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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Mariana Scarambone Jayanetti Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações Rio de Janeiro 2014

Universidade do Estado do Rio de Janeiro · Arte como religião: pensando a busca religiosa através de separações. 2014. 135 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea)

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes

Mariana Scarambone Jayanetti

Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações

Rio de Janeiro

2014

Mariana Scarambone Jayanetti

Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.

Orientadora: Prof.a Dra. Cristina Adam Salgado Guimarães

Rio de Janeiro

2014

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEH-B

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta

dissertação, desde que citada a fonte.

_____________________________________________ _____________________

Assinatura Data

J42 Jayanetti, Mariana Scarambone. Arte como religião: pensando a busca religiosa através de

separações / Mariana Scarambone Jayanetti. – 2014. 135 f.: il. Orientadora: Cristina Adam Salgado Guimarães. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Arte e religião – Teses. 2. Arte e sociedade – Teses. 3.

Alteridade – Teses. 4. Corpo como suporte da arte – Teses. I. Salgado, Cristina, 1957-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 7:2

Mariana Scarambone Jayanetti

Arte como Religião: pensando a busca religiosa através de separações

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.

Aprovada em 20 de março de 2014.

Banca Examinadora:

_____________________________________________

Profª. Dra. Cristina Adam Salgado Guimarães (Orientadora)

Instituto de Artes - UERJ

_____________________________________________

Profª. Dra. Tânia Alice Felix

Instituto de Artes - UERJ

_____________________________________________

Prof. Dr. Marcelo Gustavo Lima de Campos

Instituto de Artes - UERJ

Rio de Janeiro

2014

DEDICATÓRIA

Para meus pais, Nêga Scarambone e Don Kulatunga Jayanetti (in memorian), e para

meus irmãos, Nanda, Rosana e Don Rogério.

AGRADECIMENTOS

A Cristina Salgado, pela atenciosa e vital orientação.

Aos Professores Aldo Victorio Filho, Denise Espírito Santo da Silva, Marcelo

Campos, Maria Berbara, Leila Danziger, Malu Fatorelli, Ricardo Basbaum, Roberto

Corrêa dos Santos e Rodrigo Guéron, pelo conhecimento partilhado.

Aos amigos Isabella Pimentel, Ítala Isis, Vinicius Azevedo, Stéphane Dis, Sara

Panamby, Filipe Espindola, Odilon Rosa, Pedro Costa e Rodrigo Borba, pelos

valiosos conselhos.

Às muitas famílias que me acolheram pelo mundo afora, e aos parceiros cuja

presença sempre permanecerá em mim: Sandra, Renato, Nair e Rodrigo, Salvador

Castelo Branco, Alexandra Honoré, Vitor Pinto, Jeyson Hiroyto, David Medalla, Nick

Sawer, Monica de Miranda, Kazuo Iha, Adir Botelho, Lourdes Barreto e Marcos

Varela, Octávio, Alex, Grace, Marli, Tâmara, Oswaldo, Marcone, Pablo e Vivi, Ana,

Nana, Cris, Melissa, Melke e Mathu, Lene, Maria, Juju, Fabi, Eneida, Cia do Foco,

Gabriel e João.

RESUMO

JAYANETTI, Mariana Scarambone. Arte como religião: pensando a busca religiosa através de separações. 2014. 135 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Arte como Religião é um convite à reflexão sobre religião por meio de trabalhos artísticos. A pesquisa artística, poética e filosófica sobre a relação fronteiriça entre arte e religião teve seu ponto de partida na minha história pessoal e foi desenvolvida relacionando as ideias de separação e alteridade como essenciais para a religião, e as ideias de transgressão e linguagem como essenciais para a observação da arte. O conceito poético foi delimitado pelos trabalhos artísticos Relicários de Santos Vivos e Canonizador AcSeita Coletivo, que partindo da ideia da separação busca isolar a figura dos ‘santos’ como os seres autorizados à busca religiosa e à prática de lidar com o sagrado, passando-se a observar, por meio dos objetos utilizados pelos mesmos, as mudanças de valores sociais. Palavras-chave: Arte e linguagem. Alteridade e relações sociais. Religião e

experiência interior.

 

ABSTRACT JAYANETTI, Mariana Scarambone. Art as Religion: thinking the search for religion through separations. 2014. 135 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Art as Religion is an invitation to reflect on religion through artwork. The

artistic, poetic and philosophical research on the border relationship between art and religion had its starting point in my personal history and was developed relating the separation of ideas and diversity as essential to religion, and the transgression of ideas and language as essential to the observation of art. The poetic concept was defined by artwork Reliquary of Saints Alive and Canonizador AcSeita Collective, which on the idea of separation seeking to isolate the figure of the 'saints' as being authorized to the religious quest and the practice of dealing with the sacred, going-to observe, through the objects used by them, changes in social values. Keywords: Art and language. Alterity and social relations. Religion and inner

experience.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Fotografia do passaporte do Monge Anuruddha Bikhu........... 13

Figuras 2 e 3 – AcSeita Coletico. Relicários em Caixas de Fósforo................ 15

Figura 4 – Fotografia da Sede da Sociedade Budista em Santa Teresa

em construção......................................................................... 16

Figura 5 - Fotografia de Don Kulatunga ................................................. 17

Figura 6 – AcSeita Coletivo. Primeiros relicários .................................... 19

Figura 7 - AcSeita Coletivo. Para que Santo rogas................................. 19

Figura 8 - Instalação Canonizador AcSeita Coletivo. XI Festival de

Apartamentos de Campinas.................................................... 20

Figuras 9 e 10 - Instalação Canonizador AcSeita Coletivo. Evento de Arte e

Moda ManiKuss ..................................................................... 21

Figura 11 - AcSeita Coletivo. Canonização de Santa Mariana

Scarambone ........................................................................... 20

Figura 12 - AcSeita Coletivo. Santos Heréticos ....................................... 24

Figuras 13 e 14- Movimento Cidades Invisíveis. Poesias Urbanas.................. 26

Figura 15 - AcSeita Coletivo. Super Cristo ............................................... 28

Figura 16 - AcSeita Coletivo. Caixa da série Virando Buda ..................... 25

Figuras 17 e 18- Mariana Scarambone. Instalação Canonizador AcSeita

Coletivo montado no CCHO, em versão reduzida ................. 31

Figuras 19 a 22- AcSeita Coletivo. Santos AcSeita Coletivo ............................ 34

Figura 23 - Detalhe do canonizador exposto no CCHO, RJ ..................... 35

Figura 24 - AcSeita Coletivo. Série Artistas (santos) e seus vícios........... 38

Figura 25 - Fotografia da Gruta de Lascaux ............................................. 41

Figura 26 - AcSeita Coletivo. Relicários em Caixas de Fósforo ............... 44

Figuras 27 e 28 - AcSeita Coletivo. Primeira apresentação do Canonizador

AcSeita Coletivo ..................................................................... 47

Figuras 29 e 30 - AcSeita Coletivo. Relicário de Don Kulatunga........................ 48

Figura 31 - AcSeita Coletivo. Relicário de Don Kulatunga ....................... 50

Figuras 32 e 33 - AcSeita Coletivo. Relicários em Caixas de Fósforo ............... 62

Figuras 34 e 35 - AcSeita Coletivo. Relicários em caixas de Fósforo ................ 63

Figuras 36 a 38 - Mariana Scarambone. Totens de Luz. 2013 – em processo 65

Figuras 39 a 41 - Mariana Scarambone. Light Box………………....................... 71

Figuras 42 e 43 - Mariana Scarambone. Light Mail. .......................................... 72

Figura 44 - Mariana Scarambone. Instalação ‘Light Mail’. ‘Translatino

Highway’ ………….................................................................. 72

Figura 45 - Mariana Scarambone. Oficina de serigrafia e instrumentos

musicais feitos com objetos reciclados .................................. 73

Figura 46 - Mariana Scarambone. Performance com Casulos de

Objetos Tocantes no Parque das Ruínas. ............................. 73

Figura 47 - Mariana Scarambone. Detalhe de um ‘Objeto tocante’ ......... 74

Figura 48 - Malu Fatorelli. Superfície limite............................................... 75

Figura 49 - Gian Shimada. Cordel Cultural .............................................. 77

Figura 50 - Gian Shimada. Mapa das Arte. Intervenção urbana. 2013 .... 78

Figura 51 - Gian Shimada. Mapa das Arte. RJ. 2013 ............................... 78

Figura 52 - AcSeita Coletivo. Detalhe da instalação Canonizador

AcSeita Coletivo ..................................................................... 80

Figura 53 - AcSeita Coletivo. Instalação Canonizador AcSeita Coletivo .. 80

Figuras 54 a 56 - AcSeita Coletivo. Santa Marcela Mara ................................. 83

Figura 57 - AcSeita Coletivo. Santa Aline Oliveira tomando o primeiro

gole enquanto Santa .............................................................. 86

Figuras 58 e 59 - AcSeita Coletivo. Santa Ana Rosa tomando o primeiro gole

enquanto Santa ...................................................................... 86

Figura 60 - AcSeita Coletivo. Canonização de Solange tô Aberta! .......... 95

Figura 61 - AcSeita Coletivo. Detalhe da instalação Santa Trindade ....... 79

Figuras 62 e 63 - Ron Athey. St. Sebastien/50. ................................................ 99

Figura 64 - Sara Panamby e Filipe Espindola. Compassos do Ocaso. .... 102

Figura 65 - Sara Panamby. Consagração / Defesa de mestrado ............. 102

Figura 66 - AcSeita Coletivo Santa Trindade ........................................... 104

Figura 67 - David Medalla. London Biennale............................................ 105

Figuras 68 e 69 - Angélica Dass. Humanaes ..................................................... 107

Figuras 70 e 71 - Movimento Cidades Invisíveis Oferenda................................. 110

Figuras 72 e 73 - Movimento Cidades Invisíveis Existimos................................ 112

Figuras 74 e 75 - Movimento Cidades Invisíveis Existimos................................ 113

Figuras 76 e 77 - Movimento Cidades Invisíveis. Ah, se eu fosse uma

borboleta! ............................................................................... 114

Figura 78 - Movimento Cidades Invisíveis. Ah, se eu fosse uma

borboleta! ............................................................................... 115

Figura 79 - AcSeita Coletivo. Canonização da Santa Stéphane Dis ....... 118

Figura 80 - AcSeita Coletivo. Relicário ‘Abra em caso de emergência’ ... 118

Figuras 81 e 82 - Stéphane Dis. Abra em caso de emergência ........................ 120

SUMÁRIO

1 GÊNESIS................................................................................................. 12

1.1 Descontinuidade ................................................................................... 13

1.2 Continuidade ......................................................................................... 14

1.3 Em busca de uma separação ............................................................... 17

1.4 As Tábuas da Lei .................................................................................. 22

2 ARTE COMO RELIGIÃO ........................................................................ 27

2.1 Buscando relacionar a Religião, a Filosofia, a Ciência e a Arte ...... 29

2.2 Pensando religião segundo a perspectiva de Agamben .................. 32

2.3 Pensando religião segundo a perspectiva de Bataille ...................... 37

2.4 Pensando religião segundo a perspectiva de Flusser ...................... 42

2.5 Ser ou não ser Religioso? ou Todo Corpo é Santo?.......................... 44

2.5.1 Vícios e virtudes, autonomia e anomia ................................................... 45

2.6 E a arte com isso .................................................................................. 49

2.6.1 A questão de quem faz as listas ............................................................. 52

2.6.2 Alteridade: reconhecer no Outro a diferença como necessária .............. 54

3 OS RELICÁRIOS E O CANONIZADOR ACSEITA COLETIVO ............ 57

3.1 A santidade como condição para a busca religiosa ......................... 59

3.2 Relicários como lembranças alheias .................................................. 61

3.2.1 Descontextualizando e desconectando através do pensamento de

censo, mapa e museu ............................................................................. 66

3.2.2 A vocação dos relicários em recontextualizar objetos de consumo ....... 68

3.2.3 Obra enquanto dispositivo gerado pela fisicalidade de objetos-

testemunhas ........................................................................................... 69

3.3 O Canonizador AcSeita Coletivo como tentativa de resgatar um

diálogo ................................................................................................... 78

3.3.1 A Performance ‘Sede de Santos’ como geradora de ecossistemas

estéticos .................................................................................................. 84

4 O INEVITÁVEL APOCALIPSE DA ALUCINAÇÃO TEÓRICA .............. 88

4.1 A catalogação de santos vivos, com seus vícios e virtudes ............ 89

4.2 Corpo e voz no espaço, a performance do artista-profeta como a

vida num grau a mais ........................................................................... 91

4.3 Corpos-suporte ..................................................................................... 93

4.3.1 O Corpo-dispositivo e o trabalho de Ron Athey, Filipe Espindola e Sara

Panamby: do sacrificial ao sagrado ........................................................ 97

4.3.2 O coletivo como um corpo social ............................................................ 104

4.3.3 O corpo como casa da alma e a casa como prisão para a alma ............ 115

CONCLUSÃO ......................................................................................... 122

REFERÊNCIAS ...................................................................................... 124

ANEXO A - XI Festival de Apartamentos em Campinas ........................ 127

ANEXO B – ManiKuss ............................................................................ 128

ANEXO C - Pelas Vias da Dúvida ......................................................... 129

ANEXO D - Água Santa (canonizações) ................................................. 130

ANEXO E - Casa 24 ................................................................................ 131

ANEXO F – ANPAP ............................................................................. 132

ANEXO G - Café8bar ............................................................................... 133

ANEXO H - Arte em Água Santa ............................................................ 134

ANEXO I - Movimento Cidades Invisíveis ................................................ 135

12

1 GÊNESIS

Sem nomear, não há registro de compreensão, não há troca de conhecimento.

E faz-se verbo. A herança para Nietzsche é o que recebemos de nossos pais; vale o

que herdamos, seja segurar uma faiança ou beber café numa canequinha, a

verdadeira herança é ser o que se é. O amor ao destino: sendo múltiplo, se é plural,

e somente se na multiplicidade assumimos nossas heranças.

Nos dias de hoje qualquer busca da religiosidade é confundida com os dogmas

criados pelas instituições que se dizem religiosas. O conceito de religião perdeu sua

força por causa de instituições corrompidas que distorcem seu conceito original. O

dilema do místico: explicar algo que ele não sabe explicar – na(s) reforma(s)

qualquer visão que contrariasse a visão hegemônica era considerada herética. Os

místicos experimentam sensações na luta com o indizível, o inenarrável. A

experiência mística é da esfera do sobrenatural, análoga ao sentimento de

intoxicação, euforia, frenesi, que desafia todas as formas de expressão visual,

verbal, corporal ou musical, mas é temporária, e se acaba. Vivemos agora num

mundo de materialidade, onde se proliferam a reificação e a alienação dos

trabalhadores; a secularização do mundo gera novos modos de prover estímulos,

religião e arte.

Para tentar explicar o que me faz propor poeticamente a prática de Arte como

Religião, devo conduzi-los por entre histórias, imagens e experimentações; fatos

cotidianos de desencontros e desafetos; mundos onde constantemente conexões

são interrompidas; observando pelo viés do pensamento de que não existe religião

sem separação1; e da santidade como uma condição para a busca religiosa – a

santidade como forma de separação de valores mundanos, mas sempre lembrando

que tudo é movediço, impermanente, e que coisas que enxergamos neste momento

de um jeito podem ser percebidas de maneiras bem diferentes por outros indivíduos.

A realidade é muitas vezes fantástica.

1 Agamben. ?

13

1.1 Descontinuidade

Meu pai foi o ex-monge budista Theravada Anuruddha Bikhu (fig.1); nascido no

Sri Lanka, veio para o Brasil em 1967 com uma missão: implantar o budismo no

Brasil. Mas ele não permaneceu mais do que 20 anos como monge. Em 1973, um

ano após a inauguração da Sede da Sociedade Budista do Brasil, no bairro de Santa

Teresa, e de ter “largado o manto” para casar, eu nasci. Para a minha mãe, uma

artista plástica filha de imigrantes italianos, a religião budista não durou mais do que

oito anos, e o casamento, mais do que quatro. Cresci em igrejas evangélicas,

passando os domingos inteiros na igreja: de manhã, escola dominical e culto; à

tarde, serviço social e evangelismo em hospitais e comunidades; e à noite, culto de

novo. Isso sem contar as reuniões de estudo bíblico que minha mãe promovia em

casa, durante a semana. Eu só me mantive cristã até os 15 anos de idade, e só fui

experienciar o budismo mais tarde, em 1999, por intermédio do Venerável S. N.

Goenka, na Inglaterra, porém me concentrando mais na prática do que nas teorias.

Figura1- Passaporte do Monge Anuruddha Bikhu

Fonte: Fotografia Digital: Mariana Scarambone. 2011.

Brinco que comecei a fazer arte no berço, por tradição familiar. Meus avós

maternos eram artistas, escultores e engenheiros italianos que vieram para o Brasil

para trabalhar na execução das imagens e esculturas de igrejas e praças. Minha

mãe seguiu pelo mesmo caminho, tendo se formado em teatro e depois artes

visuais. Apesar de ter planejado estudar medicina, acabei me formando em Gravura

14

pela UFRJ em 1997, indo, no mesmo ano, parar em Londres, onde trabalhei

produzindo obras de arte até 2003. Nessa época assumi a posição de gerência de

recursos humanos numa empresa responsável por prover bebidas alcoólicas em

eventos musicais e esportivos no Reino Unido, passando a produzir mais instalações

interativas e performances e menos objetos de arte (produtos). Em 2006, depois de

ter vivido mais de oito anos em Londres, fui parar na Itália, onde morei por cerca de

dois anos. Ao retornar a Londres, em 2008, recebi a notícia de que meu pai, o ex-

monge, andava mal de saúde, precisando de cuidados, mas que se recusava a

receber desconhecidos como ajudantes. Essa notícia me fez retornar ao Brasil, em

outubro daquele ano.

No total, minha estadia no exterior durou cerca de 12 anos.

1.2 Continuidade

Sempre me senti diferente, não entendia por que as pessoas falavam tantas

coisas sem sentido. Não gostava de falar, achava perda de tempo as conversas

fiadas, e, como também era muito tímida, não gostava de ter gente por perto.

Mesmo durante a adolescência, preferia as bibliotecas à companhia de outras

pessoas. Lembro-me do dia em que isso mudou: no final da adolescência, como a

biblioteca do colégio estava fechada, eu me sentei para ler no pátio da escola e fui

abordada por duas colegas que me chamaram a atenção, dizendo que eu mais vivia

no plano das ideias do que na realidade, e que se quisesse realmente entender o

que eu tanto lia, deveria largar os livros. Foi como um “cair da ficha”2 tardio: após ler

tanto sobre a vida, resolvi conhecê-la ao máximo, comecei a sair com vários grupos

diferentes, e eventualmente essa curiosidade pela realidade me levou a emigrar

para a Europa, numa busca das origens.

2 Expressão que faz referência ao fato de muitas vezes pessoas falavam sozinhas por algum tempo antes das fichas caírem e ativarem os telefones públicos antigos; e um dos objeto-afetivo-inútil dos relicários é uma ficha telefônica.

15

Figuras 2 e 3 - Relicários em Caixas de Fósforo.

Papelão, madeira, objetos e resina, 8 x 5 x 2,5cm, 2011. Fonte: Coleção Particular

O que me fez voltar a morar no Brasil foi um resquício de obediência

evangélica (“honra teu pai e tua mãe”) misturado à curiosidade, pois como cresci

sem meu pai por perto, tendo como figuras paternas meu avô e meu tio, retornar

para tomar conta dele me pareceu uma boa oportunidade para conhecê-lo um pouco

melhor. Mas meu pai não gostava muito de falar sobre a sua vida, apenas sobre

budismo e filosofia. Fazê-lo falar de seu passado foi uma missão quase impossível!

Quando retornei ao Brasil, em outubro de 2008, meu pai se encontrava internado em

um asilo para idosos, mas havia fixado residência em um apartamento que comprara

em Água Santa3 em 2006, ano em que foi convidado a sair do centro de meditação

(fig. 4) que ajudou a construir, mas onde voltou a morar logo após separar-se de

minha mãe e lá permaneceu como instrutor de meditação. Encontrei o apartamento

onde ele morava cheio de mofo, seus pertences ainda empacotados e seus armários

desmontados.

3 Apesar do CEP do apartamento/ casa ser na divisa de Piedade e Encantado, o chamo de Água Santa, ou AS, por assim ter sido chamada por meu pai, e também por poesia.

16

Figura 4 - Sede da Sociedade Budista em Santa Teresa em construção

Fonte: Disponível em: <http://www.sociedadebudistadobrasil.org/quem-somos/historia/revistalotus/resumo-historico-da-sbb/>. Acesso em: 10 nov. 2013

Quando meu pai soube que eu havia voltado, exigiu sair do asilo e voltar à sua

casa, o que me levou a limpar e pintar o apartamento, montar seus móveis e

preparar a casa em tempo recorde. Antes que ele retornasse do hospital, joguei fora

muitas sacolas de lixo, com garrafas pet, caixas de papelão vazias, canetas velhas,

sem tinta, objetos enferrujados, etc.; mas separei algumas peças de uso doméstico –

fichas de telefone, esponjas, toalhas, panos, engrenagens – e roupas, que, de tão

obsessivamente remendadas e inúteis, me inspiraram a criar os relicários. Meu pai

nasceu em uma família nobre (Don era um título herdado, seu primeiro nome era

Kulatunga), foi filho de um reitor, formado em engenharia, trabalhou com os irmãos

na empresa de engenharia da família até sofrer um acidente de moto que o fez ficar

um ano de cama e o levou a decidir-se pelo monastério. Em 1967, veio ao Brasil

como monge representante da ONU, onde acabou se aposentando. Se quisesse,

poderia ter usufruído de todos os luxos da modernidade, mas sempre procurou

consumir o mínimo possível, recusando confortos básicos como, por exemplo, ter

lavadora de roupa. Só depois de muita insistência (e alguma chantagem emocional),

aceitou receber em casa uma geladeira e um telefone celular. Com a idade

avançada, a sua prática de desapego tornou-se obsessiva: ele doava as roupas

17

novas que recebia e remendava as antigas exaustivamente. Por ser contra o

desperdício, muitas vezes brigou comigo por jogar fora alimentos estragados.

Além dos cuidados com meu pai, tive a surpresa de também encontrar a minha

mãe com a saúde fragilizada, o que fez com que eu me desdobrasse

constantemente entre as casas dos dois, entre Flamengo e Água Santa. Nesse

período, comecei a operar luz e som para peças de amigos, e a planejar e montar

cenários; o que fez com que meu pai iniciasse sua insistência para que não ficasse

só na prática de arte, mas que voltasse a estudar arte.

Figura 5 - Ultima foto de Don Kulatunga em Água Santa, um mês antes de sua morte. 2011.

Fonte: Coleção Particular

1.3 Em busca de uma separação

No início de 2011, convencida de que meu pai chegaria a um centenário de

vida, tal como o pai dele e seus irmãos, decidi fixar residência no Rio e fui morar

com amigos, na Lapa; e por ter trabalhado recrutando e treinando barmen em

Londres, fui convidada a trabalhar autonomamente nos finais de semana como

barwoman, fazendo coquetéis em uma boate na zona sul do Rio. No dia 16 de

18

março, uma quarta-feira, comecei a assistir às aulas do mestrado da UERJ como

ouvinte oficial, inscrita na pauta com o tema Arte como Religião, pois, devido ao meu

histórico artístico e religioso, pretendia investigar como a arte foi utilizada pela

religião, confrontando símbolos budistas e cristãos. No sábado, dia 20, encontrei

meu pai morto, trancado em sua casa. Continuei assistindo às aulas, ao mesmo

tempo em que comecei a organizar os textos, imagens e objetos deixados por ele.

As minhas mudanças encaixotadas começavam então a se misturar com as dele, e

com outras que há muito tempo estavam guardadas no alto dos armários de minha

mãe.

