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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
ANA PAULA DA SILVA GALDINO
O CONHECIMENTO MATEMÁTICO DE ESTUDANTES DO 3º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL SOBRE O CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO: UM ESTUDO
COM BASE NA TEORIA HISTÓRICO CULTURAL
Tubarão
2016
ANA PAULA DA SILVA GALDINO
O CONHECIMENTO MATEMÁTICO DE ESTUDANTES DO 3º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL SOBRE O CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO: UM ESTUDO
COM BASE NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL
Esta dissertação foi julgada adequada à
obtenção do título de Mestre em Educação e
aprovada em sua forma final, pelo curso de
Mestrado em Educação da Universidade do Sul
de Santa Catarina.
Orientadora: Prof. Drª. Josélia Euzébio da Rosa.
Tubarão
2016
ANA PAULA DA SILVA GALDINO
O CONHECIMENTO MATEMÁTICO DE ESTUDANTES DO 3º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL SOBRE O CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO: UM ESTUDO
COM BASE NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL
Este relatório foi considerado
________________ pela banca examinadora.
Tubarão, 18 de fevereiro de 2016.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi construído por memórias. Memória solitária, sentada diante de
textos, registros escritos, fotografias à procura de um modo de “expressar em palavras o
vivido”. Mas, acima de tudo, foi construído por memórias compartilhadas. Momentos de
estudos em disciplinas, professores que com suas aulas mostraram um caminho a seguir, amigas
que compartilharam seus medos, angústias e conquistas... Por isso preciso agradecer:
À minha orientadora Professora Doutora Josélia Euzébio da Rosa. Encontrar
palavras para descrever essa relação torna-se um desafio. Ela, que se tornou uma grande amiga
e que sabe tão bem atender, com sensibilidade, minhas questões, anseios e dúvidas... Você tem
o dom de ser calmaria quando é disso que se precisa e, concomitantemente, dom de ser
“turbilhão” quando o caminho é alcançar voos mais altos. “Há pessoas que nos falam e nem as
escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente
aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre” (CECÍLIA MEIRELLES). Obrigada por
todo o conhecimento compartilhado e por ter marcado uma etapa acadêmica tão importante.
À Professora Lúcia, que nos possibilitou a pesquisa em sua sala, que sempre
demonstrou carinho e atenção comigo e com esta pesquisa.
Aos estudantes desta investigação, que contribuíram para a realização desta
pesquisa, ao disponibilizarem-se ao diálogo e à compreensão do quanto aqueles momentos eram
importantes para mim. Sem a ajuda de vocês, a pesquisa poderia ter sido realizada, mas, com
certeza, perderia a riqueza do olhar nos olhos, da curiosidade que me fez explicar várias vezes
o que é o Mestrado e o que eu pesquisava, dos abraços que recebi e daquilo que a pesquisa de
campo tem de melhor: o inesperado.
À Professora Sílvia Pereira Gonzaga de Moraes e ao Professor Clóvis Nicanor
Kassick, por suas contribuições valiosas no exame de qualificação e pelo aceite em participar,
também, da banca de defesa.
À Professora Elaine Sampaio Araújo por aceitar o convite para participar da banca
de defesa.
Aos meus pais e irmãs, que me apoiaram em todos os momentos, que constituem
aquilo que sou hoje e, também, aquilo que ainda serei.
À minha vó Lulu, que nos deixou durante a realização desta pesquisa. Ela, que sem
certezas científicas, tinha o dom de acreditar na educação, orgulhava-se das netas e genro
professores e com seu carinho ficará eterna na memória.
À minha sobrinha Isabela, que com seus muitos “Por quê?” faz com que eu pense
sobre as rotinas instituídas, os modos de ser criança e viver a infância que muitas vezes são
negados pela escola. Obrigada por compartilhar sua infância comigo e me fazer compreender
que ser tia é amar incondicionalmente alguém.
Às orientandas e amigas, Bia, Cris, Sandra e Gi, pelas valiosas contribuições
durante a realização desta pesquisa e pelas conversas que tornaram este caminho mais doce. À
Cris e Sandra um agradecimento especial, pelos momentos de angústias e conquistas neste
semestre final da pesquisa e na parceria durante o estágio de docência no curso de Pedagogia.
Entre laços acadêmicos e afetivos, vocês se fazem presentes no processo de constituição deste
estudo, tanto com as discussões teóricas quanto pelas conversas, risadas, viagens juntas e
carinho.
À amiga Olívia, que esteve presente desde a elaboração do projeto para o processo
seletivo de ingresso ao Mestrado. A ela minha amizade, companheirismo e gratidão por todos
os momentos juntas e que seja só o começo de grandes conquistas juntas.
À amiga e companheira de trabalho no primeiro ano de Mestrado, Amanda, que
entendeu as demandas de uma professora/pesquisadora. Na impossibilidade de “abraçar o
mundo” precisei da sua ajuda em momentos em que o lado pesquisadora precisava de mais
espaço. Obrigada por toda a amizade e ajuda e por ser essa pessoa tão especial.
Aos integrantes do Grupo de Pesquisa em Educação Matemática: uma Abordagem
Histórico-Cultural (GPEMAHC) e integrantes do grupo Teoria do Ensino Desenvolvimental na
Educação Matemática (TEDMAT), pelos momentos de estudos, reflexões durante a
investigação e materiais bibliográficos disponibilizados.
Ao programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação da UNISUL, aos
professores, coordenação, secretária Daniela e colegas do curso, por terem contribuído em
diversos momentos de minha formação.
Às meninas da disciplina Fundamentos e Metodologias do Ensino da Matemática
nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, do curso de Pedagogia, por terem compartilhado
suas dúvidas e aprendizagens comigo durante o Estágio de Docência. Obrigada!
À Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão de Santa Catarina (FAPESC), pelo
apoio financeiro concedido durante o segundo ano de realização do curso.
“Aquilo que está escrito no coração não necessita de agendas porque a gente não
esquece. O que a memória ama fica eterno” (RUBEM ALVES). A todos, construtores de
memórias eternas: muito obrigada!
Aula de voo
O conhecimento
Caminha lento feito lagarta
Primeiro não sabe que sabe
e voraz contenta-se com cotidiano orvalho
deixando nas folhas vívidas das manhãs.
Depois pensa que sabe e se fecha em si mesmo:
faz muralhas
cava trincheiras
ergue barricadas.
Defendendo o que pensa saber
levanta certeza na forma de muro orgulhando-se de seu casulo.
Até que maduro
explode em voos
rindo do tempo que imaginava saber
ou guardava preso o que sabia.
Voa alto sua ousadia
reconhecendo o suor dos séculos
no orvalho de cada dia. Mesmo o voo mais belo
descobre um dia não ser eterno.
É tempo de acasalar
Voltar à terra com seus ovos
À espera de novas e prosaicas lagartas.
O conhecimento é assim
Ri de si mesmo
E de suas certezas
É meta da forma
Metamorfose
Movimento
Fluir do tempo
Que tanto cria como arrasa
A nos mostrar que para o voo
É preciso tanto o casulo
Como a asa.
(MAURO IASI)
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi investigar o conhecimento matemático dos estudantes do 3º ano
do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação. Consideramos que este é composto
por abstrações, generalizações e conceitos. A referência foi a Teoria Histórico-Cultural, mais
especificamente a distinção entre pensamento teórico e empírico. Os dados de pesquisa foram
obtidos por meio do acompanhamento de uma turma de 3º ano escolar, de uma escola da rede
estadual, no município de Tubarão, durante o segundo semestre de 2014. A coleta de dados foi
realizada em dois momentos: observação das aulas de Matemática e entrevistas individuais com
os estudantes, após a realização das avaliações propostas pela professora, a fim de compreender
o pensamento adotado para a resolução das questões. Para a análise dos dados, utilizou-se: 1)
Descrição construída a partir dos dados que constituem a essência do fenômeno investigado. 2)
Revelação da unidade de análise do objeto de pesquisa: a relação entre a lógica adotada no
processo de ensino e aprendizagem e o conhecimento produzido pelos estudantes sobre o
conceito de multiplicação. 3) Abstrações auxiliares, extraídas no decorrer do processo de
organização dos dados: o tipo de generalização, abstração e conceito desenvolvido pelos
estudantes. 4) Elaboração dos episódios que explicitam a unidade de análise e os isolados. Os
resultados obtidos são semelhantes àqueles detectados por Davýdov (1982) ao analisar as
proposições para o ensino de Matemática em seu país (Rússia) no século XX, por ele
denominado de ensino tradicional por sustentar-se na teoria empírica. Nessa perspectiva, a
elaboração do conhecimento segue o esquema percepção - representação - conceito. O conceito
formado a partir desse movimento de generalização e abstração constitui o conteúdo do
conhecimento empírico. Como forma de superação, Davýdov propõe outro modo de
organização do ensino, tal como apresentamos ao final da presente dissertação por meio de um
diálogo com algumas reflexões brasileiras fundamentadas na Teoria Histórico-Cultural.
Palavras-chave: Educação Matemática. Conceito de multiplicação. Teoria Histórico-Cultural.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Interconexão entre unidade de análise/episódios e abstrações auxiliares .......... 32
Quadro 1 - Organização dos episódios e cenas ........................................................................ 33
Ilustração 2 - Exercício proposto pela professora e resolvido por Maria ................................. 36
Ilustração 3 - Adição de quantidades iguais ............................................................................. 37
Ilustração 4 - Conceito de multiplicação .................................................................................. 39
Ilustração 5 - Tabelas de multiplicação .................................................................................... 41
Ilustração 6 - Dobro, triplo, quádruplo e quíntuplo .................................................................. 43
Ilustração 7 - Para além do estágio de representação (resolvido por Antônia) ........................ 44
Ilustração 8 - O processo de elaboração do conhecimento na lógica formal ........................... 45
Ilustração 9 - Primeiras questões sobre multiplicação nas avaliações...................................... 47
Ilustração 10 - Cálculo para chegar à resposta ......................................................................... 48
Ilustração 11 - Quantos anos tem Ana? .................................................................................... 49
Ilustração 12 - Quantas rodas podemos contar? ....................................................................... 51
Ilustração 13 - Rascunho de Luís ............................................................................................. 52
Ilustração 14 - Rascunho Guilherme ........................................................................................ 52
Ilustração 15 - Riscos no processo de contagem dos povos primitivos.................................... 56
Ilustração 16 - Riscos utilizados como instrumento de cálculo................................................ 56
Ilustração 17 – O casamento da Dona Baratinha ...................................................................... 66
Ilustração 18 – Linhas, pontos e segmento ............................................................................... 70
Ilustração 19 – Representação da relação de desigualdade entre A e C ................................... 70
Ilustração 20 – Introdução do arco ........................................................................................... 71
Ilustração 21 – Representação geométrica e algébrica da quantidade de rosas........................ 71
Ilustração 22 – Cálculo da quantidade de rosas ........................................................................ 72
Ilustração 23 – Representação algébrica dos valores desconhecidos ....................................... 73
Ilustração 24 – Construção inicial do esquema de setas ........................................................... 73
Ilustração 25 – Esquema de segmentos .................................................................................... 74
Ilustração 26 – Esquema de setas: unidade de medida intermediária....................................... 75
Ilustração 27 – Esquema de setas: relação universal ................................................................ 75
Ilustração 28 – Modelação da grandeza discreta a partir dos valores 4 e 6 .............................. 77
Ilustração 29 – Linha tomada como unidade de medida intermediária .................................... 78
Ilustração 30 – Esquema de setas para 6 x 4 ............................................................................ 79
Ilustração 31 – Cálculo na reta numérica para 6 x 4 = 24 ........................................................ 79
Ilustração 32 – Coluna tomada como unidade de medida intermediária .................................. 80
Ilustração 33 – Esquema de setas para 4 x 6 ............................................................................ 80
Ilustração 34 – Cálculo da operação 4 x 6 = 24 e 6 x 4 = 24 na reta numérica ........................ 81
Ilustração 35 – As operações 4 x 6 = 24 e 6 x 4 = 24 na reta numérica ................................... 81
Ilustração 36 – Situações singulares decorrentes de uma particularidade ................................ 82
Ilustração 37 – Termos do conceito de multiplicação .............................................................. 84
Ilustração 38 – Esquema de setas para a situação singular 3 x 4 = ? ....................................... 85
Ilustração 39 – Decomposição do multiplicando (24) .............................................................. 86
Ilustração 40 – Cálculo da operação da multiplicação em linha .............................................. 86
Ilustração 41 – Redução do registro: cálculo da multiplicação em linha ................................. 87
Ilustração 42 – Cálculo da operação da multiplicação em linha e coluna ................................ 87
Ilustração 43 – Cálculo a partir da unidade de milhar e a partir da unidade básica ................. 88
Ilustração 44 – Três possibilidades de singularidades .............................................................. 89
Ilustração 45 – Cálculo na reta numérica da operação 2,50 x 4 = _____ ................................. 89
Ilustração 46 – Cálculo na reta numérica do valor total de moedas que Dona Baratinha
precisará .................................................................................................................................... 90
Ilustração 47 – Carta para Dona Bartinha ................................................................................ 91
LISTA DE SIGLAS
ACT - Contratada em Caráter Temporário
AOE – Atividade Orientadora de Ensino
FEUSP – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
GERED - Gerência Regional de Educação
GEPAPe - Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Atividade Pedagógica
GPEMAHC - Grupo de Pesquisa em Educação Matemática: Uma abordagem Histórico-
Cultural
PENOA - Programa Estadual de Novas Oportunidades de Aprendizagem
S.M. - Sentença Matemática
UNISUL - Universidade do Sul de Santa Catarina
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 11
1 DO CAMINHO PERCORRIDO ÀS REFLEXÕES REALIZADAS ............................. 13
1.1 MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO ...................................................................................... 19
1.2 DA APREENSÃO DOS DADOS AO CONCRETO PENSADO: O CONTEXTO DA
PESQUISA ............................................................................................................................... 22
1.2.1 O campo de pesquisa: a singularidade pesquisada .................................................... 25
1.2.2 Procedimentos metodológicos utilizados durante a pesquisa de campo ................... 27
1.2.3 Procedimentos de organização e análise dos dados .................................................... 30
2 ANÁLISE DO VIVIDO: O QUE OS ESTUDANTES TÊM A DIZER SOBRE O
CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO? ................................................................................ 35
2.1 EPISÓDIO 1: O MOVIMENTO DE FORMAÇÃO DO CONHECIMENTO REFERENTE
AO CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO ............................................................................... 35
2.2 EPISÓDIO 2: OLHOS NOS OLHOS – UM DIÁLOGO SOBRE MULTIPLICAÇÃO
.................................................................................................................................................. 46
3 ONDE ESTÁ A SAÍDA? ..................................................................................................... 58
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 95
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 108
11
APRESENTAÇÃO
A coisa mais importante na atividade científica não é a reflexão nem o
pensamento, nem a tarefa, mas a esfera das necessidades e
emoções. [...] As emoções são muito mais fundamentais
que os pensamentos, elas são a base para todas as
diferentes tarefas que um homem estabelece para si mesmo,
incluindo as tarefas do pensar. [...] A função geral das
emoções é capacitar uma pessoa a pôr-se certas tarefas
vitais, mas este é somente meio caminho andado. A coisa
mais importante é que as emoções capacitam a pessoa a
decidir, desde o início se, de fato, existem meios físicos,
espirituais e morais necessários para que ela consiga
atingir seu objetivo (DAVÍDOV, 1999, p. 45, grifos nossos).
A epígrafe expressa que as ações humanas são carregadas de sentidos subjetivos e
motivos. Desse modo, as emoções e necessidades impulsionam o ser humano para a
concretização de objetivos (DAVÍDOV, 1999). Isto porque todo movimento humano é gerado
a partir de uma necessidade: sobrevivência, trabalho, lazer, estudo, entre outras.
Ainda nessa perspectiva, na concepção de Leontiev (1983), o sujeito constitui-se
em sua atividade, a partir de uma necessidade que se caracterize como individual. Para o
referido autor, entretanto, concomitantemente “com toda a sua peculiaridade, a atividade do
indivíduo humano constitui um sistema compreendido no sistema de relações da sociedade.
Fora destas relações, a atividade humana em geral, não existe” (LEONTIEV, 1983, p. 67).
Intimidade, distância, emoção e necessidade são elementos de referência no
movimento construído na presente investigação enquanto atividade. Intimidade e distância, dois
movimentos inversos que marcam a constituição enquanto pesquisadora: intimidade com a sala
de aula, a docência, o cotidiano escolar e suas especificidades. Distância, para olhar com outros
olhos, buscar outras possibilidades, compreender um contexto específico, ao mesmo tempo em
que relata o atual estágio da educação brasileira.
Já a estrutura da atividade e seus elementos, explicitam o movimento estabelecido
na pesquisa. Esta surge de uma necessidade individual, movida pelo interesse em compreender
o processo de apropriação dos conceitos científicos da Matemática, na especificidade desta
investigação, a natureza do conhecimento matemático de estudantes do 3º ano escolar. No
entanto, constitui-se também como uma necessidade social de fomentar reflexões científicas
sobre a organização do ensino e aprendizagem de Matemática, em especial, das escolas públicas
brasileiras.
12
Adotamos como base para esta investigação, desde a delimitação do objeto de
estudo às análises realizadas, os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, especialmente de
Davýdov e colaboradores. Estes pesquisaram e elaboraram um sistema de ensino considerado
por Rosa (2012), Libâneo e Freitas (2013), entre outros pesquisadores, a expressão mais atual
e fiel aos princípios da teoria anunciada.
Nesta investigação, delimitamos nosso objeto de estudo no conhecimento
matemático de estudantes do 3º ano escolar sobre o conceito de multiplicação.
Para tanto, estruturamos o texto da dissertação em três capítulos: 1) Do caminho
percorrido às reflexões realizadas; 2) Análise do vivido: o que os estudantes têm a dizer sobre
a Matemática? 3) Onde está a saída?
O primeiro capítulo constitui-se do contexto do objeto de estudo em nossa trajetória
acadêmica, a delimitação dos objetivos e o percurso investigativo com base no método adotado:
o Materialismo Histórico e Dialético. O seguinte é dedicado às análises realizadas a partir da
apreensão dos dados da pesquisa de campo e o esforço teórico em explicá-los, de modo
articulado com os fundamentos da Teoria Histórico-Cultural. O terceiro capítulo trata-se de
possibilidades de objetivação da referida teoria em sala de aula. E, por fim, as considerações
finais e síntese das reflexões realizadas sobre o objeto de estudo.
13
1 DO CAMINHO PERCORRIDO ÀS REFLEXÕES REALIZADAS
“O aprendizado de muitas coisas não ensina a compreensão”
(HERÁCLITO DE ÉFESO).
Com esta frase, Libanêo e Freitas (2013) iniciam seu capítulo, no livro Ensino
Desenvolvimental: vida, pensamento e obra dos principais pensadores russos, dedicado a
VasilyVasilyevich Davýdov1. Os autores afirmam que a frase combina com o que acreditava
Davýdov “ao longo de quase 25 anos de pesquisa nas escolas russas visando formular uma
teoria de ensino voltada para o desenvolvimento do pensamento de crianças e jovens”
(LIBÂNEO; FREITAS, 2013, p. 315).
