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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Medicina Social Nutrindo a Vitalidade Questões contemporâneas sobre a Racionalidade Médica Chinesa e seu desenvolvimento histórico cultural Eduardo Frederico Alexander Amaral de Souza Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva, Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Orientadora: Professora Madel T. Luz Rio de Janeiro Março de 2008

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto …livros01.livrosgratis.com.br/cp104941.pdfMedicina Clássica Chinesa era um corpo de conhecimento interligado aos saberes e práticas

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Instituto de Medicina Social

    Nutrindo a Vitalidade

    Questões contemporâneas sobre a Racionalidade Médica Chinesa e seu

    desenvolvimento histórico cultural

    Eduardo Frederico Alexander Amaral de Souza

    Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva, Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Ciências Humanas e Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Orientadora: Professora Madel T. Luz

    Rio de Janeiro

    Março de 2008

  • Livros Grátis

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  • i

    C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C

    S729 Souza, Eduardo Frederico Alexander Amaral de.

    Nutrindo a vitalidade: questões contemporâneas sobre a racionalidade

    médica chinesa e seu desenvolvimento histórico cultural / Eduardo Frederico

    Alexander Amaral de Souza. – 2008.

    224f.

    Orientadora: Madel T. Luz.

    Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de

    Medicina Social.

    1. Medicina chinesa – Teses. 2. Promoção da saúde – Teses. 3. Taoísmo – Teses. I. Luz,

    Madel Therezinha. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de

    Medicina Social. III. Título.

    CDU

    615.8 _______________________________________________________________________________

  • ii

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Instituto de Medicina Social

    Aluno: Eduardo Frederico Alexander Amaral de Souza

    Título da Tese: Nutrindo a Vitalidade - Questões contemporâneas sobre a

    Racionalidade Médica Chinesa e seu desenvolvimento histórico cultural.

    Aprovada em ________de _________________de ____________, por:

    Orientadora: Profa. Madel T. Luz Instituto de Medicina Social - UERJ

    Profa. Dr. Carlos Alberto Plastino Instituto de Medicina Social - UERJ

    Prof. Dr. Joel Birman Instituto de Medicina Social - UERJ

    Prof. Dr. Charles Dalcanale Tesser Depto. de Saúde Pública - UFSC

    Dennis W. V. Linhares Barsted Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ.

  • iii

    Dedicatória

    Este trabalho é dedicado à humanidade, na esperança que possa ajudar na

    construção de uma sociedade hamônica, e trazer algum benefício nos momentos difíceis.

  • iv

    Agradecimentos

    Aos meus pais Marco Antonio e Beatriz pela primordial oportunidade da vida.

    À minha esposa Erika, pela incansável forca e companheirismo na realização de

    muitos projetos simultâneos.

    À minha filha Sofia, pela concessão de muitas horas de seu 'direito a atenção' para

    que o trabalho pudesse fluir. Que possa usufruir do conhecimento.

    À Professora Madel Luz pelas aulas, orientações, pelo incansável trabalho à frente do

    grupo de pesquisa Racionalidades Médicas, e principalmente, por sua sabedoria e

    capacidade em incentivar a criatividade e a singularidade nos projetos de seus alunos.

    À Professora Livia Kohn pelas aulas, seções de orientação, apoio e desenvolvimento

    conjunto do projeto de estágio doutoral na Universidade de Boston, imprescindível para

    realização da obra.

    À Dennis Linhares Barsted, por seu apoio contínuo durante todo trabalho.

    Ao CNPq e ao IMS pelo apoio financeiro e institucional à pesquisa.

    Aos Professores e companheiros do caminho, que inspiraram este trabalho com seus

    ensinamentos e conversas. Donati Caleri, Juan Carlos Vairo, Carlos Tadeu, Sergio

    Seixas, Lygia Franklin, Gabriel Nieto, Michael Winn, Karin Sorvik, Cai Wen Yu, Heiko

    Roshcke.

    À todos os alunos, especialmente ao grupo de praticantes que inspirou esta pesquisa

    com sua dedicação disciplinada às práticas de saúde, Márcia Ahrends, Paulo Camacho,

    Lula Buarque, Bruno Girardi, Pedro Mazzillo, Mariko Arai.

    À David Capco, Michael Rinaldini, Greg and Rita Lucier, George Henderson, e Caryn

    Boyd, grato as suas idéias inspiradoras e entrevistas concedidas durante o curso

    Daoísmo Intensivo, ministrado pela professora Livia Kohn.

    À Rafael Vasconcellos, Andrea Fuzimoto, Ayse Kulahci, Kunal Nagpal, Danae

    Rigelmann pela essencial hospitalidade durante período de pesquisa de campo em San

    Francisco, California.

    A Karin Sorvik, por sua hospitalidade e auxílio a pesquisa.

    Aos terapeutas entrevistados, por sua disponibilidade e atenção, especialmente à

    Dennis Willmont, Jerry Allan Johnson, Lonny Jarret, Liu Ming e Jeff Nagel.

    À Cristiana Navarro e Clarence Wang pela hospitalidade e auxílio a contatos durante

    as pesquisas na Universidade de Boston.

  • v

    À Karina Nagao, Gabriel Felzenszwalb, Frederico Coelho e Anna Elisa de Castro, por

    sua hospitalidade e auxilio durante a fase de construção do projeto de pesquisa nos

    Estados Unidos.

    Minha sincera gratidão a todos.

  • vi

    Resumo

    Nas últimas quatro décadas a Medicina Chinesa estabeleceu raízes estáveis nos países

    ocidentais. Durante o processo de aculturação, a escola de pensamento denominada Medicina

    Tradicional Chinesa (ZHŌNG GUÓ YĪ, 中 國 醫) alcançou uma posição hegemônica nestes países

    e também na República Popular da China (1949- ). Esta escola foi inicialmente concebida como

    um projeto para reconstrução da Medicina Chinesa dentro do território da China continental após a

    revolução de 1949. Um dos propósitos deste projeto foi construir uma síntese entre a Medicina

    Clássica Chinesa (GǓ DÀI ZHŌNG YĪ 古 代 中 醫) e a ciência ocidental, adequando-se aos

    valores e ideologia da China comunista. Neste processo foram excluídas ou modificadas, por

    razões políticas, ideológicas ou paradigmáticas, concepções fundamentais da Medicina Clássica

    que constituíam um modelo de prevenção e promoção de saúde. Em contrapartida, foram

    enfatizados seus aspectos diretamente relacionados ao paradigma biomédico, essencialmente

    voltados para a cura de doenças.

    Neste trabalho apreendemos e analisamos as concepções, valores e pressupostos que

    estruturam a proposta terapêutica da Medicina Clássica Chinesa, enfatizando os aspectos e

    concepções que constituem um modelo de prevenção e promoção de saúde (YǍNG SHĒNG 養

    生), reintegrando as concepções modificadas ou excluídas dentro de seu contexto original.

    Assumindo que durante seu período de formação na dinastia HÀN 漢 (206 B.C. - 220 A.D.) a

    Medicina Clássica Chinesa era um corpo de conhecimento interligado aos saberes e práticas

    Daoístas, efetuamos a apreensão e análise das concepções inseridas no contexto do modelo

    cosmológico Daoísta que constituiu os fundamentos para o desenvolvimento dos saberes médicos

    nesta época.

    Palavras-Chave: Medicina Chinesa; Promoção de Saúde; Daoísmo; Racionalidades Médicas.

  • vii

    Abstract

    In the last four decades Chinese Medicine settled stable roots on western countries. During the

    acculturation process it seems that one current of its traditions named Traditional Chinese

    Medicine (ZHŌNG GUÓ YĪ, 中 國 醫) attained a hegemonic position in these countries and also in

    China. This current was conceived as a project for reconstructing Chinese Medicine in People’s

    Republic of China (1949 - ). Looking for a synthesis between the Classical Chinese Medicine (GǓ

    DÀI ZHŌNG YĪ 古 代 中 醫) and science, Traditional Chinese Medicine has excluded or modified

    for political, ideological or paradigmatic reasons important notions of Classical Medicine such as

    SHÉN 神, LÍNG 靈 and MÌNG 命, and emphasized its aspects that are more related to biomedical

    paradigm, centered on the notion of curing diseases.

    Our objective in this work is to apprehend and analyze the conceptions and values that

    structures the therapeutic model of Classical Chinese Medicine, granting special attention to the

    aspects that compose the health promotion part of the model (YǍNG SHĒNG 養 生), and re-

    integrating the above mentioned excluded or modified conceptions.

    Assuming that during its formative period in HÀN 漢 dynasty (206 B.C. - 220 A.D.) Classical

    Chinese Medicine was a subject completely interrelated to Daoism, it was essential to analyze the

    main conceptions inside the context of the Daoist cosmological model that constituted the

    foundation to medical knowledge development, constituting a research theme that is absent in the

    hegemonic research agenda of contemporary Chinese Medicine.

