infantil, seja no ensino fundamental – expressar-se por meio das muitas linguagens possíveis na escola, não quero com isso excluir a linguagem escrita. Ao contrário, quero incluí-la de modo que se torne mais uma linguagem de expressão das crianças. O fato é que essas linguagens não podem estar separadas, nem entre si, nem separadas de experiências significativas que tragam conteúdo à expressão das crianças nas diferentes linguagens. (p.35)
O trabalho com a alfabetização e letramento deve sim estar presente desde a
EI, com todas as idades. O professor poderá promover conforme os interesses de
seu grupo propostas que abranjam as múltiplas linguagens, como por exemplo, ao
programar um passeio com o grupo pedir que as crianças façam um teatro,
desenho, pintura ou colagem que trace as perspectivas ou o trajeto de como será tal
experiência. Dessa forma, estamos trabalhando não só as formas de expressão,
mas também os desejos de expressarem-se. Paralelo a isso surge a escrita, que
poderá sempre estar presente de forma mais ou menos intensa, dependendo dos
interesses e conhecimentos de cada grupo. Posteriormente, certamente
desenvolverá nas crianças a curiosidade e desejo de experimentar essa forma de
expressão tão almejada e temida por alguns que é a escrita, tornando sua aquisição
um processo prazeroso e com muito significado.
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As formas de expressão: um direito de toda criança
As múltiplas linguagens têm o papel de proporcionar as mais diversas
experiências de distintas formas. Nesse sentido as Diretrizes Nacionais para EI
(2009), alertam que as práticas pedagógicas na EI não podem fragmentar a criança
nas suas possibilidades de viver novas experiências. A partir disso esse mesmo
documento afirma que:
As experiências promotoras de aprendizagem e consequente desenvolvimento das crianças devem ser propiciadas em uma frequência regular e serem, ao mesmo tempo, imprevistas, abertas a surpresas e a novas descobertas. Elas visam a criação e a comunicação por meio de diferentes formas de expressão, tais como imagens, canções e música, teatro, dança e movimento, assim como a língua escrita e falada (...) (BRASIL, MEC/SEB, 2009. p.15)
Diante a essa discussão é possível afirmar então que as linguagens se
relacionam entre si, não podendo ser trabalhadas de forma isolada, mas sim de
maneira integrada e harmoniosa, promovendo significativas aprendizagens. No que
se refere a linguagem escrita, fica claro que ela deve estar presente. O que muitos
professores de EI se perguntam é de que forma essa linguagem tão complexa pode
estar presente no trabalho com as crianças pequenas, e a resposta para essa
indagação é muito simples: Abuse da criatividade!
No trabalho com as crianças do G2 percebemos que elas recebiam muito
bem e até mesmo solicitavam propostas com as mais diversas formas de expressão,
como a pintura com tinta guache ou giz de cera, colagem, as brincadeiras de faz de
conta, os momentos de contação de histórias, entre outras. Captamos essa
aprovação das crianças em diversas ocasiões que vinham ao encontro da ideia de
promover experiências utilizando diversas linguagens.
De acordo com o que discutimos até agora acerca da importância de um
trabalho na EI voltado as múltiplas linguagens integradas é válido relatar dois
momentos ricos observados no período vivenciado com o G2. Um dos momentos foi
durante uma contação de história, quando percebemos algumas crianças
estabelecendo relações entre as formas e cores da história com as cores de roupas
e elementos já conhecidos, sem o auxílio de nenhum adulto. Um segundo momento
muito interessante aconteceu quando uma criança estava brincando com um jacaré
de fantoche e relacionou o olho do jacaré com a primeira letra de seu nome, o “B”.
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A partir de momentos como esses citados, cabe ao professor perceber o
quanto cada criança já conhece sobre as linguagens e assim criar maneiras de
desafiá-la ainda mais. Para estabelecer esses desafios não é preciso escolher uma
atividade específica, mas sim entender que é possível criar e recriar os momentos
diariamente, em atividades simples como as dos exemplos relatados. Devemos ter
em mente que é possível deixar as múltiplas linguagens sempre presentes nos
trabalhos desenvolvidos com as crianças, de forma mais ou menos intensas de
acordo com a proposta.