Trouxemos2 a frase para o texto introdutório desta pesquisa, por assemelhar-se com
as reflexões de pesquisadores atuais dos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, tais como
Araújo (2003), Cedro (2008), Moraes (2008), Rosa (2012), Asbahr (2011), Furlanetto (2013),
Hobold (2014), Silveira (2015), entre outros. Além disso, por assemelhar-se com as
inquietações iniciais que geraram o presente estudo: o que os estudantes têm aprendido, de fato,
na escola? A grande quantidade de conteúdo, exercícios, avaliações, resulta em aprendizagem?
Que tipo de aprendizagem?
Durante a graduação tive a oportunidade de aprofundar os estudos sobre o processo
de ensino e aprendizagem da criança. Neste momento, surgiram perguntas: como a criança
aprende? Qual a função de cada uma das etapas de ensino? O foco, por tratar-se de um curso
de Pedagogia, eram as linguagens: linguagem oral, escrita, gráfica, corporal, entre tantas outras.
Todavia, o questionamento mais frequente entre as graduandas era: como e quando a criança
começará a ler e escrever nos Anos Iniciais? Entretanto, como fica a Matemática neste contexto
de “importâncias”?
Tive a angústia, também sentida por outras colegas, do desafio que é trabalhar com
os Anos Iniciais do Ensino Fundamental por ser, nesta etapa da educação básica,
1 No decorrer do texto utilizaremos a grafia Davýdov. Entretanto, quando se tratar de referência a alguma obra
utilizaremos a grafia apresentada na mesma. 2 Ao longo deste capítulo de introdução, em que faremos referência à trajetória pessoal e profissional, assumiremos
a primeira pessoa do singular, dada a natureza do texto. Contudo, quando estivermos nos referindo à parceria
com a orientadora, neste capítulo e nos demais capítulos deste texto, retomaremos o uso da primeira pessoal do
plural.
14
responsabilidade de um professor trabalhar com a maioria das disciplinas (exceto Arte,
Educação Física, Língua Estrangeira).
Saliento este aspecto, visto que durante a graduação tive apenas uma disciplina para
cada área do conhecimento, como, por exemplo, a disciplina de Matemática, intitulada
“Fundamentos Teóricos e Metodológicos do Ensino da Matemática”, com duração de sessenta
horas aulas. Nesta, os jogos didáticos foram explorados, enfaticamente, como a possibilidade
de “deixar a matemática mais prazerosa”. Todavia, cabem as perguntas: a matemática precisa
ser somente prazerosa? A metodologia de jogos possibilita a socialização da essência do
conhecimento matemático contemporâneo produzido pela humanidade?
Atualmente, na prática docente (professora da Educação Infantil), nas várias escolas
em que lecionei, na condição de professora contratada em caráter temporário (ACT), assim
como também durante os estágios da graduação, a ênfase incidia na Língua Portuguesa e na
Matemática. Professores e coordenação pedagógica enfatizavam em seus discursos a
importância dessas duas disciplinas na formação do estudante. Não há como negar tal
relevância, mas deve-se considerar o desenvolvimento integral da criança, pois o que ocorria,
na prática escolar, era a linguagem escrita em “primeiro plano” e a linguagem matemática logo
em seguida.
De acordo com Fiorentini (1995), a prática pedagógica de Matemática tem sido, ao
longo dos anos, organizada por meio de um padrão: exposição do conteúdo, demonstração,
exemplos e, em seguida, exercícios para “fixar” o tema proposto. Alguns professores acreditam
que a Matemática deve estar inteiramente relacionada ao cotidiano do estudante e aquilo que
não está ao alcance do sensorial deve ser evitado. Desta forma, o ambiente é de repetição, cópia,
reprodução, com destaque ao quadro e ao livro (FIORENTINI, 1995). Além disso, os livros
didáticos de Matemática, disponibilizados nas escolas em que lecionei, evidenciavam a relação
direta entre número e quantidade discreta em detrimento da quantidade contínua.
Neste contexto surgem outros questionamentos: como os estudantes têm significado
a Matemática? Que relações estabelecem entre objetos? O livro didático dá espaço a uma
abordagem não linear?
Os resultados referentes à educação escolar brasileira apresentados em documentos
oficiais e por pesquisadores como ASBAHR (2011), FERRARO (1999), MOURA et al. (2012),
entre outros, evidenciam que nosso país avançou na questão do acesso à escola, porém o
problema está na aprendizagem dos estudantes. Isso porque
15
[...] é notório o pouco investimento que tem recebido a Educação Matemática nos
anos iniciais, no que se refere à formação docente, quer das políticas públicas, quer
dos próprios educadores. Sabemos, também, a importância do combate a uma
persistente visão de que o conhecimento matemático pertence a uma minoria, cujo
acesso requer elaborados esquemas intelectuais. Associado a essa concepção tem-se
a adoção de uma metodologia de ensino que desconsidera o movimento de produção
cultural dos conceitos, focalizando o ensino apenas no aspecto operacional de
determinados conteúdos matemáticos (MOURA et al., 2012, p. 02480).
Ainda em relação à atual educação brasileira, mais especificamente nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, deparamo-nos com políticas públicas que provocaram
mudanças, como, por exemplo, a implantação do Ensino Fundamental de nove anos e a
consequente inserção da criança de seis anos na escola, implementada a partir de documentos3
que deixaram educadores e gestores com dúvidas quanto à sua materialização em sala de aula.
Por meio da Portaria nº 867, de 4 de julho de 2012 (BRASIL, 2012a), o governo
federal instituiu o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e suas diretrizes. O Pacto
é um compromisso formal assumido pelos governos federal, do Distrito Federal, dos Estados e
Municípios de “assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade,
ao final do 3º ano do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2012b, p. 11). Diante dessas políticas
públicas, como está a organização do ensino de Matemática nas escolas atualmente? Por que os
estudantes continuam apresentando baixo desempenho nas avaliações externas e internas?
A Matemática é uma linguagem e, por isso, implica que as crianças “dominem seus
signos, as conexões entre eles e a sintaxe” (MOURA, 2007, p. 61). Pensar a educação nos Anos
Iniciais do Ensino Fundamental significa compreender esta etapa como base importante para o
processo de apropriação do conhecimento científico e no desenvolvimento da Atividade de
Estudo (DAVÝDOV, 1982).
Assim, na busca por compreender um modo de organização do ensino de
Matemática com vistas ao desenvolvimento do pensamento teórico e de refletir a concepção
enraizada nos bancos escolares geradora de afirmações como “a matemática é difícil”, “não
gosto de matemática”, vislumbramos as proposições de Vasili Vasilievich Davýdov. A partir
dos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, Davýdov propôs um modo de organização de
ensino no qual tanto o conteúdo quanto o método estão direcionados ao processo de formação
dos conceitos matemáticos em nível científico.
Com um projeto de formação de um novo homem na sociedade socialista soviética,
Davýdov almejava que a escola “ensinasse os alunos a orientarem-se com autonomia na
3 Documentos como: Ensino Fundamental de nove anos: orientações gerais. Brasília: MEC/SEB e Ensino
Fundamental de nove anos: passo a passo do processo de implantação. 2. ed. Brasília: MEC/SEB, 2009.
16
informação científica e em qualquer outra esfera do conhecimento” (LIBÂNEO; FREITAS,
2013, p. 315). Davýdov focou suas investigações
[...] nas questões referentes às ações mentais, fundamentadas na Teoria criada por
Galperin nos anos de 1950 (SHUARE, 1990). De 1959 a 1983 trabalhou, juntamente
com Elkonin, no Instituto de Psicologia Geral e Pedagogia da Academia de Ciências
Pedagógicas da União Soviética. Inicialmente, como colaborador científico, em
seguida como chefe de laboratório de psicologia e, finalmente, como diretor
(HOBOLD, 2014, p. 17).
Algo essencial nas proposições de Davýdov era o desejo de propor um ensino
inovador como superação ao que era realizado em seu país.
Para tanto formulou a seguinte proposição: primeiro os estudantes aprendem o
aspecto genético e essencial do conhecimento, referente ao próprio modo de operar da ciência,
como um método geral para análise e solução de problemas particulares que requerem tais
conhecimentos compreendendo a articulação entre os mesmos. Depois, ao utilizar o método
geral, os estudantes resolvem tarefas particulares e contemplam a articulação entre o todo e as
partes e vice-versa. (DAVÝDOV, 1982).
Esse processo possibilita, de acordo com Davýdov (1982), o desenvolvimento do
pensamento teórico. Os pressupostos Teoria Histórico-Cultural, em especial da proposição
davydoviana para o ensino de Matemática suscitaram em mim interesse e necessidade de refletir
sobre a Educação Matemática brasileira e algumas possibilidades de mudanças. A fim de
satisfazer essa necessidade, após dois anos da conclusão da graduação, retornei ao curso de
Pedagogia para participar da nova disciplina de Fundamentos Teóricos e Metodológicos do
ensino da Matemática, na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), no ano de 2013.
Parte das reflexões realizadas foi com base na concepção davydoviana e nos fundamentos da
Teoria Histórico-Cultural para o processo de ensino e aprendizagem de Matemática.
A disciplina cursada serviu apenas como base introdutória. Para aprofundar esses
estudos, principalmente sobre a obra davydoviana, ingressei no Mestrado em Educação da
UNISUL. Durante a realização das disciplinas no Mestrado, foi possível delimitar o objeto de
pesquisa e refletir sobre o método a ser utilizado.
Para Rosa (2012, p. 25), “constitui tarefa da educação: influenciar, dirigir, isto é,
transformar em princípio a criação das condições e as premissas para a mudança do tipo geral
e dos ritmos do desenvolvimento psíquico das crianças”, perguntamos: Qual é o conhecimento
matemático desenvolvido pelos estudantes do Ensino Fundamental?
17
Nesse sentido, a educação escolar, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental teve,
conforme mencionamos, a implantação do Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa, que
estabelece a alfabetização, inclusive Matemática, até o 3º ano escolar. Por isso, optamos por
realizar esta pesquisa com estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental, com faixa etária média
de oito anos. A partir desse ano escolar, conforme prevê o pacto, é que há possibilidade de
reprovação dos estudantes, bem como a realização da Avaliação Nacional da Alfabetização
(ANA), aplicada pelo INEP.
Ao ingressar na escola, já nos Anos Iniciais, na concepção de Davýdov (1982), os
estudantes devem aprender aquilo que não lhes é acessível em casa, na rua e nas brincadeiras
entre amigos. O autor em referência aponta que o ensino escolar deve proporcionar às crianças
conceitos genuinamente científicos, desenvolver o pensamento teórico e as capacidades para o
sucessivo domínio, independente do número sempre ascendente de novos conhecimentos
científicos (DAVÝDOV, 1982; DAVÍDOV, 1988).
Com base nestas reflexões, propusemos o seguinte problema de pesquisa: qual a
natureza do conhecimento dos estudantes do 3º ano escolar sobre o conceito de multiplicação?
Assim, delimitamos como objetivo geral investigar o conhecimento matemático dos estudantes
do 3º ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação.
A fim de alcançar o objetivo proposto, consideramos a relação entre a organização
do ensino de Matemática no 3º ano escolar e os conhecimentos apropriados pelos estudantes
dos conceitos matemáticos. Para investigar o conhecimento matemático de estudantes do 3º ano
do Ensino Fundamental, fundamentamo-nos na Teoria Histórico-Cultural. Para tanto,
estudamos os pressupostos referentes ao conhecimento teórico e empírico e os processos de
ensino e aprendizagem de Matemática.
A relevância social e acadêmica da presente investigação incide na carência
significativa de pesquisas que desvendem a natureza do conhecimento matemático considerada
na organização do ensino proposta por autores da Teoria Histórico-Cultural e aquela
comumente contemplada na educação escolar brasileira. Trata-se de aprofundar as reflexões
sobre o processo de ensino e aprendizagem da Matemática nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental, na especificidade do conhecimento apresentado por estudantes brasileiros do 3º
ano e na proposta de Davýdov e colaboradores (Teoria do Ensino Desenvolvimental), esta,
[...] tornou-se realidade ao ser implantada em escolas de Moscou, quando foram
propostos novos programas para as principais disciplinas de pré-escolas e escolas
primárias, cujos fundamentos estão no livro Problemas do Ensino Desenvolvimental.
Foram desenvolvidos também programas de formação de professores para trabalhar
com esse sistema (LIBÂNEO; FREITAS, 2013, p. 321).
18
Acreditamos, com base em Davýdov (1982) e demais autores da Teoria Histórico-
Cultural, que a escola deve promover o desenvolvimento do conhecimento teórico em
detrimento do conhecimento empírico. Assim, a análise dos dados teve respaldo em reflexões
sobre o conhecimento empírico e teórico no processo de ensino e aprendizagem de Matemática.
Compreendemos, de acordo com a referida teoria, que o encaminhamento teórico-
metodológico para o processo de ensino e aprendizagem da Matemática deve contemplar o
lógico-histórico do conhecimento matemático (ROSA; MORAES; CEDRO, 2010a, 2010b;
SILVEIRA, 2015). Conforme Kopnin (1978, p. 183):
Por histórico subentende-se o processo de mudança do objeto, as etapas de seu
surgimento e desenvolvimento. O histórico atua como objeto de pensamento, o reflexo
do histórico, como conteúdo. O pensamento visa à reprodução do processo histórico
real em toda a sua objetividade, complexidade e contrariedade. O lógico é o meio
através do qual o pensamento realiza esta tarefa, mas é o reflexo do histórico em forma
teórica, vale dizer, é a reprodução da essência do objeto e da história do seu
desenvolvimento no sistema de abstrações (KOPNIN, 1978, p. 183).
Logo, compreender a organização do ensino da Matemática considerando o lógico-
histórico significa considerar o movimento de origem e transformações do conhecimento.
Desse modo, os conceitos são considerados como produto da necessidade vivenciada
historicamente pela humanidade, porém em seu estágio atual de desenvolvimento.
Nesse contexto, cada conceito é compreendido em seu conjunto, da mesma forma
que uma “célula deve ser tomada com todas as suas ramificações através das quais ela se
entrelaça com o tecido comum” (VIGOSTKI, 2000, p. 294). No ensino da Matemática o
conceito de número, por exemplo, sofreu alterações que o transformaram em um sistema
integral. Os números surgiram a partir da necessidade humana de contagem, dando origem aos
números naturais. Depois, a partir da necessidade da medição surgiram os racionais e
irracionais, culminado assim com o sistema dos números reais (ROSA, 2012).
Vale salientar que o conteúdo de uma disciplina não é idêntico à totalidade dos
avanços da ciência correspondente. Mas, de acordo com Davýdov (1982), é obrigação da
educação escolar proporcionar as abstrações e generalizações ao nível inteiramente moderno, o
conhecimento em seu atual estágio de desenvolvimento. Para investigarmos o conhecimento
matemático dos estudantes fundamentamo-nos no método adotado. A seguir apresentaremos
alguns princípios metodológicos advindos do Materialismo Histórico-Dialético.
19
1.1 MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO
Ao falarmos em investigação, referimo-nos essencialmente ao método. Segundo
Kopnin (1978) e Vigostki (1995), compreendemos método como
um meio de obtenção de determinados resultados no conhecimento e na prática, todo
método compreende o conhecimento das leis objetivas. As leis interpretadas
constituem o aspecto objetivo do método, sendo o objetivo formado pelos recursos de
pesquisa e transformação dos fenômenos, recursos esses que surgem com base
naquelas leis. Por si mesmas, as leis objetivas não constituem o método; tornam-se
método os procedimentos que nelas se baseiam e servem para a sucessiva
interpretação e transformação da realidade, para a obtenção de novos resultados.
(KOPNIN, 1978, p. 91).
Para Vigotski (1995), o método de conhecimento é a parte principal de uma
concepção teórica: “O método e a investigação mantêm uma relação estreita” (VIGOTSKI,
1995, p. 47).
Ao definirem o método, os autores supracitados fazem-no por meio do
Materialismo Histórico e Dialético. Assim, a lógica do conhecimento é a lógica dialética. O
homem é compreendido em sua historicidade e materialidade e a busca da ciência é a explicação
da realidade com o intuito de transformá-la.
A Teoria Histórico-Cultural tem sua origem epistemológica no Materialismo
Histórico e Dialético. Assim, como mencionado, as reflexões realizadas na presente pesquisa
são fundamentadas nesse método de investigação. Optamos pela ótica dessa teoria por
acreditarmos que esta se diferencia, significativamente, das demais tanto pela amplitude quanto
pela sua profundidade (ROSA, 2012) e, também, pela referida teoria fundamentar a Proposta
Curricular do Estado de Santa Catarina, qual seja a Teoria Histórico-Cultural.
A dialética materialista e suas categorias têm, de acordo com Kopnin (1978), a
função de método do conhecimento científico. É o método do desenvolvimento “[...] e da
explicitação dos fenômenos culturais partindo da atividade prática objetiva do homem
histórico” (KOSIK, 1995, p. 39).
Para Martins (2008), essa concepção de homem como autor do mundo faz com que
ele se veja como “ser” diferente dos outros animais. O ponto essencial de diferenciação é a
capacidade de transformar a natureza e a si mesmo com e pelo seu trabalho. Nessa ótica, a
sociedade é resultado da luta que ela enfrenta para garantir a sua sobrevivência. Então, se
existem diferentes formações econômicas e sociais é porque também há distintas formas de
sobrevivência, modos diversos de produzir condições necessárias para a vida do homem.
20
Diante disso, o ser social desenvolveu-se e desenvolve-se com o processo das
relações sociais correspondentes à produção material dos homens, “[...] que é o fundamento de
toda a vida social e, em consequência, da verdadeira história [...]” (MARX, 1989, p. 124) e é o
elemento central da ontologia marxiana. Por não restringir-se à dimensão propriamente
filosófica, mas também à prática social, o ser e o pensar são duas dimensões do mesmo existir
humano.
Um estudo sobre a gênese histórica do objeto deve partir do todo, do real que
queremos analisar. Para Marx (1989), no início, o real é uma representação caótica do todo, e
por meio de uma determinação mais exata deste todo chegamos a conceitos mais simples de
representação do concreto, ou, com outras palavras, a abstrações do todo. Quando chegarmos a
esse momento, é hora de voltar, de modo inverso, até atingirmos o concreto pensado (MARX,
1989).
Segundo a lógica dialética, tudo está em movimento, e todas as formas de
movimento são geradas pela simultaneidade de vários elementos contraditórios na totalidade
de certo sistema. De acordo com Kosik (2002),
captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa
em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde.
Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua
manifestação e revelação, a essência seria inatingível... O fenômeno não é, portanto,
outra coisa senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta
imediatamente, primeiro e com maior frequência (KOSIK, 2002, p. 12).
Compreender um fenômeno, portanto, é atingir a sua essência. Esta tem como ponto
de partida sua manifestação externa, que no movimento entre concreto e abstrato, se revela sua
relação interna na atividade de pesquisa.
Ao iniciarmos uma pesquisa, vale refletir sobre a questão levantada por Bicudo
(1993): “[...] a elaboração de pesquisas publicadas nas modalidades de dissertações e de teses
são natimortas, não têm vitalidade, só servem para a obtenção de títulos exigidos para o
preenchimento de quadros institucionais” (BICUDO, 1993, p. 21). Outros estudos apontam na
mesma direção e alertam sobre a necessidade de apropriação do pesquisador que realiza o
estudo. Significa considerar a pesquisa como atividade, de fato, humana.
Moura (2000) explica que para estar em uma pesquisa como atividade em busca de
um fim,
[...] ela precisa ser do sujeito. Isto é, deve provocar no sujeito uma necessidade de
solucionar algum problema. Ou, melhor ainda: ter sua nascente numa necessidade.
