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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação Marcelo Fernandes do Nascimento Elégùn Ritual e Formação Humana Rio de Janeiro 2014

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Faculdade de Educação

Marcelo Fernandes do Nascimento

Elégùn – Ritual e Formação Humana

Rio de Janeiro

2014

Marcelo Fernandes do Nascimento

Elégùn – Ritual e Formação Humana

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.a Dra. Denise Barata

Rio de Janeiro

2014

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ___________________________________ _______________ Assinatura Data

N244 Nascimento, Marcelo Fernandes do. Elégùn: Ritual e Formação Humana / Marcelo Fernandes do

Nascimento. – 2014. 142 f. Orientador: Denise Barata. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Faculdade de Educação. 1. Estudos interculturais – Teses. 2. Identidade social – Teses. 3.

Religião – Aspectos Socais – Teses. I. Barata, Denise. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. III. Título.

es CDU 390:2

Marcelo Fernandes do Nascimento

Elégùn – Ritual e Formação Humana

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em 29 de setembro de 2014.

Banca Examinadora:

_______________________________

Profa Dra Denise Barata (Orientadora)

Faculdade de Educação – UERJ/FFP

_______________________________

Prof. Dr. Salomão Jovino da Silva

Centro Universitário Fundação Santo André

_______________________________

Profa Dra Azoilda Loretto da Trindade Universidade Estácio de Sá _______________________________

Irenilza Oliveira e Oliveira Universidade do Estado da Bahia

Rio de Janeiro

2014

DEDICATÓRIA

Aos meus ancestrais divinizados.

Aos meus mais velhos.

Aos que ainda renascerão.

AGRADECIMENTOS

A Oludumarê, pela vida.

À Oyá, pelo renascimento.

À minha mãe genética, pelos ensinamentos e exemplos de toda a vida.

Às minhas irmãs, pelo companheirismo.

À professora Denise Barata, por acreditar.

Aos professores do PPFH, por sua dedicação.

Aos professores Salomão Jovino da Silva e Azoilda Loretto Trindade,

pela paciência e respeito em minha qualificação.

A todos os elégùn que contribuíram grandiosamente para a realização

deste estudo.

A Jô Cruz, Fátima Aparecida e Sônia Marques, pela amizade e incentivo.

À minha equipe da Gerência de Educação da 8a Coordenadoria

Regional de Educação, pela parceria.

À amiga-irmã Ana d’Oxum, pelo seu colo.

À amiga Sandrinha, por seu otimismo e força.

À amiga Kátia Geni, por ter-me feito acreditar.

Às amigas Diala, Katia Beserra e Magali, pelas preciosas contribuições.

À querida amiga, Selma Maria, por sua disponibilidade e generosidade.

Aos colegas de jornada, Alexandre, Carla, Roberto, Lindinalvo, Giseuda

e Felipe.

E a todos aqueles que, de alguma maneira, contribuíram para a

construção deste trabalho.

(...) O raio de Iansã sou eu Cegando o aço das armas de quem guerreia E o vento de Iansã também sou eu E Santa Bárbara é a santa quem me clareia (...) Eu não conheço rajada de vento mais poderosa que a minha paixão Quando o amor relampeia aqui dentro, vira um corisco esse meu coração Eu sou a casa do raio e do vento Por onde eu passo é zunido, é clarão Porque Iansã desde o meu nascimento, tornou-se a dona do meu coração O raio de Iansã sou eu...

Dorival Caymmi

RESUMO

NASCIMENTO, M. F. Elégùn: Ritual e Formação Humana. 2014. 142 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana). – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Este estudo tem como objetivo central investigar o processo de constituição de identidades ritualístico-culturais dos adeptos dos cultos negros brasileiros a partir dos rituais de iniciação propostos pelas comunidades de cultos. A partir de sua consagração ritualística, os iniciados são denominados elégùn e passam a conviver entre o sagrado, por intermédio da concepção da ancestralidade divinizada, e as relações estabelecidas no devir de sua história. Foi fulcral para este estudo a correlação feita pelos adeptos entre suas práticas ritualísticas e sua formação histórica, social, política e, sobretudo, cultural. Permeado pelas histórias e pelas memórias individuais e, em alguns momentos, coletivas, o estudo entremeia-se aos aportes teóricos de, propondo constante diálogo entre eles. A concepção de que as culturas que se efetivam e se estabelecem mediante relações construídas e vivenciadas no cotidiano são ações profícuas e intensas de identidades próprias cunhou grande parte do referido estudo. Observou-se que a ancestralidade transita pelas diversas esferas vividas pelo elégùn, interagindo, integrando e reelaborando rituais e sujeitos. Palavras-chave: Identidades. Culturas. Ancestralidade Divinizada. Elégùn.

ABSTRACT

NASCIMENTO, M. F. Elégùn: ritual and human formation. 2014. 142 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana). – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

This study is mainly aimed to investigate the process of formation of ritual and cultural identities of supporters of black Brazilian cults, from initiation rituals proposed by communities of worship. From its ritual consecration they are called elégùn and start to live between the sacred, through the design of the deified ancestry, and established relationships in the transformation of its history. Was central to this study the correlation between his supporters made by ritual practices and their historical, social, political and especially cultural training. Permeated by stories and individual memories and moments, the collective, the study intertwines itself to theoretical studies proposing constant dialogue between them. The conception that the cultures that take place and settle through the built and lived in everyday relationships are intense and fruitful actions own identities, coined much of the study. It was observed that the ancestry transit in various spheres exibit elégùn, interacting, integrating and reworking rituals and subjects. Keywords: Identities. Cultures. Divinized ancestry. Elégùn.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Escravos de ganho no Brasil................................................ 22

Figura 2 - Escravos de ganho no Brasil................................................ 22

Figura 3 - Mercado de Escravos........................................................... 25

Figura 4 - Babalorixá Ricardo d’Oxum.................................................. 54

Figura 5 - Babalorixá Ricardo d’Oxum.................................................. 55

Figura 6 - Fiéis na Igreja de Santa Bárbara.......................................... 57

Figura 7 - Gruta dedicada à Oyá........................................................ 57

Figura 8 - Ekedi Vitória de Oyá............................................................. 65

Figura 9 - Ekedi Vitória de Oyá............................................................. 66

Figura 10 - Apresentação de elégùn à comunidade do Ilê Ase Ogun

Iemanjá a ti Oyà.................................................................... 71

Figura 11 - Elégùn de Oxum e Elégùn de Logun Edé............................. 72

Figura 12 - Elégùn de Oxum................................................................... 72

Figura 13 - Roda de Oxum...................................................................... 78

Figura 14 - Elégùn no Ipeté d’Oxum....................................................... 78

Figura 15 - Ialorixá Nilza d’Ogum............................................................ 102

Figura 16 - Oyá da Ialorixá Denise.......................................................... 112

Figura 17 - Oyá nas oferendas da Ekedi Carla de Xangô....................... 113

Figura 18 - Oyá com a Ialorixá Nilza d’Ogum......................................... 113

Figura 19 - Oyá na fogueira de Xangô.................................................... 114

Figura 20 - Oyá e a Ekedi Carla de Xangô............................................. 115

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................. 10

1 DE ONDE ESTAMOS FALANDO.................................................... 17

1.1 Os africanos chegam ao Brasil e com eles os ancestrais

divinizados..................................................................................... 19

1.2 As “Áfricas” no Brasil.................................................................... 27

1.3 As etnias Iorubás............................................................................ 33

1.3.1 A constituição da suposta supremacia Iorubá (nagô) no Brasil....... 35

1.4 Sincretismo ou interações, trocas, acrescentamentos e

possibilidades? ............................................................................. 45

1.4.1 Olhares – lugar de interpretações.................................................... 50

1.4.2 Um legado.................................................................................... 55

2 OS FUNDAMENTOS QUE SUSTENTAM A INICIAÇÃO

SOCIORRITUALÍSTICA................................................................... 61

2.1 As linguagens na constituição das identidades ritualística...... 61

2.1.1 Oruko oriki – o nome que identifica o elégùn................................. 79

2.2 Memória – a mola mestra da iniciaçã........................................... 84

2.3 Identidades – elaborações e movências...................................... 94

3 ELÉGÙN – (RE)INVENÇÕES SOCIORRITUALÍSTICAS................ 105

3.1 O ancestral divinizado e o indivíduo – faces côncava e

convexa em um mesmo ser – o elégùn........................................ 105

3.1.1 Ancestre e descendente – atores sociorritulísticos que se

completam................................................................................ 110

3.2 Êpa hey, Oyá – o ancestral da transformação............................ 115

3.3 Axé – forças necessárias para o elégùn...................................... 121

3.4 Elégùn – devir ritual, social, cultural............................................ 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................. 131

REFERÊNCIAS................................................................................. 134

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INTRODUÇÃO

“Você tem outras vivências que podem ser trazidas para o campo de

pesquisa.” Estas foram as palavras ouvidas por mim da minha orientadora,

professora Doutora Denise Barata, quando da minha aprovação, mas não seleção,

no ano de 2010, para cursar o mestrado nesta mesma instituição. Naquele

momento, eu propunha investigar a utilização ou não de materiais pedagógicos,

destinados às Unidades Escolares da 8a Coordenadoria Regional de Educação

(CRE), que tratavam da história da África e dos afro-descendentes, conforme

orientação da Lei no 10.639/2003.

Ao procurar a professora, ela me disse a afirmativa acima. Confesso que

demorei a me situar em suas palavras. Havia um misto de decepção, comigo

mesmo, e um não entendimento do “aprovado/não selecionado”. O que valia de fato,

naquele instante, era que eu não cursaria o mestrado e, consequentemente, adiaria

a consolidação de uma realização muito importante na minha vida. Recordo que a

professora Denise me explicou que o fato de minha aprovação significava que eu

tinha condições de seguir no campo de pesquisa acadêmica. Suas explicações me

incentivaram a não desistir de meu desejo até então.

No processo seletivo seguinte, lá estava eu propondo pesquisar sobre

“minhas outras vivências”, conforme sugerido pela referida professora: o ritual de

iniciação das comunidades negras brasileiras1 como um processo constitutivo de

identidades próprias. A concretude de tal projeto transportou-me ao ano de 1987

(ano de meu nascimento ritualístico) e a todos os que se seguiram até aquele

momento. Era como se eu estivesse fora de mim, assistindo como espectador a

todas as cenas que passaram diante dos meus olhos.

Debruçar-me sobre minhas vivências significava para mim, naquele instante,

minha atividade profissional – a educação – ou minha escolha religiosa/ritualística. A

primeira se encontrava (e ainda se encontra) em um campo intenso e disputado de

1 Escolho, neste estudo, a terminologia comunidades de cultos negros brasileiros (ou brasileiras), por acreditar que esta é a que melhor se adequa ao objetivo proposto e que, ainda, encontra maior sustentação no/do referencial teórico. Esclareço que essas comunidades também são denominadas: candomblé, casas de santo, terreiro, casa de axé, terreiro de candomblé, dentre outros. Em alguns trechos aparecerão essas terminologias por serem ressignificações negras no Brasil de práticas que aqui chegaram e que aqui se constituíram com a diáspora africana e, ainda, por terem sido citadas pelos iniciados que contribuíram para a efetivação deste estudo.

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hipóteses, e a segunda era trazer para o meu lado acadêmico, ou melhor, para as

minhas identidades acadêmicas uma parte de minha vida que eu acreditava, até

então, que não necessitava de maiores aprofundamentos (e talvez não precisasse

mesmo). Tinha a ilusória percepção de que já estava pronta, estruturada.

Após a euforia da aprovação, delineei o que de fato eu queria abordar sobre

os iniciados nos cultos negros brasileiros. Quais perguntas fazer, o que ler, o que

não deixar de sinalizar; enfim, o que faria parte de minha pesquisa. Aí me deparei

com uma questão muito mais ampla: falar de iniciados seria falar de mim; pesquisar

a iniciação como locus de constituição de sujeitos, significava incluir-me nesse

processo. A angústia que se apresentava pautava-se no tênue limite do iniciado-

pesquisador-iniciado. Como separar os dois? (Se é que isso seria possível!) Não

queria trazer somente as minhas percepções, e deixo claro, aqui, que o “somente”

não significa que elas não sejam de uma importância ímpar, mas precisava assumir,

também, minhas identidades de pesquisador e precisaria, em alguns momentos,

ocupar exclusivamente esse lugar para poder perceber se minhas hipóteses faziam

sentido ou não.

Diante desse impasse, estava ali eu – iniciado e pesquisador – trilhando

minhas escolhas e revisitando minhas histórias enquanto iniciado há 27 anos: os

caminhos percorridos, as vivências e as experiências, os encontros e os

desencontros dos quais tenho feito parte, memórias de anos de rodas de conversa

com meus pares, de discussões e embates após rituais, conversas que vararam

madrugadas a fio após as rodas ritualísticas, leituras realizadas e, principalmente, as

transformações ocorridas em mim, após ter-me consagrado em elégùn2. Essas eram

algumas pistas que se apresentaram naquele momento para que eu desse início à

minha pesquisa. Esclareço que, em grande parte da pesquisa, situo-me no lugar do

pesquisador, no entanto há momentos que, seduzido pelo assunto, ocupo o lugar

posto em minha vida, ou seja, o de iniciado. Vale destacar, ainda, que, na própria

escrita existam ambos (elégùn e pesquisador), pois, na maior parte deste estudo, há

2 Verger (2002) cita que elégùn é aquele que pode ser “montado” (gùn) pelo ancestral divinizado/orixá; possuído por ele. Para as comunidades de cultos negros brasileiros, elégùn é aquele que é iniciado nos rituais, iniciado em orixá. Ele é o veículo que permite a volta, o retorno, a vinda do ancestre à terra para ser ritualizado nos cultos negros. Vale esclarecer que, em muitas comunidades de cultos, o elégùn também é conhecido pelo nome de iaô. O mais importante, para este estudo, é o entendimento da relação constituída entre o indivíduo e o(s) seu(s) ancestral(is) divinizado(s) como constante ritual e formação humana.

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a delimitação da primeira pessoa do plural (nós), mas há, também, a primeira

pessoa do singular (eu).

Bem, acredito que dadas as explicações iniciais de como nasce o objeto de

estudo proposto desta pesquisa, faz-se necessário apresentar minhas escolhas

teórico-metodológicas para que possa, assim, enquanto pesquisador de minhas

práticas ritualísticas e, também, das práticas ritualísticas de meus pares, situá-lo

epistemologicamente.

Inicialmente, a construção do referencial teórico se deu a partir de algumas

discussões com o grupo de pesquisa liderado por minha orientadora – “Laboratório

de Oralidade e Memória Africana e da Diáspora” – e, ainda, de obras voltadas para

as questões dos cultos de matrizes africanas no Brasil. A partir daí, percebi que

precisaria delimitar com precisão os aportes teóricos que me auxiliariam a sustentar

e, principalmente, garantir a validade das hipóteses estabelecidas em meu projeto

de pesquisa.

Esclareço que não tinha (e continuo a não ter) a preocupação com os

aspectos quantitativos sobre meu objeto e, sim, com os qualitativos. A priori minha

intenção pautava-se no fato de como as influências ritualísticas, constituídas a partir

do processo iniciático interferiam nas práticas cotidianas dos indivíduos/elégùn, e,

ainda, se os seus saberes e fazeres ritualísticos e ritualizados, encontravam terreno

fértil também em suas ações diárias. Esta era a grande questão que se colocou para

mim.

Deixo claro que, para trilhar este caminho, escolhi a ancestral divinizada Oyá,

e nesta opção há um sentido fundamental e próprio: sou seu descendente, sou seu

elégùn. Como já citei, há 27 anos me iniciei nos cultos negros brasileiros. Oyá, sem

a menor cerimônia, apresentou-se rapidamente como minha ancestral e, através dos

movimentos propostos pelos rituais, apossou-se de mim; através do renascimento

simbólico apregoado nas comunidades de cultos, ela renasceu em mim. Dessa

maneira, tê-la nessa caminhada significa vivenciar/experimentar novas

possibilidades, novas configurações ritualísticas.

Nessa perspectiva, buscamos3 ter claro o que seria a abordagem qualitativa

que se colocava em questão. Encontramos em Minayo (1996, p. 21-22) que a

pesquisa qualitativa é aquela que possibilita a valorização do “[...] universo de

3 A partir de agora retomaremos os verbos e os pronomes na primeira pessoa do plural.

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significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a

um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não

podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. Nas palavras da referida

autora, percebemos o suporte para prosseguir com a abordagem pretendida.

Com o objeto e a abordagem definidos, retomamos a elaboração (e, muitas

vezes, reelaboração) dos referenciais teóricos para dialogarem com histórias,

memórias, observações, entrevistas, registros fotográficos, entre outros. Nesse

âmbito é fundamental perceber que:

[...] o pesquisador deve estar sempre atento à acuidade e veracidade das informações que vai obtendo, ou melhor, construindo. Que ele coloque nessa construção toda a sua inteligência, habilidade técnica e uma dose de paixão para temperar (e manter a têmpera!). Mas que cerque o seu trabalho com o maior cuidado e exigência, para merecer a confiança dos que necessitam dos seus resultados (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 90).

Com base nessa compreensão é que diversos procedimentos

utilizados/construídos durante a investigação foram confrontados no decorrer de

todo o processo de modo a garantir a validade de uma pesquisa de cunho

qualitativo. Enfatizamos que a preocupação com o processo foi constante, pois, era

ele que nos propiciaria ou não a validade deste estudo.

O elégún, ator principal desta investigação, constitui-se, conforme

mencionado, a partir dos rituais iniciáticos das comunidades de cultos negros

brasileiras. Ele é agente ritualístico e o principal canal que vincula os ancestrais

divinizados/orixá4 ao aiê5. No entanto, concomitantemente aos espaços das

comunidades de cultos, o mundo com suas diversidades também é locus de suas

interferências enquanto agente social e cultural. Entre os contextos dos rituais

iniciáticos e os contextos sociais, históricos, políticos e culturais que abarcam elégùn

e indivíduo, a pergunta que se apresentava era: o ritual de iniciação constitui

identidades exclusivas ao âmbito ritualístico? A partir dessa principal, outras se

apresentavam: como é que o elégùn, agente cultural a partir do ritual de iniciação,

4 Este estudo pauta-se na concepção do orixá enquanto ancestral divinizado, conforme apresentado por Santos (1986), Salami (1997) e Verger (2000). Desse modo, apregoamos a ideia de que eles têm suas descendências nas terras por onde as etnias africanas fixaram-se a partir do século XVI. Assim, a escolha de utilização será do conceito de ancestral divinizado desenvolvido pelos referidos autores.

5 Aiê na língua iorubá significa o espaço visível, ou seja, a Terra. Orum significa o espaço invisível. De acordo com Sodré, são planos distintos mas interpenetrados (SODRÉ, 2005, p. 91).

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incorpora as identidades do seu ancestral divinizado? As interferências do elégùn

(enquanto sujeito social) no mundo perpassam por suas concepções ritualísticas?

As características/traços que vinculam ancestre divinizado e indivíduo ultrapassam

os limites das comunidades de cultos?

O caminho construído na busca de respostas para esses questionamentos

apresenta algumas características de uma pesquisa etnográfica por concentrar seu

foco nas histórias de vida (e vividas) e nas ações dos elégùn/indivíduos. Logo, a

interação e a dinâmica, propostas por este estudo, acarretam o reconhecimento de

que ele (o elégùn) constitui-se, principalmente, nas comunidades de cultos.

Assim, este estudo estrutura-se em três capítulos que buscam manter a

harmonia necessária para a sua compreensão e efetivação. Contudo, vale salientar

que o primeiro capítulo – De onde estamos falando – aprofundou-se nas questões

que esclarecem ou, até mesmo poderíamos dizer, justificam a genealogia dos cultos

negros em territórios brasileiros para o referido estudo. Dessa maneira, a “grande

diáspora negra”6 com a sua diversidade de etnias aparece como o ponto de partida

para a reelaboração e reinvenção dos processos culturais que se desenvolveram

nos territórios do Brasil e do Novo Mundo.

Diante desse panorama, as questões relacionadas com os bantos e os

iorubás serão as mais aprofundadas no referido capítulo. Enfatizamos que parte de

referenciais teóricos que dialogam nele destoam de autores estudados e

referendados por minha orientadora em seu Laboratório de Pesquisas (Prandi,

Bastide, Rodrigues), no entanto insistimos na utilização desses referenciais por

acreditarmos que, no que diz respeito aos estudos das religiões de matrizes

africanas, a produção desses autores é significativa.

Cabe ressaltar que, em contrapartida, esse mesmo capítulo intercruza-se com

as abordagens de Karasch (2000), Sodré (2002, 2005), Slenes (2007), Capone

(2009), Heywood (2010), Vansina (2010) e Barata (2012), corroborando, assim, com

os autores que permeiam as discussões lideradas pela referida orientadora7. Desse

modo, o seu desfecho estrutura-se nas concepções sobre cultura apresentados por

6 Esta é uma categoria apresentada e discutida por Gilroy (2001) e por Muniz Sodré (2005), um dos principais referenciais teóricos do estudo que se apresenta. Esclarecemos que sua utilização ocorrerá por toda a pesquisa.

7 Salientamos que o primeiro capítulo apresenta uma abordagem diferenciada dos capítulos que o sucedem. Há nele uma preocupação em situar as culturas e as dinâmicas negras que migraram para o Novo Mundo a partir do século XVI.

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Sodré (2005) e Barata (2012), o que possibilita a interação com o objetivo central

apresentado.

Nesse contexto, o segundo capítulo – Os fundamentos que sustentam a

iniciação ritualística – apresenta os aportes utilizados nos rituais iniciáticos: as

linguagens (verbais e não verbais) com sua gama de possibilidades, as memórias e

as identidades. Por intermédio desses aportes, os diálogos que se desenvolvem, em

sua grande maioria, contam com as contribuições de Zumthor (1993, 1997), Hall

(1997), Ong (1998), Verger (2000, 2002), Foucault (1969, 1995), Hampate Bâ (1982,

2010), Sodré (2005), Gondar (2005), Barata (2012) e, ainda, com as contribuições

dos elégùn8 que participaram direta e indiretamente deste estudo.

É nesse capítulo que o desenvolvimento da pesquisa direciona-se para o seu

objeto central. A iniciação é abordada como um grande processo que abarca

individualidades, individuações e coletividades. Por intermédio dela comunicam-se

ancestral divinizado/orixá e seu descendente, que, a partir dos rituais, torna-se seu

elégùn. Nessa perspectiva, nossa dinâmica9 com os iniciados seguiu um roteiro de

perguntas no qual eles puderam colocar seus referenciais pessoais (enquanto

elégùn), impressões e visões sobre os rituais iniciáticos, ancestral divinizado e suas

atuações sociorritualísticas. Vale reforçar que, concomitantemente às entrevistas,

revisitamos conversas e debates que aconteceram em algumas das comunidades

de cultos dos Babalorixás e Ialorixás que compõem este estudo.

O terceiro capítulo, intitulado Elégùn – devir ritual, social, cultural, prossegue

com os diálogos com os referenciais teóricos e os elégùn, com o objetivo de ampliar

e, em alguns momentos, reforçar os fundamentos constitutivos das identidades que

se coadunam, ou seja, indivíduo, ancestral divinizado e comunidade de cultos.

8 Apresentamos, por ordem de iniciação nos cultos negros brasileiros, os elégùn que contribuíram nesta pesquisa: Babalaô Ifafunké, Babalorixá Fernando d’Oxossi (in memorian), Ogã Claudio d’Omulu, Ialorixá Nilza d’Ogum, Ialorixá Leila d’Oyá, Ialorixá Neusa d’Oyá, Ekedi Valníria d’Oyá, Ialorixá Ana d’Oxum, Ialorixá Denise d’Oyá, Ialorixá Ana de Xangô, Ialorixá Daniele d’Oyá, Ekedi Daniele d’Iemanjá, Ialorixá Claudia d’Obatalá, Ialorixá Amanda d’Oxum, Ekedi Deise d’Ossanhe, Ekedi Carla de Xangô, Ogã Ulisses d’Omulu, Ialorixá Sandra d’Oyá (in memorian), Babalorixá Claudio d’Iemanjá, Ialorixá Marcia d’Omulu, Ialorixá Iva d’Oxum, Babalorixá Ricardo d’Oxum, Ogã Preto d’Omulu, Ekedi Luzia d’Ogum, Ialorixá Paula d’Oyá, Ekedi Juliana d’Oyá, Ogã Joelson de Logun Edé, Ekedi Rita d’Oxum, Ialorixá Dolores d’Oyá, Ekedi Vitória de Oyá, Karen d’Oxum, Marcia d’Oyá, Camila d’Oyá, Vera d’Oyá, Patrícia d’Oyá, Carmem d’Oyá e Pedro d’Oyá.

9 Esclarecemos que a dinâmica da pesquisa de campo se configurou por entrevistas, conversas, discussões, debates, que transcorreram no período proposto pelo curso de mestrado, mas há, ainda, as contribuições de anos de rodas conversas e investigações informais com os elégùn que participaram deste estudo.

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Desse modo, retrata, mediante histórias, lembranças e memórias – contadas,

recontadas, cantadas, dançadas –, os sentidos ritualizados dos iniciados.

Cabe salientar que, de acordo com Sodré (2005), os sentidos construídos

pelos indivíduos por meio de suas vivências, das relações estabelecidas, são

elementos repletos de culturas próprias e, desse modo, cheios de significados.

Percebemos, assim, que o elégùn é arraigado de sentidos/significados que se

presentificam por intermédio dos rituais.

Nesse viés, a ancestral Oyá assume o protagonismo neste estudo e

estabelece, através de seus descendentes e das relações que se intercruzam, as

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1 DE ONDE ESTAMOS FALANDO

Falar da África que existe em mim não tem sido tarefa fácil. A cada dia que

passa ela parece aumentar, dilatar, ampliar... transformar-se. Nos meus primeiros

anos de escolaridade, ela era a África dos livros, dos mapas e do globo terrestre. A

abordagem dada pelos meus professores fazia com que ela se tornasse um lugar

comum ou fascinante. Tudo dependia, de fato, dos seus próprios conhecimentos

sobre esse continente tão plural. Das suas intervenções e intenções pedagógicas.

Infelizmente, em sua maioria, tais conhecimentos pautavam-se e intensificavam-se

na escravidão, como se esta fosse o pilar de sustentação da história africana; ou,

ainda, alicerçavam seus discursos em um folclore exacerbado e descontextualizado.

Enfim, inicialmente a África me foi apresentada de maneira equivocada. Esclareço

que não desconsidero que a escravidão sublinhou uma parte da história africana:

sangrou, feriu, sequestrou, dilacerou; mas, por ironia, também expandiu saberes

milenares e uma cultura que não tem espaço para o singular.

A África, que transversa esse estudo, foi reconstruída em solos brasileiros.

Reconstruída pelas mãos de cada ancestral que para cá migrou. Acredito que era

como se ela tivesse sido transplantada em suas memórias e corpos, e, a partir

deles, se fazia presente em cada canto exaltado; em cada comunidade de cultos;

em cada sabor; em cada ritual; em cada cheiro; em cada cor; em cada trançado de

cabelos; em cada movimento; enfim, em cada relacionamento tecido dia a dia por

eles.

Mas de qual África as pessoas negras descendem? E eu? Mesmo depois que cresci, não descobri. Mas aprendi que para o Brasil vieram povos principalmente de alguns pontos africanos. Ou melhor, de portos africanos. Isso há muito tempo. E, se é de lá que vieram muitas pessoas negras, o meu passado deve ter vindo junto (...). Cavalos foram cercando o lugar, com ladrões armados até os dentes. Caçado, ele foi amarrado junto a outros homens também capturados por outros caminhos. Foi levado embora. Depois disso, pensou em muitos jeitos de fugir daquela situação. Teve que lutar muito. Conseguiu escapar muitas vezes, até que um dia... Acordou na Bahia. Mas eram centenas de etnias, e bem diferentes entre si. Esse ntus, quer dizer seres humanos. Antes de virem para cá construíram suas casas, brincavam, estudavam, aprendiam, nadavam nos seus rios, dançavam ao som de seus instrumentos musicais, faziam suas panelas e suas comidas, seus penteados, seus enfeites, seus filhos e suas famílias. (LIMA, 2005, p. 30-31).

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Nesse sentido, penso que para abordar o tema central desse estudo seja

oportuno reportar-nos ao contexto histórico-cultural em que os cultos negros

praticados pelos africanos aportam nessas terras e no devir se reconstituem,

ressignificam-se, reelaboram-se e passam a ser, também, cultos negros brasileiros,

constituindo descendentes e expandindo-se pouco a pouco. É, na perspectiva de

negociações, de possibilidades e acordos culturais que a “grande diáspora negra”10

para o Novo Mundo, incluindo o Brasil, será abordada. É no entendimento de que

essa migração forçada, que perdurou quase quatro séculos, disseminou uma

variedade de práticas culturais contidas nos milhões de corpos que transitaram pelo

Atlântico que focaremos o presente estudo. Todavia, é importante salientar que tais

práticas constituíram-se culturais por serem, indiscutivelmente, humanas. Logo, são

arraigadas de traços afetivos e repletas de sentimentos de pertença.

Acreditamos, assim, que os cultos à ancestralidade divinizada estão inseridos

nas ações socioculturais dos diferentes povos africanos que atuaram ativamente na

formação cultural brasileira. Mais que práticas ritualísticas, eles significavam práticas

sociais que possibilitavam o engendramento de seus fazeres, seu sentir e existir. É

na concepção de vínculo hereditário que o ancestral divinizado se insere na trama

ritualístico-social dos africanos (SANTOS, 1986) e, por conseguinte, de seus

descendentes em terras brasileiras. Desse modo, a ancestralidade propõe uma

identificação própria pautada na tradição, estabelecendo uma continuidade entre os

ancestrais divinizados e seus herdeiros; continuidade essa que que se manifesta

nos ritos que compõem os cultos negros, sempre reiterados, mas com lugar para

variações (como no eterno retorno tratado por Nietzsche). A ancestralidade assenta-

se na terra-mãe, ou seja, em solos africanos. No caso dos negros da diáspora, ela

encontrou terreno fértil nos espaços de cultos (como as irmandades, as

comunidades de terreiro, casas de candomblé, nas escolas de samba, nas folias de

reis etc.), que se tornaram depositários das memórias e das simbologias míticas.

Vale pontuar que a ancestralidade foi a possibilidade de pertença identitária

para os negros africanos após a desterritorialização forçosa. Ela foi fundamental

para que os descendentes da diáspora negra recriassem uma linhagem para a

transmissão de histórias míticas e, também, as vividas pelos que lhes antecederam.

É Bâ (2010, p. 211) quem nos diz que “assim, todo africano tem um pouco de

10

Cf. Gilroy, 2001 e Sodré, 2005.

19

genealogista e é capaz de remontar a um passado distante em sua própria

linhagem”. Foi na perspectiva de continuidade simbólica que eles desenvolveram,

aqui, possibilidades de preservação de suas práticas e histórias. Tal linhagem, após

a reelaboração forçosa, foi providenciada, sobretudo, pelas comunidades de cultos

enquanto espaço ritualístico.

É no contexto da ancestralidade divinizada que Oyá11 assume papel de

destaque no referido estudo. Segundo os Babalorixás e Ialorixás (o mesmo que pais

e mães de santo), ela é um dos elos da corrente simbólica que une a África e o

Brasil e é, também, um agente ritualístico-social constitutivo de identidades. Está

inserida nos saberes e na dinâmica das culturas de arkhé, fazendo parte das suas

ressignificações e reelaborações. Oyá permeia as histórias vividas por seus

descendentes nas adversidades impostas pela diáspora. Cabe destacar que é no

reconhecimento/identificação da sua presença e atuação em seus elégùn12, ou seja,

nas suas práticas culturais (ritualísticas, religiosas, sociais, políticas) que se dão no

dia a dia, que há a continuidade símbólica apregoada nos cultos negros e, nesse

contexto, o vínculo com a ancestralidade negra.

1.1 Os africanos chegam ao Brasil e com eles os ancestrais divinizados

Ao longo de quase quatro séculos a nação brasileira se formou com a

contribuição dos negros trazidos forçosamente das mais diferentes partes do

continente africano (CONRAD, 1985, p. 34-43). Não se tratava de um só povo,

mas de uma pluralidade de etnias, nações, línguas, deuses, visões de mundo,

rituais, culturas. Povos arraigados de práticas próprias e tradições; povos que

atravessaram o Atlântico diante do esfacelamento dos laços familiares,

comunitários, sociais, porém amparados por seus ancestrais. Sodré (2002) utiliza

11

Ancestral divinizada; deusa do rio Níger para os nagôs; na cultura ritualística banto é conhecida como Matamba. Seus elementos de força vital são o ar e o fogo; senhora dos raios, tempestades e ventanias; é responsável pelas transformações, segundo os Babalorixás e Ialorixás dos cultos negros brasileiros. Segundo Verger (2002), é o único ancestral capaz de enfrentar os egúngún (ancestrais não divinizados; antepassados não divinizados).

12

Denominação utilizada para representar aquele/a que passou pela iniciação ritualística; que incorpora o ancestral divinizado; para os seguidores dos cultos negros “feito em orixá”.

20

o termo grego arkhé para caracterizar as culturas que, tais como as negras,

fundam-se na vivência e no reconhecimento da ancestralidade. Segundo esse

autor, as culturas de arkhé cultuam a origem, mas não com a preocupação

genealógica da história, e sim como o “eterno impulso inaugural da força de

continuidade do grupo. A arkhé está no passado e no futuro, é tanto origem como

destino” (SODRÉ, 2002, p. 153). Nessa perspectiva, os africanos escravizados

que embarcaram nos portos das nações africanas em uma migração forçosa para

o Novo Mundo trouxeram com eles o ir e vir de suas arkhés, de suas tradições.

Durante o período em que a escravidão vigorou, os negros provinham de

onde fosse mais fácil capturá-los e mais rentoso embarcá-los. O nefasto comércio

dependia, na África, das próprias condições locais das populações nativas,

regulado por suas guerras, rivalidades intertribais e domínios imperiais

(JOHNSON, 1921 apud PRANDI, 2000). De acordo com a historiografia, as

rivalidades tribais e étnicas existentes no continente africano propiciaram e

facilitaram a comercialização de africanos para o trabalho escravo nos países

europeus e em suas respectivas colônias. No entanto, cabe-nos esclarecer que,

somente tal ação não justificaria a quantidade de africanos que tiveram a

escravidão imposta por quase quatro séculos.

No Brasil, os africanos foram introduzidos nas diferentes capitanias e

províncias, em um fluxo que correspondeu, ponto por ponto, à própria história da

economia brasileira. A prosperidade da economia estava atrelada a uma intensa e

constante demanda de mão de obra escrava. Entretanto, quanto mais utilização

da força de trabalho dos homens, das mulheres e das crianças africanas, mais se

impregnava nos cantos desse país suas marcas e seus traços e,

consequentemente, as diferenças inatas desses milhões de seres humanos.

Nesse contexto, nota-se que o esforço negro africano sustentou as estruturas

propostas pelas políticas colonialistas. Contudo, concomitantemente às

imposições europeias, de igual modo, suas culturas também alicerçaram e

interferiram na constituição da população brasileira. Suas mãos, calejadas pela

labuta diária, construíram, mesmo tão distante de suas origens geográficas e

afetivas, a possibilidade de existência e permanência de suas vivências. Para

esses homens e mulheres, as vivências não se apartavam de seus ancestrais,

assim como não se desarticulavam de seus ensinamentos.

21

Segundo Oliveira (1996), a origem dos africanos trazidos para cá durante o

regime escravocrata dependia também, e especialmente, de acordos e tratados

realizados entre Portugal, Brasil e potências europeias, sobretudo a Inglaterra. A

África Subsaariana, também como celeiro de mão de obra, era evidentemente

loteada entre os países coloniais escravistas, e a origem do tráfico mudou muito,

nos quase quatro séculos, em função de cambiantes interesses das potências

envolvidas, suas disputas, guerras e tratados. Logo, o tráfico foi se reestruturando

conforme as mudanças das rotas de negociação e das potências envolvidas.