    Key Words: Chinese Medicine; Health Promotion; Daoism; Medical Rationality

  • viii

    Sumário Introdução Geral ........................................................................................................................... 11

    I.1. A Saúde no Mundo e as Contribuições da Medicina Chinesa............................................... 11 I.2. Breve História da Medicina Chinesa...................................................................................... 12 I.3. A Medicina Chinesa no Ocidente Contemporâneo................................................................ 19 I.4. O Cenário Atual da Pesquisa em Medicina Chinesa............................................................. 21 I.5. Crítica às Diretrizes de Pesquisa........................................................................................... 26 I.6. Projeto Racionalidades Médicas: O Espaço da Pesquisa no Brasil...................................... 29 I.7. Objeto, Objetivo e sua Abordagem........................................................................................ 32 I.8. Questões Metodológicas de um Estudo Teórico sobre Tema Pouco Explorado .................. 35 I.9. Notas sobre a Grafia das Categorias Chinesas .................................................................... 43 I.10. Estrutura do Texto ............................................................................................................... 47

    Capítulo 1 – A Base Ternária da Medicina Chinesa................................................................... 48 1.1. Saúde, Longevidade, Imortalidade: Evidências de uma Proposta Terapêutica Ampla ........ 49 1.2. A Divisão de Funções entre os “Médicos”: FĀNG SHÌ 方 士, WŪ 巫 e YĪ 醫. ...................... 57 1.3. A Tradição dos Imortais: Vitalidade Ilimitada........................................................................ 60

    Capítulo 2 – O Nível Celeste ........................................................................................................ 69 2.1. Cosmogênese e Cosmologia Daoísta: Saúde, Auto-Conhecimento e Destino.................... 70 2.2. Desenvolvimentos Contemporâneos dos Saberes Clássicos .............................................. 80

    Capítulo 3 – O Nível Humano....................................................................................................... 94 3.1. Prevenir, Guardar e Suplementar: Processos Fundamentais do Nível Humano ................. 95 3.2. A Importância da Relação entre o Homem e a Natureza na Prevenção de Desarmonias. 102 3.3. A Constituição como Fator de Desequilíbrio ...................................................................... 104 3.4. Sobre a Origem da Constituição......................................................................................... 108 3.5. O Cultivo das Virtudes na Terapêutica da Constituição ..................................................... 111

    Capítulo 4: O Nível Terrestre ..................................................................................................... 118 4.1. Os Aspectos Curativos da Medicina Clássica .................................................................... 119 4.2. A Medicina Tradicional Chinesa como Exacerbação do Nível Terrestre............................ 124

    Capítulo 5 – A Terapêutica nos Três Níveis: Acupuntura e Moxabustão.............................. 130 5.1. A Diversidade das Práticas Terapêuticas........................................................................... 131 5.2. A Acupuntura no Nível Terrestre ........................................................................................ 133 5.3. Níveis Humano e Celeste nos Textos Clássicos ................................................................ 137 5.4. Nível Humano nos Autores Contemporâneos .................................................................... 138 5.5. Nível Celeste nos Autores Contemporâneos...................................................................... 144

    Capítulo 6: A Terapêutica nos Três Níveis: Os Fármacos ...................................................... 149 6.1. Os Fármacos no Nível Terrestre ........................................................................................ 152 6.2. Os Fármacos no Nível Humano ......................................................................................... 155 6.3. Os Fármacos no Nível Celeste........................................................................................... 157

  • ix

    Capítulo 7: A Terapêutica nos Três Níveis: As Artes Sexuais................................................ 165 7.1. Sexualidade e Saúde na Medicina Chinesa....................................................................... 166 7.2. As Artes Sexuais no Nível Terrestre................................................................................... 171 7.3. As Artes Sexuais no Nível Humano.................................................................................... 174 7.4. As Artes Sexuais no Nível Celeste ..................................................................................... 177

    Conclusão do Estudo ................................................................................................................. 183 1. Síntese do Modelo................................................................................................................. 183 2. Sobre a Importancia da Dimensão Doutrina Médica ............................................................. 188 3. As Formas de Avaliação Terapêutica da Medicina Clássica................................................. 191

    Considerações Finais................................................................................................................. 194 1. Perspectivas Contemporâneas de Desenvolvimento da Medicina Chinesa: A Via Hegemônica................................................................................................................................................... 194 2. Sugestões para Uma Agenda de Pesquisa em Medicina Chinesa ....................................... 202 3. Perspectivas Contemporâneas de Desenvolvimento da Medicina Chinesa: A Via Contra-Hegemônica............................................................................................................................... 207

    Referências Bibliográficas......................................................................................................... 212 Anexo I – Glossário de Termos Chineses ................................................................................ 220 Anexo II – Lista de Entrevistados e Notas de Pesquisa.......................................................... 223

  • x

    Índice de Tabelas e Figuras

    Tabela 1: As Dinastias Chinesas. ................................................................................................... 12Tabela 2: Classificação das Pesquisas .......................................................................................... 22 Tabela 3: Quadro-Resumo das Racionalidades Médicas............................................................... 30 Tabela 4: As Atribuições dos Espíritos Orgânicos (JĪNG SHÉN 精 神). ......................................... 88 Tabela 5: As Virtudes Associadas aos Espíritos Orgânicos (JĪNG SHÉN 精 神) ........................... 89 Tabela 6: As Virtudes da Fase Metal............................................................................................ 114 Tabela 7: Padrão de Desarmonia - Umidade-Frio Acumulada no Baço-Pancrêas....................... 126 Tabela 8: Comparação entre Medicina Clássica e Contemporânea ............................................ 128 Tabela 9: O Conjunto de Cogumelos Ganoderma (LÍNG ZHĪ 靈 芝) ............................................ 160 Tabela 10: Os Níveis do Orgasmo Feminino................................................................................ 181

    Figura 1: Gráfico dos Níveis de Vitalidade...................................................................................... 68Figura 2: Gráfico das 5 Fases Segundo o Diagrama HÉ TÚ 河 圖. ............................................... 82 Figura 3: Trajetos dos Meridianos dos Rins, Coração, Bexiga e Intestino Delgado. ...................... 91 Figura 4: Diagrama de Circulação do YÍNG QÌ 營 氣...................................................................... 99 Figura 5: Daoista na Prática de Guardar o Um............................................................................. 102 Figura 6: Gráfico das cinco fases em equilíbrio............................................................................ 105 Figura 7: Gráfico das Cinco Fases em Desequilíbrio ................................................................... 106 Figura 8: Um Vaso Alquímico ....................................................................................................... 163 Figura 9: Posição de Cura para o Homem I ................................................................................. 172 Figura 10: Posição de Cura para o Homem II .............................................................................. 172 Figura 11: Posição de Cura para a Mulher I ................................................................................. 173 Figura 12: Posição de Cura para a Mulher II ................................................................................ 173 Figura 13: Concentração de Força Vital nos Rins ........................................................................ 174 Figura14: O Método do Cadeado ................................................................................................. 174 Figura 15: Concentração de Força Vital no Útero. ....................................................................... 175 Figura 16: Gráfico da Expansão do Orgasmo .............................................................................. 176 Figura 17: O Gráfico das Passagens Internas.............................................................................. 179 Figura 18: Posição Preferencial para o Cultivo Dual .................................................................... 180

  • Introdução Geral Introdução Geral

    I.1. A Saúde no Mundo e as Contribuições da Medicina Chinesa

    O campo da Saúde Coletiva parece caminhar para um consenso quanto à

    importância de práticas de prevenção e promoção de saúde na resolução de seus

    principais problemas. Observamos isto na “Declaração do Rio”, documento resumo

    dos debates do último congresso mundial de Saúde Pública.

    “Os resultados da pesquisa [sobre causas de adoecimento]

    devem estar publicamente disponíveis e ser incorporados na

    formulação de políticas públicas e intervenções em saúde. Estas, por

    sua vez, devem ter a promoção em saúde como parte integral de seu

    desenho 1, 2”

    Porém, o paradigma biomédico, hegemônico no campo da Saúde, foi

    desenvolvido com base nas noções de doença e cura, reservando um papel

    secundário para as noções de prevenção e promoção.

    Na história da Medicina Chinesa, ocorreu o oposto. Durante o período de sua

    construção na dinastia HÀN 漢 (206 a.C. a 220 d.C.), a chamada Medicina Clássica

    Chinesa desenvolveu um modelo onde os saberes e práticas de promoção de saúde

    eram articulados aos de cura de doenças. Tendo enfatizado a promoção e

    prevenção desde seu período formativo, a Medicina Chinesa apresenta um legado

    de séculos de experimentação e elaboração destes saberes.

    Em termos gerais, estudos sobre Medicina Chinesa podem contribuir para

    ampliar nossa compreensão sobre “as causas” das doenças por apresentarem uma

    visão cultural exógena sobre o binômio saúde/doença. Além disto, ao apresentar

    interpretações e soluções distintas para os problemas de saúde através de seu

    conjunto de saberes e práticas voltadas para a promoção de saúde, a Medicina

    Chinesa pode contribuir para criação de projetos inovadores, conforme as demandas

    atuais do campo.

    1 80 Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e 110 Congresso Mundial de Saúde Pública. A Declaração do Rio foi extraída da página eletrônica da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. www.abrasco.org.br/noticias/noticia int.php?id noticia=47 acessado em 14/09/2006. 2 Negritos do autor.

  • 12

    I.2. Breve História da Medicina Chinesa.

    A Medicina Chinesa é um vasto campo de saberes e práticas que aparenta ao

    leigo um alto grau de homogeneidade. Porém, um olhar mais minucioso revela uma

    considerável heterogeneidade. Em seu aspecto positivo a diversidade enriquece o

    campo, mas,no negativo, é fonte de tensões e conflitos, os quais definem algumas

    fronteiras internas cujo esclarecimento se faz necessário.

    A elaboração foi fundamentada nas obras do sinologista e historiador Unschuld

    (1985) e de Birch (2002)3, que apresentam o cenário de uma medicina construída no

    tempo, evoluindo de saberes e práticas mais simples para mais complexas, tendo

    respaldo em evidencias histórico-arqueológicas. Como as referências de tempo nos

    estudos sobre a China são usualmente feitas através das dinastias, apresentamos a

    seguir uma tabela com o período referente a cada uma delas:

    Tabela 1: As Dinastias Chinesas.

    Dinastia Período Dinastia Período

    SHĀNG 商 1751 a 1112 AC Cinco Dinastias 907–960 DC

    ZHŌU 周 1112 a 249 AC SÒNG 宋 960–1279 DC

    Dinastia QÍN 秦 221 a 206 AC YUÁN 元 1271–1368 DC

    HÀN 漢 206 AC a 220 DC MÍNG 明 1368-1644 DC

    Seis Dinastias 六

    220–581 DC QĪNG 清 1644–1912 DC

    SUÏ 隋 581–618 DC República da

    China

    1912-1949DC

    TÁNG 唐 618–907 DC República Popular

    da China

    1949-

    Fonte: Chan (1963, p. xv)

    Unschuld (1985) apresenta um modelo de evolução da Medicina Chinesa em

    uma escala longa de tempo que nos será bastante útil. Segundo o autor, desde os

    primeiros registros da civilização chinesa na dinastia SHĀNG 商 até o final da

    3 Birch, S. é Acupunturista, Phd. pelo Center for Complementary Health Studies da Universidade de Exeter, Inglaterra, e pesquisador pela Associação Toyohari, sociedade de pesquisa em acupuntura.