21
Esta, por sua vez, só aparece diante de um problema que precisa ser resolvido e cuja
solução exige uma estratégia de ação (MOURA, 2000, p. 34).
Desse modo, estar em atividade de pesquisa significa estarmos voltados a um
objetivo e à satisfação de uma necessidade. Este é um processo dinâmico e que interfere na
condição tanto de pesquisadora quanto de professora, a ponto de, no segundo ano de Mestrado,
termos que nos afastar da docência e nos debruçarmos, com dedicação exclusiva, à pesquisa.
Outro aspecto que merece destaque refere-se à utilização do estudo de caso nas
pesquisas no campo da educação. Para Rigon, Asbahr e Moretti (2010), são comuns pesquisas
que evidenciam o contexto da sala de aula e descrevem o que foi observado nessa investigação,
especificando os fenômenos.
Nas pesquisas do Gepape4, o estudo de caso é utilizado, mas há uma outra
compreensão acerca do conhecimento produzido a partir da investigação de uma
realidade singular. Embora com singularidades de um estudo de caso, entendemos que
a pesquisa deve permitir a legitimação do singular como instância de produção de
conhecimento científico (RIGON; ASBAHR; MORETTI, 2010, p. 43).
Uma vez que:
O valor do singular está estreitamente relacionado a uma nova compreensão acerca
do teórico, no sentido de que a legitimação da informação proveniente do caso
singular se dá através do modelo teórico que o pesquisador vai desenvolvendo no
curso da pesquisa (GONZÁLEZ REY, 2005).
Assim, optamos pelo estudo de caso para a presente pesquisa, ao refletirmos sobre
o objetivo que almejamos. Além disso, em coerência com os princípios teóricos que
fundamentam a presente pesquisa, determinamos como meta não nos atentarmos somente para
a aparência dos fatos. Mas, sim, a uma análise que tenha como foco revelar a essência da
totalidade do objeto de estudo.
Para Caraça (2002, p. 105), “se tudo depende de tudo, como fixar a nossa atenção
num objeto particular de estudo? Temos que estudar tudo ao mesmo tempo?” O próprio autor
sugere solução para esta questão ao estabelecer um recorte deste todo, que ele denominou de
isolado: “um conjunto de seres e fatos abstraindo de todos os outros que com ele estão
relacionados” (CARAÇA, 2002, p. 105). Esse conjunto denominado pelo referido autor de
isolado, é uma seção, um recorte da realidade, na busca por compreender o fenômeno e na
4 Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Atividade Pedagógica (FEUSP).
22
impossibilidade de se estudar tudo ao mesmo tempo. O isolado pode ser constituído de isolados
mais amplos, que servirão para a análise de fenômenos mais complexos.
Nesse sentido, em uma sala de aula há diversas possibilidades de objeto de estudo,
há vários isolados, inclusive para uma pesquisa que tenha como foco uma única disciplina, que
no nosso caso é a Matemática. Na impossibilidade de se estudar tudo ao mesmo tempo, optamos
por delimitar como nosso isolado desta pesquisa: a natureza do conhecimento dos estudantes
do 3º ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação. Ao considerar nosso
objeto de estudo, o conhecimento matemático dos estudantes, o isolado serve como base para
a análise, na sua interdependência com outros isolados e considerando-o dentro de uma
totalidade, no caso em estudo o processo de ensino e aprendizagem da Matemática.
1.2 DA APREENSÃO DOS DADOS AO CONCRETO PENSADO: O CONTEXTO DA
PESQUISA
Anteriormente abordamos os fundamentos do método em seu caráter geral. Neste
item, apresentaremos, primeiramente, alguns princípios metodológicos específicos para a
presente pesquisa. Reafirmamos que a base epistemológica é o Materialismo Histórico e
Dialético. Esta é a base que orienta as reflexões apresentadas na presente dissertação, desde a
delimitação do objeto de estudo, as etapas de coleta de dados até a análise dos mesmos. Não
pretendemos aqui esgotar as questões advindas deste método, por compreender que não
conseguiríamos alcançar tal objetivo em virtude de sua complexidade e do tempo que
possuímos para concluir o Mestrado. Desse modo, abordaremos aqui os elementos centrais que
orientam a investigação.
Em seguida, apresentaremos os procedimentos metodológicos adotados na
pesquisa de campo, ou seja, como apreendemos os dados da realidade pesquisada. Em um
terceiro momento, relatamos os procedimentos de análise que indicam o movimento de análise
dos dados coletados para que compreendêssemos o objeto de estudo.
De acordo com Prestes, Tunes e Nascimento (2013, p. 55), o desafio de Vygotski
“era criar uma nova abordagem dos processos psicológicos estritamente humanos e pôr a
psicologia em bases materialistas”. Nesta concepção, Vigotski adota uma lógica de
conhecimento: a lógica dialética. Como decorrência desta, vale reafirmar que o homem é
compreendido em sua historicidade e materialidade e a ciência é a busca de explicação e
transformação da realidade.
23
Entretanto, segundo Davidov e Zinchenko (1999, p. 157), Vygotski não
considerava “a filosofia marxista [...] um dogma ou uma teoria em que poderiam ser
encontradas respostas a todas as questões específicas da psicologia”. Inclusive, “o autor critica
aqueles que fazem colagens das citações de Marx para explicar problemas que são próprios da
Psicologia” (ASBAHR, 2011, p. 102).
Desse modo, Vygotsky (1988) sustenta que o elemento essencial para a
compreensão das funções psicológicas superiores é a abordagem dialética. Para tanto, qual seria
o princípio fundamental da abordagem dialética? Para o autor, trata-se de estudar o objeto de
pesquisa historicamente e em movimento, como destaca na seguinte afirmação:
Quando uma investigação inclui o processo de desenvolvimento de algum fenômeno
em todas as suas fases e mudanças, desde o momento em que surge, até o momento
em que desaparece, isto implica manifestar sua natureza, conhecer a sua essência, uma
vez que apenas em movimento demonstra o corpo que existe (VIGOTSKI, 1995, p.
67-68, tradução nossa).
Vygotski formula, conforme Shuare (2010)5, “uma concepção metodológica” a
partir do método Materialista Histórico e Dialético. Esta concepção está baseada em duas
proposições centrais: alguns princípios metodológicos indispensáveis à investigação dos
fenômenos psicológicos humanos e o método de análise por unidades (VYGOTSKY, 1988). O
autor aponta três princípios de investigação que nortearam a análise na presente pesquisa:
análise de processos e não de objetos; explicação e não apenas descrição; estudo do problema
do comportamento fossilizado.
A realização desses três princípios ocorre, em Vygotsky (1988), no contexto das
unidades de análises. O autor compreende as unidades como forma de analisar o todo do objeto
de estudo, do isolado, negando outras abordagens que o decompõem a partir dos elementos de
que este é constituído. Esta investigação compreende a singularidade do objeto de estudo e
procura apreender em sua plenitude, ao considerá-lo a partir de unidades que constituem o todo.
No entanto, o que é uma unidade de análise? Como podemos revelar, em nosso
objeto de estudo, a unidade central para que possamos compreendê-lo? Vigotski (2000) define:
Um produto de análise que, diferente dos elementos, possui todas as propriedades que
são inerentes ao todo e, concomitantemente, são partes vivas e indecomponíveis dessa
unidade. A chave para explicar certas propriedades da água não é a sua fórmula
química, mas o estudo das moléculas e do movimento molecular. De igual maneira, a
célula viva, que conserva todas as propriedades fundamentais da vida, próprias do
5 “Expressão utilizada por Martha Shuare em palestra proferida no Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo em dezembro de 2010” (ASBAHR, 2011, p. 103).
24
organismo vivo, é a verdadeira unidade de análise biológica (VIGOTSKI, 2000, p.
08).
Ainda, sobre as unidades de análise Vigotski (2000) explicita:
Procuramos substituir a análise que aplica o método de decomposição em elementos
pela análise que desmembra a unidade complexa do pensamento discursivo em
unidades várias, entendidas estas como produtos da análise que, à diferença dos
elementos, não são momentos primários constituintes em relação ao todo o fenômeno
estudado, mas apenas a alguns dos seus elementos e propriedades concretas, os quais,
também diferentemente dos elementos, não perdem as propriedades inerentes à
totalidade e são suscetíveis de explicação, mas contêm, em sua forma primária e
simples, aquelas propriedades do todo em função das quais se empreende a análise
(VIGOSTKI, 2000, p. 397-398).
Assim como Marx, Vygotsky (1988) concebe o conhecimento do fenômeno na sua
totalidade e não como soma de elementos que o constituem. Para expor nosso objeto de estudo
a partir desta concepção, adotamos a ideia de episódios proposta por Moura (1992; 2004) na
tentativa de criar uma metodologia para investigar as interdependências em isolados.
Os episódios poderão ser frases escritas ou faladas, gestos e ações que constituem
cenas [...]. Assim, os episódios não são definidos a partir de um conjunto de ações
lineares. Pode ser que uma afirmação de um participante de uma atividade não tenha
um impacto imediato [...] o pesquisador, tal como o produtor de cinema, é que faz a
leitura dessas várias ações, que parecem isoladas, à procura das interdependências
[...]. (MOURA, 2004, p. 276).
Dessa forma, os episódios direcionaram-nos para uma necessidade teórico-
metodológica das pesquisas científicas: analisar o processo de desenvolvimento do objeto de
estudo.
A análise por unidades e episódios tem sido adotada por alguns pesquisadores
brasileiros como Moretti (2007), Moraes (2008), Cedro (2008), Ribeiro (2011), Furlanetto
(2013), Panossian (2014), Silva; Cedro (2015), entre outros. Quanto à presente investigação,
pretendemos, com os episódios, reconhecer a essência do conhecimento matemático dos
estudantes sobre o conceito de multiplicação.
No entender de Asbahr (2011), para a apropriação da essência do real, do concreto,
são necessárias mediações de “um tipo especial”, pois este processo não se dá imediatamente
aos órgãos dos sentidos. Essas mediações especiais que Marx (1989) chama de abstrações, em
Vygotsky (1988), para a referida autora, são denominadas de unidades de análise.
Rigon et al. (2010), fundamentadas em Kosik (2002), escrevem sobre os princípios
que orientam a compreensão do fenômeno em sua totalidade:
25
[...] compreender um fenômeno dialeticamente é atingir a sua essência, e esta não se
manifesta diretamente, é necessária a atividade do pensamento para alcançarmos a
concretude do real, a totalidade. A aparência do fenômeno é uma das dimensões da
realidade, mas na ‘atmosfera comum da vida humana’, essa aparência, adquire
independência, constitui o mundo da pseudoconcreticidade: ‘no mundo da
pseudoconcreticidade, o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e
se esconde, é considerado como a essência mesma, a diferença entre o fenômeno e a
essência desaparece’. (RIGON et al., 2010, p. 37).
Com isso, entendemos que a apropriação do concreto pelo pensamento se dá por
meio das unidades de análise ou abstrações. Contudo, não basta a definição das unidades de
análise. Para Vygotski (1999) é necessário realizar o caminho inverso, ou seja, o estudo da
essência de determinado fenômeno por meio da análise de sua forma mais desenvolvida.
Este é o movimento que percorremos: a ascensão do abstrato ao concreto. De acordo
com Marx (1989, p. 248), o concreto é a “síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da
diversidade”. No momento de partida,
[...] no estágio da percepção sensorial da realidade, o conhecimento recebe os dados,
sem esse material não se pode avançar nenhum passo. No estágio do pensar abstrato,
se busca o que constitui a base, a unidade da diversidade. No estágio da reprodução
mental do concreto, o círculo em certo modo se encerra no ponto de partida, porém
sobre uma nova base: a diversidade se nos apresenta já não como um conjunto caótico
de aspectos e relações, mas como unidade ‘organizada’, subordinada a determinadas
leis. O concreto, mentalmente reproduzido aparece já, não em forma de soma de
diversos dados, observações, fatos, proposições separadas, etc., mas como saber sobre
fenômenos iluminados por uma única ideia (ILIENKOV, 2006, p. 160, grifo do autor).
Nessa perspectiva, conforme Davýdov (1982, p. 331), inicialmente, o real
concreto “surge para o homem como o sensorialmente dado. Em suas formas especiais de
contemplação e representação, a atividade sensória é capaz de perceber a integridade do objeto
e a existência nele das conexões que conduzem para a generalidade”. Assim, o concreto ponto
de partida e ponto de chegada tem significados diferentes, embora o ponto de chegada seja o
ponto de partida (conhecimento dos alunos), porém em âmbito teórico. Esse movimento é
mediado pela abstração, constituída, na presente pesquisa, pela unidade de análise.
1.2.1 O campo de pesquisa: a singularidade pesquisada
O ponto de partida da investigação foi a observação de uma singularidade. Portanto,
a fim de situar o leitor quanto ao contexto investigativo, apresentaremos a escola em que foi
realizada a coleta de dados.
26
A opção pela escola pesquisada foi motivada pela proximidade geográfica e de
formação, como estudante da educação básica e, posteriormente, enquanto estagiária do curso
de Pedagogia. É uma escola da rede estadual de Santa Catarina, localizada no município de
Tubarão, sul do Estado.
No ano de 2014, mais de setenta pessoas trabalhavam na escola, entre
administradores, professores e zeladores. A escola conta com dezoito salas de aula, dez salas
de ambientes (biblioteca, sala de vídeo...) e três quadras para a realização de esportes. É
considerada referência entre as escolas públicas da região quanto à sua infraestrutura e trabalhos
realizados.6 As aulas acontecem nos três períodos e a escola atende estudantes do Ensino
Fundamental ao Médio, com aproximadamente 1,1 mil alunos matriculados no ano de 2014. É
a segunda maior escola estadual do município em número de matrícula.
O bairro onde a escola está localizada é residencial, constituído, em grande parte,
por casas, com poucos edifícios. Embora residencial, existem algumas fábricas com um número
significativo de funcionários, muitos deles pais de estudantes matriculados na escola. Não há
parques, praças ou outros locais de convívio social e lazer, somente associações da iniciativa
privada.
A turma escolhida para participar desta pesquisa foi o 3º ano do Ensino
Fundamental I matutino. Como já mencionado, optamos por esta turma em função do atual
plano de governo “Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa” (BRASIL, 2012b)
enfatizar o 3º ano do Ensino Fundamental como uma importante etapa do processo de
alfabetização dos estudantes. Essa opção foi concretizada graças à disponibilidade da
professora Lúcia7 em abrir as portas da sua sala de aula para a realização da pesquisa, apesar da
nossa longa permanência naquele local.
A professora Lúcia tem vinte e dois anos de magistério e é contratada pelo governo
estadual como ACT. Faltam apenas dois anos para se aposentar. Sempre trabalhou com turmas
de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. Ela está na escola há três anos consecutivos, mas já
havia trabalhado lá em outros anos. Durante a nossa permanência em sala, ela procurava auxiliar
no que fosse necessário para o bom andamento da pesquisa, sobretudo em relação a horários
para a realização das avaliações, para que pudéssemos conversar com os estudantes após as
mesmas.
Os estudantes da turma, com idade entre oito a dez anos, foram receptivos e se
referiam a nós como “a estagiária das aulas de Matemática”, pois, para eles, uma pessoa “de
6 Segundo reportagem de jornal local (Jornal Notisul, 23/05/2014). 7 A fim de proteger a identidade da professora e dos estudantes os nomes serão fictícios.
27
fora” que ia assistir às aulas era porque “estava aprendendo a ser professora”. Aos poucos, após
muitos questionamentos sobre a pesquisa, compreenderam o motivo da nossa presença em sua
sala de aula e passaram a colaborar de modo mais significativo. Procuravam explicar em
detalhes o seu raciocínio. Dos vinte e um estudantes, três deles estavam, ainda, em fase de
alfabetização e dois deles haviam repetido o ano.
Aproximadamente8 cinco estudantes participavam do Programa Estadual de Novas
Oportunidades de Aprendizagem (PENOA), que tem por objetivo apoiar estudantes que
apresentam dificuldades de aprendizagem. Os encontros ocorriam no contraturno das aulas
regulares.
A maioria dos estudantes era assídua, realizava diariamente os exercícios
intitulados de “Para Casa”, muitos deles sem a ajuda de adultos. Quando questionados se
estudavam em casa para as avaliações, eles afirmavam que estudavam pouco, com a
justificativa de que já sabiam o conteúdo.
A professora Lúcia não adotava um livro didático de Matemática. Assim, os
exercícios eram realizados no caderno, a maioria copiada do quadro e algumas fotocópias,
especialmente quando o tema da aula era novo, como, por exemplo, quando iniciou o conceito
de multiplicação, a apresentação de gráficos como fonte de informações, entre outros temas.
Para elaborar seus exercícios tinha como base diversos livros didáticos, aos quais não nos foi
possibilitado acesso.
1.2.2 Procedimentos metodológicos utilizados durante a pesquisa de campo
Uma pesquisa requer um longo processo desde a formulação do problema, a coleta
de dados, leituras e reflexões inerentes ao processo de análise. Algumas ações são
desenvolvidas conforme planejamos inicialmente, mas há momentos em que somos
surpreendidos por imprevistos provocados pelo contexto de coleta de dados que nos fazem
repensar desde o foco da pesquisa às ações a serem realizadas.
Além disso, como lembra Duarte (2002, p. 86), realizar uma pesquisa é, de alguma
forma, “um relato de longa viagem empreendida por um sujeito cujo olhar vasculha lugares
muitas vezes já visitados”. As palavras do autor colaboram neste momento de reflexão sobre os
procedimentos utilizados durante a ida a campo, pois esta “viagem” foi a um lugar por nós
muito visitado: a sala de aula, porém vista com um novo olhar, o olhar de pesquisadora, de
8 Apesar da longa permanência em sala, utilizamos uma estimativa de estudantes que participavam do programa,
pois não havia uma regularidade de presença dos estudantes e não acompanhamos esses momentos.
28
quem está ali para conhecer e apropriar-se de uma realidade vivida por outras pessoas, com
suas histórias e singularidades.
Duarte (2002, p. 140) afirma ainda que a pesquisa tem sempre “um modo diferente
de olhar e pensar determinada realidade a partir de uma experiência e de uma apropriação do
conhecimento que são, aí sim, bastante pessoais”. Nessa direção, constituir-se como
pesquisadora significa uma tentativa de compreender a realidade investigada, na especificidade
da pesquisa ora relatada, a partir do que vivenciamos em sala de aula e, também, das leituras
realizadas. Estas constituíram um alicerce profícuo para que pudéssemos esboçar algumas
reflexões com vistas à elaboração de um projeto de transformação desta realidade.
Ao pesquisarmos, em uma abordagem dialética, entendemos que o objeto de estudo
não é algo pronto e acabado que está à espera do pesquisador para que este “colete dados e
analise-os”. Quando entramos em contato com a escola, contexto do estudo, pretendíamos
pesquisar como as crianças pensam a Matemática e como a organização do ensino desta
disciplina influencia na operacionalização dos conceitos por parte dos estudantes.
Os primeiros dias de observação em sala foram essenciais para que pudéssemos
conquistar a confiança e abertura dos estudantes e desenvolvêssemos uma postura investigativa,
diferente da docência, até então desempenhada. Procurávamos observar tudo o que ocorria,
interpretar as falas daqueles estudantes que foram receptivos e, até mesmo, os olhares daqueles
que estranharam a nossa presença. Estes, acostumados com a presença das estagiárias em sala,
nos perguntavam quando iríamos “dar aula”.