Ao chegar ao Brasil, o destino dos negros africanos que sobreviviam à

travessia do Atlântico era, na maioria das vezes, negociado no próprio porto, em

leilões. Os traficantes sempre traziam alguns escravos a mais, em número

superior às encomendas para serem vendidos nas feiras ou ainda nos leilões. Os

negros desembarcavam quase sem roupas, com apenas uma faixa de tecido

cobrindo uma parte do corpo. Os cabelos e a barba eram cortados, determinava-

se que tomassem um banho, recebiam algumas toscas roupas de tecido grosseiro

para que melhorassem a aparência e pudessem alcançar um maior preço no

mercado (MACEDO, 1974). Os escravizados que apresentassem um quadro de

debilidade em virtude dos maus-tratos da viagem e das doenças adquiridas na

travessia do Atlântico eram isolados e recebiam alguns cuidados, para mais tarde,

serem oferecidos aos compradores (MACEDO, 1974, p.32). Pouco tempo depois,

já estavam trabalhando para seus “donos” nos engenhos de açúcar, nas

plantações de algodão, nas plantações de café, na mineração ou nos serviços

domésticos. Alguns deles trabalhavam nas cidades como “escravos de ganho”,

realizando trabalhos temporários em troca de pagamento, que era revertido,

parcial ou totalmente, para o proprietário do escravizado. Durante o período em

que a escravidão vigorou, as funções exercidas pelo escravizado no ganho

sofreram transformações, principalmente a partir do século XIX. Nesse período,

juntaram-se a eles negros libertos em ocupações de carregadores, pequenos

mercadores, barqueiros de cabotagem, produtores de víveres, artesãos de todas

as artes, amas e empregados domésticos, além de serviços de enfermagem,

encarregados de serviços públicos etc.13.

13

Cf. Soares, 2007, p. 121.

22

Figura 1 – Escravos no Mercado do Valongo.

Fonte: Escravos de ganho no Brasil14

Figura 2 - Escravos de ganho no Brasil15

Fonte: Negros de ganho, negras de tabuleiro e amas de leite: as múltiplas facetas do trabalho escravo no Brasil (séculos XVI – XIX).

Esses cativos desenvolviam as mais diversas modalidades de comércio

ambulante; transportavam, sozinhos ou em grupos, os mais variados tipos de

carga; transportavam mercadorias dos comerciantes que não tinham seu próprio

transporte; carregavam o transporte de pessoas em seus ombros pelas ruas da

14

Disponível no site: http://www.mundoeducacao.com.br/historiadobrasil/os-diferentes-tipos-escravo-no-brasil.htm

15

Disponível no site: http://www.brasilescola.com/historiab/formas-trabalho-escravo-no-brasil.htm

23

cidade; transportavam a carne de bois abatidos nos matadouros em suas cabeças

até aos açougues; carregavam em suas cabeças barris com dejetos das

residências, que, à noite, eram jogados ao mar (esta considerada a mais

degradante atividade em que os escravizados de ganho eram utilizados16); além

de fazerem serviços de barbeiro, cirurgiões e pescadores (SOARES, 2007).

Devido às maiores possibilidades de circulação e de ganho, a vida nas

cidades era preferível para os escravizados. O comércio ambulante apresentava

uma grande variedade e quase todas as mercadorias eram vendidas por

escravizados de ganho, existindo ainda aqueles cativos que ficavam com seus

cestos, tabuleiros ou em pequenas barracas improvisadas pelas praças, praias e

portas de igreja (SOARES, 2007p. 125). Diante desse cenário, eles podiam juntar

algum dinheiro com as tarefas que realizavam e, raramente, conseguiam comprar

sua liberdade. Como assinalou Soares (2007, p. 282), “pode-se dizer que os

escravos de ganho [...], que desenvolviam atividades com remuneração monetária,

eram praticamente os únicos que tinham condições de comprar a sua alforria,

indenizando monetariamente aos senhores”. No entanto, o autor alega que não

devemos exagerar sobre a compra de alforrias, pois, obrigados a pagar as

elevadas quantias fixadas por seus senhores, a grande maioria dos africanos não

conseguia nem mesmo o dinheiro suficiente para uma alimentação adequada

(SOARES, 2007). No anseio da tão sonhada liberdade, várias foram as estratégias

utilizadas pelos escravizados para conquistar a carta de alforria. Ainda segundo

Soares (2007), alguns escravizados, não possuindo todo o dinheiro exigido pelos

senhores para libertá-los, chegaram a recorrer a empréstimos concedidos por

amigos livres ou libertos, e assim completavam as quantias necessárias para o

resgate da sua liberdade. Por outro lado, não foram raros os negros que, tendo

acumulado o dinheiro suficiente para a compra da alforria, viram suas ofertas

serem terminantemente recusadas por seus senhores (SOARES, 2007). De

acordo com Rugendas (apud SOARES 2007, p. 283), “os escravos que tinham

suas ofertas de compra de alforria rejeitadas pelos senhores acabavam por se

tornar escravos rebeldes e aproveitavam a primeira oportunidade para fugir,

quando não recorriam à alternativa última do suicídio”. O autor destaca, ainda, que

16

Os escravos encarregados de despejar os barris com dejetos, eram denominados de “tigres” pela população, numa alusão à necessidade de se evitá-los, tal como as feras homônimas, quando alguém os encontrava pelo caminho (cf. Soares, 2007, p. 136)

24

alguns escravizados de ganho mais afortunados não só conseguiram pagar as

quantias fixadas pelos seus senhores e garantir a sua sobrevivência, como

também chegaram a ganhar dinheiro extra que procuraram guardar e empregar na

formação de um pecúlio para a compra de alforrias (SOARES, 2007). Vale

ressaltar que, nessas negociações, as irmandades e associações tiveram papel

fundamental.

No Rio de Janeiro, a comercialização de escravizados era realizada no

mercado localizado no Valongo, próximo da atual Praça Mauá. Karasch (2000, p.

79) aponta o referido mercado como uma das áreas mais frequentadas da cidade.

De acordo com a autora, além de escravos, comerciantes, vendedores e

compradores, passavam por ali muitos viajantes estrangeiros, que faziam dele

parte do circuito turístico do século XIX. À porta do mercado, traficantes e

negociadores colocavam um cartaz no qual se anunciava “Negros fortes, bons e

moços, chegados na última nau” (MACEDO, 1974). A chegada dos compradores,

segundo Macedo, fazia parte de um “ritual” considerado inconcebível nos dias de

hoje; os músculos dos negros eram apalpados, tinham os lábios levantados para o

exame dos dentes e eram obrigados a saltar, dançar, para que fosse examinado

seu vigor físico. Todo esse “ritual” exigia experiência do comprador. Havia, ainda,

nesses exames “a prova do suor”: o comprador passava o dedo pelo corpo do

escravo exposto e lambia para sentir se era suor verdadeiro ou efeito de algum

óleo para tornar a pele brilhante, uma vez que o suor na pele do escravo

representava bom estado de saúde. Sua barriga era apertada para detectar dor

caso manifestasse alguma doença, seu peito era escutado, completando, assim, a

“bateria de exames”. O autor nos fala que

quando se tratava de mulheres, os seios eram bem examinados, pois poderia vir a servir como ama de leite e bem assim as nádegas. Os compradores tinham interesse em negras do ‘traseiro grande’, bem servido de carnes, porque isso era – diziam – indício de força, saúde e qualidade de boa parideira, capaz de dar novos escravos ao senhor (MACEDO, 1974, p. 80).

25

Figura 3 - Mercado Dos Escravos.

Na pintura Mercado na Rua do Valongo, o pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848) dá a sua versão de como era o local, no Rio de Janeiro, onde africanos recém- chegados de seu continente eram colocados à venda como escravos

17

Cabe ressaltar que o mercado do Valongo era constituído de “residências”. A

família do negociante de africanos morava nos andares superiores e o térreo

abrigava os negros. Nos períodos de intensa importação, a realidade imposta aos

africanos ultrapassava as fronteiras da desumanidade – o confinamento deles era

em ambientes fechados (em muitos deles as janelas chegaram a ser “recobertas”

com tijolos, o que impossibilitava a entrada da luz e alguma ventilação). Karasch

(2000) relata, em sua obra, a descrição do viajante C. Brand, que visitara o Valongo

no início do século XIX. Segundo ela, assim descrevera o turista:

a primeira loja de carnes em que entramos continha cerca de trezentas crianças, de ambos os sexos; o mais velho poderia ter doze ou treze anos e o mais novo, não mais de seis ou sete anos. Os coitadinhos estavam todos agachados em um imenso armazém, meninas de um lado, meninos

17

Disponível no site: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-2/africanos-foram-escravizados-brasil-646493.shtml

26

do outro, para melhor inspeção dos compradores; tudo o que vestiam era um avental xadrez azul e branco amarrado na cintura; [...] O cheiro e o calor da sala eram muito opressivos e repugnantes. Tendo meu termômetro de bolso comigo, observei que atingia 33°C. Era então inverno (junho); como eles passam a noite no verão, quando ficam fechados , não sei, pois nessa sala vivem e dormem, no chão, como gado em todos os aspectos (KARASCH, 2000, p. 76).

A autora reforça, ainda, que “quer mantivessem os escravos em pátios

abertos, quer em armazéns fechados, os comerciantes do Valongo não

proporcionavam abrigo confortável para a recuperação dos africanos recém-

chegados” (KARASCH, 2000, p. 77).

Nesse contexto, a negociação (venda/compra) dos africanos era definida

pelo sexo, pela idade e pela especialização, mas dependia, sobretudo, de sua

condição física. O destino dessas “peças” estava nas mãos dos senhores, que

podiam alugar, vender, hipotecar, segurar ou penhorar suas novas propriedades.

O preço dos africanos variou muito durante os quase quatro séculos de sua

comercialização. Após o final do tráfico, em 1850, o valor dobrou, dificultando sua

utilização. Um africano homem e adulto podia valer mais do que uma casa ou três

toneladas de café (MOURA, 1996). A abolição do tráfico de escravos para o Brasil,

em 1850, foi consequência das pressões exercidas pela Inglaterra, que decretara

a proibição do tráfico em 25 de março de 1807. O Congresso de Viena de 1815

havia ratificado essa decisão, assinada pelo Rei de Portugal, proibindo o tráfico de

escravos provenientes de todos os portos da costa africana situados ao norte do

Equador. Todavia, ao contrário da indústria inglesa nascente, que buscava criar

novos mercados para os seus produtos, a economia brasileira, que dependia

diretamente do trabalho escravo, tinha todo o interesse em prosseguir com o

tráfico negreiro com a África (CAPONE, 2009, p. 218-219).

Destaca-se, ainda, que segundo Soares (2007, p. 124), nesse período, a

venda maciça dos africanos do Rio de Janeiro para as áreas cafeeiras reduziu o

contingente de escravizados de ganho da cidade. O autor cita que não existem

números exatos para avaliarmos a dimensão dessa redução, no entanto muitos

pesquisadores afirmam que ela foi muito grande, porém não impediu a circulação

e a atuação destes nas ruas do Rio de Janeiro até as vésperas da abolição da

escravatura.

Até aqui abordamos a atmosfera que envolvia os africanos que migraram

para o Brasil no período da diáspora. Lutas e adaptações históricas, políticas,

27

sociais, econômicas e culturais forçosas foram constantes durante os séculos em

que vigorou o comércio de milhares de homens e mulheres africanos. Foram as

adaptações das suas práticas desterritorializadas que não permitiram a tentativa

de apagamento das suas vivências e de seus sentidos, que não permitiram o

extermínio de suas memórias. Foi por meio de analogias possíveis18, que a

distância da terra-mãe parecia menor, menos sofrida; foram as constantes

negociações culturais que possibilitaram a sobrevivência de ritos, cultos e

contornos dos povos africanos e seus descendentes. As reelaborações de

algumas práticas salientavam que eles foram retirados da África, mas a África

nunca fora retirada deles. E isso foi o divisor de águas para que suas

organizações culturais se reestruturassem no devir histórico presente aqui e,

mediante o que Sodré (2005, p. 92) denominou “jogo duplo”, negociassem com as

ambiguidades.

1.2 As “Áfricas” no Brasil

No dia a dia proposto pelo movimento da colonização, várias Áfricas

esbarravam-se e, em alguns casos, confrontavam-se. A grande diáspora negra

trouxe para o Novo Mundo a diversidade dos povos do continente africano. Foram

milhões de homens e mulheres que não possuíam as mesmas crenças, os

mesmos hábitos, as mesmas tradições, os mesmos ancestrais; que não possuíam

nem a mesma língua19. Bantos, iorubás (ou nagôs), jejes são, grosso modo,

algumas das etnias que vieram, forçosamente, atuar no trabalho escravo no Brasil.

São, também, as que se mantiveram mais ativas no imaginário dos cultos negros

brasileiros. De certo modo, esses solos foram uma arena na qual as forças dessas

nações não propuseram somente o confronto, mas a possibilidade de um “jogar”,

18

Sodré (2005, p. 92), esclarece que a formação social brasileira se deu alicerçada por duas ordens culturais: a branca e a negra. Segundo o autor, houve um “jogar” com as ambiguidades por parte dos negros africanos e seus descendentes que objetivava a permanência de suas práticas. É importante frisar que, as mesmas sofreram constantes adaptações e reelaborações e, ainda, que essa era uma das características marcantes desses povos, ou seja, o jogar entre as suas culturas desde os solos africanos.

19

De acordo com Prandi (2000), a África Negra é dividida linguisticamente, de uma maneira geral, entre bantos e sudaneses.

28

“negociar” e, dessa maneira, “(re)criar sentidos” (SODRÉ, 2005) na convivência do

dia a dia. E, assim, é fundamental perceber que o sentido de nação despe-se da

sua conotação política para vestir-se de um conceito quase que exclusivamente

teológico. Lima (2003, p. 29) afirma que “nação passou a ser, desse modo, o

padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé [...] angolas, congos, jejes,

nagôs”.

Os bantos foram os primeiros a chegar aqui. Verger (1987) afirma que eles

possuem entre 700 e 2 mil línguas e dialetos aparentados. Lopes (1998, p. 97) cita

que pesquisas no campo da linguística demonstraram a sobrevivência no Brasil de

elementos originários principalmente do quicongo, quinbundo e umbundo, o que

nos dá, segundo o autor, uma boa pista da superioridade demográfica, entre os

bantos no Brasil, dos africanos provenientes de Angola e do Congo, onde essas

línguas são faladas20. Para Pessoa de Castro (2001), a contribuição dos povos de

origem banto na formação da cultura e do falar brasileiros foi, sem dúvida, capital.

Segundo ela, mesmo trabalhando no eito, no engenho, na mina ou na cidade, os

homens e as mulheres bantos foram deixando sua marca, suas características,

suas culturas no comportamento, no fazer, no falar e no ser brasileiro21. Isso

somente foi possível porque a maioria dos centro-africanos compartilhava uma

cultura abrangente antes de chegar às Américas, ao contrário dos africanos

ocidentais, divididos em vários grupos de culturas diferentes (cf. Heywood, 2010).

Vansina (2010) acentua que a “cultura abrangente” é uma forte característica dos

povos banto. O autor justifica sua afirmativa no fato de a maioria dos centro-

africanos terem partido de portos nas costas de Loango e Angola, lugares que,

segundo o autor, pertenciam a somente três culturas regionais: Congo, Umbundo

e Ovimbundo. Essas culturas não somente se interrelacionavam, mas interagiam

continuamente. Vansina (2010, p. 8) sinaliza, ainda, que isso não significa que

todos os imigrantes vieram dessas regiões centro-africanas, mas que todos eles

falavam línguas muito próximas às do Banto Ocidental, o que quer dizer que

podiam comunicar-se uns com os outros desde o começo. Segundo o autor,

20

Atualmente, os povos de origem banto, são conhecidos no Brasil pelo termo genérico de angola, sobretudo quando se trata da designação de religião afro-brasileira de origem banto ou de outra modalidade cultural, como a capoeira (PRANDI, 2000).

21

Yeda Pessoa de Castro, Falares Africanos na Bahia: Um vocabulário Afro-Brasileiro. Rio de Janeiro: ABL: Topbooks, 2001, p.25

29

dados existentes mostram que entre o tempo de sua captura e o momento do embarque, ou melhor, até sua chegada, a maioria dos imigrantes provenientes do interior aprendeu Congo, Quimbundo ou Umbundo, e com a aquisição da língua veio também alguma familiaridade com a cultura litorânea: uma única, na medida em que ao longo desses anos Congo e Quimbundo influenciaram fortemente um ao outro, assim como o Quimbundo e Umbundo (VANSINA, 2010, p. 8).

O resultado foi que, de acordo com o autor, ao chegar às Américas, os

imigrantes compartilhavam uma linguagem comum (VANSINA, 2010). Karasch

(2000) endossa a afirmativa de Vansina. Segundo a autora,

durante séculos os povos da África Central tinham lidado com a diversidade étnica, desenvolvido tradições religiosas comuns e compartilhado formas culturais; essas habilidades, eles a transmitiram para o Brasil, onde utilizaram indiscultivelmente técnicas similares para lidar com a diversidade cultural. A “africanidade central” da população escrava é, portanto, fundamental para a compreensão de todo o processo de mudança cultural na cidade” (KARASCH, 2000, p. 36).

Desse modo, podemos presumir que existiu uma identificação dos escravos

centro-africanos com a pluralidade existente nessas terras. A presença dos bantos

em nossa cultura é tão profunda que hoje nem é reconhecida de modo distinto,

pois é vista e sentida como parte constitutiva do que somos e do que é cada vez

mais a nossa língua. Hábitos como “cafuné”22, festejos que atravessam gerações,

como as congadas, e palavras como cachaça, samba e muitas outras mostram a

forte relação dos elementos culturais bantos incorporados pela cultura brasileira.

Castro (2001) alega que, de fato, há uma matriz africana banto na língua

portuguesa falada no Brasil e que essa matriz é uma das razões de nossa unidade

linguística. Em sua configuração, as línguas dos povos de origem banto “foram as

mais importantes (...) devido à antiguidade e superioridade numérica de seus

falantes e à grandeza da dimensão alcançada pela sua distribuição humana no

Brasil colonial”23. De acordo com Heywood (2010), pesquisas sobre a demografia

do comércio demonstraram que os centro-africanos, ou seja, os povos banto,

estavam em todas as regiões da América. A autora sinaliza, ainda, “que algumas

regiões tiveram maior peso do que outras em relação ao número de centro-

22

É um gesto de carinho; coçar carinhosamente a cabeça de uma pessoa ou de uma criança de colo para acalmá-la ou fazer dormir.

23

Pessoa de Castro, op. cit., p. 74.

30

africanos que receberam” (HEYWOOD, 2010, p. 19). Ela destaca em seus estudos

que o Brasil foi o principal importador de escravizados africanos oriundos da África

Central (HEYWOOD, 2010, p. 19).

Logo após os povos bantos, chegaram os sudaneses que aqui ficaram

conhecidos genericamente como iorubás ou nagôs, mas que compreendem uma

variedade de povos. Destacamos, então, as etnias de oyó, ijexá, ketu, ijebu, egbá,

ifé, oxogbô, os fon-jejes (que agregam os fon-jejes-daomeanos e os mahi), os

haussás. Destacamos que, para muitos autores os termos “bantos” e “sudaneses”

são referências muito abrangentes, englobando cada uma dessas classificações

dezenas de diferentes etnias ou nações africanas. Durante todo o tráfico negreiro,

por interesse comercial, preservou-se alguma informação sobre a origem étnica

dos negros africanos. O escravo recebia, frequentemente, não a designação de

sua verdadeira etnia, mas a do porto de embarque. Por exemplo, chamava-se

indistintamente mina a todos aqueles que passavam pelo forte da Mina, fossem

achântis, jejes ou iorubás.

De acordo com Gomes (2005, p.35),

certamente africanos se conheciam e identificavam-se (misturando-se) muito mais e para além das expectativas e significados de autoridades e senhores. E faziam isto nos termos de suas próprias lógicas. Marcas de “nação”, da sua “terra” e até nomes próprios surgem destacados em vários anúncios. Se nem todos assim se reconheciam, ao menos eram conhecidos desse modo.

Os portos concentravam preferencialmente as “presas” das vizinhanças.

Com a ilegalidade do tráfico de escravos, os portos de embarque passaram para

lugares mais afastados, com a intenção de driblar a vigilância. Para embarcar

nesses portos, já no período da proibição do tráfico, os negros africanos

percorriam longos trajetos a pé. Isso complicava a identificação do escravo, pois

sua origem através do porto de embarque podia não mais corresponder à sua

origem verdadeira. Quando desembarcavam em portos brasileiros, a própria

política vigente à época, não estimulava, com o receio de sublevação, o

agrupamento de escravos de mesma origem, embora em outras épocas buscasse

agregá-los para melhor controlar.

No que se refere ao Rio de Janeiro, ainda conforme Gomes (2005, p. 23),

era uma das maiores cidades atlânticas africanas entre o final do século XVIII e a

31

primeira metade do século XIX. Segundo o autor, desde o final dos seiscentos a

cidade começaria a se destacar como um dos principais portos de desembarque

de africanos. No entanto, após 1831, com o desenvolvimento do tráfico ilegal pelo

Atlântico, os desembarques foram deslocados para as áreas litorâneas do norte e

sul fluminense. De acordo com Silveira (2006, p. 68-69), tais áreas passaram a ser

palco de sucessivos desembarques ilegais. O autor nos diz que nesse período

houve uma entrada massiva de escravos provenientes da zona congo-angolana,

ou seja, Costa Centro-Ocidental, de origem banto, com 81% de todos os cativos

desembarcados no porto do Rio de Janeiro oriundos dessa região. Karasch (2000,

p. 50), em seus estudos, ratifica a abordagem do autor citando que “a primeira e

mais óbvia conclusão é que a maioria dos escravos do Rio era importada do

Centro-Oeste Africano”.

Diante do apresentado, verifica-se que os centro-africanos participaram, de

modo impactante, da constituição da cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo

em que não houve quase nenhuma tribo, etnia ou nação africana que não tenha

fornecido seu contingente ao Novo Mundo e, por conseguinte, que também não

tenha introduzido de modo significativo suas marcas em sua formação cultural.

Ainda que de acordo com vários pesquisadores elas também tenham sofrido além

da escravidão a tentativa de apagamento24 de suas origens e culturas por parte da

política vigente à época. Para esses pesquisadores, isto se comprova quando de

sua chegada a essas terras eram separados dos seus, evitando-se assim a

possibilidade de sublevação. Sodré (2005, p. 93) esclarece que, desde o início, os

senhores (proprietários) evitavam reunir grande número de escravos da mesma

etnia, estimulavam as rivalidades étnicas e desfavoreciam a constituição das

famílias. De acordo com o autor, “a brincadeira negra” era permitida (batuques,

folguedos, danças) não somente como válvulas de escape, mas, principalmente,

por ratificarem as diferenças e as diversidades entre as nações que conviviam em

um mesmo espaço. Bastide (1974, p. 12) nos fala da política do “dividir para

reinar”, que, segundo ele, mostrou-se muito útil para os governantes e os

senhores de engenho, pois os próprios escravos de etnias rivais, a princípio,

denunciavam as conspirações para seus donos. 24

Segundo Slenes (1992, p. 49), a ideia de “apagamento” das origens culturais dos africanos é percebida, em parte, pelo fato de os escravos (principalmente os de cultura banto), para defenderem-se dos seus senhores, terem sido mestres da dissimulação, o que não aponta para o “apagamento” real de suas culturas, e sim estratégias de sobrevivência.

32

Percebe-se, nesse caso, a concordância no fato de que a separação dos

escravos, para os senhores, propiciaria o “extermínio” de suas origens, suas

culturas, desconsiderando-se, dessa maneira, o caráter vivo existente nelas. A

separação, vivida pelos cativos nessas terras não atingiu suas memórias, suas

lembranças, seus pensamentos. Não “apagou” sua ancestralidade. A escravidão

ofereceu-lhes a dor da separação de suas terras, de seus entes; a dor no corpo.

Por mais que tentasse, ela não conseguiu sequestrar-lhes a alma. Se mesmo no

tormento do cativeiro, mesmo com as tentativas de “apagamento” de suas

culturas, se as “Áfricas” resistiram, isso se deve a reelaborações, a estratégias, a

acrescentamentos e, ainda, a uma cultura comum existente em suas terras.

Vansina (2010, p. 9) nos fala que em relação

aos centro africanos não somente foram para todos os lugares nas Américas, como levaram com eles para todos os lugares uma cultura litorânea homogênea, que já existia na África com elementos emprestados principalmente das práticas e pensamentos da Europa Mediterrânea.

Para ele, “essa cultura comum facilitou sua incorporação cultural, em

especial na parte latina das Américas; facilidade maior, provavelmente, do que

tiveram vários grupos que vieram da África Ocidental” (VANSINA, 2010, p. 9). O

autor reafirma nesse contexto o aspecto “abrangente” acentuado na cultura banto.

Durante muito tempo criou-se uma ideia equivocada de unidade

(desconsiderando-se, até mesmo, a África do Magreb): tudo era africano (mesmo

com todas as diferenças culturais existentes entre eles). Propagava-se uma

singularidade inexistente nesse continente desde sempre: “a religião africana”, “o

negro africano”, “a cultura africana”. Com o avançar dos estudos no campo

antropológico conhecemos uma África plural, que contém várias outras “Áfricas”.

Não menores, e sim diversificadas, coletivas, tradicionais, atuais, ritualísticas. A

“unidade” foi uma falsa ideia constituída culturalmente dessa região tão vasta.

Tudo era “simplesmente” África, perdidas as diferenças e as especificidades.

33

1.3 As etnias Iorubás

Os Iorubás chegaram ao Brasil após os bantos, no século XVIII. Até esse

período, ainda em continente africano, cada grupo iorubá era identificado pela sua

cidade, não havendo um nome para designá-los em conjunto (PRANDI, 1991).

Cada cidade era politicamente autônoma, cada uma governada por seu obá (rei),

tendo um poder central localizado em uma delas, formando uma sociedade mais

ampla, defendida pelo poder imperial da cidade dominante. Embora a economia

fosse baseada na agricultura, caça e pesca, a população habitava as cidades, das

quais Ifé, a cidade sagrada, era considerada o berço dos iorubás e da humanidade

(PRANDI, 1991, p. 125).

Apesar da autonomia política das cidades, a língua era o elo cultural que

possibilitava uma identificação desses povos. Para Biobaku (apud VERGER, 2002,

p. 11) “a língua iorubá acabou assumindo significação de um povo, de uma nação

ou a um território”, repassando, assim, “a ilusória ideia de unidade política”.

Entre os iorubás, o último império foi a cidade de Oyó, à qual estavam

submetidas a maioria das cidades. A queda do império de Oyó se deu pelo ataque

dos fons do Daomé, que logo depois foram dominados pelos haussás (PRANDI,

2000). Sem a proteção militar, as diferentes populações iorubás passaram a ser

presas fáceis do mercado local de escravos mantido por vizinhos de outras etnias.

Foi diante desse contexto político-econômico que as diferentes etnias

iorubás entraram no circuito do tráfico de escravos no século XVIII. No Brasil, a

princípio, grande parte da população negra iorubá foi destinada aos engenhos de

açúcar em Pernambuco e na Bahia25. Com a descoberta do ouro em Minas

Gerais, no mesmo século, houve um deslocamento do tráfico para lá,

intensificando, assim, o “Ciclo do Ouro”. Percebe-se, nesse momento, uma nova

forma de uso da mão de obra africana. Nos oitocentos, a maneira de viver do

escravizado ganha nova forma; a escravidão se urbaniza e o escravizado adquire

maior liberdade de movimento. Dessa maneira, os negros iorubás são utilizados

também nas atividades urbanas. Cabe destacar que a vinda dos negros iorubás

não substitui a importação de mão de obra escrava banto. No Rio de Janeiro, por

25

Na Bahia, principalmente no porto em Salvador, houve a utilização do escravo como moeda de troca para a aquisição do fumo produzido no Recôncavo baiano (VERGER, 1987).

34

exemplo, a predominância demográfica de escravos bantos se manteve durante

todo o período em que o comércio de africanos para o trabalho compulsório

vigorou.

No final do século XIX, as etnias sudanesas que chegavam à Bahia,

passaram a viver nas cidades, o que possibilitou que velhos africanos ainda

fossem reconhecidos por sua etnia ou nação (PRANDI, 2000). Nesse mesmo

período, na cidade do Rio de Janeiro, as etnias bantos, diluíam-se no conjunto da

imensa população africana, tornando-se somente benguelas, angolas e congos,

as célebres “nações” africanas do cativeiro (SOARES, 2005, p. 9). Diante desse

contexto, é possível conjecturar que, assim como as etnias sudanesas mantinham

o seu fluxo pelas ruas baianas, de igual maneira as etnias bantos presentificavam-

se nas ruas cariocas e fluminenses26.

Nina Rodrigues, durante a primeira metade do século XX, embasou grande

parte dos seus estudos nas etnias sudanesas. Em suas obras cita que ele próprio

conheceu, pessoalmente, remanescentes das nações iorubás, que reuniam as

etnias de Ilorin, Ijexá, Abeokutá, Lagos, Ketu, Ibadan e Ifé. O autor nos conta

ainda que os negros africanos provenientes da região central da iorubalândia

(Oyó, Ilorin e Ijexá) que para cá vieram no final do referido século eram, em sua

maioria, malês ou mulçumanos (RODRIGUES, 1976). Ele também menciona os

jejes27, trazidos tanto do Daomé como de cidades do litoral do país, e do reino de

mahis, localizados ao norte do país dos jejes daomeanos, além dos haussás, dos

tapas, dos grúncis e outros. Cabe destacar que, apesar de quase não serem

citados nas obras do referido autor, os povos bantos circulavam e fixavam-se da

mesma maneira que os demais povos africanos e seus descendentes nas áreas

urbanas. Tal situação não era privilégio dos africanos estudados por Rodrigues.

É Slenes (2009, p. 196) quem nos esclarece que a grande maioria dos

africanos que desembarcaram nas províncias ou capitanias do Rio de Janeiro,

São Paulo e Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, era da África

Central. Segundo o autor, o quantitativo de africanos que vieram para o Brasil no

referido século aponta para uma supremacia centro-africana, principalmente nas

capitanias citadas. Nessa perspectiva, podemos presumir que, mesmo com quase 26

Ver Heywood (2000), Slenes (1992), Karsch (2000), Gomes (2005), Barata (2012). 27

Os jejes, também conhecidos como ewês, de língua fon, foram a última etnia do tráfico negreiro, trazida para o Brasil.

35

três séculos de comércio de africanos para o trabalho escravo, os pioneiros da

travessia do Atlântico engrossavam o volume da migração.

Nesse mesmo período, Capone (2009, p. 28) sublinha que acabava de ser

descoberta a organização social e religiosa dos iorubas. Nesse contexto, das

culturas iorubás recriadas no Brasil pelo tráfico negreiro, duas ocuparam (e ainda

ocupam) papel especial na memória da cultura religiosa que se reproduziu no

Brasil: Oyó, a cidade de culto a Xangô28, e Ketu, a cidade de culto a Oxóssi29.

Certamente em função da sua vinda mais recente, foram favorecidos pela

concentração na Bahia. A autora acentua em sua obra o destaque dado às

culturas sudanesas por seus antecessores, que, como citado, desconsideravam as

contribuições culturais dos povos bantos. Segundo suas referências, os iorubás

firmaram uma espécie de hegemonia cultural em relação aos que precederam.

Trouxeram para o Brasil todo o complexo cultural, assim como os daomeanos

(cultura jeje), desenvolvido especialmente no plano religioso que os envolvia

desde a África. Em decorrência das circunstâncias da escravidão, as trocas

culturais entre esses grupos, recém-chegados, intensificaram-se e constituíram

aqui o complexo cultural jeje-nagô30

1.3.1 A constituição da suposta supremacia Iorubá (nagô) no Brasil

De onde nasce, no imaginário negro brasileiro, a supremacia iorubá existente

nas comunidades de terreiro (candomblés)? É comum ouvir de seguidores dos

cultos negros brasileiros as seguintes expressões: “na minha casa31 é igual na

África, seguimos o ‘iorubá’”, ou “lá em casa não é candomblé Brasil”, ou, ainda, “lá

só viramos no santo (orixá), não se cultuam as entidades do Brasil”. Bastam

poucos minutos de conversa com os adeptos para que expressões iguais a essas

28

Ancestral divinizado (orixá) que na natureza, é simbolizado pelos raios e trovões. Nos cultos negros brasileiros é o orixá da justiça. Seu elemento de força vital é o fogo.

29

Ancestral divinizado (orixá) simbolizado pelos caçadores. Seu elemento de força vital é terra. 30

É importante frisar que, todos os africanos que cruzaram forçosamente o Atlântico, contribuíram para a formação cultural brasileira.

31

Referem-se ao espaço de culto: barracão, casa de santo, ilê axé, roça, dentre outras designações.

36

venham à tona; para se perceber uma exaltação à “África”, um “empoderamento”

nessas falas e a ideia de “pureza nos rituais”.

Assumo, aqui, que talvez essa seja a parte mais difícil da referida pesquisa

para mim. Provavelmente por ser a que se entremeia em minha história pessoal,

ou melhor, por ser daqui o ponto de partida da ampliação dos conhecimentos das

“Áfricas” que existem (ou será existiam?) em mim. Na adolescência eu me iniciei

em orixá em uma comunidade de cultos negros brasileiros vinculada ao culto Ketu.

Durante um grande período eu vivi e exaltei “essa suposta supremacia nagô”.

Mantinha um comportamento que desconsiderava as várias facetas das nações

africanas. Jamais imaginaria, naquele momento, que muito do que propagava

como as “práticas de Ketu”32 poderia ser reinvenções, recriações e ações forjadas

na perspectiva de legitimação de poder. Acreditava, sem questionar, na

superioridade dos rituais da comunidade de cultos de que participava e a que

pertencia. Nesse viés, automaticamente, reproduzia um preconceito contra as

outras comunidades de cultos vinculadas a outras nações. Hoje compreendo que

tal preconceito era infundado, imaturo e constituído sob um paradigma construído

em uma época histórica dos iniciados dos cultos negros brasileiros. Nos idos dos

anos 1980, houve quase uma proliferação das comunidades de cultos negros com

origem nas práticas ketu. Levar o candomblé como bandeira ritualística/religiosa,

para muitos, significava ser adepto da “nação ketu”. Lembro-me de que os

iniciados no axé de Angola recorriam à mudança de águas33 para Ketu. Era um

modismo. Acreditava-se que, ser Ketu, era assumir uma pureza identitária com a

África, era ser do legítimo candomblé. O preconceito contra as outras “nações”

surgia a partir das mínimas coisas. Uma expressão, uma cantiga, uma reza ou um

simples gesto denotava em que águas o indivíduo mantinha suas práticas

ritualísticas.

Reforço que no momento em que vivi e exaltei tais práticas reproduzia e

repetia o ouvido e o visto sem questionamentos; simplesmente assumia a postura

de que, se meus mais velhos falaram, é porque é isso. Não havia outra

32

Era a expressão utilizada pelos que participavam da minha comunidade de cultos. 33

Mudar às águas significa a troca de vínculo com a raiz da nação africana que sustenta o axé do espaço de cultos. Os axés estão respaldados nas principais nações africanas que participaram da colonização brasileira. Destacam-se: Angola, Congo, Ketu, Jeje, Ijexá e Efon. Dessa maneira, o indivíduo trocava essas “nações”.

37

possibilidade de pensamento ou de postura naquela época. O mistério que

envolvia (e em alguns casos ainda envolve) essa suposta supremacia fazia parte

das histórias vividas por muitos antepassados e pensar em questioná-las

significaria um desrespeito, ou, pior, uma afronta à memória do egbé34.

Muitas dessas crenças têm raízes no século XVIII, em plena escravidão,

desde a chegada dos negros sudaneses a essas terras. Várias foram as

justificativas utilizadas por muitos autores para “legitimar” uma superioridade

iorubá em relação aos seus antecessores: os povos bantos. Dentre elas,

destacamos as mais citadas: os traços fisionômicos e comportamentais. Essas

foram as características que embasaram uma crença na “superioridade racial

iorubá”35. A partir das leituras dessas obras, muitos Babalorixás e Ialorixás das

comunidades de cultos negros brasileiros passaram a ecoar suas interpretações

do lido e engrossaram o coro da suposta supremacia iorubá.