  • 13

    dinastia ZHŌU 周 , a Medicina Chinesa baseava-se em um paradigma4 mágico-

    ritualístico. Suas características principais eram congruentes com a própria estrutura

    social, na qual não havia qualquer separação entre os campos da religião e da

    medicina. Nesta sociedade os curadores eram sacerdotes, denominados WŪ 巫,

    termo usualmente traduzido por shamans. Estes sacerdotes eram responsáveis pela

    resolução dos problemas de saúde, que usualmente eram atribuídos a três fatores:

    O primeiro seria da relação entre o sujeito vivo e seus antepassados mortos.

    Pensava-se que os mortos influenciavam os acontecimentos do mundo dos vivos, e

    uma doença poderia ser, por exemplo, a manifestação da insatisfação de um

    antepassado. Havia um tipo especial de antepassado, que seria o “antepassado

    primordial”, capaz de influenciar o decurso de toda a sociedade, e portanto só era

    acessível pelo rei. Outro fator que poderia desencadear doenças seriam os

    “demônios”, entidades malignas não encarnadas, que atacariam os homens, e por

    último, uma noção que permaneceria no próximo paradigma, o ataque de um “vento”

    tido como um fator climático.

    Essencial para a terapêutica seria a identificação do fator principal, que

    usualmente era feito por via oracular. As consultas oraculares parecem ter sido

    fundamentais neste modelo, e eram feitas com a utilização de cascos de tartarugas

    ou ossos de animais. Os primeiros eram atirados no fogo, e em seguida o shaman

    (WŪ 巫 ) interpretava o padrão de rachaduras que surgia no casco como uma

    mensagem. Caso o problema fosse relacionado a algum antepassado, a solução

    estaria na conciliação entre as ações do sujeito vivo e a vontade do antepassado,

    mediadas de forma ritualística. Caso se tratasse de ataques de demônios, a

    terapêutica consistia num ritual de exorcismo, e caso fossem ataques de vento,

    rituais para aplacá-lo.

    A mudança de paradigma na medicina foi um processo que durou

    aproximadamente cinco a sete séculos, desde o surgimento das primeiras

    concepções distintas até a consolidação do modelo. Somente no período médio da

    dinastia ZHŌU 周, próximo ao ano 500 a.C., evidencia-se diferenciação entre as

    funções do sacerdote e do terapeuta, bem como o uso de substâncias medicinais

    para a cura de enfermidades. Alguns sinais de referência à acupuntura surgem

    também neste período, assim como registros de diagnose através das noções de

    calor e frio, escuridão ou claridade, relacionadas a teoria YĪN 陰-YÁNG 陽.

    4 Utilizamos o termo paradigma com o mesmo sentido conferido por Unschuld (1985), autor do modelo.

  • 14

    Ainda neste período surgem os chamados “filósofos” que influenciam mudanças

    nas crenças e valores sociais, incluindo a medicina. KǑNG FŪ ZǏ 孔 夫 子, nome

    latinizado como confuncius, influenciou a medicina com as concepções de

    moderação, que se num sentido restrito relacionava-se à higiene e moderação

    alimentar, principalmente em relação à influência negativa que a falta de preparo dos

    alimentos e do consumo de álcool poderiam ter sobre a saúde. Num sentido mais

    amplo a moderação era uma forma de evidenciar a relação entre a adequação dos

    atos individuais às normas sociais e a saúde. A moderação e o comedimento

    aplicavam-se, por exemplo, à regularidade no sono e no trabalho, que se

    desrespeitadas poderiam provocar doenças.

    LǍO ZǏ 老 子, mesmo que não tenha existido de fato, teve seu nome vinculado

    ao proto-Daoísmo, com a compilação do DÀO DÉ JĪNG 道 德 經 , onde estão

    explicitadas as concepções que irão formar o corpo teórico do próximo paradigma,

    como DÀO 道, DÉ 德, WÚ WÉI 無 為 e YĪN 陰-YÁNG 陽.

    Ainda num período anterior a sistematização do novo paradigma, os textos de

    MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆 mostram uma primeira elaboração da teoria dos meridianos

    (JĪNG MÀI 經 眿), inclusive como uma forma de explicar a dinâmica vital saudável e

    enferma, do uso da moxabustão, e de fármacos. Este conjunto de textos enfocava

    também as diversas práticas de YǍNG SHĒNG 養 生, nutrir a vitalidade, e ainda

    continha uma sessão dedicada às práticas de exorcismo, podendo ser visto como

    um texto representativo de um período de transição paradigmática.

    Finalmente na dinastia HÀN 漢 , as novas concepções que vinham se

    acumulando foram sistematizadas num novo paradigma e compiladas em seus dois

    cânones fundamentais, HUÁNG DÌ NÈI JING 黃 帝 內 經, O Livro do Imperador

    Amarelo e o NAN JING 難 經 , O Clássico das Dificuldades. Denominado por

    Unschuld (1985) de paradigma de correspondências sistemáticas, integra todas as

    concepções prévias num modelo coerente, onde a teoria dos meridianos (JĪNG MÀI

    經 眿) e dos órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ 贓 腑) constituem o núcleo das dimensões

    da morfologia e da dinâmica vital, e a teoria dos fatores patogênicos passa a ser a

    principal forma de explicar o adoecimento na dimensão da doutrina médica,

    substituindo as explicações do paradigma anterior baseadas na relação com os

    antepassados e com ataques de demônios. Neste novo modelo os fatores

    patogênicos foram divididos em externos, internos, e nem externos nem internos. Os

    externos seriam os fatores climáticos, e mantinham ainda semelhanças com as

  • 15

    concepções de ventos malignos que invadem o corpo do final do paradigma anterior,

    mas agora associados às qualidades dos fatores climáticos e relacionados aos

    ZÀNG FǓ 贓 腑 , órgãos e vísceras. Os internos seriam as emoções, que em

    determinadas circunstâncias poderiam atacar os ZÀNG FǓ 贓 腑. E, por último, os

    fatores intermediários se referiam aos hábitos alimentares e comportamentais, bem

    como a fatores como acidentes e ataques de animais. Deve-se salientar que a

    gênese das enfermidades era pensada como a interação entre a capacidade

    adaptativa do ser individual com a natureza, sendo esta integração a base das

    concepções cosmológicas do modelo, que tem o homem e o cosmos como um

    conjunto integrado através de uma força vital única denominada QÌ 氣. É neste

    período de formação da Medicina Chinesa que a concepção de QÌ 氣 se tornou um

    dos fundamentos do paradigma, assumindo a função de uma força concectiva de

    todos os sistemas, internos e externos, daí o nome “correspondências sistemáticas”.

    A correspondências entre os sistemas ocorreria através de suas semelhanças

    qualitativas, conforme as leis do modelo WǓ XÍNG 五 行, cinco fases, que explica as

    diferenciações do QÌ 氣 em sua constante alternância entre as polaridades YĪN 陰 e

    YÁNG 陽 . Segundo este modelo, sistemas que estiverem na mesma fase

    responderão a estímulos feitos em qualquer ponto da fase. Este pensamento resulta

    na associação de elementos de qualidades semelhantes, tais como as

    características quentes de XĪN 心 , o coração com a estação do verão, e as

    qualidades expansivas da emoção alegria, todos associados à fase fogo (HǓO 火).

    Barsted (2003, p.28) observa que o funcionamento deste modelo fundamenta-se

    em uma concepção que não está explícita nos clássicos da medicina, e portanto,

    não é considerada por Unschuld (1985). Analisa em sua obra os textos Daoístas de

    HUÁI NÁN ZǏ 淮 南 子, em busca deste elemento primário da doutrina. GǍN YÌNG 感

    應, estímulo ressonância, seria a concepção que explica as correspondências dos

    sistemas ao propor que fenômenos da mesma qualidade partilhem o mesmo QÌ 氣, e

    portanto afetem-se mutuamente.

    Pregadio (2003, p. 56) confirma estas percepções sobre a centralidade da noção

    de GǍN YÌNG 感 應, como vemos no texto a seguir:

    “O cosmos, o ser humano, a sociedade e o ritual são

    relacionados por analogia uns aos outros, de forma que um evento ou

    ação que ocorra em qualquer um destes domínios poderá ser

    relevante nos outros. Isto é determinado pelo princípio da ressonância,

  • 16

    GǍN YÌNG 感 應 , que traduzido literalmente seria o “impulso e a

    resposta”, pelos quais as coisas pertencentes à mesma classe ou

    categoria (LEI 類) se influenciam. O ritual por exemplo, reestabelece a

    conexão original entre os seres humanos e os deuses, e um Homem

    Real (ZHĒN RÉN 真 人) ou um Santo (SHÈNG RÉN 聖 人) beneficiam

    toda comunidade humana onde vivem por seu alinhamento com as

    forças que regulam o cosmos. Por outro lado, um soberano que ignore

    os presságios dos céus traz calamidades e distúrbios sociais.”

    Pregadio (2003, p.406) considera o HUÁI NÁN ZǏ 淮 南 子 como o texto que

    mostra explicitamente as relações entre as noções cosmológicas do YĪN 陰-YÁNG

    陽, das WǓ XÍNG 五 行, cinco fases, e de GǍN YÌNG 感 應, estímulo ressonância,

    sendo a última essencial para compreender o pensamento analógico que integra

    todos os níveis do cosmos.

    Assim, ao final da dinastia HÀN 漢, o novo paradigma já estava sistematizado e

    consolidado, tornando-se a medicina hegemônica. O paradigma anterior

    permaneceu sendo praticado, mas de forma subordinada como um aspecto

    secundário dentro do campo médico, que agora já se definia diferenciado da religião,

    mas com uma ampla intersecção. Assim, as práticas dos rituais para os

    antepassados, por exemplo, parecem ter ficado no campo religioso, enquanto o

    exorcismo era praticado em ambos5.