Apesar de estarmos com o projeto de pesquisa bem delimitado, o contexto da
pesquisa nos trouxe inúmeras possibilidades de investigação. A organização do ensino nos
provocou muitos questionamentos sobre os rumos da pesquisa para que os objetivos fossem
alcançados. Neste momento, muitas idas e vindas foram necessárias. As conversas com a
orientadora e com o grupo de orientandas9 foram essenciais para que não perdêssemos de vista
o foco da pesquisa.
Ao focarmos no conhecimento matemático dos estudantes, consideramos, com base
em Davýdov (1982), que este é composto por abstrações, generalizações e conceitos. Assim,
investigamos o conhecimento matemático dos estudantes no contexto em que este é
predominantemente formado no processo de ensino e aprendizagem da Matemática a partir do
conceito de multiplicação. Embora o foco incida no conceito de multiplicação, na primeira
etapa de apreensão dos dados registramos todas as ações, tarefas, exercícios, jogos e outros
9 Bia, Gi e Sandra.
29
aspectos ocorridos durante o semestre, referentes aos diferentes conceitos abordados. Para a
coleta de dados utilizamos o registro escrito (diário de campo), fotográfico e, em momentos em
que se fez necessária, a gravação de áudio e vídeo.
Ainda durante a elaboração do projeto de pesquisa, alguns questionamentos nos
faziam pensar sobre esta etapa de apreensão dos dados: como compreender o conhecimento
matemático dos estudantes? Como captar os dados que não estão prontos à espera do
pesquisador?
Quando nos propusemos a pesquisar o conhecimento matemático dos estudantes,
outro aspecto também nos intrigava: o pensamento. O que as crianças de oito ou nove pensam
sobre a Matemática? E, junto a isso, quais conceitos elas elaboram a partir das aulas realizadas
por sua professora? Vale esclarecer que não é nossa pretensão criar uma “solução mágica” que
acabe com os problemas inerentes ao processo de ensino e aprendizagem de Matemática no
país. Mas apontar indícios que nos façam refletir sobre possibilidades de superação.
Na busca por encontrarmos respostas para as perguntas anteriores, durante o
período de coleta de dados nos deparamos com um registro escrito considerado como
fundamental no sistema de ensino adotado no Brasil: a avaliação/prova. Este momento
constituiu-se na segunda etapa de coleta de dados. Registramos, por meio de fotocópias, as
avaliações propostas pela professora regente com as respostas desenvolvidas pelos estudantes
e os rascunhos utilizados por eles durante a resolução. De acordo com Moraes (2008),
[...] a atividade humana é intencional e consciente, seja na consciência em si ou na
consciência para si, significa que ambas são determinadas histórica e socialmente. Na
relação entre a intenção e objetivação, sempre estará presente a avaliação com o
objetivo de verificar se os caminhos escolhidos levam à objetivação desejada ou
necessária (MORAES, 2008, p. 23).
Não pretendemos aprofundar tal discussão, todavia cabe salientar que nossa
compreensão de avaliação está fundamentada na perspectiva da referida autora. Nesse sentido,
Moraes (2008) afirma que:
A avaliação escolar tem como questão de fundo o ideal de homem que deseja
formar, qual o papel da escola na formação dos indivíduos. Desse modo, as
práticas avaliativas da aprendizagem escolar não podem ser compreendidas por si
mesmas, mas estão inseridas num contexto maior (MORAES, 2008, p. 26, grifos da
autora).
Assim, a avaliação tem seu papel no processo de ensino e aprendizagem. No âmbito
desta investigação ela será vista, também, como uma manifestação do pensamento, já que na
30
avaliação o estudante encontra-se sozinho com seus próprios pensamentos. Com isso, alguns
conhecimentos referentes aos conceitos matemáticos, estarão ali materializados e foram
considerados como fonte documental.
Para Vygotski (2001, p. 313):
[...] a linguagem escrita requer para o seu transcurso pelo menos um alto grau de
abstração. Trata-se de uma linguagem sem o seu aspecto musical, entonacional,
expresso, em suma, sonoro. É uma linguagem do pensamento, de representação, mas
uma linguagem desprovida do traço mais substancial da fala – o som material.
Conforme Vygotski (2001), a escrita é a expressão do pensamento, porém ela
necessita de um grau de abstração alto para que a criança consiga expressar aquilo que pensou.
Por isso, a terceira etapa da coleta de dados foi uma conversa com cada estudante, após a
realização das provas, para compreendermos, minuciosamente, o conhecimento adotado.
Ao pesquisar em uma abordagem dialética, entendemos que as etapas descritas não
necessitam de uma lógica linear. Durante a pesquisa, idas e vindas foram necessárias, pois o
movimento de investigação é um processo dinâmico que envolve dados em interação constante.
Assim, pois, trata-se de investigar a especificidade do conhecimento de cada
estudante, porém, não isoladamente, mas no seu contexto de origem e inter-relações: o processo
de ensino e aprendizagem. Não é nossa pretensão “enquadrar” cada um deles em padrões
socialmente estabelecidos. Os dados coletados são considerados “apenas” para fomentar as
reflexões científicas, sem julgamentos do professor ou dos estudantes.
1.2.3 Procedimentos de organização e análise dos dados
Ao finalizar a etapa de apreensão dos dados, deparamos-nos com uma grande
quantidade de registros que nos inquietaram quanto ao modo de organizá-los: como superar a
descrição dos dados? Como explicar aquilo que detectamos em sala de aula sobre o objeto de
investigação? Que contribuições a pesquisa terá efetivamente para os estudos sobre a Teoria
Histórico-Cultural? Quais reflexões serão produzidas por esta investigação?
Tínhamos grande quantidade de registros escritos e fotográficos, entretanto a maior
parte dos dados estava em arquivos de áudio e vídeo. Portanto, nossa primeira ação foi
descrever os dados para que pudéssemos ter ideia de tudo que havíamos coletado a partir da
pesquisa de campo.
Em um segundo momento, sentimos necessidade de organizá-los por conceitos, já
que durante o semestre registramos momentos de exercícios sobre sistema de numeração,
31
sistema monetário, multiplicação, divisão, entre outros, na sequência em que ocorriam. Esta
etapa foi importante para reunirmos cenas que estavam distantes, se considerarmos a linha
cronológica dos registros durante a coleta, mas, ao mesmo tempo, próximas em relação à sua
natureza. Eis o movimento de constituição da unidade de análise e episódios.
A descrição, construída a partir dos dados que constituem a essência do fenômeno
investigado, consistiu apenas em uma etapa da organização dos dados. Mas, em concernência
com o método, precisávamos superá-la por meio da explicação. Neste momento, surgiram
alguns questionamentos vivenciados, também, por outros pesquisadores, tais como: “Quais são
as abstrações necessárias para que se ascenda do concreto caótico para o concreto pensado? [...]
Que unidade de análise é essa que não se deixa decompor e contém as propriedades do processo
[...]” como um todo? (ASBAHR, 2011, p. 117). Em outras palavras, na especificidade deste
estudo, que unidade de análise é essa que possui todas as propriedades da natureza do
conhecimento matemático dos estudantes pesquisados e que nos permite compreendê-lo? Para
Davídov (1988), essa abstração deve abranger a conexão historicamente simples, contraditória
e essencial do concreto.
Ao considerarmos o isolado, a natureza do conhecimento dos estudantes do 3º ano
do Ensino Fundamental, não podemos decompor a relação entre a lógica adotada e o processo
de ensino e aprendizagem do conceito de multiplicação. Por isso, a elegemos como unidade
de análise, como um isolado no interior de um isolado mais amplo, que é a natureza do
conhecimento dos estudantes. Recorremos aos conceitos de isolado e unidade de análise para
explicar a realidade investigada em um contexto específico, mas determinada pela totalidade
de relações que a constitui. A determinação da unidade de análise deve-se ao fato de que,
segundo Rigon et al. (2010, p. 65):
A relação entre o processo de apropriação da cultura e o desenvolvimento humano
objetiva-se por meio da aprendizagem em geral, ou ainda nas relações sistematizadas
pelo processo educacional, que tem a função de criar condições para que os estudantes
apropriem-se dos conhecimentos científicos e teóricos elaborados ao longo da história
das ciências.
Assim, a determinação da unidade de análise e isolados constitui-se em um primeiro
passo para a análise da realidade investigada e possibilita-nos refletir sobre o modo de
organização do processo de ensino e aprendizagem de Matemática, com ênfase no conceito de
multiplicação, de modo a compreender como ocorre a apropriação do conhecimento destes
estudantes, quais abstrações e generalizações são realizadas, que tipo de pensamento é
desenvolvido, uma vez que, como afirmam Rosa, Moraes e Cedro (2010a, p. 67), “o tipo de
32
pensamento que a organização do ensino permite ao estudante desenvolver é um dos fatores
reveladores de como o conhecimento é apropriado dentro do ambiente escolar”.
Além da unidade de análise central/isolado, foram necessárias abstrações
auxiliares para a compreensão do objeto de estudo. Vygotski (1999) aponta a necessidade de
abstrações auxiliares na construção de sua Psicologia e enfatiza que o próprio Marx utilizou
categorias mais simples para a compreensão de O Capital. Quais seriam os conceitos, as
abstrações necessárias para explicar a natureza do conhecimento matemático dos estudantes?
Na concepção de Longarezi e Franco (2013), o desenvolvimento do pensamento é
resultado da atividade social humana e da apropriação da cultura. Assim, a lógica adotada no
processo de ensino e aprendizagem de Matemática resulta/influencia, fundamentalmente, no
tipo de generalização e abstração produzido pelos estudantes. Portanto, estas são nossas
abstrações auxiliares e se encontram em movimento constante com a unidade de
análise/isolado, como mostra a figura a seguir:
Ilustração 1 - Interdependência entre unidade de análise/isolado e abstrações auxiliares
Fonte: Elaborado pela autora, 2015.
Após a delimitação dos unidade de análise/isolado e abstrações auxiliares, foi
necessário voltar aos dados coletados com um novo olhar, no qual o objetivo consistiu em
buscar interconexões entre cenas registradas durante o período de permanência em campo.
Logo, neste contexto, iniciamos a constituição dos episódios, conceito abordado anteriormente.
33
Os episódios constituem-se como a estruturação e explicitação dos isolados e unidade de análise
delimitada (SILVA; CEDRO, 2015).
No primeiro episódio, tínhamos como objetivo analisar o movimento de formação
do conceito de multiplicação. O registro deste movimento foi possibilitado pela utilização de
um diário de campo. De acordo com Fiorentini e Lorenzato (2006, p. 118-119), “é nele que o
pesquisador registra observações de fenômenos, faz descrições de pessoas e cenários, descreve
episódios ou retrata diálogos”. Desse modo, para compor o primeiro episódio, o diário de campo
foi o instrumento utilizado para selecionar cenas reveladoras do fenômeno investigado.
O segundo episódio tinha por finalidade investigar as sínteses elaboradas pelos
estudantes sobre o conceito de multiplicação. Os instrumentos utilizados para a constituição das
cenas deste episódio foram as cópias das avaliações realizadas pelos estudantes e as conversas
que tivemos com os mesmos para compreender o modo de resolução dos exercícios.
A seguir, apresentamos um quadro de organização dos episódios e cenas:
Quadro 1 - Organização dos episódios e cenas
Unidade de análise
Episódios
Cenas
Episódio 1 – O
movimento de formação
do conhecimento
referente ao conceito de
multiplicação.
Cena 1 – A imagem dada
diretamente aos órgãos do
sentido: o ponto de
partida.
Cena 2 – A síntese: uma
abstração a partir dos
traços substanciais.
Cena 3 – A tabuada: um
modo de generalização.
34
A relação entre a lógica
adotada e o processo de
ensino e aprendizagem do
conceito de multiplicação.
Episódio 2 – Um diálogo
sobre o conceito de
multiplicação.
Cena 1 – A ideia de
multiplicação como soma
de parcelas iguais
Cena 2 – Limites de uma
generalização realizada a
partir de uma abstração
singular.
Cena 3 – Os meios
utilizados para a
realização do cálculo.
Fonte: Elaborado pela autora, 2015.
No presente capítulo apresentamos o objeto, o contexto de pesquisa e o método
adotado. No capítulo a seguir, os fundamentos do Materialismo Dialético apresentados, serão
explicitados a partir do relato das reflexões produzidas sobre o concreto caótico (dados
coletados na pesquisa de campo), mediadas pelo abstrato (unidade de análise/isolado e
abstrações auxiliares) que possibilitaram ascender ao concreto pensado.
35
2 ANÁLISE DO VIVIDO: O QUE OS ESTUDANTES TÊM A DIZER SOBRE O
CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO?
As palavras e os conceitos são vivos, escapam escorregadios como
peixes entre as mãos do pensamento. E como peixes
movem-se ao longo do rio da História. Há quem pense que
pode pescar e congelar conceitos. Essa pessoa será quando
muito um colecionador de ideias mortas (MIA COUTO, em
Pensatempos).
Apresentaremos, neste capítulo, os dados de pesquisa organizados com base na
unidade de análise/isolado: a relação entre a lógica adotada e o processo de ensino e
aprendizagem do conceito de multiplicação e nas abstrações auxiliares referentes ao tipo de
generalização e abstração desenvolvidas pelos estudantes.
Vigotski (2000) diz que nem todo o processo de escolarização implica no
desenvolvimento psíquico do sujeito. Por isso, a delimitação dos isolados e unidade de análise,
pois estes possibilitam refletir e explicar, para além da aparência, o modo de organização do
processo de ensino e aprendizagem de Matemática.
O movimento que se faz neste capítulo busca reconstruir a realidade investigada, a
partir de um olhar sob a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, em um exercício de ascender
à sua concretude.
Na presente investigação, o questionamento que fundamenta a análise vai ao
encontro daqueles vivenciados por Davýdov, qual seja: como ocorre o movimento de
apropriação do conhecimento pelos estudantes? Para possibilitar as reflexões sobre a questão
norteadora, apresentamos, a seguir, os episódios que constituem o objeto de estudo.
2.1 EPISÓDIO 1: O MOVIMENTO DE FORMAÇÃO DO CONHECIMENTO REFERENTE
AO CONCEITO DE MULTIPLICAÇÃO
A questão norteadora do processo de análise do presente episódio consiste em: qual
a natureza das generalizações e abstrações produzidas pelos estudantes, a partir das aulas de
Matemática, referentes ao conceito de multiplicação? Para tanto, apresentamos três cenas que
se constituíram em momentos vivenciados em sala de aula, em que os estudantes são colocados
diante de situações que nos possibilitam a reflexão sobre a formação do conhecimento
36
relacionado à multiplicação. Iniciamos com a primeira, na qual as representações objetais
através das imagens aparecem como ponto de partida para a aprendizagem do conceito de
multiplicação.
Cena 1 – A imagem dada diretamente aos órgãos do sentido: o ponto de partida
Ilustração 2 - Exercício proposto pela professora e resolvido por Maria
Fonte: Acervo da autora, 2014.
O exercício (Ilustração 2) consiste na identificação do número total de flores nos
vasos. Quantas são as flores em cada vaso? Quantos são os vasos? No total, são quantas flores?
Trata-se da observação, na situação dada, das características comuns: a síntese a ser elaborada
é que, quando houver dois (2) agrupamentos compostos por três (3) unidades cada, o total será
seis (6). Como 3 + 3 = 6, então 2 x 3 = 6. Por procedimento análogo resolve-se a segunda
situação (DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
Segundo Davýdov (1982), a generalização, no ensino tradicional, consiste na
descrição das características comuns, substanciais, que um objeto apresenta em meio a outros
objetos semelhantes. O processo ocorre com base na comparação das características singulares,
que são próprias de um objeto dado; as gerais são comuns a vários objetos (ROSENTAL, 1962).
Essa descrição leva os estudantes, por meio da percepção imediata das características externas,
atingirem a essência do objeto para a lógica formal.
Nesta perspectiva de formação do conhecimento, as características dos objetos ou
fenômenos são classificadas em dois grupos: o primeiro, das características essenciais e o
37
segundo constitui-se pelas acidentais, insubstanciais (LEFEBVRE, 1991). Assim, os vasos de
flores podem ser substituídos por árvores, balas, animais ou qualquer outro objeto, portanto,
fazem parte do grupo de atributos insubstanciais, acidentais. Isto porque, de acordo com
Davídov (1988) a separação de certa qualidade essencial, como comum, inclui sua separação
de outras qualidades.
No processo de ensino, a palavra do professor organiza a observação dos alunos,
precisando o objeto da observação, orienta a análise para diferenciar os aspectos
essenciais dos fenômenos daqueles que não são e, finalmente, a palavra-termo, sendo
associada aos traços distinguidos, comuns para toda uma série de fenômenos, se
converte em seu conceito generalizador (DAVÍDOV, 1988, p. 102-103).
No exercício em análise, o foco da observação não é a cor ou tamanho das flores e
vasos, pois estas são propriedades insubstanciais. Todavia, a quantidade que compõe cada
agrupamento é invariável, essencial. Pinto (1969, p. 177) afirma que “a lógica formal está
perfeitamente habilitada a dar conta dessa missão elementar” de identificar as características
externas dos objetos, próprias do pensamento empírico. No entanto, quando se trata de revelar
as relações internas, a lógica formal é insuficiente (BERNARDES, 2011). Além disso, no
exercício apresentado na ilustração 3, o professor propõe uma nova situação com características
substanciais e insubstanciais semelhantes àquele apresentado anteriormente (Ilustração 3):
Ilustração 3 - Adição de quantidades iguais
Fonte: Acervo da autora, 2014.
O exercício (Ilustração 3) consiste na mesma proposta apresentada no anterior.
Aqui se enfatiza a necessidade de comparação entre soma de parcelas iguais e sua relação com
a multiplicação (DIÁRIO DE CAMPO, 2014). Eis a objetivação do “princípio do caráter
38
visual” (direto ou intuitivo) no ensino, isto porque atende ao reflexo sensorial das características
externas dos objetos.
Segundo Davídov (1987, p. 148, tradução nossa), esse princípio “é externamente
simples, até banal, se, de fato, a prática de sua aplicação não fosse tão séria (e, para o
desenvolvimento mental, tão trágica), como é na realidade”. Para o referido autor, este princípio
desenvolve, exclusivamente, a formação, nas crianças, do pensamento empírico:
Como material de partida para todos os níveis de generalização servem os objetos e
fenômenos singulares, sensorialmente perceptíveis, do mundo que nos rodeia. No
processo docente, se ensina às crianças a maneira de observar consequentemente essa
diversidade sensorial concreta de objetos e fenômenos, assim como também a explicar
de forma oral os resultados das observações. De modo gradual as crianças adquirem
a faculdade, por uma parte, de efetuar a descrição oral dos objetos sobre a base de
impressões anteriores, apoiando-se nas representações visuais, auditivas e táteis
motoras; e por outra, seguindo a narração verbal e as indicações do mestre,
desenhando as adequadas representações ilustrativas dos objetos com os quais não
têm uma relação direta (DAVÝDOV, 1982, p. 22, tradução nossa).
Cabe salientar, além disso, que exercícios como estes possibilitam ao estudante
operar somente com aquilo que memorizou na esfera singular. Os exercícios que precederam a
estes possuem a mesma generalização empírica, qualquer situação diferente não é possível de
ser resolvida. Ainda para Davýdov (1982, p. 155, grifo no original – tradução nossa):
[...] os escolares – especialmente os primários – resolvem com inteiro acerto somente
problemas do tipo que eles conhecem e cuja identificação prévia é a premissa
fundamental para reproduzir o método resolutivo concreto que antes assimilaram.