Salientamos que a ideia de superioridade nagô encontra respaldo nos

escritos de muitos intelectuais. Nina Rodrigues (1976), no início do século XX,

endossou tal crença em seus estudos inspirados na ideologia racista que atribuía

à miscigenação os males e os entraves ao desenvolvimento do país, porque a

“civilização” estava associada a uma população branca e de hábitos europeus36. O

autor ressaltava a circulação da língua iorubá entre os africanos e seus

descendentes, na Bahia. Segundo Capone (2009, p. 296), ele criticava o fato de,

no Brasil, as línguas bantas serem consideradas as únicas a merecer a atenção

dos linguistas, e acrescentava que, se o quimbundo predominava no Norte e no

34

Denominação utilizada para representar a composição do espaço de culto e seus componentes (iniciados e não iniciados); membros da comunidade de terreiro.

35

Rodrigues (1932) traçou amplo quadro da presença africana no Brasil ao discutir suas regiões de procedência conforme a distribuição do tráfico de escravos, ao inventariar línguas e grupos étnicos africanos existentes no Brasil e ao reconhecer a complexidade de suas manifestações artísticas e religiosas. Cabe ressaltar, que a pesquisa se deu com africanos remanescentes na Bahia no fim do século XIX, e que a mesma só foi publicada, postumamente, em 1932, intitulada Os Africanos no Brasil.

36

As origens e argumentos de ideologia racista no Brasil são discutidos em detalhe por Lília Schwartz; Scharcz, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Cf. também sua didática apresentação da “questão racial no Brasil: Schwarcz, Lilia Moritz. Questão Racial no Brasil In: Negras Imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil, eds. Lilia Moritz Schwarcz e Letícia Vidor de Sousa Reis. São Paulo: EDUSP/Estação Ciência, 1996, 153-177.

38

Sul do país, era o nagô (iorubá) que prevalecia na Bahia37. A autora sublinha que

as contribuições linguísticas do iorubá, no entanto, nem sempre são claramente

identificáveis, e, segundo ela, o próprio Nina Rodrigues reconheceu que confiar

totalmente na memória dos descendentes de escravos podia, às vezes, induzir a

erros nos planos cultural e linguístico. Capone cita, ainda, que o médico também

abordou a presença de mulçumanos entre os escravos baianos e seu

engajamento na resistência à escravidão nas célebres revoltas que culminaram

em 1835 com o levante dos malês em Salvador. Rodrigues atribuía aos africanos

da Costa Ocidental – iorubás, jejes, tapas, haussás – superioridade cultural em

relação aos povos bantos, provenientes da África Centro Ocidental, que eram

maioria no centro-sul do Brasil. Em relação aos haussás, a “superioridade” era

destacada, pelo autor, pelo fato de serem letrados. Capone (2009, p. 16) afirma

que, no intuito de criticar a predominância linguística banto, Rodrigues baseou seu

método na observação de fatos religiosos, comparando-os com os dados de que

dispunham sobre os povos africanos. De acordo com a autora,

em seu estudo sobre os africanos no Brasil, no início do século XX, Nina Rodrigues afirmou de maneira clara a supremacia dos iorubás (os nagôs da Bahia), que ele considerava a verdadeira “aristocracia” entre os negros trazidos para o Brasil, baseando-se nas pesquisas do coronel Ellis e do missionário Bowen, ambas realizadas no fim do século XIX. Desta forma, declarava ter inutilmente buscado, junto aos negros da Bahia, ideias religiosas pertencentes aos bantos (CAPONE, 2009, p.16).

Verifica-se, assim, que o protagonismo assumido pelos povos bantos no que

se refere aos traços culturais e à língua, incorporados pelo povo brasileiro, era

desconsiderado pelo pesquisador. Heywood (2010, p. 19) salienta que, apesar da

presença extraordinária dos centro-africanos no Brasil colonial e de a cultura inicial

negro-brasileira ter sido, em grande parte, proveniente da África Central, poucos

estudos detalharam esse processo em profundidade.

Seguindo a mesma perspectiva, Bastide (apud CAPONE, 2009) afirma de

modo claro, em suas obras, a oposição entre a religiosidade nagô e a banto. Para

o autor, o povo iorubá representa os “guardiões da tradição”, porque encarna um

37

Cabe-nos pontuar que, o predomínio da língua nagô, na Bahia, exaltado pelo estudioso, era em sua grande maioria nos espaços ritualísticos e nos momentos dos cultos religiosos, e não como uma “língua pátria” falada cotidianamente por todos.

39

mundo ideal em que não existem conflitos e os valores africanos “originais” são

fielmente conservados. Para ele,

o candomblé é mais que uma seita mística, é um verdadeiro pedaço da África transplantado. Em meio às bananeiras, às buganvílias, às árvores frutíferas, às figueiras gigantes que trazem em seus ramos os véus esvoaçantes dos orixás, ou à beira das praias de coqueiros, entre a areia dourada, com suas cabanas de deuses, suas habitações, o lugar coberto onde à noite os atabaques com seus toques chamam as divindades ancestrais, com sua confusão de mulheres, de moças, de homens que trabalham, que cozinham, que oferecem às mãos sábias dos velhos sua cabeleiras encarapinhadas para cortar, com galopadas de crianças seminuas sob o olhar atento das mães enfeitadas com seus colares litúrgicos, o candomblé evoca bem essa África reproduzida no solo brasileiro, de novo florescendo. Comportamento sexual, econômico e religioso formam aqui uma unidade religiosa (BASTIDE, 1960, p. 312-313, apud CAPONE, 2009).

Em relação aos bantos, ao contrário, o autor acreditava que eles

acarretariam a “degradação” das crenças africanas (CAPONE, 2009). O

romantismo toma posse do autor quando se refere ao povo iorubá, ao mesmo

tempo em que um tom pernóstico se mantém quando se dirige ao povo banto.

Para ele, o culto banto era responsável por engendrar a “macumba” (cf. CAPONE,

2009). Cabe ressaltar que não há registros do autor referente ao tema. De acordo

com Capone (2009), assim como Bastide, outros autores38 contribuíram para a

construção de um modelo ideal de ortodoxia, “identificado com o culto nagô, que

encontra seu público no meio tanto dos pesquisadores quanto dos praticantes dos

cultos” (CAPONE, 2009, p. 19). A pesquisadora sinaliza, ainda, que “a maioria dos

antropólogos que estudaram o candomblé se engajou, de uma forma ou de outra,

nesse culto, contraindo uma espécie de aliança com o seu objeto” (CAPONE,

2009). Por isso, segundo ela, o discurso hegemônico dos chefes de terreiros ditos

tradicionais da Bahia é legitimado pelo discurso dos pesquisadores que, há quase

um século, vêm limitando seus estudos, com raras exceções, aos três mesmos

terreiros nagôs: Engenho Velho ou Casa Branca (considerado o primeiro terreiro

de candomblé do país), o Gantois e o Axé Opô Afonjá (ambos oriundos do

Engenho Velho), embora existam milhares de outros. A autora nos esclarece que

38

A autora cita Arthur Ramos, Édison Carneiro, Juana Elbein dos Santos, Pierre Verger, Raimundo Nina Rodrigues, Roger Bastide e Vivaldo da Costa Lima (cf. Capone, 2009, p. 20).

40

Nina Rodrigues e Arthur Ramos, nos anos 1930, fizeram suas pesquisas no Gantois; Édison Carneiro no Engenho Velho; Roger Bastide, Pierre Verger, Vivaldo da Costa Silva e Juana E. dos Santos, entre outros, no Axé Opô Afonjá. [...] Assim Nina Rodrigues e Ramos se tornaram ogãs do Gantois. Damesma forma Édison Carneiro era ogã no Axé Opô Afonjá [...] Roger Bastide e Pierre Verger, que havia recebido o títuli de Oju Oba [...] A aliança entre cientistas e iniciados se tornou ainda mais efetiva quando, a partir dos anos 1950, o vaivém para e da África, que nunca se interrompeu completamente após a Abolição da Escravidão, ganhou novo impulso graças às viagens de Pierre Verger entre o Brasil e o país iorubá (Nigéria e Benin). O papel de mensageiro que desempenhou dos dois lados do oceano, como ele mesmo definiu, e sobretudo o prestígio que decorria dos títulos e marcas de reconhecimento outorgados pelos os iorubás aos chefes de terreiros “tradicionais” representaram um importante elemento na construção de um modelo de tradição, válido para os demais cultos. [...] Foi Juana Santos, discípula de Bastide, quem encarnou, no fim dos anos 1970, o exemplo mais acabado da “aliança” entre antropólogos e membros do culto. Essa antropóloga argentina, iniciada no terreiro de Axé Opô Afonjá de Salvador e casada com Deoscóredes M. dos Santos, alto designatário do culto nagô, foi a primeira a teorizar a necessidade metodológica de analisar o candomblé “desde dentro”, isto é, como participante ativo e iniciado, a fim de evitar qualquer deriva etnocêntrica [...] (CAPONE, 2009, p. 179).

É possível perceber, pelas pesquisas de Capone (2009) como os três

terreiros “mais tradicionais” de Salvador passaram a ser o locus empírico para aos

acadêmicos citados e como eles contribuíram para a “construção imaginária” de

“pureza” e “tradição” africana nesses terreiros. Heywood (2010, p. 19) acentua que

as pesquisas que lidaram especificamente com a cultura negra enfatizaram a

contribuição dos africanos ocidentais no intuito de dar conta da sua habilidade em

preservar os elementos africanos na cultura “crioula do Brasil”. Para a autora,

muitos dos estudos antropológicos focalizam quase que exclusivamente os

praticantes da religiões afro-brasileiras, sobretudo os que “praticavam a religião

dos Orixás, de cultura yoruba na Bahia” (HEYWOOD, 2010).

De acordo com Augras, existe uma tradição, já solidamente estabelecida,

que afirma a hegemonia da Bahia na criação e na manutenção das religiões

brasileiras de origem africana, mais especificamente, diz, do complexo religioso

que recebeu o nome de candomblé. Apesar disso, para essa autora, é preciso

reconhecer que, no decorrer da história, os negros africanos e seus descendentes

disseminaram comunidades de cultos ao longo das costas do Brasil.

O Rio de Janeiro, desde o momento em que se tornou capital do país, passou a representar grande pólo de atração. No século XIX, o centro da cidade e, particularmente, toda a zona portuária, congregava importante contingente de população negra a que, no final do século, se viriam acrescentar os egressos do decadente Vale da Paraíba e os migrantes

41

nordestinos. Há indícios de que genuínas casas-de-santo já estivessem funcionando naquela época. No início deste século, as reportagens de João do Rio (1951) proporcionam um bom retrato – ainda que carregado de tintas – da amplitude e da vitalidade de cultos de origem africana na capital da República (AUGRAS, 1983, p. 123).

A autora deixa evidente que os cultos negros não eram um privilégio dos

baianos e que eles se expandiram pela costa brasileira por onde atuaram os

negros africanos e seus descendentes. No entanto, uma vasta produção

acadêmica insiste em legitimar a Bahia e, consequentemente, os traços culturais

iorubá como locus da tradição. Será que toda exaltação e visibilidade dada ao

culto iorubá, por esses estudiosos está atrelada às suas práticas ritualísticas

enquanto seguidores? E, mais ainda, como ocupantes de altos cargos nos

referidos terreiros? Será que toda a pesquisa acadêmica sobre esses terreiros, e

consequentemente sobre o culto nagô, incentivou a busca dessa “tradição” por

outros terreiros seguidores? É possível questionar se “o poder e a força”

vinculados à tradição africana iorubá por esses pesquisadores iniciados, desde o

século passado, contribuíram para a “formatação” de comportamentos ritualísticos

ditos “tradicionais” e tendenciaram a discriminação aos seguidores dos rituais

banto? As respostas para esses e muitos outros questionamentos ficarão também

no imaginário de todos nós, o que não quer dizer que elas não existam. A

produção acadêmica voltada para o culto iorubá referenciou uma ideia de tradição

e, em contrapartida, buscou sublinhar a ausência de tradição nos demais cultos,

os bantos em particular39.

No entanto, Reis (1989) revela a presença na cidade de Salvador, no início

do século XIX, de outros terreiros de diferentes tradições religiosas. Essa

afirmação se baseia na análise dos processos criminais relativos às perseguições

religiosas desse período. Em 1944, Luís Viana Filho (apud CAPONE, 2009, p. 17),

retrata a existência de vários candomblés bantos, cuja fundação era anterior às

pesquisas de Nina Rodrigues. Escreveu, ainda, que “era de admirar que tivessem

passado despercebidos a um estudioso da inteligência do ilustre mestre”.

Percebe-se, então, que a constituição da suposta supremacia iorubá/nagô,

nos cultos religiosos, dependeu do olhar dos intelectuais sobre os cultos,

39

Cabe ressaltar que, segundo Dantas (1998), a “hegemonia nagô” possui uma “pureza” nascida do encontro do discurso de certos praticantes com o discurso dos pesquisadores, eles próprios fortemente ligados a esse segmento religioso.

42

principalmente no que se refere à Bahia, para eles representação “viva” da

tradição. A oposição existente está condicionada por esse “olhar” e em grande

parte é propagada por ele. Assim, apesar da existência do modelo jeje nagô no

início do século XX no Rio de Janeiro, como mostram as obras de João do Rio

(1904) e Roberto Moura (1983, p. 172-173), esse modelo nunca foi levado em

consideração pelos autores, que, desde Rodrigues e Ramos, preferiram ver nos

terreiros de Salvador o modelo etnográfico do candomblé “tradicional” e nos

terreiros do Rio o modelo etnográfico dos cultos “degenerados” ou “degradados”.

Para os que seguiram os rastros de Rodrigues (1976), ser adepto dos cultos nagô

(principalmente na Bahia) significa manter a “pureza” nos rituais, acreditar e

propagar a “supremacia (imaginária) iorubá” e, por conseguinte, manter a oposição

aos cultos bantos.

Dessa maneira, a característica que acentua a crença na superioridade

iorubá está na herança deixada pelos estudiosos dos cultos de matrizes nagô40.

Mesmo na atualidade muitos autores buscam justificativas para respaldar suas

hipóteses em relação à iorubacracia. Segundo Prandi (1991), por terem sido os

últimos povos negros africanos a serem traficados para o Novo Mundo, os

africanos iorubás encontraram uma estrutura urbana diferenciada dos negros

bantos. Para o autor, isso se justifica na mão de obra do negro banto, seu

antecessor, que ativa e arduamente já havia construído e transformado a

realidade encontrada. De certo modo, sua chegada “tardia” fora beneficiada. Para

Luz (1995, p. 34), os iorubás e fon, ou seja, nagôs e jejes, formam um grande

complexo religioso no Brasil41. O autor nos fala que os princípios e os valores de

suas tradições culturais expressam-se pela linguagem religiosa. Essa linguagem

estabeleceu, para os iorubás, uma relação de constante tensão entre suas

crenças e os valores brancos europeus.

A partir de meados do século XX, a conquista por essa “supremacia” toma

outros rumos. Busca-se cada vez mais uma legitimação ritualística na Bahia, como

nos outros estados em que se verifica a presença dos cultos de matrizes iorubá.

Ser nagô é mais do que nunca sinônimo de “africano” (mesmo sendo brasileiro),

40

Cf. Bastide, 1974; Luz, 1995; Prandi, 1991; Santos 1976; e Verger 2002. 41

Cabe ressaltar que, a Bahia, principalmente a cidade de Salvador, é o locus das referências de muitos autores que afirmam a supremacia religiosa iorubá, desconsiderando, na maioria das vezes, às contribuições bantos, também nesse aspecto.

43

bem como o qualificativo obrigatório do que está ligado à reafirmação das raízes

africanas da identidade negra africana. A própria utilização dos termos iorubás nos

escritos e na oralidade nos cultos religiosos busca ressaltar essa “supremacia

construída”. Dessa maneira, a própria língua mãe torna-se “menor”, constituindo-

se como um empecilho para a “pureza tradicional” que deve legitimar os cultos

nagôs. Na busca de oficializar cada vez mais a ligação imaginária com a África,

vários iniciados e chefes de terreiros, também conhecidos como Babalorixás (os

homens) e Ialorixás (as mulheres) no culto nagô, recorreram a viagens a Nigéria e

Benin, acreditando que desse modo teriam um contato “mais puro com as

tradições”, retornariam às origens e voltariam a ser “nagôs”42. Ir à África significava

entrar em contato com as fontes do conhecimento religioso, denotava um ganho

de tradicionalidade. Segundo Capone (2009, p. 265),

essa busca à África, desde sempre presente no candomblé, é uma reativação mais simbólica que real, de uma tradição “pura” que deve ser reconstruída em solo brasileiro. A necessidade se faz sentir de modo mais urgente, à medida que os efeitos nefastos do turismo e da participação de brancos e mulatos no candomblé cavam um fosso cada vez mais nítido entre os terreiros “tradicionais” e aqueles que buscam tanto a estética quanto a religião.

As viagens à África e as modificações que elas acarretam no ritual são,

portanto, um poderoso instrumento de prestígio para os indivíduos dos terreiros

em questão. Para a autora, essas viagens seriam motivadas por uma perda da

tradição no lugar de partida (o Brasil) que forçaria os membros mais preocupados

com a pureza perdida a buscá-la na terra de origem (a África). Ratifica-se que

essa busca à África ganha cada vez mais importância nesse processo de reforço

das raízes, até conduzir uma reafricanização a qualquer preço, por meio de cursos

de língua e civilização iorubás ou dos cursos sobre a prática adivinhatória43 (idid,

2009, p. 266).

42

As pessoas que recorreram (e ainda recorrem) às viagens à África, o fazem acreditando que reafirmam sua fidelidade à tradição.

43

A figura mais emblemática desse movimento que buscou estabelecer vínculos entre Brasil e África foi sem dúvida Pierre Verger. Ele procurou, pela comparação entre o país e o continente, fazer sobressair a fidelidade dos negros baianos à África. Filho espiritual (Filho de Santo) da Ialorixá do Axé Opô Afonjá, Senhora de Oxum, o pesquisador fez valer seu papel de “mensageiro” e poder, assim, “contar a África” aos amigos baianos (VERGER, 2002).

44

Desse modo, tanto os pesquisadores que se iniciaram e passaram a fazer

dos “seus”44 próprios terreiros de candomblé seu objeto de estudo, assim como os

viajantes que foram (e ainda vão) à África contribuíram para a crença na

constituição da “tradição africana pura” nos terreiros nagô e jeje nagô45. Essa

constituição ultrapassa a fronteira mítico-religiosa e alcança a esfera política.

Assim, dá-se em uma arena conflituosa e tensa na qual escolhas são feitas,

decisões são tomadas. As estratégias políticas no universo das comunidades de

terreiro (candomblé) durante muito tempo foram ocultadas, principalmente, como

citado, pelas relações existentes entre antropólogos e os “seus” terreiros. Capone

comenta que,

com efeito, os antropólogos, na maior parte do tempo ligados ao terreiro que estão estudando por vínculos religiosos, têm à disposição informações que lhe são necessárias, mas que não podem usar se quiserem manter boas relações com seus informantes. Devem respeitar um código de comportamento que os obriga a ocultar todos os acontecimentos que possam desmitificar a visão romântica de um candomblé tradicional em que reina a harmonia (...) na realidade, e qualquer pesquisador que se interesse pelos cultos afro brasileiros sabe bem disso, o poder e prestígio estão no centro do universo do candomblé. Tal prestígio depende do status social, econômico e político do indivíduo, da posição herdada ou adquirida que ele ocupa na hierarquia do culto. A acumulação de prestígio (que resulta, por exemplo, de uma legitimação pelos antropólogos) faz com que uma família de santo “tradicional” reforce seu poder, ou até funde nova tradição (CAPONE, 2009, p. 289).

Percebe-se, então, que a “tradição construída” nos terreiros nagôs,

principalmente os citados nessa pesquisa, acarreta às relações existentes neles

poder, prestígio e, por conseguinte, uma crença na “superioridade” destes.

Entretanto, para se dizer superior, é preciso demonstrar a inferioridade do outro;

como nos diz Foucault (1969), não há poder sem dessimetria nas relações sociais.

A construção de uma “tradição africana pura”, encarnada por esses terreiros,

torna-se assim a marca de uma diferença – um ganho de tradicionalidade e,

portanto, de prestígio – diante dos demais terreiros.

44

O termo “seus” é utilizado, neste contexto, como pertencimento, participação e não como propriedade.

45

A importância dessa aliança entre terreiros e pesquisadores pode ser bem percebida no meio dos cultos negros brasileiros. Segundo Capone (2009, p. 289), durante um encontro das nações de candomblé em 1981, um participante de um terreiro angola lançou um apelo aos pesquisadores para que estudassem o ritual de sua nação, pois “não há livros sobre angola”. E tem mais terreiros de angola na Bahia do que de Ketu, de jeje, de qualquer outra nação.

45

1.4 Sincretismo ou interações, trocas, acrescentamentos e possibilidades?

Durante muitos anos ouvi de vários iniciados e simpatizantes dos cultos

negros brasileiros que “Santa Bárbara é Oyá/Iansã no sincretismo”. Tais palavras

deixavam-me intrigado e me faziam questionar, a mim mesmo, como uma santa

branca, cristã, ocidental, podia ser ao mesmo tempo orixá, negra, e, em vez de

missas e promessas, receber sacrifícios, oferendas e incorporar em seus

descendentes? Como perceber em santa Bárbara algum laço, mesmo que

mínimo, com Oyá? Onde estaria o ponto de interseção que possibilitaria que elas

fossem a mesma (santa/ancestral)? Bem, naquele momento eu não encontrei

respostas para essas perguntas e nem para tantas outras. Hoje percebo que,

existem, entre traços judaico-cristãos e dos cultos aos ancestrais divinizados,

ações que criaram sentidos e significados no devir humano, no afeto constituído e

justificado nas relações cotidianas. Nessa perspectiva, pude notar que o sentido

era o mais importante para aqueles adeptos que praticavam suas crenças entre

Santa Bárbara e Oyá. As diferenças entre elas já estavam postas em suas

próprias histórias e referências, mas, para alguns adeptos, as similaridades

(criadas) justificam-se na sua fé, ou seja, no sentido e no sentimento dedicados

por eles.

Ao nos referirmos às culturas africanas que foram desterritorializadas na

grande diáspora, referimo-nos a práticas seculares, a tradições que significavam

em um determinado território, que sobreviveram entre os descendentes de várias

gerações e que, principalmente, retratam os sujeitos pertencentes a essas

culturas. O existir, para esses indivíduos, ou seja, para o homem e mulher da

tradição africana, segundo Sodré, “não significava simplesmente ‘viver’, mas

pertencer a uma totalidade – o grupo. Cada ser singular perfaz a sua individuação

a partir dessa pluralidade instituída, onde se assenta as bases de sustentação da

vida psíquica individual” (SODRÉ, 1995, p. 9). Dessa maneira, entende-se que a

interação cultural está na formação do africano e que ele, enquanto indivíduo, não

está dicotomizado do seu grupo (família, clã, aldeia etc.). Sodré cita ainda que “o

indivíduo pertence ao grupo tanto quanto a si próprio, pode ser indivíduo ou ser

grupo equivale de fato a uma função no trabalho de limites ou de determinação de

46

identidade em face de vasta diferenciação do fenômeno humano” (SODRÉ, 1995,

p. 9). Na individualidade ou na coletividade, para os negros africanos, a essência

da escravidão consistia em serem desnudados da percepção que tinham de si

próprios, consequentemente lutando nas terras para onde migraram forçosamente

para restaurar (ou criar) um sentido comum de identidade, de pertencimento às

suas tradições, de vínculos com seus pares.

Conforme sinalizado, a separação compulsória dos africanos de suas terras

ocorrida entre os séculos XVI e XIX não os separou de suas vivências. Suas

práticas culturais, as lembranças de suas terras, seus rios, suas árvores, suas

montanhas; permaneceram vivas em suas memórias. As dificuldades enfrentadas

na rota transatlântica não “apagaram” seus vínculos, seus sentimentos de

pertença nem suas emoções. A elas acrescentaram dor e sofrimento. Foi nesse

contexto que os africanos desembarcaram no Novo Mundo, convivendo com

diferentes etnias, com os nativos e com o branco europeu, símbolo da amargura

da escravidão. Sodré destaca que

a formação da sociedade brasileira, iniciada no século XVI, foi um processo de agrupamento, num vasto território a se conquistar, de elementos americanos (indígenas), europeus (os colonizadores portugueses) e africanos [...] No mesmo campo ideológico cristão do colonizador, fixaram-se as organizações hierárquicas, formas religiosas, concepções estéticas, relações míticas, música, costumes, ritos, características de diversos grupos negros (SODRÉ, 2005, p. 89-90).

É possível observar, então, que a formação sociocultural brasileira se deu

em uma arena na qual europeus, ameríndios e africanos buscaram manter ativas

suas práticas culturais. Essas práticas conflitaram-se entre lutas, negociações,

acordos, jogos e mantiveram-se arraigadas de estruturas simbólicas que se

sustentavam por meio de suas memórias.

O autor esclarece ainda que

em plena vigência da escravatura – com seus desmoralizantes castigos corporais, suas sangrentas intervenções armadas, suas táticas de assimilação e cooptação ideológicas (concessões de pequenos privilégios, oportunidades de ascensão social para os mestiços etc.) – os negros desenvolviam formas paralelas de organização social. Exemplos de ordem econômica – caixas de poupança para compra de alforrias de escravos urbanos; de ordem “política”- conselhos deliberativos próprios para dirimir disputas internas de uma nação ou etnia, ou para a preparação de ações coletivas (fugas, revoltas), ou então confrarias de assistência mútua sob a capa da atividades religiosas (cristãs); de ordem mítica – elaboração de

47

uma síntese representativa do vasto panteão de deuses ou entidades cósmicas africanas (os orixás), assim como a preservação do culto aos ancestrais (os eguns) e a continuidade de modos originais de relacionamento de parentesco; de ordem linguística, a manutenção do iorubá como língua ritualística (SODRÉ, 2005, p. 89-90).

Vale destacar que existiram (e ainda existem) muitas outras formas de

organizações sociais (re)elaboradas pelos africanos oriundas da grande diáspora.

Na visão do autor, as “formas paralelas de organização social” possibilitaram aos

africanos escravizados adaptações que levaram a uma (re)organização simbólica

das relações vividas em seus territórios de origem (África). Com a possibilidade de

(re)organização das e nas estruturas encontradas, os africanos propuseram trocas

simbólicas, reposições, jogos nas relações constituídas. Barata (2012, p. 29)

destaca que “após a diáspora, quando escravizados em território brasileiro, os

africanos tiveram todas suas organizações desestruturadas”. Mediante estudos

dos referidos autores, verificamos a importância dada ao termo “organização”, o

que nos dá a noção de que as etnias africanas mantinham-se organizadas em seu

continente e, ainda, que a prática de se organizarem facilitou sua (re)estruturação

nas terras do Novo Mundo. Cabe reforçar que os povos africanos, ainda no seu

continente, já adaptavam, entre si, suas práticas culturais, ou seja, já conviviam

com outras culturas; fosse por migrações eventuais (quando deixavam impressas

marcas das suas culturas por onde passavam) ou por rivalidades intertribais ou

interétnicas (como a dos jejes que dominaram os iorubás e ashantis).

Independentemente do motivo, tais fatos possibilitaram a aproximação de pessoas

de culturas diferentes e também possibilitaram, a partir daí, uma permuta de

informações de vários aspectos das mesmas. Pontua-se, ainda, segundo Sodré,

que

para cá vieram dispositivos culturais correspondentes às várias nações ou etnias dos escravos arrebatados da África entre os séculos XVI e XIX. Tais culturas já conheciam mudanças no próprio continente africano em função das reorganizações territoriais e das transformações civilizatórias (substituições de antigos reinos e impérios por novos dispositivos políticos de natureza estatal), precipitadas pelas estruturas de tráfico de escravo montadas pelos europeus (SODRÉ, 2005, p. 92).

Nesse sentido, entende-se que as negociações/interações não foram uma

estratégia utilizada pelos africanos no Novo Mundo; essas negociações já faziam

parte das suas culturas originárias. As trocas, as adaptações, os

48

acrescentamentos, as reorganizações já dialogavam, em diferentes contextos,

ainda em solo africano. Desmistificando a ideia de “pureza cultural”, exaltada por

muitos autores.

No Brasil, a postura dos africanos no que diz respeito à realidade conflituosa

encontrada manteve-se em uma mesma perspectiva, ou seja, a de jogar com as

realidades, com as situações impostas e vividas. Conforme apresentado, desde o

início, os proprietários dos escravizados evitavam reunir grande número de

africanos da mesma etnia. Eles acreditavam que, desse modo, dificultariam a

comunicação e o contato entre os negros por apresentarem hábitos e línguas

diferentes.

nesse espaço permitido, porque inofensivo na perspectiva branca, os negros reviviam clandestinamente os ritos, cultuavam deuses e retomavam a linha do relacionamento comunitário. Já se evidenciava aí a estratégia africana de jogar com as ambiguidades do sistema, de agir nos interstícios da coerência ideológica. A cultura negro-brasileira emergia tanto de formas originárias quanto dos vazios suscitados pelos limites da ordem ideológica vigente (SODRÉ, 2005, p. 93).

Em relação às estratégias utilizadas pelos africanos para se (re)constituírem

em terras tão distantes das suas, Barata (2012, p.29) alega que

a música, a dança e as festas foram as formas encontradas por eles para se reconstituírem e se reterritorializarem como sujeitos e comunidade; foi por meio dessas práticas que conseguiram reatar seus fragmentos simbólicos, reconstruindo e transmitindo suas memórias. Para isso, os escravos e seus descendentes precisaram estabelecer relações de troca com outros elementos culturais pertencentes às diversas etnias africanas, com europeus e indígenas.

Até aqui percebe-se que a perspectiva de trocas, reelaborações,

contextualizações, de jogar em algumas circunstâncias está presente nas

estruturas socioculturais dos escravos. Diferentemente do que fora repassado pela

“verdade ocidental”, um pensamento “elaborado” permaneceu nas relações

tecidas pelos cativos. Para a autora,

as relações simbólicas dos escravos africanos e seus descendentes com a cultura ibérica e indígena foram constituídas por meio de uma sedução pelas diferenças, graças às suas formas de conhecimento com base em analogias de símbolos e funções. Mas essas trocas não eliminaram as querelas, nem construíram nova síntese histórica cultural. Assim, participar de festas em louvor a São Benedito aparentaria uma conversão à cultura

49

do outro, enquanto poderia ser apenas uma relação analógica, comum às suas formas de pensar (BARATA, 2012, p. 29).

É importante salientar que as trocas realizadas pelos escravizados africanos

buscam uma comunicação entre si. Segundo Sodré (2005, p. 95), “na cultura

negra, a troca não é dominada pela acumulação linear de um resto (o resto de

uma diferença), porque é sempre simbólica e, portanto, reversível: a obrigação (de

dar) e a reciprocidade (receber e restituir) são as regras básicas”. Assim, verifica-

se que a ideia imputada pela cultura ocidental de troca como um meio comercial

(material) não é assumida pelo africano. A troca, para ele, é permeada por

sentidos, por significados e, principalmente, por regras. Negociá-las está na sua

natureza, nas suas ações. Jogar com essas trocas faz parte de suas práticas. O

jogar dos africanos, no Novo Mundo, foi uma grande tática de sobrevivência e de

permanências culturais. Suas danças, músicas, comidas, celebrações,

performances, instrumentos, apetrechos, roupas etc. sobreviveram (e sobrevivem

até hoje) graças à sua habilidade “nata” de jogar com a realidade que se

apresenta. Eles (os africanos) não aceitaram a condição escravizada que lhe

impuseram. Por intermédio de seus rituais, que sintetizam, em grande parte, suas

práticas e vivências, eles eram livres e alimentados com a crença nessa

“liberdade” que mantiveram vivas suas raízes. De acordo com Barata (2012, p.

45),

no Brasil, as práticas simbólicas africanas eram coletivas e, quase sempre, revestidas de uma intenção de celebrar e fazer pedidos para o grupo. Era por meio delas que se conversava com os deuses e com os ancestrais, sendo, por isso, desenvolvido por esses povos um complexo ritual de vida, que exigia, para a prática da cada ação realizada, uma invocação especial, por meio de cantos, danças, sabores, indumentária, desenhos etc. Essas práticas simbólicas faziam parte do cotidiano e eram concebidas de forma integral em que várias linguagens (música, pintura, dança, culinária, performance etc.) estavam reunidas. Cada momento importante para o indivíduo dentro da sua comunidade era festejado. Realizavam-se cerimônias para o nascimento, para a morte, para o casamento, os quais eram inseparáveis da vida por sua associação com o sagrado.

No contexto apresentado, as estratégias de jogar com as ambiguidades, de

acrescentamentos culturais, de se negociar com as realidades serviram como um

amálgama das diversas práticas étnicas do período escravocrata. Ele contribuiu

para o desenvolvimento do processo de interação cultural existente nos espaços

50

onde conviveram escravos oriundos das mais diversas nações africanas, nativos

e os imigrantes europeus.

1.4.1 Olhares – lugar de interpretações

[...] A expansão dos cultos ditos “afro-brasileiros” em todo território nacional

(apesar da diversidade dos ritos ou das práticas litúrgicas) deve-se à persistência

das formas essenciais em pólos de irradiação, que são as comunidades-

terreiros (egbé). É isso que faz com que um santo da Igreja Católica (como São

Jorge) possa ser cultuado num centro de umbanda, em São Paulo, como Ogum,

orixá nagô. Ou seja, o conteúdo é católico, ocidental, religioso, mas a forma litúrgica é negra, africana, mítica. Em vez

da salvação (finalidade religiosa ou católica), o culto a São Jorge se

articulará em torno do engendramento de axé. [...]46

As palavras de Sodré (2005) chamam a atenção para o sentido sóciocultural

que abarcam os cultos negros brasileiros, ou seja, cultos que compreendem uma

“forma litúrgica (que) é negra, africana, mítica”. Uma forma, como apresentada,

baseada em negociações, em possibilidades, em jogos, mas principalmente, que

constrói muitos sentidos. Forma esta que está distante da hegemonia ocidental,

distante de conceituações, denominações, de “verdades únicas”, mas que está no

celeiro das práticas negro-africanas que se alastraram por todo o território,

tornando-se, assim, negro-brasileiras. Também não buscaram reafirmações de

“essências”, porque, de fato, não as perderam, simplesmente, ressignificaram-as.

É diante da perspectiva de permanências culturais, que Barata (2012) destaca que

em uma dura luta por continuidade simbólica, os negros buscaram novas formas de comunicação, realizando vários acordos e negociações, os

46

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida – Por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A. 2005. 3. ed. p. 100.

51

quais levaram, muitas vezes, a descaracterizações e expropriações dessa cultura, mas não à perda de seu fundamento (BARATA, 2012, p.31).

Ainda hoje, em pleno século XXI, percebe-se uma interpretação distante, por

parte de alguns estudiosos, sobre o percurso feito pelos escravizados africanos

nos seus “acordos culturais”47 para a continuidade de seus fundamentos. Muitos

deles descontextualizam um processo sócio, histórico, político e cultural em que os

cativos estavam inseridos. Os acordos, as negociações, o “jogar”, que marcam as

vivências dos escravizados, estavam atrelados a uma teia de significados, ao

mesmo tempo em que representavam, aqui, confrontos vividos, imputados por

uma legitimação de poder. Reviver, em terras distantes das suas, as negociações

e as elaborações que já estavam habituados a realizar no dia a dia manteve, de

certa maneira, ativa suas culturas; e isso, para eles, foi maior que rótulos e

preconceitos enfrentados.