Saí do Trabalho do bar e comecei a trabalhar em dois cinemas de arte antigos,

projetando filmes, trancada quase 10 horas por dia em uma pequena sala escura

com um grande projetor de luz, durante quase todo primeiro ano. Nesse período,

encontrei-me com muitos amigos dele, cujas palavras carinhosas me despertaram a

ideia de que um ermitão, um asceta, não deixa de ser um santo, um ser que busca

se separar de valores mundanos. Todo esse processo me levou a iniciar a produção

de inúmeros relicários, feitos inicialmente em caixas de fósforos, e a criar

assemblage4 de santos heréticos – imagens que criei com decalques de giz de cera

em papel de seda, feitos em uma matriz antiga de uma xilogravura de 1996, e com

as quais fiz intervenções urbanas na Lapa e no entorno da Casa 24; nos cartazes

colados tinham também a pergunta em estêncil: “PARA QUE SANTO ROGAS?”.

4 Termo de Jean Dubuffet para descrever colagens

19

Figura 6 - Primeiros relicários; e Figura 7- Santos heréticos

Caixas de fósforos, resina e imagens e objetos; e Decalques em cera de matriz de xilo sobre papel

impresso. Fonte: Coleção Particular

As caixas de fósforo que utilizo frequentemente nos meus trabalhos, como

depósito de pequenos objetos afetivos, foram inspiradas nas caixas de fósforo que

encontrei na casa de meu pai, e da lembrança de que meu avô colecionava palitos

de fósforo queimados para transformá-los em objetos de arte.

Em novembro de 2011, após prestar a última entrevista para a seleção do

mestrado, mudei-me da Lapa (bairro carioca conhecido por ser reduto da boêmia)

20

para Água Santa. Em dezembro, montei o Canonizador AcSeita Coletivo, com a

intenção de apresentá-lo na mostra Casa-Relâmpago5. Como não consegui terminá-

lo a tempo, sua primeira exibição pública ocorreu apenas no XI Festival de

Apartamento6 em Campinas, no dia 04 de fevereiro de 2012. Lá, não houve

candidatos à canonização, e apenas uma interação performática foi registrada.

(Anexo A – XI Festival de Apartamentos em Campinas).

Figura 8 - O Canonizador no Festival de performances; Figuras 9 e 10 - Canonizador no evento ManiKuss.

Fonte: Coleção Particular. 2012.

No Evento ManiKuss, (evento multimídia com exposição de arte, moda,

performance e música, que ocorreu em uma casa em Vila Isabel, no Rio de Janeiro,

dia 10 de fevereiro de 2012) juntamente com a instalação do Canonizador AcSeita

Coletivo, desenvolvi a performance Sede de Santo, na qual, como forma de

persuasão para obter o registro das canonizações, oferecia desde argumentos

religiosos e teóricos à ações profanatórias de suborno, oferecia um drinque: o

(primeiro) gole do santo, como recompensa, para quem se deixar registrar sendo

‘canonizando’. Nesse evento, foram feitas 28 canonizações (Anexo B - ManiKuss). A

5 Evento alternativo de Artes,com exposições de fotos, performancessimultãneas, realizado em uma casa em Santa Tereza com exposição de arte, projeções, musica e performances. http://semnomeperformance.blogspot.com.br/p/casa-relampago.html e https://www.facebook.com/pages/Casa-Rel%C3%A2mpago/238210819570401 6 Evento alternativo de Performances. http://festivaldeapartamento.blogspot.com.br/p/sobre-o-festival-de-apartamento.html

21

performance em si não é documentada, é a ação de convencimento do outro (o

expectador) a tomar parte da obra, se deixando fotografar. As fotografias

decorrentes das ações eu penso como ‘Ecossistemas de Santos’ (Comunicação feita

no 22º Encontro Nacional da ANPAP, em Belém do Pará) que criam mapas sociais

que muitas vezes se repetem.

A instalação Canonizador AcSeita Coletivo juntamente com a performance

Sede de Santo também foram apresentados na exposição Pelas Vias da Dúvida,

ocorrida em outubro de 2012, no Centro Cultural Hélio Oiticica, por ocasião do 2º

Encontro de Pesquisadores dos Programas de Pós-Graduação em Artes do Estado

do Rio de Janeiro, onde foram registradas mais 107 canonizações (Anexo C – Pelas

Vias da Dúvida). Alguns eventos de canonização esporádicos ocorreram em Água

Santa (Anexo D – Canonizações em Água Santa), no espaço cultural Casa 24

(Anexo E – Casa 24) e em Belém ocorreram dois eventos, um no 22º Encontro

Nacional da ANPAP, onde foram registradas 33 canonizações (Anexo F – ANPAP),

e outro no espaço alternativo de artes café8bar, onde foram registradas 14 (Anexo G

– Café8bar).

Os Relicários (Figs. 2, 3 e 6) e a instalação Canonizador AcSeita Coletivo

(Figs. 8,9 e 10) são as obras em que baseio minha pesquisa de mestrado e que

consistem no produto que apresento como trabalho visual, junto à dissertação,

resultado das ações com as quais dialogo, em minhas reflexões teóricas.

Figura 11 - Retrato de Auto Canonização

Fonte: Coleção particular. 2011/12.

22

1.4 As Tábuas da Lei

A minha pesquisa envolve uma parte teórica que envolve e é suscitada pela

produção de um trabalho de arte que investiga e relaciona os conceitos de Arte e

Religião. Busco encontrar, nas fronteiras de conceitos, novos caminhos possíveis

para exercer a religiosidade, tentando relacioná-los aos meus trabalhos. Proponho o

reconhecimento de aspectos religiosos na arte, observando também que, enquanto

linguagem subjetiva, a arte foi um poderoso instrumento (dispositivo) utilizado pelo

Estado, por instituições ‘religiosas’ e pela mídia, para controlar as sociedades.

Essas pesquisas procuram repensar o conceito de religião, ressaltando a

diferença entre a filosofia (ideia) e a instituição (máquina política). Dentro desse

pensamento poético, religião seria a prática de lidar com o sagrado, baseada em

uma concepção dualista que pressupõe a coexistência do profano e do sagrado, da

consciência e da matéria. É na interlocução com essas ideias que surge minha

produção artística.

Ao buscar dissociar religião das instituições que se apropriaram do sentido da

busca religiosa alterando-as para uso de manipulação política, respaldo-me também

no pensamento do sociólogo Massimo Canevacci, que percebe o sagrado como

independente da religião, e que associa religião às instituições. Penso que a

verdadeira religião é a lida com o sagrado – e é muito utilizada pelas instituições,

porém não apenas por elas – portanto discordo que possa ser institucionalizada; e

pensá-la “rígida, repetível” seria negar à dança, à arte, e outras formas de

comunicação o aspecto religioso do fazer.

“O sagrado foge a tudo isto. Não está encapsulado dentro de nenhuma instituição. O sagrado não liga, não mantém junto, não une, como está presente na etimologia da palavra religião. [...] Disciplinar o sagrado é dever de cada religião. [...] O sagrado é um princípio antimetafísico e imanente. O sagrado é espontâneo, móvel, imprevisível, incompreensível; a religião é institucional, rígida, repetível.” (CANEVACCI, 2008, p. 243 - grifo meu)

No capítulo 2, Arte como Religião, desenvolvo um conceito poético partindo da

ideia de separação que é comum tanto ao Santo quanto ao monge, associando o

artista ao profeta que denuncia, proponho não existir religião sem respeito à

alteridade - e procuro delimitar essa ideia com o apoio teórico de outras disciplinas,

para além do campo da arte e da teologia, relacionando-o com conceitos sobre

23

religião dos filósofos Georges Bataille, Giorgio Agamben e Vilém Flusser. Estes

pensadores observam que o verdadeiro sentimento religioso é baseado na

alteridade, no reconhecimento da diferença como parte integrante, e no consequente

respeito às diferenças, o que aponta a necessidade do surgimento de uma nova

religiosidade. Foi na costura do pensamento desses filósofos que construí o

pensamento poético sobre religião que funda a elaboração deste meu trabalho

artístico; configuro-o como dispositivo religioso e relaciono certos aspectos do

fenômeno religioso ao estatuto ontológico da arte. Foi este discurso filosófico que

utilizei para convencer os expectadores, catequizar novos santos; antes de me

utilizar da performance Sede de Santo (performance de convencimento para com o

publico para comprar a imagem de santidade deles com bebida).

O capítulo 3, Relicários e o Canonizador, é dedicado à descrição de como o

processo artístico se modificou, de um ponto de vista inicial bastante politizado para

uma proposição mais poética (e transgressora) de resgate de valores morais, por

meio do questionamento da religiosidade. Se inicialmente fui inspirada por

pensamentos que apontam a utilização da arte como dispositivo para transferência

da divindade para um Estado Soberano, com a investigação filosófica dos conceitos

primários surgiu a consciência da necessidade de buscar uma nova forma de

religiosidade através da arte.

24

Figura 12 - Santos Heréticos.

Fotografia de montagens. Fonte: Coleção Particular. 2011

Nessa perspectiva, as instituições às quais se associa o conceito de religião,

ao negar a alteridade essencial à verdadeira prática religiosa por não admitir

diferenças, gera o esvaziamento e descrédito necessários ao desenvolvimento da

secularização, que transfere então os poderes culturalmente considerados divinos

ao Estado.

Como suportes teóricos para delinear as questões envolvidas na minha

produção artística e teórica, foram inspiradores os textos dos historiadores e críticos

de arte Artur Danto e Merleau-Ponty, que propõem pensar a necessidade de

observar novos aspectos dentro do estatuto da arte, e da neurocientista Maria

Cristina Franco Ferraz, que levanta questões sobre um corpo cinético, que difere do

corpo psicanalítico no processo de despertar consciências, mas acredito seja

importante tentar associá-los para gerar um novo questionamento sobre os sujeitos

modernos não subjetiváveis.

25

Para concluir, no capítulo 4, associando trabalhos artísticos de alguns dos

artistas canonizados a aspectos religiosos, proponho, a partir desse mapeamento

iniciado com os Relicários e o Canonizador, uma possível continuação para a

pesquisa poética através da identificação desses diferentes aspectos religiosos nos

trabalhos desses artistas profetas – aqueles que usam a arte como instrumento de

conscientização. como observo em trabalhos de artistas como Ron Athey, Pedro

Costa (“Solange, tô aberta!”), Filipe Espindola e Sara Panamby, que, ao se utilizarem

do próprio corpo como dispositivos, assumem essa dimensão do religioso com a

arte, atravessam a membrana que separa sagrado e profano, para revelarem o

ethos da sociedade em que se inserem; ou na arte ‘profética’ de Gian Shimada, em

Stéphane Dis e em Ítala Isis, com seu projeto Movimento Cidades Invisíveis7, que

convoca, revela, questiona e cura.

7 No meu entender, Movimento Cidades Invisíveis é uma proposta artística e poética da arte-educadora Ítala Isis, para o desenvolvimento coletivo de pensamentos e de processos artísticos que trabalhem a consciência coletiva em ambientes urbanos. Suas performances provocam o corpo cidade, marcam e são marcadas por ele.

26

Figuras 13 e 14 - Intervenção do Movimento Cidades Invisíveis.

Poesias em Adesivos coladas pela cidade do Rio de Janeiro; colado em ponto de ônibus na Rua

Senador Vergueiro. Fonte: Fotografia digital: Mariana Scarambone. 2012

Buscando dialogar o máximo possível com artistas contemporâneos que

desenvolvem suas pesquisas dentro da proposição poética que proponho como

religiosa, entenda-se a busca de lidar com o sagrado, especialmente falando de

artistas que tive a oportunidade de presenciar e acompanhar; evitando ao máximo

me utilizar referencias meramente textuais, procuro falar através deste local de

troca onde ocorrem as experiências. A Utilização de rituais e de possível

associação com religião podem ser observados em muitos artistas em todos os

tempos, por isso preferi escolher artistas os quais pude observar o acontecimento

do trabalho, sua execução, acompanhar os processos.

27

2 ARTE COMO RELIGIÃO

“as necessidades que a religião satisfez e que agora a filosofia deve satisfazer, não são imutáveis; essas necessidades podem ser enfraquecidas e extirpadas [...], pois são necessidades aprendidas, limitadas no tempo, que repousam em hipóteses contrárias às da ciência. Neste caso, o que deveria servir de transição é muito pelo contrário a arte, a fim de aliviar a consciência sobrecarregada de emoções, pois, essas hipóteses serão muito menos alimentadas pela arte do que pela filosofia metafísica. A partir da arte, pode-se em seguida passar mais facilmente a uma ciência filosófica realmente libertadora.” (Friedrich Nietzsche – Humano, demasiado humano; p. 27.)

Repensar o que vêm a ser religião através da arte é uma forma de investigar a

definição de que religião consiste em um conjunto de sistemas culturais de crenças e

práticas relativas a determinadas comunidades dentro de universos históricos e

culturais específicos. Definir diferentes aspectos religiosos entre diferentes tipos de

praticantes de arte (artista-profeta; artista-sacerdote; corpos sacrificiais, etc) é

poesia. Relaciono religião e filosofia, por se preocuparem de problemas

fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento e valores morais. Rudolf

Otto8, um eminente teólogo protestante alemão e erudito em religiões comparadas,

distingue três modalidades cognitivas de apreensão do sagrado: os apreciadores

(adeptos); os profetas (produtores de religião) e os personificadores, aqueles que

chegam à condição de (filhos da) divindade. Criticando as instituições religiosas que

assumiram os nomes dos personificadores que verdadeiramente praticaram religião,

busco confrontar atitudes institucionais com a filosofia das religiões. Essas

instituições religiosas cresceram a partir dos resultados das experiências interiores

de seus personificadores, que vivenciaram e perceberam a obscuridade de seus

tempos, e conseguiram, por meio de uma prática austera e disciplinada, quebrar

preconceitos e restaurar relações de alteridade nas sociedades em que viviam,

estimulando novas condutas sociais que serviram como vínculos sociais e que

permitiram uma maior igualdade social.

8 In: OTTO, Rudolf. O sagrado. Tradução de Prócoro V. Filho. São Bernardo do Campo: Metodista,

1985.

28

Penso ser extremamente importante diferenciar as instituições religiosas dos

pensamentos desses personificadores que lhes dão nome, pois eles eram

justamente os hereges das instituições às quais pertenciam, uma vez que

apontavam o desrespeito às alteridades (não aceitação da diferença como

possibilidade), denunciavam incoerências e exigiam mudanças. Jesus foi

considerado herege pelo Judaísmo por defender os oprimidos e necessitados e

questionar a instituição religiosa a que pertencia; e Sidarta Gautama foi considerado

herege pelo Hinduísmo, por opor-se ao culto hinduísta de muitas divindades, ao

sistema de castas e ao poder da classe sacerdotal hinduísta.

Figura15- Super Cristo e Figura 16 - Caixa da série Virando Buda

Colagem com papelão madeira e resina; Colagem sobre papelão com resina. Fonte: Coleção

Particular. 2012.

Os relicários são produtos da destituição do uso de objetos e imagens, que ao

serem misturadas produzem uma variada gama de significações. Foi inevitável

questionar quais seriam os possíveis níveis de santidade dos possuidores destes

objetos, e começaram a surgir imagens de pessoas e santos em algumas das

caixas, gerando séries de trabalhos paralelos.

29

2.1 Buscando relacionar a Religião, a Filosofia, a Ciência e a Arte

‘Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à maneira do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso’ (AGAMBEN, 2009, p. 23)

A dissertação Arte como Religião é uma proposição poética que visa a resgatar

a importância da verdadeira prática religiosa por meio do questionamento de

conceitos, se apropriando e incorporando parte teóricas à pratica artística; a teoria

foi o fomento de um processo artístico, que teve que ser limitado para caber na

dissertação; pensando a religião como instrumento de coesão social que deveria ser

pleno de respeito à alteridade - entendendo alteridade como a aceitação da

diferença do outro (no outro) - e pensando a arte como um potente dispositivo.

Procurei focar nos processos separatórios, pensando na consagração e na

profanação; no fato de que tanto o monge e do santo se separarem de valores

mundanos e na criação de museu de relicários, que gerou um relicário grande que

se tornou um dispositivo em forma de instalação: o Canonizador AcSeita Coletivo,

que por sua vez gerou uma performance da artista, que ao invés de ser uma

apresentação foi um processo minimalista de convencimento para obtenção de um

registro de uma suposta ‘separação’ - que a artista clama ser uma ‘canonização

temporária’ - influenciada pela proposição de Giorgio Agamben de que não há

religião sem separação.

Do questionamento sobre as separações exigidas pelos processos religiosos,

focando inicialmente nos processos cristãos e budistas, escolhi como objeto de

estudo os objetos afetivos Relicários e a instalação Canonizador AcSeita Coletivo,

pois buscam mesclar conceitos de diferentes áreas para pensar o que são as buscas

religiosas, e apontar a necessidade de respeito com processos diferentes. Sendo

inevitável citar a performance Sede de Santos, que foi feita em algumas das

apresentações da instalação Canonizador AcSeita Coletivo e gerou diversos

‘ecossistemas de santos’9.

9 ‘Ecossistemas de Santos’ foi o tema da Comunicação feita no 22º Encontro Nacional da ANPAP, em Belém do Pará.

30

Acredito ser necessário pensarmos nas relações entre diferentes disciplinas

que estudam o conhecimento humano, pois enquanto a ciência e a arte geralmente

focam sua investigação no funcionamento das coisas, a filosofia e a religião

investigam o porquê, observando aspectos distintos da experiência humana, todas

disputando pela autoridade sobre a sapiência do que é a realidade. Se normalmente

a filosofia se utiliza das palavras e a arte se utiliza dos sentidos, principalmente da

visão e audição; a religião, por lidar com experiências interiores com o ‘sagrado’ para

entender o porquê de as sociedades se reunirem ou segregarem grupos, se utiliza

da combinação de filosofia e arte para se expressar. Por lidar com a racionalização,

a ciência convive melhor com a filosofia e a arte racionalizada, apesar de já terem

tido seu desenvolvimento impulsionado por dogmas religiosos, entrando em choque

com a relação paradoxal das religiões a cada vez que as mesmas se renovam, pois

entram em conflito com razões previamente aceitas pela ciência. É também

extremamente importante considerar como pensamos as diferentes formas de

religião; os estudos devem ser multiculturais e multidisciplinares, para que

possibilitem construir diferentes estratégias interpretativas. Acredito que as

concepções religiosas são cruciais, pois provêm da vivência de diferentes

sociedades, importantes atores nas mudanças sociais.

Tanto a pesquisa teórica do mestrado quanto o trabalho visual começaram com

um choque; um atravessamento, uma descontinuidade; uma separação; a

ocorrência de um interdito, a morte do ex-monge, interrompendo o que havia sido

planejado como um diálogo. E surgiram muitas caixas, caixas que foram feitas para

guardar, mas usadas para revelar; primeiro surgiu a série de Relicários em Caixas

de Fósforo e depois relicários em tamanhos variados; relicários feitos com caixas

forradas de imagens, cujos objetos, para serem guardados, demandavam sua

desconstrução e recontextualização. Por não ter coragem de usar (destruindo) todo

o material deixado por meu pai, e tendo coletado elementos diversos, comecei a

questionar o significado de santidade, o que fez surgir outro tipo de caixa: o

‘dispositivo’ Canonizador AcSeita Coletivo (fig), instalação que começou com três

estandartes feitos de toalhas amarelas com protetores de mesa, e um halo com

lâmpadas, se transformou em uma caixa de biombos feitos com cobertores velhos

de meu pai, sacos de lixo e cartazes políticos. A Instalação Canonizador AcSeita

Coletivo que não guarda nem expõe, busca promover questionamentos.

31

Os trabalhos artísticos que desenvolvi durante e para o mestrado foram

inspirados na busca de uma vida de prática religiosa; propondo um questionamento

sobre o que seria religiosidade a partir do ponto de vista da separação. Tal como o

monge budista é uma figura que opta por se separar da vida mundana, da mesma

forma os ‘santos’ são convocados a se separar de práticas e valores mundanos para

poderem atuar no plano ‘sagrado’, e tal semelhança gerou inicialmente dois

trabalhos, os Relicários e o Canonizador AcSeita Coletivo. Outras séries de

trabalhos surgiram concomitantemente: os ecossistemas de Santos Vivos, os

Breviários de Santos (sketchbooks), as moedas de troca (objetos encravados em

resina), os Totens de Luz (caixas esculturas), os Tronos Enterrados (instalações), os

Corações Coroados (serigrafia), e as performances dos Santos Vivos10. (Ver Anexo

H – Arte em AS)

Figuras 17 e 18 Canonizador montado no Centro Cultural Hélio Oiticica, em versão reduzida.

Instalação feita com ripas de madeira, cobertores, toalhas, protetores de mesa, um trono e luzes. Fotografia Digital. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3.2012>. Acesso em: nov. 2012.

10 A performance Sede de Santos surgiu da necessidade de documentar as apresentações da Instalação , e consistia em variadas tentativas de persuasão de pessoas a posarem enquanto Santas AcSeita Coletivo.

32

2.2 Pensando Religião segundo a perspectiva de Agamben

Encontrei no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben vários pontos

que se relacionam com os Relicários de Santos Vivos e com o Canonizador AcSeita

Coletivo. Para ele não é possível pensarmos religião sem separação, não só porque

não há religião sem separação, mas pelo fato de que toda separação contém ou

conserva em si um núcleo genuinamente religioso, sendo religião não apenas o que

“une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”

(AGAMBEN. 2007 p.66). O monge, os religiosos que creem no Deus de Israel – que

os convoca a serem santos –, os Relicários de Santos Vivos e o Canonizador

AcSeita Coletivo têm em comum o fato de serem elementos separatórios e de

possuírem uma condição intempestiva característica do contemporâneo, que é dada

numa relação de desconexão e dissociação com o tempo presente; enquanto o

monge e o santo são sujeitos, os relicários e o canonizador são dispositivos 11 que

buscam questionar essa subjetividade do ser separado, que é o ser religioso.

O pensamento que orientou os dispositivos é resultante do desenvolvimento da

tradução do termo teológico Oikonomia – um conceito aristotélico apropriado pelos

patriarcas da igreja como mediação derivada da boa administração pública que se

aplicava desde a ‘encarnação divina no corpo de Cristo’ até a passagem do invisível

para o visível. Foi traduzido como dispositio e associado à definição de Foucault que

relaciona esse dispositivo econômico de mediação aos dispositivos governamentais

de administração e adequação, e muito influenciou a instalação Canonizador

AcSeita Coletivo. Agamben observa que os dispositivos são criados como tentativa

inelutável de sujeição dos indivíduos às diretrizes do poder, porém na

contemporaneidade esses sujeitos não são mais configuráveis, o que tem feito a

máquina política girar no vazio. Penso na instalação Canonizador AcSeita Coletivo

como um dispositivo passível de subjetificação, caso produza questionamentos nos

corpos que interagem com ele; pois, apesar de ser herege por assumir uma

autoridade de reconhecimento, não foge nem contraria o sério mandamento que o

inspira.

11 AGAMBEN. 2009, p.12.

33

Agamben pensa a biopolítica como a luta da vida contra o poder que procura

negar sua potência, um poder que, por meio de um processo de sacralização da

vida comum, priva os homens da magia, negando-lhes o direito à religiosidade. Ao

mesmo tempo em que denuncia o uso da teologia política como tentativa de

secularizar o poder soberano de Deus, transferindo o poder inquestionável, antes

considerado divino, para a figura do Estado, propõe a profanação como operação

política de neutralização que desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso

comum os espaços que ele havia confiscado; a instalação Canonizador AcSeita

Coletivo propõe que a santidade retorne a ser uma busca coletiva. Ao retomar o

pensamento de Walter Benjamin,12 que propôs ser o capitalismo a religião

contemporânea por se tratar de uma organização que estabelece em sua substância

a esfera do consumo como separação radical, sem possibilidade de retorno, um

culto expiatório permanente, que não visa à transformação do mundo, mas sua

destruição, o autor prega a necessidade de que surjam pessoas capazes de

‘profanar o improfanável’, um ato que, ao propor outro uso das coisas, estabeleça

uma forma de relacionamento social que elimine a separação instaurada e que

restitua ao domínio humano a ‘vida’ que o sistema aliena para o plano do sagrado.