    Denominamos a medicina estruturada neste período de Medicina Clássica

    Chinesa, em contraposição a Medicina Tradicional Chinesa, que se consolidou após

    a revolução comunista na República Popular da China. Tendo se estruturado na

    dinastia HÀN 漢, a Medicina Clássica permaneceu sem rupturas paradigmáticas

    significativas até a formação da Medicina Tradicional Chinesa. Durante este período

    de aproximadamente 17 séculos, ocorreu, segundo Unschuld (1985) e Birch (2002),

    o desenvolvimento sistemático do paradigma clássico. Desenvolvia-se o mapa de

    pontos de acupuntura com a inclusão de novos pontos e a elaboração de suas

    funções 6 . Métodos de tratamento com acupuntura, moxabustão e ervas, e o

    desenvolvimento de diversas escolas, enfatizando diferentes aspectos da prática 5 Os textos médicos de MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆 trazem o exorcismo como um aspecto da terapêutica, e o famoso médico SŪN SĪ MIǍO 孫 思 邈 da dinastia SUÏ 隋 trabalha a noção dos “13 pontos-fantasma”, pontos de acupuntura utilizados para prática do exorcismo (Johnson, 2006). 6 Os textos de MǍ WÁNG DŪI 馬 王 堆 descreviam os JĪNG MÀI 經 眿, canais e colaterais, mas não faziam qualquer alusão à noção de ponto de acupuntura. Interpreta-se isto como evidência de um processo de desenvolvimento.

  • 17

    médica. Por exemplo, na dinastia SÒNG 宋 surgiu a “escola do aquecedor médio”

    que pregava a primazia do tratamento sobre o Baço (PÍ 脾) e o estômago (WÈI 胃),

    por considerá-los fontes de diversas enfermidades. Mais tarde, na dinastia MÍNG 明,

    diante de um surto epidêmico os preceitos da escola do aquecedor médio não se

    mostraram suficientemente eficazes, tendo surgido outras cujas práticas centravam-

    se no expurgo de fatores patogênicos, resultando num desenvolvimento deste

    aspecto do corpo de saberes. Ainda durante este longo período a Medicina Clássica

    Chinesa foi exportada para outros países asiáticos como o Japão, a Coréia e o

    Vietnam, onde mais escolas se desenvolveram com outras especificidades.

    O Declínio da Medicina Clássica se iniciou na dinastia QĪNG 清. Já sob influência

    da cultura ocidental em expansão, os valores da cultura chinesa foram lentamente

    sendo transformados pelos valores ocidentais. O final desta dinastia representou

    também o fim do império e um período de aceleração no processo de modernização

    da nação. O campo da medicina esteve em evidência durante este processo, pois, a

    partir de 1911 a ciência ocidental passou a ser valorizada junto com todo o processo

    de modernização. Por sua vez a Medicina Clássica passou a ser considerada por

    dirigentes da nação como um conjunto de crenças supersticiosas (MÍ XÌN 迷 信),

    chegando a ser banida a partir de 1927 no governo de JIǍNG JIÈ SHÍ 蔣 介 石

    (Chiang Kai-shek) (Fruehauf, 1999; Barsted, 2003; Hsu, 1999)

    A reconstrução da Medicina Chinesa teve início após a revolução comunista de

    1949. Tendo recebido suporte de MÁO ZÉ DŌNG 毛 澤 東 por motivos de saúde

    coletiva, econômicos e políticos, teve representatividade no processo de construção

    da República Popular de China, uma vez que seus dirigentes tinham como objetivo

    resgatar parte da cultura tradicional criando uma síntese com a ciência e os valores

    modernos. A Medicina que nasceu desta proposta de síntese foi denominada

    Medicina Tradicional Chinesa. De acordo com Hsu (1999, p. 7) esta medicina é

    referida por diversos termos tais como: “tradicional”; “modernizada”; “científica”;

    “sistemática” e “padronizada”, que denotam de forma adequada seus valores

    estruturantes, elaborados por Barsted (2003, p.11)7 de forma mais minuciosa na

    citação a seguir:

    A escola “Traditional Chinese Medicine” apresenta, nas principais

    obras traduzidas para línguas européias, fortes traços positivistas e

    funcionalistas, marcados, entre outras coisas, por: (a) uma agregação

    7 O autor preferiu não traduzir o termo “Traditional Chinese Medicine” do inglês, cuja tradução seria “Medicina Tradicional Chinesa.”

  • 18

    ahistórica de diferentes conceitos e práticas de medicina chinesa; (b)

    uma implícita preocupação com a lógica e com os critérios de

    cientificidade ocidentais; (c) uma exclusão das categorias e das formas

    de pensamento dos clássicos filosóficos que fundamentam a medicina

    clássica chinesa; (d) a negação de vários conceitos básicos da

    medicina clássica chinesa que a escola “Traditional Chinese Medicine”

    atribui ao misticismo e (e) uma tendência à materialização, à

    coisificação da acupuntura, p. ex. atribuir a ação da acupuntura ao

    sistema nervoso e denominar certas categorias fundamentais

    abstratas da medicina chinesa de “substância vitais”.

    Após o movimento de construção de uma medicina parcialmente fundamentada

    em concepções clássicas, e de sua instalação, em conjunto com a Medicina

    Ocidental Contemporânea como as medicinas de Estado da República Popular da

    China, a escola Medicina Tradicional Chinesa tornou-se hegemônica dentro do

    campo da Medicina Chinesa. Como uma de suas características é a padronização,

    tende suprimir a diversidade. De acordo com Fruehauf (1999, p.6), esta escola

    monopolizou a prática da Medicina Chinesa na China continental e se tornou modelo

    para a expansão desta Medicina no mundo. Uma breve observação na página

    eletrônica de um dos grandes centros contemporâneos de produção de saberes em

    Medicina Chinesa8 evidencia o investimento em preparar uma Medicina Chinesa

    “padronizada para exportação”, o que acaba contribuindo para a construção da

    imagem de um campo de saberes homogêneo.

    Como outra de suas características é a cientificização, tende a excluir ou

    ressignificar noções fundamentais ao corpo de saberes da Medicina Clássica, tais

    como SHÉN 神, termo que era usualmente traduzido por “espírito”, e passou a ser

    quase identificado com a “mente” ou atividades mentais nas escolas de Medicina

    Tradicional Chinesa. Este aspecto da ressignificação dos termos clássicos será

    importante na construção deste trabalho, conforme veremos adiante. A seguir

    apresentamos o desenvolvimento da Medicina Chinesa no ocidente contemporâneo.

    8 Tais como Shanghai University of Traditional Chinese Medicine e Nanjing University of Traditional Chinese Medicine, que produziram um conjunto de referências bibliográficas com objetivo de padronizar a “internacionalização da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) no mundo: http://www.tcmtreatment.net/images/bookstore/s15.htm, acessado em 07/06/2005.

  • 19

    I.3. A Medicina Chinesa no Ocidente Contemporâneo

    A Aculturação da Medicina Chinesa no Ocidente é um processo em

    desenvolvimento, iniciado há aproximadamente trinta anos, e aparentemente com

    um longo percurso futuro. A co-existência de distintos sistemas médicos parece ter

    sido comum em muitas civilizações, inclusive no próprio ocidente antes da

    modernidade9. Porém, durante a modernidade, assistimos ao surgimento de um

    estranho tipo de monopólio, com o nascimento de um novo sistema médico

    apresentando características de expansão e dominação cultural congruentes com o

    capitalismo, modelo civilizatório do ocidente moderno. A biomedicina, termo

    atribuído a este sistema pelos pensadores das ciências sociais aplicadas à saúde,

    construiu a identidade social de única medicina verdadeira, sustentando-a sem

    maiores problemas desde o final do século XVIII até o final da década de 60 do

    século XX10. (Camargo Jr. 2003; Luz, 1996; Birch, 2002)

    Neste momento, um conjunto de transformações sociais de abrangência

    mundial trouxe consigo o fim da modernidade. Os movimentos e revoluções sociais

    do fim da década de 60 não alcançaram a totalidade dos objetivos pretendidos, mas,

    contribuíram significativamente para a quebra do monopólio da biomedicina no

    campo da saúde. Desde então, testemunhamos o re-surgimento de diversas culturas

    de saúde e o crescimento do uso de novas práticas terapêuticas. Denominadas

    Alternativas, Complementares ou Holísticas, estas práticas ganharam progressivo

    espaço na sociedade civil e também em instituições e sistemas locais de saúde.

    É possível caracterizar três passos desta retomada da pluralidade. Durante o

    final dos anos sessenta, e toda a década de setenta do século passado,

    presenciamos movimentos de contestação e ataques às estruturas sociais vigentes,

    concomitantemente à “importação” de culturas alternativas. O ocidente foi invadido

    por práticas artísticas, religiosas e terapêuticas das mais diversas culturas, que

    trouxeram consigo diferentes visões de mundo e da humanidade11.

    O segundo passo, mais intenso durante a década de oitenta, caracterizou-se

    pelo processo de mercantilização das práticas contraculturais. Neste, houve um

    desvio das diretrizes originais, onde ao invés de destruir o capitalismo, a ideologia

    contracultural foi transformada pelo mesmo em mais um produto de mercado. O

    campo das novas práticas terapêuticas e outros que compunham o cenário

    9 Ver Bates (2000). 10 Sobre a institucionalização da Biomedicina ver Camargo Jr. (2003) e Luz (1996). Sobre a aculturação da Medicina Chinesa, Birch (2002). 11 Para maiores detalhes ver Campbell (1997), Luz (1997) e Souza (2004).

  • 20

    contracultural foram adaptados à cultura capitalista hegemônica. Apesar de ainda

    hoje veicular e difundir valores anti-capitalistas, insere-se no sistema sob suas

    regras, o que se manifesta numa produção contínua, prolífica e ininterrupta de

    produtos de saúde em competição no mercado.