As marcas culturais herdadas por nós dos africanos que foram escravizados

em nosso país representam de certa maneira as trocas, encontros, desencontros,

disputas, tecidas na diversidade das suas estruturas culturais, na convivência (ou

não) nas lavouras, nas senzalas, nas cidades, nos festejos e celebrações. Tais

marcas fortaleceram a permanência de suas culturas como um “todo” de modo

abrangente. Cabe esclarecer que esse “todo” não é unificado de informações, mas

diversificado; e é aí que está o perfil dinâmico dessas práticas ou seja, na

perspectiva das trocas, dos acrescentamentos, dos preenchimentos, dos

movimentos e encontros étnicos que constituíram nossa história cultural. É na

pluralidade que estão nossas bases culturais – uma grande estrutura construída a

várias mãos –, que trocamos, negociamos, jogamos, acrescentamos informações

a todo momento. Não é isto ou aquilo, como buscado pelas interpretações

pautadas em um paradigma ocidental, mas é isto e aquilo, em uma perspectiva de

interação e intercruzamento de sentidos.

No Brasil, o legado cultural negro africano foi consubstanciado de modo

plural e mítico: cultos aos ancestrais, músicas, danças, culinária, vocabulários,

indumentárias etc, que foram incorporados nas práticas dessa terra por nós. Ao

terem sido incorporados, também sofreram, nas diferentes regiões,

acrescentamentos. Segundo Barata (2012, p. 24), “enquanto em Salvador a 47

Muitos pesquisadores exaltam a relação que foi estabelecida entre os santos católicos e os orixás, como se apenas por esse viés houvesse ocorrido as negociações culturais.

52

manutenção das práticas africanas se deu pelas conversas com os orixás do

candomblé, no Rio de Janeiro as formas analógicas fizeram essa ancestralidade

se manifestar nos territórios sagrados do samba”. A autora continua, afirmando

que “por isso considero o samba e partido-alto as curimbas do Rio de Janeiro”

(BARATA, 2012, p. 24). A pesquisadora segue a ideia de uma cultura afro-carioca

desenvolvida por Karasch (2000). Para ambas intelectuais, as práticas culturais

dos africanos e seus descendentes, delinearam uma cultura ímpar no Rio de

Janeiro. De acordo com Karasch (2000, p.292), os escravos empreenderam, no

pouco tempo que tinham para eles mesmos, costumes que foram sendo

incorporados por essa cidade. Ela afirma que

graças à diversidade étnica da cidade, criaram uma cultura afro-carioca nova que combinava muitas tradições africanas e luso-brasileiras. Forjaram “um bando” (umbanda) a partir de muitos grupos, e o que desenvolveram não era mais unicamente africano ou mesmo luso brasileiro, mas uma mistura de costumes que aliviava o fardo da escravidão, transmitia tradições religiosas e contribuía para o desfrute de uma vida social. Os escravos também abriram sua cultura para homens e mulheres livres, que se juntavam a eles em comemorações populares (KARASCH, 2000, p. 292).

Segundo a autora, muitos africanos recorreram à cultura de seus senhores,

ou seja, luso-brasileira, enquanto outros tantos voltassem para as tradições

africanas. De qualquer modo, “os africanos não viviam na cidade sem sofrer

influências dos que estavam a sua volta, mas por outro lado, seus donos não

ditavam todos os aspectos de sua vida cotidiana” (KARASCH, 2000). Nesse

sentido, Karasch (2000, p. 292-293) afirma que,

mesmo dentro dos constrangimentos da vida urbana e apesar de seu labor constante, os escravos eram participantes ativos da evolução de uma nova cultura, com linguagem, etiqueta, comidas, roupas, artes, recreação, vida comum e estrutura familiar próprias. É essa cultura afro-carioca, forjada a partir das muitas tradições culturais da primeira metade do século XIX, que continua a dar forma cultural ao Rio contemporâneo, onde o samba ainda é dançado, instrumentos da África Central ainda são tocados e espíritos africanos ainda são reverenciados.

Influências constantes marcaram a cultura que se criava pouco a pouco nos

festejos, nos rituais, nos intervalos “forjados” na labuta, enfim, na busca de

encontrar aqui uma prática que fora vivida. Muitas dessas influências, nascidas no

berço da escravidão, sobreviveram (e sobrevivem) até os dias atuais, de forma tão

53

“nossa”, tão familiar, que é difícil senti-las como se fossem de “outros”. Elas estão

em nós. Comunicam-se por intermédio de nossos corpos, de nossos gestos, de

nossos gostos, de nossas vozes e, principalmente, do que somos. Fazemos parte

de uma cultura que abarca a diversidade, que se constitui no dia a dia, no aqui e

agora. Bebemos na fonte da pluralidade cultural, mesmo que muitas vezes não

reconheçamos isso. É por essa razão que as negociações culturais vividas pelos

negros africanos e seus descendentes nos influenciam de modo tão natural. Elas

representam relações/elaborações constituídas por eles nas suas práticas

cotidianas.

Logo, rituais e manifestações das diferentes etnias africanas, muito

provavelmente, intercruzaram-se nos encontros propostos pela grande diáspora

negra e, mantiveram contatos nas irmandades, nas escolas de samba, nas folias,

nas congadas, nos cucumbis e nas comunidades de cultos constituídos nessas

terras. Dessa maneira, por analogias possíveis, traziam à realidade seus ritmos,

seus movimentos, suas práticas, enfim, suas memórias, colocando-as o mais

próximo possível de seus sentimentos e fazeres. Lutando cotidianamente contra a

tentativa de apagamento dos seus traços e atitudes.

Diante dessa perspectiva e embasados pela reflexão de Sodré (2005), sobre

as práticas negro-africanas de engendramento de axé desenvolvidas aqui, é que

São Jorge48 é o santo guerreiro da Capadócia reverenciado nas tradições

católicas, ao mesmo tempo em que pode ser Ogum, o orixá responsável pelas

lavouras, vinculado ao ferro, desbravador, nos cultos de matrizes africanas e,

ainda, ser o vencedor de demandas da umbanda. Do mesmo modo, Oyá é a

deusa do rio Níger, senhora dos ventos, das tempestades, das transformações e,

ainda, é saudada em uma abordagem da cultura branca, ou seja, vinculada a

santa Bárbara.

Moça rica com sua espada luminosa Sua coroa é cravejada de brilhantes Umbanda êêê Umbanda ááá

48

O destaque dado a São Jorge, nessa parte da pesquisa, justifica-se no fato de ser um dos santos mais festejados no Rio de Janeiro pelas comunidades de cultos negros. Sua expressividade nos mesmos perpassa pelas festividades/celebrações católicas.

54

É Santa Bárbara rainha do Jacutá49

O dia 4 de dezembro é dedicado a Santa Bárbara nos festejos católicos, mas

também é ritualizado nas comunidades de cultos negros brasileiros à Oyá. É

comum se celebrar, neste dia, nos referidos espaços, o acarajé50 de Oyá. O

terreiro é preparado para que a ancestral venha saudar seus adeptos ofertando-

lhes sua iguaria predileta: o acarajé. Após servi-los um a um a seus fiéis, a

ancestral tem o seu run, que é o momento em que ela dança as cantigas que lhe

são cantadas pelos ogãs51.

Figura 4 – Babalorixá Ricardo de Oxum fazendo seus rituais em frente a Igreja de Santa Bárbara – Rocha Miranda, Rio de Janeiro – em 04 de dezembro de 2013.

49

Cantiga dedicada à Oyá nos rituais de Umbanda. 50

O acarajé é a comida preferida de Oyá. É preparado com feijão fradinho descascado e pilado, pimenta, cebola (que devem constituir uma massa homogênea) e frito no azeite de dênde.

51

Homens iniciados em orixá que tem as funções de sacrificar, cantar e tocar para os ancestrais divinizados. Cada uma dessas funções recebe uma designação específica: axogun é o ogã que faz os sacrifícios dos animais; alabê é o que canta e toca os atabaques e tem ainda o pedigã que auxilia o zelador/a na administração da comunidade de culto; aquele que zela para que os rituais transcorram tranquilamente.

55

Figura 5 - Babalorixá Ricardo de Oxum fazendo seus rituais em frente a Igreja de Santa Bárbara – Rocha Miranda, Rio de Janeiro – em 04 de dezembro de 2013.

Essa circulação “intercultural” (santo católico–orixá–entidade) nas diversas

práticas da cultura brasileira, na qual se interpenetram novenas e missas, em uma

leitura católica, sacrifícios de animais nos cultos negros brasileiros, velas das

cores que representam as entidades e bebidas nos rituais de umbanda é um dos

exemplos de que cada “interpretação cultural” não é melhor ou mais verdadeira,

mas é um canal de comunicação e interação criado pelo homem, enquanto sujeito

sócio, histórico, político e cultural. Tais interpretações não representam “trocas

culturais”, e sim um jogo com a ordem ideológica (SODRÉ, 2005) de um período

histórico para as permanências culturais. Jogo esse que não se desvincula dos

sentidos, dos afetos e das analogias possíveis.

1.4.2 Um legado

O dia a dia dos escravizados era pautado sobre o poder de seus “donos”. A

imposição por parte dos senhores buscava a desestruturação sócio cultural dos

cativos, uma “tentativa de apagamento” de suas raízes. Um exemplo destas

imposições era o batismo católico aos escravos recém-chegados. Os senhores

acreditavam que, com essa atitude, eles incorporariam os traços cristãos,

tornando-se dóceis e subservientes, abandonando, assim, antigos costumes e

rituais que, na visão ocidental, eram demoníacos. Desde sua chegada a essas

56

terras, os rituais negro-africanos tornaram-se o alvo de “extermínio” por parte dos

senhores. A todo custo eram impostas, aos imigrantes, forçadas atitudes e regras

condizentes com a fé cristã e que estivessem de acordo com “prática da

salvação”. Destacamos, nesse contexto, que a imposição da fé não estava

apartada das relações de poder. Era ele (o poder) que buscava impregnar os

cativos de traços e costumes que não lhe faziam o menor sentido,

desconsiderando suas memórias e histórias e, dessa maneira, enfatizava a política

senhorial. É importante destacar que os escravos “aparentemente” aceitaram o

catolicismo, ou seja, existiu a dissimulação de uma aceitação para poderem

manter, de certa maneira, o culto a seus ancestrais. Pontua-se, também, que a

dissimulação do escravo não passou pelo acaso, mas buscou uma “interlocução”

entre os atores mítico-religiosos: santos católicos e ancestrais divinizados e, ainda,

jogou com o poder posto.

Cabe pontuar que, segundo Foucault (1995, p. 142), “o exercício do poder

cria perpetuamente saber, e inversamente, o saber acarreta efeitos de poder”.

Assim, os africanos faziam parte deste “jogo de poder” que se acreditava estar

somente nas mãos dos senhores que impunham seus novos saberes (a fé cristã)

por intermédio de seus poderes. No entanto, como já afirmamos, os africanos,

mesmo sofrendo essa “tentativa de apagamento” de seus costumes, eram

arraigados de saberes próprios, possíveis e reais; saberes que, como nos afirma

Foucault, eram entrelaçados de poderes que não foram “expulsos” de suas

práticas.

O convívio com a fé cristã não representou o fim de suas práticas

ritualísticas. Não impossibilitou o diálogo/contato com os seus ancestrais. Manter

contato com as práticas religiosas dos senhores possibilitou a sua movimentação

e, consequentemente, suas articulações. Foi na possível aceitação das

imposições senhoriais que relações foram estabelecidas e aproximadas; que

novas possibilidades vieram à tona; que” jogos culturais” tornaram-se possíveis.

Vale destacar que, em muitas circunstâncias, as práticas católicas convivem

nas comunidades de cultos negros brasileiras até os dias atuais. Vários são os

momentos em que há a presença de água benta, missas, rituais e simpatias com

santos católicos. De certo, o transitar dessas práticas se deu no momento das

imposições que citamos anteriormente. Tais ações penetraram os espaços do

57

ritual, e mesmo os que se intitulam “tradicionais e puros” muito provavelmente já

participaram do acarajé de Oyá, na Igreja de Santa Bárbara, no dia 4 de

dezembro, dia que também é dedicado a Santa Bárbara, como já abordamos.

Figura 6 - Fiéis na Igreja de Santa Bárbara no bairro de Rocha Miranda, Rio de Janeiro. Em 4 de dezembro de 2013. Dia dedicado a Santa Bárbara

Figura 7 - Gruta dedicada à Oyá na loja O Mundo dos Orixás – Rocha Miranda, Rio de Janeiro

58

Outra forte presença das culturas cristãs nas comunidades de cultos negros

brasileiros é a missa do elégùn52. De acordo com zeladores, ela era obrigatória em

muitos candomblés, finalizando os rituais de iniciação. Após o dia da cerimônia de

apresentação do noviço à comunidade religiosa, este se dirigia à igreja para

assistir a missa e, em seguida, encaminhava-se à casa de zeladores da

redondeza para pedir bênçãos. A cerimônia católica fazia parte dos rituais

iniciáticos de tal modo que os noviços eram incorporados por seus ancestrais53.

Durante os anos que venho pesquisando e dialogando com iniciados em

orixá, notei o quanto é importante para muitos deles a separação dos traços

judaico-cristãos de suas práticas negras. Em alguns casos não admitem sequer

rituais que aproximem ou se justifiquem entre ancestral divinizado e santo católico.

Falam com veemência que “santo não é orixá” e que prosseguir, na atualidade,

com essas práticas significa continuar aceitando as imposições das culturas

brancas54.

Contudo, independentemente de posicionamentos político-religiosos, é

imprescindível perceber que o negro africano procurou analogias entre as diversas

formas míticas (inkisse, orixá e vodun) e os santos católicos; não se tratou de

identificá-las nem de misturá-los, o que seria, de fato, um sincretismo, mas

encontrou, segundo a visão de mundo deles, equivalências mítico-religiosas.

Manter contato com os santos católicos era o contorno possível na realidade posta

em um período histórico e, principalmente, político. A lógica utilizada era pautada

em uma racionalidade própria (já faziam isso no continente africano) e,

consequentemente, diferente da visão ocidental.

Reiteramos que as reelaborações vividas e praticadas pelos escravos

possuíram várias analogias que se respaldavam nas suas mentalidades, nas suas

interconexões e, principalmente, nas condições sociais, culturais, políticas e

religiosas encontradas aqui. Não se pode desconsiderar que elas significaram a

possibilidade do “existir cultural” de vários povos. Mesmo sem exatidão, as

52

Essa prática perdurou até o final do século XX, de acordo com os participantes deste estudo. 53

Vale pontuar que, segundo algumas declarações, nem sempre a presença do iniciado era vista positivamente por líderes e adeptos católicos.

54

No ano de 1983, líderes de cultos negros brasileiros, mais precisamente algumas Ialorixás do candomblé baiano, assinaram um documento conhecido por “Manifesto Antissincretismo”, propondo um rompimento entre a religião negro-brasileira e o catolicismo, bem como uma “reafricanização” dos terreiros de matriz africana no Brasil.

59

reelaborações possibilitaram a implantação de rituais que aproximavam os cativos

de suas origens, de suas práticas, de seus ancestrais, de sua África. O jogar com

as ambiguidades foi o percurso utilizado pelo negro para migrar as suas

celebrações, seus ritos, suas festividades, mesmo que com outras “roupagens”,

para o cativeiro. As analogias praticadas pelos africanos foram a grande

responsável pelas negociações culturais que implantaram os cultos de matrizes

africanas no Novo Mundo. Banto, nagô e fon – legados sócio, mítico e cultural que

conviveram e comungaram aqui suas práticas.

Em relação ao povo nagô, Sodré (2005, p. 99) afirma que

a cosmogonia e os rituais nagôs não se implantaram no Brasil exatamente como existiram na África. Houve aqui uma síntese operada sobre o vasto panteão dos orixás africanos, assim como modificações de que só o trabalho etnológico poderá dar conta. Em outras palavras, a forma original (africana) foi reposta, sofrendo alterações em função das relações entre negros e brancos, entre mito e religião, mas também entre negros e mulatos, e entre negros de etnias distintas.

Partindo dessa afirmação, é possível elocubrar que as outras etnias

passaram por essa mesma realidade, ou seja, a transposição de seus rituais para

essas terras. Implantaram, também, aqui, instituições paralelas que objetivavam

manter vivas suas culturas. O autor revela que “a originalidade negra consiste em

ter vivido uma estrutura dupla, em ter jogado com as ambiguidades do poder e,

assim, podido implantar instituições paralelas” (SODRÉ, 2005, p. 99). O autor

esclarece, ainda, que a existência paralela de instituições por parte dos escravos

se deu pelo fato de eles estarem submetidos ao poder da cultura dominante

(ocidental), convivendo com as pressões vigentes da sociedade, cujos modelos

estavam pautados na religião católica (SODRÉ, 2005). É diante dessas pressões e

na perspectiva de manterem-se, de certo modo, resistentes e unidos que surgem

as confrarias e as irmandades religiosas. De acordo com Heywood (2010, p. 9),

essas irmandades serviram de incubadoras de diversas religiões e outras

tradições culturais que vieram a ser associadas aos brasileiros.

No Brasil, os cultos de matrizes africanas se difundiram e propiciaram o

surgimento de novos cultos negro-brasileiros, onde o candomblé55 assumiu o

55

O candomblé é dividido, geralmente, identificado pelas representações das nações africanas: nagô, ketu, efon, ijexá, jeje, angola e congo. Há, ainda, os que se denominaram com terminologias daqui: caboclo, xangô etc.

60

legado sócio cultural e a identidade afro-brasileira56. A identificação com as

nações africanas da diáspora possibilitou uma (re)inserção na esfera dos cultos

aos ancestrais que para cá vieram com os escravizados. Os descendentes dos

cativos (e na ideia de um continuum) e também seus descendentes, propagaram

seus rituais e suas práticas mítico religiosas por todo o território. Inkisses, orixás,

voduns, mesclaram-se e, por intermédio de seus “filhos”, (re)criaram aqui novos

cultos que procuraram manter vivas às tradições das suas “nações”, acreditando,

assim, na proximidade da sua África mítica.

Cabe destacar que muitas dessas misturas étnicas efetivaram-se nas

irmandades religiosas. Nelas os africanos mantinham vivas práticas rituais,

diálogos com seus ancestrais e reelaboravam, em parte, seu mundo, sobretudo

durante a organização e a realização de suas festas devocionais, momentos em

que conseguiam transcender, mesmo que temporariamente, sua condição de

excluídos sociais. A proximidade e a convivência dos cativos e ex-cativos nas

irmandades, nas escolas de samba, nas folias, nas congadas, nos cucumbis, nas

comunidades de cultos, possibilitou a preservação das suas tradições. Com suas

danças, batuques, ritmos, culinária, que nos festejos e celebrações reassumiam

seus sentidos, eles comungavam e partilhavam suas histórias, ao mesmo tempo

em que veneravam o santo padroeiro da irmandade.

Foi nesse cenário que os cultos negros brasileiros surgiram; nos encontros,

nas adições, nos conflitos, nas disputas, nas intercessões, ratificando, assim, a

importância da coletividade para eles. Desse modo, o candomblé brasileiro

representa uma dessas formas coletivas de se representar as memórias, os

símbolos, os rituais, o vínculo aos ancestrais, enfim, de “reinventar sentidos”.

56

Para Capone (2009), o termo afrobrasileiro apresenta problemas epistemológicos, pois encontramos, no conjunto do campo religioso afrobrasileiro, cultos como o kardecismo e a umbanda “branca”, que não se reconhecem como cultos de origem africana, mas que estão intimamente ligados às modalidades de culto (omolocô, candomblé, umbanda branca etc.) que reivindicam uma herança africana. Segundo ela, com efeito, veremos que os médiuns circulam de uma modalidade a outra, em um continuum religioso que vai do polo considerado menos africano (kardecismo) àquele considerado mais africano (candomblé nagô).

61

2 OS FUNDAMENTOS QUE SUSTENTAM A INICIAÇÃO SOCIORRITUALÍSTICA

A iniciação nos cultos negros brasileiros sustenta as relações que se

estabelecem entre adepto e ancestral divinizado. Ela é a parte fundamental dos

ritos. Para os iniciados que participam desse estudo ela é o alicerce onde se constrói

o elégùn; onde há a fusão entre os atores ritualísticos (iniciado e ancestre); onde

eles se unem. A iniciação é, ainda, o ritual mais complexo e intenso, pois pressupõe

o renascimento.

Esclarecemos que para a construção deste estudo realizamos entrevistas

semiestruturadas com trinta elégùn dos diversos orixás que são cultuados em solo

brasileiro57, ao longo do período proposto para a realização do curso (2012 – 2014).

Entretanto, acentuamo-nos nas participações dos iniciados da ancestral Oyá por ser

ela, um dos pilares de sustentação dessa investigação. Intensificamos que, parte

considerável desse trabalho enfoca as histórias e memórias iniciáticas ritualísticas

deles (elégùn de Oyá) e, ainda, das histórias e memórias dos elégùn dos diversos

ancestrais sobre Oyá.

Nesse sentido, elucidamos que, há, também, as contribuições das conversas,

discussões, debates acerca do assunto e experiências individuais desses vinte e

sete anos de renascimento.

2.1 As linguagens na constituição das identidades ritualísticas

No capítulo anterior dissertamos sobre a origem dos cultos negros no Brasil e

no Novo Mundo e como eles se utilizaram de permanências, trocas e jogos culturais,

além de preenchimento de vazios, para a preservação de suas práticas (BARATA,

2012). A partir do reconhecimento desses cultos, ou seja, da compreensão de que

eles estão presentes nessas terras desde nossa colonização, no período da Grande

Diáspora Africana, faz-se necessário debruçar-nos nas interferências e/ou

57

Reforçamos que os ancestrais divinizados migraram para o Novo Mundo através das memórias de milhares de homens e mulheres africanos. Seus cultos foram reelaborados, reestruturados, recriados e, até mesmo, reinventados, por analogias possíveis.

62

participações que eles têm na formação da população brasileira, enquanto um fazer

social, e na constituição das identidades dos seus seguidores/iniciados, enquanto

um universo de ações ritualístico-religiosas. Seus traços, suas características, suas

nuanças, suas práticas, enfim, todos os elementos que de uma maneira ou de outra

se inserem na pluralidade cultural brasileira também compõem o corpus religioso

propagado nos referidos cultos. Nesse sentido, abordar essas interferências no

processo de iniciação dos adeptos dos cultos negros brasileiros é fulcral, pois a

iniciação é a porta de entrada para que o seguidor seja considerado um iniciado em

orixá: um elégùn.

Esses cultos, em sua maioria, pautam-se na oralidade. Fazem parte da

imensa herança deixada pelos africanos para todos nós; heranças trazidas em suas

memórias e nos seus corpos; e, também, de hábitos e costumes que a necessidade

fez com que eles (re) construíssem em território brasileiro. Heranças de suas vidas,

de suas vivências, da continuidade da sua formação humana nessas terras.

Heranças de suas práticas culturais realizadas em suas terras, em suas tribos, em

suas nações. Heranças reelaboradas aqui na labuta nos engenhos, nas senzalas, no

movimento da colonização. A sobrevivência delas por tantos séculos (até os dias

atuais) é alimentada pela linguagem oral. Ela é um dos grandes veículos das

culturas negro-africanas e negro-brasileiras. É pela linguagem oral, da língua falada

e cantada, que a comunicação se torna mais um espaço de aprendizagem. Nessa

perspectiva, o falar e o cantar constituem-se no verbo. Nos cultos de descendência

africana as palavras têm um grande poder e, consequentemente, saber

(FOUCAULT, 1995). Elas interagem com os seres e as coisas. As palavras são

mantidas e envolvidas por um poder relacionado com a magia do já vivido, o mítico,

o ritual, o ancestral e, principalmente, a consciência e o pensamento. O pensamento

também é apresentado pelas palavras, ou seja, pela linguagem oral. Para Ong

(1998, p. 123), as pessoas pensam de acordo com a maneira que possuem para

expressar suas vivências, seus modos, seus agires, de acordo com sua cultura. A

linguagem oral, segundo o autor, é um dos caminhos (assim como os sons, os

gestos, as danças) que leva a construção do pensamento. Logo é a

linguagem/pensamento que também se torna a responsável por reviver, reativar,

renascer: histórias vividas, histórias contadas, histórias cantadas, histórias

63

encantadas, histórias saboreadas, histórias que exalam seus cheiros pelo ar,

histórias sagradas... histórias.

Nesse contexto, elencamos a palavra falada (oralidade) como um dos

caminhos de interação e identificação dos seguidores às suas práticas, às suas

casas de santo, às suas “nações”58, às suas comunidades de terreiro; às suas

comunidades de cultos negros, ao candomblé etc. É por intermédio das linguagens

oral e não oral que se inicia a relação com novos termos, novos nomes, novos

gestos, novas representações, novos contatos com os deuses e ancestrais, com

verdades antes desconhecidas ou desconsideradas, com os espaços e os

costumes59.

De acordo com Salami (1997, p. 44), nos cultos de origem africana, “a

linguagem oral alcança a dimensão de elemento vital, componente da

personalidade, da cultura e da história, constituindo-se em processo que se

desdobra de instâncias muito abstratas às práticas sociais”. Cabe esclarecer que a

oralidade, a palavra, a voz, os sons, a performance, os gestos, os cheiros,

representam uma parcela das linguagens que permeiam os ritos iniciáticos. Assim,

observamos que, segundo o pesquisador, a palavra oral ocupa um lugar de

destaque: o de “elemento vital”. O verbo60 participa ativamente mediante cânticos,

rezas, contação de histórias dos mais velhos, dos antepassados e da comunidade.

Logo, ela se constitui no iniciado; no seu ser, agir, produzir, pensar, falar, contar,

cantar, recontar, transmitir, e principalmente, realizar. Ela apresenta o mundo mítico

e sagrado ao iniciado; “esculpe a sua alma” (HAMPATE BÂ, 2010, p. 174).

58

No Brasil, os cultos negros brasileiros, em sua grande maioria, são vinculados às nações dos africanos que disseminaram aqui os seus cultos e práticas rituais, quando vieram forçosamente para o trabalho escravo. Desse modo, Ketu, Angola, Jeje, Efon, são algumas “nações” que se presentificam nos espaços de cultos negros brasileiros.

59

Vale, mais uma vez ressaltar que, os africanos que para essas terras vieram entre os séculos XVI e XIX, em sua grande maioria, utilizavam-se da palavra oral para se situar no Novo Mundo. Nessa perspectiva, pautarmos a discussão sobre a constituição das identidades dos iniciados nos cultos negros brasileiros, primeiro, na palavra oral, é fundamental, sendo ela a grande responsável pela transmissão de conhecimentos milenares. Esclarecemos, ainda, que, o fato de priorizarmos a palavra oral como fonte de conhecimento para atingirmos a finalidade proposta, não significa total ausência de escrita nos referidos cultos e, muito menos, analfabetismo.

60

VERBO (de acordo com Michaelis) sm (lat verbu) 1 Palavra, expressão, elocução. 2 Gram A palavra que exprime, por reflexões diversas, o modo de atividade ou estado que apresentam as pessoas, animais ou coisas de que se fala. 3 Palavra que significa alguma ideia extraordinária e de grande importância. 4 Tom de voz. 5 A parte principal de uma coisa.

64

A linguagem oral se presentifica nas ações do iniciado enquanto sujeito, ao

mesmo tempo em que o constitui enquanto iniciado/sujeito. Ela envolve todas as

relações travadas pelo iniciado; ela é um bem. Está nas suas práticas ritualísticas,

sociais, políticas; está em suas culturas. Quando citamos a linguagem oral,

remetemo-nos, também, à voz e ao papel fundamental que ela assume no “embalar

das palavras”. Linguagem oral e voz estão nos cultos negros brasileiros de modo

intenso e constante. São as vozes entoadas nos cânticos, nas rezas, nas ladainhas,

na entrega das oferendas que ativam as histórias e as memórias, que ativam o

corpo, assumindo, assim, a sua “carnalidade” (ZUMTHOR, 1997, p. 43-44).

A voz integrada ao corpo se constitui em movimento, em interação, em

representação, em diálogo com o ancestral e vida. É a concretude da voz, segundo

Zumthor (1993, p. 21), que afeta os participantes dos cultos negros e auxilia a sua

interação com o contexto proposto. Para o autor, a voz é concreta, enquanto a

oralidade é abstrata (ZUMTHOR, 1997). Nesse sentido, ele prefere a palavra

vocalidade, como representação concreta da voz, à oralidade (ZUMTHOR, 1997).

Hampate Bâ (1979, p. 48), em seus estudos, enfatizou a importância da

linguagem oral, da palavra falada nas culturas africanas. Para ele, a palavra é a

“grande escola da vida”. Nela o material e o espiritual comungam, assim como nas

linguagens não orais. É no celeiro das linguagens que se encontram religião,

ciência, cultos, história, consagrações, festejos, ritos, rodas, nações, relações,

origem. As linguagens trazem em si pensamentos, mensagens, ideias, movimentos,

gingados, formas, representações, identidades, identificações e, principalmente, as

histórias vividas que habitavam as memórias e os corpos de milhões de homens e

mulheres africanos. Elas acompanham o homem pelos tempos.

É Hampate Bâ quem cita que “na África, cada velho que morre é como se

uma biblioteca inteira fosse incendiada”. Percebemos nesse pensamento o quanto

as linguagens agregam conhecimentos e saberes por toda uma existência.

Conhecimentos que são elaborados e reelaborados na prática, no agir e no realizar.

Nesse contexto, percebemos o quanto a sabedoria apreendida no exercício dos

conhecimentos se remete à tradição, ao respeito aos saberes dos mais velhos, à

valorização da sabedoria constituída por toda uma vida. É dessa maneira que, nos

espaços de cultos, os mais velhos são tratados como os sábios que ensinam suas

aprendizagens aos noviços; e por terem seus conhecimentos e sabedoria

65

reconhecidos, recebem, além do respeito que é fundamental nas relações que se

travam, homenagens e reverências nos momentos de cultos e de festejos. São

destacados por suas vivências. Cabe esclarecer que nas comunidades de terreiro

nem sempre esse “mais velho” significa, necessariamente, o tempo de vida do

adepto – o tempo cronológico – mas sim seu tempo de iniciação em orixá, o seu

tempo de convivência e partilhamento com seus pares no espaço de culto. Assim,

além de se valorizarem e reconhecerem as experiências vividas pelos mais velhos,

legitima-se, também, o tempo de iniciação e de prática ritual do seguidor. É por esse

motivo que nas comunidades de cultos negros encontram-se crianças e

adolescentes que, na estrutura ritualística, estão à frente de adultos e, em alguns

casos, até mesmo de idosos.

Figura 8 - Ekedi Vitória d’Oyá – de 4 anos de idade e o mesmo tempo de iniciada – no Ilê Ase Orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá.

66

Figura 9 - Ekedi Vitória d’Oyá – de 4 anos de idade e o mesmo tempo de iniciada – no Ilê Ase Orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá.

O tempo de iniciação é extremamente valorizado, pois acredita-se que a vida

no santo, ou seja, a vida pautada sob a ótica dos cultos negros brasileiros, é uma

fase do renascimento, ou melhor, o nascimento simbólico para uma nova vida.

Renasce-se no ancestral divinizado, logo, essa nova vida é a que faz sentido dentro

dos espaços de culto, e não a vida mundana. Dessa maneira, acredita-se também

que o lidar do iniciado nos ritos e suas práticas diárias o constitui enquanto um

sujeito ritualístico e interligado ao seu ancestral divinizado. Seu tempo de iniciação

determina a sua participação, ou não, em determinados rituais. Desse modo, seus

conhecimentos se ampliam conforme sua atuação no protocolo das comunidades de

cultos. Assim como uma criança aumenta o seu vocabulário nas relações que trava

no seu real, apreendendo novas palavras e, consequentemente, novos saberes, o

iniciado também amplia seu vocabulário e seus conhecimentos nos ritos, e

consequentemente com seus pares.

Enfatizamos em alguns momentos deste estudo o destaque à palavra oral

sem que tenhamos a intenção de um confronto entre a linguagem oral e a linguagem

escrita nos cultos negros afro-brasileiros.

67

[...]A escrita é uma coisa e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas ela não é o próprio saber. O saber é uma luz que está no homem. É a herança de tudo o que os ancestrais puderam conhecer e nos transmitiram em germe, assim como o baobá está potencialmente contido em sua semente (...) Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como cera virgem” (HAMPATE BÂ, 1993).

Tal destaque é por acreditarmos que a oralidade está indissociavelmente

ligada ao homem e à natureza, à vida e ao mito, ao movimento dos corpos, ao

sagrado e ao profano. Assim, acentua-se de maneira significativa nas práticas

socioculturais dos iniciados, enquanto seres ritualísticos, seres que convivem entre o

homem e o ancestral divinizado (Orixá). Ressaltamos, também, que a tradição oral

foi, durante um longo período, a característica que mais acentuou as discussões

sobre a História Africana. Segundo Bonvini (2010 apud BARATA, 2012, p. 36)),

[...] Não há dúvida de que existiu e existe ainda hoje no Brasil uma tradição oral bastante viva, de origens francamente africanas e que constitui uma verdadeira herança de conhecimentos de todas as ordens, transmitidos de boca em boca através dos séculos, apesar de um contexto particularmente hostil e de um desenraizamento brutal devido à escravidão. Essa herança de conhecimento de todas as ordens é transmitida por inúmeras ‘palavras organizadas’: fórmulas rituais; rezas; cantos; contos; provérbios; e adivinhações, algumas em línguas africanas, outras, as mais numerosas, em português. Por meio dessas ‘palavras’, uma ‘alma’ africana sobreviveu e vive ainda no Brasil

Essa oralidade tão forte, tão alicerçada está presente e viva nos espaços de

cultos negros brasileiros. Ela permeia os rituais, seja na orientação de uma dança,

seja no ensinar o tempero da comida ou, simplesmente, nos diálogos entre os pares.

A linguagem oral, segundo Zumthor (1993, p. 18), não traz a obrigatoriedade de um

contato com a escrita, ou seja, ela pode ser “primária e imediata”. Nas comunidades

de cultos, a oralidade assume o lugar de trânsito por onde circulam as práticas, os

ritos, os costumes, por onde se celebra a vida. Ela é locus das aprendizagens da

nova vida. É também na oralidade, no verbo, que o elégùn se constitui, faz-se

homem, forma-se e se informa. Ela é ventre, colo, berço e escola (HAMPATE BÂ,

1979) por onde a formação humana do iniciado se dá. Na mesma forma, Barata

(2002), ao se referir a permanências e deslocamentos das matrizes africanas no

samba carioca, afirma:

os saberes de um infinito número de sambistas são orais, baseados na narrativa e apreendidos sem qualquer registro escrito, passados de

68

geração a geração. É um saber apreendido com a prática, através do diálogo, onde a capacidade de memória independe da escrita (que é algo externo ao sujeito) (BARATA, 2012, p. 4).

Através das palavras da autora, é possível inferir que, assim como os saberes

dos sambistas cariocas circulam e se legitimam sem a menor necessidade do

registro escrito, pois são transmitidos na sua própria dinâmica, da mesma forma os

saberes dos adeptos dos cultos negros brasileiros se pautam. Tais saberes criam

sentido no encontro das práticas dos sujeitos com os seus sentidos. Barata (2012, p.

14) alega, ainda, que

[...] o saber proveniente das sensações, dos sentidos e do fazer é desvalorizado ou, pior, não é considerado saber. Todo o conhecimento que se tem por outros meios que não a lógica, não é considerado válido, pertence ao nível da opinião, do senso comum, do sentido, das emoções. O saber considerado provém de uma concatenação lógica do pensamento, de uma capacidade de racionalização onde são encontrados os critérios da verdade e da falsidade.

Ao que se refere aos cultos negros brasileiros, a palavra oral é locus de

constituição de saberes/aprendizagens, é elemento de origem divina, força

fundamental emanada do próprio Ser Supremo61, é, ela própria, instrumento de

criação (SALAMI, 1997, p. 48). Está impregnada de axé, de força ativa, de poder de

atração, de conhecimentos. É nesse contexto que a palavra “vive” nos cultos até os

dias atuais. Ela está presente em todos os momentos ritualísticos: na consagração

das folhas, dos animais, dos alimentos; nas evocações dos ancestrais, na exaltação

dos feitos dos antepassados, nas ladainhas, nos cânticos, nos orikis – poemas de

louvação (Cf. SANTOS, 1986) que geralmente retratam os feitos dos ancestrais

divinizados em sua existência humana; nas aduras – rezas específicas destinadas

aos ancestrais divinizados; nos ibas – formas de saudações aos ancestrais

divinizados; nos orins – cânticos sagrados de louvor aos ancestrais divinizados; nos

itans – histórias ou mitos dos ancestrais divinizados; nos ofós – palavras proferidas

pelos iniciados nos cultos (SANTOS, 1986); nas rodas, nas reformulações das

práticas diárias, como no simples ato de se alimentar, banhar-se, acordar e dormir

etc. Não há ritual sem linguagens, sem expressões orais e do corpo. Não há

61

Salami reporta-se a Olodumarê, sempre como Ser Supremo (chamando-nos a atenção com as iniciais maiúsculas).