Repensar nossas relações com o consumo material, com o consumo do trabalho

alheio e com a(s) comunidade(s) de que fazemos parte ou com que temos de lidar,

tendo em mente que o respeito às diferenças é aceitar que o outro tenha hábitos que

são opostos aos nossos, é resgatar o verdadeiro conceito de religião. A utilização de

materiais descartados foi também uma escolha política, a vontade de questionar

nossa responsabilidade com o lixo que produzimos, dos materiais que inutilizamos.

12 AGAMBEN. Profanações. 2009, p. 70-71.

34

Figuras 19, 20, 21 e 22 - Santos AcSeita Coletivo do Centro Cultural Hélio Oiticica

Fotografia Digital. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3.2012>. Acesso em: nov. 2012

Observa-se no pensamento de Agamben, no livro Profanações, a proposta da

vida como jogo, e do jogo como espaço de mágica capaz de resgatar a magia;

sendo o sagrado uma conjunção do mito (história, parábola, tipo de narrativa

simbólico-imagético) com o rito (ritual ou ação performática que gera uma memória

corpo-sensorial), o jogo se dá quando apenas metade dessa operação sagrada é

realizada, pois, embora o jogo libere e desvie a humanidade da esfera do sagrado,

ele não busca sua abolição, mas um novo uso que não coincida com o consumo

utilitarista. A profanação do jogo funciona não apenas na esfera religiosa, mas na

esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades consideradas

sérias. O termo utilizado por ele que mais relacionei à minha proposta poética é

proveniente das esferas do direito e da religião: Profanação. Para ele o jogo como

órgão da profanação deixa de funcionar quando se esquece que, apesar de no jogo

se recordar o sagrado, é precisamente o contrário dele o que ali se encontra, mas

que ainda pode funcionar como um meio de passagem do sagrado ao profano via

um uso incongruente do sagrado, pois o jogo cuja vocação seja puramente profana

não só provém da esfera do sagrado, mas também, de algum modo, representa sua

inversão. Busco com minha pesquisa resgatar o pensamento sobre o que é religião

por meio de um jogo, uma conquista, uma troca.

Agamben define a paródia como imitação de outrem, na qual o elemento

parodiado é sério, mas se apresenta de forma ridícula, cômica, ou grotesca, uma

fala ao contrário, sendo uma das características canônicas da paródia depender de

35

um modelo pré-existente serio a ser transformado em cômico. Busco representar,

com meus trabalhos, coisas difíceis de narrar, por não serem constantes.

Figura 23 - Detalhe do canonizador exposto no Centro Cultural Helio Oiticica

Fotografia Digital. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3.2012>. Acesso em: nov. 2012.

Penso os Ecossistemas de Santos Vivos – as séries de fotografias resultantes

das performances Sede de Santos na instalação Canonizador AcSeita Coletivo –

como uma paródia ao mandamento “Sedes Santos, porque sou santo” (Levítico 19 e

I Pedro 1), pois me utilizo da fotografia como registro, o que Agamben aponta como

uma exigência de redenção, um lugar de descarte, uma eterna repetição, que possui

o poder de condensar o gesto para o dia do juízo final, pois a ressurreição é das

figuras, não dos corpos. O Canonizador AcSeita Coletivo é neste aspecto

relacionável à escrita de Agamben por parodiar de um mandamento através da

profana tentativa de registrar uma santidade improfanável; fato que se dá por meio

do jogo – um jogo de ação que poderia gerar uma experiência interior, ao gerar um

autoreconhecimento enquanto ‘santo AcSeita Coletivo’, que neste caso consistiria no

simples ato de ao estar sentado na Instalação, sozinho, se autocontemplando se

reconhecer como tal – mas que com a fotografia, o registro obtido pela performance

Sede de Santos - quebra a unidade do ludus da instalação. A intenção da quebra da

unidade do jocus, parodiando o mandamento de ser santo, com a performance Sede

de Santo, foi também questionar a sociedade quanto a seus valores.

36

A escolha de assinar os processos não como indivíduo, mas como ‘AcSeita

Coletivo’ se deu por acreditar que processo artístico como um processo de

subjetivação se dá através de criação coletiva, e pensando através do texto ‘Autor

como gesto’13 onde Agamben ressalta como característica contemporânea dessa

função-autor a de ser um regime particular de apropriação que possibilita a

autenticação de textos, constituindo-os em cânone, ou, pelo contrário, a

possibilidade de certificar [aos textos] seu caráter apócrifo.

AcSeita Coletivo se apropria de ideias e imagens de trabalho de artista/autores

contemporâneos, como uma inevitável amizade forçada, uma relação baseada em

por vezes apenas interesses comuns. No mesmo livro em que pensa nos

dispositivos como forma de subjetivação em falência, Agamben desenvolve o ensaio

O Amigo, onde aponta a origem comum dos nomes amigo e filosofia no termo grego

philos –- uma das três variações do sentimento Amor.

‘os amigos não condividem algo (um nascimento, um lugar, um gosto): eles são com-divididos pela experiência da amizade. A Amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política.’ (AGAMBEN, 2009, p.92)

Citar artistas contemporâneos, que pensam religiosamente ou praticam rituais,

é também uma tentativa de politicamente criar relações de amizade; pensando o fato

de ‘amigo’ ser um termo não predicativo faz do nome amizade não uma propriedade

ou qualidade do sujeito, mas uma utilidade ou algo sobre o prazer da companhia.

Agamben também aponta para a definição de amigo como um outro de si – alter-ego

no latim – não como um outro eu, mas uma diferença que se tolera. Partindo do

pressuposto de que a amizade é condicionada ao querer conviver e condividir,

penso que alteridade seja a necessidade de com-sentir e condividir, independente

de ‘concordar’14, o que exige um respeito ainda maior do que a amizade. Proponho

poeticamente que não se pode praticar religião sem respeito a alteridades.

13 AGAMBEN. 2007, p. 55-65. 14 A palavra latina cordis significa coração, concordar é palavra formada do latim con + cordis, isto é, com coração. Para os antigos romanos, o coração era a sede da coragem.

37

2.3 Pensando religião segundo a perspectiva de Bataille

“O filosofo pode nos falar de tudo o que experimenta. Em princípio, a experiência erótica nos obriga ao silêncio. O mesmo não se dá com uma experiência que lhe é talvez vizinha, a da santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade é exprimível num discurso, que pode ser objeto de um sermão [...] Quero dizer apenas que ambas as experiências têm uma intensidade extrema. Quando falo de santidade, falo da vida que a presença em nós de uma realidade sagrada determina, de uma realidade que pode nos transtornar até o limite.” (BATAILLE, 2013, p. 279)

Reconheci no meu trabalho muitos aspectos do pensamento do teórico George

Bataille que definitivamente dialogam e influenciaram a construção do meu

pensamento poético e o desenvolvimento das obras feitas durante o mestrado.

Partilho da sua observação sobre as dualidades que englobariam as oposições entre

a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o Bem e o Mal –

especialmente do entendimento de que, na dualidade, a existência de aspectos que

diferem reforça as oposições sem as negar ou anular – como forma de expressão

das polaridades humanas. Da sagaz observação de que o sagrado e o profano

jamais se misturam15, pois o sagrado mistura aquilo que o profano opõe, sendo a

fusão de contrários o que define o sagrado como tal, e a oposição ao sagrado o que

define o profano. Enquanto as limitações impostas ao mundo profano para acessar o

sagrado corresponderiam às interdições, as passagens do mundo profano ao mundo

sagrado seriam dadas nos sacrifícios, e nas transgressões – permitidas apenas em

rituais e festas. Busco com meu trabalho explorar as dualidades, pensando o santo

como aquele que se propõem a busca espiritual, independente da religião que

pertença.

Bataille considera que o problema fundamental da religião atual está dado na

fatal negação da festa como solução mediadora, da temporária liberação dos

interditos, da abertura para o sagrado permanecendo no profano. Acredito que o

Canonizador AcSeita Coletivo seja um dispositivo transgressivo justamente por

propor fundir o profano ao sagrado, apesar de ser uma transgressão prescrita, pois o

mandamento bíblico que inspirou essa obra se encontra na Bíblia Católica em um

15 HOLLIER. Dennis. YFS 78, On Bataille. Yale: Yale University, c1990.

38

dos livros das leis (Levitico) do antigo testamento, que tentavam promover respeito à

divindade, à comunidade e à natureza e se repete no novo testamento.

Quanto a observação de Bataille ao diferenciar o homem do animal pela

consciência, acrescentaria que o que diferencia o homem do animal e da divindade

é o nível de consciência; e proponho que a verdadeira busca religiosa parte da

consciência de que nossa humanidade pertence simultaneamente ao divino e ao

animal. Ele aponta que a consciência gerou a necessidade de trabalhar, polarizando

as sociedades humanas em duas dimensões sociais: o mundo do trabalho e o

mundo da festa, sendo o trabalho que liberta o homem da sua esfera animal, mas

que tem como oposição a morte e a sexualidade. Opostamente à Bataille que afirma

que sua pesquisa difere, em sua origem, do trabalho do historiador das religiões, do

etnógrafo ou do sociólogo por ser fundada essencialmente na experiência interior,

penso que a Instalação Canonizador busca para além da experiência interior,

justamente esse lugar de historiador e etnógrafo de hábitos e vícios.

Figura 24 - Série Artistas (santos) e seus vícios

Colagem sobre caixas de fósforo com objetos e resina. 2013. Fonte: Coleção particular.

39

Bataille afirma que da mesma forma, sem experiência interior, não poderíamos

falar nem de erotismo, nem de religião; sendo para ele extremamente importante o

encontro entre erotismo e religião; ressaltando ser bastante raro encontrar quem

tenha tido experiência interior tanto na religião quanto no erotismo, pois ambos os

movimentos são baseados na necessidade igualmente contraditória de uma

experiência interior. A experiência interior se dá quando confrontamos os interditos,

o que gera no ser comunicável êxtase pelo reconhecimento de um ‘não saber’, e

angústia, pois revela aquilo que o homem sabe pelo fato de ser, mas não consegue

comunicar. Acrescentaria que também a embriagues do álcool e o entorpecimento

das drogas também são interditos, e faço paralelo o pensamento dos vícios à leitura

do pensamento que Bataille dá ao erotismo.

A instalação busca resgatar as memórias destes interditos, das proibições; ela

convida a pensarmos justamente nos interditos, no que deveríamos – mas Não

desejamos – nos separar. Penso que a combinação dos ecossistemas de santos

com os relicários de santos vivos busque revelar essa oposição entre santidade e

realização de desejos, que revela e oposição da experiência à obediência da não-

experiência. Quem são nossos ídolos e quais são os seus vícios e virtudes?

Bataille sugere que a comunicação sensível situa-se num entre, estando não

apenas no campo da linguagem, mas também no dos sentidos, produzindo

elementos que deslocam nossa capacidade de apreensão com a quebra dos

raciocínios lógicos condicionados. Destaca que a poesia produz a experiência

interior, por lidar com esse ‘não conhecimento’, o que se assemelha ao pensamento

de Didi-Huberman sobre a imagem enquanto arte16, ou ao processo de

esvaziamento da mente de pensamentos produzido pela experiência da meditação

ou pela dança, diferente do efeito dos alucinógenos, que modificam as sensações

corpóreas organicamente.

O Canonizador AcSeita Coletivo coloca o espectador de volta nesse local de

fronteira que causa vertigem, por se referir a um mandamento divino, que

consideramos humanamente impossível, pois nos desligaria completamente de

16 HUBERMAN. Confronting Images. 2005

40

nossa origem animal (que cede aos desejos). O mandamento bíblico ‘sede santos’ é

em si uma prescrição transgressora, mas é divino, sendo importante a tentativa.

Com o Canonizador AcSeita Coletivo, pretendo repensar a religião a partir do

conceito de santidade (no sentido de busca religiosa, produtora de experiência

interior), essa posição que inicialmente era mandatória mas que hoje é percebida

como proibida e restritiva, resgatando o direito a essa santidade cujo

reconhecimento nos foi negado. E, para gerar tal questionamento, ofereço a

possibilidade da experiência interior de um sacrifício indolor, uma separação do

mundo, permanecendo no mundo.

Acredito que os meus trabalhos desenvolvidos para o mestrado sigam por essa

linha de procurar pensamentos que por vezes assumem posições contraditorias,

permanecendo na perspectiva das dualidades – da racionalidade e irracionalidade,

imanência e transcendência, ser santo ou transgressor – e do questionamento sobre

o verdadeiro conceito de religião, produzido por meio da tentativa de produzir

experiências interiores a posteriori, ao resgatar a importância das verdadeiras

buscas religiosas – as únicas capazes de promover respeito às diferenças. O

conceito poético e artístico que venho desenvolvendo para o mestrado ao pensar

Religião coloca a experiência interior como parte fundamental dessa relação entre

conhecimento, proibição e transgressão prescrita, porque a arte lida com um “não

conhecimento", a arte fala desse outro lugar, da escuridão, onde a religião tem outro

estatuto que não é o institucional, mas o do rigor moral (segundo a filosofia moral de

Bataille), acima do bem e do mal, da região do saber mais do que das ações.

Para Bataille, um aspecto do sagrado é aquilo que estimula o gesto

transgressor, uma recuperação da intimidade entre o homem e o mundo, sujeito e

objeto; observando que a confusão entre o sagrado e a interdição é, em parte,

devido ao acesso ao sagrado ser dado na violência de uma infração ou de um

sacrifício. O sacrifício é um dispositivo de prevenção na luta contra a violência que a

vontade ascética não consegue saciar, um alívio momentâneo, mas indefinidamente

renovável, que impede o desenvolvimento dos germens de violência; para Bataille o

sacrifício destrói laços de subordinação, anulando o sentido de coisa da vítima. É na

transgressão e na violência que o homem potencialmente se revela; Bataille chama

a isso atitude soberana, podendo o homem soberano ser considerado tanto santo

como criminoso. Desse modo, renova-se a possibilidade do excesso: desautorizar

41

uma lei, um saber, suspender uma ordem, abolir um discurso para fazer valer uma

experiência-limite gerada pela profusão das imagens-registro. Entre a busca de um

registro da apresentação do Canonizador AcSeita Coletivo, a vontade de estimular

as pessoas a experimentarem a posteriori a sensação de santidade (representada) e

pensando a santidade como uma vida sacrificada em busca do sagrado, surgiu a

transgressiva ideia da performance Sede de Santos, que busca multiplicar o

questionamento sobre santidade por meio de uma inversão de valores, seduzir o

espectador com um vício ao mesmo tempo em que sua imagem é (re)criada como

ser separado dos vícios/desejos.

Figura 25 - Detalhe da gruta de Lascaux, com bisonte e homem morto com cabeça de pássaro

Fonte: Disponível em: <http://lascaux.fieldmuseum.org>. Acesso em: 10 nov. 2013.

Percebo um reconhecimento da dimensão religiosa da arte na observação

sobre as pinturas rupestres (fig. 25) das Cavernas de Lascaux17, que são para

Bataille o símbolo do momento da diferenciação entre o homem e o animal, em que

se estabelecem com mais clareza espaços de interdição relacionados aos funerais e

à sexualidade. Os objetos relacionados à morte, inclusive o corpo morto, passam a

ser diferentes de todos os demais e relacionados ao sagrado; tudo o mais passa ao

17 BATAILLE, Georges. Lascaux or the birth of art. Lausanne: Skira, 1955.

42

campo do profano, acessível. Esse processo de categorização, que torna objetos

importantes, que faria parte daquilo que Bataille classifica como propriamente

humano, é que me levou a re-utilizar objetos pessoais, de forte apego emocional de

meu pai para a construção do canonizador. A conclusão desse processo seria o

perfeito desenho da separação entre o mundo do trabalho, da medida, dos limites, e

o mundo do sagrado, da desmedida, da morte, da sexualidade, também aquele em

que a arte se inscreve. A sensibilidade do sagrado se baseia em harmonia com a

natureza, diferente daquela do mundo profano, em que homem e animal são

absolutamente diferenciados. Assim, dentro do espaço do sagrado, o divino

compartilha com a animalidade e os animais têm mesmo um caráter mais divino do

que os homens – os deuses mais antigos, em sua maioria, eram animais. Os

cobertores que cobrem as paredes dos biombos do canonizador me remetem as

cabanas construídas com peles de animais; e as imagens de santos coletadas os

registros a serem decifrados por seres com uma consciência superior, no futuro.

2.4 Pensando religião segundo a perspectiva de Flusser

"Chamarei de religiosidade nossa capacidade para captar a dimensão sacra do mundo [...]. Certas pessoas, certas épocas e certas sociedades dispõem de um talento especialmente marcado para a religiosidade. Há pessoas religiosamente surdas, mas não há época nem sociedade inteiramente isenta de religiosidade." (FLUSSER, 2002, p.17).

Tive o prazer de conhecer o pensamento do filósofo judeu e tcheco

naturalizado brasileiro Vilém Flusser pouco antes de terminar de escrever esta

dissertação, sendo inevitável citá-lo, pois ao me apropriar de seu pensamento,

acrescento o toque final ao processo desenvolvido através dos pensamentos dos

filósofos que acabei de expor. Tal como Bataille, para Flusser a observação do

fenômeno religioso só pode se dar pela vivência interna; porém, ele associa a

religiosidade à busca da realidade, sendo o real aquilo no que acreditamos e

religiosidade uma capacidade que torna opaco o mundo porque o questiona,

anulando sua clareza ao produzir a dúvida, a dobra do pensamento. Ele aponta que

repressão da capacidade individual para a religiosidade gera a inversão de valores

morais, e como consequência disso surgem deformações e perversões da

capacidade religiosa na forma de endeusamento do dinheiro e do Estado, além de

43

seitas variadas. O Canonizador busca captar uma dimensão outra que apenas a

dimensão sacra, a tentativa de enxergar pelo avesso.

A busca da santidade exigida na bíblia só é real no momento em que

entendemos que o processo e as tentativas são seus elementos primordiais,

aceitando os erros como parte inevitável da nossa humanidade. Nesse sentido, a

(busca da) santidade é um procedimento que permite que aceitemos as diferenças

sem necessariamente concordar com elas, e a negação desta busca religiosa é o

que permite o enfraquecimento das comunidades.

“A dicotomias que Descartes estabelece entre matéria e pensamento, entre corpo e alma, entre duvidoso e o indubitável é, a meu ver, uma dicotomia nefasta [...]. A dicotomia pensamento-matéria não é, portanto, fruto de uma distinção epistemológica, como parece ser se formos considerar a partir de Descartes, mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual participamos.” (FLUSSER, 2002, p.38-39).

A dualidade para Flusser é um pensamento nefasto, porém difícil de ser

superado; ele alerta que a dicotomia matéria-pensamento tem tornado nossa

civilização tediosa e fútil. Ao retornar ao mito da expulsão do paraíso, que associa à

alienação que é o nosso pensamento – apontando o pensamento como o processo

de compreensão e modificação de corpos, que se utiliza da ciência e da tecnologia

para devorar os corpos; e a filosofia como o movimento oposto do pensamento, que

vira o pensamento contra si e o faz devorar-se a si mesmo – descreve o paraíso

como um estado de não-divisão e não-dúvida, observando o pensamento (dúvida)

como o elemento responsável pela nossa expulsão do paraíso em busca de outro

paraíso. Acredito que a performance Sede de Santo dialogue também com o mito da

expulsão, pois a duvida que gera o riso e quebra as barreiras é o que permite a

entrada no paraíso, no momento que o espectador se torna co-autor, ele se torna

santo, o canonizador deixa de ser mero cenário.

Flusser define o pensamento como um processo linguístico quase saturado,

cuja conversação avançada ameaça mergulhar em conversa fiada, eventualmente

chegando a um estágio de paraíso na terra, indistinguível do inferno; propõe a arte

nova como possibilidade de linguagem pela qual estão sendo criadas novas

categorias de pensamento, portanto nova estrutura da realidade.

44

Figura 26 – Relicários de Santos Vivos

Relicários em Caixas de Fósforo. Papelão, madeira, objetos e resina, 8 x 5 x 2,5cm, 2011. Fonte: Coleção Particular.

Vilém Flusser observa maravilhosamente aspectos ‘religiosos’ em trabalhos

artísticos, descrevendo a transgressiva ‘busca religiosa’ do artista escritor Franz

Kafka, cuja mensagem passa pela religião e a ultrapassa sem a abandoná-la;

chama-o de ‘pontífice’18 por denunciar situações de fronteiras, nacional,

arquitetônica, inclusive a linha que divide os espíritos em intelectuais e meditativos; e

de profeta, por relatar situações iminentes. Penso em muitos dos Santos

fotografados como seres religiosos pelos mesmos motivos.

2.5 Ser ou não ser Religioso? ou Todo Corpo é Santo?

Meu conceito poético de religião se configurou apropriando-se de definições de

filósofos reconhecidos pelas academias, associando-os à parte do trabalho artístico

que produzi durante o período do mestrado, e segue procurando e observando

aspectos religiosos no trabalho de artistas contemporâneos (no sentido de estarem

produzindo formas diferentes de arte, seja ela acadêmica, popular, arte-produto,

etc.). A religião que lida com mitos para verbalizar o ‘indizível’, ao ser ‘explicada’

perde a magia, o encanto, e faz com que o homem moderno se afaste da busca das

origens. Porém há muito tempo já se observa a necessidade de voltarmos

18 Ibidem, p.65.

45

constantemente às origens para podermos reformular questões vitais ao bom

funcionamento das sociedades, pois o ‘sagrado’ é inconstante e paradoxal. E é

nessa busca de compreender as demandas sagradas que consiste o que defino

poeticamente como religião, ressaltando sempre que apesar de ser geralmente ser

praticada em instituições, a verdadeira religião não pode ser institucionalizada.

Acredito ser um erro gravíssimo tanto o excesso de poder outorgado às instituições,

quanto confundi-las com religião; nessa linha, o que os ‘santos AcSeita Coletivo’ são

convocados a fazer é buscar o sagrado, encarando as trevas de seu tempo e

tomando parte nos confrontos; ser ‘santos AcSeita Coletivo’ é proclamar revelações

repetidas e paradoxais, mas sempre promovendo o respeito às diferenças. O fato de

que as religiões apontam padrões de comportamento não pode nem deve impedir

padrões diferentes, ou condenar quem opta pela diferença, pois geralmente é nessa

diferença que reside o ‘sagrado’, e por isso mesmo deve ser evitado, mas nunca

combatido.

Acredito que as verdadeiras buscas religiosas, apesar de conflituosas, por

revelarem excessos praticados, geram uma convivência harmoniosa entre os

homens e o seu entorno, promovendo entendimento e tolerância. Convém observar

que essas buscas geralmente surgem em momentos em que a falta de alteridade se

torna predominante, na forma de questionamento dos valores societais que

culminaram em movimentos capazes de modificar padrões de comportamento, mas

eventualmente foram institucionalizados. Penso que a proposição poética Arte como

Religião não deixa de ser também política, pois, sendo o conceito de arte

intrinsecamente aberto e mutável, designando um campo que investe na sua

originalidade e inovação, como uma linguagem capaz de produzir significados

variáveis, é capaz de estimular novas formas de buscas religiosas que sejam

capazes de resgatar a tolerância e o respeito social.

2.5.1 Vícios e virtudes, autonomia e anomia.

Para a existência de uma sociedade saudável, normas que respeitem as

alteridades, promovendo solidariedade e tolerância, são definidas por instituições

para gerar a coesão social. A anomia social refere-se a um estado em que as

normas que promovem a coesão societal são quebradas, geralmente ocasionadas

46

por uma desestabilização das partes que compõem a estrutura social. Esta é

determinada, em boa parte, pelas metas a serem atingidas pelos indivíduos (ser rico,

famoso, cultuar um Deus, etc.) e pelas regras para atingi-las (leis, costumes,

dogmas, etc.). A anomia surge quando as normas de conduta estabelecidas como

regras pela sociedade para se alcançar metas sociais não estão devidamente

integradas nessas sociedades, e os indivíduos se sentem incitados a violá-las para

poder alcançar as metas; quando mais importância é dada ao alcance das metas do

que às normas sociais ou regras para se atingirem-nas. E é nesse momento que as

verdadeiras buscas religiosas devem ser estimuladas para que as normas possam

ser revistas.