Com toda a complexidade deste trabalho já que por si, ela não passa dos marcos do
pensamento classificante e empírico.
A essência, no ensino tradicional, incide nas propriedades comuns, similares, as
quais fundamentam o pensamento empírico (DAVÝDOV, 1982). Assim, a característica dos
exercícios anteriormente analisados (Ilustrações 2 e 3) leva os estudantes a atingirem a seguinte
essência: 2 + 2 + 2 + 2 = 8 e que, consequentemente, 4 x 2 = 8. Não importam os objetos,
sempre que houver quatro grupos compostos por duas unidades cada, o procedimento de cálculo
e o resultado será esse. Essa síntese é generalizada para agrupamentos compostos por outras
quantidades que se repetem, ou seja, a essência (quantidade) continua a mesma em todos os
exercícios. Na concepção de Hobold (2014),
[...] em cada situação conclui-se, por meio da comparação, que a adição de parcelas
iguais pode ser representada por meio de outra operação: a multiplicação. O domínio
desses procedimentos é um caso particular do processo de generalização, cujo
resultado é o conceito de multiplicação (HOBOLD, 2014, p. 43).
39
O problema é que essências como essas, “[...] tomadas em seu melhor sentido (em
compreensão), são essências fixas, coaguladas, e cada ‘essência’ aparece ao exame como uma
coleção de qualidades justapostas, exteriores, numa ordem de generalidade crescente”
(LEFEBVRE, 1991, p. 142-143, grifo do autor). Nesse sentido, o processo de abstração é um
componente da generalização, “já que busca o desenvolvimento da capacidade de abstração do
sujeito tendo como base certos atributos particulares invariantes do objeto ou fenômeno”
(ROSA; MORAES; CEDRO, 2010a, p. 69-70).
Os exercícios em análise nessa primeira cena, correspondentes à introdução do
conceito de multiplicação no processo de ensino aprendizagem, acenam para a formação do
conhecimento empírico, predominante na educação escolar brasileira (ROSA, 2012). Em outras
palavras, aproximam-se do modo pelo qual a lógica formal propõe a tríade abstração,
generalização e conceito.
Cena 2 – A síntese: uma abstração a partir dos traços substanciais
Após a realização de exercícios semelhantes aos destacados na cena 1, os estudantes
são apresentados à síntese do conceito de multiplicação:
Ilustração 4 - Conceito de multiplicação
Fonte: Acervo da autora, 2014.
Neste momento, o foco continua na soma de parcelas iguais. A síntese anterior
(Ilustração 4) é apresentada por meio de uma cópia que os estudantes colam em seus cadernos
(DIÁRIO DE CAMPO, 2014). Desse modo, o conceito se expressa por palavras que “se
40
abstra[em] de regras e atributos individuais, de diversas percepções e representações, é,
portanto, o resultado de uma síntese de percepções e representações de fenômenos e objetos
homogêneos” (NIKITIN; RYPASOV, 1963 apud DAVÝDOV, 1982, p. 25, tradução nossa).
Trata-se, na verdade, de um pseudoconceito revelado por Vygotski (2001) ao
analisar o processo de internalização de conceitos com base no estudo experimental sobre as
fases de desenvolvimento do pensamento. Para o autor, esse processo ocorre em três principais
fases: pensamento sincrético, pensamento por complexo e conceitos propriamente ditos.
Ao tomar para a análise o conceito apresentado aos estudantes sobre multiplicação,
nosso foco ficará na fase do pensamento por complexo. Nesta fase, Vygotski (2001) afirma que
as estruturas de generalização da criança “[...] recorda[m] em sua aparência externa aos
conceitos utilizados pelo adulto em sua atividade intelectual, a essência da sua natureza
psicológica é muito diferente do verdadeiro conceito (VYGOTSKI, 2001, p. 146, tradução
nossa). Por isso, pseudoconceito, que “apoiando-se nas observações, refletem nas
representações as propriedades externas dos objetos” (DAVÍDOV, 1988, p. 154, tradução
nossa). Segundo Vygotski (2001),
[...] o pseudoconceito se parece tanto a um verdadeiro conceito, como a baleia a um
peixe. Porém, se recorremos à ‘origem das espécies’ das formas intelectuais e animais,
não duvidamos em incluir o pseudoconceito no pensamento por complexo, como
incluímos a baleia entre os mamíferos (VYGOTSKI, 2001, p. 149, grifo do autor).
Os pseudoconceitos constituem-se como uma fase no processo de formação de
conceitos. Posteriormente, deverão ser superados pelos conceitos propriamente ditos, não
necessariamente numa sequência linear (VYGOTSKI, 2001). O desenvolvimento de conceitos
verdadeiros envolve a análise, a síntese e a abstração, “[...] quando uma série de atributos que
têm sido abstraídos se sintetizam de novo e quando a síntese abstrata conseguida desse modo
se converte na forma fundamental do pensamento, através do qual a criança percebe e atribui
sentido a realidade que lhe rodeia” (VYGOTSKI, 2001, p. 169).
Essa ascensão aos conceitos propriamente ditos, os científicos, só é possível por
meio da abstração e generalização substanciais, enquanto os empíricos são formados de acordo
com os fundamentos da lógica formal, a partir de generalizações e abstrações empíricas. Nessa
ótica, primeiramente, há necessidade de selecionar vários objetos os quais possuem
características comuns substanciais. Em seguida, é preciso nomear essas características
agrupadas em uma classe. E, por fim, o próximo passo é o significado não estar estritamente
relacionado com a presença imediata dos objetos, mas com uma imagem geral dos mesmos
41
(DAVÝDOV, 1982). Ou seja, a imagem, no plano mental lembra aquela do plano objetal no
que esta tem de substancial. Os traços insubstanciais são abstraídos. Isso porque:
[...] fora do homem e de seu pensamento existem objetos singulares concretos, e estes
se oferecem em toda individualidade e concretização para os órgãos dos sentidos do
homem. Todo objeto existe no tempo e no espaço, possui corporeidade, forma e
demais atributos. E na infinita pluralidade de suas manifestações individuais, cada
objeto dado por ser análogo em algo a outros objetos, mas estas circunstâncias de fato
não acrescentam nada para sua existência efetiva nem tampouco a diminui em nada.
Certos, segundo essa propriedade de analogia, objetos soltos – após comparação –
podem unir-se em classes (DAVÝDOV, 1982, p. 57 – grifos do autor, tradução nossa).
Desse modo, ao comparar objetos soltos e estabelecer características análogas,
podemos agrupá-los em classes, ao considerarmos características comuns. É o que
apresentaremos a seguir, na cena referente às tabelas de multiplicação (Tabuada).
Cena 3 – A tabuada: um modo de generalização
A identificação de características comuns entre objetos e o agrupamento das
mesmas em classes é um procedimento fundamentado na lógica formal, para obtenção de
conhecimento, conforme expressam as tabelas de multiplicação (Ilustração 5).
Ilustração 5 - Tabelas de multiplicação
Fonte: Acervo da autora, 2014.
42
Na ilustração (5) há uma variedade de multiplicações na qual a essência continua a
mesma: soma de parcelas iguais. Assim, podem-se destacar algumas características comuns por
meio da análise da composição externamente dada: soma de parcelas iguais; o multiplicando é
um valor invariável em cada tabuada; o multiplicando indica a quantidade de vezes que o
multiplicador se repete (DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
Estas características comuns constituem, segundo Davýdov (1982), o conteúdo do
conceito, na lógica formal, denominado por uma palavra ou conjunto de palavras, como, por
exemplo, tabelas de multiplicação ou tabuada. Nesse sentido, o “conteúdo do conceito é o
conjunto de características substanciais dos diversos objetos homogêneos representados no
mesmo” (DAVÝDOV, 1982, p. 49, tradução nossa). Hobold (2014, p. 67) explica que:
O atributo pertencente a um objeto isolado não é por si, nem geral nem particular. Este
ato (de atribuir característica) só é viável no plano mental, em seu conceito. Neste
caso, as tabelas de multiplicação só podem ser associadas à classe de sucessão
numérica no plano conceitual, pois carecem de relação interna.
Nessa segunda cena a generalização também consiste no ato de destacar alguns
atributos estáveis (soma de parcelas iguais) que se repetem. Assim, “no processo de
generalização tem lugar, por uma parte, a busca e designação com a palavra de certo invariante
na multiplicidade de objetos e suas propriedades; por outra, o reconhecimento dos objetos da
multiplicidade dada com a ajuda do invariante separado” (DAVÍDOV, 1988, p. 100).
No processo de ensino e aprendizagem investigado, há uma preocupação com a
memorização da tabuada. Mas, mesmo após a apresentação da tabela de multiplicar, são
desenvolvidos exercícios que envolvem a representação direta das quantidades, sempre
referentes a grandezas discretas. Tal como podemos verificar no exercício (Ilustração 6) sobre
“dobro, triplo, quádruplo e quíntuplo” (DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
43
Ilustração 6 - Dobro, triplo, quádruplo e quíntuplo
Fonte: Acervo da autora, 2014.
O pensamento por imagens diretamente dadas é o foco de vários exercícios. Hobold
(2014) também evidenciou esse aspecto ao analisar a proposição da coleção de livros didáticos
mais utilizados na 36ª Gerência Regional de Educação10 (GERED) para o ensino do conceito
de multiplicação. A escola, contexto da pesquisa em tela, não pertence à região dessa GERED,
porém os resultados da investigação de Hobold (2014) são semelhantes aos detectados na
presente investigação até o momento.
Em seus estudos sobre a educação tradicional, Davýdov (1982) aborda essa questão
e lembra que o ensino, com base na lógica formal, é organizado em consonância com a faixa
etária do estudante.
Dessa forma, em cada etapa de ensino, há que se seguir o desenvolvimento
correspondente à respectiva faixa etária dos estudantes. Por exemplo, na Educação Infantil e
Anos Iniciais, uma destas características é o uso de imagens, das representações diretas do
objeto. Trata-se do princípio da acessibilidade (DAVVÍDOV, 1982). Segundo este princípio,
em cada etapa do ensino, propomos aos estudantes aquilo que são capazes de assimilar de
acordo com sua idade “[...] a medida dessa capacidade se formou espontaneamente na prática
10 A referida GERED tem sua sede no município de Braço do Norte, sul de Santa Catarina.
44
real do ensino tradicional” (DAVÍDOV, 1987, p. 146, tradução nossa). As capacidades da
criança são subestimadas, pois quem pode determinar o que ela pode ou não aprender?
[...] o ensino utiliza unicamente as possibilidades já formadas e presentes na criança,
em cada caso se pode, então, limitar tanto o conteúdo do ensino como as exigências
apresentadas à criança a este nível real ― presente sem responsabilizar-se por suas
premissas. Naturalmente, assim se pode justificar a limitação e a pobreza do ensino
primário, apelando a características evolutivas da criança de sete anos, por exemplo,
o pensamento por imagens que se apoia em representações elementares (DAVÍDOV,
1987, p. 147, tradução nossa).
É com base nesse princípio de acessibilidade que o ensino, na perspectiva da
pedagogia tradicional, justifica que o conhecimento deve partir das experiências empíricas
vivenciadas pelos estudantes. Para que isso ocorra, são possibilitados dados perceptíveis aos
órgãos dos sentidos. Nesse processo, cabe ao estudante observar e extrair os indícios comuns
existentes e, consequentemente, formular o conceito do objeto. Nas palavras de Davýdov
(1982) observamos que a percepção direta “das imagens [...] facilita o processo de formulação
dos conceitos abstratos [...]” (DAVÝDOV, 1982, p. 42, tradução nossa), porém empíricos.
Nesse nível dos conceitos abstratos, no processo de ensino e aprendizagem
investigado, os estudantes receberam uma cópia de tabelas de multiplicação intitulada, também,
de tabuadas. Essa cópia é colada no caderno para que pudessem consultá-la durante a resolução
das questões referentes ao conceito de multiplicação. Em seguida a professora propõe a
resolução do exercício apresentado na ilustração 7 (DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
Ilustração 7 - Para além do estágio de representação (resolvido por Antônia)
Fonte: Acervo da autora, 2014.
45
O exercício da ilustração (7) corrobora aquilo que Vietrov (1959) considera como
desarticulação do conceito com a imagem do objeto. Para esse autor, na lógica formal, “se não
somos capazes de fazer isso, nos encontramos no estágio da representação” (VIETROV, 1959
apud DAVÝDOV, 1982, p. 64, tradução nossa). Com esse método de formação de conceitos,
os estudantes superam a experiência sensorial e estabelecem relações que não podem ser
evidenciadas diretamente pelos órgãos dos sentidos, o que poderíamos chamar de uma
abstração formal das propriedades comuns.
Assim, conforme refletimos até o momento, mesmo nos limites dos fundamentos
da lógica formal há um movimento de formação do conhecimento que apresentamos em síntese
a título de conclusão do presente episódio.
Ilustração 8 - O processo de elaboração do conhecimento na lógica formal
Fonte: Elaborado pela autora, 2015.
Até o presente momento analisamos o primeiro episódio que denominamos de O
movimento de formação do conhecimento referente ao conceito de multiplicação. Na sequência
apresentaremos as três cenas referentes ao segundo episódio.
46
2.2 EPISÓDIO 2: OLHOS NOS OLHOS – UM DIÁLOGO SOBRE MULTIPLICAÇÃO
A partir da análise do episódio anterior emergem alguns questionamentos: o que
pensam os estudantes sobre a multiplicação? Qual foi a aprendizagem? O que ficou? Como os
estudantes operam com o conceito de multiplicação? A fim de responder a esses
questionamentos, analisamos, no presente episódio, as respostas apresentadas pelos estudantes
para as questões referentes à multiplicação de duas avaliações propostas pela professora. Além
disso, também consideramos o diálogo, dos estudantes com a pesquisadora, sobre o raciocínio
por eles adotado. Para tanto, selecionamos as seguintes cenas: A ideia de multiplicação
enquanto soma de parcelas iguais; Limites de uma generalização a partir de uma abstração
singular; Os meios utilizados para a realização do cálculo.
Cena 1 – A ideia de multiplicação enquanto soma de parcelas iguais
Hoje os estudantes realizarão a primeira avaliação sobre o conceito de multiplicação.
Eles chegam à sala falando sobre a tabuada. Em seguida, Maria diz ao conversar com
algumas colegas: ‘– A pior coisa que tem é prova de Matemática’. A avaliação aborda
questões sobre o folclore brasileiro, tema das últimas aulas devido ao dia do folclore
(22 de agosto). A professora entrega a avaliação e faz a leitura, com os estudantes, das
questões propostas. Em sua explicação, relembra algumas considerações sobre a
multiplicação: ‘- Quando eu quero saber o dobro o que eu tenho que fazer? Eu vou
somar o valor duas vezes’. Em seguida, cada estudante realiza a avaliação em silêncio
(DIÁRIO DE CAMPO, 2014).
A epígrafe refere-se ao registro do dia em que foi realizada a primeira avaliação do
segundo semestre letivo. Após a avaliação conversamos com os estudantes individualmente
sobre as respostas para as três questões referentes ao conceito de multiplicação. Nos dois
primeiros exercícios, dos 16 estudantes, cerca de 80% chegaram à resposta correta e explicaram
de modo semelhante ao que diz Clara:
47
Ilustração 9 - Primeiras questões sobre multiplicação nas avaliações
Fonte: Acervo da autora, 2014.
Pesquisadora: - Você pode me explicar como chegou à resposta nesse exercício?
Clara: - Aqui era de dobro e triplo, porque já tava [sic] dizendo ali. Aí eu fiz 12 x 3
que é a mesma coisa que 12+ 12+ 12 e deu 36. Depois 8 x 2 que é a mesma coisa que
8 + 8 e deu 16. (Entrevista com Clara, agosto de 2014)
Já a terceira questão da avaliação, sobre o conceito de multiplicação, consistia em
realizar o cálculo e, posteriormente, informar o raciocínio adotado para chegar à resposta:
48
Ilustração 10 - Cálculo para chegar à resposta
Fonte: Acervo da autora, 2014.
Por considerarmos que as questões (Ilustrações 9 e 10) possuem a mesma essência:
soma de quantidades iguais, optamos por realizar a análise conjunta de ambas. Assim,
inicialmente, é preciso relacionar o que é considerado conteúdo nas aulas de Matemática
(multiplicação) com o de outras disciplinas e na vida, fora da escola, no caso específico dessas
questões, o folclore.
Para Davídov (1987), trata-se do princípio do “caráter sucessivo”, comum ao ensino
tradicional. A característica deste princípio é priorizar a relação entre os conceitos a serem
aprendidos, em situação escolar, com aquilo que a criança já conhece.
49
A depender do movimento de abstração e generalização, pode não apresentar
muitas vantagens, em função da “indistinção entre os conceitos científicos e os cotidianos, a
aproximação exagerada entre a atitude propriamente científica e a cotidiana diante das coisas”
(DAVÍDOV, 1987, p. 146, tradução nossa).
Cabe ressaltar, também, aquilo que considera-se como “articulação” do conceito,
isto porque Davídov (1988, p. 110, tradução nossa) afirma que
A psicologia pedagógica [...] recomenda aos professores utilizar a experiência
empírica cotidiana de familiarização dos estudantes com as coisas e fenômenos como
base para que apropriem-se dos conhecimentos escolares. Com isto, reconhece-se, de
fato, a homogeneidade tanto do conteúdo como do procedimento de apropriação dos
conhecimentos na infância pré-escolar e durante o ensino escolar [...].
Outro aspecto que pode ser destacado das ilustrações anteriores é a relação que os
estudantes efetuam da multiplicação como soma de parcelas iguais. Dos dezesseis (16)
estudantes que realizaram a avaliação, sete (7) deles afirmaram ter utilizado o cálculo “11 + 11
+ 11” para responder à questão proposta. Além destes, outros estudantes preferiram apagar o
“x” marcado nesta opção e marcar a opção “11 x 3”. Mas a essência da multiplicação que ficou
para os estudantes incide na soma de parcelas iguais que se repete na próxima cena. O
questionamento que fica é: e quando o valor do multiplicando for maior? Por exemplo, 1000 x
11?
Cena 2 – Limites de uma generalização realizada a partir de uma abstração singular
Na segunda avaliação realizada, uma das questões (Ilustração 11) consiste em
determinar a idade de Ana, sabendo que a mesma é o dobro da idade de Maria, que tem quatro
anos.
Ilustração 11 - Quantos anos tem Ana?
Fonte: Acervo da autora, 2014.
50
Na conversa realizada com os estudantes, individualmente, após a avaliação, a
essência das respostas é sempre a mesma, conforme as três apresentadas na sequência:
Pesquisadora: Você pode me explicar o porquê da resposta oito anos?
Maria: É porque aqui era o dobro, aí tinha que fazer a continha de dobro.
Pesquisadora: Mas como é essa conta de dobro?
Maria: É que tem que fazer vezes o 2, aí eu fiz e 4 mais 4 é oito. (Entrevista com
Maria, setembro de 2014)
Pesquisadora: Você pode me explicar como fez essa questão da idade das meninas?
Laura: Ah, essa é bem fácil, né [sic]! É que é de dobro, aí a tia disse que quando for
dobro é duas vezes o número. Aí quatro mais quatro é [sic] oito, né [sic]? (Entrevista
com Laura, setembro de 2014).