69

iniciação sem a representação do verbo e do gesto, sem a voz e sem a ginga dos

corpos, sem afetar os sentidos.

Dessa maneira, o ritmo dá vida às palavras; por intermédio dele elas criam

forma. Não basta proferi-las simplesmente, é preciso senti-las, vivê-las, incorporá-

las. Hampate Bâ (1979, p. 57) nos diz que “a fala deve reproduzir o vaivém que é a

essência do ritmo”. Ong (1998) apresenta os sons como suporte que embala as

palavras. Ambos os autores reconhecem a importância do som e do ritmo como

elementos que tornam vivas as palavras. A palavra falada/cantada é movimento.

Esse movimento se dá na comunicação, no contato, no diálogo. Ele é estruturado

em todo o processo ritualístico.

Desde o amanhecer até a chegada da madrugada o noviço é envolto pelos

ritmos das vozes de todos que participam da sua iniciação, pelos ritmos dos

movimentos de seus corpos, pelo ritmo de suas reverências nos rituais e no lidar da

rotina. O iniciado é “gerado” através dos movimentos dos ritmos: seja nas rezas, seja

nos cânticos, seja nas danças, seja no alimento sagrado, seja no conhecer e se

apropriar das “ciências” das ervas. Quanto mais movimento mais possibilidade de

aprendizado, maior manutenção de memória e de interação com o novo universo

mítico, mais o seu corpo falará e, consequentemente, estará como parte da

dinâmica do ritual. Entendemos que é na reprodução do que se ouve e do que se

observa que se exercita as novas palavras, os novos sons, os novos ritmos, as

novas entonações; que se apreende um vocabulário antes desconhecido, que se

apropria de histórias e verdades seculares, que o corpo se envolve e se embala nas

danças, nas rodas.

Zumthor (1993, p. 78) afirma que “nossos sentidos, na significação mais

corporal da palavra, a visão, a audição, não são somente as ferramentas de registro,

são órgãos de conhecimento”. Embasados pelo o autor, reafirmamos que, para o

elégùn manter-se como parte integrante e ativa dos/nos rituais, é necessário ter

seus sentidos interagindo a todo o momento com esses rituais. Repetir, reproduzir,

refazer, exercitar são algumas ações que estão na dinâmica dos rituais e que

buscam a melhor execução do proposto no momento por parte do adepto. A

repetição do “já-dito” pelo ouvinte\falante, segundo Ong (1998), busca garantir a

transmissão das culturas ritualísticas às futuras gerações. O autor continua,

70

afirmando que “o conhecimento tem que ser continuamente repetido para que as

novas gerações possam, ‘arduosamente’, aprender” (ONG, 1998).

Na rotina das comunidades de cultos, a repetição e o exercício do ouvir são

possibilidades para que o iniciado constitua o seu conhecimento. Os mais velhos no

culto repassam dia a dia os conhecimentos primordiais para que o iniciado se intere

e integre no contexto posto, além de objetivar que ele se aproxime do seu ancestre

divinizado. Aos poucos, os ebômis62 vão aumentando o repasse de informações.

Tais conhecimentos, em sua maioria, são repassados no devir, na prática, na

realização dos ritos. Em outros momentos, faz-se necessário uma ação quase que

didática. Alguns adeptos ficam com a responsabilidade de estruturar parte dos

conhecimentos/aprendizagens como em uma aula, havendo, até mesmo, a

necessidade de registros escritos em determinados momentos. No entanto,

ressaltamos que é na capacidade de memorização, aqui entendida como registrar

na mente, que os mais velhos fixam os conhecimentos nos adeptos. Além desses

momentos em que há quase uma aula formal, é também nos rituais que são

organizados no decorrer de todos os dias de reclusão e que acontecem ainda de

madrugada, antes do clarear do dia, que o iniciado tem seu aprendizado63. É

possível conjecturar que, seja talvez, acreditando que a mente terá maior

predisposição para reter as informações repassadas nas histórias contadas e

cantadas, por estar mais descansada após o seu sono64. Ainda de acordo com Ong

(1998), as culturas orais não gastam energias com novas especulações: a mente é

utilizada predominantemente para conservar, para manter a proximidade com o

“mundo vital”.

Para os praticantes dos cultos, a cabeça é denominada “ori” e é assim que os

iniciados referem-se às suas cabeças: “meu ori”. A importância de ori está presente

nos cultos negros brasileiros, independentemente das “nações africanas” as quais

eles estejam interligados; seja nagô, jeje, efon, angola etc, o ori é o primeiro a ser

cultuado. Ele é considerado um orixá. É o primeiro a ser louvado nos cultos negros

62

Iniciados que possuem mais de sete anos de iniciação, com suas devidas obrigações/oferendas rituais, em dia, ou seja, o indivíduo pode ter quinze anos de iniciado, mas se suas oferendas rituais encontram-se atrasadas ele não é, ainda, um ebômi.

63

A utilização da madrugada para os rituais, na grande maioria das vezes, é para se evitar a quentura do sol. Como a utilização da simbologia está arraigada nos referidos cultos, mesmo nos dias nublados ou chuvosos, respeita-se os horários do sol.

64

Deixo claro que essa é uma percepção desse estudo.

71

brasileiros; ori é o portador de axé, é quem direciona o destino do seguidor, “é quem

nos permite à vida; é quem veio conosco para o mundo”, segundo os relatos dos

entrevistados. Percebemos neles a crença em ori/cabeça como um elemento

supremo do corpo, envolto pelo sagrado. Sua supremacia está posta nos cultos.

Tanto que, ele, ori, é reverenciado antes mesmo que o ancestral divinizado, na

cerimônia do Bori, que significa louvar a cabeça, dar oferendas à cabeça. O Bori tem

a função de preparar o ori para que o ancestral possa receber satisfatoriamente as

oferendas que lhe serão dadas. É nessa cerimônia que o ori é louvado, estando,

assim, apto para consentir que o ancestre receba as oferendas que lhe serão

destinadas.

Figura 10 - Apresentação de elégùn à comunidade do Ilê Ase Ogun Iemanjá a ti Oyà

72

Figura 11 - Elégùn de Oxum e Elégùn de Logun Edé

Figura 12 - Elégùn de Oxum

Assim, o ori/a cabeça, como materialização/representação física da mente, é

extremamente valorizado(a), cultuado(a), reverenciado(a) nos cultos negros

brasileiros. É onde habitarão as aprendizagens para a nova vida, onde as novas

73

palavras circulam e se encaixam, formando o quebra-cabeça dos seus novos

conhecimentos, onde os pensamentos se estruturam, onde as sensações são

elaboradas. É também nele(a) onde as memórias fazem morada, onde se tornam

força vital e “depósito do sagrado”. Desse modo, a cabeça é exaltada como parte

principal do ritual. É ela quem permite que o homem/mulher se constitua em um

elégùn. Grande parte dos rituais iniciáticos é realizada nela (raspagem dos cabelos,

incursões, lavagem com ervas específicas, sacríficos de animais e de frutos

sagrados, a introdução do hálito do iniciador etc.). Cabe esclarecer que essa relação

de importância assumida pela cabeça não passa pelo viés de verdade/racionalidade

repassada pelas culturas ocidentais. Nos cultos negros brasileiros o seu destaque se

dá por outro viés. Ela é a comandante do corpo, é mítica, é um presente do criador a

cada um de nós seres humanos, independentemente de praticarmos os cultos/ritos;

é o locus onde o ancestral divinizado se vincula; ela é vital. A cabeça/ori é única.

Não há, na concepção ritual dos cultos, ninguém que possua cabeça igual à de

ninguém, independentemente do ancestral divinizado/orixá. Encontramos no

universo da comunidade de cultos vários elégùn de Oyá, assim como dos outros

ancestrais, mas nenhum com o mesmo ori/cabeça.

O Babalawo Ifafunké nos contou um itan que retrata a importância de ori para

o homem/a mulher. Nele Orumilá questionaria “quem entre as divindades poderia

acompanhar seu devoto em uma longa viagem sobre os mares sem retornar”. De

acordo com o itan retratado pelo Babalawo, ocorre um diálogo entre Orumilá e as

divindades. Vejamos o trecho destinado à Oyá:

... Ifá, a questão é: quem entre as divindades pode acompanhar seu devoto em uma longa viagem sobre os mares sem retornar. Oyá respondeu que ela poderia acompanhar seu devoto em uma longa viagem sobre os mares sem retornar. Ifá perguntou: – O que você fará se depois de uma longa caminhada andando, andando e você retornar para Ira, casa de seus pais, e eles lhe matarem um gordo animal e lhe derem um pote de pudim de milho? Oyá disse: – Depois de comer até estar satisfeita, eu retornarei para minha casa. Oyá disse que não poderia acompanhar seu devoto em uma longa viagem sobre os mares sem retornar.

Esse diálogo segue com as outras divindades do panteão africano: Exú,

Ogum, Oxossi, Xangô, Omulú, Oxalá, dentre outras. Segundo o itan, todos se

renderiam às oferendas apresentadas e não prosseguiriam a viagem com o seu

74

devoto. De acordo com o itan, Ifá diz que “só ori é quem pode acompanhar seu

devoto em uma longa viagem pelos mares sem retornar [...] todas as coisas boas

que eu tenho na Terra são para ori que eu louvarei”. Entre os relatos apresentados e

a exposição desse itan, é possível perceber que, para os adeptos dos cultos negros

brasileiros, a cabeça é fundamental no ritual iniciático. Ela é a matriz de todo

processo. Sem a sua autorização, nenhuma oferenda e nenhum sacrifício é

realizado ou até mesmo aceito pelo ancestral. Ainda, segundo o Babalawo Ifafunké,

“nenhum Orixá abençoa o homem sem o consentimento de seu ori”.

Nas histórias contadas pelos participantes deste estudo é possível perceber

de modo muito claro o quanto o ori é quem determina os encaminhamentos das

oferendas que são destinadas aos ancestrais. O sim ou o não, o afirmativo ou

negativo dependem de seu consentimento, de sua aprovação. Na fala do Babalawo

sobre o “consentimento de ori” repousam muitas histórias reais vividas pelos

seguidores dos cultos negros brasileiros. Repousa, também, a minha história. Em

minhas oferendas65 de 14 anos de iniciação, dada no ano de 2010, quando eu já

estava com 23 anos de iniciado, senti na pele a negativa do meu ori. Como sempre

faço em minhas oferendas, todos os ancestrais de meu carrego66 receberam

oferendas, no entanto, no dia planejado para as oferendas do ancestral Oxum,

alguns imprevistos aconteceram e um grande atraso ocorreu. O ritual não foi

realizado no momento previsto, mesmo com todas as comidas feitas e com todos os

materiais à disposição para a sua concretização, incluindo os animais para o

sacrifício. Meu Babalorixá iniciou as oferendas como de costume: com o ibá e o jogo

de obi67. Para a minha surpresa e de todos os presentes, meu ori não autorizou o

prosseguimento do ritual, ou seja, não alafiou68. Diante da recusa, o meu Babalorixá

iniciou o diálogo com meu ori para entender o porquê da negativa e, a partir das

respostas dadas no jogo do obi, iniciou as negociações/os acordos. Após horas

entre elaborações de perguntas e respostas negativas, meu ori determinou que as

65

Oferendas é expressão utilizada para representar o período de renovação de obrigações iniciáticas. Algumas pessoas utilizam também o próprio termo “obrigação”.

66

Expressão utilizada para representar o conjunto dos ancestrais divinizados que estão assentados para o elégùn. Alguns iniciados referem-se como carrego de santo.

67

Fruto africano utilizado para a comunicação com os ancestrais. É importantíssimo nos rituais de ori e dos ancestrais; serve de alimento ao iniciado no momento de reclusão e, também é partilhado por todos participantes das oferendas/rituais.

68

Aláfia expressão africana que significa: “tudo positivo”, “favorável”, “caminhos abertos”, “sim”.

75

oferendas acontecessem no raiar do dia seguinte. Cabe ressaltar que meu relato,

assim como os de outros elégùn, não se respalda na racionalidade científica, no

crivo das verdades universais, mas nos mistérios, nos segredos, nas seduções

culturais (SODRÉ, 2005). Origina-se em práticas milenares que cruzaram os

oceanos e aportaram nessas terras, abrigando-se em várias comunidades de

terreiro que, também, constituem esse Brasil.

O itan retratado anteriormente nos aponta para a importância de ori; a

importância de se cuidar de ori para os seguidores desses cultos. De acordo com o

itan, ori acompanha o homem de seu nascimento até a sua morte. Ele jamais os

abandona. Ele foi o primeiro a ser criado. Para Verger (2002, p. 208), “ori é, pois, um

princípio vital que institui a imortalidade do homem”. Ori/cabeça é a parte principal

do corpo humano nos cultos negros brasileiros. Nele/a encontram-se as funções

vitais. É encarregado, ainda, de sediar a percepção, através dos cinco sentidos,

além de ser a morada da razão e da emoção. Por seu grau de importância, nas

esculturas africanas, a cabeça é desproporcionalmente maior que o corpo.

Vale pontuar, novamente, que a visão apresentada não se sustenta nos

pilares das culturas ocidentais, em que um único tipo de razão é o caminho da

cientificidade, da verdade única, da centralização dos conhecimentos, das

inteligências intelectualizadas. No entanto, ori é o pilar das razões das várias nações

africanas, ele é quem comanda o corpo em uma intensa comunicação; é quem

imprime no corpo as possibilidades de aprendizagens; desperta as memórias para

os registros da vida; é quem permite a constituição de sujeitos ritualísticos. As

aprendizagens são registradas no ori. Logo, a iniciação é permitida por ori, assim

como é sustentada por ele. Nesse contexto, o falar um novo dialeto, o dançar novas

danças, os novos gestos, os novos sabores e apreender novos conhecimentos

passam pelo ori. As linguagens, desse modo, constituem-se em ação. Através de ori

elas são registradas por todo o corpo e nas memórias. No encontro de pares (de

iniciados) as linguagens se ampliam e identificam-se. Eu tenho as linguagens dos

meus “mais velhos” em mim, assim como os meus “mais novos” têm minhas

linguagens neles. No encontro elas se complementam e movimentam

conhecimentos de geração a geração. Nesse sentido, as linguagens têm a

perspectiva de socializar o ori no contexto cultural da comunidade de terreiro/cultos,

além de propiciar constantes aprendizagens.

76

Nessa concepção, as linguagens então se revestem de um poder

indispensável na elaboração do iniciado no ser-sujeito. A partir dos rituais iniciáticos

elas se fazem intensas e verdade para o elégùn, engendrando o ancestral e o social

e estruturando, desse modo, os conhecimentos necessários para a nova vida.

Percebemos, em grande parte dos rituais nos cultos negros brasileiros, o destaque à

linguagem oral. A palavra que é proferida precisa ser pensada, elaborada, pois ela é

revestida de poder de atração. Lidar com o poder das palavras é um grande desafio

que se apresenta para o noviço, pois, ao mesmo tempo ela pode “criar a paz quanto

pode destruí-la” (HAMPATE BÂ, 2010, p. 173). Por ser viva, a palavra é constituída

de energias, positivas e negativas, de poder ativo, e ao ser proferida é preciso

prudência e sabedoria. Assim como pode criar e conservar, da mesma maneira tem

o poder da destruir, e com esse antagonismo a cautela é a melhor companhia nos

cultos negros brasileiros. Bâ (2010, p. 173) reafirma essa ideia quando nos diz que

“a tradição, pois, confere a palavra, não só um poder criador, mas também a dupla

função de conservar ou destruir. Por essa razão, por excelência, é o grande agente

ativo da magia africana”.

Cabe ressaltar que as linguagens, orais e não orais, nos cultos negros

brasileiros são a mola mestra que dinamiza toda a sua estrutura. Elas não se

reduzem à transmissão de mitos e lendas, como fora afirmado por longas décadas

pelas culturas ocidentais. Contraditoriamente ao repassado por anos a fio, as

linguagens são o próprio ser nos cultos que se pautam nas tradições negro

africanas. Elas são portadoras da verdade; não a verdade apresentada pelos

colonizadores europeus a essas terras: única, excludente, hierarquizada. Mas a

verdade do vivido, do feito, do encantado e seduzido (SODRÉ, 2005), do realizado

por homens e mulheres que se mantiveram com e nas linguagens; e esta foi a

herança deixada aos seus descendentes.

Nesse contexto, os elementos que compõem o mundo da oralidade negra

brasileira sustentam as tradições religiosas, assim como alicerçam muitos costumes

e hábitos do povo brasileiro. A pluralidade vivida e sentida nas culturas originadas

em solos africanos encharcam cotidianamente os cantos desse país de sons,

sabores/temperos, ritmos, gingados, cheiros. Seja em um jogo de capoeira, seja em

um desafio de repentistas, no maculelê, nos afoxés, nas barracas de acarajé, nas

rodas de samba, nas rodas de candomblé, na consulta aos búzios, no trançado dos

77

cabelos, nas estampas coloridas, enfim, nas ações constituídas dia a dia por milhões

de homens nesse imenso Brasil. Como citado no capítulo anterior, as interferências

linguísticas dos povos africanos na formação do nosso povo em seu falar, contar,

cantar, brincar, rezar, são significativas (CASTRO, 2001, p. 74). No que tange às

práticas nos cultos negros brasileiros, a oralidade é um grande alimento que viabiliza

sua permanência ao longo de séculos até os dias atuais, sendo permeada por

acordos culturais, por reelaborações, por descontinuidades, por adaptações e por

jogos de poder (BARATA, 2012) que ratificam a sua característica de circulação

(ONG, 1998).

Destacamos ainda que é na roda das cerimônias das comunidades de cultos

negros que as linguagens tornam-se mais intensas e vivas. Ela é um agente

facilitador de aprendizagens para o noviço, pois, junto aos seus pares ele se utiliza

de todas as linguagens apreendidas por ele. A comunhão favorece o culto aos

ancestrais. O encontro das energias de todos que compõem a roda e a cerimônia,

torna-se um imã que atrai a presença dos ancestres divinizados em seus elégùn.

Cantar, dançar, reverenciar, aclamar, gesticular, dentre tantas outras ações,

constituem a atmosfera das linguagens ritualísticas no momento da roda. Ela é um

espaço vivo de aprendizagens constantes para os seus seguidores. É na roda que

os iniciados têm a oportunidade de expor suas aprendizagens. É na execução das

suas práticas ritualísticas no momento da roda – dançar, cantar, saudar, reverenciar

– que ele legitima os seus saberes e, consequentemente, busca ocupar o seu

espaço de poder. Relembramos que, segundo Foucault (1995), não há dicotomia

entre saber e poder. Ambos, de acordo com o autor, vivem em constante tensão.

Assim, a roda, além de ser um espaço em que os saberes ritualístico do elégùn são

expostos aos seus mais velhos, aos seus pares e a todos que assistem à cerimônia,

ela também é uma arena tensa nas disputas de poderes.

78

Figura 13 - Roda de Oxum no Ilê Ase Orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá em maio de 2014

Figura 14 - Elégùn interagindo com a ancestral divinizada Oxum no seu Ipeté no Ilê Ase Orisa

Ogum Iemanjá a ti Oyá em maio de 2014.

Até aqui buscamos apresentar as linguagens e sua constante interação com o

ori/cabeça, como o chão onde se edificam as aprendizagens e os novos saberes do

79

iniciado. Acreditamos, desse modo, na importância delas nas tradições repassadas

e, constantemente reelaboradas, nos cultos negros africanos e negros brasileiros

como locus ativo de apropriação de conhecimentos e de constituição de identidades.

Por mais enfadonha que seja, em alguns casos, a discussão acerca da legitimidade

e autoridade das tradições oral e não oral como fontes reais de saber é fulcral para o

estudo que se apresenta. Assim, reafirmar sua importância nos espaços de cultos

negros brasileiros, significa assumi-la como alicerce na formação cultural do Brasil e,

ainda, como espaço coletivo, de práticas totalizantes e totalizadoras (BARATA,

2012) das culturas negro-africanas e negro-brasileiras.

2.1.1 Oruko oriki – o nome que identifica o elégùn

Para se entender a importância do nome nos cultos negros de origem

africana/iorubá em sua reposição brasileira, é preciso não se desvincular da sua

concepção de homem enquanto um ser natural e social. O nome é a palavra que,

em todo momento, o indivíduo escuta e internaliza. Ele é o chamamento da sua

identificação. E é o primeiro elemento de sua identidade. Para os praticantes desses

cultos o nome é sagrado. Ele tem seu significado constituído no processo iniciático

e, a partir daí, acompanha o elégùn até mesmo após a morte69. Segundo Leite

(2008, p. 72), em relação às culturas negro-iorubá, “o nome é, assim, mais um

elemento vital configurador da personalidade e a sua natureza social contribui

decisivamente para acrescentar uma dimensão histórica fundamental no indivíduo”.

Pois, através do nome, o africano se insere no mundo – real, mítico, sagrado –,

assim como nos cultos aqui desenvolvidos o nome é o reconhecimento do indivíduo

como pertencente àquele grupo ou àquela comunidade. Para Pordeus Jr. (1999, p.

166),

“‘se fazer’ um nome a si mesmo – da parte de um herói ou da parte de um povo – é reivindicar seu direito à existência, afirmar a eternidade de uma presença entre as comunidades humanas e ao olhar dos deuses, é o que designa entrar na história”.

69

Nos cultos negros, o nome iniciático, o oruko oriki, é um bem. Ele se presentifica nos rituais, mesmo após a morte do elégùn, nas rezas e cânticos, os oruko oriki dos antepassados são mencionados, ou seja, ficam na posteridade.

80

Nesse sentido, “fazer um nome” é abrangente, é macro, ao mesmo tempo em

que é um processo constitutivo. Esse “fazer” transita nos tempos: recorre ao

passado, delimita o presente e auspicia o futuro. O autor acredita que “o nome

confere poder [...] é um apelo à vida” (PORDEUS JR., 1999, p. 166). Ele atua no

presente, mediante ações identificadas do indivíduo, ao mesmo tempo em que é

preservado na memória dos que conviveu e/ou nos seus feitos na comunidade. O

nome não se desvincula do indivíduo, nem mesmo após sua morte; permanece em

sua história; veste suas ações, suas práticas, suas linguagens... veste a si próprio.

Desse modo, o aspecto social contido no nome de cada indivíduo está em sua

existência, no seu devir. O nome não é um elemento constitutivo isolado, mas o é

nas marcas da vida humana, na perspectiva ritualística.

Verger (2002) nos fala que entre os iorubas existem diferentes categorias de

nomes: oruko amuntorunwa – ligado à forma de nascer –, oruko abiso – ligado à

situação da família, por ocasião do nascimento –, oruko orile – ligado à posição do

sujeito no conjunto genealógico familiar –, e o oruko oriki – ligado à personalidade –

ao ori da pessoa. O autor esclarece que, esse último geralmente muda nas

iniciações, por se acreditar que eles alteram a personalidade. Os nomes também

estão interligados à iniciação do indivíduo e a sua inserção na sociedade. Cabe

esclarecer que, de acordo com Leite (2008), a iniciação é a constituição do “sujeito

sócio-histórico-cultural”. O pesquisador elucida que, em solos africanos, todos eram

“iniciados” em seus ofícios (ferreiros, agricultores, feiticeiros etc.).

Vale pontuar que a iniciação abordada neste estudo é a ritualística/religiosa,

e, desse modo, o nome iniciático é um elo importantíssimo que aproxima o adepto

do seu ancestral divinizado. Ele é “a cartilha” pela qual se dá a alfabetização em

uma língua desconhecida até então. É por intermédio dele que o recitar orikis, ofos,

ingorossis70, etc. se torna mais familiar. Respeitar o seu nome iniciático (oruko ou

djina, dependendo da nação) é dever de todo iniciado, pois ele o sacraliza no culto71.

O nome iniciático se sobrepõe ao nome civil nos espaços de culto. Ele interliga

70

Rezas recitadas nas comunidades de cultos negros vinculadas à “nação de angola”. 71

De acordo com os Babalorixás e as Ialorixás que participaram deste estudo, o nome (oruko/djina) é a representação do ancestre no iniciado. Ele deve ser sagrado para o adepto, pois, é o primeiro sinal de que ele passou a ser um elégùn, sacralizando-o no espaço de culto e, também, fora dele. O nome é “a presença do orixá” no iniciado.

81

seguidor e ancestral divinizado em um único espaço, ou seja, em um único corpo.

Conforme é apregoado no processo iniciático (vamos ver quando tratarmos

especificamente da iniciação) o nome “batiza”72 o adepto.

Segundo Pordeus Jr. (1999, p. 166),

a importância do nome no Candomblé é ressaltada por Roger Bastide no Candomblé da Bahia. Podem existir no mesmo terreiro várias filhas de santo com um mesmo Orixá, mas cada divindade possui a sua identidade. Essa especificidade é dada por um triplo nome, sendo o primeiro o do Orixá, o segundo a sua especificidade e o terceiro relativo ao local africano de origem. Esses três nomes são pronunciáveis uma única vez na festa de apresentação do novo Orixá à comunidade.

Vale lembrar que o autor pauta sua referência bibliográfica para abordar a

questão do nome iniciático, nos estudos de Roger Bastide, renomado pesquisador,

mas que exaltou uma “supremacia baiana” no que se refere aos cultos negros

brasileiros, conforme citado no capítulo anterior. E pontuar, ainda, que a

“apresentação do nome” do ancestral divinizado (orixá) acontece na maioria das

comunidades de cultos negros brasileiros, e não somente nos “Candomblés da

Bahia”. A preocupação com o nome, com o seu significado, é constante nas

comunidades de cultos negros. Como sinalizado, ele será a principal identificação do

noviço, e, dessa maneira, precisa ser constituído de palavras que lhe tragam boas

energias e vibrações. Retornamos a importância de saber se utilizar as palavras, de

se saber contextualizá-las. O nome é um enunciado e, como tal, precisa

“acrescentar e/ou despertar” qualidades ao iniciado.

No decorrer deste estudo muitos Babalorixás e Ialorixás trouxeram suas

experiências e vivências em relação à cerimônia do nome e, ao mesmo tempo, na

sua relação com “o seu nome iniciático” ou “nome do seu orixá”. A grande maioria

demonstrou certa nostalgia ao tratar sobre essa parte da pesquisa. Isso se tornou

perceptível nas expressões: “no meu tempo”, “antigamente era assim”, “quando me

iniciei”, “no meu axé”, dentre tantas outras. Os que têm mais de 20 anos de iniciação

comungaram da ideia de um grande respeito ao “nome de orixá”73, a ideia do

“sagrado” e, de certa maneira, “divinizado”. Alegaram que só de ouvir o nome 72

Cabe esclarecer que, o termo “batiza” foi referido por alguns entrevistados. Acentuamos, nesse sentido que, mesmo se tratando de cultos negros brasileiros percebemos a presença católica em suas falas. Ressaltamos que tal presença não compromete as práticas ritualísticas.

73 Expressão utilizada pela grande maioria dos entrevistados que possuíam mais de 20 anos de iniciado.

82

iniciático de um adepto mais velho em iniciação ou ocupante de um cargo dentro da

comunidade de culto tomava-se “a benção” como sinal de respeito,

independentemente desse estar presente no local. Para muitos deles a “coisa se

modernizou muito”74, “hoje em dia iaô escuta o nome de santo do Pai ou da Mãe de

Santo e fica acordado”75.

As experiências vividas no decorrer dos meus 27 anos de iniciação

corroboram com as vozes que entoam uma perspectiva muito arraigada na

hierarquia. Cito isso devido às lembranças que em mim foram despertadas ao

entrevistá-los. Suas vozes se concretizaram em mim (ZUMTHOR, 1993). Ao ouvi-las

era como se uma transposição nos tempos tivesse ocorrido, e me vi na comunidade

de cultos nos quais me iniciei. Era exatamente o que eles descreviam em suas falas:

eu, recém-iniciado, sendo “tomado” por meu ancestral divinizado cada vez que nas

rezas era citado o oruko de meu Babalorixá e de todos os mais velhos que

participaram do ritual de minha iniciação. O meu ancestral reverenciava os

ancestrais daqueles que participaram do seu nascimento em mim. Essa era a

dinâmica das relações que se constituíam ali. Deixo claro que essa compreensão

não me ocorria naquele momento, ou seja, recém-iniciado mas com a maturidade e

participação nos rituais. Ainda nas recordações trazidas pelas vozes dos

entrevistados, recordo de uma passagem em que uma “irmã de santo”76 não foi

incorporada por seu ancestre no momento da reza. No mesmo momento, meu

Babalorixá chamou o seu ancestral em sua cabeça e deu-lhe uma “baixa”77 na frente

de todos que estavam presentes, perguntando “se ele não estava presente na vida

de sua filha” e ainda, “se não tinha ouvido o seu oruko na reza”. Todos os outros

irmãos que possuíam o mesmo tempo de iniciação que ela e os mais novos,

também foram incorporados por seus ancestres. Era uma doutrina daqueles tempos.

Somente os mais velhos de iniciação não eram incorporados nesses momentos.

Diante do apresentado percebemos que, o oruko/nome era poder, ou melhor,

74

Fala dos entrevistados nesta pesquisa. 75

Segundo os participantes deste estudo, antigamente, se um recém-iniciado ouvisse o nome de santo de quem lhe iniciou no culto, o seu ancestral divinizado entraria em transe – incorporaria- por isso o termo “ficar acordado”.

76

Expressão utilizada nas comunidades de terreiro para os laços afetivos entre os iniciados pelo mesmo Babalorixá/Ialorixá.

77

Nas comunidades de terreiro, antigamente, o termo “baixa” significava brigou, ralhou, chamou a atenção.

83

representava relações de poder (FOUCAULT, 1995) nas tramas cotidianas de uma

época sócio-histórico-cultural vivida pelos entrevistados e por mim, sujeitos que

compunham às comunidades de cultos até então. Ressaltamos, ainda, que tais

relações ultrapassavam as fronteiras do espaço geográfico da comunidade de culto.

Entre discursos do passado e do presente, entre nostalgias e modernidades

encontramos relações ativas, vivas, reais. Relações embaladas por ações humanas,

ou seja, ações culturais que denotam o relacionamento humano através dos tempos

(SODRÉ, 2005). Esses discursos, segundo Foucault (1995, p. 37), “não podem ser

dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao

mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos”. Nos discursos

apresentados pelos Babalorixás e Ialorixás entrevistados podemos observar o lugar

de onde eles falam e de como esse lugar é embutido em suas vozes. O lidar com o

nome iniciático nos diferentes espaços de culto aponta para as relações que se

constituem entre o mítico e o real. Elas não se dicotomizam nem se confrontam; elas

integram-se no contexto sócio-histórico-político, enfim, cultural, vigente nas relações,

sem a preocupação de ser melhor ou suprema, mas real no seu tempo.

Logo, o nome, assim como representa um ritual importantíssimo nos cultos

negros brasileiros, inserindo o adepto nas práticas ritualísticas e nas relações que se

estabelecem através delas, também representa um processo de constituição de

identidades, legitimando os seus discursos e, ainda, buscando atrelar as

características do ancestre ao adepto. É o oruko oriki apregoado por Verger (2002),

e já citado, que vincula iniciado e ancestral divinizado. Todo iniciado traz em seu

oruko, em seu nome iniciático, as características do seu ancestre e as qualidades

que o qualifica. O nome é único (assim como o ori), o ancestre não; ou seja, em um

mesmo espaço de culto podem existir vários elégùn de Oyá, mas cada um tem um

nome que o identifica e o individualiza. É importante frisar que nas comunidades de

cultos negros brasileiros o nome iniciático está nas ações do adepto enquanto um

ser social. É comum eles levarem o seu oruko para suas práticas diárias ou, até

mesmo, utilizarem como parte do seu nome civil. Entretanto, frisamos da mesma

maneira que o nome civil não interfere em suas ações culturais/religiosas enquanto

um ser ritualístico. Posto isso, averiguamos que o nome iniciático tem a perspectiva

do surgimento do ser ritualizado e ritualístico. Ele é, também, emblemático, pois

acentua a presença do ancestral divinizado no indivíduo.

84

2.2 Memória – a mola mestra da iniciação

A memória se constitui como um dos aparatos significativos nos cultos negros

brasileiros, assim com as linguagens. Ela é o celeiro da tradição oral. O

conhecimento sobre as histórias africanas, sobre as vidas dos africanos, chegou até

a essas terras graças à memória. Segundo Nora (1993), a memória nas sociedades

tradicionais estava incorporada ao cotidiano de indivíduos e grupos sociais pelas

vivências da tradição e dos costumes, regulando e informando o futuro de indivíduos

e coletividades. Ela foi o percurso possível para que tanta sabedoria e tradição

chegassem até nós. Foi por intermédio da memória que as histórias do vivido pelos

africanos em suas terras, em suas tribos, em suas nações chegaram até aqui e em

um devir contribuíram para a formação da história e da cultura brasileira. Foram (e

ainda são) as histórias da terra, das águas, dos vegetais, dos animais, dos

ancestrais e dos grandes feitos de seus povos que os africanos trouxeram em suas

memórias e em seus corpos. Suas bagagens foram suas lembranças, suas

vivências, suas vozes, seus gestos, seus sonhos, seus afetos, suas referências,

suas esperanças.

Foram essas memórias que chegaram até a mim, 27 anos atrás, de uma

maneira diferente da contada e retratada pelos livros didáticos e pelas aulas de

história. Memórias que trouxeram “uma” África muito mais próxima que a descrita

nos mapas geográficos ou no globo terrestre exposto na biblioteca escolar. Era

como se “Ela” sempre estivesse ali, dentro de mim, aguardando para ser

despertada. Memórias trazidas e embaladas por outras memórias, contadas e

recontadas, transmitidas por pelos “meus mais velhos”, pelos meus ebômis, pelos

que me antecederam. Memórias tocadas nos atabaques, embaladas nos corpos,

temperadas com pimentas e regadas no azeite de dendê, perfumadas pelas

essências das ervas. Memórias que me possibilitaram a entrada iniciática nas

nações africanas existentes nas Casas de Santo78, que me apresentaram

perspectivas ritualizadas e míticas. Memórias que me apresentaram ao

desconhecido (até aquele momento), que me apresentaram ao novo, que me

78

A expressão Casa de Santo era como nós, os iniciados, reportávamo-nos aos espaços religiosos aos quais pertencíamos na década de 1980.

85

apresentaram, também, novos lugares, que me afetaram dia a dia na relação que foi

se constituindo aos poucos. E, nesse contexto, foram as memórias do vivido, do

praticado, do realizado por todos aqueles que já se encontravam na comunidade de

cultos anterior à minha chegada, que foram me orientando e fazendo com que eu

construísse as minhas próprias memórias. Foi no compartilhamento que eu vivi o

vaivém das memórias. Desse modo, foi na relação intensa e processual das

memórias (minhas e dos já iniciados que compunham aquele lugar) que os

significados se presentificaram.

Constatamos, que

de todas as experiências que nós vivemos no aqui e agora, selecionamos, como impressões ou lembranças, aquelas que nos afetam em um campo de relações. Todavia o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos afeta é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular (GONDAR, 2005, p. 25).

Nesse contexto, as novas experiências me tocaram e foram impregnando

meu corpo e mente, criando nas minhas memórias um terreno fértil para que o ritual

de iniciação se concretizasse e, a partir dele, eu me tornasse um elégùn e passasse

a compor a “nação africana” existente na minha79 Casa de Santo. Foi no encontro

com o novo, com o desconhecido (até a minha entrada para os cultos) que minhas

sensibilidades foram despertadas, e, assim, todos os sentidos necessários

passaram a ativar minha memória para o encontro com meu ancestral divinizado.

Ainda de acordo com Gondar (2005, p. 25).,

se viajamos para uma cidade desconhecida, a arquitetura, as cores, e os encontros nos marcam bem mais do que nossa vida habitual e cotidiana. Mas podemos pensar que nossa própria cidade já foi um dia, para nós, desconhecida, e que as formas, cores e encontros que nela experimentamos como novidade deixaram impressões e se constituíram em lembranças.