Ao me utilizar de um mandamento para contestar atitudes e a autoridade da

igreja, não vou ao grau zero, mas exerço o lugar do vazio. O mandamento “Sede

Santos” da Bíblia é rigoroso com as necessidades de alteridade entre os humanos e

a natureza. A releitura do dever de separação para o religioso, por meio da figura do

santo, coloca a mágica de volta para aquele lugar imantado, traz de volta o conteúdo

simbólico mágico, faz o espectador exercer seu lugar de transgressão: o poder de

duvidar, questionar. Você vai ali acreditar um pouquinho que é santo? Ou quer

apenas trair um pouco a religião, brincando com seus conteúdos? Para tomar parte

da ação, o espectador precisa resgatar essa vontade de estar nesse lugar mágico;

exercitar seu lugar de Deus e Artista. No Canonizador AcSeita Coletivo, o coeficiente

de magia é ironizado pelo vazio da cadeira dentro do biombo – o objeto trono

permanece como resto, é um objeto-em-lugar que demanda uma ação, a atitude

participativa do espectador, se posicionando na cadeira-trono para ser registrado

como Santo AcSeita Coletivo.

47

Figuras 27 e 28 - Primeira apresentação do Canonizador. IX Festival de apartamento, Campinas.

Fotografia Digital. Fonte: Coleção Particular. 2012.

O que há de mais religioso na proposta poética Arte como Religião é investigar

os mecanismos de separação e as interdições, propondo o questionamento de

dogmas e das instituições O ser religioso possui a consciência da impermanência da

matéria, no qual estamos carne e possuímos alma, enquanto a coisa19 é alma, pois

não a possui. A Instalação Canonizador AcSeita Coletivo busca esse lugar de

separação exigido pela religião; “Sede Santos” não é apenas um mandamento

cristão, mas um princípio básico religioso, pois para se ter uma experiência interior é

necessária uma prática de separação. O Canonizador AcSeita Coletivo pretende

produzir subjetividades ao questionar o que seria a separação religiosa no contexto

contemporâneo, funcionando como um dispositivo que congela um momento de

separação ao mesmo tempo em que desloca o objeto de fetiche para o próprio

19 A coisa enquanto objeto criado pelo homem é inspirado no pensamento de Martin Heidegger.

48

espectador. A instalação original não teve nada de valor, nem de uso, nem

puramente estético. Foi feita de objetos que deveriam ter sido descartados, mas que

por uma questão de afeto foram mantidos. São objetos velhos guardados por meu

pai, um ex-monge budista que reclamava da falta de consciência em respeito à

materialidade das coisas; ele reclamava da falta de comprometimento do homem

com os elementos produzidos por eles mesmos, e sua relação com a natureza.

Figuras 29 e 30 - Relicário feito com imagens, documentos e recortes guardados por Don

Kulatunga.

Colagem sobre caixa de cartolina com resina. 2011. Fonte: Coleção Particular.

49

2.6 E a arte com isso?

“A imagem adquire um caráter de sagrado por sua função de ligar o profano, sociedades e pessoas, transformando-se em linguagem comum, como expressão arquetípica [...]. A função essencial que pode ser atribuída à imagem, em nossos dias, é a que conduz ao sagrado” (MAFFESOLI, 1995, p. 107)

Pensando sobre o estatuto da arte, parto do conceito do historiador Arthur

Danto20 que prega o fim da arte como meramente representacional, para propor uma

percepção religiosa, comparando o artista contemporâneo a seres religiosos (santos,

profetas, hereges, etc.) que, utilizando-se de dispositivos artísticos, perpassam a

membrana que separa sagrado e profano, para reavaliar os valores da sociedade

em que se inserem. A instalação Canonizador AcSeita Coletivo busca criar um lugar

inventado, ao gerar uma paisagem que demanda um protagonista; um convite a uma

experiência interior que gera a dúvida, um questionar que propõe que nos

coloquemos no lugar questionado; um jogo que denuncia trocas de valores morais.

A questão das imagens é complexa, tendo na arte e na mídia conceitos e

modos de relação e recepção diferentes, mas é certo que não vivemos sem

imagens, nem poderíamos nos relacionar sem elas. Para o sociólogo Michel

Maffesoli, as imagens são um elemento central na convivência dos indivíduos, pois o

que faz as pessoas estarem em grupo é o prazer de estarem juntas, vivendo o

presente coletivamente em busca de um sentido estético, pois, de modo geral, a

estética da mensagem tende a substituir seu conteúdo. Na mensagem estetizada, o

que convence é a forma; a arte na propaganda sofre uma a distorção da função

estética em benefício de uma função de comunicação manipulativa.

As imagens dentro da cultura contemporânea podem tanto revelar quanto

dissimular. De tão preciosas que são, por vezes as formas de poder vigente tentam

criminalizar sua ação como se elas tivessem vida própria, o que se conecta ao

pensamento da idolatria.

20 DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

50

Figura 31- Relicário feito com imagens e objetos guardados por Don Kulatunga,.

Colagem sobre papelão com objetos e resina. 2011. Fonte: Coleção Particular.

A mídia, ao criar ícones e promover sua circulação, em forma de bens ou

mensagens, propõe uma re-significação, transformando os ícones em artefatos que

passam a integrar a dimensão sócio-material da sociedade pela esfera do consumo.

“Muitos artesãos sabem que o objeto vai ser utilizado de modo diferente do original, mas, como precisam vender, adaptam a concepção ou o aspecto do objeto artesanal para que seja usado mais facilmente nesta nova função, que talvez evoque seu sentido anterior por causa da iconografia, ainda que seus fins pragmáticos e simbólicos predominantes participem de outro sistema sociocultural”. (CANCLINI, 2004, p. 42)

Viver uma experiência (interior) artística é entender, pensar diferente e

profetizar. É sentir a vibração do mundo fazendo seu corpo vibrar harmoniosamente

e, se necessário, vibrar diferente. É fazer o movimento continuar após você parar.

Escutar as respirações/aspirações do mundo e enlouquecer serenamente. Ficar de

pé em silêncio no palco da vida. Passar a sentir como seu corpo sente. O artista que

promovia tal sensação esteticamente, pela majestosa técnica, caiu em desuso.

Vivemos um momento em que o conteúdo mágico volta a aparecer com força

na arte contemporânea; são exposições repletas de pensamentos mágicos e

51

alteridade. A arte produz essa magia, fazer arte ritualmente proporciona ao

espectador transcender em busca de sua própria experiência interior.

“Há um é que figura principalmente nas afirmações concernentes às obras de arte que não é o é da identidade ou da predicação; nem é o é da existência, da identificação ou algum é especial inventado para servir a um fim filosófico. É o sentido de é, de acordo com o qual uma criança, a quem é mostrado um círculo e um triângulo e perguntado qual é ela e qual é sua irmã, apontará para o triângulo dizendo: “esse sou eu” [...] é uma condição necessária para algo ser uma obra de arte que alguma parte ou propriedade dele seja designada pelo sujeito de uma sentença que emprega esse é especial. Esse é um é, incidentalmente, que possui parentes próximos nos pronunciamentos marginais e míticos” (DANTO, Arthur. Artefilosofia, Ouro Preto, n.1, p.13-25, jul. 2006. Grifos meus)

Penso esse é citado por Danto como afirmações possibilitadas pela arte e

como esse elemento mágico, que, ao ser descontextualizado e ressignificado, perde

seu ‘aspecto religioso’ e passa a objeto de arte. Tendo seu valor se transformado em

valor de exposição, passa a disputar também um lugar de objeto geográfico. Em um

mundo globalizado onde constantemente artefatos são deslocados e

descontextualizados; em que questões de lugar, nação e comunidade têm sido

reguladas politicamente sem se considerar o aspecto religioso das comunidades;

inteiros procedimentos culturais e religiosos têm sido destruídos; a religião

(sentimento de busca) tem sido desacreditada e renegada, gerando um

individualismo exacerbado, a arte surge como um poderoso instrumento capaz de

promover questionamentos e modificar condutas, sendo essa capacidade de

modificar condutas aquela a que me refiro com relação à dimensão religiosa do meu

trabalho artístico.

Um dos aspectos messiânicos dos meus trabalhos consiste na necessidade de

convencimento da participação dos Outros. Nunca trabalhei com o tema religião por

respeito aos pensamentos religiosos que originaram as instituições religiosas cristã e

budista, mas, apesar de discordar de certos dogmas criados por elas, começar a

trabalhar com o tema é entender a necessidade de resgatar pensamentos originais.

A religião necessita da diferença e consequentemente precisa respeitá-la. Nesse

sentido, defendo que o Canonizador AcSeita Coletivo é uma obra religiosa, no

sentido que desenvolvo poeticamente: por necessitar do outro para que a obra se

realize. Nesse caso, para uma experiência de sacrifício, isto é, um tornar-se sacro,

colocar-se no plano do divino, uma (momentânea) saída do plano mundano.

52

Como a produção de uma memória nacional vem do reflexo de seus sujeitos,

os objetos folclóricos – enquanto artefatos culturais de uma classe social específica

de uma nação – deixam de ser mera “arte pela arte” e demandam a posição de lugar

geográfico para servir à construção dos nacionalismos, sendo exigida de suas

comunidades a adequação ao modelo de minorias ao estereótipo pré-definido e

rígido, que deve ser repetido e transformado em espetacularização de seus hábitos

culturais (inclusive suas religiões se transformam em espetáculos), que servem para

o Estado cultivar o turismo como modelo secular das peregrinações religiosas.

Alterando o espaço, a sociedade altera a si mesma, fazendo com que formas do

passado percam sua função original, passando a ter outra função no espaço; a que

o sociólogo Milton Santos denominou rugosidade: o espaço como acúmulo desigual

de tempos, que seria o que

“fica do passado como forma, espaço construído, paisagem; o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. [Elas] se apresentam como formas isoladas ou como arranjos.” (SANTOS, 2002, p.140)

Milton Santos pensa o espaço como resultado de diversas influências

mundiais, regionais e locais ao mesmo tempo, considerando-o como um todo,

indivisível como a sociedade que o ocupa; também observa os objetos criados para

esses espaços como formas espaciais cujas ações geram os conteúdos sociais.

Questiona a possibilidade de um objeto de arte ser posicionado como objeto

geográfico. Para ele, o espaço geográfico contém o espaço social, e, assim, as

ações e os objetos são indissociáveis e se pensados separadamente perdem seu

sentido, pois os objetos só têm sentido a partir da ação humana que os gera e os

utiliza. Repensar religião é entender a necessidade de convivência de diferenças.

2.6.1 A questão de quem faz as listas

Os nomes inscrevem a pessoa no simbólico, é o nome que dá sentido. Ao

mesmo tempo em que se sujeita ao simbólico, o sujeito é determinado, mas é

também determinante enquanto possibilidade de reconstrução. A criança para deixar

de ser “coisa” precisa ser nomeada e depende de um ato performativo de seus pais

ou de alguém responsável por ela. Os atos performativos de linguagem possuem

53

força de lei, como testamentos, casamentos, certidões em geral. Por exemplo,

alguém só é considerado legalmente morto se houver uma certidão de óbito; em

todos os rituais de passagem, há um documento escrito que autentica aquele

momento; há a questão do narrador como uma forma utilizada para a construção de

um ideário de imaginários, como uma figura que mascara a questão da autoria. Um

efeito que se nota na contemporaneidade é a superabundância de informações e

carência de atenção. A autoridade individual se torna exacerbada, perdendo-se

alteridade nos relacionamentos. Sócrates se negou a escrever por acreditar na

dialética, e que a escrita fecha o conhecimento; propôs uma investigação

permanente com ênfase maior em investigar o que não se sabe, do que transmitir o

que se julga saber.

Questões têm surgido no processo de elaboração do meu trabalho de artista,

da leitura de pensadores diferentes, como a crítica do historiador e crítico de arte Hal

Foster21 sobre a retirada de objetos que têm tanta aderência ao pensamento mágico,

do seu local natural, expondo-os fora do rito e tornando o nativo um objeto. A

colocação no interior de uma galeria de arte de elementos que são mágicos em seus

locais de origem lhes tiraria sua força simbólica e minaria sentimentos de fé? Essa

capacidade de ressignificação do objeto artístico não seria um elemento/aspecto

religioso da arte? Esse procedimento da arte contemporânea não seria uma

descontextualização, pelo deslocamento desses objetos tão aderentes ao

pensamento mágico de seu lugar de origem? Quando crio um trabalho que lida com

o elemento religioso em outro contexto, propondo outra leitura desse conceito,

modifico seu significado? Não seria nessa rugosidade causada pelas releituras que

residiria o elemento/aspecto religioso, ao qual o antropólogo Massimo Canevacci

chama de sagrado? Seria esse procedimento de recontextualização uma

fetichização no sentido proposto por Canevacci de interconectar visualmente a coisa

e o olho? Para esse autor, o fetiche funciona como domínio epistemológico, sendo

político no nomear como forma de dar uma hierarquia a discursos coloniais, mas no

qual entra o sagrado, enquanto espírito que move; para ele, “toda vez que o sagrado

21 FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural; 1996, p.244.

54

sai da normatividade de uma religião se metamorfoseia no fetiche”22 – sendo o

fetichismo, para ele, o sagrado. De que modo expor um elemento ritualístico?

O resgate das origens e da encenação muitas vezes gera apenas uma

espetacularização do ritual. A condenação no aspecto etnológico, que questiona a

função e o contexto do objeto, é de que apesar de a cultura exigir que se conheça o

ritual completo, quase sempre ocorre uma descontextualização ao se retirarem os

objetos de seus rituais para transferi-los para o museu. Quando o método e a forma

coincidem, aí sim se dá uma história, surge o intempestivo que Agamben

vislumbrou, aquele cujo tempo não coincide, a não coincidência morfológica das

imagens com o contexto, a história por trás das imagens sendo sempre mais

complexa. E o que resta depois da afinidade formal são objetos tribais ritualísticos

apenas como testemunhas, não mais fonte direta de experiência interior. Ao pensar

o porquê e o para quê servem estas imagéticas construções de realidade,

observamos a imagem não mais apenas como um lugar de visualidade, porém de

narrativa e problematização, a fotografia funcionando como modo de registro e até

mesmo denúncia implícita. A instalação Canonizador AcSeita Coletivo não busca

necessariamente questionar quem se separa de valores mundanos, ou quais

virtudes se almeja, mas talvez pensar de quais vícios devíamos nos separar. A

performance Sede de Santos procura este lugar de registro, de um gesto que nos

remete ao juízo final, no qual procuro desenvolver o questionamento sobre

religiosidade a partir do questionamento do que é ser santo. Cada ação é

independente, mas tem vínculos entre si, todas pensando o que é esse ser

separado, tentando registrar seus modos e hábitos, para além da sua imagem.

2.6.2 Alteridade: reconhecer no Outro a diferença como necessária

“o mundo sem lei: a lei é, com efeito, a introdução de um significante de alteridade que, interpondo-se entre o real e o sujeito, tem por efeito interditar o real de se oferecer à percepção interna do sujeito, que é simbolizada num dizer. Porém, nem tudo do real pode ser apreendido pelo simbólico. É assim que, aquilo que foi retirado da voz arcaica pelo poder simbolizante do interdito, faz retorno no real” (VIVES, Jean Michell, 2009).

22 CANEVACCI, Massimo. Fetichismos visuais – corpos erópticos e metrópole comunicacional. São Paulo: Atelier Editorial, 2008.

55

Lacan ressalta a questão de alteridade e a modificação do lugar do sujeito no

circuito da invocação. O “ser-chamado” necessita sempre de uma voz que o

invoque. Ao conferir à invocação o estatuto de Pulsão Invocante, Lacan articula a

voz ao desejo do outro. Ao relacionar o saber e o sentido (por meio do binômio

sujeito e escrita), é pertinente salientar que a verdade não pode ser dita toda,

apenas ser semi-dita, e que o real é o impossível de abordar, o inefável, o indizível.

Lacan aponta, como exemplo, a escrita de Joyce, uma amarração que dá conta em

si mesma – a escrita do nós – da coexistência da letra como jogo pulsional e da

inscrição de um traço do sujeito. A questão da letra enquanto voz que se insere e é

inserida na escrita; uma condição de ser resto (da fala) e tentativa de inscrição, a

partir do reconhecimento do outro. Para Lacan a letra indica que a emergência do

inconsciente ainda precisa de um caminho de elaboração. A relação da letra com o

significante gera a produção de sujeito.

Para que fazer um Canonizador? No século XXI, com a ruptura da

experiência dos sujeitos, o “humano” se depara num mundo propenso à

“desumanização”, pós-guerras, tornando-se mais um sujeito à deriva na multidão

cuja perda das noções de identidade e de pertencimento acaba por constituir

sujeitos que são pura exterioridade e gerar relações diluídas com automatismos

inconsequentes. O Santo é também um inumano. (Larrosa)

Mas como “o sileo não é taceo”23, Beckett segue na via inversa de James

Joyce – que prima pelo excesso, a busca da onisciência – e se torna a voz que nos

alcança através de um silêncio desestruturador de palavras e ações, que subtrai ao

máximo, mas não cala e atinge a completude pelo esvaziamento. Beckett pratica em

seus personagens a “arte do desaparecimento”. Com a subjetividade esvaziada,

individualidades fragmentadas, a noção do sujeito que desaparece, que se perde no

uso das coisas, repetições, o uso de palavras vazias, a subtração do corpo e sua

desconstrução junto à da linguagem, remete-nos a uma estética do fracasso – de

não poder se expressar por meio das palavras e do desejo de eliminá-las. O sujeito

23 O sileo é o nada dizer, taceo seria o silêncio da palavra não-dita, o silenciar-se ou ser silenciado. O sujeito a reconhecer seu inconsciente como sua história.

56

de Beckett é pura exterioridade, é voz, emanação, existência, é o devir; seus

personagens para mim são relicários vivos, personagens-profetas, cujos objetos de

cena reconheço em meus relicários: o tubo de pasta de dente quase acabado, a

escova velha, e cuja voz as vezes se reconhece e se surpreende. O mutilado não se

percebe mutilado, e ao tentar usar, é usado pelas coisas, uma vez que elas já estão

esgotadas. Sua crítica à falta de consciência nos propõe a busca do

autoconhecimento. Tal como o lugar que peço para ocuparem para tirar uma foto. A

partir de textos não convencionais (a não narrativa em Beckett), há um jogo, em que

as palavras se reorganizam e, através por meio da repetição, esvaziam-se de

sentido. Um texto que revela os procedimentos de sua composição, uma redução de

verbos para dificultar o reconhecimento de qual pessoa fala e gerar uma noção de

incompletude. A arte de calar utilizada para reforçar a ideia de que a linguagem é um

lugar de excessos, no qual o sujeito pode facilmente se perder de si, tornando-se

mais de outros do que de si mesmo. Os objetos esgotados passam a usar o sujeito,

que apenas se repete numa infinda combinatória ao tentar completar procedimentos

lógicos, em operações que beiram o absurdo. Chamar Beckett de profeta é,

portanto, reconhecê-lo como contemporâneo ao seu tempo, cuja alteridade provém

da fala de si mesmo e para si, como o sujeito que não se reconhece no espelho e

não sente que possa ser representado, “eu sou o outro que me ouve”. É nos outros

que busco me retratar. É na busca dos vícios que quero pensar as virtudes, procuro

lidar com contradições, procuro utilizar a fala ao contrário.

57

3 OS RELICÁRIOS E O CANONIZADOR ACSEITA COLETIVO

A proposta Arte como Religião seria inicialmente um trabalho artístico e político

baseado no estudo de registro de símbolos e rituais cristãos e budistas; mas que

pelo surgimento de um interdito, se transformou em caixas, muitas caixas que

surgiram e se misturaram; e objetos de uso se misturaram e se confundiram tal

como os conceitos e as teorias que surgem neste texto, e que pretende o registro

dos novos santos contemporâneos e seus vícios e virtudes.

Das muitas caixas cheias de papéis manuscritos, outras com objetos velhos,

outras com roupas, toalhas, e de um amontoado de bugigangas que encontrei no

apartamento de Água Santa, onde meu pai viveu seus últimos dias, surgiram os

Relicários em caixas de fósforo como pequenas lembranças alheias, um desejo de

perpetuar uma memória que não me pertence, e que, por isso mesmo, teme o que

pode revelar. Pequenas cápsulas de memórias, que registravam hábitos, apegos,

consumos. Surgiram Relicários maiores também, todos feitos de caixas cortadas de

modo a expor seu interior; cortadas ao meio, abertas como janelas e forradas com

material encontrado na casa e posteriormente com outras imagens que selecionei

por se relacionarem aos questionamentos que desejo propor. E um pouco como

justificativa para tantas caixas, criei a instalação Canonizador AcSeita Coletivo, feita

com objetos velhos do cotidiano de meu pai; um dispositivo para questionar

processos de subjetivações; para gerar diálogos e tornar mais interativo meu

questionamento, mas que não deixa de ser também um relicário.

Dentro de uma proposta poética ampla como a de Arte como Religião, procurei

fazer um recorte entre os trabalhos produzidos durante o mestrado, de modo a poder

tecer uma área específica de questionamento. Escolhi pensar o que é religiaão

através do pensamento do significado da santidade, e para isso escolhi os trabalhos:

Relicários e o Canonizador AcSeita Coletivo, os primeiros trabalhos que surgiram

como resultado de um diálogo que foi sumariamente interrompido, por serem

diretamente relacionados à ideia de separação proposta por Giorgio Agamben como

a base para que possamos pensar a religião, tendo como base a ideia de

separação. No caso dos relicários, a separação de objetos usados, revela hábitos,

expondo vícios e virtudes. E a santidade retratada é irônica, um deboche.

58

As relíquias são classificadas pela Igreja Católica em três classes; a primeira

seria composta de parte do corpo de um santo como, por exemplo, de ossos, unhas,

cabelo, etc.; a segunda classe de relíquias seria de objetos pessoais de um santo,

como roupa, um cajado, terço, rosários, os pregos da cruz, etc.; e a terceira classe

incluiria pedaços de tecido que tocaram no corpo do santo, como lençóis,

travesseiros, móveis de uso pessoal; sendo proibido pela igreja católica, sob pena

de excomunhão, vender, trocar ou exibir para fins lucrativos relíquias de primeira e

segunda classe. Observo também que os relicários buscam também questionar o

uso e a posse que temos em relação aos objetos.

Os Relicários artísticos que construí são constituídos de elementos separados,

a maioria da segunda e terceira classe: objetos que seriam descartados, mas que

foram guardados após sua utilidade ter sido extinguida. A instalação Canonizador

AcSeita Coletivo, que através da performance Sede de Santos24 gera imagens que

diferem dos retratos habituais, tanto dos espectadores, quanto dos santos; também

foi construída com relíquias de terceira classe: toalhas, protetores de mesa, etc.;

sendo um dispositivo, mas também um Relicário em potencial.

Esses trabalhos artísticos que procuram pensar o que seria a santidade

atingem também um ponto de discórdia das instituições cristãs, Católica e

Protestante: os santos canonizados. Para a Igreja Católica, os santos são figuras

míticas da fé cristã; pessoas de conduta e virtudes ímpares, capazes de se

submeterem às mais terríveis provações em nome da religião que professavam,

sendo canonizadas, declaradas santas, somente depois de mortas e de

necessariamente ter sido comprovado pela Instituição católica serem responsáveis

por milagres e feitos extraordinários; enquanto para os protestantes, santo é todo

aquele que é separado para Deus, pessoas que pela fé entregaram suas vidas à

prática religiosa.