Pesquisadora: Por que você considerou que a resposta era oito anos?
Lucas: Porque duas vezes o quatro é oito, quatro mais quatro (Entrevista com Lucas,
setembro de 2014).
A fala dos estudantes confirma a generalização da abstração realizada a partir das
características substanciais externamente dadas. Isso porque na pedagogia tradicional, “[...]
primeiro, os estudantes apropriam-se formalmente do conceito como produto pronto e acabado,
depois desenvolvem ações mentais que permitem sua aplicação” em situações semelhantes
(PUENTES; LONGAREZI, 2013, p. 255).
Nesse sentido, Davýdov (1982, p. 15, tradução nossa) afirma que “com base em um
grande número de fatos adequadamente selecionados, nasce a ideia abstrata, generalizadora, de
um dos atributos que estão associados ao conceito”. É importante ressaltar que na especificidade
do objeto de estudo este atributo é a soma de parcelas iguais. Trata-se de uma generalização
sustentada na abstração de uma singularidade em detrimento da abstração realizada a partir da
relação geneticamente inicial, universal, do conceito teórico.
Mas a pergunta que ainda persiste é: como os estudantes operam com o conceito de
multiplicação? Para buscar respostas para esse questionamento selecionamos a última cena que
compõe este episódio, que será apresentada a seguir.
Cena 3 – Os meios utilizados para a realização do cálculo
Quando escolhemos esta cena para finalizar o capítulo de análise dos dados desta
investigação, pensamos na ideia essencial apresentada por Moura (2004) na constituição dos
episódios: o pesquisador, tal como o produtor de cinema, é que faz a leitura das várias ações à
procura de interdependências. Vale a ênfase, apesar de já termos apresentado tal ideia do
referido autor porque a leitura que fizemos desta última cena assemelha-se, em partes, ao
51
produtor de cinema ao narrar o final de um filme. Isto porque, diante do caminho percorrido
para explicar como os estudantes aprenderam o conceito de multiplicação, percebemos que a
síntese realizada pelos mesmos pode ser explicitada por meio das imagens e falas que
apresentaremos a seguir através das questões referentes ao conceito de multiplicação extraídas
da segunda avaliação:
Ilustração 12 - Quantas rodas podemos contar?
Fonte: Acervo da autora, 2014.
A questão (Ilustração 12) consiste na determinação da quantidade de rodas no pátio
da escola onde estavam estacionadas 25 bicicletas. Luísa não apresenta a sentença matemática
(S.M.) solicitada, apenas o algoritmo (25 x 5 =__) e a resposta não correspondente ao mesmo,
mas responde ao problema de forma correta. Quando questionada sobre o modo como chegou
a esta resposta explica:
Pesquisadora: Como você chegou a essa resposta [cinquenta rodas]?
Luísa: Aqui eu ia fazer a continha, mas eu não sabia vezes o que, tipo [sic] se era
cinco vezes o vinte e cinco, aí eu fiz no rascunho os palitinhos e contei 2, 4, 6, porque
cada bicicleta tem duas rodas. Aí eu fui contando e riscando os palitinhos (Entrevista
com Luísa, setembro de 2014).
Luísa também utilizou riscos (palitos) ou dedos na resolução das outras questões da
avaliação, assim como os demais colegas, conforme o rascunho utilizado por Luiz:
52
Ilustração 13 - Rascunho de Luís
Fonte: Acervo da autora, 2014.
Pesquisadora: - Como você resolveu a questão “23 x 3”?
Lucas: - É que eu contei três, mais três, mais três, mas aí eu não sabia fazer. Eu não
respondi porque eu não lembrava da tabuada do três (Entrevista com Lucas, agosto
de 2014).
Trata-se de riscos representativos de qualquer objeto (flores, rodas, presentes...).
Para realizar a operação Lucas utiliza riscos agrupados de três em três. Entretanto, em
determinado momento ele se dá conta de que a operação requer muitos agrupamentos (23) e
desiste. Inicia o cálculo do algoritmo, mas também desiste e entrega a avaliação sem concluir
o cálculo. Os rascunhos de outros estudantes evidenciam situações semelhantes, como é o caso
de Guilherme (Ilustração 14).
Ilustração 14 - Rascunho Guilherme
Fonte: Acervo da autora, 2014.
Alguns rascunhos contemplam a utilização dos riscos, outros estudantes preferiam
apagar antes de entregá-lo para a professora, mas ficaram as marcas e há, ainda, aqueles que
53
utilizam a mesa para registrá-los. Durante as conversas com a pesquisadora, para explicarem o
raciocínio adotado, estes mesmos estudantes, utilizavam os dedos em substituição aos riscos.
Desse modo, os dedos e os riscos representam os objetos apresentados nos enunciados dos
exercícios desenvolvidos em sala de aula ou nas questões da prova.
Em síntese, a elaboração do conhecimento segue o esquema percepção -
representação - conceito. A percepção refere-se aos objetos organizados, explicitamente,
consoante a situação singular. A representação, por sua vez, incide nas imagens abstraídas
decorrentes do processo de observação direta dos objetos. Assim, os riscos e os dedos são
representantes de flores, lápis, bolas... ou qualquer outro objeto mencionado no enunciado. Na
tentativa de explicar o que fizeram, os estudantes reproduzem a fala da professora ou aquilo
que está escrito nos exercícios realizados em sala de aula, ou seja, o emprego específico da
palavra. Por isso, a aprendizagem, no sentido vigotskiano (VIGOTSKI, 2000), não ocorre.
Como mencionamos no decorrer da análise, o ponto de partida da abstração
realizada pelos estudantes é a percepção direta sobre o objeto. Esse movimento contempla
apenas a aparência externa. Em sua obra, Davýdov critica a escola tradicional, na qual
predomina o método intuitivo, na dimensão empírica.
Segundo Davídov (1987), esse tipo de conhecimento,
[...] tem um caráter classificador, catalisador e assegura a orientação da pessoa no
sistema de conhecimentos já acumulados sobre as singularidades e os traços externos
de objetos e fenômenos isolados da natureza e da sociedade. Tal orientação é
indispensável para fazeres cotidianos, durante o cumprimento de ações laborais
rotineiras, porém é absolutamente insuficiente para assimilar o espírito autêntico da
ciência contemporânea e os princípios de uma relação criativa, ativa e de profundo
conteúdo em face da realidade (DAVÍDOV, 1987, p. 144, tradução nossa).
Esse conhecimento predomina não só no processo de ensino e aprendizagem
investigado. Trata-se de uma realidade nacional, tal como afirmam outros pesquisadores
brasileiros (HOBOLD, 2014; DAMAZIO; ROSA; EUZÉBIO, 2012).
Como anunciado no capítulo I da presente dissertação, seguimos os três princípios
investigativos vygotskianos: análise de processos e não de objetos; explicação e não apenas
descrição; estudo do problema do comportamento fossilizado.
Ao considerar o princípio referente à análise de processos e não objetos, Vygotsky
(1988, p. 81) elucida que “a análise psicológica quase sempre tratou os processos como objetos
estáveis e fixos”. Contudo, o autor ressalta que qualquer processo de desenvolvimento
psicológico sofre alterações a olhos vistos. Com isso, é preciso considerar o fenômeno em sua
historicidade e materialidade. Para tanto, consideramos o objeto de estudo (conhecimento
54
matemático referente ao conceito de multiplicação) no contexto em que esse se materializa: a
sala de aula. A pesquisa de campo ocorreu durante quatro meses do segundo semestre de 2014.
Desse modo, não nos detivemos à análise de objetos (exercícios e avaliações realizadas), mas,
sim, desses exercícios e avaliações em seu processo de constituição.
No decorrer da elaboração do presente capítulo, buscamos a explicar e não apenas
descrever os dados coletados. Vigotski (1995) compreende que estudar um problema em seu
desenvolvimento se dá desde a revelação de sua gênese e suas bases dinâmico-causais: “O tipo
de análise objetiva que defendemos procura mostrar a essência dos fenômenos psicológicos ao
invés de suas características perceptíveis” (VIGOTSKI, 1995, p. 72).
No esforço pela explicação do fenômeno surgiu a necessidade do estudo da lógica
que orienta a constituição do conhecimento no processo de ensino e aprendizagem investigado,
a lógica formal e suas relações de aproximações e/ou distanciamentos com a lógica dialética.
Quanto ao terceiro princípio, de acordo com Vigotski (1995), os comportamentos
fossilizados são aqueles que perderam sua aparência original, sua gênese, ao longo de seu
desenvolvimento:
[...] são as formas psicológicas petrificadas, fossilizadas, originadas em tempos
remotíssimos, nas etapas mais primitivas do desenvolvimento cultural do homem, que
se conservaram de maneira surpreendente, como vestígios históricos em estado pétreo
e ao mesmo tempo vivo na conduta do homem contemporâneo (VIGOTSKI, 1995, p.
63).
Como pesquisar determinado fenômeno no qual sua origem não está dada no
momento em que este ocorre, mas nas etapas primitivas do desenvolvimento cultural da
humanidade? Para responder a tal questionamento, recorremos a Vigotski (1995), quando se
refere à compreensão do processo de desenvolvimento psicológico:
Podem-se distinguir, dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas
qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto a sua origem: de
um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções
psicológicas superiores, de origem sócio-cultural. A história do comportamento da
criança nasce do entrelaçamento dessas duas linhas. A história do desenvolvimento
das funções psicológicas superiores seria impossível sem um estudo de sua pré-
história, de suas raízes biológicas, e de seu arranjo orgânico. As raízes do
desenvolvimento de duas formas fundamentais, culturais, de comportamento, surgem
durante a infância: o uso de instrumentos e a fala humana. Isso, por si só, coloca a
infância no centro da pré-história do desenvolvimento cultural (VIGOTSKI, 1995, p.
52).
Se a infância está no centro da pré-história do desenvolvimento cultural, o que está
no centro da pré-história da cultura matemática? Desse contexto emerge outro questionamento:
55
como resolveram os homens o problema da contagem? Se este for respondido, encontraremos,
consequentemente, a resposta para o questionamento anterior. Caraça (2002) lembra que:
[...] para pequenas coleções de objetos, é habitual contar-se pelos dedos, e este fato
teve grande influência no aparecimento dos números, não é verdade que o nome
dígito, que designa os números naturais de 1 a 9, vem do latim digitus que significa
dedo? Mas há mais: - a base do nosso sistema de numeração é 10, número de dedos
das duas mãos [...] alguns dizem duas mãos em vez de 10, um homem inteiro em vez
de 20 [...]. Noutros ainda nem existem nomes de números – quando se quer exprimir
uma quantidade, fazem-se gestos com as mãos (CARAÇA, 2002, p. 5, grifo do autor).
Posteriormente, mas ainda em tempos remotíssimos, os símbolos escritos eram
riscos que representavam o número correspondente aos dedos estendidos (EVES, 2007). A
orientação para a utilização dos dedos e de riscos, segundo Rosa (2012, p. 192), também aparece
nos livros didáticos brasileiros:
Para resolver a operação 2 + 3 = __, por exemplo, as crianças estendem dois dedos
em uma mão e três na outra, para saber o resultado contam o total de dedos estendidos:
1, 2, 3, 4, 5. Ou ainda fazem 2 riscos, mais 3 riscos e contam o total de riscos (5): ││
+ │││= │││││. O mesmo ocorre na operação inversa, a subtração. Em 5 – 3 = ___,
por exemplo, estende-se 5 dedos e baixa-se 3, o resultado é a quantidade de dedos que
ficou estendida. Ou ainda, por meio de riscos, faz-se 5 riscos e cortam-se 3, o número
de riscos sem cortes (2) corresponde ao resultado: ┼┼┼││(ROSA, 2012, p. 192).
Isso significa dizer, de acordo com a autora em referência, que tal proposição
possibilita a reprodução, no processo de ensino e aprendizagem, do “estágio inicial do
desenvolvimento do conceito de número pela humanidade em detrimento de seu estágio atual”,
tal como propõem os fundamentos da Teoria Histórico-Cultural (ROSA, 2012, p. 192).
A contagem por meio dos dedos é um procedimento fossilizado. Sua origem
histórica é obscurecida. É um comportamento petrificado, como diz Vigotski (1995), originado
em tempos remotos, mas vivo no homem contemporâneo. Em outras palavras, a origem da
contagem através dos dedos e riscos corresponde à pré-história do conhecimento matemático.
Objeto matemático reconhecido como, possivelmente, o mais antigo da
humanidade, datado aproximadamente de 35.000 anos a. C., sugere tentativas pré-históricas de
quantificação. Trata-se de um osso com alguns entalhes, conforme a ilustração 15:
56
Ilustração 15 - Riscos no processo de contagem dos povos primitivos
Fonte: MATEMÁTICA..., 2015.
Os estudantes contemporâneos, colaboradores da pesquisa, por sua vez, utilizam,
no lugar do osso a folha de papel e, no lugar da pedra para marcar o osso, o lápis, conforme
ilustração 16.
Ilustração 16 - Riscos utilizados como instrumento de cálculo
Fonte: Acervo da autora, 2014.
Portanto, o procedimento de contagem adotado pelos estudantes para determinar o
resultado das operações por meio de riscos tem sua origem há 37.000 anos.
Mas, é errado então contar nos dedos ou com auxílio dos riscos? A resposta depende
da teoria que a sustenta. De acordo com os Fundamentos da Teoria Histórico-Cultural, em
especial da proposição davydoviana, mencionada no capítulo introdutório da presente
dissertação, os estudantes devem ir à escola para aprender aquilo que não lhes é acessível em
casa, na rua e nas brincadeiras entre amigos. Desse modo, em situações extraescolares, no
período pré-escolar, as crianças aprendem a contar nos dedos ou com apoio de objetos.
Cabe ressaltar, portanto, que a contagem com dedos ou riscos consiste em uma
etapa importante na apropriação dos conceitos matemáticos, entretanto ela precisa ser superada
na idade escolar. Isto porque, “o pensamento teórico de qualquer época é um produto histórico
57
que em períodos distintos adquire formas diversas e assume, portanto, um conteúdo muito
diferente” (DAVÍDOV, 1988, p. 160).
Nesse sentido, o ensino escolar de acordo com a orientação davydoviana
(DAVÝDOV, 1982; DAVÍDOV, 1988), deve proporcionar às crianças conceitos genuinamente
científicos em nível contemporâneo, desenvolver o pensamento teórico e as capacidades para o
sucessivo domínio, independente do número sempre ascendente de novos conhecimentos
científicos em desenvolvimento pela ciência.
Entretanto, é possível que nos perguntem: Mas, o pensamento teórico será
desenvolvido, em sua totalidade, no terceiro ano escolar? Compreendemos, de acordo com
Davidov (1982) que a apropriação do conhecimento teórico estrutura a formação do
pensamento teórico.
Desse modo, se a organização do processo de ensino e aprendizagem reforça o
desenvolvimento do pensamento empírico, “tipo de pensamento pautado nos aspectos externos
e observáveis dos objetos e fenômenos e, como tal desenvolve-se independentemente da
escolarização do sujeito” (ROSA, MORAES, CEDRO, 2010, p. 80), não há indícios da
superação, por meio do conhecimento teórico, dos dados obtidos da atividade sensorial das
pessoas. Em outras palavras, no terceiro ano escolar, os estudantes permanecem nos limites da
formação do pensamento empírico.
Para a formação do pensamento teórico, fazem-se necessárias abstrações e
generalizações sustentadas nas relações internas, universais dos conceitos. Assim, as
representações dos mesmos são constituídas por modelos teóricos abstratos que em nada
lembram a aparência externa dos objetos, mas que lhes dá origem.
Este movimento proposto por Davýdov e colaboradores é que apresentaremos, no
contexto de uma situação desencadeadora de ensino tal como propõe Moura (2004), no próximo
capítulo.
58
3 ONDE ESTÁ A SAÍDA?
Onde está a saída? Na área da teoria é impossível. A verdadeira
solução deste problema requer mudar, substancialmente, a própria
prática sócio pedagógica da educação e ensino das gerações em
crescimento (DAVÍDOV, 1988, p. 61, tradução nossa).
No capítulo anterior apresentamos a análise dos dados, coletados em uma escola da
Rede Estadual do Munícipio de Tubarão. Ao finalizar esta análise, nos questionamos: Como
organizar o ensino com vistas a superação das fragilidades dos estudantes em relação a
apropriação do conceito de multiplicação? Qual a contribuição que a presente dissertação
poderia apresentar, enquanto relato de uma pesquisa científica, para o processo de ensino e
aprendizagem de conceitos matemáticos na contemporaneidade?
Na busca por respostas para tais questionamentos, o direcionamento tomado foi o
estudo dos princípios da lógica dialética. Nesse processo, nos deparamos com o questionamento
de Davídov (1988), apresentado como epígrafe deste capítulo: Onde está a saída?
A saída, segundo Davídov (1988), encontra-se na própria prática sócio pedagógica,
em outras palavras, no conteúdo e método adotados. O referido autor afirma, que:
O conteúdo e os métodos do ensino primário, vigentes, se orientam
predominantemente para a formação, nos estudantes dos primeiros anos, das bases da
consciência e pensamento empíricos, caminho importante, mas não o mais efetivo na
atualidade, para o desenvolvimento psíquico das crianças (DAVÍDOV, 1988, p. 99,
tradução nossa).
Esta afirmação aponta fragilidades no ensino primário da sua época (por volta de
1970), na Rússia. Entretanto, como estão organizados os conteúdos e métodos na educação
escolar no Brasil atualmente? A constatação davydoviana se aproxima da realidade brasileira
em pleno ano de 2015, aproximadamente meio século depois?
Os resultados apresentados em documentos oficiais (BRASIL, 2014)11, e por
pesquisadores como Sousa (2014), Hobold (2014), Dalmolin (2015), entre tantos outros,
apontam que a afirmação de Davídov (1988) é atual em nosso sistema educacional. Além disso,
11 Entre os documentos oficiais destacamos os resultados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA)
disponíveis em: http://portal.inep.gov.br/web/saeb/ana/resultados
59
os resultados obtidos por meio da análise dos dados da presente investigação apontam que a
organização do ensino de Matemática no Brasil, no contexto investigado, tem por base a lógica
formal.
Assim, o objetivo nesse capítulo é refletir sobre os princípios da Teoria Histórico-
Cultural, especificamente, do pensamento dialético e “expressá-los na ‘tecnologia de
desenvolvimento do material didático’” (DAVÍDOV, 1988, p. 108, tradução nossa). A questão
desencadeadora é: quais as possibilidades de objetivação dos fundamentos da Teoria Histórico-
Cultural no modo de organização do ensino de Matemática, em especial, do conceito de
multiplicação?
Para tanto, o movimento conceitual apresentado neste capítulo terá por base a
proposição davydoviana para o ensino de Matemática discutida, no contexto brasileiro, por
pesquisadores como: Rosa (2012), Madeira (2012), Crestani (2013)12, Dorigon (2013), Matos
(2013), Silveira (2012), Hobold (2014), Cunha (2014), Moya (2015), Silveira (2015), Rosa
(2015) Matos (2015), entre outros. Adotamos, também, para as reflexões suscitadas, o livro
didático e o livro de orientação para o terceiro ano do Ensino Fundamental da proposição
davydoviana.
Além disso, no contexto brasileiro de produções com base na Teoria Histórico-
Cultural, estudamos a Atividade Orientadora de Ensino (AOE) proposta por Moura e seus
seguidores (MOURA, 1996; MOURA et. Al. 2010, ARAÚJO (2003), MORETTI (2007),
SERRÃO 2006, MORAES (2008), CEDRO (2008), LOPES (2004), , PANOSSIAN (2014),
NASCIMENTO (2014), entre outros).