O espaço de culto, para o iniciado, é a “cidade desconhecida”. Sua

arquitetura, seus cantos sagrados são a personificação do novo, do não habitual. É

por intermédio das relações que se constituem nesse espaço e das histórias que ali

chegaram e as que ali foram elaboradas que os ensinamentos e as aprendizagens

passam a fazer parte da história do noviço, passam a residir em suas memórias.

Cabe esclarecer que, em relação ao espaço de cultos, o indivíduo poderia tê-lo 79

O termo “minha” a que me refiro retrata a ideia de pertencimento, fazer parte, compor.

86

conhecido como visitante, ou seja, sem participar da atmosfera ritualística, no

entanto, a partir do momento em que ele se inicia em elégùn nesse mesmo espaço,

a apresentação da “cidade desconhecida” se dá por outro prisma, por outra

perspectiva. A atmosfera em que ele se insere passa a fazer parte dos seus lugares,

passa a fazer parte das “cidades conhecidas” pelo pertencimento. Cada canto, cada

espaço ritual é incorporado pelo encantamento, pelo mítico, pela sedução (SODRÉ,

2005). O espaço de culto passa a ser um local onde “as trocas de aprendizagem,

experiências e informações, situam os sujeitos como históricos e produtores de

significados e sentidos” (BARATA, 2012, p. 92). Ele torna-se um “espaço

alfabetizador” (BARATA, 2012, p. 92) para o elégùn, situando-o no mundo ao seu

redor. É importante enfatizar que as relações sociais que haviam sido constituídas

anteriormente pelo adepto, também passam por uma reelaboração

A comunidade de cultos ao qual me inseri era frequentado por mim como

indivíduo, como alguém que gostava de assistir às festas religiosas. Eu fazia parte

da assistência80 do ritual. Poderia dizer que, naquele momento, conhecia aquele

espaço geográfico e, ainda, que sabia que muitos dos quartos mantidos com as

portas fechadas eram de acesso proibido para as pessoas comuns. Entretanto, a

partir da minha iniciação nesse mesmo espaço, foi como se eu nunca estivesse

estado ali antes. Todos os espaços me foram apresentados de modo ímpar. Minha

iniciação foi a entrada na “cidade desconhecida”.

Foi na convivência e na atuação no espaço de cultos que passei a conhecer a

“nova cidade”. Nesse contexto, é na mediação dos mais velhos nos cultos, na

prática dos ritos, nas celebrações, que os diferentes saberes são colocados em

contato com o elégùn. Assim, a memória é a grande companheira para a viagem

que se apresenta ao iniciado. É nas relações travadas no campo das memórias que

ancestral e adepto se sentem, conhecem-se, comunicam-se. É a partir dessas

relações que o iniciado reelabora seus modos de ver, sentir, fazer e saber. Desse

modo, é por intermédio da memória do seu ancestral divinizado, do seu Orixá, é por

intermédio de todos rituais que compõem a iniciação nos cultos negros brasileiros,

que as histórias/memórias do ancestre passam a viver em sua vida81, passam a ser

contadas, cantadas, dançadas, passam a ser apreendidas por ele. Elas prosseguem

80

Designação dada às pessoas que assistem às cerimônias abertas ao público, às festas comemorativas, às rodas de candomblé.

81 Pela concepção da vida no/do santo; orixá.

87

em seus atos ritualísticos, são tecidas por suas mãos; como se, em um continuum, a

história do ancestre passasse a ser a história do iniciado. Os seus símbolos, signos,

suas representações os afetam, tocam-nos (GONDAR, 2005, p. 12), dando-lhes o

alicerce para uma (re)construção, “não do passado” (GONDAR, 2005, p. 18), mas do

presente através do momento real. A apropriação por parte do adepto dos feitos de

seu ancestre, suas predileções, suas interdições contribui para incorporar os novos

saberes e, nesse contexto, as memórias repassadas a ele (iniciados) são revestidas

pelo tempo vivido, por histórias sagradas (GONDAR, 2005, P. 18), no tempo

presente.

Admite-se hoje que a memória é uma construção. Ela não nos conduz a reconstituir o passado, mas sim a reconstruí-lo com base nas questões que nos fazemos, que fazemos a ele, questões que dizem mais de nós mesmos, de nossa perspectiva presente, que do frescor dos acontecimentos passados.

Logo, minhas memórias, como as histórias dos iniciados que compõem este

estudo, foram construídas no campo visível (humano) e invisível (ancestrais),

transitando entre os tempos (passado e presente). Os novos costumes e os hábitos

apresentados ao adepto objetivam a constituição de um novo ser; um ser renascido

(VERGER, 2002), além da tentativa de apagamento das lembranças da vida

profana, ou seja, da vida anterior e fora do espaço de culto. A partir daí, é como se a

memória do iniciado fosse tomada por outras memórias. Ao consagrar-se à vida

no/do santo, ao iniciar-se em orixá, o iniciado não é mais somente ele, passa a

trazer em si as histórias e as memórias do seu ancestre divinizado, as histórias e as

memórias do seu espaço de culto, além de partilhar suas histórias e memórias com

toda a comunidade ali existente. O coletivo, com suas representações, é o que

permite a existência do culto. Barata (2012, p. 100) nos auxilia a pensar sobre os

conhecimentos reelaborados nos cultos negros. Segundo a pesquisadora,

os conhecimentos negros são materializados durante rituais e festas coletivas, quando os membros da comunidade se reúnem e relembram sua história. Dessa forma, concretiza-se outro tipo de memória, que não se ocupa dos eventos excepcionais, mas serve para manter a ordem estabelecida, confirmando a tradição, mantendo a unidade e a expansão da comunidade. De forma ritualizada, essas práticas referenciam e recriam o sentido originário do grupo quando colocam em tempo real a tradição que precisa ser atualizada para se manter. Para tanto, realizam analogias, servindo-se de objetos (símbolos) que estão acessíveis e que respeitam os “fundamentos” (BARATA, 2012, p. 100).

88

Diante do exposto, notamos que as vivências (as práticas) são o que

permeiam as relações que se estabelecem para a efetivação dos rituais e, assim,

realizar a conexão com o sagrado, com os ancestrais divinizados. É no contato com

seus “fundamentos”, é na força das palavras proferidas pelas vozes de todos nas

exaltações, nas rezas, nos cânticos, nas consagrações que a atmosfera do espaço

de culto se torna propícia para que os elégùn sejam a presentificação do seu

ancestre, no encontro entre o homem e o orixá. Nessa perspectiva, os iniciados

alegam que a coletividade é vivida no “eu e ele”, “eu e o Orixá”, “eu e meus mais

velhos”, “eu e minha Casa de Santo”, “eu e ‘minha nação africana’”, e, dessa

maneira, deixam de ser indivíduo para ser coletivo, ser grupo, passam a pertencer, a

partilhar, a cultuar.

Pelo pertencimento, o grupo faz-se imanente ao indivíduo, enquanto este se reencontre no grupo. O indivíduo pertence ao grupo tanto quanto a si próprio, pode ser indivíduo ou ser grupo equivale de fato a uma função no trabalho de limites ou de determinação de identidade em face de vasta diferenciação do fenômeno humano (SODRÉ, 1995, p. 9).

Assim, é no grupo que as histórias se intercruzam, que os encontros

acontecem, que as relações se deflagram, que as memórias se processam e que os

adeptos tornam-se semelhantes. Entre histórias e memórias, individuais e coletivas,

é que se dá a iniciação nos cultos negros disseminados no Brasil pelos povos

africanos. Halbwachs (1997, p. 53), em suas pesquisas, acentua a relação intrínseca

que há entre memória individual e memória coletiva. Segundo ele, nossas

lembranças são coletivas, recordamos em função do outro. O pesquisador afirma

que, mesmo quando se trata de eventos que presenciamos sozinhos e objetos que

vemos sem testemunhas, ainda assim são lembranças coletivas. De acordo com ele,

isso ocorre porque nunca estamos sós; trazemos conosco muitas pessoas que não

se misturam. Logo, as pessoas que constituem o coletivo das comunidades de

cultos negros brasileiros, trazem, em si, histórias e memórias que remetem à África

mítica; trazem em suas lembranças cultos reelaborados nessas terras, práticas

sociais e, principalmente, trazem ações culturais plurais e reais. É a partir das

lembranças diaspóricas dos milhares de africanos que para essas terras migraram

forçosamente que os rituais puderam ser realizados (mesmo com a necessidade de

reelaborações por inúmeros motivos). Foi com os seus esforços coletivos e com

suas práticas, que eles não permitiram a tentativa de apagamento das suas

89

lembranças pelas adversidades. Foi em meio a constantes confrontos que o vínculo

à sua terra, à sua tribo, à sua aldeia, aos seus entes permaneceu ativo, latente, vivo.

Assim, foram suas lembranças que viabilizaram a sobrevivência e a permanência de

suas práticas culturais.

O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele próprio teceu. Essas teias seriam a cultura, tal como um sistema entrelaçado de signos interpretáveis, um contexto no qual esses signos podem ser descritos de forma inteligível, com densidade (GEERTZ, 1978, p. 75).

As “teias” são tecidas pelo homem no aqui e agora, no devir, nas suas

práticas e relações reais (SODRÉ, 2005). É no momento em que se realiza que a

iniciação nos cultos negros brasileiros apregoa uma nova vida: uma vida marcada

em rituais. Reforçamos que a vida, a partir da iniciação, é pautada na

ancestralidade, no respeito aos mais velhos, na preservação das histórias, no

contato com o mítico, na comunhão com as forças da natureza (mineral, animal e

vegetal). Uma vida que se constitui na tradição, que se faz existente no orun82 e no

aiê83 e, principalmente, na constante interação com o contexto do orixá: suas rezas,

histórias, feitos, cantigas, danças, sons, comidas, cores, paramentos, saudações;

com os seus símbolos. Nessa concepção, podemos dizer que uma vida atrelada a

tudo que permita a circulação de axé, de força ativa e constituinte de energia é

capaz de afetar o iniciado. Para o elégùn, manter-se em contato com as

representações do seu ancestral significa estar em contato com o sagrado. Desde o

amanhecer até o momento em que se deita para dormir, cada instante vivido é de

construção de conhecimentos, de práticas que o constituem na sua relação com o

real (SODRÉ, 2005). Não há elégùn sem práticas ritualísticas, sem reelaborações

culturais, sem ativação de memórias individuais e coletivas, sem o contato entre

orun e aiê.

Para Verger, a iniciação modifica o real do iniciado. Segundo ele,

a iniciação consiste em suscitar, ou melhor, em ressuscitar no noviço, em certas circunstâncias, aspectos dessa personalidade escondida; aqueles correspondentes à personalidade do ancestral divinizado, presente nele (mesmo sendo só em razão dos genes herdados), inibidos e alienados pelas circunstâncias da existência levada por ele até essa data (SODRÉ, 2005, p. 44).

82

Concepção espiritual do mundo, espaço onde estão os ancestrais (cf. Santos, 1986). 83

Concepção material do mundo, plano material (cf. Santos, 1986).

90

A iniciação é a entrada do indivíduo para a vida ritualística, “a vida no

santo”84. É a partir dela que ele se torna “feito de santo”85, torna-se elégùn, um omó

orisa86, vinculando-se a seu ancestral divinizado, constituindo-se como seu

descendente, e assim, mantendo viva suas histórias e memórias. Todo o processo

iniciático é submerso no encantamento, “na sedução” (SODRÉ, 2005, p. 44), na

comunicação entre o presente e o passado, entre o mítico e o real, na criação de um

novo ser: o elégùn. É nele que o orixá assume novamente características humanas,

“retorna à Terra”, paramenta-se, recebe oferendas, comunica-se com seus adeptos,

revive seus feitos por intermédio de suas danças, cântico, rezas, saudações,

histórias, comidas, ervas, sacrifícios.

Desse modo, é no ori e, consequentemente, no corpo do iniciado que as

energias vitais atuam. É através destes, ou seja, do ori e do corpo que se dão a

interação entre indivíduo e o ancestre. O ori/cabeça é quem dá a permissão para

que essa interação se efetive. Conforme citamos, tudo que se passa na iniciação

depende de sua autorização. É como se a comunicação entre eles (iniciado e

ancestre) estivesse adormecida por um longo período e ao consagrar-se através do

ritual de elégùn – o ritual de iniciação – o corpo ativasse as memórias, que são

investidas, nesse contexto, de transformações socioculturais entre o passado e o

presente. O corpo, nos cultos negros é templo, é locus de comunicação, é força

ativa. Recorremos mais uma vez às palavras de Barata (2012, p. 94):

o corpo, para os africanos, é expressão que transmite um saber que vai além da representação, que não se reduz a palavra escritas ou mimetismos. Ele compreende ações e códigos que se repetem sem descrever ou transmitir significados; que estão além do conceito, propiciando experiências. Trata-se de um saber relacionado com a repetição de uma memória ancestral (BARATA, 2012).

Observamos nas palavras da referida autora a relação de saberes,

experiências e memórias, que se intercomunicam em um campo plural: o corpo. É

nesse território, ou melhor, nesse corpo-território, como nos fala Sodré (2005), que a

84

Expressão comum entre os iniciados; utilizada para a diferenciação do profano e do sagrado; ainda, para marcar “a nova vida” pós-iniciação.

85

No Brasil, a expressão comum entre os iniciados para saber se a pessoa é iniciada é “feito no santo”; significa que a pessoa passou pelos rituais iniciáticos nos cultos negros afro-brasileiros/candomblé.

86

Filho do orixá; também conhecido no Brasil como filho de santo.

91

efervescência das memórias atua no ritual iniciático. Para Gondar (2005, p. 12), a

memória comporta uma característica polissêmica, ou seja, comporta diversas

significações que se abrem a uma variedade de sistemas e signos: simbólicos,

icônicos e indiciais. É essa polissemia encontrada em diferentes elementos e

práticas ritualísticas que aproxima o ancestre do seu iniciado nos cultos. Os textos

orais e escritos, as estatuetas esculpidas em madeiras e/ou osso (marfim), as

curas/beres87 são representações/suportes para a construção de uma memória

(GONDAR, 2005, p. 12) que cria forma nos rituais. Esses signos são reelaborados

no momento presente, ressignificam-se em cada rito, em cada ancestral, em cada

iniciado ao mesmo tempo em que intensificam a relação mítica e simbólica entre o

ancestre e o adepto.

Os artefatos necessários à presentificação do orixá em seu iniciado (ervas,

comidas, ferramentas, animais, roupas, fios de conta) tornam-se o imã que atrai a

energia vital para o seu ori e corpo, além das falas do Babalorixá ou da Ialorixá. Vale

pontuar que estes zelam para que todo o processo iniciático transcorra bem. Por

esse motivo, também são denominados Zeladores do Orixá e do elégùn (e ainda

conhecidos em muitos espaços de culto como Pai ou Mãe de Santo). As vozes dos

mais velhos assumem, também, grande importância no coro de rezas, cantigas,

orikis, orins, itans, ofós, aduras e de toda a liturgia que remeta aos feitos do

ancestral. A exaltação destes é fundamental para que a atmosfera esteja propícia à

sua chegada, além de ser por meio das exaltações que a força ativa dos seus

ancestres se conectam com o ancestre recém-iniciado. A feitura do orixá88 é

contextualizada no tempo e espaço presentes, no real (SODRÉ, 2005). A

constituição do orixá se dá no elégùn. É ritualizada no ori e no corpo dele, que se faz

de canal. Ele passa a ser o templo do ancestral divinizado/orixá. A partir da

consagração do orixá no corpo de seu iniciado é que as aprendizagens da nova vida

iniciam (VERGER, 2002).

Sodré (2005, p. 68) nos elucida sobre o corpo-território:

todo indivíduo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, de um campo que lhe é próprio e que se resume em última instância, a seu corpo.

87

Cortes feitos à navalha em algumas partes do corpo do elégùn. Geralmente, eles são feitos nos braços, no alto da cabeça, nos pés, na língua. É importante sinalizar que tais cortes (quantidade, formato etc.) dependem da nação africana à qual a comunidade de cultos esteja vinculada.

88 Expressão utilizada para a cerimônia de iniciação do elégùn; também conhecida como yaô.

92

O corpo é o lugar zero do campo perceptivo, é um limite a partir do que se define um outro, seja coisa ou pessoa.

As palavras do autor nos levam a perceber como a relação com o corpo é

fulcral no processo iniciático. O corpo é o território em que coabitam as percepções

do iniciado e do indivíduo enquanto ser social e ritualístico. As visões do mundo

profano e do mundo sagrado, após a iniciação, passam a conviver em um mesmo

corpo. Assim como o indivíduo em sua formação/evolução passa por várias

aprendizagens, como o simples ato de engatinhar, andar, dentre outros, também o

iniciado passa por novas aprendizagens em sua nova vida. Essas aprendizagens

estão sempre vinculadas ao seu ancestral divinizado, a seu orixá. Elas encontram

terreno fértil na memória do iniciado, que, diante do contexto em que está inserido,

“parece momentaneamente lavada das lembranças da vida anterior” (VERGER,

2002, p. 76), e nas memórias de todos que partilham do ritual.

Reafirmamos que a memória é um elemento significativo no processo

iniciático, sendo ativada por intermédio do corpo pelos sentidos. O ver, o falar, o

gosto, o cheiro, o ouvir, o tocar misturam-se nas danças, no sabor e no cheiro das

comidas, nos cânticos e nas rezas, nas oferendas, nos banhos de ervas, no gestual,

no novo dialeto. Nesse caso, a memória é mantida por saberes divinizados, saberes

ressignificados. E, assim, no ritual, ela é recriada com os elementos do presente

(BARATA, 2012).

Diante do exposto, a memória, além de afetar, tocar, manter viva a

comunicação através da mente e do corpo, será utilizada, também, como ato de

memorizar. E, nesse contexto, memorizar é concebido no sentido do não esquecer,

do gravar, do guardar, que é fundamental para que as novas práticas do iniciado

sejam realizadas a contento dos seus “mais velhos” e de seu/sua Zelador/a de

Orixá. Nessa arena propõe-se a luta constante de memorizar os rituais e esquecer

as ações da vida anterior. Logo, o esquecimento não é descartado. Ele faz parte dos

conflitos. Há, por parte dos responsáveis pelos rituais nos cultos, uma forte

preocupação com as aprendizagens retidas nas cabeças/ori dos iniciados. O não

esquecer é, constantemente, trazido ao momento em que se processam os ritos

sagrados, ao mesmo tempo em que é apregoado a necessidade de se esquecer as

ações da vida desvinculada do ritual. Seja em uma cantiga, em um gesto, em uma

dança, na hora de se realizar determinada reverência, de se trocar bênçãos, de

93

determinado tempero, enfim, reafirmamos que ação de memorizar no sentido de

gravar, de reter a informação, de decorar as linguagens utilizadas se faz presente

nos cultos. Há, ainda, ritos para facilitar a memorização por parte do adepto: banhos

de ervas específicas, ingestão de alimentos que propiciem à memória, práticas

diárias de atividades repetitivas etc. Nessa perspectiva, a memória não está

apartada de novos saberes, de novos conhecimentos e, consequentemente, de

novos poderes. A relação saber e poder é intrínseca (FOUCAULT, 1995) às relações

constituídas pelo elégùn em sua iniciação e passam, também, pelo campo da

memória. Logo, “(...) a memória social é um vigoroso, complexo, e tenso campo de

disputa de sentidos em que a mobilização e a circulação dos discursos e

representações são utilizadas com intensidade e possibilidades diferentes”

(MORAES, 2005, p. 92).

O autor fala, ainda, que “a memória se constitui como estratégia e negociação

de sentidos” (MORAES, 2005, p. 92). Sendo assim, aprender e, consequentemente,

esforçar-se a apreender os saberes em suas memórias permitem a maior interação

e integração com seu ancestre, além de denotar a constituição de poder no espaço

de culto. A formação do indivíduo/iniciado, enquanto sujeito e objeto de

conhecimento, é constante por todo o tempo em que ele estiver recluso no espaço

de culto. Ela se constitui em seus novos costumes, em suas novas práticas. Assim,

os saberes que revestem essas práticas atribuem ao iniciado sentidos e significados

que assumem vida no seu cotidiano e também permanecem nas relações

socioculturais vividas por ele, dentro e fora do ritual. Essa dinâmica desdobra-se em

uma rede de saberes divinizados e sociais que são tecidos na contemporaneidade

das comunidades de cultos negros.

Nesse prisma, a iniciação, com seus ritos, sabores, cheiros, cores, sons,

ritmos, mitos, significados e simbologias, reinventa as identidades ritualísticas, ao

mesmo tempo em que suas características sociais, políticas, históricas, enfim,

culturais, são legitimadas (elas não são desconsideradas nesse processo, ou

melhor, não são apagadas). O ritual permite ao indivíduo a inserção em novas

culturas. É por meio dele, do ritual de iniciação, que se experimentam novas

maneiras de representar o mundo, de interagir com o ayê e o orun, de se assumirem

práticas que permitam a sua comunicação com seu ancestre divinizado – seu orixá e

com todas as energias vitais que se (re)significam no contexto ritualístico.

94

Integrar homem e orixá é a função das cerimônias iniciáticas. Moldar sua

formação humana no contexto mítico, suas identidades e memórias para a chegada

do orixá, para assumir a vida no/do santo, para interagir com as energias vitais, ou

seja, com o axé, está na raiz do ritual, está em seu alicerce, em sua estrutura.

Assim, significar as identidades e as memórias do iniciado nos contextos ritualísticos

e na interação com o seu ancestral divinizado é inerente às práticas religiosas dos

referidos cultos. Identidades e memórias são construídas a todo o momento nos

rituais, apoiam-se no coletivo – seja em uma dança, seja na elaboração dos

discursos, seja na incorporação do ancestre – e, dessa maneira, ratificam a sua

característica de processo social constituído no dia a dia. Cabe ressaltar, ainda, que

na execução das práticas ritualísticas pelo iniciado suas identidades e suas

memórias são colocadas à prova, são expostas nos rituais. Assim, as identidades

não são percebidas como essência no iniciado, mas como subjetividades

construídas nos contextos histórico, social, político e culturais existentes no espaço

de culto, nas ações plurais do ritual.

2.3 Identidades – elaborações e movências

Observemos o que Hall (1997, p. 8) nos diz em relação às identidades:

É o que significa dizer que devemos pensar as identidades sociais como construídas no interior da representação, através da cultura, não fora delas. Elas são o resultado de um processo de identificação que permite que nos posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas subjetividades são, então, produzidas parcialmente de modo discursivo e dialógico.

Mais uma vez a cultura89 entrelaça-se às questões apresentadas neste

estudo. Segundo o autor, “devemos pensar identidades [...] através da cultura”

(HALL, 1997, p. 8). Ora, isto significa que o indivíduo constitui suas identidades nas

suas práticas e relações com seus pares, com seus grupos, com suas comunidades.

Não há constituição de identidades sem a convivência com o outro, sem a relação

89

Ver Geertz, 1989; Hall, 1990; Sodré, 2005.

95

de saberes e poderes, sem reciprocidade, sem trocas, sem jogos de força e lutas

constantes (FOUCAULT, 1995), sem negociações e mobilidades culturais (BARATA,

2012), sem pertencimento (HALL,1997). Constituir-se é processo, investimento,

conhecimento, continuidade e rupturas, transformação constante, interação,

encontro, diálogo.

O autor prossegue afirmando que

a identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam [...] É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “ narrativa do eu” (HALL, 1997, p. 13).

Assim, as identidades do elégùn são sustentadas por valores das culturas

negras brasileiras que se manifestam e identificam no ritual de iniciação. As

representações identitárias presentes no âmbito do (re)nascimento simbólico do

iniciado, constroem subjetividades acerca de si próprio e da comunidade,

embasados nas histórias que compõem o ritual; contextualizando-se no momento

presente. A “transição de indivíduo para elégùn é intensa e real”90; ela não é

automática, mas processual e transformadora. Mediante várias cerimônias seu

comportamento é disciplinado (FOUCAULT, 1995), tendenciando uma docilidade

que favorece a constituição das suas identidades para a incorporação do seu

ancestre divinizado – orixá –, adquirindo, assim, uma afinidade de temperamentos,

e, em alguns casos, até o reconhecimento de características de personalidade.

Destacamos que a disciplina91 é extremamente significativa nas ações das

comunidades de terreiro. É preciso um intenso vigiar para que não ocorram erros e,

consequentemente, punições. O comportamento é formatado no ser elégùn: o

andar, que cores vestir, que alimentos não ingerir, que utensílios não tocar, que

ações não praticar, em que momento rezar, como cumprimentar seu ancestral,

90

Fala da Ialorixá Ana d’Oxum na entrevista ( pesquisa de campo). 91

Acreditamos que o conceito de disciplina, abordado por Foucault (1995), analogicamente, sustenta a perspectiva abordada neste estudo, no sentido de formatação de comportamentos e de controle dos iniciados nos cultos negros.

96

dentre muitas outras situações. Molda-se o comportamento nas relações postas,

tanto com o ancestral divinizado quanto com os outros seguidores. Tais

ações/práticas no contexto ritualístico pressupõem quase que uma reinvenção do

sujeito existente no adepto.

Desse modo, a iniciação formata o elégùn, disciplinando para a vida sob a

égide ritualística e, ainda, de constante interação com a ancestralidade. Ela age nos

detalhes, como informou a Ialorixá Ana’Oxum . Um iniciado “compreendido”92

apresenta sempre bons modos e está atento a tudo que acontece nos rituais,

segundo a Ialorixá Ana d’Oxum. É possível elocubrar na fala da referida Ialorixá que

“compreendido” está para disciplinado, comportado, dentro dos padrões, nos moldes

que se espera no ritual. Nessa perspectiva, manter-se atento às suas obrigações e

aos seus deveres se faz latente no iniciado. Referenciados no paradigma

foucaultiano, observamos que a disciplina controla o sujeito, buscando impor

comportamentos. Logo, a comunidade de cultos, torna-se, ainda embasados nas

concepções de Foucault (1995, p. 217), uma instituição disciplinar, pois age sob

seus adeptos nas mais importantes e, também atenuadas, incumbências cotidianas.

A disciplina produz para a modelagem e controle dos corpos, ferramentas que vão nortear todo o processo de construção de poder, e normatização das condutas, adotando características para a sua aquisição: quadros, preescreve manobras, impõem exercícios, enfim para realizar a combinação de forças, organiza táticas” (FOUCAULT, 1995, p. 217).

Diante do exposto, ter iniciados “compreendidos” representa, neste caso, que

o espaço de cultos atingiu seu objetivo, que suas táticas foram utilizadas e

administradas, enquanto instituição disciplinar. Entretanto, onde há disciplina, há

resistência (FOUCAULT, 1995, p. 217) e, dessa maneira, punições. Nas relações

que se constituem nas comunidades de cultos negros brasileiros não se apartam os

enfrentamentos e as disputas, ou seja, há confrontos como em qualquer relação

social. Reconhecer o local de cultos como local social, independentemente de ser

ritualístico/sagrado, é fundamental para entender que o iniciado é sujeito de sua

própria história e, portanto, interfere nas relações à sua volta. O sujeito é

apresentado por Foucault (1995), que nos diz que

92

Forma como os mais velhos nos cultos negros brasileiros se referem ao noviço que apresenta bom comportamento nos rituais, que não “envergonha” a sua comunidade de terreiro.

97

[...] a questão é determinar o que é sujeito, a que condições ele está submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no real ou no imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento, trata-se de determinar seu modo de subjetivação [...] Mas a questão é também e ao mesmo tempo determinar em que condições alguma coisa pôde se tornar objeto de conhecimento, [...] trata-se, portanto, de determinar seu modo de objetivação. (FOUCAULT, 1995, p. 235).

Em outras palavras, trata-se de compreender como o sujeito se constitui ao

mesmo tempo como objeto e sujeito de conhecimento. Reconhecer e respeitar o

lugar de onde falam é condição sine qua non para a constituição do sujeito e de

suas identidades. É importante, ainda, perceber que essa constituição se dá nas e

pelas relações de poder e, por conseguinte, sociais. Destacando-se, também, a

transitoriedade, a flexibilidade, a fluidez, a interferência como elementos

constitutivos de ações, interações e mediações do sujeito. Diante do exposto,

verificamos no elégùn a presentificação do ser sujeito citado por Foucault. Ele se

constitui sujeito em suas ações e práticas ritualísticas, nas relações travadas no

cotidiano da comunidade de cultos.

As relações sociais e de confronto passam, em alguns momentos, pelo

ancestral divinizado. Dependendo das transgressões realizadas pelo adepto, as

consequências podem ser desagradáveis e/ou inesperadas. Recordo-me de um

momento quando pude assistir meu Babalorixá muito alterado porque uma irmã de

santo se confrontava com suas determinações. Lembro-me do embate que se deu

entre eles. Em determinado momento, Oyá, seu ancestral divinizado, incorporou

nela. Meu Babalorixá perguntou a Oyá se ela concordava com tamanho desrespeito.

Continuou dizendo que se sentia entristecido com toda aquela situação, mas que

tinha certeza de que ela não permitiria que sua filha o desrespeitasse daquela

maneira. Disse, ainda, que Oyá poderia aplicar-lhe um corretivo “se quisesse” na

frente dos presentes que ali estavam. Oyá, então, mandou que pegassem as

colheres de pau que se encontravam em seu ajubo93 e pediu aos ogãs que

entoassem as suas cantigas. Assim foi feito. No entanto, em um determinado

momento Oyá começou a bater nela mesma, ou seja, no corpo de seu elégún.

Quebrou todas as colheres de pau em si, no corpo que lhe recebia. Quando todas as

colheres de pau foram quebradas, Oyá sinalizou que iria embora. Antes de desvirá-

93

Nome dado ao assentamento do ancestral.

98

la94, meu Babalorixá finalizou dizendo que “servisse de lição” para todos os

presentes e orientou ainda que “contássemos aos ausentes”. Ao “acordar”, minha

irmã de santo estava toda marcada e dolorida, pois Oyá deixara as dores das

pancadas das colheres de pau em seu corpo. Ao se dirigir ao Babalorixá para tomar-

lhe a benção, foi aconselhada pelos mais velhos a “se comportar como uma iniciada”

e a “obedecer ao seu orixá”. Observamos, assim, a ideia de comportamento/conduta

e a obediência atrelada à disciplina.

Retomando a questão do processo iniciático, segundo Verger (2002), há um

estado de vacuidade e de disponibilidade que se instaura no elégùn, no processo

iniciático, possibilitando que o comportamento e a identidade do orixá possam

instalar-se livremente, sem obstáculos, e tornarem-se familiar ao iniciado. O

pesquisador defende a ideia de uma relação intrínseca entre o homem e o orixá que

se formata no elégùn, em seu corpo.

Vejamos esse itan retrato pelo referido autor em sua obra Lendas Africanas

dos Orixás (2001):

Um babalaô me contou ‘Antigamente, os orixás eram homens. Homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes. Homens que se tornaram orixás por causa da sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa de sua força. Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foi assim que esses homens tornaram-se orixás. Os homens eram numerosos na Terra. Antigamente, como hoje, Muitos deles não eram valentes e nem sábios. A memória desses não perpetuou. Eles foram completamente esquecidos; Não se tornaram orixás. Em cada vila, um culto se estabeleceu Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio E lendas foram transmitidas de geração em geração Para render-lhes homenagem’.

É importante destacar que, desde as mais antigas sociedades africanas, a

memória se apoiava na transmissão contínua de histórias, contendo conhecimentos

e valores que preservaram, entre outros, a visão de mundo da época, suas crenças

e o repasse dos ensinamentos às gerações. Repassavam, ainda, o sentido

agregador da família e vinculação à terra (PADILHA, 2007, p. 58) e, ainda, ao seu

cultivo (BOSI, 1992, p. 47), reconhecendo que “a sociedade que lavrou a terra e

94

Ato de encaminhar o ancestral para o orun; acordar o elégún na linguagem dos cultos.

99

produziu seu alimento tem memória” (BOSI, 1992, p. 47). Portanto, o ato de lembrar

está na manutenção das tradições que sustentam a organização comunitária e as

formas de pensar e ser nessas sociedades. A tradição é fundamental para as

culturas negras como transmissão da matriz simbólica do grupo, da comunidade,

porém não se trata de uma tradição concebida de modo estático, e sim como um elo

de permanência dentro do movimento do tempo e dos lugares. Barata (2012, p. 72)

esclarece que

a manutenção da tradição de um grupo, que busca construir comportamento mais ou menos codificados, objetiva manter a continuidade de determinada concepção de vida e de uma experiência coletiva sem as quais o indivíduo estaria abandonado à sua solidão. No entanto, quando falamos em tradição, não queremos afirmar que se transmite algo do passado, cristalizado, como conteúdos que são passados de forma inalterada através de gerações. A tradição implica transformação, que não é percebida como rejeição cega ao passado, mas como um movimento em que se percebe o que é necessário manter e o que é relativo e pode ser negociado dentro de um limite, por meio de analogias.

Percebemos, assim, que as identidades comportam uma gama de

interferências pautadas no movimento das tradições, sejam elas sociais, políticas,

históricas, religiosas, culturais, e, ainda, que estas não estejam fixadas, ou seja, elas

transitam e mudam constantemente. As identidades não se constituem no

isolamento, mas nas parcerias, nas participações e nas convivências. Esclarecemos

que a identidade que interessa a este estudo é a religiosa/ritualística e, ainda,

vinculada aos elégùn do ancestral divinizado/orixá Oyá. Interessa-nos perceber os

traços e a formação humana deles enquanto agentes socioculturais. Diante dessa

perspectiva, o argumento utilizado é o de que essas identidades são “formadas e

transformadas no interior da representação” (HALL, 1997, p. 48). O exemplo

utilizado por Hall é pautado no conceito de identidade nacional (HALL, 1997, p. 48).

Segundo ele, o homem não nasce com uma identidade nacional pronta, mas ela é

constituída por “representações”. Elucida em sua obra que

as culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. (HALL, 1997, p. 49).

Assim, amparados nos estudos do referido autor, percebemos que, assim

como a identidade nacional é constituída nas ações do indivíduo como parte da

100

nação, também a identidade ritualístico/religiosa é formatada na interação do

iniciado com o universo do culto; ela é formada e transformada no interior das

representações ali apresentadas. É a partir da apropriação e, consequentemente, da

produção dos sentidos (SODRÉ, 2005) que o noviço se identifica e constrói as suas

identidades e, assim, interfere e sofre interferências no/do contexto

ritualístico/religioso.

A discussão que se apresenta é de que as identidades que se constituem a

partir do ritual de iniciação permanecem ativas e latentes no iniciado mesmo quando

não está no momento de rito e, ainda, fora do espaço de culto. Elas não são

momentâneas nem estáticas. Elas se impregnam nele, atuam em sua formação,

marcam as suas ações. Estão nele fazendo com que o ancestral divinizado também

seja identificado em seus traços, em seu comportamento. Segundo os entrevistados,

várias podem ser as características a ser identificadas em um elégùn que denotam a

força e as “identificações” (HALL, 1997, p. 12) do seu ancestre: impulsividade,

elegância, tranquilidade, serenidade, agitação, imponência, timidez, sensualidade,

dentre muitas outras. De acordo com eles, são perceptíveis nas suas atitudes, em

seus trejeitos, no que eles são as características de seus ancestrais divinizados.

Cabe destacar que tais características foram despertadas na mente e no corpo do

iniciado pelas memórias que lhe foram repassadas e, também, no ritual de iniciação,

em que, a partir deste, passam a compor o renascido sob a égide ritualístico-

religiosa.

Vale pontuar que, entre os iniciados, é comum a “interpretação” de traços e

características das pessoas de sua convivência para, a partir dessa possível

interpretação, desvendarem o ancestre divinizado que rege a sua cabeça95. O

referencial utilizado por eles são as suas próprias características e as dos outros

iniciados com quem se relacionam. Na perspectiva apresentada por eles, é como se

exercitassem os conhecimentos adquiridos nos rituais e, ainda, perceberem a

presentificação/identificação do ancestre divinizado nas pessoas não iniciadas com

as quais convivem e, assim, saberem de que ancestre elas são filhas96 pela

observação da sua maneira de ser e de agir. Nota-se, nessas práticas, uma

95

É claro que para se saber o ancestral divinizado de um indivíduo, é necessário recorrer ao oráculo divinatório – jogo de búzios –, além de algumas vezes ser preciso recorrer a rituais específicos. No entanto, essa “possível leitura interpretativa” do outro se dá pela correlação entre as características humanas com as do ancestre divinizado.