Abraçando um pouco de cada posição, da possibilidade de pessoas que se

separam dos valores societais vigentes, e do processo de canonizar como

autenticação dessa separação como uma santidade, a instalação Canonizador

AcSeita Coletivo pretende não apenas chamar atenção para a separação necessária

24 A performance em si é a argumentação e as diferentes formas de persuasão que utilizo para a obtenção da participação do visitante e de seu registro sendo canonizado.

59

para Religião (prática) como a inversão de valores causada pelo afastamento da

verdadeira religiosidade dentro das instituições religiosas, ao propagar o ódio e a

intolerância a comportamentos diferentes dos padronizados e negar a necessidade

de buscar a santidade como condição para uma busca religiosa. O Canonizador

AcSeita Coletivo surgiu como forma de contextualizar o fato de os relicários serem

feitos de objetos de meu pai, um ex monge, e de pessoas que ainda estão vivas.

Ambos feitos com objetos testemunhas, como tentativa de entender e profanar

certos processos separatórios.

3.1 A Santidade como condição para a busca religiosa

O que seria o “santo”? Usualmente contém um significado fundamental de

‘separado’, ou fora do uso comum; algo restrito por regras cerimoniais ou limitado a

certo povo (Israel, sacerdotes), lugares (tabernáculo), coisas (altares), ou tempos

(sábado). Na Bíblia é um mandamento que impõe muitas restrições a todo o ‘povo

escolhido’, que aparece inicialmente em Levítico 20:07 e em 1 Pedro 1:16, a

santidade que o Deus exige é o respeito às alteridades. O nascimento não seria uma

separação? O monge não se separa da sua sociedade para poder a observar

melhor? A instalação Canonizador AcSeita Coletivo não demanda uma separação

para poder ser observado? Acredito que a separação começa na consciência que

temos dela, e aponto que um dos pontos importante das religiões é o fato delas

servirem de orientação para as buscas individuais, sendo imprescindível para que

haja harmonia, que as diferenças sejam respeitadas por todas as religiões. Combato

a ideia de que religião somente pode ser praticada dentro das instituições-que-se-

dizem-religiosas, apontando a semelhança entre profetas e os trabalho de grupos

alternativos como Anarko Punk e Coletivo Coiote.

Se relíquias são objetos usados por santos, ao expor objetos que pertenciam a

um ex-monge budista e convidar as pessoas a posarem como santas e se

posicionarem na frente de um halo luminoso, profanamente sacralizando- as,

60

resgato a figura do ‘homo sacer’25. Sendo que a posição de artista que pretendo é

aquela que é confundida com a do padre e do psicólogo, pois ao mesmo tempo que

busco proporcionar uma experiência interior convocando corpos a assumirem

lugares, privo-os do reconhecimento imediato proporcionado por um espelho, sendo

a fotografia seu único modo de autorreconhecimento; um modo de proporcionar

experiências interiores a posteriori.

Sob o ponto de vista do qual parti para realizar minha pesquisa teórica e meu

trabalho de arte está uma concepção social de que, da mesma forma que não se

concebe a existência de comunidades sem política, não deveria ser concebível fazer

política sem se respeitar o pensamento das diferentes religiões. Ressalto que toda a

pesquisa propõe repensar o que denominamos religião, pois o que as religiões

originalmente procuravam – por meio de parábolas, mitos ou histórias – era manter

as comunidades unidas por intermédio de conceitos plenos de alteridade,

entendendo-se, neste caso, alteridade como uma forma de respeito à diferença do

outro.

Pesquisar as relações entre arte, religião e cultura na formação da sociedade é

pensar a partir de pontos de contato, onde ocorrem as coincidências, onde

pensamentos se esbarram e se misturam; é também rever significados e

significantes de modo relacional, gerando processos de resgate de alteridade e

coesão social. Busco desassociar o conceito de religião das instituições que se

dizem religiosas, pois as mesmas abandonaram os pensamentos que as originaram

ao deixar de respeitar alteridades, não reconhecendo no outro o direito de ser

religioso. A vida em trânsito e o entendimento sutil do homem com a natureza e o

outro demanda uma nova consciência e novos parâmetros para uma (re)construção

social; consciência esta mais crítica em relação à nova ordem social consequente

das guerras e gerada pelo deslocamento dos indivíduos do campo para a cidade,

que produziu, além da erosão de laços sociais e geográficos, uma maior

desigualdade social e uma experiência de vida gregária e antirreligiosa, que deixa o

sujeito abandonado à própria sorte, a solidão acompanhada.

A religião a meu ver deveria funcionar como um elo social, que nos unisse ao

que separamos, um re-ligare que harmonizasse as diferenças por meio do respeito à

25 AGAMBEN, 2007, p. 69.

61

alteridade – respeito ao outro e respeito à vida de forma geral. Formas de

agrupamento sem respeito à alteridade se tornam associações de indivíduos

egoístas, que, ao invés de buscar uma adequação das minorias, as exclui,

separando-as da comunidade, muitas vezes agressivamente.

3.2 Relicários como Lembranças Alheias

Os primeiros objetos artísticos que fiz dentro da proposição poética Arte como

Religião foram Relicários em Caixas de Fósforo (figs.32 e 33), pensados como se

fossem objetos Haikais, que continham imagens e objetos. As caixas de fósforos

foram resultados de uma dupla lembrança: os variados e pequenos objetos, velhos e

enferrujados, que achei na casa de meu “pai verdadeiro” me trouxeram à memória

os variados objetos herdados de meu “pai de criação”: meu avô materno, que,

apesar de ter sido advogado no Ministério da Educação, era também um exímio

carpinteiro que possuía em casa uma oficina quase completa, na qual encontramos

várias prateleiras abarrotadas de caixas com palitos de fósforo queimados,

guardados para serem utilizados em uma maquete que ele nunca iniciou: uma

enorme Torre Eiffel.

Relicários são geralmente caixas ou bolsas, que contêm objetos que

pertenceram a santos ou imagens de santos. Haikais são formas poéticas de origem

japonesa, com três linhas e poucas sílabas, poesias concisas. A historia do haikai

retoma a filosofia espiritualista e o simbolismo Taoista dos místicos orientais e

mestres Zen-budistas que expressam muito de seus pensamentos na forma de

mitos, símbolos, paradoxos e imagens poéticas. Os meus relicários se propõem

como haikais visuais, cujas combinações de apresentação criam uma variedade de

histórias por serem feitos de objetos afetivos banais e cotidianos como pedaços de

roupas, parafusos, fichas telefônicas, moedas antigas, papel de balas variadas,

pedaço de trabalhos de amigos, recortes de jornal. Os Relicários de Santos Vivos

consistem em caixinhas de fósforos que guardam objetos usados pelos Santos

AcSeita Coletivo. As relíquias (feitas de dejetos) dos Santos AcSeita Coletivo geram

uma coleção que aponta não apenas as virtudes, mas também os vícios das

comunidades em que estão inseridos. Os relicários possuem uma precariedade

62

estética, formas errantes, quase signo, frase visual; e são excessivos, muito

semelhantes, quase gagueira visual.

Figuras 32 e 33 – 225 Relicários em Caixas de Fósforo.

Instalação com caixas de fósforos, objetos e resina, 8 x 5 x 2,5cm. 2011. Fonte: Coleção

particular.

Quando objetos meus e outros provenientes de amigos acabaram entrando nos

relicários, o questionamento do que vem a ser santidade se tornou imperativo. O

pronome de tratamento Sua Santidade é usado como forma de tratamento para

lideres espirituais notável, como por exemplo, é utilizado para o líder budista tibetano

Sua Santidade Dalai Lama. Pensar a santidade de forma cristã me levou a um

mandamento bíblico: ‘Sedes santo porque sou santo’ (Levítico 19 e I Pedro 1), que

gera conflito entre o cristianismo católico e o protestante acerca da figura dos santos

canonizados. Para os protestantes, a santidade é um mandamento condicionado à

separação necessária para adorar a Deus; enquanto os católicos, ao canonizar,

produzem o reconhecimento oficial de um estágio de separação. A canonização

católica se dá em três etapas: antes de ser santo é necessário ser considerado

venerável; após comprovação de milagres torna-se beato e, só após um novo

63

milagre, pode ser considerado santo. No caso dos mártires, não se exige nenhum

milagre, o processo é mais simples. Basta provar que morreram pela fé; o

derramamento do seu sangue – a morte – vale por muitos milagres.

Inicialmente os relicários foram feitos como objetos testemunhas, coletados da

casa de meu pai, um ex-monge. As imagens selecionadas por mim (fotos, recortes

de revistas, desenhos) são organizadas em uma associação poética que menciona a

separação dos monges budistas, relacionando-a com a dos santos católicos. A

grande quantidade de objetos velhos guardados gerou o questionamento sobre o

momento em que as virtudes teriam virado vícios, observando que o excesso de

respeito à matéria por parte de meu pai se tornou apego; e me fez lembrar uma

música que foi muito tocada no ano em que retornei, na qual se enaltece a

capacidade de ‘beber, cair e levantar’26, uma música que promove (o que deveria

ser) um vício à condição de virtude.

Figuras 34 e 35 - Relicários sobre vícios.

Madeira, papelão, tampinhas de cervejas, recortes e resina. 2012. Fonte: Coleção Particular.

É um colecionismo artístico contemporâneo, que se inspira no que Didi-

Huberman aponta do trabalho de colecionismo de livros e imagens de Aby Warburg,

que se nega a seguir uma lógica pré estabelecida e despretensioso de formular

conclusões; que se utiliza de linguagens artísticas como Appropriation Art, que

envolve a utilização de objetos e imagens existentes, com pouca ou nenhuma

alteração feita sobre eles, para a criação de um objeto artístico; e do conceito

participativo proposto pelo movimento Fluxus, que pretendia eliminar a distância

26 Beber, Cair E Levantar; Autor: Marcelo Marrone , Bruno Caliman , Thiago Basso; Álbum: Beber Cair E Levantar, Volume 3; Estilo: Música Brasileira ,Gravadora: Mansão CDs; 2008

64

entre as categorias de arte se utilizando de caixas contendo objetos encontrados em

variados tipos de comércio, que eram nomeadas e etiquetadas, e que se assemelha

ao colecionismo de imagens do historiador de arte alemão, que a meu ver buscava

entender a necessidade das diferenças por meio da observação de objetos que

possuíam elementos semelhantes e diferentes ao mesmo tempo, fazendo

associações imagéticas de coisas diferentes sem limitá-las com explicações escritas.

O Atlas Mnemosine de Aby Warburg (Georges Didi-huberman no livro A Imagem

Sobrevivente - História da Arte e Tempo dos Fantasmas Segundo Aby Warburg, Ed.

Contraponto; 2013) constitui-se em uma coleção de imagens com pouco ou nenhum

texto, e foi construído juntamente com uma biblioteca voltada às ‘ciências da cultura’,

que anulava divisões disciplinares, sendo que o princípio da disposição de seus

livros buscava problematizar a história ocidental fundado na teoria da memória social

ou coletiva. Ao expor imagens de danças indígenas ao lado de deuses gregos,

Warburg encara a história da arte como uma memória errática que regressa

constantemente como sintomas, observando a ‘polaridade’ das imagens, que, em

contacto com uma nova época, passam a ter o seu sentido completamente invertido.

Penso as coleções de Relicários de Santos Vivos como um museu vivo, resultante

da tentativa de associar a unificação proposta pela figura dos museus para formação

de comunidades ao conceito dos não-lugares27 de Marc Auge. Esse autor aponta

como características dos lugares antropológicos serem identitários, relacionais e

históricos, e dos não-lugares serem espaços que, por não se integrarem aos lugares

antigos, se tornam lugares de memória que muitas vezes só põem o indivíduo em

contato com outra imagem de si mesmo, destacando também que a anulação é

dada não pela pasteurização, mas pelo excesso antropológico.

A minha proposta inicial para os Relicários em Caixas de Fósforo foi de uma

produção excessiva, feita com uma grande variedade de objetos descartados e sem

preocupação com o acabamento das obras. Com a eventual preocupação com a

formalização da apresentação do conjunto, o acabamento acabou se tornando

necessário, e novos trabalhos artísticos surgiram; do aprimoramento dos relicários

surgiram esculturas que chamei de Moedas de troca; e da necessidade de criar um

27 AUGÉ; Marc. Não Lugares. 2012

65

modo de expor uma obra fragmentada surgiu a série de esculturas: Totens de Luz.

(figs.36,37 e 38).

Figuras 36,37 e 38 – Mariana Scarambone. Primeiras versões dos Totens de Luz.

Caixas moveis feitas com madeira, resina, objetos variados e luz, tamanhos variados. 2013.

Fonte: Coleção Particular.

66

3.2.1 Descontextualizando e desconectando através do pensamento do censo, do

mapa e do museu

Penso que a decorrente perda dos vínculos religiosos das novas nações sofreu

influência não apenas do fato de comunidades ditas primitivas terem suas histórias

destruídas, artefatos descontextualizados e ritos criminalizados, mas também do fato

de que houve guerras declaradas “santas”, ou seja, guerras legitimadas por

instituições religiosas que deveriam combatê-las, ou minimamente tentar regular

procedimentos de forma que questões de alteridade fossem respeitadas; e que tal

procedimento de quebra de alteridade, por parte das instituições que deveriam

promovê-la, possibilitou ao Estado a possibilidade de negar às novas comunidades

criadas o direito à religiosidade, confundindo laicidade com laicismo de acordo com

sua conveniência.

Se pensarmos religião como um sentimento baseado no entendimento do

sagrado e dos seus interditos, que entenda a necessidade do respeito à alteridade,

seria inevitável assumir que ela promoveria uma relação forte e saudável nas

comunidades, dificultando a manipulação e escravização das mesmas. A utilização

de vínculos sociais sem bases em conceitos de alteridade permite a criação de

grupos intolerantes e facilmente manipuláveis. Para o historiador de arte Jacob

Buckhardt28, desacreditar e desestimular as buscas espirituais se torna uma

necessidade para os Estados, que passam a propagar a aversão à ideia de religião

enquanto promotora de um sentimento de aceitação das diferenças, associados a

mecanismos de conexão sociais diferentes, tais como ideia de Nação, associações,

padrões de consumo e ainda aproveitando-se da corrupção de instituições religiosas

que invertem o propósito da aceitação da diferença para a exterminação da mesma;

que visando o benefício do poder e contrariando os pensamentos que as originaram,

apoiaram e justificaram guerras. Também Agamben aponta a secularização como a

busca de um constante Estado de Exceção: “a secularização política de conceitos

teológicos (a transferência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a

28 BURCKHARDT. O Estado como obra de arte. São Paulo: Ed. Penguin; Companhia das Letras, 2012.

67

transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena deixando, porém, intacto seu

poder”29. Benedict Anderson30 denunciou a comunidade como algo inventado após a

colonização, não apenas pela necessidade de demarcar nas comunidades

conquistadas a ideia de nação, mas visando a um melhor controle das massas, e

como forma de amenizar as perdas da guerra: o vazio deixado pelas mortes.

Anderson aponta como instrumentos usados para construção das comunidades três

elementos coloniais: o censo, o mapa e o museu.

Associo a pesquisa Arte como Religião, juntamente ao produto das

performances realizadas na instalação Canonizador Portátil AcSeita Coletivo, a um

censo, porém diferente do censo apontado por Anderson, que tinha por finalidade

nomear e definir as comunidades pela divisão, indicando como se houvesse apenas

uma posição/lugar para cada indivíduo, não aprofundando questões da comunidade,

negando-lhes o mergulho das características culturais e forçando a perda das

relações de afinidade, de religiões, hábitos, vestimentas, etc; um censo cuja forma

possibilitasse pensarmos a santidade pelo seu reverso, observando falhas e

defeitos, buscando informações nas diferentes possibilidades de leituras de cada

visualidade; em parte como consequência dos relicários, seria um censo que

catalogaria tanto virtudes como vícios.

O segundo elemento colonial, o mapa, apontado por Anderson como uma

irrealidade identitária que não completa da mesma forma que as imagens a

sensação de vazio, promoveu, naquela época, uma busca de colecionamento de

sensações locais e disseminação de diários de artistas que buscavam, por meio de

relatos de viagens e projeções, completar essa identificação registrando o devir,

refazendo essas viagens abstratas.

No ensaio textual Santos AcSeita Coletivo31, associo esses mapas gerados

pelo Canonizador AcSeita Coletivo a Ecossistemas Estéticos32, pois consistem em

agrupamento de imagens coletadas a partir da performance Sede de Santos

realizada junto aos diferentes públicos a que foi apresentada a instalação

29 AGAMBEN, 2007, p.68. 30 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. 2008. 31 JAYANETTI, M. S. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 22., 2013, Belém. SANTOS AcSEITA COLETIVO. 32 Ecossistemas estéticos foi o tema do vigésimo segundo encontro da ANPAP

68

Canonizador AcSeita Coletivo. Essa forma de mapeamento por imagens foi pensada

para ser associada aos relicários e moedas de troca juntamente com os trabalhos

desenvolvidos pelos ‘Santos Vivos’ para futuramente ser desenvolvida em tese.

Também associo esse procedimento de agregar novos elementos às imagens dos

Santos ao que Marc Auge33 propõe como o artista enquanto antropólogo, que

observa o típico e sua relação com o típico e, ao observar a superfície, aponta as

contradições, mesmo não criando definições; aquele para quem as raízes não

existem, existem apenas fantasias de lugares, sendo sua definição de não-lugar a

do terreno baldio, mas também a do trânsito, da acessibilidade e da experiência.

Acredito que o foco da investigação artística do trabalho Relicários de Santos

Vivos parodia o processo de museificação do mundo e reclama sua função de

templo, também dialogando com o último aspecto colonial apontado por Benedict

Anderson, o ‘museu arqueológico’ justamente por ser o avesso do pensamento

inicial, pois são originados não de objetos ‘separados’, ou de uso exclusivo como

eram os instrumentos religiosos, mas de dejetos que, ao serem resgatados, se

tornam artefatos religiosos. Anderson aponta que o museu arqueológico foi criado

com artefatos retirados da colônia como instrumento na construção das identidades

nacionais, sendo extremamente enriquecedor para os colonizadores, pois os

artefatos religiosos que eram retirados de suas sociedades consideradas primitivas e

levados para os museus das colônias tinham seu uso proibido, perdendo seu valor

de uso ao serem transformados em fetiche de posse enquanto mercadoria rara.

3.2.2 A vocação dos relicários em recontextualizar objetos de consumo

Para Hal Foster, foi a partir da exposição “Les Magiciens de la terre”34 que o

critério para se designar uma obra como artística deixou de ser meramente técnico e

formal. Por ter justificado a forma por sua não-racionalidade, observando a razão de

ser dos objetos, as obras passam a ser vistas pelo seu caráter mágico, no sentido de

cultural, o que gerou um discurso quanto à atitude dos museus e seus processos

classificatórios impostos. A observação de Nicolas Bourriaud, por sua vez, ressalta

33 AUGÉ, Marc. Lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. 2012. 34 FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. 1996.

69

que a exposição chegou a alimentar certa confusão entre as figuras do artista, do

padre e do artesão, uma vez que o desenvolvimento da cultura urbana força uma

hibridação cultural, que dissolve singularidades reais sob a máscara de uma

ideologia multiculturalista, máquina de apagar as origens de elementos típicos e

autênticos que ela enxerta no tronco da tecnosfera ocidental. Ele convoca os

artistas, em qualquer latitude, para a tarefa de considerar o que seria a primeira

cultura, alertando que para que essa cultura emergente possa brotar das diferenças

e singularidades, em vez de se alinhar à padronização vigente, ela terá de

desenvolver um imaginário específico e recorrer a uma lógica que não aquela que

preside a globalização capitalista.

3.2.3 Obra enquanto dispositivo gerado pela fisicalidade de objetos-testemunhas.

Em meu trabalho artístico existe uma recorrência em trabalhar com materiais

alternativos; o velho, o objeto-que-deveria-ser-jogado-fora, sempre me causou

fascínio, não apenas por conta de meu pai ter sido monge e ter o estranho hábito de

doar tudo de novo que recebia, guardando para si somente o necessário. Comecei

na faculdade com a busca de uma nova materialidade para o suporte da impressão

gráfica: imprimia em plásticos, panos, revistas velhas, para depois montá-los como

quebra-cabeças; com o passar dos anos optei pelo papel de arroz, cuja

transparência permitia que imagens impressas nos lados opostos do papel

dialogassem, e passei a utilizar várias camadas de papéis impressas em ambos os

lados, sobrepostas (sempre abusando das cores), e utilizar fontes de luz para que as

imagens se confundissem e gerassem imagens abstratas. O trabalho passava a

carregar a ideia escondida dentro das cores; eventualmente, devido à facilidade do

manuseio, comecei a criar estruturas (esculturas de papel arroz) que dialogavam

com as imagens que imprimia nos papéis: caixas de correios em papier maché feitos

com impressões de cartas, caixas de música com impressões de fitas cassete, etc.

A tentativa de perpetuar a vida dos objetos afetivos que seriam descartáveis,

transformando-os em relíquias, já havia aparecido em um trabalho meu anterior, o

Light Box (Fig.39; Londres, 2000), no qual, para guardar as correspondências

trocadas com amigos nos primeiros anos em que cheguei a Londres, transformei as

cartas e fotos em estêncil, utilizando-as como ‘máscaras de cor’, e serigrafando-as

70

excessivamente em tecidos de algodão semi-transparente; com o tecido impresso

em ambos lados, montei em uma caixa-de-luz artesanalmente entalhada, a Light

Box, que foi exposta na Galeria de Arte de Willesden Green, na exposição ‘Pau-

Brasil’ e depois foi exposta juntamente com outros vários pequenos objetos

luminosos produzidos com as matrizes e as sobras das impressões(Fig.s. 42 e 43),

que geraram a instalação ‘Light Mail’ (Fig. 44), apresentada na exposição Translatino

Highway, na 291 Gallery, em Hackney, Londres.

71

Figuras 39, 40 e 41 – Mariana Scarambone. Light Box; Performance anônima; Willesden Green Art Center.

Caixa de madeira, tecido serigrafado e instalação de luz. 60 x 160 X 25cm. Willesden Green

Art Center, Londres, 2000. Fonte: Coleção Particular.

72

Figuras 42 e 43 - Mariana Scarambone. Light Mail.

8 Estruturas de Papier Maché com impressões, colagens e instalação de luz. Tamanho aprox. 30 x 40 x 20cm cada. Fonte: Coleção Particular.

Figura 44 - Instalação ‘Light Mail’. ‘Translatino Highway’, 291 Gallery, Londres, 2001.

Estruturas de Papier Maché com impressões, colagens e instalação de luz. Fonte: Coleção particular.

Em 2001, para a exposição ‘Rio-Trajetórias’, montei um barraco com um ateliê de

serigrafia, dentro da Galeria Funarte, produzi uma oficina e enchi de materiais

73

recicláveis (garrafas, latas, caixas) telas de serigrafia com desenhos-instruções, e

durante o periodo de exposição produzi um trabalho que consistia em ‘cocoons’

feitos em papel de arroz que continha séries de impressões serigráficas com

desenhos instrutivos para a criação de instrumentos musicais feitos a partir de

materiais descartáveis; os materiais descartáveis eram fechados dentro desses

‘cocoons’, o que demandava, para a utilização dos instrumentos, a destruição das

imagens.

Figura 45 – Mariana Scarambone. Oficina de criação de Casulos e Objetos Tocantes. Galeria Funarte

Catálogo Rio-Trajetórias, Funarte, RJ, 2001. Fonte: Coleção Particular

Figura 46 – Mariana Scarambone. Performance com Casulos de Objetos Tocantes.Parque das Ruinas.

Performance Sonora com Objetos Tocantes. Fonte: Coleção Particular.

74

Figura 47 – Mariana Scarambone. Detalhe de um Casulo de Objeto tocante

Serigrafias sobre papel de arroz, montadas sob luminárias. 2001. Fonte: Coleção Particular.