    O terceiro passo é uma extensão prevista do segundo. Uma vez que as

    práticas de saúde não mais participam do movimento de formação de uma

    “sociedade alternativa”, elas se submetem aos instrumentos de regulação social e

    de mercado. A institucionalização dos saberes e práticas “contraculturais” alcança o

    nível das corporações, associações, conselhos e legislações profissionais, todos em

    busca do seu espaço na sociedade, que no caso das práticas de saúde, incluem a

    demanda por reconhecimento ou até inserção nos sistemas nacionais de saúde.

    Esta disputa de campo, no sentido do conceito utilizado por Bourdieu (1994),

    resultou em distintas configurações de possibilidades e proibições nos países

    ocidentais, no que diz respeito à formação e atuação destes “novos profissionais de

    saúde”. Dentre a diversidade de novas práticas, é possível notar que algumas foram

    mais incorporadas às culturas ocidentais, sendo também objeto de disputa por

    corporações profissionais. Neste aspecto merece destaque a Racionalidade Médica

    Chinesa, através de uma de suas práticas terapêuticas mais difundidas, a

    acupuntura.

    Tendo sido uma prática pioneira e representativa das transformações históricas

    supracitadas, a acupuntura estabeleceu fortes raízes no mundo ocidental. Além disto,

    a atual ascensão da República Popular da China no cenário mundial parece

    alimentar ainda mais o desenvolvimento das práticas de saúde da Racionalidade

    Médica Chinesa em escala mundial, tendo a escola Medicina Tradicional Chinesa

    como modelo de padronização.

  • 21

    I.4. O Cenário Atual da Pesquisa em Medicina Chinesa

    O processo de “importação” de um sistema médico não aconteceu sem

    conflitos. Pelo contrário, ao olharmos a história da contracultura parece que as

    culturas importadas serviram como armas em um processo conflituoso de

    transformação das sociedades ocidentais.

    A construção do campo da Medicina Chinesa no ocidente ocorreu de forma

    singular em cada nação, refletindo as distintas soluções que cada uma formulou

    para temas conflituosos comuns. Destacamos como exemplo o estudo realizado por

    Nascimento (1997) sobre a construção do campo da acupuntura no Brasil, pois

    acreditamos que contenha os elementos centrais do conflito, que seriam: 1) Um

    momento inicial de negação da Medicina Chinesa como um instrumento eficaz de

    intervenção em saúde, por parte das instituições hegemônicas (Estado e Instituições

    de saúde), contra a pressão exercida pelo crescimento de sua demanda pela

    sociedade civil; 2) Um segundo momento de aceitação da eficácia de intervenção

    conduzindo a conflitos inter e intra categorias profissionais pelo direito ao exercício

    da prática; 3) O processo de institucionalização de produtos e serviços de saúde, do

    ensino e formação profissional, e de associações e conselhos de regulação do

    exercício da profissão.

    Este último passo resultou em distintas configurações institucionais

    dependendo dos diversos poderes dos atores e instituições envolvidos tais como: as

    associações e conselhos profissionais; as características das leis trabalhistas e

    educacionais; do sistema nacional de saúde; da história prévia da imigração de

    orientais; das instituições de pesquisa, construção e legitimação do conhecimento,

    etc... É no interior deste espaço de disputas que se torna relevante uma análise

    sobre as formas de legitimação do conhecimento no campo e o papel exercido pela

    pesquisa científica.

    Segundo Patel (1987) 12 , em artigo intitulado: Problemas na avaliação de

    medicinas alternativas, a aceitação das chamadas “medicinas alternativas13” pelas

    instituições de saúde hegemônicas depende sobretudo do resultado de sua

    avaliação pelos critérios científicos. Na primeira década deste século, autores como

    Birch (2003)14 e Lewith (2003)15 consideram que o campo da acupuntura envolveu-

    12 Patel, M.S. – Institut Universitaire de Médecine Sociale et Préventive, Lausanne, Switzerland. 13 Este termo denota todos os sistemas médicos e práticas terapêuticas não biomédicas. 14 Acupunturista, Ph.D., consultor da Fundação para Estudos de Medicinas do Leste Asiático, Amsterdam, Holanda.

  • 22

    se apenas perifericamente com a ciência no ocidente, sendo necessário um maior

    empenho nas pesquisas para que se torne uma parte integrada do sistema de saúde

    hegemônico. (Birch, 2003 a, p.29). Segundo os autores, estas pesquisas devem ser

    capazes de “discriminar dogmas de conhecimentos verdadeiros”, a fim de “melhorar

    a eficácia dos tratamentos e os cuidados aos pacientes” (Lewith, 2003, p.82), porém,

    consideram insatisfatórias as pesquisas realizadas até o momento, e salientam que

    a pesquisa em Medicina Chinesa é um desafio metodológico. (Birch, 2003 b, p.207).

    A partir desta avaliação Birch (2003 a) sugere diversos tipos de pesquisa que

    considera úteis ao campo, incluindo propostas de desenho de projetos,

    colaboradores e financiamento necessários. Reproduzimos abaixo apenas os tipos:

    Tabela 2: Classificação das Pesquisas

    1 Estudos Gerais

    1.1. Sobre a natureza da prática

    (Estudos da literatura)

    1.2. Demográficos (Surveys)

    1.3. Resultados Clínicos

    1.4. Efeitos adversos

    2. Estudos Especializados

    2.1. Confiabilidade e validade dos

    diagnósticos e tratamentos

    2.2. Desenvolvimento de ferramentas para

    avaliar resultados

    3. Testes Clínicos Controlados

    3.1. Em Serviços de Saúde (Pragmático)

    3.2. Econômicos (Pragmático)

    3.3. Pesquisas de eficácia comparada

    (Pragmático)

    3.4. Estudos com controle de grupo

    placebo para examinar efeitos

    específicos (Explicativo)

    4. Estudos de Laboratório

    4.1. Estudos de mecanismo de ação (em

    animais ou humanos)

    4.2. Explorações da teoria tradicional (e.g.

    Mensuração de pontos e meridianos)

    A tipologia de Birch (2003 a) é um ponto de partida para a análise de alguns

    casos exemplares a partir dos quais formulamos algumas questões. O primeiro,

    apresentado em Kaptchuck (2000), é um teste clínico controlado de eficácia

    comparada. (Item 3.3., tabela acima), apresentado no capítulo intitulado: “O encontro

    científico com as medicinas do leste asiático: eficácia e eventos adversos”.

    15 Pesquisador Senior e Consultor Médico do Royal South Hants Hospital, Southampton, Grã-Bretanha.

  • 23

    “o mais sofisticado estudo (científico), até o momento, capaz de

    respeitar totalmente o diagnóstico e a terapêutica da Medicina Chinesa,

    e ainda utilizar um estrito e aceito protocolo metodológico duplo-cego foi

    realizado em Sydney. Um grupo de 116 pacientes com “síndrome do

    cólon irritável” foi aleatoriamente dividido em três grupos: a) um

    tratamento placebo; b) Uma formulação herbácea padronizada da

    Medicina Chinesa (MC) e c) uma prescrição individualizada de ervas,

    com os componentes selecionados por um herbalista tradicional chinês.

    A fórmula padronizada continha 20 ingredientes; as composições

    individualizadas consistiam de ervas escolhidas de um total de 81 tipos,

    a fim de ajustar-se ao padrão único de desarmonia de cada paciente. A

    fim de reforçar o duplo-cego, ao invés de ter sido apresentado um

    placebo com cheiro e gosto semelhante às fórmulas herbais, todos os

    pacientes, depois de consultarem um herbalista chinês, que ignorava se

    os pacientes iriam receber tratamento real ou falso, eram requisitados a

    preencher um questionário e aguardar trinta minutos para o preparo de

    suas ervas. O tempo de espera foi utilizado para evitar que os pacientes

    pudessem identificar se estavam recebendo o placebo, a formula

    padronizada, ou a individualizada, que levam tempo para serem

    preparadas. Comparado com o grupo placebo, os pacientes nos grupos

    de tratamentos ativos obtiveram melhora significativa em todas as

    medidas de resultado. Fórmulas padronizadas e individualizadas foram

    igualmente efetivas até o final da décima-sexta semana de tratamento.

    Após a conclusão do tratamento, os pacientes foram observados durante

    quatorze semanas. Ao final deste período, apenas os pacientes que

    receberam fórmulas individualizadas mantiveram as melhoras obtidas.”

    (Kaptchuck, 2000, p.369)

    Alguns tópicos deste exemplo merecem comentários. Primeiro, o autor inicia o

    texto enunciando ser um teste “capaz de respeitar totalmente a Medicina Chinesa”.

    Esta afirmação merece atenção, pois, em primeiro lugar, o critério de seleção do

    grupo inicial foi classificar pessoas através de uma categoria de “doença” exclusiva

    da racionalidade da biomedicina (síndrome do cólon irritável). Caso expuséssemos o

    mesmo grupo de pessoas em primeiro lugar ao herbalista chinês, que as teria

    diagnosticado segundo a Medicina Clássica Chinesa, talvez ele não observasse

    sinais comuns suficientes que pudessem enquadrar as 116 pessoas em um mesmo

    grupo. Em segundo lugar, não está claro na exposição o critério utilizado para

  • 24

    mensuração dos resultados, mas podemos imaginar que o desaparecimento dos

    sintomas e sinais que definem “síndrome do cólon irritável” tenha sido o critério

    escolhido.

    O segundo estudo exemplar, dirigido por Cho (2001) teve como objetivo a

    investigação das repercussões da inserção de agulhas de acupuntura no plano

    fisiológico (Biomédico). Considerado inovador por ter evidenciado a especificidade

    de ação dos pontos de acupuntura, é tido como um exemplo bem sucedido de

    “interdisciplinaridade” (Kim, 2000), por ter construído resultados positivos para todos

    os grupos envolvidos: os acupunturistas, os neurologistas e os especialistas em

    imagens (ressonância magnética). O Modelo esquemático do estudo foi o seguinte:

    1- Selecionar pontos de acupuntura que, segundo os textos clássicos, teriam

    efeitos sobre os olhos;

    2- Estimular o ponto em um paciente, capturando imagens da atividade

    cerebral durante o processo;

    3- Estimular um “ponto falso” de acupuntura e capturar as imagens da

    atividade cerebral;

    4- Estimular a visão do paciente através de estímulos luminosos e capturar a

    imagem da atividade cerebral;

    5- Comparar as imagens.