96 Filho do ancestral divinizado, do orixá, filho de santo.

101

interpretação do outro e do mundo a partir das visões reelaboradas no processo

iniciático. Merece destaque, também, nesse contexto a distinção feita na

interpretação do ancestral em homens e em mulheres. Segundo os iniciados, há

diferenças significativas e marcantes que acentuam o ancestral dependendo da

“cabeça” onde ele se assente e ainda do gênero. Mais uma vez, percebemos a

individualidade de ori. Nas comunidades de cultos negros brasileiros, essa leitura de

ancestral se dá no cotidiano dos iniciados nas relações de aprendizagem que ali se

constituem, e eles acabam levando a prática dessa leitura para as suas relações

além cultos. É comum para eles perceberem ou até mesmo enxergarem o ancestral

divinizado que rege o ori das pessoas com as quais se relacionem fora do contexto

ritualístico.

Para a Ialorixá Nilza d’Ogum, o ancestral se apresenta de modo distinto

quando se trata de homens e mulheres. Segundo ela, seu próprio ancestral

divinizado, Ogum, traz traços marcantes, mas que se diferenciam dependendo da

cabeça em que se apresente, ou seja, na cabeça de homens, ou em cabeças de

mulheres. Ela cita que

em cabeças de homens há um perfil de indivíduos preguiçosos, boêmios, galanteadores, nem sempre lidam com a verdade e que, geralmente, tornam-se agressivos e violentos após a ingestão de bebidas alcóolicas. Ressalta, ainda, que apesar de ser uma interdição para a grande maioria de elégùn de Ogum, é raro encontrar aquele que não tenha a predileção por bebidas alcóolicas. No entanto, quando Ogum se apresenta em cabeças de mulheres, as características mudam completamente. Geralmente são mulheres guerreiras, batalhadoras, vibrantes, sinceras, que admiram a verdade, corretas em seus compromissos, amantes leais, mas que também cedem, em sua grande maioria, aos encantos das bebidas alcóolicas (IALORIXÁ NILZA D’OGUM, 2013).

No que se refere ao ancestral divinizado Oyá, objeto central deste estudo, as

características também se diferenciam, assim como todos os outros ancestrais,

porém a grande maioria delas é comum a ambos, homens e mulheres. O “não ter

papas na língua” é a principal delas. Os elégún de Oyá possuem temperamento

esquentado, segundo a Ialorixá Nilza d’Ogum; são atrevidos, audaciosos, de

personalidade forte, sinceros e leais. Ela diz que o não pensar, em determinadas

ocasiões, talvez seja a sua característica mais negativa, ou desfavorável. Devido ao

perfil mais intenso, os iniciados de Oyá “partem para o confronto sem pensar duas

vezes”. A Ialorixá cita várias histórias trazidas em suas memórias em seus 36 anos

102

de iniciada. Para ela, falar de Oyá “é muito fácil”, pois convive com sua filha carnal,

Ialorixá Denise d’Oyá, iniciada há 25 anos. Continua dizendo que “conhece bem os

altos e baixos desse ancestral”.

Figura 15 - Ialorixá Nilza d’Ogum em seu Ilê Asé. Maio de 2014.

Diante desse contexto, e com as bênçãos de todos os meus mais velhos e a

benção das sábias palavras da Ialorixá Nilza d’Ogum, percebo Oyá como o ancestral

da transformação. Como a brisa que acalenta e refresca, mas que pode tornar-se

um vendaval, destelhando casas e arrastando tudo o que estiver no seu caminho. O

vento não se pega, sente-se. E é dessa maneira que sinto o ancestral em minha

vida nesses 27 de iniciação. É claro que não tenho aqui a intenção das

comprovações genéticas de filiação. No entanto, sei que sou seu filho. Sou herdeiro

de suas memórias e histórias. Seus feitos milenares marcam meu comportamento.

Minha cabeça e meu corpo são o seu principal ojubo. Muitas das características

pesquisadas por todos os intelectuais97 e aquelas citadas por todos os que me

97

Cf. Santos, 1986; Verger, 2002.

103

antecederam habitam em mim. Cabe esclarecer que é importantíssimo para o

iniciado conhecer o seu ancestral.

Como citado neste estudo, a iniciação é espaço de conhecimento, de

aprendizagens para a vida ritualística, mas não se dicotomiza as aprendizagens com

a vida social. Assim, é por meio do conhecer, do apropriar-se das histórias contadas

e cantadas, dos banhos e das rezas, do ajeum98 e das danças, das cores e amuletos

que o iniciado deve aprender a lidar com seu ancestral. Esse processo identitário se

dá no dia a dia, ou seja, o ritual iniciático é o ponto de partida, e não a linha de

chegada. Independentemente do tempo de iniciado que o elégùn tenha, ele

aprenderá sempre, como em qualquer espaço cultural.

Retomamos, nesse contexto, o conceito de cultura estruturado por Sodré

(2005): relacionamento intenso e ativo com o real que se dá no aqui e agora das

relações, nas trocas constantes, nos jogos culturais e nas negociações.

Salientamos, ainda, que é papel das relações iniciáticas/míticas neutralizar as

características desfavoráveis do ancestral nas ações do adepto, assim como deve

intensificar as favoráveis. O que estamos dizendo aqui é que há vários itans que

trazem passagens dos feitos dos ancestrais que apresentam atitudes respaldadas

por um contexto sócio-histórico-político-cultural; contextos milenares. Contextos que

se respaldaram em uma concepção de homem, e que não se respaldariam na

concepção contemporânea de homem. Vejamos: há um itan que retrata que Oyá foi

esposa de quase todos os ancestrais masculinos. Em um período de guerras e

posses de terras, ela fugia para terras distantes e relacionava-se amorosamente

com o ancestral, rei das terras que a abrigava. No entanto, há algumas

interpretações, a partir deste itan, que generaliza, nos dias atuais, que os elégùn de

Oyá são infiéis, volúveis, promíscuos e/ou vulgares. Argumentamos que, não se

pode desconsiderar o momento retratado no itan, e, ainda, que a constituição das

identidades não são apartadas do livre-arbítrio de cada um.

Desse modo, as comunidades de cultos negros constituíram-se como um

espaço que propicia a reinvenção das identidades por ser genealogicamente um

espaço de trocas, de reelaborações, de acordos culturais, de diálogo, de

preenchimento de vazios (BARATA, 2012). O indivíduo, ao ritualizar, constitui-se

ritualístico em sua vida, em suas práticas diárias, nas suas relações, nas suas

98

O mesmo que comida na linguagem dos cultos negros brasileiros.

104

escolhas, em suas identidades. A iniciação, nesses espaços, propõe identidades

que se misturam, fluem, circulam, emergem, movimentam-se, transitam entre o real

e o mítico. Não se é elégùn somente no espaço de cultos ou em contato com os

seus pares. É no espaço de cultos que se torna um elégùn. Entretanto, a partir da

efetivação de sua iniciação, ou seja, da concretude do ser elégùn, o adepto assume

essa identidade em todos os momentos e espaços da vida cotidiana (e não somente

nos momentos e espaços de cultos).

De acordo com a Ialorixá Ana d’Oxum, “ser elégún, ser iniciado de orixá é ser

um canal de constante comunicação entre o visível (o indivíduo) e o invisível (o

ancestral)”. Segundo ela, uma vez iniciado o indivíduo, o ancestral o intui, “fala ao

ouvido”, orienta-o/aconselha-o para as decisões da vida. Desta maneira, é possível

perceber que, todos os conhecimentos apreendidos fazem parte das identidades dos

adeptos e direcionam seus olhares, visão de mundo e os seus modos de integrar e

interagir com o mesmo. As identidades, nesse caso, são formadas na interação

entre o eu e a comunidade de culto e, ainda, nas relações com o mundo exterior à

comunidade religiosa.

105

3 ELÉGÙN – (RE)INVENÇÕES SOCIORRITUALÍSTICAS

3.1 O ancestral divinizado e o indivíduo – o côncavo e convexo em um mesmo

ser – o elégùn

Até aqui propusemos, mediante as histórias dos feitos dos cultos negros que

se reelaboraram no Brasil e as vivências dos iniciados que compõem esse estudo,

perceber as comunidades de cultos negros brasileiros como espaços intensos,

plurais, reais e, principalmente, constitutivos de identidades. Propusemos, ainda, o

entendimento de que esses espaços são repletos de movimentos próprios que

articulam os rituais e as simbologias que os reinventam em um devir mediante seus

cultos. Reafirmamos que tais cultos foram disseminados pelo vasto patrimônio negro

africano que para cá migrou no movimento da grande diáspora negra.

Segundo Sodré (2002), os cultos desenvolvidos nas comunidades de terreiro

representam uma associação litúrgica, sendo que foi por meio das organizações

pautadas nesses espaços que o patrimônio das culturas negro-africanas foi

reelaborado, possibilitando a prática dos seus rituais nesse lado do Atlântico. Esse

autor utiliza a palavra patrimônio no sentido de lugar próprio. Ele nos diz que

ela tem em sua etimologia o significado de herança: é um bem ou conjunto de bens que se recebe do pai (pater, patri). Mas é também uma metáfora para o legado de uma memória coletiva, de algo culturalmente comum a um grupo (SODRÉ, 2002, p. 50).

Nessa concepção, o ancestral divinizado está no legado do patrimônio dos

cultos negros africanos que migraram para o Brasil. Eles são, para os seguidores

dos cultos, o vínculo com as “nações africanas”, com o sagrado, o veículo de

energias. Para eles, os ancestres divinizados regem as energias encontradas nos

ventos, nas águas (dos rios, mares, cachoeiras, dos encontros das águas), nos

trovões, nos raios, nas matas, nas pedreiras, nas ervas, nas encruzilhadas, nas

estradas, dentre outros. As energias são as moradas do sagrado para os iniciados

nos cultos negros brasileiros. É como se elas fossem o seu hábitat natural. Vale

pontuar que, nos cultos negros brasileiros, essas energias têm o domínio dos

106

ancestres; são governadas por eles. Nas histórias contadas pelos “mais velhos” nas

comunidades de cultos são comuns os esclarecimentos de que “Olorun deu à

regência das energias da natureza aos ancestrais”. São vários os itans que

representam os ancestres como os responsáveis pelas energias emanadas da

natureza99.

Cabe ressaltar que muitos autores referem-se aos orixás como deuses, outros

os tratam como a personificação das forças da natureza; no entanto, amparados em

Santos (1986), Salami (1997) e Verger (2002, 2007, 2011), defendemos que os

mesmos são ancestrais divinizados. De qualquer forma, essa discussão é antiga nos

espaços de cultos e a relação que neles se estabelecem passa pelo crivo da fé, do

sentir as energias, do simbólico, das práticas ritualísticas e, principalmente, das

interpretações dos elégùn.

De acordo com as pesquisas feitas por Santos (1986), muitos autores

sustentam que os orixás são ancestrais divinizados que durante suas vidas foram

chefes de linhagens ou de clãs que, por seus feitos excepcionais, transcenderam os

limites de suas famílias ou de sua dinastia. Nesse contexto, eles passaram a ser

cultuados por seus descendentes que ampliaram tais cultos por outros clãs,

alcançando, assim, uma abrangência maior. A pesquisadora ressalta, no entanto,

que não é seu propósito discutir uma possível hipótese de uma longínqua gênese

humana dos orixás (SANTOS, 1986, p. 103). No entanto, ela faz questão de frisar

que os ancestres divinizados/orixás estão associados à origem da criação e sua

própria formação e seu axé foram emanações diretas de Olorun100. Seguindo a

mesma abordagem da antropóloga, Verger também lida com o orixá como conceito

99

Ver Salami (1997); Verger (2002, 2007, 2011). 100

Vale esclarecer que, nos cultos negros brasileiros, há também uma forte influência dos ancestres que não são considerados divinizados. É o caso dos egúngún. De acordo com os Babalorixás e as Ialorixás que participaram deste estudo, os egúngún foram ancestres ligados à rotina sociocultural das comunidades de cultos e/ou vinculados às relações constituídas pelos iniciados (familiares, amigos etc.). Eles ressaltam, ainda, que, apesar de não serem orixás, os egùn são fundamentais para a dinâmica das comunidades, zelando e cuidando, inclusive, para o bem estar de todos que compõem à comunidade. Assim, explicam que há rituais específicos para se louvar e cultuar os egún, no entanto, não são todos os iniciados que podem participar desses rituais. Os zeladores afirmam que os egún são energias muito “quiziladas”, ou seja, enfurecidas, coléricas etc. Esclarecem, ainda, que em sua grande maioria, não há a participação de mulheres nesses cultos, a não ser daquelas que possuem cargo elevado na comunidade ritualística. Segundo Santos (1986, p. 102), “os orixás estão especialmente associados à estrutura da natureza, do cosmo; os ancestrais, à estrutura da sociedade”.

107

de ancestral divinizado. Para ele, os orixás, ainda em vida terrena, estabeleceram

vínculos que lhes garantiram um controle sobre determinadas forças da natureza.

Verger, abordando a questão do orixá como ancestral divinizado, traz a

existência histórica deles para as comunidades de cultos, remetendo-nos, assim, à

chegada de seus cultos e ritos a essas terras pelo fluxo compulsório do período das

grandes navegações. Ao destacar sua existência histórica, Verger acentua aos

orixás as características existentes nas relações sociais. Cabe pontuar que essas

relações não se descontextualizam do seu tempo. Contudo, em muitos dos seus

escritos, esse autor também se refere ao orixá como força pura, axé imaterial101.

Segundo ele, esse axé só se torna perceptível aos seres humanos quando há a

incorporação em um deles. Em ambas as hipóteses, ancestral divinizado ou força

pura, a incorporação é o canal que permite o contato dos seres humanos com os

orixás. É importante destacar que a passagem da vida terrestre à condição de orixá

desses seres excepcionais, possuidores de um axé poderoso, produz-se, em geral,

em um momento de paixão, de intensidade de sentimentos, de grandes lutas, que se

conservaram nas lembranças de seus descendentes. Essas lembranças

reelaboraram-se por gerações e são revividas nos cultos negros brasileiros, onde

sofreram (e ainda sofrem reelaborações/reinvenções). Ao consagrar-se a vida

ritualística, o elégùn está apto para a incorporação, tornando-se o veículo que

permite ao orixá voltar a terra para saudar e receber as provas de respeito de seus

descendentes que o evocaram (VERGER, 2002, p. 19) e simbolicamente relembrar

os seus feitos.

Independentemente do ato de incorporar em seus descendentes, ou seja, em

seus elégùn, os orixás também se tornam perceptíveis em suas ações,

características, trejeitos, comportamentos humanos. Para Verger (VERGER, 2002,

p. 19), existem tendências inatas e um comportamento geral, nos iniciados, que os

vinculam aos seus orixás:

como a virilidade devastadora e vigorosa de Xangô, a feminilidade elegante e coquete de Oxum, a sensualidade desenfreada de Oiá Iansã, a calma benevolente de Nanã Buruku, a vivacidade e a independência de Oxossi, o masoquismo e o desejo de expiação de Omulu, etc. (VERGER, 2002, p. 33-34).

101

Muitos dos participantes desta pesquisa demonstraram perceber o orixá como força imaterial, ou seja, axé emanado pelo criador (Olodumarê/Deus), não acreditando em uma existência histórica/humana.

108

Na perspectiva apresentada pelo pesquisador, percebemos que o elégùn é

“escolhido pelo orixá [...] é um dos seus descendentes” (VERGER, 2002, p. 19). A

partir do ritual de iniciação, o comportamento dele é estruturado para que o ancestral

divinizado possa “encarnar” suas características em sua mente e corpo. Verger

assinala que essas características são denominadas tendências de arquétipos da

personalidade escondida das pessoas. O autor lida com o termo “escondida” por

acreditar que certas tendências inatas não podem desenvolver-se livremente dentro

de cada um no devir de sua existência sem que elas entrem em conflito com as

regras de conduta, admitidas nos meios em que vivem (VERGER, 2002, p. 33-34).

Esses traços arquetípicos unem orixá ao seu escolhido.

De acordo com a Ialorixá Nilza d’Ogum, as características do ancestral

divinizado se mostram no indivíduo antes mesmo da sua iniciação nos cultos.

Segundo ela, há indivíduos que demonstram claramente o orixá dono de seu ori em

seus modos e trejeitos, mesmo sem serem iniciados em orixá. Entretanto, a Ialorixá

esclarece que a iniciação também tem a função de presentificar/acentuar as

características do orixá em seu filho. Notamos que o discurso de Nilza d’Ogum

segue os estudos de Verger, que afirma que o orixá escolhe o indivíduo que será

seu filho por essas tendências escondidas. O pesquisador alega que “no momento

do transe, ele comporta-se, inconscientemente, como o orixá, seu arquétipo e é

exatamente a isso que aspiram as suas tendências secretas e reprimidas”

(VERGER, 2002).

Nesse contexto, sinalizamos que os rituais que compõem a iniciação são o

alicerce para a instalação do ancestral divinizado/orixá no elégùn. Conforme citado

no segundo capítulo deste estudo, a atmosfera precisa ser elaborada no contexto do

ancestral, ou seja, suas ervas, oferendas, sacrifícios, comidas, cantigas, rezas, ofós,

itans, orikis, paramentos, os sons dos atabaques, as cores, os gestos remetem a

ele. Destacamos, também, que é importantíssima a participação e interação dos

“mais velhos” nos cultos, pois seus saberes coadunam com a atmosfera citada,

propiciando, assim, a rememoração dos comportamentos/feitos do ancestral

divinizado em seu renascimento simbólico no seu escolhido, seu elégùn.

Relembramos que, para a grande maioria dos Babalorixás e Ialorixás, a

iniciação propõe o nascimento do orixá na vida do seu iniciado. Todo o processo que

é vivido pelo adepto para tornar um iniciado em orixá, um elégùn, pressupõe o

109

surgimento de um novo sujeito, com novas práticas, novas concepções, novos

saberes, nova visão de mundo.

Leite (2008) nos esclarece que, socialmente, a iniciação se dá, basicamente

através de três momentos: separação – recolhimento – apresentação/

reintegração102. Através desses momentos, que geralmente chegam a um mês de

afastamento do convívio social103, o noviço se insere no contexto proposto por sua

comunidade de cultos. Nesse período inicia-se a relação entre ele e o seu ancestral

divinizado. A separação é o momento em que o noviço precisa se afastar das

atividades cotidianas e das relações que possui: familiares, escolares, conjugais e

profissionais. Há a necessidade do afastamento do seu mundo social; as emoções

deste não devem acompanhar/participar dos ritos iniciáticos. O recolhimento é

comparado ao período da gestão de um ser. Nesse momento o noviço é tratado

como se fosse um feto na placenta, recebendo cuidados específicos propostos pelo

ritual. Reforçamos que não pode existir contato dele com pessoas exteriores à

comunidade de cultos. Existem casos que nem mesmo sendo da comunidade de

cultos é permitido o contato com o noviço. No entanto, presentes ou não nos

momentos ritualísticos, todos os esforços e as energias dos componentes do

egbé104 devem estar voltados para o recolhido (SANTOS, 1986).

É no período do recolhimento que se dão as etapas para a concretude do

elégùn. São dias intensos e tensos. É preciso que tudo transcorra bem para que o

noviço obtenha êxito em sua vida ritualística. As aprendizagens se dão tanto para o

noviço quanto para o ancestral divinizado. Acredita-se que, nesta fase, exista uma

fundição entre eles como se fossem um único ser. Tanto o iniciado adapta-se ao seu

orixá como o orixá adapta-se ao iniciado: “é o ajuste dos corpos”, segundo a Ialorixá

Denise d’Oya. Ao final da fase do recolhimento, geralmente, ocorre uma grande

cerimônia para que seja apresentado o novo membro da comunidade de cultos à

sociedade. O ancestral divinizado é trazido ao público presente em alguns

momentos até que chega hora do seu nome ser dito por ele à comunidade. Esse

102

No que se concerne a essa estrutura tripartide dos processos iniciáticos, acreditamos que seja de fundamental importância a consulta ao livro Os ritos de passagem, de Arnold Van Gennep (Editora Vozes, 1997).

103

A quantidade de dias que serão utilizados no processo iniciático muda de comunidade para comunidade, no entanto, em sua maioria, prevalece o quantitativo de 21 dias.

104

Termo que designa o sentido de comunidade de cultos; pessoas que constituem a comunidade de cultos.

110

talvez seja o momento mais tenso de todo o processo iniciático. O oruko é a etapa

em que o ancestral divinizado identifica-se como único, através daquele elégùn em

que está encarnado no momento.

Após a grande cerimônia de apresentação vários rituais são realizados na

perspectiva de o noviço ser reintegrado ao contexto social ao qual ele sempre

esteve inserido. Ele precisa retomar suas atividades cotidianas: trabalhar, estudar

(se for o caso), voltar ao convívio de sua família, enfim, prosseguir... O grande

desafio estará em agregar o sagrado, que o vincula ao seu ancestral, as suas ações

sociais. Segundo os iniciados, uma vez elégùn sempre elégùn.

Logo, é a iniciação a grande responsável por encaixar as partes côncava e

convexa que participam do ritual iniciático, ou seja, ancestral divinizado e indivíduo.

De acordo com os iniciados, esse encaixe segue por toda a vida. Há uma

reformulação do eu a partir dele; há mudanças de comportamentos; há um

simbolismo que passa integrar às práticas cotidianas. O ancestre divinizado passa a

“viver” em suas ações.

Nessa perspectiva, a iniciação ultrapassa as fronteiras do ritual, do mítico, do

simbólico e passa a interferir no dia a dia do iniciado, saindo, assim, da

exclusividade da seara dos cultos e participando da realidade do indivíduo.

Embasados nos estudos de Sodré (2005) sobre cultura como relacionamento

intenso do indivíduo com o seu real e dos iniciados que contribuíram para esta

pesquisa, acreditamos que o elégùn é sócio-histórico-cultural, ao mesmo tempo em

que faz ritualístico nas relações que estabelece nessas esferas.

3.1.1 Ancestre e descendente – atores sociorritualísticos que se completam

O rito da iniciação constitui a genealogia da relação entre o ancestral

divinizado e seu descendente, ou seja, o elégùn. É a partir dele que a integração

entre esses dois universos torna-se constante. Nesse sentido, é no contato com os

(e dos) rituais que ambos ampliam seus conhecimentos, um sobre o outro. Pois,

segundo os Babalorixás e as Ialorixás que contribuíram para este estudo, assim

como o iniciado aprende a conhecer o seu orixá, de igual maneira o ancestral

111

divinizado conhece o seu descendente nos momentos ritualísticos. É importante

enfatizar aqui que, de acordo com os elégùn, os conhecimentos não se encerram

nos momentos de ritos vividos nas comunidades de cultos. Eles prosseguem na

relação estabelecida a partir dos rituais de iniciação.

Há uma identificação muito forte que chega a se assemelhar ao laço

sanguíneo entre pais e filhos. A partir do (re)nascimento simbólico, proposto pelos

rituais de iniciação, o adepto assume a sua hereditariedade em relação a seu

ancestre. Assim, ele passa a fazer parte da sua família ritualística. É pelo

pertencimento que as identificações emergem no noviço. Elas o unem a seu orixá.

Quanto mais contato com as representações do ancestral (ervas, cores, cantigas,

danças, performances, ferramentas, assentamentos, comidas, enfim, as suas

predileções), mais ele encarna suas identificações, incorporando-as em suas

identidades, como citado anteriormente.

As identificações, segundo os adeptos e participantes dos cultos, tornam-se

referências do ancestral no seu elégún. É comum nas comunidades de cultos negros

brasileiros seus componentes (egbé) e participantes (assistência) se referirem aos

ancestrais personificando-os em seus descendentes: “a Oyá de Denise”, “a Oyá de

Marcelo”, “o Ogum de Nilza”, “a Oxum de Ana”. Dessa maneira, acentuam ainda

mais as identificações e deixam explícito que não é “qualquer ancestre”, mas o do

iniciado citado. Nesse contexto, há individuação e individualização do ancestre em

relação a seu elégùn. Os pedidos, os clamores, as oferendas, as promessas, enfim,

a fé, são dedicadas, especificamente, àquele ancestre. Assim, o orixá referencia-se

em seu elégùn.

Do mesmo modo, há, em alguns casos, uma identificação do ancestral

divinizado, específico, ou seja, de determinado iniciado, com o egbé que ele chega a

se personificar socialmente na práxis das comunidades de cultos. O ancestre, então,

participa ativamente da rotina dos ritos, interage com os elègún, norteia ações

ritualísticas e, pode, às vezes, interferir na dinâmica proposta, ultrapassando, em

alguns momentos, a fronteira do ritual, integrando-se, de fato, com os iniciados.

Percebe-se, assim, um processo de socialização latente entre ancestre e

comunidade de cultos.

No Ilê ase orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá, que tem a liderança da Ialorixá Nilza

d’Ogum (Yá Onijádêlêwua), pude observar quase que a personificação

112

sociorritulística do ancestral divinizado Oyá, da Ialorixá Denise (sua filha genética,

conforme citado anteriormente). É comum, em vários momentos de rituais, o orixá

intervir na dinâmica da organização da comunidade. Oyá orienta na confecção das

comidas sagradas, determina funções para que os adeptos realizem, direciona as

obrigações, arruma os iniciados nos rituais, interfere na disposição dos utensílios e

dos objetos etc. O ancestral demonstra uma grande liderança que chega, em vários

momentos, a orientar a Ialorixá Nilza d’Ogum nos rituais.

Para os elégùn do Ilê ase orisa Ogum Iemanjá a ti Oyá, a ancestre da Ialorixá

Denise assume o papel da grande mãe que conforta, acalenta, aconselha, briga,

educa e encaminha suas condutas e seus comportamentos. É a Ialorixá Nilza

d’Ogum quem nos diz que “a Oyá de sua filha é responsável, assim como os seus

ancestres (Ogum e Iemanjá), por sua comunidade de cultos”.

Nesse sentido, o experimentado e vivido nos rituais e nas celebrações no

referido espaço de cultos aponta para o fato de que o ancestre é latente e

participativo em várias instâncias da vida do seu elégùn, ou melhor, em todas as

instâncias. A interação demonstrada por Oyá de Denise com o egbé nos revela que

ela transcende os mitos e as histórias milenares e contextualiza-se no aqui e agora,

ou seja, na contemporaneidade em que seu iniciada atua.

Figura 16 - Oyá da Ialorixá Denise participando e orientando nos/dos cultos ritualísticos. Junho de 2014.

113

Figura 17 - Oyá da Ialorixá Denise nas oferendas da Ekedi105

Carla de Xangô. Junho de 2014.

Figura 18 - Oyá da Ialorixá Denise cumprimentando a Ialorixá Nilza d’Ogum. Junho de 2014.

105

Ekedi é cargo sacerdotal destinado às mulheres que não incorporam os ancestrais. Nos cultos negros brasileiros elas são conhecidas como “mães” dos elégùn.

114

Figura 19 - Oyá da Ialorixá Denise dançando na fogueira destinada a Xangô. Junho de 2014.

115

Figura 20- Oyá da Ialorixá Denise orientando e interagindo nas funções sociais da comunidade de culto. Junho de 2014.

3.2 Êpa hey, Oyá – o ancestral da transformação

Não é o acaso que traz o ancestral divinizado Oyá para este estudo, mas uma

identificação e um amor muito grandes. Mais do que uma escolha para participar

desta pesquisa acadêmica, ela é uma escolha de vida. Como já citei, há 27 anos me

iniciei em orixá, tornei-me um elégùn. Oyá é meu ancestre divinizado. Sou seu

descendente. Comprovar minhas hipóteses por intermédio desse orixá é um imenso

desafio, ao mesmo tempo em que é uma grande responsabilidade, pois é mais uma

vez compromissar-me com a ancestralidade.

Êpa hey, Oyá! Essa é a saudação dedicada à Oyá. Ela é exaltada por seus

descendentes e por seus fiéis para aclamar o ancestral divinizado nos cultos e

rituais. Êpa hey, para o egbé, é a aclamação ao sagrado. Para seus iniciados são

palavras envoltas de axé, de força ativa e vibrante, de sentidos, de significados

próprios, de vida. Com esse chamamento o adepto busca o contato com o orixá. É

como se nós disséssemos: estou aqui! É como se chamássemos a atenção e a

proteção do ancestre.

116

Oyá é o orixá que rege os ventos, as tempestades, os raios; tem o domínio

sob os ancestres não divinizados; é considerada responsável pelas transformações,

e, em solos africanos, é o orixá do rio Níger106 (VERGER, 2002, p. 168). Cabe

destacar que o rio que nomeia o ancestral é um dos mais importantes da Nigéria,

além de ser sua morada para os nagôs.

Oyá foi uma das mulheres de Xangô, e, de acordo com a historiografia, ela

era a preferida do orixá do trovão e guerreiro das grandes batalhas. Seu principal

elemento da natureza é o ar, mas também se vincula à água e ao fogo.

Observemos este oriki dirigido a Oyá, apresentado por Verger (2002, p.

169):

Oyá, mulher corajosa que, ao acordar, empunhou um sabre. Oyá, mulher de Xangô. Oyá, cujo o marido é vermelho. Oyá, que embeleza seus pés com pó vermelho. Oyá, que morre corajosamente com o seu marido. Oyá, vento da morte. Oyá, ventania que balança as folhas das árvores por toda parte. Oyá, a única que pode segurar os chifres de um búfalo.

Verger (2002) nos diz que destaca em sua obra este oriki por acreditar que

ele descreve bem o ancestral. Nesse contexto, é possível notar vários os títulos

dedicados a Oyá: “mulher corajosa, mulher de Xangô, vento da morte, ventania”

(VERGER, 2002, p. 169). Esses títulos também a acompanharam na migração e

reelaboração dos cultos negros no Novo Mundo. Entre títulos, orikis, itans e outras

formas de ritos, verbais ou não, Oyá chega a essas terras impregnada nas

memórias e nos corpos de seus descendentes africanos. Em cada ofó, em cada

gesto, em cada cantiga, em cada dança, no cheiro do dendê, no gosto de sua

iguaria predileta, nas cores que a identificam, enfim, nas suas representações e

identificações, o ancestral se instalou nas comunidades de cultos negros brasileiros.

Nesses espaços, Oyá também ficou conhecida como Iansã. Há um itan muito

contado e relembrado pelos adeptos dos cultos negros que esclarece o porquê

dessa denominação. Esse mesmo itan é retratado nas obras de Verger (2002, P.

169).

106

Níger em ioruba é conhecido como Odò Oya e, segundo Verger (2002, p. 168), é a principal explicação do nome desse orixá.

117

Oyá lamentava-se de não ter filhos. Esta triste situação era consequência da ignorância a respeito das suas proibições alimentares. Embora a carne de cabra lhe fosse recomendada, ela comia carneiro. Oyá consultou um babalaô, que lhe revelou o seu erro, aconselhando-a a fazer oferendas, entre as quais deveria haver um tecido vermelho. Este pano, mais tarde, haveria de servir para confeccionar as vestimentas dos Egúngún. Tendo cumprido essa obrigação, Oyá tornou-se mãe de nove crianças, o que se exprime em ioruba pela frase: “Iyá omo mésàn”, origem de seu nome Iansã

A referida obra, ao abordar o itan, expressa uma passagem significativa vivida

pelo ancestral: a impossibilidade de gerar filhos. No contexto sociocultural em que

ela se inseria, Oyá busca a solução do problema que lhe aflige. Entretanto, esse

mesmo itan, rememorado até hoje nas comunidades de cultos, retrata, também, o

vínculo de Oyá a egúngún, ou seja, aos ancestrais não divinizados, o que

consequentemente explica o porquê de sua relação com a morte para os seguidores

desses cultos. Explica, ainda, o porquê de algumas interdições imputadas aos seus

descendentes/iniciados, como é o caso de não se comer a carne de carneiro e, em

outros, o uso da cor vermelha. Tais atitudes não são recomendadas para os elégùn

de Oyá. Na iniciação ritualística é apregoado a eles que o que era interdição para o

seu ancestral divinizado também é interdição para o iniciado.

Há, também, a interdição à abóbora. Segundo os mais velhos nos cultos, Oyá

comia abundantemente abóbora, e assim como a carne de carneiro (conforme

citado), a sua ingestão também trazia infertilidade à ancestre. Cabe esclarecer que

na reelaboração dos cultos nas comunidades brasileiras o conceito de (in)fertilidade

não se pauta exclusivamente em gerar filhos, mas amplia-se à prosperidade, ou

seja, ao infringir as regras das interdições, o iniciado pode acarretar dificuldades

para a sua vida material107.

É comum nos espaços de cultos serem contadas histórias sobre os ancestrais

divinizados e sobre os iniciados mais velhos na comunidade para os noviços. Para

eles, é mais uma oportunidade de conhecer sobre o seu orixá e, ainda, de aprender

com as experiências vividas pelos ebômis. Tais histórias são encantadas e

fascinantes: são elos entre o humano e o sagrado. Por intermédio delas há

comunicação e apropriação de saberes. A Ialorixá Denise d’Oyá alega que os itans

107

Na grande maioria das comunidades de cultos as interdições prevalecem até o iniciado conquistar a maior idade ritualística, ou seja, tornar-se um ebômi (aquele que tem mais de sete anos de iniciado com obrigações/oferendas pagas/dadas). No entanto, há adeptos que, mesmo após os sete anos de iniciação, optam pela não ingestão dos alimentos que foram interdições para o seu ancestral pelo conceito imputado à fertilidade como prosperidade. Vale ressaltar que os ritos nos cultos são arraigados de simbologias e simbolismos.

118

que reproduzem as vivências da ancestral são envolvidos por paixões, rompantes e

conflitos. Para ela, isso ocorre porque o orixá apresenta características marcantes e

temperamento “mais esquentado”. A Ialorixá relembrou o itan que identifica Oyá com

um búfalo. Ela esclareceu que essa é a história da ancestral que mais a toca, que

mais lhe mostra o seu temperamento.

Encontramos o itan, citado pela Ialorixá, retratado na obra de Verger (2002, P.

169):

Ogum foi caçar na floresta. Colocando-se à espreita, percebeu um búfalo que vinha em sua direção. Preparava-se para mata-lo quando o animal, parando subitamente, retirou a sua pele. Uma linda mulher apareceu diante de seus olhos. Era Oiá. Ela escondeu a pele num formigueiro e dirigiu-se ao mercado da cidade vizinha. Ogum apossou-se do despojo, escondendo-o no fundo de um depósito de milho, ao lado de sua casa, indo, em seguida, ao mercado fazer a corte à mulher-búfalo. Ele chegou a pedi-la em casamento, mas Oiá recusou inicialmente. Entretanto, ela acabou aceitando, quando, de volta à floresta, não mais achou a sua pele. Oiá recomendou ao caçador não contar a ninguém que, na realidade, ela era um animal. Viveram bem durante alguns anos. Ela teve nove crianças, o que provocou ciúme das outras esposas de Ogum. Estas, porém, conseguiram descobrir o segredo da aparição da nova mulher. Logo que o marido se ausentou, elas começaram a cantar: ‘Máa je, máa um, àwò re nbe nínú àká, ‘Você pode beber e comer (e exibir sua beleza), mas a sua pele está no depósito (você é um animal)’. [...] Oiá compreendeu a alusão, encontrando a sua pele, vestiu-a e, voltando à forma de búfalo, matou as mulheres ciumentas. Em seguida, deixou os seus chifres com os filhos, dizendo-lhes: ‘Em caso de necessidade, batam um contra o outro, e eu virei imediatamente em vosso socorro’.