O trabalho pedagógico e a função social do professo r de EI
Como foi visto acima devemos pensar o processo de alfabetização e
letramento já com as crianças da EI. Mas como? Para iniciar essa mudança é
preciso termos em mente que a criança pequena não se tornará mais letrada, ou
mais alfabetizada, por si só, pelo simples contato com o meio em que vive ou
objetos que manipula. Nesse sentido Mayrink-Sabinson realiza um estudo
estruturado em registros de observação com sua filha, de um ano de idade até os
sete anos e três meses, quando a menina é considerada “alfabetizada” pela escola.
A autora analisa a aquisição, os usos e funções da escrita, procurando entender
como a intervenção do adulto pode auxiliar na formação de cidadãos letrados.
No decorrer da pesquisa Mayrink-Sabinson (2002) coloca a primeira
passagem que julga ter sido o despertar de sua filha, Lia, pela leitura:
Começo a ler para Lia quando, aos 1 ano e 18 dias, observo-a passando o dedinho indicador sobre as letras grandes, em vermelho, sobre o fundo azul, numa embalagem de sacos de lixo que ela retira do armário na cozinha. Na ocasião aproximo-me (estava inicialmente a cerca de dois metros), sento-me a seu lado, retomo o gesto de passar o dedo sobre a escrita e leio a palavra escrita “Sanito”. Ou seja, a ação de Lia de passar o dedo pela escrita, o seu olhar a escrita, são interpretados por mim como indício de interesse pela escrita (e não pela cor, a textura do material plástico etc.). (...) Eu diria que, a partir de então, o adulto se empenha, junto à criança, na constituição de um interesse pela escrita. (p.92)
A percepção do adulto diante a momentos como esse segundo a autora
podem ser decisivos. Esse exemplo mostra claramente o olhar da criança perante
aquilo que está manipulando, bem como a sensibilidade e racionalidade do adulto
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que assume o papel de estimulador, na medida em que senta e auxilia a criança a
atribuir um novo significado para aquilo que está mexendo (a escrita).
Pensando esse contexto é possível estabelecer uma relação entre o adulto
citado por Mayrink-Sabinson – ela mesma, mãe e pesquisadora de Lia - com o
professor de EI. Esse que durante o processo educativo-pedagógico tem o papel de
propor situações desafiadoras, respeitando sempre o contexto cultural no qual cada
criança está inserida, bem como suas necessidades, anseios e interesses.
Para então organizar essas propostas o professor estimulador precisa
elaborar seu planejamento. Esse que no entendimento de Ostetto (2000) assume a
seguinte definição:
Planejar é essa atitude de traçar, projetar, programar, elaborar um roteiro para empreender uma viagem de conhecimento, de interação, de experiências múltiplas e significativas para/com o grupo de crianças. Planejamento pedagógico é atitude crítica do educador diante de seu trabalho docente. Por isso não é uma forma! Ao contrário, é flexível e, como tal, permite ao educador repensar, revisando, buscando novos significados para sua prática pedagógica. (p.177)
O planejamento então é um exercício do professor, construído e reconstruído
no dia a dia. Não existe fórmula única, mas sim exclusiva, que deverá atender e se
adaptar às peculiaridades de cada grupo. Desafiar significa atender àquilo que as
crianças querem de forma mais intensa, e àquilo que elas desconhecem.
Favorecendo assim a exploração, descoberta e apropriação sobre o mundo em que
estão inseridas, bem como criando situações significativas e ampliando o repertório
cultural de cada criança.
Considerações Finais
O inicio do nosso estágio de docência foi marcado por muito nervosismo e
ansiedade, o que é bastante normal. Tivemos muito cuidado em projetar e planejar
momentos que seriam realmente significativos às crianças. Ao fazermos isso sempre
traçávamos em nossa mente o que era esperado do grupo, baseando-se naqueles
tais “padrões” da faixa etária, talvez até de forma inconsciente. Entretanto, na
medida em que o tempo se passava nos surpreendíamos muito com o G2, pois
sempre recebíamos mais do que o esperado. Visto que tal grupo se apresentava
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bastante consolidado, com um amplo repertório cultural no que se refere a conceitos
básicos – como a identificação de cores, partes do corpo humano, formas
geométricas, entre outros.
O entendimento acerca da importância das múltiplas linguagens na formação
das crianças pequenas e da possibilidade de integrar tais linguagens foi
efetivamente concebido por nós no decorrer do estágio com as crianças do G2.
Quando aos poucos elas nos desafiavam a descobrir um pouco mais acerca do que
demonstravam já saber.