    O resultado obtido foi o seguinte:

    a) O estímulo do ponto de acupuntura clássico provocou atividade, na área

    cerebral referente as funções da visão, com intensidade semelhante ao estímulo

    luminoso;

    b) O estímulo do “ponto falso” não provocou atividades no cérebro;

    Este conjunto de informações levou os pesquisadores a concluírem que pontos

    de acupuntura podem ter ações específicas. Este estudo seria um exemplo do item

    4.2 da classificação de Birch (2003 a), um estudo de laboratório, explorando as

    teorias tradicionais.

    Com estes dois exemplos em mãos, permitimo-nos alguns comentários a partir

    de uma questão básica: Qual é a origem da necessidade de pesquisa em

    acupuntura? Esta pergunta pode ter uma resposta imediata a partir da perspectiva

    das ciências duras, e mesmo das instituições e sistemas de saúde, para quem as

  • 25

    questões de eficácia, terapêutica e econômica, são de importância primária.

    McPherson(2000)16 capturou com precisão este tópico:

    “Durante as três últimas décadas a história da pesquisa em

    acupuntura no ocidente tem sido dominada pela necessidade de

    determinação da eficácia da acupuntura para tratar um grupo de

    doenças e condições, através do Ensaio Clínico Randômico

    Controlado (ECRC).” (McPherson, 2000, p.97)

    Esta postura é bastante semelhante à proposta oficial da República Popular da

    China na criação da Medicina Tradicional Chinesa. A passagem a seguir demonstra

    que a importância conferida à avaliação científica continua sendo um dos

    fundamentos do desenvolvimento desta medicina:

    “Em 1994-95 o ministro da saúde publicou diretrizes que

    buscavam padronizar o processo de pesquisa sobre o efeito do uso de

    medicamentos patenteados. Em conjunto com a instituição chinesa

    reguladora de drogas e alimentos, foi decretado que a pesquisa e as

    patentes de fórmulas de Medicina Chinesa devem ser conduzidas

    pelos padrões da pesquisa farmacêutica ocidental. Isto significa dizer,

    principalmente, que o sistema tradicional de diagnose diferencial

    (bianzheng) teria que ser completamente substituído pela diagnose

    alopática (bianbing). De acordo com estas diretrizes, pesquisas sobre

    uma fórmula constitucional de múltiplos propósitos como o “Pó para as

    quatro extremidades frígidas (Sini San)”, por exemplo, deverá ser

    conduzida e anunciada no contexto de uma única categoria

    diagnóstica, i.e. “colecistite”. A pesquisa sobre a racionalidade da

    teoria tradicional dos medicamentos são reduzidas à 10% da proposta,

    enquanto a pesquisa orientada à doenças ocupa 70%. “ (Freuhauf,

    1999, p. 10)

    16 McPherson, H. Ph.D., Acupunturista, Diretor de pesquisa da Fundação para Medicina Tradicional Chinesa, Reino Unido.

  • 26

    I.5. Crítica às Diretrizes de Pesquisa

    De acordo com o exposto acima, parece que a Medicina Chinesa na atualidade

    busca na ciência um caminho para legitimação. Porém, ao adequar-se a forma

    científica de produção de conhecimento, pretere a pesquisa sobre os fundamentos

    de sua racionalidade. Conforme observamos nos temas de pesquisa propostos por

    Birch (2003 a), apenas um entre 12 itens interroga a “natureza da prática”, ou seja,

    as concepções que fundamentam a teoria clássica. Vemos no comentário de

    Fruehauf (1999, p.10) a seguir que esta tendência também ocorre na China

    continental.

    “Na opinião de muitos de meus professores orientados pelos

    clássicos, e na minha, estamos vendo uma severa erosão dos valores

    tradicionais, pelos seguintes motivos: a) devido a prioridades de

    mercado, nenhum dos numerosos jornais de Medicina Tradicional

    Chinesa esforça-se para publicar sobre os fundamentos filosóficos da

    Medicina Chinesa. Ainda, o governo não provê recursos financeiros

    para a pesquisa sobre os textos tradicionais, que eram um tópico de

    especialização até 1988, e não são permitidos projetos de pós-

    graduação que envolvam somente a teoria da Medicina Chinesa. “

    Deste modo, salientamos a existência de uma “agenda de pesquisa”, liderada

    e desenvolvida por uma parte do campo da Racionalidade Médica Chinesa, mais

    próxima às instituições hegemônicas de produção de saberes Ocidentais e Chinesas,

    cujo princípio diretor está baseado na tentativa de responder questões de eficácia

    terapêutica relativas ao tratamento de “doenças” (McPherson, 2000; Sherman,

    2004) 17 , ou de “comprovar” a possibilidade de “funcionamento” da acupuntura

    através de categorias biomédicas (Cho, 2001).

    Esta agenda parece não despertar interesse de outra parte do campo,

    representada por terapeutas cuja prioridade é a atividade clínica, baseando o

    processo de avaliação de sua intervenção terapêutica em interpretação de “sinais”18.

    De fato, pode-se formular uma questão aos estudos exemplificados acima: Qual é sua contribuição para a atividade clínica?

    Esta questão parece estar respondida de forma implícita. A imposição dos

    critérios de validação de conhecimento da biomedicina sobre a Medicina Clássica

    17 Sherman, K,J. Ph.D., Departamento de Epidemiologia, Universidade de Washington, Estados Unidos. 18 Ginzburg (1992) chama esta qualidade operativa de “paradigma indiciário”

  • 27

    Chinesa traz consigo um conjunto de conseqüências. A primeira é a classificação de

    doenças como forma prioritária de diagnose; a segunda é a criação de terapêuticas

    padronizadas, com fármacos e pontos de acupuntura pré-selecionados e fixos para

    cada doença; e a terceira é a avaliação da terapêutica baseada na mensuração

    objetiva de dados, usualmente colhidos por instrumentos de alta tecnologia (ex.

    variação da carga viral). Segundo Fruehauf (1999, p. 13), este conjunto se opõe à

    forma clássica, onde o terapeuta baseia-se no sistema diagnóstico clássico, de

    determinação de padrões de desarmonia através da interpretação de sinais colhidos

    na língua e no pulso (entre outros), prescreve tratamentos singularizados para cada

    paciente e utiliza uma ampla variedade de práticas terapêuticas, tais como fármacos,

    acupuntura, massagens, exercícios de circulação da força vital (QÌ GŌNG 氣 功),

    dietética, práticas de emissão de QÌ 氣, força vital do terapeuta para o paciente,

    entre outras. A prescrição destas práticas é bastante flexível, variando com a

    evolução do quadro de desarmonia, ou ainda em alguns sistemas de acupuntura, a

    utilização dos pontos varia com a hora de aplicação em relação ao padrão de

    enfermidade. Ainda, a avaliação da terapêutica é baseada na composição das

    sensações de bem-estar do paciente com a variação dos sinais clínicos supracitados.

    Desta forma, compreendemos que a resposta implícita à questão da

    contribuição poderia ser formulada da seguinte maneira: o modelo biomédico é o mais adequado para a criação de um corpo de saberes e práticas mais seguro e eficaz, pois seria capaz de dar validação científica aos saberes, em contraposição ao modelo clássico, que apresenta diversas dificuldades a esta

    validação. Cabe salientar que para o terapeuta de orientação clássica, que fundamenta a avaliação de sua prática na comparação entre as sensações de bem-

    estar do cliente com a variação dos sinais clínicos, tendo portanto um modelo

    próprio de avaliação, a imposição dos critérios biomédicos não parece contribuir

    para uma melhor condução do processo de diagnose, seleção e aplicação adequada

    de estímulos terapêuticos. (fitoterápicos, acupuntura, alimentação ou massagens).

    A centralização das pesquisas em torno da categoria “doença” traz consigo

    alguns problemas fundamentais. Sua reificação anula a possibilidade de apreender

    uma miríade de sinais que poderiam ser interpretados como “eficácia terapêutica”,

    pois a Medicina Chinesa define saúde-doença em termos da harmonia ou

    desarmonia das pessoas enquanto complexos singulares, e sustenta,

    prioritariamente, um modelo de avaliação de promoção da saúde. Neste, mudanças na “forma de ondas do pulso arterial”, no “padrão emocional”, e no “brilho

  • 28

    dos olhos” são sinais positivos da condução do processo terapêutico, ignorados pelo

    modelo de pesquisa focado na categoria “doença”.

    Existe um padrão convencional e hegemônico de avaliação que, ao definir-se

    universal, ignora os padrões internos de avaliação da Medicina Clássica, podendo

    induzir uma sobrevalorização de aspectos da terapêutica imediatamente

    relacionados à cura das doenças, ao mesmo tempo sub-valorizando outras

    transformações positivas provocadas pela ação terapêutica, podendo em última

    instância incorrer no erro de desqualificar o potencial terapêutico de uma dada

    Racionalidade Médica por apreender de forma enviesada seus objetos e objetivos.

    “[...] para compreender de fato outra racionalidade médica, é

    necessário aprender a pensar como um praticante dela, um “tornar-se

    nativo” que evoca novamente o relato sobre a história de Qesalid, de

    Lévy-Strauss (1975a). Sendo assim, é inadequado e impróprio supor que

    critérios de avaliação de eficácia internos a uma racionalidade sejam

    imediatamente aplicáveis a outras – por exemplo, tornar-se o ensaio

    clínico randômico controlado como modelo universal de avaliação de

    eficácia” (Camargo Jr., 2004)

    Inserido neste contexto, o presente trabalho será elaborado na direção oposta

    ao fluxo hegemônico de desenvolvimento da Medicina Chinesa contemporânea. A

    obra é essencialmente sobre o antigo. É um instrumento para apreensão das

    concepções fundamentais da Medicina Clássica, para compreensão de sua

    racionalidade. É uma resposta ao convite de Fruehauf (1999) para que se evite a

    morte do clássico, é uma re-afirmação da visão de Barsted (2003), sobre a

    qualidade da terapêutica depender de uma adequada apreensão destas categorias.