Esse itan reafirma Oyá como uma mulher destemida, enfurecida (quando

contrariada e/ou desafiada) e leal. Deixar “seus chifres”, como representação de um

búfalo, com seus filhos para que, em caso de necessidade, eles pudessem clamar o

seu socorro é uma simbologia dessa lealdade e da paixão sentida por eles. “Seus

chifres” representam o elo entre o orixá e seus descendentes. Por essa razão a

ancestral é caracterizada em muitas comunidades de cultos como um búfalo e,

ainda, haver chifres desse animal colocados nos locais consagrados a Oyá. Para

nós, seus seguidores, eles simbolizam a proteção da ancestre. Nos rituais dedicados

a Oyá é comum ter um iniciado seu batendo chifres de búfalos. Segundo a Ialorixá

Leila d’Oyá, essa representação, geralmente, objetiva clamar a vinda do orixá para

receber suas honrarias e oferendas e, consequentemente, agraciar a todos com a

sua proteção.

119

Ainda pautados no referido itan, percebemos sua união com Ogum, orixá

vinculado à caça e ao ferro. No entanto, a historiografia voltada para os cultos

negros africanos e negros brasileiros chama a atenção pela paixão intensa da

ancestral por Xangô. Há relatos ainda de seu envolvimento amoroso com Oxóssi e

com Omulú (como citado no capítulo anterior).

O arquétipo de Oiá-Iansã é o das mulheres audaciosas, poderosas e autoritárias. Mulheres que podem ser fiéis e de lealdade absoluta em certas circunstâncias, mas que, em outros momentos, quando contrariadas em seus projetos e empreendimentos, deixam-se levar da mais extrema cólera [...] (VERGER, 2002, p. 170).

No perfil retratado pelo pesquisador sobre a ancestral divinizada, é possível

vermos Oyá como uma mulher à frente do seu tempo quando comparada com

outras ancestrais divinizadas femininas. É fundamental situarmos o contexto

temporal e cultural em que as características da ancestre são postas, ou seja, uma

época em que as mulheres serviam os seus maridos como seus donos e senhores.

No entanto, as histórias nos cultos negros expressam Oyá como a guerreira ao lado

de Xangô, a destemida e desbravadora e com relacionamentos amorosos diversos.

A Ialorixá Nilza d’Ogum levanta a seguinte questão: como romper com os conceitos

de moral e ”bons costumes” determinados pela sociedade vigente sem se arranhar?

Segundo ela, não se pode desvincular as dificuldades enfrentadas pela ancestral, e

nesse contexto, ela cita o preconceito.

Segundo a Ialorixá e, ainda, segundo os relatos de vários ebômis, houve um

período que os iniciados de Oyá eram discriminados em muitas rodas de candomblé

devido ao arquétipo do seu orixá. De acordo com eles, havia uma interpretação

errônea por parte dos iniciados dos outros orixás que levavam “ao pé da letra” as

histórias que retratavam os feitos da “Senhora das Ventanias”. O preconceito atingia

os iniciados, principalmente no que tangia às relações amorosas da ancestral, e,

assim, imputavam-nos adjetivos de volúveis, infiéis, voluptuosos, indecentes,

insaciáveis, dentre outros. Durante um longo tempo os iniciados de Oyá eram

atrelados a um comportamento promíscuo e, às vezes, até mesmo vulgar108.

Percebemos nesses relatos uma interpretação equivocada que marcou uma época

108

Vale acentuar, aqui, que os iniciados que compartilham dessas ideias possuem mais de 25 anos de iniciação nos cultos, o que contextualiza um comportamento social que não está apartado das concepções culturais de uma determinado momento histórico.

120

na história vivida pelos iniciados mencionados. Embora a perspectiva da

ancestralidade, cultuada nas comunidades ritualísticas, apresente uma forte

influência dos ancestres divinizados nas ações e comportamentos dos elégùn,

chegando, em alguns casos, a assumir o viés de hereditariedade, não se deve

apartar o envolvimento do real, do local, da práxis e referências do sujeito nesse

contexto. É um risco abandonar, nesse processo, a bagagem cultural trazida pelo

indivíduo como sujeito social. Suas vivências, suas relações, suas aprendizagens

não são efetivamente apagadas de suas memórias.

Vale sinalizar que é função do processo iniciático atenuar os infortúnios e as

interdições vividas pelo ancestral divinizado para que não se repitam ou ainda que

sejam reproduzidos nas ações/feitos dos iniciados. Aquilo que não foi favorável para

o ancestre deve ser evitado pelo elégùn. Logo, é mediante interação e conhecimento

constante dos atropelos/negativos enfrentados por ele que o descendente poderá

evitar e/ou amenizar problemas no presente. Nesse contexto, recorremos ao próprio

exemplo do orixá Oyá: seu temperamento impulsivo e explosivo acarretou, segundo

os relatos dos mais velhos nos cultos, consequências desfavoráveis retratadas em

itan e em outros registros litúrgicos. Assim, é orientado nas comunidades de cultos

que, de posse dessas passagens vividas pela ancestral, o elégùn precisa evitar essa

reprodução em suas atitudes para se precaver das referidas consequências em sua

existência. No entanto, de acordo com os iniciados de Oyá, não é nada fácil esse

processo. É luta constante consigo mesmo; é um vigiar-se constantemente; é

confronto interno e, na grande maioria das vezes, não é controlável. Por maior que

seja a atenção e o cuidado de si, a explosão de temperamento é uma constante no

perfil desses iniciados. Destacamos, nessa abordagem, que o livre-arbítrio não é

desconsiderado nessa arena; contudo, segundo as Ialorixás Leila e Denise, em

alguns momentos, o enfrentamento para os filhos de Oyá é vital.

Nesse contexto, corroboro com as observações das Ialorixás no que se refere

a controlar impulsividades e, em alguns momentos, até mesmo aos rompantes

emocionais. Não é tarefa fácil, para nós, elégùn desse ancestral, contornar situações

de conflito. Quando nos damos conta, já estamos no meio dele, enfrentando,

desafiando, lutando. As sensações e emoções parecem ser incontroláveis nos

momentos de desafios. É algo que sentimos; simplesmente sentimos, mas não

sabemos explicar. Como bem disseram as Ialorixás: é vital.

121

Nas comunidades de cultos negros, em razão dos itans reelaborados aqui,

pelas histórias criadas nas memórias dos iniciados mais velhos, é comum atrelar o

ancestre à representação de um búfalo (como citado anteriormente) e de uma

borboleta. A primeira representação encontra respaldo na liturgia negra ritualística e

a segunda, na simbologia com a transformação ocorrida para que a lagarta

transforme-se em borboleta. Para muitos iniciados de Oyá, ambas

representações/simbologias são sagradas.

3.3 Axé – forças necessárias para o elégùn

De acordo com os ebômis, as comunidades de cultos negros brasileiros, em

sua maioria, propõem, em suas estruturas, um protocolo sistemático para que o

iniciado possa organizar-se para cultuar o seu ancestral divinizado e, assim,

aproximar-se mais dos ritos e das práticas constitutivas de axé. Assim como as

aprendizagens pedagógicas se constituem em um protocolo de rotinas que buscam

simbolizar os conhecimentos, dando-lhes sentido, as atividades ritualísticas também

se pautam em práticas rotineiras que objetivam a apropriação dos conhecimentos

específicos por parte do adepto para lidar com as estruturas dos ritos do seu

ancestre.

A Ialorixá Denise d’Oyá nos conta que se iniciou muito nova para o ancestral

Oyá. Relembra que tudo era muito novo para ela. Ela nos esclarece que, mesmo

tendo sua mãe genética iniciada em orixá, a iniciação foi uma “nova apresentação

do mundo a sua volta”. Afastar-se dos seus familiares e amigos e passar a conviver

com pessoas que, em parte, não sabem de você, das suas histórias, de seus medos

e angústias, de suas fraquezas, de seus defeitos e qualidades foi muito difícil

segundo ela. A Ialorixá lembra que havia várias etapas de uma rotina que

prosseguia de acordo com a evolução do processo iniciático. Dessa maneira, a

dinâmica do protocolo mudava de tempos em tempos conforme o proposto pelos

rituais e a maturidade/responsabilidade do noviço.

Segundo ela, após os rituais de reintegração que propõem o retorno às

atividades socioculturais desenvolvidas pelos elégùn, na perspectiva de uma

122

reaprendizagem dessas atividades, ocorre uma rotina semanal que pretende manter

ativo o contato do noviço com seu orixá; “manter aceso o axé”. Cabe ressaltar que

as elaborações de condutas, as formulações dos movimentos ritualísticos e a

conexão com a ancestralidade são pilares que sustentam a relação que se

apresenta nessa fase. Ela nos explica que, ainda no período do quelê109, há uma

prática intensa de ritos por parte do iniciado. A Ialorixá expõe que no seu período de

quelê vivia mais em sua comunidade de cultos do que no convívio com os seus

familiares.

Dessa mesma maneira, a Ialorixá Daniele d’Oyá nos conta que viveu de

forma idêntica essa fase. Há uma concordância nas falas das duas Ialorixás quando

nos esclarecem como se processou esse período de suas vidas ritualísticas. De

acordo com ambas as iniciadas, essa fase é como se o elégùn fosse um bebezinho,

um recém-nascido que necessita estar em contato com o colo dos seus pais110,

adquirindo sua atenção, proteção e benção. Nesse contexto, elas dormiam nos seus

respectivos espaços de culto no dia da semana consagrado ao seu ancestre, a

quarta-feira111, no dia do ancestre de seus zeladores e no dia consagrado ao

ancestral Obatalá (também conhecido como Oxalá), a sexta-feira. Esses dias eram

constituídos de banhos de ervas, oferendas de comidas secas112, rezas, recitação

de orikis e ofós, além de, em alguns momentos, cantar e dançar para os ancestrais

divinizados.

Com essas celebrações semanais, segundo os ebômis, a circulação de axé é

constante na vida dos iniciados, impregnando, assim, o orixá em seu ori e corpo.

Logo, praticar e exercitar os ritos, ou seja, as danças, as cantigas, a confecção das

109

Quelê é um cordão feito de búzios e missangas da cor da preferência do orixá que fica “preso” ao pescoço do iniciado por um determinado período. A Ialorixá explica que no tempo em que foi iniciada, esse período era de três meses. Durante esses meses ela tinha dias e horários determinados para estar no barracão. Esclarecemos, ainda, que nesse período o iniciado é tratado como se fosse um recém nascido, recebendo vários cuidados ritualísticos.

110

Vale lembrar que nas comunidades de cultos negros brasileiros os ancestrais divinizados/orixás são tratados por seus iniciados como “pai ou mãe”, e nesse contexto eles são tratados de “filhos”.

111

As comunidades de cultos negros brasileiros vinculam os dias da semana para se cultuar e louvar os orixás. Cada ancestral divinizado que migrou nas memórias e nos ritos dos negros africanos para essas terras tem um dia dedicado a seu culto. Assim, a quarta-feira é o dia dedicado a Oyá. Destaca-se que, independentemente da nação à qual o espaço esteja ligado (Angola, Congo, Kêtu, Jeje, Efon, Ijexá), este dia é comum a todos.

112

Termo utilizado para as oferendas que contêm cereais cozidos ou torrados, frutos sagrados (obi e orobô), frutas frescas, dentre outros, mas não há sacrifícios de animais.

123

comidas, os banhos de ervas, enfim, a interação com as representações do orixá dá

prosseguimento à formação ritual do noviço.

Assim, no contexto do ritual, bater a massa do acarajé113 é manter a energia

vital, quinar as ervas para os banhos, enfiar as missangas para fazer os elequés114

(fios de conta), rezar, cantar etc. é celebração de axé; encher as quartinhas115,

reproduzir a performance do orixá nas danças é vínculo com a ancestralidade; é

encontro de forças (iniciado e ancestral divinizado), ou seja, é significação de

sentidos. As Ialorixás falam de maneira clara e objetiva que somente aprende e

apreende quem convive e ritualiza nos espaços de cultos.

Por isso, explica a Ialorixá Daniele d’Oyá, o contato dos iniciados com as

“coisas” do orixá é estimulado frequentemente nos ritos, na perspectiva de

identificação e apropriação. É na rotina desse contato que o ancestral, a partir do

ritual de iniciação, dá continuidade à incorporação de traços, gestos, modos, no

comportamento do iniciado e, dessa maneira, amplia a sua identificação nele (no

iniciado). Pode-se dizer que é no contato com as “coisas” de seu ancestral que o

descendente formula as suas identificações e um diálogo próprio, acentuando,

assim, o axé do seu orixá em si.

Há um forte consenso entre os Babalorixás e as Ialorixás que participaram

neste estudo no que se refere às práticas rotineiras dos iniciados. Para eles, o fim

dos ritos iniciáticos (a reintegração à vida social) não representa o fim do processo

de aprendizagem. Ao contrário, pode-se mesmo dizer que se trata do princípio, uma

vez que somente depois da iniciação que o elégùn passa a ser “um terreno fértil”

(VERGER, 2002) para que o ancestral divinizado possa retornar ao tempo presente

livremente e, de certa maneira, interagir com seus descendentes e devotos.

Na experiência vivenciada por eles, o domínio do manejo de instrumentos e

representações dos orixás se dá em momentos formais e informais, ou seja, nos

rituais sagrados e nas práticas cotidianas das comunidades de cultos. Percebe-se,

assim, nesses ritos a existência de um treinamento que objetiva estreitar os laços

113

Expressão utilizada pelos adeptos dos cultos negros brasileiros para se preparar a massa do acarajé que é composta de feijão fradinho descascado e moído, temperado com cebola e pimenta.

114

Eléques são fios de contas (missangas) maiores que os quelês. A diferença entre eles está na utilização, pois o eléques podem ser retirados do pescoço a qualquer momento, enquanto os quelês ficam no pescoço no período da iniciação e nas obrigações de renovação.

115

Jarro pequeno de barro ou louça que compõe o assentamento do orixá para se colocar água. No caso de Oyá, geralmente são quartinhas de barro pelo seu vínculo a egun; a terra.

124

entre descendente e ancestre. Assim, percebemos, mais uma vez, a

intencionalidade da fixação das aprendizagens de práticas ritualísticas (rotineiras)

com o disciplinar um comportamento esperado.

O axé do orixá, segundo os iniciados mais velhos, vai se intensificando no dia

a dia pelos encontros nos espaços de cultos, ou seja, nas rodas de candomblé, na

preparação das comidas dos orixás, no cuidar das novas iniciações, nos boris dos

adeptos e, também, auxiliando aos ebômis nos afazeres que são de sua

competência. As comunidades de cultos compreendem movimentos que propõem

sentidos e aguçam as aprendizagens. Tais movimentos significam-se na circulação

e trocas de energias, nos contatos com o egbé e nas suas bênçãos. De acordo com

a Ialorixá Denise d’Oyá, quanto mais se trocam bênçãos, mais os adeptos recebem

o axé dos seus orixás; quanto mais se pede benção aos mais velhos, mais

afortunado de boas energias o noviço será, mais ele aprenderá com a sabedoria dos

que lhe antecederam.

Podemos refletir, diante do apresentado, que há humildade no ato de trocas

de bênçãos, ao mesmo tempo em que os iniciados com essa prática reconhecem e

respeitam os ancestrais divinizados uns dos outros. Pontuamos que a ação de se

trocar as bênçãos ocorre sempre que os participantes dos cultos se encontram, e

não somente nos momentos de rituais. Essa prática também os acompanha na vida

social.

A humildade deve ser o pilar de sustentação do caminho trilhado por todo

iniciado, segundo a Ialorixá Nilza d’Ogum. Ela nos diz que orixá é preceito, privações

e provações. De acordo com a ebômi, a vaidade e a soberba não encontram espaço

no celeiro da ancestralidade, mas nas teias tecidas nos convívios mundanos. Na

perspectiva apresentada, ser humilde é uma virtude e, como tal, deve ser

desenvolvida nas práticas diárias.

Quando me iniciei em orixá tudo era muito diferente, havia mais dedicação e menos vaidades. O santo ensinava a gente a lidar com as adversidades da vida. Por mais problemas que se enfrentasse, havia mais confiança, ao mesmo tempo em que se tinha a certeza que tudo seria resolvido, que nosso santo nos livraria daquela dificuldade. As provações serviam para testar a nossa fé e dedicação ao santo e no nosso axé. Era preciso ser paciente e humilde. Nossa atitude era sempre de respeito ao santo e aos nossos mais velhos. Mantínhamos nossa cabeça baixa ao ouvir um ensinamento de um iniciado mais antigo que nós na vida do santo. Aprendi muito com os meus mais velhos, com meus tios e primos de santo, e a cada ensinamento, lhes tomava benção (IALORIXÁ NILZA D’OGUM, 2013).

125

Nas palavras saudosas de Mãe Nilza (é como todos do seu egbé lhe tratam

carinhosamente), percebemos que a humildade era essencial para que as

aprendizagens acontecessem, para que o elégùn pudesse contar com a sabedoria e

apoio dos “mais velhos” na resolução dos problemas enfrentados. Logo, a “postura

de cabeça baixa” contextualizava as posições de cada um nas relações que se

propunham, segundo a Ialorixá. Assim como citado anteriormente pelas Ialorixás

que participaram desta pesquisa, Mãe Nilza alega que para se aprender é preciso

conviver no espaço de cultos; é preciso respeitar os mais velhos e também os mais

novos e, ainda, demonstrar sempre boa vontade na realização das tarefas ou do que

for solicitado.

Nesse prisma, observamos que o axé é praticado, exercitado, sentido,

dançado, gesticulado, saboreado, visualizado, preparado e, principalmente,

compartilhado e vivenciado. Ele pressupõe trocas de energias e emoções entre

todos os participantes (ancestral divinizado–elégún–egbé–animal–vegetal–mineral).

É como se o axé fosse o combustível necessário para que as engrenagens dos

cultos negros brasileiros se movimentassem. Ele é ativo, dinâmico, plural,

agregador... é sentidos.

Para todos nós, seguidores desses cultos, ter axé é fundamental, pois ele tem

relação com tudo o que é importante para o bom desempenho da vida em seus

aspectos espirituais e materiais, com positividade; com boa sorte, com prosperidade,

com concretude. No egbé, ter axé significa o bom equilíbrio entre essas duas

esferas: espiritual e material. Todo o encantamento proposto nos rituais sugere a

existência do axé tanto no espaço geográfico quanto na vida de seus iniciados e

participantes. Por isso, quando falamos a expressão “axé”, é o mesmo que dizer

“tudo dará certo” em ambos os planos (espiritual e material).

A expressão axé é comum entre adeptos dos cultos negros brasileiros. Ela é

abrangente. Está presente em vários contextos utilizados por nós. Seja para

sacralizar ritos, na finalização das falas de iniciados mais velhos nos cultos, para

saudar os ancestrais divinizados, no diálogo entre irmãos, enfim, ela alicerça

relações.

Vale salientar que o axé se insere no terreno das culturas negras. Ele é

arraigado de encantamento, de sedução, de fascinação, de envolvimento (SODRÉ,

2005, p. 120). Logo, a cultura ocidental, imersa na concepção de verdade única,

126

distancia-se dos seus sentidos. Sua realização se dá no devir dos acontecimentos

ritualizados, ou seja, na realidade vivida constantemente dos espaços de cultos

negros.

3.4 Elégùn – devir sociocultural

De acordo com Hall (1997), a cultura é uma produção, possuindo sua matéria

prima, seus recursos, enfim, seu “trabalho produtivo”. Ela permeia os tempos e

envolve os homens em suas tramas, acompanhando, assim, a(s) história(s) da

humanidade. Logo, a(s) cultura(s) é(são) processo(s) constante(s), repleto(s) de

continuidades, descontinuidades, rupturas, vazios, fendas que, a todo momento,

sofrem ações/intervenções do homem. Assim, sua característica processual (estar

em formação/em movimento) é acentuada no fazer do homem, enquanto agente

social, histórico e cultural. Desse modo, cultura(s) e homem estão em constante

(trans)formação, reinventando-se, cotidianamente, no devir da contemporaneidade.

Nessa perspectiva, não há rigidez nem características fixas, imutáveis ou estáticas,

mas movimentos, transitoriedade, fluidez e mutações.

Cabe pontuar que, no que se refere à reinvenção, nem sempre há a noção

desta ou até mesmo intencionalidade. Muitas vezes ela passa despercebida, pois se

dá de maneira natural e nos acontecimentos diários, ou seja, nos processos vividos.

No entanto, ela está presente nas ações humanas, agindo e interagindo nas

relações que se estabelecem. A reinvenção assume, assim, o papel das

possibilidades e das negociações travadas pelo homem em sua vida, em suas

histórias, em sua formação.

Diante desse contexto, pode-se dizer que o elégùn é a possibilidade de

reinvenção a partir do elo com a ancestralidade. Mediante ritual de iniciação, com o

seu renascimento simbólico, moldam-se, no contexto atual, ancestre e adepto. É

importante esclarecer que o destaque dado ao “contexto atual” deve-se ao fato do

ritual iniciático ser inserido nas culturas negras e, como tal, sofre (sofreu e sofrerá)

transformações e adaptações. Posto isso, enfatizamos que o elégùn se constitui

entre o ancestral divinizado e o indivíduo. Ele é o espaço preenchido pelas marcas

127

culturais de ambos, ou seja, do ancestre mas também do iniciado enquanto ser

social. Dessa maneira, ele se faz plural, coletivo, multifacetado. É fundamental,

neste estudo, a compreensão de que ele – o elégùn – se faz coletivo por abarcar a si

próprio e o seu ancestral116. Dessa maneira, há adições, junções, interseções que

encontram sentido nas relações sociorritualísticas. Reforçamos que o ritual de

elégùn apregoa uma nova etapa, uma nova era, uma nova vida, novos saberes,

fazeres, que estarão vinculados ao ancestre/orixá. Mais do que práticas

ritualísticas/religiosas, o ritual tece laços socioculturais entre os seus atores:

ancestral e descendente.

Conforme abordado no capítulo anterior, há (re)elaborações nas identidades

do iniciado. Há comunicação entre o orun e o aiê, e, nesse prisma, entre o ancestre

(imaterial) e o adepto (material). Portanto, há novas possibilidades de

conhecimentos e de ações; há incessantes mudanças. O indivíduo, ao consagrar-se

em elégùn, passa a ser reflexo do seu ancestral, passa a assumir papéis na

comunidade de cultos, mas também acumula esses papéis em sua vida social, ou

seja, eles (os papéis) os acompanham em sua vida além ritual. Não há isto ou aquilo

nessa perspectiva, e sim isto e aquilo; há soma; há completude; há encontros de

ambos (indivíduo social e ritualístico). E, dessa forma, o ritual de elégùn torna-se

“algo que se supõe definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar

nossa existência como sujeitos humanos” (HALL, 2005, p. 10).

Assim, as identidades (re)elaboradas no contexto dos ritos significam-se no

grupo, no egbé, e estão direta ou indiretamente ligadas à constituição das

comunidades de cultos. Logo, a dinâmica proposta pelas comunidades interfere nas

novas identidades. Faz eclodir novos sentidos para o iniciado que ultrapassam as

fronteiras geográficas da comunidade. Esses sentidos trazem o sentimento de

pertença e partilha. Eles não se esgotam ou se encerram no elégùn, mas atuam em

suas histórias, em seus momentos, em suas ações e, principalmente, em suas

realizações. Eles o identificam, marcam, representam, contradizem e constituem.

Nesse contexto, os sentidos, apresentados por Sodré (2005) como

instrumentos culturais (afetos constituídos nas/das vivências), possibilitam escolhas,

116

Reforçamos que há o ancestral divinizado feito (iniciado) no elégùn, assumindo, assim, certa primazia. No entanto, conforme explicado no capítulo anterior, a ancestralidade divinizada é composta por vários ancestres. Há comunidades de cultos que denominam como primeiro orixá, segundo orixá, e assim por diante. Há outras que se referem como pai e mãe. O mais importante aqui é entendermos que o elégùn vincula-se com mais de um ancestre divinizado.

128

acordos, jogos, negociações e possibilidades. Eles se dão na práxis, no devir, nas

realidades humanas com os seus fatos, seus quereres, seus fazeres. Assim, as

culturas identificam-se com o que faz e dá sentido, ainda que provisório, para o

homem. Dessa maneira, o elégún, enquanto ser sócio, histórico, político, enfim,

cultural, é repleto de sentidos. Nele há as nuanças das representações, dos

significados, das diferenças, das contradições, das afirmações, das negações, das

dúvidas, das analogias, dos saberes e poderes que se estabelecem e se

concretizam em suas vivências. Essas nuanças se constituem no real, no imaginário,

nas simbologias, nos ritos das comunidades de cultos negros. Elas se entremeiam

às suas culturas e, consequentemente, às suas identidades.

Nesse contexto, percebemos que é necessário assumir a(s) identidade(s). No

entanto, é crucial entender que ela (s) é (são) um processo que não se

descontextualiza(m) do tempo e da sociedade. Logo, a(s) identidade(s) se

constrói(em) a várias mãos. Ela não é um processo solitário, e também não se

permeia por homogeneidades. Ela depende de encontros, companhias,

acompanhamentos. O isolamento, nesse sentido, não propicia as condições

necessárias para que as identidades se estabeleçam. Mediante interações diárias,

elas falam sobre nós; exemplificam-se em nós; (re)inventam-se em nós.

A elaboração de uma identidade empresta seus materiais da história, da geografia, da biologia, das estruturas de produção e reprodução, da memória coletiva e dos fantasmas pessoais, dos aparelhos de poder, das revelações religiosas e das categorias culturais. Mas os indivíduos, os grupos sociais, as sociedades transformam todos esses materiais e redefinem seu sentido em função de determinações sociais e de projetos culturais que se enraízam na sua estrutura social e no seu quadro do espaço-tempo (CASTELLS, 1999, p. 18).

Assim, as identidades dos iniciados estão à mercê dos meios/espaços nos

quais eles convivem e interferem. Como já dissemos, elas abarcam seus ancestrais

divinizados, suas identificações, seus pares, sua comunidade de cultos, seus

familiares, seus amigos, suas ações/funções/pretensões, seus gostos, seus rituais.

E, assim, elas vão sendo vividas e significadas, ininterruptamente.

O elégùn, ao participar do mundo, descobre-se, percebe-se e,

consequentemente, acaba por dar continuidade ao processo de constituição (e até

mesmo reinvenção) das suas identidades. Seus ritos, seus ritmos, seus apetrechos,

129

suas cores, seus banhos de cheiro, suas falas, suas histórias, suas

experiências/vivências, de um modo ou de outro, agem nos movimentos da vida.

Com isso, evidencia-se, neste estudo, a perspectiva de que, cotidianamente,

o iniciado ritualiza-se entre o humano e o divinizado. Há no iniciado a porção do

homem (enquanto descendente) e, também, a porção do ancestral divinizado em um

mesmo corpo117. Nesse contexto, a visão nietzschiana também sustenta essa

abordagem quando afirma que “o corpo é apenas uma estrutura social de muitas

almas”. Logo, com esse entendimento, percebemos no elégùn as potências que

engendram suas estruturas sociais118.

Cabe salientar que a sua comunidade de cultos está no seu mundo, ou seja,

em suas estruturas sociais, assim como, da mesma forma, seu mundo está na

comunidade de cultos. Eles integram-se, completam-se, assemelham-se,

confrontam-se. Desse modo, é importante frisar que seus impulsos, sentimentos e

sentidos transitam por suas estruturas e, assim, pautam-se em suas pluralidades e,

até mesmo, em suas ambiguidades.

Durante os anos em que me dediquei (e ainda me dedico) a discutir com

outros iniciados as minhas inquietações acerca do ritual de iniciação

ritualística/religiosa nas comunidades de cultos negros brasileiras como um

processo no qual novas identidades afloram no indivíduo, não tinha a menor ideia de

que elas chegariam até aqui; de que sairiam das rodas de conversas que

finalizavam os momentos de rituais ou após das rodas de candomblé, encerrando a

madrugada. Muito menos de que se tornariam minhas hipóteses acadêmicas e,

dessa maneira, levariam-me a investigá-las de modo sistemático.

Confesso que, trazer o elégùn para essa arena, não foi tarefa fácil. Trazê-lo

significou trazer a mim e todos aqueles que me antecederam e, ainda, os que

continuarão a nos suceder pelos tempos. Propor a discussão sobre a constituição de

identidades que ele abarca, enquanto sujeito ritualístico, levou-me a investigar os

pilares que o sustentam e a vê-lo como o outro, mesmo sabendo que nesse “outro”

eu habito. Manter certa distância do que me é tão próximo, tão familiar, tão íntimo

para poder analisá-lo como objeto de meu estudo foi um exercício árduo, pois foi, ao

117

Vale relembrar, nesse sentido, o conceito de corpo-território discutido por Sodré (2005). 118

Sinalizamos que as estruturas do elégùn estão em constante movimento. Elas estão sempre em formação; estão sempre por se formar. Não há, nele, a hipótese de um sujeito único, fixo, mas a permanente transitoriedade do ser. Ele é devir porque está sempre se constituindo.

130

mesmo tempo, pesquisar-me, reconhecer-me e, principalmente, ritualizar-me

academicamente.

Desse modo, manter o entendimento de que o elégùn se constitui em um

vasto e contínuo processo de reelaborações, negociações e reinvenções culturais é

fundamental para a compreensão deste estudo. O ritual iniciático proposto pelas

comunidades de cultos negros é o pontapé inicial de uma formação que prossegue

cotidianamente. Isto ficou perceptível para mim e para todos os elégùn que

participaram deste estudo. Por muito tempo achávamos que a iniciação efetivava os

rituais, que a partir dela estávamos “prontos”. No entanto, as discussões e as

provocações propostas por esta investigação levaram-nos a concluir que, a cada

dia, no devir da nossa história, damos continuidade em nossa formação, em nossa

reinvenção, em nossa (re)iniciação. Mostraram-nos, ainda, o quanto são importantes

a comunidade, o egbé, os rituais, as oferendas, os vínculos, os laços construídos, os

significados, as simbologias e os sentidos para que possamos ser, de fato, um

elégùn.

Diante do apresentado, encerramos este estudo, acreditando que o ritual está

na formação do iniciado efetivando-se em um intenso e real processo. Ele (o ritual) o

acompanha em suas atuações na vida, no mundo, nas relações. Ele o identifica e o

diferencia. Dá um tom de unidade em um ser tão plural, tão constituído por

diversidades. Logo, o ritual e a formação humana para o elégùn assemelham-se e,

podemos até mesmo dizer que, por analogia, são a mesma coisa. Não há um sem o

outro.

131

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho foi proposto na perspectiva de contribuir para a ampliação de

estudos referentes às culturas dos adeptos dos cultos negros brasileiros enquanto

produtores cotidianos de histórias. Desse modo, propõe, ainda, reflexões,

discussões, debates, diálogos, reelaborações, enfim, todas as possibilidades de

ações políticas que corroborem para o respeito à diversidade, a não propagação da

intolerância religiosa e a efetivação de um Estado laico como determina a Carta

Magna.

As comunidades de cultos negros brasileiros são espaços intensos no que

tange às pluralidades de rituais destinados ao coletivo de ancestrais divinizados que

fundamentam as suas estruturas históricas, sociais, culturais e ritualísticas. Elas

também propiciaram, em sua genealogia, encontros e convivência das diversas

etnias africanas que para essas terras migraram forçosamente a partir do século

XVI.

Foi nesse contexto que reinvenções culturais se estabeleceram e,

impulsionadas por elas, as “nações” do continente africano presentificaram-se na

dinâmica dos cultos negros que sofreram (e ainda sofrem) profícuas reelaborações e

interseções em cada comunidade de cultos que se ergueu em nome da

ancestralidade. Cultuar era a possibilidade de reviver, rememorar, remontar histórias

das “Áfricas” que existiam em cada negro africano, em cada descendente. Fosse

individual ou coletivamente, a prática dos cultos aos ancestrais possibilitou que o elo

com a terra-mãe não se rompesse, que houvesse (pelo menos em suas memórias)

um “eterno retorno” às suas celebrações.

Como assinala Nietzche (1998), a realidade tem um caráter móvel, dinâmico,

incessantemente em mudança e, foi nesse contexto que as relações (re)construídas

nas comunidades de cultos pautaram-se, ou seja, modificando e negociando com as

perspectivas impostas. Dessa maneira, realidade e vida intercruzaram-se nos

panoramas ritualísticos culturais que eram (e ainda são) apregoados pelas referidas

comunidades.

A relação constituída a partir dos preceitos da ancestralidade divinizada

assume, então, lugar de comunicação e interação entre os seus atores: adepto e

132

ancestre. Segundo os iniciados nos cultos negros, é por meio do contato constante e

efetivo com os rituais estabelecidos nas comunidades de cultos que a ancestralidade

reveste-se de significados e sentidos. É mediante essas relações/rituais que

(re)inventa-se, pelos tempos, o ancestral divinizado em seus descendentes,

(re)elaborando-se, assim, o elégùn.

Partindo do princípio da junção de ancestre e iniciado em um ser ritualístico,

pode-se inferir que não há a perspectiva de unidade de sentidos/significados, mas

sim uma multiplicidade que convive em alguns momentos harmonicamente e, em

outros, confrontando-se. Há a constante presença do indivíduo e do ancestral

divinizado no elégùn. Assim, impulsos, emoções, sensações, sentimentos, convivem

na esfera compartilhada pelo ritualístico e pelo social.

No devir de sua história o elégùn impregna em si as características e as

identificações de seu ancestre: temperamentos, predileções, paramentos, cores,

traços que aumentam o vínculo entre eles. Assim, mantém ativo o axé que

fundamenta a sua constituição enquanto sujeito sociorritualístico, além de sustentar

suas identidades. Reforçamos que esse processo não é inato ou natural. Ele se

constrói em uma árdua dinâmica que se alicerça nas comunidades de cultos a partir

dos rituais e avança na direção das ações do elégùn no tempo e na sociedade.

De certo, os rituais iniciáticos estimulam a constituição de identidades no

adepto que se respaldam e se justificam nas histórias e nas memórias dos

ancestrais divinizados e, ainda, nas histórias e nas memórias de todos os elégùn

que os antecederam na comunidade de cultos. Logo, as identidades integram-se nos

movimentos, nos ritmos, nos sabores, nas cores, nos sons, nas cantigas, nas

estruturas dos rituais. Elas (as identidades) presentificam o ancestre no adepto de

forma latente e, assim, dão a ele (o ancestral divinizado) o tom da

contemporaneidade.

Para Sodré (2005), a cultura se dá no devir humano, no relacionamento com

as suas realidades, nas suas expressões, nas suas produções, nos seus sentidos.

Assim, embasada por essa visão, esta investigação percorreu os caminhos dos

elégùn enquanto produtores ativos de histórias que se interpelam nos tempos e nas

sociedades. Seus rituais e performances estão nos seus cultos, mas não se

enclausuram neles. Eles se conectam com a sua formação.

133

Ao longo da execução deste trabalho, percebemos a atuação dos sujeitos

ritualísticos que protagonizam histórias reais cotidianamente pelas comunidades de

cultos negros brasileiros e, principalmente, no mundo. Por onde passam deixam

rastros de sua ancestralidade divinizada. Por onde atuam impregnam suas

identidades e, assim, vão preenchendo (com os seus sentidos) espaços, lugares e

realidades. Suas vivências não apartam mundo e comunidade de cultos. Pelo

contrário. Elas os agregam. Nesse sentido, o elégùn perpassa ritual e formação

humana. E é na sua atuação nos seus universos que ele se constitui, faz-se real.

134

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ANEXO - Ficha de entrevista

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMAÇÃO HUMANA

COMPOSIÇÃO DE TRABALHO DE CAMPO – ENTREVISTA

ROTEIRO DE PERGUNTAS

ENTREVISTADOR:ENTREVISTADO:

LOCAL DA ENTREVISTA:

DATA:

PERGUNTAS:

1- Quanto tempo o(a) senhor(a) tem de iniciado(a) nos cultos negros brasileiros?

2- Qual é o seu ancestral divinizado?

3- Como se deu a sua iniciação?

4- O que mudou no(a) senhor(a) após a sua iniciação?

5- Em que aspectos o(a) senhor(a) percebe o renascimento simbólico

apregoado nos rituais iniciáticos?

6- Como se deram as suas aprendizagens ritualizadas?

7- O(a) senhor(a) ocupa (possui) algum cargo em seu espaço de cultos?

8- Atualmente, como o(a) senhor(a) vê a iniciação?

9- Para o(a) senhor(a) ser elégùn é ...