Penso que essa tentativa de perpetuar memórias através de reprodução de

imagens de correspondências, que gerou objetos artísticos luminosos que se

apresentavam em forma de instalação, possui essa linha de pensamento que deseja

perpetuar memórias, que me remeteu à instalação artística ‘Superfície limite: entre

arte e arquitetura’ (fig.48), de Malu Fatorelli, feita com folhas A4 impressas com o

rascunho geradas no processo de escrita do doutorado da artista, e que foi

apresentado no MAC em 2004; e que busca problematizar ‘a separação entre a

palavra (conceito, narração) e a percepção (experiência puramente ótica)’ na

destruição do material bruto, como um processo de ‘transferência de afetos por

contato’.

75

Figura 48 - Malu Fatorelli. Superfície limite: entre arte e arquitetura; MAC; 2004.

Fonte: Disponível em <http://evaklabin.blogspot.com.br/2010/08/plataforma-de-pesquisa-malu-fatoreli.html> Acesso em: ago. 2013.

Para Bourriaud, se antes a arte era julgada por uma série de fatores – pela

técnica, pela categoria (pintura, desenho, gravura, instalação, etc.), pela manufatura

ou pelo virtuosismo – isso precisou ser modificado quando o artista se tornou uma

espécie de gesto e de projeto, um deflagrador de conceitos e situações; mais que

um mero construtor de obras de arte, ele é quem vai colocar novamente em questão

os juízos de valores. Quando o que entra em questão é o Juízo de valor35, não

importa mais se a pintura é boa ou ruim; para a pós-modernidade o que importa é se

o trabalho exerce suas funções e condições críticas. Para um trabalho poder

apresentar questões dentro da pintura ele não precisa necessariamente ser uma boa

pintura; tanto se pode fazer parte do mercado criando um superproduto ou por meio

de um trabalho desmaterializado, constituído por uma ação, atitude ou gesto. A arte

cresce com essa nova possibilidade institucional, que permite observar a razão de

ser do objeto de arte em elementos outros que sua forma ou estilo, e passamos a

observar a questão da materialidade escolhida, que faz referência a processos que

agregam ou segregam indivíduos. A arte, por mais vanguardista ou permissiva que

35 Nicolas Bourriaud, 2011

76

seja, demanda uma formatização para participar do circuito comercial (e até mesmo

do circuito cultural).

Se para construir os relicários que buscam perpetuar memórias restituo o uso

a objetos que seriam descartados do circuito comercial, de maneira similar

funcionam as instalações ‘Cordel cultural’ (fig 49) e ‘Mapa das Artes’ (figs.50 e 51)

de Gian Shimada, ao se apropriar de ‘descartes’ do circuito cultural – catálogos e

mapas de arte – para perpetuar suas xilogravuras, imprimindo-as neles; o catálogo

que antes seria apenas um registro temporal se torna atemporal ao tornar-se

também suporte de uma obra, passando a possuir uma memória modificada. No

trabalho ‘Mapa das Artes’, que referencia o ‘Projeto Coca-Cola’ e ‘Inserções em

Circuitos Ideológicos’ de Cildo Meireles, Gian Shimada faz uso duplamente de

suportes transgressores: utiliza-se das folhas do Mapa das Artes, com suas gravuras

impressas, para colar nos muros da cidade. Como aponta a professora e doutora em

artes Malu Fatorelli no catálogo da exposição, “nesse trabalho, o suporte recusa um

lugar de invisibilidade para assumir outros planos conceituais evocados pelo mapa e

pela cidade [...] também ironiza o desejo de pertencimento a um circuito ao

permanecer colado do lado de fora nos muros urbanos". A Arte de Shimada não tem

uma razão de ser apenas estética (baseada na visualidade), mas também política:

na escolha da utilização de material impresso de galerias, nas escolhas dos

catálogos; religiosamente transgressora, revelando sistemas exclusivistas do circuito

cultural.

77

Figura 49 – Gian Shimada .Cordel Cultural; Detalhe da impressão sobre catálogos.

Instalação com xilogravuras impressas em catálogos. Detalhe de Cordel Cultural

Fonte: Disponível em: <http://paginadacaza.blogspot.com.br/>. Acesso em: ago. 2013.

78

Figuras 50 e 51 - Gian Shimada. Mapa das arte. Intervenção urbana; e Exposição Mapa das Artes.

Intervenção urbana com colagem de xilo sobre catálogos impressos; e Exposição Mapa das Artes. RJ. 2013. Fonte: Disponível em: <http://portalseteartes.blogspot.com.br/2011/10/perfil-gian-shimada.html> Acesso em: ago. 2013.

3.3 O Canonizador AcSeita Coletivo como tentativa de resgatar um diálogo

A instalação Canonizador AcSeita Coletivo é um dispositivo que pretende

investigar – dentro de um conceito poético sobre religião – o que é ser religioso, a

partir da investigação de mecanismos de separação: a sacralização e a profanação.

É inspirada no mandamento que se apresenta na Bíblia em momentos distintos,

demandando santidade aos judeus e cristãos: “Santos sereis, porque eu, o Senhor,

sou santo” (em Levítico 19:2 e 1 Pedro 1:16). Se penso a religião pelo viés da

separação, da dualidade do sagrado e do profano, do real e do imaginário, do

79

permitido e do restringido, com a instalação Canonizador AcSeita Coletivo

associando monges budistas, santos cristãos e católicos, o questionamento se

direciona para a questão da santidade como mandamento a quem busca a

religiosidade, questionando também a canonização como reconhecimento da

santidade como uma sacralização da busca religiosa.

80

Figuras 52 e 53 Canonizador AcSeita Coletivo; e Halo em detalhe. Exposição Pelas vias da Duvida; CCHO; 2012

Madeira, tecidos, plásticos, cadeira e instalação de luz, aproximadamente 2 x 3 x 1m.. Fonte: Coleção Particular.

81

A instalação Canonizador AcSeita Coletivo é composta de toalhas amarelas

herdadas de meu pai, protetores de mesa doados pela minha irmã, a estrutura de

isopor redonda que segura as luzes – que protegia a máquina de lavar, o primeiro

item comprado para facilitar minha nova vida em AS – lâmpadas, madeira e cordas.

O halo do canonizador já passou por algumas mudanças: as luzes que piscavam, a

semi-escuridão e o silêncio foram experimentados por poucos. A impressão de

precariedade da instalação, dependendo do contexto onde é apresentada, acaba

atraindo as pessoas que possivelmente não se aproximariam, já tendo sido instalada

em espreguiçadeiras, cadeiras, biombos, janelas e muros. É um trabalho que, ao

ocupar um espaço, pretende transformá-lo em ‘lugar’, criar afetos, gerar uma

experiência atemporal. A ambição do Canonizador AcSeita Coletivo é gerar

experiências interiores, questionamentos sobre a importância da religião e os

motivos pelos quais, hoje, falar nesse tema causa tanta aversão.

Bourriaud nos fala do conceito flutuante (ou radicante), cuja leitura convoca

vários elementos que flutuam em torno da forma, mas que só se completam quando

acontece a participação. Ao instaurar um imaginário de flutuação e de fluidez, a

proposta faz tudo gravitar em torno do trabalho que só se completa com o gesto

conquistado pelo artista; só quando o artista conquista a interação do espectador é

que ele consegue passar seu conteúdo/significado. Se não houver participação, o

trabalho é apenas forma, não tem raiz, não se pode buscar um sentido formal prévio.

Apesar de trabalhar com significados preestabelecidos, a releitura necessita de uma

série de predicados em forma de ações participativas, que produzam novos

significantes. A Resignificação da separação pedida para a santidade, e a própria

ideia de santidade é questionada.

Penso a Instalação Canonizador AcSeita Coletivo como flutuante (ou

radicante), pois a significação é dada pelo espectador ao assumir a coautoria; tanto

o questionamento da santidade quanto o sentido de ser santo ou apenas estar santo

não se completa sozinho; apesar de trabalhar com significados pré-estabelecidos, a

releitura necessita de uma série de predicados em forma de ações participativas:

não apenas o participar, mas o questionar é o que produz novos significantes, é

necessário que o espectador entre no jogo, que ceda sua imagem, que pose, que

brinque, se confesse, tome do meu ‘vinho’ e coma das minhas balas (outro recurso

utilizado como pagamento pela pose como santo). O Canonizador é investido de um

82

poder subjetivo de resgatar consciências; a descontextualização que propõe entra

pela crítica aos processos institucionalizados, questionando autoridades e

consequentemente problematizando quais são os deveres dos fiéis. Se não houver

participação, o trabalho fica apenas na forma vazia onde atua a lógica da ausência,

a existência de um lugar vazio mítico, passa a encarnar aquilo do que fomos

separados, a importância do objeto perdido logo após a primeira experiência de

satisfação.

O halo do Canonizador já passou por três versões. Nas primeiras duas

versões, as luzes piscavam; na primeira, a luz ora se apagava, ora estava “meio-

acesa”, atingindo apenas 1/3 das vezes seu potencial, o que gerava certa dificuldade

em atingir uma imagem de santo ‘brilhante’ e foi motivo para várias pessoas tirarem

muitas fotos até conseguirem atingir o ‘total estado de santidade’. Isso me fez

lembrar que no processo de canonização da igreja católica, quando uma causa é

iniciada, o candidato recebe um título Servo de Deus e passa por três processos, o

primeiro definido pela conferência de virtudes ou pelo martírio, no qual ele se torna

Venerável; no segundo processo, o da beatificação, é necessário comprovar um

milagre ocorrido (no caso dos mártires, não é necessária a comprovação de

milagre); sendo o terceiro e último processo a execução de mais um milagre para a

canonização, após a beatificação. Comprovado esse milagre, o beato é canonizado

e o novo santo passa a ser cultuado na igreja católica. Na segunda versão, o dobro

das luzes que piscam foi instalado, fazendo com que o halo sempre produzisse

alguma luz, e, na versão atual, tem instalado no halo uma lâmpada circular bem

mais forte, que permite uma canonização fora do biombo originário.

83

Figuras 54, 55 e 56 - AcSeita Coletivo. Canonização da Santa estilista e figurinista Marcela Mara

Três estágios de iluminação da primeira versão do Canonizador. Evento ManiKuss, RJ, 2012 Fonte: Coleção Particular.

Até o presente, houve sete eventos de Canonização, e o halo luminoso passou

por três transformações; a primeira versão, com dois estágios de luz e um momento

apagado (fig. Os três estágios de luz do primeiro halo do Canonizador), foi

apresentado no IX Festival de Apartamento de Campinas; no evento de arte e moda

ManiKuss e no Espaço Cultural Casa 24; mas em sua quarta apresentação, no

Centro Cultural Hélio Oiticica, ganhou o dobro de luzes para não haver mais o

momento em que ficava todo apagado e facilitar a obtenção de fotos; e

posteriormente uma luz circular mais forte e uma alça para facilitar o manuseio,

sendo apresentado sem as toalhas amarelas nos dois eventos em Belém: ANPAP e

Espaço Cultural Café8bar. (Ver Anexos F e G)

84

3.3.1 A Performance ‘Sede de Santos’ como geradora de ecossistemas estéticos

Para a pesquisa do mestrado, acreditei que deveria tentar registrar as pessoas

experimentando a sensação de estar em um ‘lugar para santos’, tentar registrar a

experiência para perpetuá-la, utilizando-me do registro fotográfico como um

resquício atemporal, que remete a um tempo outro, contínuo.

Durante o processo de registrar as apresentações da instalação, observei que

algumas pessoas se indispunham a se deixar registrar como santas, afirmando não

admirar santos, ou que simplesmente não estavam interessadas em assumir uma

postura de separação dos valores mundanos. Digo isso, pois a maioria dessas

pessoas que não queriam posar para mim, tirava uma foto – para si – como “santa”.

Senti então a necessidade de criar uma “performance” para vencer essa resistência

das pessoas em ceder sua imagem para ser associada à ideia de santidade, criar

algo que fosse igualmente sagrado e profano. O fato de ter trabalhado na Inglaterra

recrutando barmans para trabalhar em grandes eventos, e de ao sair desses eventos

constantemente me deparar com inúmeros bêbados caídos pelos cantos, e inspirada

então na libação greco-romana e no hábito de despejar o “primeiro gole pro santo”,

desenvolvi a “performance” Sede de Santos, na qual, tento vários métodos

persuasivos, sendo que após falhar na argumentação teórica proponho “moedas de

troca” diferentes como forma de persuadir as pessoas a posarem como santas;

inicialmente oferecendo em troca da permissão do registro da imagem-enquanto-

santo, a ser publicada em uma rede social da internet, drinques diferentes. A

performance Sede de Santos, em si não é registrada, pois é um ato disfarçado na

corriqueira ação de registrar um trabalho; é na verdade a ação da tentativa de

registrar o ‘publico/expectador’ dentro das diferentes instalações do Canonizador

AcSeita Coletivo; a performance em si é a argumentação usada no processo de

convencimento, e que não fica necessariamente registrada. Os argumentos

persuasivos foram em alguns dos casos apenas teóricos, como por exemplo, com as

pessoas que realmente acreditaram na proposição Arte como Religião; ou um

convencimento ‘persuasivo’, onde há o oferecimento de diferentes recompensas em

troca do ‘registro da canonização’, como por exemplo em alguns eventos, os

registros fotográficos foram trocados por drinques, doses de cachaça, ou

85

simplesmente com o riso que tal oferta causava nas pessoas (muitas aceitavam

posar após rirem muito da inversão de valores denunciada pela oferta do ‘gole do

santo’), sobre que a canonização que eu apontava estavaria em momentos como

aquele, em que o expectador está ali, sob o halo, separado de valores mundanos,

percebendo a excelência da matéria que o cerca, mesmo ela sendo considerada

lixo.

O que chamo de performance Sede de Santos é uma ação de convencimento

que consiste em pedir às pessoas que se deixem registrar como santas e tornar

essa imagem pública, e que normalmente se dá na vernissage e no fechamento de

exposições; associo tal ato de caça à imagens de santos vivos a uma busca por

sacrifícios humanos; a ação performática em si não é registrada, sendo apenas o

momento de convencimento do outro que fica registrado. As pessoas que posam

como santas são avisadas que as imagens dos participantes no interior da

instalação artística Canonizador AcSeita Coletivo, são disponibilizadas para o

acesso publico de qualquer pessoa que acessar o site do perfil AcSeita Coletivo na

rede social “Facebook”36. O Desejo é que a imagem vista á posteriori cause uma

sensação semelhante a da percepção que se prolonga em ação apontada por Jose

Gil37, que observou que quando assistimos a um espetáculo de dança, sentimos

nosso corpo também em movimento, mesmo que estando parado; e que aponte

também um processo de coisificação humana, pois ‘quando somos fotografados

viramos também uma ‘coisa’, um outro, desapropriado de nós mesmos’38. O

sacrifício é, no sentido etimológico da palavra, a produção de coisas sagradas.

Penso ser uma performance profana pois mesmo proclamando seguir um

mandamento de Deus (“Sede Santos”), não convoco os espectadores a se

separarem dos valores mundanos, mas a assumirem uma posição para serem

canonizados, e terem suas imagens expostas em uma rede social (Facebook). O

fetiche não permanece na obra, vai-se com a imagem que ocupou o espaço,

temporariamente, transformando a instalação em lugar.

Tal como os objetos criados com oratórios, armários, gamelas e ex-votos

descartados que (inicialmente) o artista mineiro Farnese de Andrade recolhia em

36 Endereço eletrônico: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo>. 37 GIL, José. Movimento total. 2004. p.328. 38 BARTHES,1984, p 29

86

praias e aterros; mesclado com a ideia da obra de Arthur Bispo do Rosário, um

paciente psiquiátrico que durante os 50 anos que passou internado produziu mais de

mil obras se utilizando do material que havia disponível, para tentar contar uma

história visualmente à Deus, quando morresse; o Canonizador AcSeita Coletivo

busca novamente trazer com o uso de lixo a atenção para a questão do consumo e

do descarte, fetichista por gerar um objeto mágico feito a posteriori, a foto como

registro de uma busca de santidade.

Figuras 57, 58 e 59 - AcSeita Coletivo. Santa Aline Oliveira e Santa Ana Rosa tomando o primeiro gole enquanto Santas.

Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3>. Acesso em: nov. 2012.

A ideia de explorar o conceito de santidade a posteriori, convocando esse

corpo que seria mero expectador a assumir uma postura, tomando uma posição para

que sua imagem possa gerar questionamentos, foi também motivada pela

87

Neurocientista Maria Cristina Ferraz, cuja investigação sobre memória e

esquecimento passa pelas mudanças ocorridas com a percepção e seus efeitos

sobre as novas formas de subjetivação, e que aponta o processo de modernização

ligado a uma percepção atrelada a um corpo cinético, que torna nossa subjetividade

cada vez menos vinculada aos meandros da interioridade e mais ligada à imagem do

corpo – sendo as subjetividades modernas fruto dessa ‘tendência crescente a um

declínio da interioridade, vinculada a um processo progressivo de somatização e

externalização do “eu”, tanto nas práticas quanto nos saberes contemporâneos’.39

Procuro pensar o corpo cinético não para negar o corpo psicanalítico – que

separa corpo/mente em corpo biológico e corpo representado/ erógeno, mas para

tentar achar pontes que liguem essas duas vertentes da representação corporal.

Embora a instalação busque proporcionar questionamentos por meio da experiência

interior, esse processo depende de vários fatores. Denunciando a manipulação

cognitiva dos dispositivos eletrônicos contemporâneos ao usar o álcool como moeda

de desejo/troca, denuncio a troca de valores resultante da desespiritualização

contemporânea dos corpos viciados em phamarkons. A imagem do espectador

enquanto santo é barganhada com cachaça, o oferecimento do vicio (um drink) para

obtenção da imagem de virtude é a fala irônica para denunciar troca de valores.

39 FERRAZ, Maria C.F. Homo Deletabilis, 2004, p.322.

88

4 O INEVITÁVEL APOCALIPSE DA ALUCINAÇÃO TEÓRICA

Ao investigar o sentido de religião a partir da ideia de separação, observei que

o pensamento ocidental é fruto da crença em uma realidade dual, paradoxal, que

pensa nascimento e morte, bem e mal, sagrado e profano. Sendo que o pensamento

sobre a dualidade no pensamento oriental seguindo por vezes pela via oposta, da

unicidade, da não-divisão; representada no Taoismo através da consciência dos

opostos como unidade. Se por um lado o ‘cristianismo’ prega o desapego ao corpo

através da negação à busca do prazer; o budismo também aponta a necessidade do

não-apego às sensações, através da não-aversão à dor e não-apego à prazeres

sensuais. A necessidade de escolha surge há muito tempo, através da constatação

da impossibilidade de uma compreensão simultânea de pensamentos opostos. O

desenvolvimento tecnológico possibilita um acesso maior à diferenças, o que tem

demonstrado uma importância cada vez maior em resgatar raízes que foram

subjulgadas e quase extintas. O fator tempo funciona como agente transformador,

um gerador de processos, que se torna uma realidade à parte, uma realidade não

apreensível, pois é a ‘passagem’ de uma realidade a outra, não se configurando

como uma ‘terceira realidade’, mas uma ‘realidade outra’.

Os relicários enquanto objetos artísticos questionam o sentido de uso e posse

que damos aos objetos que fabricamos e sua relação com a ‘natureza’ que

destruímos para isso, e juntamente com a instalação Canonizador AcSeita Coletivo

chamam a atenção para a questão da santidade como mandamento, e de sua

produtificação ocorrida por processos oikonomicos que, por vezes, acabaram

confundindo ao invés de exemplificar. Acredito que a dimensão religiosa dos

Relicários (artísticos) consiste em apontar que as memórias (consciência) que os

objetos nos trazem, ainda mais do que as palavras, são variáveis e impermanentes;

provocando o observador a identificar características cuja vasta possibilidade de

interpretação gera ressignificações; questionando se o uso que fazemos das coisas

poderia ser diferente; revalidando as escolhas erradas praticadas durante as buscas

religiosas (a busca pelo que é real, opaco), relembrando que fazem parte do

processo e não invalidam a busca.

89

A dimensão religiosa da instalação Canonizador AcSeita Coletivo estaria

diretamente relacionada à demanda de participação do espectador, fazendo com

que a experiência interior seja uma condição da existência do trabalho, mesmo que

ela só se dê a posteriori (você só se torna realmente santo quando entende o

significado da ação, indiferente de ter sido registrado em fotografia).

E a transgressiva proposta da performance Sede de Santos, ao seguir pelo

viés do corpo cinético buscando com o registro fotográfico da ação garantir a

possibilidade das experiências interiores a posteriori, registrando um corpo que tanto

pode querer lembrar quanto esquecer sua memória de ‘santidade’, apontou uma

nova pesquisa possível ao conceito poético Arte como Religião: a de associar

artistas a profetas e outros seres religiosos, observando, nas releituras de símbolos

e signos, ressignificações de mitos e ritos.

Afirma poeticamente a religiosidade desses artistas, nossos novos

contemporâneos, politizados, conscientes, radicais, etc., que apontam as mudanças

necessárias, por vezes expondo os ‘reis nus’, por vezes se sacrificando, por vezes

clamando como loucos por novas revelações para suas sociedades.

4.1 A catalogação de santos vivos, com seus vícios e virtudes

Minha concepção poética Arte como Religião propõe um olhar para a arte

como um dispositivo de intensificação capaz de tornar o ser humano um sujeito

melhor, ocupando este lugar que deveria ser o da religião, o de promover harmonia

e respeito entre grupos diferentes. Da investigação da santidade por intermédio do

viés do artista etnógrafo que investiga essas vidas separadas transformando os

objetos usados pelos Santos Vivos em relicários, surgiu a ideia de desenvolver um

trabalho de catalogação de artistas canonizados. A possibilidade de catalogar certos

artistas como novos profetas é apontar momentos em que a arte revela,

inevitavelmente trazendo à luz o que está escondido.

“A diferenciação entre bairros ricos e pobres levou à expansão da periferia da cidade, assim como a separação entre a residência e o local de trabalho tornou necessária a criação de uma rede de transportes capaz de garantir a circulação regular entre uma zona da cidade e outra. E é neste momento que Baudelaire nos mostra o flâneur, o vagabundo errante, sobrepõe o ócio ao “lazer”, é aquele que se contrapõe à vida como um modo de produção serial, a esquizofrenizante divisão do espaço moderno, desafiando a divisão do trabalho. Ele não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Ele caminha no meio da

90

multidão e o efeito narcotizante que esta exerce sobre o flâneur, é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão." (D”ANGELO. In. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin)

A sacralidade destituída pela racionalização se torna uma das causas do

eterno retorno. São o impensável e o inefável que precisam ser ditos; é a

transgressão prescrita pelo interdito. A palavra profeta tem raízes diferentes, no

hebraico profeta significa pacto, profeta, vidente. A palavra hebraica que refere-se

ao profeta o indica como porta-voz, aquele que prevê, um arauto. A palavra grega

prophetes, da qual se deriva a palavra profeta em português, significa “aquele que

expõe, fala sobre certo assunto em lugar de outrem”. O que chamarei de “profeta”,

no texto, seria o que Giorgio Agamben chamou de contemporâneo. Aquele que vê e

proclama a obscuridade de seu tempo.

O silêncio, o ruído, o som, a voz, a fala. O hieróglifo egípcio representado pela

boca designa o poder criador e, enquanto isso, a boca nos remete à consciência

integral. A antropologia do som aproxima a fala do corpo. O som, por ser impalpável

e invisível, atribui propriedades do espírito à voz, o que a torna “o elo comunicante

do mundo material com o espiritual e invisível”40. Daí o uso mágico do som em

diversas culturas. Os griôs são contadores de histórias que recuperam a potência

vocal da humanidade, com a missão de manter a história através da voz viva da

comunicação oral, colocando em causa o próprio corpo. Dentro da perspectiva do

registro dessa voz, o ato de ler possui uma reiterabilidade própria, pois apesar da

improbabilidade de que “lendo em seu quarto, você se ponha a dançar”41, temos

hoje a consciência de que, mesmo parado, o corpo “dança”, já que “a dança é o

resultado normal da audição poética”. Quanto à oralidade, pode-se aplicar a noção

de performance à percepção plena de um texto literário, puramente visual, que muda

de acordo com o funcionamento da voz poética. Constatação empírica de que a

performance é o único modo vivo de comunicação poética e o que, na performance

oral pura, é realidade experimentada, na leitura é da ordem do desejo. Nos dois

casos constata-se uma forte implicação do corpo.