No movimento de construção deste capítulo, consideramos a proposição
davydoviana e a AOE como um modo de objetivação da Teoria Histórico-Cultural na
organização do ensino de Matemática. Isto nos leva a refletir, primeiramente, o porquê de tal
opção. Davídov (1988) afirma que:
As ideias de Leontiev e seus seguidores sobre a determinação histórico-social dos
processos de reprodução, pelas crianças, das capacidades genéricas, requerem estudar
a relação interna entre a educação, o ensino e o desenvolvimento psíquico, revelar os
tipos historicamente diferentes em que se apresenta esta relação, até aquela na qual o
desenvolvimento espontâneo das crianças se opõe realmente ao papel
12 Referenciamos algumas monografias (ALVES, 2013; CRESTANI, 2013; DORIGON, 2013; MATOS, 2013;
SILVEIRA, 2012) em virtude da relevância desses trabalhos para o projeto mais amplo ao qual se insere a presente
pesquisa. Estas monografias foram desenvolvidas no interior de um grupo de pesquisa com apoio financeiro do
FUMDES (Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior e apresentam reflexões
importantes para a compreensão do movimento conceitual de introdução do conceito de multiplicação, entre outros
conceitos que o antecedem.
60
determinante da educação e o ensino dirigidos a um objetivo (DAVÍDOV, 1988,
p. 59, tradução e grifos nossos).
Se o desenvolvimento espontâneo das crianças se opõe ao objetivo da escola, de
desenvolver conceitos científicos e o pensamento teórico (princípio da Teoria Histórico-
Cultural), a Atividade Orientadora de Ensino reflete sobre conteúdo e método adotados no
processo de ensino e aprendizagem nessa perspectiva. Nesse sentido, ainda segundo o referido
autor, junto aos conceitos de ensino e educação, é conveniente considerar um conceito mais
geral, o de apropriação:
O processo de apropriação leva o indivíduo para a reprodução, em sua própria
atividade, das capacidades humanas formadas historicamente. Durante a reprodução
a criança realiza uma atividade que é adequada (mas, não idêntica) a atividade
incorporada pelas pessoas nestas capacidades (DAVÍDOV, 1988, p. 56, tradução
nossa).
A educação e o ensino são, portanto, a apropriação e reprodução pelo homem, das
produções humanas formadas histórico e socialmente. A AOE, para o processo de apropriação
de conceitos, a partir da situação desencadeadora de aprendizagem, propõe que se explicite “a
necessidade que levou a humanidade à construção do referido conceito” (MOURA, et. al. 2010,
p. 223), de modo semelhante ao que pode ter acontecido em certo momento histórico. Nesta
perspectiva, também, Davídov (1988) aponta que “é indispensável que as crianças, no processo
de apropriação do novo procedimento de ação, saibam dos problemas surgidos quando o
homem teve que resolver pela primeira vez tarefas semelhantes” (DAVÍDOV, 1988, p. 189,
tradução nossa).
A aproximação entre AOE e o Ensino Desenvolvimental pode ser evidenciada, na
nossa opinião, quando analisamos a situação desencadeadora de aprendizagem, materializada
em um problema desencadeador e a tarefa de estudo:
Examinemos o conteúdo de conceitos tais como ‘tarefa de estudo’ e problema de
estudo’ (o segundo foi introduzido na teoria do ensino de caráter problemático).
Inicialmente, devemos indicar que até agora falta uma diferenciação precisa dos
conceitos ‘tarefa’ e ‘problema’. Por exemplo, S. Rubinstein em alguns casos utiliza
estes conceitos como sinônimos, em outros, a tarefa é considerada um problema
formulado verbalmente (DAVÍDOV, 1988, p. 180, tradução nossa).
Como Rubinstein (1977; 1979), concebemos tarefa e problema como sinônimos.
Desde que o problema seja tomado no contexto da Atividade Orientadora de Ensino, ou seja,
como problema desencadeador da aprendizagem. Na tarefa de estudo o objetivo é desenvolver
nos estudantes meios de análise para resolvê-la sobre a base de abstrações e generalizações
61
teóricas. Durante a solução da tarefa “os estudantes revelam a origem da ‘célula’ do objeto
integral estudado e, utilizando-a, reproduzem mentalmente esse objeto” (DAVÍDOV, 1988, p.
179, tradução nossa). Do mesmo modo ocorre na situação desencadeadora de aprendizagem
(MOURA et al., 2010). Diante de tal aproximação, concordamos com Moraes (2008, p. 99,
grifos da autora) quando afirma que,
Pressupõe-se que o professor crie a necessidade no aluno de se apropriar dos
conhecimentos teóricos. Esta ação do professor na organização do ensino está de
acordo com a defesa de Davídov (1999, p. 4) sobre a elaboração da tarefa de estudo
pelos docentes. Ele defende que ‘ninguém pode forçar a criança escolar entrar em
atividade de aprendizagem se elas não têm necessidade de fazer isto’. Para nós, a
situação desencadeadora equivale às tarefas de estudo propostas por este pesquisador,
visto que ela é organizada de modo a possibilitar condições para que o objetivo da
atividade de ensino seja alcançado.
A tarefa de estudo, na proposição davydoviana, “se diferencia essencialmente das
diversas tarefas particulares de um ou outro tipo” (DAVÍDOV, 1988, p. 179, tradução nossa).
A tarefa de estudo permite que os estudantes apropriem-se do procedimento geral para
solucionar as tarefas particulares.
Segundo Vigotski (1988, p. 45, tradução nossa), “o ensino é, por consequência, o
aspecto internamente necessário e universal no processo de desenvolvimento, na criança, não
de peculiaridades naturais, mas, sim, históricas do homem”. Ao criar a necessidade do conceito,
reafirmamos, que a situação desencadeadora de aprendizagem deve explicitar as necessidades
que surgiram, ao longo do desenvolvimento da humanidade, e como os homens solucionaram
tais situações, considerando o movimento lógico-histórico:
O lógico [...] é o reflexo abstrato, liberado de casualidades e ziguezagues, do
desenvolvimento histórico do objeto. O lógico, em forma universal, em forma pura,
expressa a necessidade interna do desenvolvimento dos processos históricos. No
lógico se repete a sequência dos estágios históricos do desenvolvimento (DAVÍDOV,
1988, p. 64, tradução nossa).
De acordo com o autor em referência, “as formas da cultura são a expressão lógica,
universal, da história da consciência humana” (DAVÍDOV, 1988, p. 64, tradução nossa). Desse
modo, ao organizar o ensino, o movimento conceitual adotado na proposição davydoviana
“contempla a unidade entre o lógico e o histórico, expressa na conexão do universal com o
particular e o singular” (SILVEIRA, 2015, p. 158). Esse movimento conceitual também é
sugerido pela Proposta Curricular de Santa Catarina (2014, p. 35) que prevê a apropriação do
conceito “como forma de atividade mental por meio da qual se reproduz o objeto idealizado e
62
o sistema de suas relações, que em sua unidade refletem a universalidade e a essência do
movimento do objeto [...],” o que requer a unidade entre o lógico e o histórico.
Portanto, a opção pelo estudo da Atividade Orientadora de Ensino em unidade com
a proposição davydoviana, deve-se, também, a sua inclusão, na atual Proposta Curricular de
Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2014).
A Atividade Orientadora de Ensino teve sua origem diante da complexidade,
[...] dos fenômenos multifacetados que constituem a educação escolar, é necessário
combater uma visão, muitas vezes naturalizada, segundo a qual essa multiplicidade
de fenômenos termina por levar o professor ou os responsáveis pela educação escolar
a se aterem apenas ao fenômenos mais aparentes da educação escolar, tais como: o
pouco desempenho escolar dos estudantes, a formação incipiente dos professores, a
falta de motivação para o estudo, a indisciplina e a violência nas escolas (MOURA et
al., 2010, p. 81-82).
A preocupação com um problema, “talvez menos aparente da ação pedagógica: a
interdepência entre o conteúdo de ensino, as ações educativas e os sujeitos que fazem parte da
atividade educativa” (MOURA, et al., 2010, p. 82) levaram pesquisadores brasileiros
(MOURA, 1996; MOURA et. Al. 2010, MORETTI (2007), SERRÃO 2006, MORAES (2008),
CEDRO (2008), LOPES (2004), ARAÚJO (2003), PANOSSIAN (2014), NASCIMENTO
(2014), entre outros) a conceituarem os princípios teórico-metodológicos que orientam e
realizam a atividade de ensino.
Ao considerarmos o ensino como atividade - no sentido atribuído por Leontiev
(1983) de processo social, mediado por instrumentos/signos e estruturado a partir de uma
necessidade – o professor assume uma responsabilidade essencial, a de organizar o ensino.
Nesse sentido, Moura et al (2010, p. 89) colabora ao afirmar que,
[...] embora o sujeito possa se apropriar dos mais diferentes elementos da cultura
humana de modo não intencional, não abrangente e não sistemático, de acordo com
suas próprias necessidades e interesses, é no processo de educação escolar que se dá
a apropriação de conhecimentos, aliada à questão da intencionalidade social.
Assim, ao agir intencionalmente, no desenvolvimento de ações que visam a
apropriação dos conhecimentos, pelos estudantes, o professor objetiva, na sua atividade de
ensino, o motivo que o impulsiona (apropriação dos conhecimentos pelos estudantes).
Em relação a tal intencionalidade educativa deve-se, segundo Davídov (1988,
tradução nossa), alcançar o objetivo social da escola: proporcionar ao estudante a apropriação
dos conhecimentos, mas não de qualquer conhecimento, trata-se dos teóricos, dos científicos.
Em suas investigações, com base nos pressupostos vygotskianos e da Teoria da Atividade, o
63
autor em referência, dedicou-se à pesquisas sobre a atividade de estudo, considerada por ele a
atividade que deve ser dominante na criança em idade escolar. Segundo ele, “o ingresso na
escola marca o começo de uma nova etapa da vida da criança, nela muito se modifica tanto no
aspecto da organização externa quanto interna” (DAVÍDOV, 1988, p. 76, tradução nossa).
Além disso, assumir a educação como atividade significa “considerar o conhecimento em suas
múltiplas dimensões, como produto da atividade humana” (RIGON, et al., 2010, p. 24).
Ao pautar-se na Teoria Histórico-Cultural e na Teoria da Atividade e,
consequentemente, na perspectiva de que a escola deve promover a formação do pensamento
teórico, Moura (1996), propõe a Atividade Orientadora de Ensino:
Na AOE, ambos, professor e estudante, são sujeitos em atividade e como sujeitos se
constituem indivíduos portadores de conhecimentos, valores e afetividade, que estarão
presentes no modo como realizarão as ações que têm por objetivo um conhecimento
de qualidade nova. Tomar consciência de que sujeitos em atividade são indivíduos é
primordial para considerar a AOE como um processo de aproximação constante do
objeto: o conhecimento de qualidade nova. A atividade, assim, só pode ser orientadora
(MOURA et al, 2010, p. 97).
As pesquisas sobre a Atividade Orientadora de Ensino apontam-na como unidade
entre formação do estudante e do professor. Isto porque, o professor, ao organizar as ações que
objetivam a atividade de aprendizagem do estudante, também, requalifica seu próprio
conhecimento. Assim, a atividade é orientadora,
[...] no sentido de que é construída na inter-relação professor e estudante está
relacionada à reflexão do professor que, durante todo o processo, sente necessidade
de reorganizar suas ações por meio da contínua avaliação que realiza sobre a
coincidência ou não entre os resultados atingidos por suas ações e os objetivos
propostos (MOURA et al, 2010, p. 101).
A estrutura da Atividade Orientadora de Ensino permite que os envolvidos no
processo de ensino e aprendizagem interajam, “mediados por um conteúdo negociando
significados com o objetivo de solucionar coletivamente uma situação problema” (MOURA,
2001, p. 155). De acordo com Moura (1996), estas situações podem ocorrer por meio de
diferentes recursos metodológicos: Jogos infantis, história virtual do conceito e situações
emergentes do cotidiano.
Em síntese, o ensino organizado com base nos pressupostos da AOE é produto e
processo. A AOE “como mediadora, conduz ao desenvolvimento psíquico dos sujeitos que a
realizam” (MOURA et al., 2010, p. 108). A relação entre desenvolvimento psíquico e ensino
64
implica na compreensão do papel de algumas atividades que o ser humano desenvolve. Segundo
Davídov (1988, p. 70, tradução nossa),
A base do desenvolvimento mental é justamente a substituição do tipo de atividade
praticada, que através da necessidade determina o processo pelo qual as novas
formações psicológicas começam a ser modeladas no indivíduo. Desta maneira, o
novo tipo de atividade que sustenta o desenvolvimento mental integral da criança em
uma idade específica foi chamada de atividade “principal”.
Em cada atividade principal se constituem as correspondentes formações
psicológicas, cuja sucessão configura uma unidade do desenvolvimento psíquico da criança.
Das atividades principais analisadas por Davídov (1988), tais como a do jogo, estudo, trabalho,
entre outras, nos deteremos a duas delas: a atividade do jogo e a atividade de estudo13, por
compreendê-las como essenciais para esta pesquisa, já que os dados que subsidiaram a análise,
no capítulo anterior, foram obtidos com crianças de oito a nove anos.
Segundo o referido autor,
A atividade do jogo é a mais característica para a criança de três a seis anos. Em sua
realização surgem na criança a imaginação e a função simbólica, a orientação no
sentido geral das relações humanas, a capacidade de separar nelas os aspectos de
subordinação e direção; [...] a atividade de estudo se forma nas crianças de seis a dez
anos. Sobre sua base surge, nas crianças, a consciência e o pensamento teóricos, se
desenvolvem as capacidades correspondentes (reflexão, análise, planejamento
mental) e também as necessidades e motivos de estudo (DAVÍDOV, 1988, p. 74,
tradução nossa).
Ao analisarmos as atividades principais, poderíamos adotar como base para este
estudo somente a atividade de estudo, pois é esta que corresponde a idade e o estágio escolar
dos sujeitos da presente pesquisa, como ingressantes recentes na educação escolar. Entretanto,
optamos por refletir sobre a transição entre atividade do jogo para a atividade de estudo. Isto
porque,
[...] embora uma atividade principal, em particular, seja característica de um período
de desenvolvimento associado à faixa etária, isto não significa que outros tipos de
atividades estejam ausentes ou sejam “introduzidas à força” em uma determinada
faixa etária. Sabe-se, por exemplo, que a brincadeira é a atividade principal de
crianças em idade pré-escolar. Mas, nas crianças também encontram elementos de
estudo e trabalho no período pré-escolar de suas vidas. Porém, estes elementos não
determinam o caráter das mudanças psicológicas básicas em uma determinada idade:
13 O termo atividade de estudo não deve ser tomado como sinônimo de aprendizagem. “A atividade de estudo tem
um conteúdo e uma estrutura especial e há que diferenciá-la de outros tipos de atividade principais” (DAVÍDOV,
1988, p. 159, tradução nossa).
65
os diferentes aspectos destas mudanças psicológicas dependem mais do que nunca da
natureza da brincadeira. (DAVÍDOV, 1988, p. 71-72, tradução nossa).
Desse modo, o desenvolvimento da imaginação e da função simbólica,
características essenciais da atividade do jogo, não acabam quando a criança entra na escola.
Isto porque, em primeiro lugar, “o que uma série de psicólogos chama de ‘crise’ no
desenvolvimento psíquico da criança é o ponto de virada no transcurso normal deste processo
quando, por exemplo, uma necessidade é substituída por outra e, em consequência, uma
atividade é substituída por outra” (DAVÍDOV, 1988, p. 89, tradução nossa). A criança que entra
no Ensino Fundamental continua, em sua essência, criança, ou seja, suas necessidades ainda a
colocam em atividade do jogo, a diferença é que neste momento esta não é mais sua atividade
principal. Além disso, é necessário “certo tempo para que os ‘ex pré-escolares’ comecem a
converter-se, desde os seis anos, em verdadeiros escolares com todas as peculiaridades
psicológicas” (DAVÍDOV, 1988, p. 76, tradução nossa).
Concebemos a história virtual do conceito como um recurso didático da AOE que
possibilita a transição entre a atividade do jogo e a atividade de estudo, por meio do enredo
lúdico, da essência do conceito e da necessidade histórica do mesmo. A necessidade do
conceito, também é gerada nas tarefas davydovianas, quando o estudante depara-se com tarefas
não solucionáveis pelos procedimentos já apropriados. Entretanto, é necessário que as
características da imaginação e ludicidade estejam presentes, neste momento de transição de
uma atividade principal para outra.
A fim de refletirmos sobre os conteúdos e metodologias de ensino, com base nas
reflexões apresentadas anteriormente, optamos por elaborar, em colaboração com os
pesquisadores do grupo de pesquisa TEDMAT14, uma história virtual, compreendida como uma
narrativa que proporciona ao estudante envolver-se na solução de um problema (MOURA;
LANNER DE MOURA, 1998). O enredo tem como contexto o conto popular “O casamento da
Dona Baratinha” (MACHADO, 2004) e a personagem principal, Dona Baratinha, envia uma
carta solicitando ajuda aos estudantes:
14 Grupo de Pesquisa Teoria do Ensino Desenvolvimental na Educação Matemática sediado na UNISUL, criado e
coordenado pela Prof.ª Dr.ª Josélia Euzébio da Rosa. O referido grupo integra a unidade de relacionamento
gepapeana de Santa Catarina com o GPEMAHC - Grupo de Pesquisa em Educação Matemática: uma Abordagem
Histórico-Cultural (UNESC), criado e coordenado pelo Prof. Dr. Ademir Damazio.
66
Ilustração 17- O casamento da Dona Baratinha
O CASAMENTO DA DONA BARATINHA
Caros estudantes,
Quem escreve aqui é a Dona Baratinha, que tem fita no cabelo e dinheiro na
caixinha. Vocês já devem ter escutado minha história por aí e sabem que depois de muitos
pretendentes vou me casar com o Sr. Ratão. Vamos reunir a bicharada em uma grande festa.
Para isso, reservamos o salão mais bonito da nossa pequena cidade de Pinheiral e uma banda
da cidade vizinha animará a festa.
Quanto a decoração do salão, nós gostamos muito de rosas, cada mesa terá um
vaso com rosas. Como os nossos amigos tem muitos filhos, genros, noras e netos, o salão terá
muitas mesas.
Só que nós, baratinhas, não frequentamos a escola como vocês e stou com
problemas para saber quantas rosas precisaremos para a decoração. Meu noivo é meio
atrapalhado com tudo, apesar de não fazer grandes barulhos como os outros pretendentes, ele
fala demais. Então, quando tento pensar a quantidade de rosas que precisaremos, ele fica me
distraindo, falando de bolo de casamento, doces, queijos, feijoada... e eu acabo me
desconcentrando.
Então peço a ajuda de vocês. Eu preciso saber: quantas rosas precisaremos e
quanto dinheiro vou ter que retirar da minha caixinha?
Solicito à vocês que me mandem uma carta para me ajudarem a solucionar esse
problema, pois vou ter que repassar as instruções aos amigos que estão me ajudando na festa.
Desde já agradeço,
Dona Baratinha. Fonte: Elaboração da autora, 2015.