    Finalmente, é uma pesquisa sobre os temas que o governo da República Popular da

    China recusou-se a promover nas últimas décadas.

    Partimos do pressuposto que havia na Medicina Clássica um conjunto de

    saberes e práticas de saúde que constituíam um modelo de prevenção e promoção,

    além da mencionada face curativa. Assim sendo, a temática central deste trabalho é

    a proposta terapêutica da Medicina Clássica, com ênfase nas práticas de prevenção

    e promoção. Esta temática será restrita pelo conjunto de símbolos, sentidos,

    representações, saberes, crenças, valores, papéis sociais e instituições envolvidos

    na práxis dos terapeutas contemporâneos que priorizam a Medicina Clássica.

  • 29

    I.6. Projeto Racionalidades Médicas: O Espaço da Pesquisa no Brasil.

    Não sendo um tema prioritário nem mesmo no interior do campo da Medicina

    Chinesa encontrar espaço institucional para o desenvolvimento deste tipo de

    pesquisa é tarefa árdua. Porém, no Brasil, existe um espaço inaugurado pela Lilnha

    de Pesquisa Racionalidades Médicas e Práticas de Saúde, onde o tema é relevante.

    O projeto, iniciado e organizado pela Professora Dra. Madel Luz junto ao Instituto de

    Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro no início da década de

    90, é pioneiro em pesquisas sobre medicinas comparadas. A categoria

    Racionalidade Médica, de importância central ao projeto, é um constructo utilizado

    para facilitar a comparação e apreensão de noções, sentidos e significados relativos

    a cada sistema médico estudado.

    Segundo Luz (2000, p.182):

    “Ao estabelecermos como indicação necessária e suficiente

    para estarmos em presença de uma racionalidade médica a

    existência de cinco dimensões fundamentais (morfologia, dinâmica

    vital, doutrina médica, sistema de diagnose e sistema de intervenção

    terapêutica) optamos pelo estudo comparativo de sistemas médicos

    altamente complexos, eliminando de nosso estudo uma série de

    práticas conhecidas como “terapêuticas alternativas” [...] É

    racionalidade médica, segundo nosso projeto, todo constructo lógica

    e empiricamente estruturado das cinco dimensões mencionadas,

    tendendo a constituir-se ou pretendendo constituir-se em sistema de

    proposições “verdadeiras” verificáveis de acordo com procedimentos

    racionais sistemáticos, (preferencialmente os da racionalidade

    científica) e de intervenções eficazes em face do adoecimento

    humano.”

    Na primeira fase do projeto foram identificadas e pesquisadas quatro

    Racionalidades Médicas: a Biomedicina, a Homeopatia, a Medicina Ayurvédica, e a

    Medicina Chinesa. Ao final, construiu-se um quadro-resumo, que se tornou um

    instrumento adequado para apresentação da categoria. Reproduzimos a seguir o

    quadro apresentado em Luz (1996).

  • 30

    Tabela 3: Quadro-Resumo das Racionalidades Médicas

    Racionalidades Médicas

    Medicina Ocidental

    Contemporânea Medicina

    Homeopática Medicina

    Tradicional Chinesa Medicina Ayurvédica

    Cosmologia Física Newtoniana (Clássica) – Implícita

    Cosmologia Ocidental Tradicional (Alquímica) e clássica (Newtoniana) – implícita

    Cosmogonia Taoísta (geração do microcosmo a partir do macrocosmo)

    Cosmogonia Védica (geração do microcosmo a partir do macrocosmo)

    Doutrina Médica

    Teoria da causalidade da doença e seu combate

    Teoria da energia ou força vital e seu desequilíbrio nos sujeitos individuais

    Teorias do Yin-Yang, das cinco fases, e seu equilíbrio (harmonia) nos sujeitos individuais

    Teoria dos cinco elementos e das contituições humorais nos sujeitos individuais

    Morfologia Morfologia dos sistemas (macro e micro orgâmico)

    Organismo Material e força vital animadora

    Teoria dos canais e colaterais; dos pontos de acupuntura; dos órgãos e visceras

    Teoria da densidade dos corpos; da constituição dos tecidos vitais; dos orgãos e dos sentidos

    Fisiologia ou Dinâmica Vital

    Fisiopatologia e fisiologia dos sistemas

    Fisiologia energética implícita; Fisiologia dos sitemas; fisiopatologia do medicamento e do adoecimento

    Fisiologia dos sorpos vitais; dos Zang-Fu Dinâmica Yin/Yan No organismo e no ambiente

    Fisiologia energética (Circulação do prana nos diversos "corpos" Equilíbrio dos Tridoshas

    Sistema Diagnóstico

    Semiologia: anamnese; exame físico e exames complementares

    Semiologia: anamnese do desequilíbrio individual. Diagnóstico e remédio da enfermidade individual.

    Semiologia: anamnese do desequilíbrio Yin/Yang Diagnóstico do desequilíbrio dos sujeitos

    Semiologia: Anamnese do desequilíbrio dos "tridosha" Sistema de observação dos "oito pontos" Diagnóstico do desequilíbrio dos sujeitos

    Sistema Terapêutico

    Medicamentos, cirurgia, higiene Medicamento, higiene

    Higiene, exercícios (artes, meditação) Dietética; fitoterapia; massagens Acupuntura, moxabustão

    Dietética Técnicas de eliminação e purificação Exercícios (Yoga, meditação) Massagens; Fitoterapia (vegetais, minerais e animais)

    Construída no interior do arcabouço disciplinar das Ciências Sociais, a noção

    de Racionalidade Médica opera uma leitura sócio-antropológica sobre sistemas

    médicos, desnaturalizando categorias como “a doença”, profundamente reificada em

    nossa cultura. É a partir deste distanciamento e da estranheza do comum que se

    observa a existência de outros sistemas médicos, abrindo um imenso campo de

    estudos. Desta forma, observa-se o contraste existente entre as explicações sobre:

    1) A relação do homem com o universo – Cosmologia;

    2) O estado de saúde e a origem da doença - Doutrina Médica;

  • 31

    3) A estrutura e o modo de funcionamento do ser humano - Morfologia e

    Dinâmica Vital;

    4) A forma de avaliar estados de saúde e doença - Sistema Diagnóstico;

    5) A ação terapêutica.

  • 32

    I.7. Objeto, Objetivo e sua Abordagem

    O método escolhido para construção de objetos de pesquisa segue a proposta

    de Bourdieu (1994): selecionar temas relevantes no campo, e em seguida formular

    questões dirigidas aos temas. Nossa questão principal seria: “Quais são as

    concepções, valores e pressupostos que estruturam a proposta terapêutica da

    Medicina Clássica?”, sendo nosso objetivo principal sua apreensão e análise.

    O objeto é abordado a partir de referenciais teóricos das ciências sociais

    aplicadas à saúde, para os quais a relativização cultural de formas de produção e

    legitimação de saberes constitui um fundamento construído ao longo das últimas

    décadas do século XX, definidos por autores como Santos (1987), de forma

    generalizada, e Luz (1988) que focaliza as relações da produção de conhecimento

    com o campo da saúde. A simples possibilidade de formular as questões acima

    requer um posicionamento teórico afim.

    “Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os

    juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica

    da natureza ou da sociedade. São parte integrante desta mesma

    explicação. A ciência moderna não é a única explicação possível da

    realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerar

    melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia,

    da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje

    uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos

    fenômenos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação

    científica dos fenómenos é a auto-justificação da ciência enquanto

    fenómeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim,

    autobiográfica.” (Santos, 1987, p.52)

    As análises de Santos (1995, 2000) sobre o “legado da modernidade”, o

    caminho que elevou a ciência à única forma verdadeira de apreender a realidade,

    superior a todas as outras (conhecimento-regulação) e, portanto, com poder de

    “colonizá-las”, de legislar sobre elas marginalizando e liquidando saberes que não

    possam ser reduzidos aos seus imperativos (conhecimento-emancipação), remetem

    a formação de uma epistemologia de transição.

    “A essa pretensão opõe-se uma concepção solidária do

    conhecimento, feito da coexistência, do diálogo e da articulação

    mútua. É esta segunda forma de conhecimento que deve ser

    privilegiada no período de transição que estamos a viver. Longe de

  • 33

    ser um apelo a um “vale tudo” epistemológico, esta posição exige que

    os diferentes modos de conhecimento sejam avaliados em função

    dos contextos e situações em que são mobilizados e dos objectivos

    daqueles que os mobilizam, sem subordinação a imperativos globais

    de racionalidade que ignoram o caráter situado da produção e

    apropriação de todas as formas de conhecimento e das suas

    consequências para pessoas e lugares com uma singularidade que

    lhes é conferida pela sua história.” (Nunes, 2003, p.62)19

    Em discurso semelhante, Camargo Jr. (2004) postula, a partir do interior do

    campo da saúde, a noção de uma “epistemologia em processo”, que se diferencia

    da filosofia da ciência por desvincular o “conhecimento válido” do “conhecimento

    científico”, completando o conjunto de autores cujas obras nos conferem

    fundamentos teóricos para elaboração de nossas questões.

    Assim, este trabalho é um estudo sócio-filosófico, onde abordamos as

    concepções e valores estruturantes da proposta terapêutica da Medicina Clássica a

    partir do olhar desta epistemologia de transição, tendo a noção de Racionalidade

    Médica como instrumento operacional de análise.

    Incomoda-nos o tipo de reducionismo presente na “agenda de pesquisa

    científica”, que pretere ou ignora uma considerável parcela o campo de saberes da

    Medicina Chinesa. Parece-nos uma hipótese plausível supor que esta redução se

    deve à dificuldade de “enquadrar” a doutrina médica da Medicina Clássica em algum

    formato “válido” de produção de conhecimento. Seria uma parcela do campo de

    difícil “colonização”, sendo melhor evitá-la do que aumentar o já considerável grau

    de dificuldade de realização de pesquisas.