40 WISNIK. 1999. 41 ZUMTHOR. 2007.

91

4.2 Corpo e voz no espaço, a performance do artista-profeta como a vida num

grau a mais

Observando que uma imagem é também sonora e até muscular, a doutora em

comunicação e semiótica Christine Greiner define imagem como “um padrão mental

com uma estrutura construída com sinais provenientes de cada uma das

modalidades sensoriais”42. Dentro deste mesmo pensamento do corpo como um

processador de laços comunicativos, a neurocientista Maria Cristina Franco Ferraz

aponta que os modelos constituídos da ciência, ao subtrair o corpo da sensibilidade

e da experiência – devido à nova percepção da captação das imagens pelo olho,

que permite enxergar o homem como extensão do mundo e vice-versa – gerou um

novo regime de atenção permeada por variadas formas de desatenção, que

produzem uma crescente fragmentação da percepção do mundo e uma

subjetividade moderna porosa e flutuante. Essa modernização da percepção tem

gerado novas formas de ‘industrialização da contemplação’43, similares a estados

relativos de hipnose e sonambulismo.

“A imagem passa a ser efeito e produto de um corpo vivo, humano, com seu modo de funcionamento específico e facilmente afetável. Pós-imagens e cores fisiológicas [...] podem ser produzidas por socos em um olho ou pela ingestão de substâncias alucinógenas.” (FERRAZ, 2004, P. 321)

Essa indeterminação da percepção atenta teria resultado em variados

dispositivos de intensificação, apostando na instabilidade para reinventar a

experiência perceptiva e renovar as práticas representacionais e gerando uma

subjetividade mais ligada à imagem do corpo em vez da interioridade. Como propõe

o sociólogo Zygmunt Bauman44 surgem então os colecionadores de sensações

instantâneas, para quem o caminho para a felicidade passa obrigatoriamente pela

necessidade de satisfações imediatas, agravando a procura pelas sensações

causadas pelas drogas, pelo prazer do sexo, pela endorfina liberado pelo exercício

físico e pelas compras. Uma resposta a um perigo que a atual estrutura social

42GREINER, Christine. O Corpo. Pistas para estudos interdisciplinares. 2006. p. 71. 43 FERRAZ, Maria C. F. 2004. p. 319. 44 BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

92

parece ignorar, a falta da verdadeira religiosidade – plena de alteridades –, fazendo

com que ter passe a ser mais importante do que ser.

Essa perspectiva de uma tendência crescente a um declínio da interioridade,

vinculada a um processo progressivo de somatização e externalização do eu, tanto

nas práticas quanto nos saberes contemporâneos, supõem um corpo superexcitado

que se contrapõe ao corpo intensivo de Deleuze, que o filosofo português José Gil

busca articular para tornar inseparáveis o corpo e o movimento. A noção de

movimento total quanto à ideia de movimento nascente remete diretamente ao

pensamento de que a percepção se prolonga em ação, uma consciência do corpo,

que por ser vivo, permanece em movimento, mesmo que infinitesimal.

“Para que a consciência do corpo emerja, é necessário descentrar a consciência (...) como consciência do corpo e corpo de consciência – irá corresponder, em Gil, uma noção de inconsciente remetida às forças e energias intensivas do corpo, vinculadas ao estatuto paradoxal dessa superfície dotada de profundidade que é a pele (...) Gil assinala de que modo a pele não é uma película superficial, mas “prolonga-se indefinidamente no interior do corpo”. (GIL, José. Movimento total. 2004, p. 328)

O historiador e filólogo Paul Zumthor45 percebe na elocução crítica a

percepção sensorial do corpo como organismo vivo a partir do efeito das

transmissões orais da poesia. Pensando a voz como emanação do corpo, que

sonoramente o representa de forma plena, percebe na memória do cantor de rua a

realização da vivência do espetáculo, por meio da combinação das frases,

versificação, melodia e mímica do intérprete. No nível em que o discurso é vivido, ele

nega a existência da forma que, com efeito, só existe na performance, pois a

performance é sempre constitutiva da forma. A performance rege simultaneamente o

tempo, o lugar, a finalidade da transmissão e a resposta do público, engendrando o

contexto real e determinando o alcance da mensagem.

Muitas culturas no mundo codificaram os aspectos não verbais da

performance e a promoveram como fonte de eficácia textual, cuja competência

passa a ser o saber ser. Um saber que implica e comanda uma presença e uma

conduta; e reconhecem que a performance modifica o conhecimento, não

simplesmente comunicando, mas deixando marcado quem a assiste. Um exemplo

45 ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naif, 2007

93

dessa força de performance é o da ‘menina pastora’, citada por Gilberto Icle46, que

assume uma dimensão pulsional ligada a sua voz. Um discurso que possui algo da

ordem da pulsão invocante, cuja fala possui algo do grito que remete à dimensão

real da voz, um apelo imperativo que se dirige ao Outro; e faz com que a referência

aproximada à palavra, beirando a sedução, se torne conteúdo associado ao saber

prometido, a uma transmissão simbólica. A palavra falada da ‘menina pastora’ tem

força cênica performática; a ‘palavra’ em si perde sua importância devido ao

comportamento espetacular criado por sua performance, que se baseia numa

imanência da pré-expressividade.

4.3 Corpos-suporte

O corpo para o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett é abjeto; para

os místicos, uma experiência sublime que excede a linguagem e a razão; para o

poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês Antonin Artaud

é subjétil; e para o filósofo fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty esse

quiasma, que faz a carne e o pensamento se voltarem sobre si próprios. Merleau-

Ponty e Artaud pensam a arte como um fenômeno que restitui, pois possibilita uma

forma de se aproximar desse vazio paradoxal, assim como de sua fonte e de seu

lugar de enunciação, e cujas imagens e palavras passam a adquirir uma densidade

corporal.

Merleau-Ponty deseja misturar o estatuto da arte com ciência, enquanto

Artaud quer trazer o estatuto da vida para a arte, a experiência como o que há de

mais profundo, o corpo que fala e cuja fala é inarticulável, a resistência da língua, à

procura de algo que a palavra não consegue articular e o corpo é forçado a recordar.

Merleau-Ponty critica a ciência que deixa de ser ‘religiosa’ à medida que se torna

autônoma, parando de observar a natureza e passando a observar estatutos criados

e reproduzidos numa “contínua manipulação das coisas sem as habitar”47, cujos

modos operativos destituem o homem de sua natural vocação de perceber a

46 ICLE, Gilberto. In: Repertório: teatro & dança - Salvador: UFBA/ PPGAC, 2009. 47 MERLEAU-PONTY. O olho e o espírito. 2007.p.13

94

imanência das coisas através da memória corpórea, e reclama a necessidade de

despertar a consciência do corpo para compreender o homem como extensão do

mundo e vice-versa. Merleau-Ponty pensa o corpo do artista como um instrumento

religioso de decodificação do mundo, dando existência visível ao que a visão

profana crê invisível e praticando uma teoria mágica da visão: a pergunta se faz no

artista. Aponta também a necessidade da busca de outros sentidos que a visão,

tornando a arte metafísica, ressaltando a necessidade de se voltar ao ponto em que

as coisas ainda estão em estado bruto, pois isso nos faz ver na ausência do objeto

verdadeiro como se vê o objeto verdadeiro na vida por meio da imbricação e da

latência.

O artista-profeta Artaud indica novas possibilidades de subjetividade, o

aspecto religioso e místico do ato performático e, consequentemente, provoca o

esvaziamento de outras subjetividades, ensinando que a vida se faz vivendo e que

as palavras não são as coisas que representam. Com o Teatro de Bali, físico e não

verbal, aprende que a necessidade de sentir deve ser maior do que a necessidade

de compreender. Sua ideia de acabar com as “obras primas” é permitir a vida se

reformular. Critica a mera admiração literária como atividade espiritual neutra, que

nada faz e nada produz, pregando a crueldade como o direito de romper com o

sentido usual da linguagem, crueldade como rigor, aplicação e decisão absoluta.

A arte de Artaud busca expressar a visceralidade da peste por meio de um

corpo que luta para não ser alienado, uma arte que quer se fazer visível também

pelas sensações. Denunciando um mundo que se desvirtua cada dia mais,

invertendo vícios em virtudes, Artaud denuncia o uso repugnante e sórdido de

instituições como dispositivos usados para desacreditar artistas-profetas, citando

Gerard de Nerval e Van Gogh (entre outros) como loucos48, pois faziam parte

daqueles que se atreviam a questionar os sistemas, apontando os erros e

conformismos das instituições. Fala do impulso de rebelião reivindicatório que está

na origem do gênio reprimido pela força das instituições, cujo atavismo que faz com

que se enxergue em cada artista, em todo gênio a sua frente, um inimigo; que

necessitam calar toda forma de denúncia ou novidade. Percebo essa mesma

48 ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida, 2008.

95

energia de visceralidade da peste nas apresentações da “Solange, tô Aberta!”, que

vem desde 2006 desestabilizando corpos e fronteiras.

Figuras 60 – Canonização de Solange tô Aberta!; e 61 - Detalhe da instalação Santa Trindade.

STA! sendo canonizada na Casa 24; Caixa de luz com impressão em duratrans 45x32X20; 2012. Fonte: Coleção particular.

O projeto funk-carioca-queer “Solange, tô aberta!“ foi criado em 2006 pelos

artistas Pedro Costa (uma carioca suburbana, como Sara Panamby49 insiste em

registrar) e Paulo Belzebitchy em Salvador (BA), como homenagem às travestis e

um grito pelas sexualidades não-heteronormativas. Atualmente o projeto é realizado

apenas por Pedro Costa e/ou artistas convidados. Suas músicas falam sobre a

ditadura heteronormativa em relação às identidades binárias de gênero, ou seja,

homem e mulher, mas também contestam, desconstroem e expõem situações,

costumes, comportamentos e discursos adotados por diferentes segmentos da

sociedade, sempre com boas doses de irreverência e humor.

49 SILVA, Sara Panamby Rosa da. O Corpo-Limite. Rio de Janeiro, 2013. 210 p. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

96

“Tem muito gay que vai pra sauna ou boate, passa a vassoura, chupa todo mundo, transa até com o vaso sanitário e vem dizer que a gente fala muita baixaria, que estamos queimando o filme da comunidade ou coisas do tipo… Fazer pode, mas falar não. Por isso que a gente vai lá e fala…(Entrevista com Solange tô Aberta! In: <http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2008/01/14/entrevista-solange-to-aberta/>)

Tive a oportunidade divina de canonizar “Solange, tô Aberta!”, personagem de

Pedro Costa50, no espaço cultural Casa 24, para compor a Tríptico Santa Trindade

juntamente com Filipe Espindola e Mme. Escarnificina (Sara Panamby), antes da

‘primeira morte’ de “Solange, tô Aberta!” no show de encerramento do IV Seminário

de Pesquisadores do PPGArtes-Uerj: Vômito e Não. Práticas Antropoêmicas na Arte

e na Cultura51, realizado no cabaré Kalesa com abertura de Anarco Funk52,

fechamento de Paulo Belzebitchy e inúmeras participações especiais (inclusive de

Santos AcSeita Coletivo). Acredito serem santos não apenas por sua religiosa

capacidade erótica, mas ao observar que o ser humano nasce sexualizado – que

todo mundo, em algum momento, sente desejo de fazer sexo, não importa idade,

classe ou credo – sendo as instituições os dispositivos normatizadores usados para

controlar/dominar o sexo/prazer, controlando assim os desejos individuais. Ressalto

que a importância de resgatarmos o conceito de religião (e suas diferentes práticas –

inclusive as artísticas) é por ter sido inicialmente o fenômeno responsável por

instaurar respeito às alteridades dentro de suas comunidades, até apontando

posturas ou opções como erradas, sim, porém tentando promover respeito por quem

queria ou precisava ser diferente. O livre arbítrio enquanto decisão divina torna

religioso quem exige respeito a todos, sendo sua capacidade religiosa a de amar as

diferenças.

50 Pedro Costa, atualmente residente em Berlim (DE) desenvolve o projeto A Revolução é Meu Pau Mole, que prevê a criação de uma trilogia de filmes pornoterroristas sobre o alquebramento do falocentrismo. 51 Evento realizado em outubro de 2013 na UERJ. Presidente da Comissão: Prof. Luiz Cláudio da Costa. 52 Grupo artístico multimídia funk-rock carioca, que cria e divulga musicas com questionamentos ácidos sobre os mecanismos da máquina societal. https://www.facebook.com/anarco.funk?fref=ts

97

4.3.1 O Corpo-dispositivo e o trabalho de Ron Athey, Filipe Espindola e Sara

Panamby: do sacrificial ao sagrado

Muitas vezes, o sacrifício humano substitui o sacrifício animal, sem dúvida na medida em que o homem, afastando-se do animal, a morte deste, em parte, perdeu seu valor angustiante. (BATTAILLE, 2013. p.111)

O iconoclasmo e a iconofilia, a imagem como interdito que revela a violência, o

vício da busca de significações e representações. A palavra que é calada, a imagem

que é coberta, mas que constantemente retorna. As performances extremas de Ron

Athey, Filipe Espindola e Sara Panamby se utilizam do corpo como objeto sacrificial,

um corpo em devir que nos convoca à experimentação, ao desafio e ao risco. Tal

como uma entidade, se torna objeto de culto e zelo. A escatologia do ser religioso ao

revelar, expor o divino que existe no mundo e o mundano no divino. A busca de

‘profanar o improfanável’.

A noção transgressiva da escatologia de Georges Bataille estabelece uma

relação de correspondência entre os processos orgânicos e/ou fisiológicos e os

fenômenos obscuros da vida social, a parte maldita ou excesso, a parte que deve

ser desperdiçada por bem ou por mal, (citada no livro "A Noção de despesa" de

Bataille) Observa-se que toda comunidade humana num dado momento sente a

necessidade de viver esse excesso, que geralmente se organiza em rituais festivos,

sendo a parte maldita um pensamento subversivo que ressignifica os fenômenos

desprovidos de utilidade, tais como a violência, a festa, o jogo, o sexo sem finalidade

de reprodução. Durante os anos 30, no plano pictórico, Bataille e os surrealistas

fragmentaram os corpos humanos de tal modo que a imagem do acéfalo foi

considerada a síntese de uma época. Deu-se um movimento por meio do qual o

corpo em pedaços, que no século XIX fora pintado para os atlas anatômicos, entrou

definitivamente para o universo pictórico da arte, embora até então se houvesse

mantido incólume à fragmentação que lhe fora imposta pela ciência anatômica. A

questão do excesso de imagens que por meio da aceleração e da desconexão

produz imunização sensorial: no mundo cada vez mais insensibilizado, não só os

vícios como o excesso de imagens anestesiam, insensibilizando ao estimular ao

extremo as sensações – um cansaço que nunca chega ao esgotamento – o novo

homem-robô que necessita de altas doses de prazeres intensos.

98

O corpo enquanto categoria filosófica: corpo-objeto, corpo-suporte, numa

percepção da arte não como mercadoria – suscetível ao mercado – mas voltada

para sua vocação ontológica, da apresentação de um mundo (des)estruturado. O

corpo que luta para não ser alienado deixa de ser mero sujeito, tornando-se

dispositivo ao se expor como suporte, desconstruindo os modelos que buscavam

subtraí-lo da sensibilidade da experiência. O corpo que se expõe é mutilado ao

tentar se tornar verbo; a exposição de corpos mutilados e martirizados se prolifera

após a II Guerra Mundial – “o ritual máximo de violência”53. Se a ciência se deparava

com a necessidade de limites aos excessos da experimentação com seres humanos,

a arte se deparava com a necessidade de transpor os limites no uso do corpo que

haviam sido traçados pela arte clássica e pela moral. Ele é retirado do lugar

normatizado das sociedades com engrenagens sofisticadas para ser exposto em

uma dimensão de sacralidade, como um interdito-que-precisa-retornar. A relação do

corpo dentro da experiência artística como elemento religioso, uma ferramenta para

a corporificação de pensamentos; a experiência sensorial que ressurge durante o

ritual e visa a despertar pensamentos que perturbam, mas precisam ser

relembrados. A visibilidade da violência do sacrifício que busca resgatar essas as

imagens internas do corpo, reduzindo assim a violência externa.

53 SELIGMANN-SILVA, 2003

99

Figuras 62 e 63 - Ron Athey - St. Sebastien/50

Ron Athey e Filipe Espindola na performance St. Sebastien/50. Fonte: Festival Entre Lugares, RJ, 2012

Em tempos em que a cultura celebra o “oco” e o vazio incapaz de restaurar o

vínculo do homem criador com seus espaços naturais, destaco a especificidade do

artista-profeta ao retratar o novo ethos da sociedade burguesa. Ron Athey apresenta

a performance St. Sebastian desde 1990, como parte de sua série sobre mártires e

santos. Tive a oportunidade de presenciar a performance que se deu no Espaço

Cultural Sergio Porto no dia 23 de junho de 2012, com a presença do percussionista

Rafael Rocha e do body-piercer Santo Filipe Espindola. Em conversa, Ron contou

100

como as imagens de St. Sebastian da obra de Yukio Mishima e de Derek Jarman

provocaram nele uma forte sensação erótica e como isso o influenciou a criar sua

performance, em que ele atinge um estado de transcendência que o tem feito repeti-

la por mais de 20 anos, numa busca de atingir um maior discernimento sobre

questões como a liberdade sexual e a expressão pessoal. Ao som de percussão,

nos é mostrado um “corpo sexual”, que sofre perfurações de flechas e é alçado. A

percussão para e o corpo entra em convulsão. Ouve-se a voz, não é uma fala

inteligível, são ruídos, semigritos. A performance de Ron também provoca

inquietação a respeito da questão da segurança do corpo: o pharmakós sacrificial ou

um pharmakon que tanto pode mascarar, curar ou matar. A questão da arte abjeta

em oposição à ciência estéril, e asséptica.

Em pauta a questão da dor como forma de transcendência – a observação

religiosa de que as sensações corporais do prazer e da dor são as mesmas. O

arremedo de castração, em que o falo é distorcido, apagado ou ignorado. A

interpretação dos atos sexuais das apresentações é ampliada para além do que é

prazeroso ou “sexy”.

“Os experimentos artísticos, diferentemente dos científicos, não problematizaram a vida com base na lógica biopolítica de compensação entre riscos e benefícios à população. Assim, usar o termo experimento para referir trabalhos artísticos pode soar estranho; serve-nos, entretanto, para assinalar dois aspectos: 1) o caráter de tentativa sem conhecimento prévio dos resultados das ações; 2) as consequentes transformações na matéria. Segundo Pelbart (2003) são “experimentos sem verdade”, ou seja, que não procuram comprovar ou negar hipóteses, nem chegar a fatos. A arte não busca o mesmo valor de verdade que a ciência; não está submetida ao mesmo regime de produção de verdade que tem na objetividade um de seus principais parâmetros.” (GALINDO, 2009)

Na tentativa da construção desse sentido religioso nas manifestações

artísticas, as dimensões indissociáveis das corporeidades precisam ser

consideradas para possibilitar um novo tipo de recepção cognitiva – é necessário

insubordinar os sentidos na percepção das sensações, buscar a outra consciência

que o estímulo sensorial provoca. O que é extremamente complexo, porque o

indivíduo, ao se conscientizar de uma sensação, o fará de acordo com seus

patrimônios cognitivo, volitivo, afetivo e instintivo.

“Ron Athey subvertia a lógica do rechaço incorporando material humano e ao mesmo tempo mostrando a força de nova intolerância, através da questão sobre o potencial risco à saúde do público, amplificada pelo

101

medo do contato com o fluido corporal de uma “pessoa poluente”. Nas incisões e aplicação de implantes, em vez de vítimas, os adeptos são protagonistas, pois controlam as condições de realização do trabalho sobre seus corpos. Os artistas e adeptos das modificações corporais se submetem a dor controlada.” (GALINDO, 2009)

De tempos em tempos a questão dos mitos demanda ser revista e

reformulada, surgindo questionamentos como quem são as novas Medusas, cujo

amor extremado produz morte; ou os novos Marqueses de Sade, que, utilizando-se

da arte como anteparo, tornam visível o impensável, dando voz à violência extrema

ao retratar a total falta de alteridade da busca extrema e contínua do prazer; em um

prenúncio-denúncia de um total individualismo e da inconsciência de ser parte de

algo que vem se espalhando na sociedade atual.

Alerto para a santidade do artista quando este percebe e se utiliza do corpo

como um campo pleno de potências e detonador de processos culturais, sociais,

estéticos e éticos. Capazes de recriar rituais, retratando os mitos corporificados

através do próprio corpo, e ressignificando tradições dos antepassados que trazem

proteção divina; sendo o corpo, por vezes, também transformado em totem. Os

rituais de passagem tratam de compreensões de mundo que são criadas a partir da

percepção da fisicalidade das coisas pela experiência de sua corporeidade em

relação a tudo que o toca. Isolamento, frio, fome, às vezes extremos, eram utilizados

nesse sentido; não era o rito de passagem simplesmente como transição de um

período para outro da vida, mas também como de um estado de consciência para

outro. Das tantas performances com forte aspecto religioso de Sara Panamby e

Filipe Espindola que tive oportunidade de conhecer (algumas tive a honra de

presenciar, outras apenas conheci em palestras), escolhi o ritual performático

Compassos do Ocaso54, realizado na Virada Cultural de São Paulo em 2011 para

citar como exemplo de uma linda ressignificação de ritual de passagem que possui

um caráter mágico da cura por meio de um processo de libertação.

54 Disponível em: <http://vimeo.com/23509939>.

102

Figuras 64 - Sara Panamby e Filipe Espindola. Compassos do Ocaso; e 65 - Defesa de mestrado de Sara,

RJ/2013

Virada Cultural, SP/2011. Disponível em http://piercer-snoopy.blogspot.com.br/2011/03/piercer-snoopy-

frrrkcon-virada-cultural.html > Acesso em agosto 2013; Casa 24; RJ/2013. Fonte: Coleção Particular.

O ritual performático Compassos do Ocaso é uma homenagem póstuma, uma

celebração da morte e da vida que sobra que foi desenvolvido em homenagem à

avó (e ‘mãe’) da artista Sara Panamby, dona Rita Maria da Silva, falecida na

madrugada do dia 1º para o dia 2 de janeiro de 2011. Foi inspirado no Kuarup, um

grande ritual das tribos xinguanas, uma homenagem dos guerreiros aos seus mortos

ilustres, que se inicia no seu preparo, o ritual inteiro possui diversas possibilidades

103

de interpretações e leituras, desde a escolha dos elementos, da preparação, onde

toda historia e verbalmente relembrada, num pessoal resgate cultural. A totemização

da morte dos grandes avós guerreiros – Rita, Palmyra e José Rosa –, por meio do

sacrifício simbólico e verdadeiro da suspensão corporal como uma homenagem

àqueles que os ‘carregaram nas costas’, tem seu apogeu na performance ritualística

Compassos do Ocaso, com a suspensão corporal de Sara Panamby e Filipe

Espindola. O ritual, na realidade, começou na sua preparação, cuja concepção teve

início em janeiro de 2011, passando por uma imersão artística e espiritual feita com

a família e parceiros de performance, para a preparação do espírito, do corpo e dos

objetos artísticos/ritualísticos que seriam usados, na semana prévia à performance

pública, e só terminando quase uma semana depois, após uma gira de caboclo

realizada no dia seguinte à apresentação e do ritual de fechamento de corpo da

Sexta-Feira Santa. No domingo, dia da performance pública, os participantes

começaram de manhã cedo auxiliando na preparação do Kavadi, executado pelo

artista Alexandre Peco (Campinas/SP), um belíssimo ritual indiano de devoção ao

deus Murugan, em que o devoto caminha com dezenas de lanças apoiadas no

corpo, formando uma grande estrutura de flores, frutas e guizos, e de uma mesa de

discussão sobre body art e body modification com Cláudia Machado (RJ) e T. Angel

(SP). A performance pública Compassos do Ocaso ocorreu no Lgo. do Paissandu

(SP) e contou com a participação de Renata Borges, Michelle Mattiuzzi e Petronio

Tales, vestido como orixá Obaluaiê no momento da suspensão fazendo colagens

sonoras de pontos de umbanda, e Alecto Maracatu.