O trabalho voltado a práticas de alfabetização e letramento não foi projetado
inicialmente, não havia nem passado por nossos planos essa ideia, até então
complexa, de contemplar tais práticas com um grupo de crianças tão pequenas.
Entretanto, quando as trouxemos ao grupo já não tínhamos mais dúvida de que as
crianças iriam receber muito bem a proposta. E assim aconteceu, ao darmos a cada
criança cartelas com seu nome, lendo para elas, percebemos alguns olhares muito
atentos, uns mais desconfiados e outros muito felizes ao ponto de brincar com as
cartelas, rasgá-la, pintá-la e demonstrar a outras pessoas que aquilo escrito, a
princípio tão novo e desconhecido, significava algo que era seu, que lhe
representava.
Com certeza essas crianças já haviam visto e tocado a escrita antes, mas o
que fez a diferença foi a possibilidade criada pelo adulto em estabelecer o desafio a
elas de olhar aqueles códigos escritos que até então passavam despercebidos, não
ultrapassando o papel de meros códigos, como algo que revela muitas coisas
significantes. Nesse trabalho com as cartelas fizemos uso não só da linguagem
escrita, mas também propomos às crianças a pintura estabelecendo relação com a
oralidade, lendo para cada uma delas o que estava escrito, os seus nomes e dos
amigos.
Em outro momento, em que fixamos os nomes das crianças num determinado
objeto de uso pessoal (penico), além de lermos para elas, incorporamos a cada
penico um desenho já conhecido, ou um objeto do qual (observávamos que)
gostavam. Dessa forma, conseguimos desafiar as crianças do grupo a relacionarem
a escrita com símbolos. O resultado foi bastante positivo, pois além de instigá-las a
estabelecer tal relação ficou claro que a maioria passou a aceitar o penico muito
melhor, reconhecendo- o como realmente seu e utilizando- o de diversas maneiras.
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A leitura e a escrita são habilidades que a criança de até dois anos
certamente ainda não domina, mas que seguramente possui todas as ferramentas e
direito de saber que elas existem, para que existem e como usá-las. Essa que é a
função social do adulto, precisamente do professor de EI, em estar sempre
proporcionando novas experiências às crianças, e desafiando- as saber mais acerca
do que já conhecem e entendem. Tornando assim o processo educativo-pedagógico
recheado de significados, e nos levando a crer que é um meio eficaz para ampliação
de repertórios culturais.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A busca por uma EI que parta das necessidades das crianças, visando seu
desenvolvimento integral, é tarefa árdua e longa. Tal fato ficou ainda mais claro para
nós durante nosso processo de estágio. O planejar, registrar e avaliar pensando nas
crianças tornou-se tarefas constantes, realizadas a partir de muita reflexão.
Um dos fatores mais relevantes para nós durante o período de docência foi a
oportunidade que esse concebeu em articular conhecimentos adquiridos durante a
universidade com aquilo que gostaríamos de executar com as crianças. Muitas
vezes tais conhecimentos que pareciam tão abstratos, até mesmo utópicos, foram
aos poucos ganhando formas e se revelando ao longo dessas vivências com o G2.
Tais como a organização de um planejamento flexível; replanejar a partir de
reflexões trazidas nos registros diários; visualizar e problematizar a organização de
uma rotina; a importância das múltiplas linguagens no desenvolvimento pleno da
criança; entre outros.
Ao escolhermos nossa temática, a identidade pessoal e social, tínhamos
consciência que era preciso ir muito além. Sendo assim, nos deparamos com
questões que muitas vezes ainda são restringidas como forma de cuidado, não
sendo também situações nas quais ocorra o educar, mesmo já tendo toda uma
discussão teórica acerca das ações de cuidar e educar simultaneamente. No
trabalho com a higiene, o desfralde e as atividades rotineiras, acreditamos que foi
possível estabelecer uma integração entre os conceitos de educar e cuidar, dando
nova cara a esses momentos, deixando-os mais educativos, de forma que fossem
significativos ao G2.
Foi gratificante observar as experiências das crianças resultando em grandes
e significativas contribuições para o desenvolvimento das mesmas. Dessa forma,
podemos afirmar que o estágio não foi positivo apenas para nossa formação como
professoras, mas também para as crianças, na medida em que ampliaram seus
repertórios culturais.
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