    Desta forma, propomos a inserção das concepções fundamentais da Medicina

    Clássica de volta na “agenda de pesquisa”. Esta inserção desdobra o objetivo

    central em alguns objetivos secundários conforme apresentamos a seguir:

    1) Objetivo central: Apreensão e análise das concepções, valores e pressupostos

    que estruturam a proposta terapêutica da Medicina Clássica Chinesa.

    2) Objetivos secundários:

    a. Contextualização cultural da Medicina Clássica.

    19 Nunes, J.A.., Sociólogo da Universidade de Coimbra, Portugal, interligado ao grupo de Santos, B.S.

  • 34

    b. Análise do viés de valor, de possíveis créditos ou descréditos atribuídos à

    Medicina Clássica pela imposição de formas de avaliação comuns à

    biomedicina como um imperativo global.

    c. Apreensão e análise das concepções, valores e pressupostos que

    fundamentam os critérios nativos de avaliação da terapêutica na Medicina

    Clássica.

    d. Análise das elaborações contemporâneas sobre os saberes clássicos,

    principalmente em questões de autoridade na produção do conhecimento.

    Como no Projeto Racionalidades Médicas desenvolve-se pesquisas com

    abordagens multidisciplinares ou transdisciplinares, seus resultados usualmente

    geram contribuições para os diversos campos que se sobrepõem compondo o

    campo do pesquisador. Acreditamos que as contribuições geradas pela obra

    poderão ser notadas em três segmentos superpostos. Primeiro, o objetivo central do

    trabalho gera contribuições para o campo específico da Medicina Chinesa. Em

    segundo lugar, consideramos que o estudo de uma Racionalidade Médica que

    desenvolveu no decorrer dos séculos um sistema terapêutico que enfatiza a

    promoção da saúde constitui uma contribuição para o campo da Saúde Coletiva, que

    atualmente valoriza tais concepções como fatores importantes para resolução dos

    problemas de saúde mundiais. Em terceiro lugar há também uma pequena

    contribuição para o campo das Ciências Sociais propriamente ditas, pois a

    abordagem disciplinar envolve reflexões epistemológicas, inseridas no contexto de

    elaboração de novas formas sociais de avaliação e validação de saberes, como

    preconiza Santos (1987) através da categoria epistemologia de transição.

  • 35

    I.8. Questões Metodológicas de um Estudo Teórico sobre Tema Pouco Explorado

    A busca de um método, de um caminho satisfatório para abordagem do objeto,

    constituiu um processo delicado do processo desta pesquisa, pois procuramos

    exercer o maior grau possível de rigor metodológico em um campo pouco explorado

    no ocidente, com pouca experiência acumulada em termos do uso de ferramentas

    de pesquisa adequadas às suas especificidades e também, do acesso a fontes

    documentais concernindo o objeto.

    Cansiderando tais limitações, assumimos a análise de textos como forma

    prioritária de acesso ao campo de investigação. Porém, os textos irão exercer papéis

    distintos e serão procurados em lugares afins com suas funções, as quais

    descrevemos no próximo tópico. Optamos por incluir também uma forma secundária

    de acesso através de entrevistas em profundidade com atores do campo, cuja

    utilidade também será descrita posteriormente.

    Para compreensão de nossas opções metodológicas é necessário expor

    algumas características do campo. Pensamos que ao analisar a noção de GǍN

    YÌNG 感 應, ressonância, e mostrar sua importância na estruturação da dimensão

    cosmológica da Medicina Clássica Chinesa, Barsted (2003) evidenciou um caso

    particular de uma diversidade de noções igualmente relevantes para uma apreensão

    mais completa desta dimensão, e para a compreensão de sua influência na

    formação das outras dimensões da Racionalidade Médica.

    Em geral estas noções não se encontram elaboradas na literatura médica strictu

    sensu, mas sim em textos Daoístas ou Proto-Daoístas, basicamente porque o

    sistema cosmológico no qual se fundamenta a Medicina Chinesa é uma construção

    Daoísta. Desta forma assumimos o pressuposto da impossibilidade de efetuar uma

    análise adequada das noções que estruturam a totalidade da proposta terapêutica

    da Medicina em questão apenas nos textos médicos clássicos.

    Cabe salientar que no contexto cultural de construção do modelo clássico,

    situado na dinastia HÀN 漢, incluindo parte do período final da dinastia ZHŌU 周, a

    medicina e o sacerdócio eram funções ainda em processo de distinção. Portanto,

    não é surpresa que os cânones religiosos contenham sessões inteiras dedicadas à

    medicina, sendo que, foram justamente estas, as sessões rejeitadas no projeto de

    construção da Medicina Tradicional Chinesa.

  • 36

    Portanto, uma questão fundamental na escolha dos textos foi determinar sua

    fidedignidade quanto à definição e elaboração das noções fundamentais da

    terapêutica da Medicina Clássica. Esta tarefa não foi simples, pois o autor não

    dispõe das habilidades necessárias para fazer interpretações diretas de textos

    clássicos chineses, portanto, trata-se na realidade da classificação da qualidade das

    traduções ou interpretações dos clássicos de acordo com padrões propostos por

    acadêmicos especializados20. Apresentamos a seguir uma lista destes textos:

    I.8.1. Traduções ou Interpretações de Clássicos Daoístas

    a) DÀO DÉ JĪNG 道 德 經

    É um dos pilares do Daoísmo, considerado em consenso por acadêmicos do

    campo como uma coletânea. LǍO ZǏ 老 子, seu suposto autor, teria sido apenas uma

    figura mítica. De acordo com Kohn (1992), uma das edições fidedignas do texto foi

    feita por WÁNG BÌ 王 弼 (226-249), membro de uma elite intelectual da dinastia

    HÀN 漢 , tratando-se de uma edição comentada. O mesmo texto recebeu um

    segundo comentário de HÉ SHÀNG GŌNG 河 上 公, supostamente no século III

    d.C., havendo ainda uma edição anterior de YÁN ZÙN 嚴 遵, no século I d.C.

    Enfatizamos os comentários de WÁNG BÌ 王 弼 e HÉ SHÀNG GŌNG 河 上 公, pois

    neles existem referências às práticas de saúde relacionadas às concepções do DÀO

    DÉ JĪNG 道 德 經. Utilizamos as interpretações de Kohn (1992) e Chan (1991) sobre

    estas versões do clássico como fontes fidedignas.

    b) ZHÙANG ZǏ 壯 子

    Outro texto fundamental para o Daoísmo, provavelmente foi compilado na corte

    do príncipe Liu An no início da dinastia HÀN 漢 onde fez parte da coletânea Daoísta

    intitulada HUAI NAN ZI 淮 南 子 (139 AC), o texto de ZHÙANG ZǏ 壯 子 é também

    considerado uma coletânea, escrita em parte pelo próprio. Atualmente a versão

    padrão do texto provém da edição comentada de GUŌ XIÀNG 郭 象 (252-312).

    Utilizamos a intepretação de Kohn (1992) como fonte fidedigna de referência ao

    texto, principalmente as partes que elaboram a cosmologia.

    20 Neste aspecto foi de fundamental importância a disciplina intitulada: “Intensivo de Daoísmo” cursada junto à Universidade de Boston em regime de doutorado sanduíche em junho de 2007. A disciplina foi ministrada pela professora Kohn, L., eminente autoridade no campo de estudos da religião Daoísta. De igual importância foram as sessões de co-orientação conferidas a mim pela professora durante os meses de junho e julho de 2007. A determinação dos padrões de qualidade dos textos decorreu essencialmente da transmissão de conhecimento desta professora.

  • 37

    c) SHÉN XIĀN ZHUÀN 神 仙 傳

    O texto intitulado “Tradições dos divinos imortais” é uma coletânea de biografias

    dos seres intitulados XIĀN 仙, os imortais. Este tipo de texto recebe o nome técnico

    de hagiografia, que seria uma classe especial de biografia, com um caráter

    exagerado ou ficcional sobre a vida de humanos “santificados”. O autor da coletânea

    foi o Daoísta GÉ HÓNG 葛 洪 (283-343 d.C.). Tendo sido um aristocrata pertencente

    a uma família de influência política e religiosa, exerceu importante papel na reunião

    e compilação dos mais importantes textos Daoístas de sua época, diversos deles

    ligados a escola SHÀNG QĪNG 上 清, suprema claridade, criada em parte por seus

    familiares.

    A importância das hagiografias se deve ao fato de conterem descrições das

    práticas dos XIĀN 仙, em sua busca por longevidade e imortalidade. Em momento

    algum julgamos as narrativas no que se refere ao resultado final das práticas, a

    imortalidade. De fato, esta questão não é necessária. Analisamo-as como fontes de

    informações sobre as práticas, as concepções e os valores que fundamentavam o

    campo da saúde naquela época, tendo os XIĀN 仙 como representações do ideal de

    saúde buscado pelos praticantes e terapeutas.

    Utilizamos a tradução comentada de Campany (2002) como referencia.

    d) DÀO ZÀNG 道 藏

    O DÀO ZÀNG 道 藏 é a maior coletânea de textos Daoístas existente. Houve na

    China o hábito periódico de tentar coletar todos os textos Daoístas já escritos na

    biblioteca imperial. As coletâneas mais antigas foram perdidas, porém, chegou até o

    presente o cânone compilado pelas ordens de ZHÚ DÌ 朱 棣 (1360-1424) um

    imperador da dinastia MÍNG 明. De acordo com o índice de Komjathy (2002) o

    cânone possui 1487 textos classificados em diversos assuntos que reproduzimos

    parcialmente a seguir:

    1) Filosofia

    2) Adivinhação e Numerologia

    3) Medicina e Farmacologia

    4) Artes de nutrir a vitalidade (YǍNG SHĒNG 養 生)

    5) Alquimia

    6) História e Geografia Sagrada

  • 38

    7) Cosmogonia e Panteão

    8) Mitologia e Hagiografia

    9) Liturgia

    10) Regras Doutrinais

    Cada um destes temas é apresentado com subclassificações e dividido por

    dinastias. A i