Filipe Espindola, Pedro Costa e Sara Panamby são artistas que cujo

entendimento espiritual sobre o desapego do próprio corpo, que os permitem se

utilizar dos seus corpos como suporte, fato que considero o mais próximo da

consciência do personificador que gerou o catolicismo. Isso foi o que me inspirou a

convidá-los a serem canonizados para compor uma Santa Trindade para o AcSeita

Coletivo.

104

Figura 66 – Tríptico Santa Trindade AcSeita Coletivo.

Caixas de luz com impressões sobre duratrans. 2012. Fonte: Coleção particular.

4.3.2 O Coletivo como um corpo social

O resultado estético da performance Sede de Santos me inspirou a tentar

mapear os artistas canonizados, porém, devido à proporção que tomaria, não

caberia em uma dissertação de mestrado. Colocar toda e qualquer pessoa como

santo do AcSeita Coletivo é uma forma transgressora de mapeamento, que vai aos

extremos; enquanto um dos argumentos de convencimento para a canonização é a

consciência da dualidade espírito-matéria, o outro é um apelo a ceder ao prazer: a

oferta de um entorpecente em forma de bebida. Quanto mais santos, melhor! O

objeto do qual eles se separam passa a não importar mais. A tentativa de capturar a

imagem dos outros como santos é ao mesmo tempo uma paródia e uma tentativa de

mapear o que virá a ser essa nova religiosidade prenunciada por Vilém Flusser, pois

apesar do dispositivo desejar produzir subjetividades, a performance procura

produzir imagens que gerem questionamentos a posteriori em quem não for

inicialmente afetado pelo dispositivo.

105

Figura 67 – David Medalla. London Biennale. 2000

Fotografia Digital; Londres, 2000. Fonte: Coleção Particular.

As imagens geradas com a performance Sede de Santos têm produzido um

sistema de mapeamento artístico, mapas de pessoas em lugares, agrupadas dentro

de diferentes contextos, tais como eventos de moda, eventos de arte, exibição de

pós-graduandos em artes visuais e festivais. Isso me recordou outros movimentos

artísticos de que tive a oportunidade de participar, como a proposta artística London

Biennale, do artista David Medalla (fig. 67), e o projeto Humanaes, da artista carioca

Angélica Dass. A London Biennale de David Medalla, foi iniciada em agosto de

2000, com a proposta de ser uma bienal de artes aberta a toda pessoa que quiser

participar, independente da formação profissional, e contou com a participação de

artistas de variadas partes do mundo. Possuindo o formato de um evento “faça-você-

mesmo”, as únicas exigências para a formalização da participação consiste em

enviar uma foto de si mesmo – ou fotomontagem – segurando uma ‘flecha’ apontada

para a estátua de Eros da Praça da Picadilly Circus, no centro de Londres, e do

registro do trabalho sendo exposto, em qualquer tipo de local, com qualquer tipo de

106

mídia, durante o mês do evento. O mapa de artistas e eventos da London Biennale

contém tanto grandes nomes da arte contemporânea quanto de artistas de rua, e

são publicados em blogs, gerando um mapeamento democrático e ‘polinizações’55

da ação em diferentes países. Tal como no evento artístico London Biennale, onde

todos que fazem arte e expõem são considerados membros, na performance Sede

de Santos, todos que cedem suas imagens são considerados santos, fazendo do

Canonizador AcSeita Coletivo uma analogia à estátua de Eros da Picadilly, por ser

um elemento que agrega.

55 Tal como o ‘Rio Trajetórias’ no Rio Janeiro em 2000, ‘Changing Channels’ em Berlin em 2001, e outros em Nova Iorque, Roma e Cremona.

107

Figuras 68 e 69 - Angélica Dass. Humanaes

Angélica Dass e Mariana Scarambone, catalogadas pelo Humanaes. Fonte: Disponível em <http://humanae.tumblr.com> Acesso em: ago. 2013.

O projeto Humanaes é de um inventário cromático, em que Angélica Dass (fig.

68) fotografa e cataloga as pessoas na frente de um fundo branco, selecionando a

cor de cada pessoa por meio de um quadrado no nariz do "modelo", onde busca

108

uma cor correspondente no catalogo Pantone56, aplicando no fundo branco a cor da

pele e deixando o código do catálogo em uma faixa branca abaixo da foto. Inspirado

na variação de cores de sua própria família, Angélica é negra, descendente de

índios, e filha de pai negro adotado por família branca; ela busca a partir do projeto

desenvolver outro olhar sobre questões de identidade social, cultural e racial, que vá

além das fronteiras de códigos preexistentes. Penso que as semelhanças entre o

mapeamento dos Santos Vivos e o mapeamento gerado pelo projeto Humanaes da

artista carioca Angélica Dass não sejam apenas por ambos terem tido origem na

história pessoal, e reunirem pessoas diferentes em fotografias com formas

padronizadas de registro, mas também por reunir imagens de pessoas para gerar

questionamentos a posteriori.

Os artistas profetas seriam aqueles ‘santos’ que, se utilizando da arte, pregam

a necessidade de uma maior harmonia entre as diferentes classes sociais,

questionando e investigando os valores sociais vigentes até mesmo por meio da

transgressão de interditos. A obra dos Artistas-profetas, cuja voz faz vibrar o corpo

que passa a se reconhecer não como outro corpo, mas como parte dessa vibração

poética, é uma “emanação do corpo que sonoramente o representa de forma

plena”57. A audição não é editável, por isso que é nos sons, nos lapsos e nos chistes

que pode ocorrer o processo analítico.

O artista-profeta contemporâneo, tal como uma voz que clama do deserto,

retrata a necessidade de um distanciamento para dizer o que precisa ser dito. O

deserto seria como os não-lugares proposto por Marc Augé, um lugar de

impossibilidade de relações de alteridade: as cidades da sociedade de informação e

consumo; guetos de ilegalidade criados pela falta de poder econômico para se

transitar na legalidade, que são ocupados com pichações e grafites. O silêncio da

violência e a civilidade da palavra58 se contrapõem na contemporaneidade dessas

vozes que são grafadas nos muros para serem percebidas; são as vozes dos

artistas-profetas que pedem mais alteridade e gentileza e também dos que tentam

deixar registradas suas existências na tentativa de fugir do aprisionamento

56 Pantone Inc. é uma empresa conhecida pelo seu sistema de catálogo de cor. 57 ZUNTHOR, Paul. 2007 58 BATAILLE, 1987.

109

mascarado das cidades, fábricas, instituições escolares e clínicas. Nas artérias do

corpo-cidade que quebra laços com a terra, relacionamentos familiares e sociais são

diluídos.

No sentido que proponho com o conceito poético Arte como Religião, a

proposta do Movimento Cidades Invisíveis (ver Anexo I – Movimento Cidades

Invisíveis) da artista e arte educadora Ítala Isis trabalharia gerando artistas-profetas,

ao produzir com sua arte formas de protesto que demandam a participação de

outras pessoas, gerando, além do questionamento do comportamento da sociedade

e de seus governantes, registros de experiências transformadoras.

Tive oportunidade de registrar/participar de algumas das ações poéticas

promovidas pelo Movimento Cidades Invisíveis, observando essa capacidade de

gerar ‘profetas’ por meio de performances. Na performática instalação Oferenda

(figs. 70 e 71), a ação que consistiu na construção de uma Mandala de sal grosso,

arruda e pimenta em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, uma forma de

arte-protesto contra a falta de direito para questionar ou demandar satisfações das

autoridades vigentes, que não prestam conta de verbas públicas e que aumentam

impostos apesar da diminuição da qualidade de serviços prestados, nem por conta

de seu caráter político deixou de ser uma releitura (sincrética) de um ebó59. Para

nós, quem participou foi muito além da satisfação de realizar uma ‘bela obra estética’

de denúncia, sendo o seu caráter religioso, para além das ‘revelações’ implicadas na

ação, transcendente pelo conjunto de significações que se acumularam com as

‘coincidências’ que aconteceram no dia.

59 Ritual de religiões afro que visam limpeza, ou na oferenda à um orixá.

110

Figuras 70 e 71 - Movimento Cidades Invisíveis. Oferenda.

Performance e Intervenção urbana feita com sal, pimenta e arruda. RJ, 2013. Fonte: Disponível em: <https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.457612064314361.1073741827.100001967152537&type=3> Acesso em: ago. 2013.

A instalação Oferenda, feita com elementos de limpeza e proteção, utilizados

por religiões de matrizes africanas – sal grosso, arruda e pimenta – em formato de

mandala, que relembra culturas asíaticas, havia sido marcada para ser realizada

após o almoço do Domingo de Páscoa, o dia da ressurreição na religião cristã – que

é precedido pelo dia da Paixão, que representa o sofrimento, e pelo dia de Aleluia,

que representa a espera – mas atrasou bastante, começando apenas no final da

tarde. Apesar da presença de policiamento no local, a ‘beleza’ do trabalho enquanto

ritual artístico, serviu como ‘estratégia de diminuição de risco’, como reparou a

idealizadora Ítala Isis, nos liberando da interrupção dos guardas municipais que se

encontravam a poucos metros de nós, mas não se incomodaram com nossa ação.

Após o término da construção da mandala, no momento em que registrávamos as

111

últimas fotos, fomos agraciados por um feixe de luz solar refletido de uma janela de

um prédio vizinho que acertou em cheio a obra, uma ‘coincidência’ que quase nos

conduziu a um êxtase coletivo. Após o devido registro fotográfico, ainda

desnorteados pela emoção, decidimos seguir até um centro cultural para sentar e

conversar, porém fomos atravessados pela exposição Lágrimas de São Pedro, do

artista baiano Vinícius S.A, que acontecia no Centro Cultural da Caixa Econômica,

no centro do Rio de Janeiro.

Ainda dentro das ações poéticas promovidas pelo Movimento Cidades

Invisíveis, nas quais observo essa capacidade de gerar ‘profetas’, se encaixa a ação

poética Existimos: um passeio performático realizado dentro da Mostra In Cena

Múltiplos Palcos para o espaço cultural Oi Futuro no Flamengo, cuja ação deseja

questionar a convivência nos grandes centros urbanos, e consistiu na caminhada

interativa de quatro artistas mascarados pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, em

que a interação com o público se dava pela ação de ligar e desligar os aparelhos

gravadores contendo os poemas. As máscaras foram feitas com materiais bizarros,

inusitados, e dialogavam com as pessoas por intermédio de um ou mais poemas

contidos nos gravadores portáteis carregados pelos performers.

112

Figuras 72 e 73 - Existimos. Movimento Cidades Invisiveis.

Performance de intervenção urbana com mascaras e gravadores. RJ, 2013. Fonte: Disponível em < https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.399705610105007.94427.100001967152537&type=3> Acesso em: ago. 2013.

Uma troca de pele que provoca desvios de rota e/ou questionamentos, uma

necessidade de reconhecer algo de estranho. O que é isso? O que quer que a gente

seja... Existimos! Uma máscara de tecido com flores artificiais e apliques de

borboleta foi vestida na artista Cecília Terrana, acompanhada pela gravação de um

poema da própria artista chamado Álbum de revelações. A máscara feita com

verduras, restos de comida e coisas achadas no chão, vestida no artista Wellington

Dias, carregava no gravador os poemas Aquilo que sobra e Propércio e eu, de

Ricardo Chacal. A máscara feita de gaiola de pássaros forrada com plástico

transparente e peixes pescadinha, vestida na artista Meireane Oliveira, dialogava

com o publico pelos poemas A escritura dos peixes e Madrugada, de Sidnei Cruz; e

113

a máscara feita com fita e adesivo de isolamento vestida no artista Emerson

Rodrigues, dos poemas 1, 2 3 e 4, de Marilene Vieira.

Figuras 74 e 75 - Movimento Cidades Invisíveis. Existimos.

Performance de intervenção urbana com mascaras e gravadores. RJ, 2013. Fonte: Disponível em <https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.399705610105007.94427.100001967152537&type=3>. Acesso em: ago. 2013.

A performance de uma caminhada ritualística com a interação interventiva Ah,

se eu fosse uma borboleta! (fig.s 76 e 77) no Rio de Janeiro – performance que já

aconteceu nas cidades do Rio de Janeiro e Goiânia –, além do aspecto profético de

buscar chamar a atenção para a dificuldade de locomoção de cadeirantes nas ruas

das cidades por meio de uma inscrição com estêncil da frase ‘Ah, se eu fosse uma

borboleta!’ nos locais onde a passagem de um cadeirante é extremamente reduzida

devido a má conservação, ou impossível devido ao descaso dos administradores em

relação às pessoas com essas dificuldades, possuiu o aspecto religioso da cura

gerada por uma poética libertadora, um ritual de libertação para as cadeirantes que

participaram e que passavam verdadeiramente no momento da performance por

114

problemas de mobilidade e falta de autonomia, sendo a performance um processo

de receber carinho e atenção, no qual a troca com os outros gera cura emocional.

Figuras 76 e 77- Movimento Cidades Invisíveis.Ah, se eu fosse uma borboleta!

Performance com intervenção urbana. Goiânia, 2013. Fonte: Disponivel em: https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.584127831662783.1073741836.100001967152537&type=3 Acesso em agosto 2013.

115

Figura 78- Movimento Cidades Invisíveis. Ah, se eu fosse uma borboleta!

Performance com intervenção urbana. Rio de janeiro, 2012. Fonte: Disponivel em: <https://www.facebook.com/movimentocidades.invisiveis/media_set?set=a.110947955647442.16732.100001967152537&type=3>. Acesso em: ago. 2013.

4.3.3 O corpo como casa da alma e a casa como prisão para a alma

Devido à velocidade dos meios de transporte, que nos obriga a perceber a

paisagem em movimento, o sensível agora se dá no impacto, originando novos

116

dispositivos e criando novos tipos de subjetivação, como o cinema com sua imagem

em movimento que nos faz percebermo-nos em movimento. O corpo tem uma

função de invólucro, tal como a casca da cigarra abriga um sopro, mas não o

contém: esse sopro esvai, e com ele nossa consciência. O que se passa depois fica

incógnito, o corpo fica como registro que precisamos eliminar ou esconder. A prisão

é a pena privativa de liberdade, o ato da captura, a própria custódia. Na vida, a casa

se torna o abrigo do corpo, o corpo sem casa pena, o corpo que se prende à casa,

transformando-a em mundo em miniatura, se apega a ela. O intelectual, crítico

literário e ativista da causa palestina Edward Said escreveu

"O exílio nos compele, estranhamente, a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal. Entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre. Mas, se o verdadeiro exílio é uma condição de perda terminal, por que foi tão facilmente transformado num tema vigoroso – enriquecedor, inclusive – da cultura moderna? Habituamo-nos a considerar o período moderno em si como espiritualmente destituído e alienado, a era da ansiedade e da ausência de vínculos. Nietzsche nos ensinou a sentir-nos em desacordo com a tradição, e Freud a ver na intimidade doméstica a face polida pintada sobre o ódio parricida e incestuoso. A moderna cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados. Nos Estado Unidos, o pensamento acadêmico, intelectual e estético é o que é hoje graças aos refugiados do fascismo, do comunismo e de outros regimes dados a oprimir e expulsar os dissidentes." (SAID. Orientalismo, 2003)

Para Platão, o corpo é o cárcere da alma, pois enquanto o saber humano

ocorrer por meio dos sentidos ele será sempre opinião, que o filósofo afirma ser um

saber tão falso quanto as sombras projetadas na caverna para os prisioneiros do

Mito da Caverna, ao contrário do saber verdadeiro acessado via o intelecto

verdadeiro e justo, capaz de negar o desejo. Já para Aristóteles, o corpo não é um

obstáculo para a alma; a alma lhe dá forma e movimento, e o que diferencia um

corpo de outro são os seus acidentes (gênero, cor, etc.), que não afetam a sua

essência, a alma.

Platão diferenciou desejo de vontade, vinculando o primeiro ao corpo

enquanto a vontade seria vinculada à alma, ao relatar que Sócrates, em sua decisão

de permanecer preso, concordando com a pena a ele imputada, não pensa em sua

117

comodidade, negando o desejo de permanecer vivo, para conscientemente aceitar a

decisão da pólis, que o condena a morte. O empobrecimento da dimensão da

experiência e os processos de alienação de indivíduos na sociedade moderna nos

remetem a pensar na arte numa perspectiva de fenômeno. O espaço como algo a

construir e que tem sido construído por meio de seus próprios modelos. O corpo

como a casa do espírito torna-se um quiasma religioso. O universo dos mitos num

mundo que é pura exterioridade. A questão do sujeito que se esforça por se

constituir, mas, por ser tão solapado, passa a ser a imagem que constroem dele. O

elemento burguês “casa” é nosso ponto de partida e chegada, no deslocamento pela

cidade. O homem que se torna anônimo, ao perder sua individualidade na dimensão

da metrópole, colecionando elementos (indícios) que apreende em suas andanças,

faz da sua casa uma miniatura de cidade, onde pode novamente se reconhecer

como indivíduo.

Quando perguntado sobre sua saída do mosteiro que construiu, Don

Kulatunga sorria e dizia ter sido muito ruim, mas muito bom! Pois o ajudou a

observar mais de perto o fenômeno da impermanência, observando que nada nos

pertence, nem pessoas, nem lugares. Nunca entendi direito a escolha de Água

Santa como local de moradia, pois na época em que meu pai comprou a casa

poderia ter escolhido outra menor no centro da cidade pelo mesmo valor, porém

preferiu comprá-la de uma discípula. Poderia também ter trocado para um endereço

mais central após meu retorno ao Brasil, fato sobre o qual muito insisti, mas nunca

fui ouvida. Essa teimosia dele em permanecer em AS, juntamente com a vontade de

comparar o subúrbio brasileiro ao subúrbio londrino, foi o que me fez decidir que ali

deveria ser minha residência durante o período do mestrado.

Outra forma possível de desenvolvimento foi observando como o trabalho de

amigos artistas que se deixaram canonizar e dialogavam com minha pesquisa. Na

montagem da exposição Pelas Vias da Dúvida, tive a maravilhosa oportunidade de

conversando com Stéphane Dis sobre essa questão de deslocamento e apego a

lugares, reconhecer um dialogo possível com o trabalho apresentado pela artista

(fig.79 ) na exposição coletiva que participamos no centro cultural Helio oiticica; o

trabalho dela “Sinta-se em casa” (fig.81 e 82 ) dialogava com minha experiência de

deslocamento, de sentimento de casa e pertencimento ocorrida no processo da

minha mudança para viver em isolamento na casa de água santa; fui presenteada

118

pela artista com uma cápsula do seu trabalho Abra em Caso de Emergência, que

estava sendo exposto no mesmo espaço da instalação Canonizador AcSeita

Coletivo, e me comprometi a transformá-la em relicário (fig.80) em homenagem a

sua canonização.

Figura 79 – Canonização de Santa Stéphane Dis; e 80 – AcSeita Coletivo. Relicário ‘Abra em caso de

emergência’

Foto disponível em: <https://www.facebook.com/acseita.coletivo/media_set?set=a.492441357521256.100002661897849&type=3> Objeto -Técnica Mista, 14 x 7 cm; CCHO, RJ, 2012. Fonte: Coleção Particular.

119

O trabalho Abra em caso de emergência, de Stéphane Dis, consistia em um

modelo de garrafa de remédio antigo com cápsulas de remédio contendo a inscrição

Sinta-se em casa, buscando ressaltar a importância da relação do homem com sua

casa e o bem-estar proporcionado por esse espaço, que é o abrigo do homem, seu

primeiro canto no mundo. Conversando com a artista, descobri que o trabalho foi

inspirado no refugo de um tratamento médico, no qual ela necessitava abrir as

cápsulas para usar seu conteúdo, descartando-as depois. Acredito que, ao se

inspirar na observação do desperdício diário das cápsulas que lhe serviam de

pharmacon, dando a elas um novo destino ao criar o trabalho Abra em caso de

emergência, a artista ressignifica a importância do sentimento de abrigo que uma

casa proporciona ao associá-lo a um remédio para a alma, tema que se relaciona

com sua pesquisa de mestrado para UFF.

120

Figuras 81 e 82 – Stéphane Dis. ‘Abra em caso de emergência’.

Objeto/ Técnica Mista; CCHO, RJ, 2012. Fonte: Coleção Particular.

Nestes últimos dois anos morando em Água Santa, cuja distância até o

Flamengo, bairro da zona sul, pode ser percorrida de carro em menos de meia hora,

pude observar que o mesmo percurso usando transportes públicos não se completa

em menos de uma hora e meia, necessitando de pelo menos uma baldeação; e que

embora o sistema de ônibus oficialmente tenha que funcionar nas 24 horas do dia,

121

os veículos são quase inexistentes da meia-noite às seis horas da manhã,

transformando os subúrbios cariocas em dormitórios-senzala, onde quem não possui

veículo próprio fica confinado nas horas em que não está trabalhando – sem contar

que o ‘vale-transporte’ oferecido aos trabalhadores, apesar do transporte ser caro (e

ineficiente), só contempla os trajetos de ida e volta do emprego, negando qualquer

importância à tentativa de locomoção individual e práticas de socialização.

122

CONCLUSÃO

Os trabalhos artísticos que geraram a dissertação de mestrado eram

concentrados na tentativa de entender a santidade dos seres religiosos, e foram

inspirados em teorias de filósofos, teólogos, sociólogos, psicólogos e artistas

populares. A busca da santidade, ou do que deveria ser a busca espiritual, não se

resume a um instante, é ato contínuo, não se resume a uma separação física, mas é

um processo individual, que não pode nem deve ser medido ou comparado. Pensar

a santidade questiona o direito individual á busca espiritual, em suas diferentes

possibilidades socioculturais e políticas.

Os Relicários que contem registro dos vícios e virtudes é uma tentativa de

catalogação de objetos cotidianos, e inspirou a criação da instalação Canonizador

AcSeita Coletivo, que não deixa de ser um relicário e ao ser apresentada gerou a

performance Sede de Santos; a performance que consiste em um envolver a plateia,

foge do lugar encenado para o improviso, um jogo de relações onde a tentativa de

trocas, barganha a adesão a um projeto de santificar através de vícios: as moedas

de trocas usadas eram balas, doses de cachaça ou drinks.

A escolha de falar de artistas vivos e contemporâneos se dá por acreditar que

seja importante para essa pesquisa focar no que está acontecendo no momento, há

muitos artistas no Brasil falando e fazendo arte como religião. Poderia se falarem

variadas categorias para eles: artistas-profetas; artistas que utilizando seu corpo

como suporte se tornam corpos sacrificiais; artistas sacerdotes, etc.

O surgimento de coletivos se dá na agregação de pessoas em torno de uma

mesma ideia, uma arte política e ao mesmo tempo religiosa. A ideia de criar um

coletivo para a pesquisa se deu por acreditar na importância de um resgate ás

buscas religiosas e que isso se dê de uma forma coletiva e livre. Durante o período

que se deu o mestrado, escolhi viver no subúrbio do Rio, em um bairro perto do

Méier, com a intenção de vivenciar várias formas de separação: a separação que

meu pai passou ao sair do mosteiro que construiu; a separação de viver numa

cidade onde o sistema publico é negligente na saúde e no transporte para uma

grande parte da população; a separação de estar totalmente dedicada a estudar e

viver com o mínimo possível de gastos; a separação de não ir a festas e eventos

123

sociais por estar isolada e sem dinheiro. Pude entender a contentação de meu pai

em afirmar que a melhor coisa que aconteceu a ele foi sair do mosteiro, afirmando

que a mudança foi a separação do que ele precisava para praticar o desapego ao

templo.

124

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