A elaboração da história virtual constituiu-se como um momento essencial na
produção deste capítulo. Consideramos a carta uma história virtual porque, com um enredo
lúdico15, coloca a criança diante de uma situação problema, semelhante a situação vivenciada
pelo homem historicamente (MOURA; LANNER DE MOURA, 1998).
15 Por lúdico entendemos uma situação em que “a infração da lógica das ações e regras é repelida” (ELKONIN,
1998, p. 299),
67
Após esse momento, pensamos na objetivação da história no desenvolvimento da
atividade de ensino do professor e da atividade de estudo do estudante. Mais uma vez, a
indissociabilidade entre professora/pesquisadora fez com que o movimento criado fosse de
possibilidades de objetivação, em sala de aula, desta história. Embora nossa preocupação seja
de não nos limitarmos as particularidades, foi necessário recorre-las, a título de exemplificação.
A partir de agora refletiremos sobre algumas hipóteses de respostas, ora refletindo efetivamente
em uma resposta para Dona Baratinha, ora refletindo sobre as ações dos professores e
estudantes, a partir dos pressupostos da lógica dialética, por meio da unidade entre AOE e a
proposição davydoviana.
Mas, porque relacionar a proposição davydoviana e a Atividade Orientadora de
Ensino? Pelo fato de que Davídov e colaboradores (Rosa (2012), Madeira (2012), Crestani
(2013), Dorigon (2013), Matos (2013), Silveira (2012), Hobold (2014), Cunha (2014), Moya
(2015), Silveira (2015), Rosa (2015) Matos (2015), entre outros) sistematizaram o ensino da
Matemática a partir dos fundamentos da Teoria Histórico-Cultural. Ou seja, objetivaram os
pressupostos teóricos no modo de organização e desenvolvimento do ensino da Matemática.
Nesse sentido,
Davýdov oferece aos estudiosos da didática e das didáticas disciplinares o suporte
teórico e prático para o ensino escolar. Não foi por acaso que definiu sua investigação
inicial como a elaboração da ‘fundamentação lógico-psicológica da estrutura das
disciplinas escolares’, pois a causa à qual dedicou sua vida pessoal, profissional e
científica foi a de criar as bases teóricas de uma metodologia de ensino na escola,
tendo como referência uma psicologia pedagógica (LIBÂNEO; FREITAS, 2013, p.
346-347).
Algo essencial nas ideias de Davídov advém da relação entre pensamento empírico
e pensamento teórico:
O pensamento empírico é muito importante na vida, porém, ‘obstaculiza o caminho’
quando queremos que os alunos entendam bem algum conhecimento teórico que se
ensina na educação escolar moderna. Isto porque, para entender uma teoria, utilizamos
outro tipo de pensamento que se estuda na lógica dialética, que se chama pensamento
teórico (DAVYDOV, 1998, p. 147-148, tradução nossa).
Ao considerar que o conhecimento empírico obstaculiza o desenvolvimento do
pensamento teórico, Davýdov (1998) se opõe a ideia do conhecimento empírico como ponto de
partida para o desenvolvimento do conhecimento teórico:
A débil influência do ensino primário no desenvolvimento mental das crianças está
ligada, primeiramente, com o fato de que os alunos dominam o material didático
68
predominantemente por meio de abstração e generalização empíricas, as quais não
podem servir de base para avanços qualitativos no desenvolvimento do
pensamento dos estudantes (DAVÍDOV, 1988, p. 167, tradução e grifos nossos).
Assim, a base para avanços qualitativos no desenvolvimento do pensamento deve
contemplar a reflexão, análise e experimento mental, característicos do pensamento teórico
(DAVÍDOV, 1988). Ao pensar no problema de Dona Baratinha surge, a seguinte situação
problema: Qual o total de rosas que ela precisará?
Primeiramente, em relação a reflexão dos estudantes, o professor possui o papel de
orientar e direcionar a reflexão dos mesmos para que estes não se limitem a busca de respostas,
mas, também, a elaboração de perguntas e hipóteses (ROSA, 2012). De acordo com Davídov
(1988), a atividade de estudo não é inata na criança, precisa ser desenvolvida. Para tanto, faz-
se necessário desenvolver, entre outras, a ação investigativa, materializada na elaboração de
perguntas direcionadas tanto ao professor quanto aos colegas, isto contribuirá para a
estruturação da atividade de estudo (ROSA, 2012). Além disso, segundo Rubinstein (1976) o
processo pedagógico, como atividade do professor, forma a personalidade infantil em
desenvolvimento na medida em que o professor dirige a atividade da criança.
Sobre a atividade de estudo da criança, Davídov (1988) com base nas ideias de
Vigotski (2000) sobre o processo de interiorização, diz:
Originalmente o indivíduo (principalmente a criança) está incluído de maneira direta
em uma certa atividade social distribuída entre os membros de um certo coletivo, que
tem uma expressão externa, concreta e que se realiza com ajuda de diferentes meios
materiais e semióticos. [...] precisamente na passagem das formas externas, realizadas
coletivamente, da atividades para as formas internas, implícitas, individuais de sua
realização, ou seja, no processo de interiorização, de transformação do interpsíquico
em intrapsíquico, se realiza o desenvolvimento psíquico do homem (DAVÍDOV,
1988, p. 55-56).
Nesse processo de interiorização, de acordo com os fundamentos da Teoria
Histórico-Cultural, a apropriação do movimento conceitual é orientado do geral para o
particular e singular (DAVÝDOV, 1982). Este movimento ocorre em função da relação
universal (ROSA, 2015). Nesta perspectiva, a resolução da história anteriormente apresentada
parte do aspecto geral do conceito. A quantidade de vasos ou rosas não está dada. O
levantamento de hipóteses de situações particulares torna-se o primeiro passo para a solução do
problema desencadeador, uma vez que o mesmo está apresentado em seu caráter geral:
O caminho da apropriação de conhecimento que temos assinalado tem traços
característicos. Em primeiro lugar, o pensamento dos estudantes move-se orientado
do geral para o particular (no começo buscam e fixam a ‘célula’ universal, inicial do
69
material a estudar e logo, apoiando-se nela, revelam as diversas particularidades do
objeto dado (DAVÍDOV, 1988, p. 175, tradução nossa).
Desse modo, por meio da célula, ou seja, a relação universal do objeto dado, os
estudantes procedem a generalização e abstração teóricas, orientando-se por este movimento,
ocorre a formação do conceito.
Os estudantes podem, então, apresentar reflexões que revelem a seguinte
problemática: Como resolver o problema de Dona Baratinha sem saber o valor aritmético das
quantidades envolvidas?
Em Matemática, quando não sabemos o valor aritmético de uma grandeza que
queremos medir ou contar, podemos recorrer ao caráter geral e representá-la por uma letra, ou
seja, por meio das significações algébricas (ROSA, 2012). A “álgebra como conhecimento
matemático (...) se caracteriza essencialmente pela busca da relação quantitativa entre as
grandezas variáveis de forma geral, sendo esta sua relação teórica essencial ou célula”
(PANOSSIAN, 2014, p. 107, grifos da autora).
Portanto, na resolução da história, as letras representam valores que podem sofrer
variações em função do movimento do geral para o particular e singular que a história almeja
desencadear. Nesse sentido, tomemos uma rosa como unidade de medida básica16, para
proceder a contagem um a um. Esta, representaremos pela letra A. Além disso, temos outro
valor desconhecido, o todo, o qual representaremos pela letra C. De posse desses valores gerais,
representados algebricamente, já é possível proceder algumas reflexões sobre os mencionados
valores. Por exemplo, qual é maior, A (unidade de medida básica) ou C (total de rosas)? Ou são
iguais? A resposta matematicamente esperada é: A é menor que C (A < C), uma vez que haverá
mais de uma rosa no salão. Vale esclarecer que, quanto aos sinais de menor que (<) e maior que
(>), a abertura sempre fica direcionada para o maior.
Além da representação por meio de letras, representação algébrica, podemos
representar a desigualdade entre os dois valores em análise, por meio de segmentos de retas.
Mas, o que são segmentos de retas?
Para responder esta questão, sugerimos a seguinte tarefa: primeiramente, o
professor solicita que os estudantes desenhem em seus cadernos duas linhas retas. Como fazer
para traçar uma linha reta? A resposta matematicamente correta refere-se a utilização de um
objeto com os lados retos, dobrar a folha ou o auxílio da régua (ROSA, 2012).
16 Adotamos a unidade de medida um rosa, entretanto a proposiç
70
Em seguida, o professor solicita que, em cada uma destas linhas retas, o estudante
marque dois pontos. Além disso, pede para que seja destacado com outra cor a parte reta entre
os dois pontos e explica “que a parte destacada chama-se segmento. Por isso, às vezes, as
extremidades dos segmentos são marcadas com riscos, como se fosse a linha de corte” (ROSA,
2012, p. 88-89), conforme ilustração a seguir:
Ilustração 18 – Linhas, pontos e segmento
Fonte: Elaboração nossa com base em Rosa (2012).
A introdução desses elementos geométricos, na proposta de Davýdov, ocorre logo
no primeiro ano de escolarização. Contempla:
[...] as inter-relações e conexões entre elementos como ponto, segmento de reta e reta
inseridos em um sistema, como integridade objetiva. Traduz, pois, o que o
materialismo histórico e dialético denomina de ‘unidade do diverso’ (MARX, 2003,
p. 248), como concreto. Fora dessa unidade, a reta não existe, uma vez que ela se
constitui de infinitos segmentos, cada um deles, por menor que seja, é formado por
infinitos pontos. Consequentemente, a reta também é constituída por infinitos pontos
(ROSA, 2012, p. 90).
O questionamento que emerge após a construção do segmento é: Como representar
por segmentos de reta, os valores A e C?
Ilustração 19 – Representação da relação de desigualdade entre A e C
Fonte: Elaboração nossa com base em Rosa (2015)
Qual dos segmentos anteriores (Ilustração 19), representa a unidade de medida
básica? E qual representa o total de unidades de medida básica? Com base nas reflexões já
71
realizadas, é possível concluir que o primeiro segmento representa o valor C (total de rosas no
salão) e o segundo o valor A (unidade de medida básica). Assim, o segmento menor, tomado
de uma extremidade a outra representa uma unidade de medida básica, conforme indica o arco
(Ilustração 03):
Ilustração 20 – Introdução do arco
Fonte: Elaboração nossa com base em Rosa (2015)
Com base na Ilustração 20 temos, até o momento, de acordo com Rosa (2012), a
representação algébrica e a representação geométrica: como a representação aritmética pode ser
revelada neste contexto? Ao professor cabe a elaboração de questionamentos, como por
exemplo, quantas vezes A se repete em C? Ou, no contexto da história em análise, quantas rosas
Dona Baratinha precisará? (Ilustração 21)
Ilustração 21 – Representação geométrica e algébrica da quantidade de rosas
Fonte: Elaboração nossa com base em Rosa (2015).
Com base no esquema apresentado visualmente, por meio de elementos algébricos
e geométricos (ROSA, 2015), podemos determinar a quantidade de rosas que Dona Baratinha
precisará? Ainda não, pois não sabemos quantas vezes A se repete em C. Trata-se de um valor
ainda desconhecido.
Portanto, em síntese, temos que C = A + A + A + A ... + A + A + A. Quantas vezes
A se repete? Como ainda não sabemos, supomos que A se repete por y vezes, desse modo,
temos: C = y x A. O número de vezes (y) que a unidade de medida básica (A) se repete, consiste
no total de rosas (C). Mas, como ajudar Dona Baratinha a determinar o total de rosas
A A A A A A A A
C
..............
A
72
necessárias? Ainda não sabemos quantas rosas ela colocará em cada vaso e nem quantos vasos
terão. Estes valores são indispensáveis para que possamos resolver o problema vivenciado por
Dona Baratinha. Vamos supor que Dona baratinha colocará a quantidade de rosas apresentadas
no esquema (Ilustração 22):
Ilustração 22 – Cálculo da quantidade de rosas
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Após a contagem de algumas rosas, como na Ilustração 22, sugerimos que o que o
professor simule um incômodo com a demora deste procedimento da contagem de unidade por
unidade, além de não estar explícito até onde a contagem deverá ser realizada. Também é
importante refletir sobre as limitações da contagem um a um e a possibilidade de elaboração de
um modo mais rápido para determinar o total de rosas.
A síntese a ser elaborada consiste na ideia de que contar vaso por vaso é mais rápido
do que rosa por rosa. Pois, possibilita a superação da contagem de rosa por rosa (um a um), que
é um procedimento de cálculo demorado. Para tanto, basta sabermos quantos vasos serão
utilizados e a quantidade de rosas que serão colocadas em cada um deles. Historicamente, a
humanidade também vivenciou as limitações da contagem um a um, no que se refere ao controle
de quantidades. A solução encontrada pela humanidade foi a contagem por agrupamentos:
A contagem por agrupamentos representa uma nova qualidade no pensamento em
relação à contagem por correspondência um-a-um. À medida que se faz necessário
controlar quantidades sempre maiores, lança-se mão de estratégias que organizam e
agilizam a contagem. É criada uma unidade relativa: um que vale muitos e muitos que
valem um (MOURA, 1995, p. 77).
A contagem por agrupamento será o princípio que seguiremos na resposta à Dona
Baratinha. Como ela gosta muito de rosas, supomos que ela colocará mais de uma rosa em cada
vaso. Desse modo, a quantidade de rosas de cada vaso, consiste em um agrupamento. Vamos
representar esses valores desconhecidos algebricamente:
73
Ilustração 23- Representação algébrica dos valores desconhecidos
Fonte: Elaboração nossa, 2015.
A unidade de medida básica que adotamos é uma rosa, a partir dela é que
formaremos agrupamentos. Davýdov e colaboradores propõem o esquema de setas para auxiliar
na interpretação das tarefas apresentadas em seu material didático, para os conceitos de divisão
e multiplicação (CRESTANI, 2013; HOBOLD, 2014). Portanto, adotaremos o esquema de
setas para a interpretação do problema desencadeador contemplado na História de Dona
Baratinha.
De acordo com Davídov,
Os modelos expressos com letras e os modelos gráficos cumprem um importante
papel na formação dos conceitos matemáticos. Sua particularidade essencial é que
reúnem o sentido abstrato com a concretização objetal. Falando estritamente, a
abstração da relação matemática pode ser produzida somente com a ajuda das
fórmulas expressadas por meio de letras (DAVÍDOV, 1988, p. 214, tradução nossa).
Por meio das letras, iniciaremos a construção do esquema de seta a partir das
informações que já temos: unidade de medida básica (A), todo (C), quantidade total de rosas
(y). Para isso, faremos uma seta (A → C) que indica o ponto de partida na resolução do
problema (Ilustração 24).
Ilustração 24- Construção inicial do esquema de setas
Fonte: Elaboração nossa com base em Crestani (2013); Hobold (2014).
A quantidade de vezes que a unidade de medida básica se repete no agrupamento
denomina-se unidade de medida intermediária e, com base nessa medida, é que
A C (Unidade de medida básica) (Todo)
(Total de rosas)
74
conseguiremos um processo de cálculo mais rápido para determinar o valor do todo, a
quantidade de unidades básicas (HOBOLD, 2014). Para Madeira (2012) a unidade de medida
intermediária consiste em um elemento essencial por determinar “dois fatores componentes da
operação da multiplicação: multiplicando e multiplicador. Ou seja, em termos aritméticos é dela
que surge a quantidade de vezes que uma determinada quantidade de unidade está sendo
multiplicada” (MADEIRA, 2012, p. 159).
No esquema de segmentos (Ilustração 25) temos:
Ilustração 25- Esquema de segmentos
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
No esquema anterior (Ilustração 25), temos a representação genérica da quantidade
de rosas por vaso (z), da quantidade de vasos (x) e da quantidade de rosas no total (y). Assim,
conforme já mencionamos, a quantidade de rosas de cada vaso (z) consiste na unidade de
medida intermediária.
O que implica, de acordo com Hobold (2014), na inclusão, no esquema iniciado na
ilustração 06, de mais uma seta (A → B), inclinada, direcionada para baixo, com a indicação
de quantas vezes a unidade básica (A) se repete na unidade de medida intermediária (B),
conforme a ilustração 26.
x
y
z ..................
.....
z
75
Ilustração 26 - Esquema de setas: unidade de medida intermediária
Fonte: Elaboração nossa com base em Hobold (2014); Crestani (2013).
Desse modo, a unidade de medida básica se repete z vezes na unidade de medida
intermediária. Com o intuito de finalizar o processo de constituição do esquema proposto por
Davýdov e colaboradores (HOBOLD, 2014; CRESTANI, 2013) para o processo de ensino e
aprendizagem dos conceitos de multiplicação e divisão, incluiremos uma terceira seta (B → C)
para indicar quantas vezes a unidade de medida intermediária (B) se repete no todo (C),
conforme a ilustração 27.
Ilustração 27- Esquema de setas: relação universal
Fonte: Elaboração nossa com base em Hobold (2014); Crestani (2013).
Este esquema foi construído a partir dos elementos que constituem a relação
universal dos conceitos de multiplicação e divisão tais como: unidade de medida básica (A),
unidade de medida intermediária (B) e o todo (C). A inter-relação desses elementos ocorre a
partir da seguinte lei: z . x = y. Eis o modelo da relação universal do conceito de multiplicação,
inicialmente constituído por elementos geométricos e algébricos (Ilustração 09), e agora, em
seu nível máximo de abstração, reduzido a sua expressão literal. Desse modo, concluímos o
z
A
(Unidade de medida intermediária)
B
y
C
(Quantidade de vezes que a unidade de
medida básica se repete)
z
A
(Unidade de medida intermediária)
B
y
C
(Quantidade de vezes que a unidade de
medida básica se repete) (Quantidade de vezes que a unidade de
medida intermediária se repete)
76
processo de redução do concreto ao abstrato. Essa relação universal possibilita a resolução de
diversas situações particulares referentes ao conceito.
Em relação ao movimento do concreto ao abstrato, Lefebvre (1991, p. 111-112)
afirma que, estes não podem ser separados; “são dois aspectos solidários, duas características
inseparáveis do conhecimento. Convertem-se, incessantemente, um no outro: o concreto
determinado torna-se abstrato e o abstrato aparece como concreto já conhecido [pensado]”.
Após o movimento de redução do concreto (ponto de partida) ao abstrato, é
necessário, portanto, a ascensão do abstrato ao concreto (DAVÍDOV, 1988). Neste movimento
do pensamento teórico de compreensão do fenômeno, o qual mencionamos no capítulo inicial
da presente dissertação, o concreto aparece duas vezes, “como ponto de partida da
contemplação e representação, reelaboradas no conceito e como resultado mental da reunião
das abstrações” (DAVÍDOV, 1988, p. 150, tradução nossa). O concreto é,
[...] um processo de síntese, de inferência sintética; partindo da abstração inicial se
desenvolve toda a multiplicidade concreta do fenômeno. Enquanto que o passar do
sensorial concreto ao abstrato aplicamos, sobretudo, a análise, o procedimento de
investigação mais importante para ascender do abstrato ao mentalmente concreto é a
síntese. Como já temos dito, a síntese não é uma simples ligação mecânica de partes
separadas até formar um todo, mas um procedimento de desenvolvimento; é a
inferência do singular e concreto partindo do geral e abstrato. Unicamente esse
desenvolvimento sintético que vai de uns conceitos e definições, a outros mais
concretos, pode reproduzir – como resultado de todo o caminho de ascensão – a
concreta diversidade das facetas do fenômeno em sua unidade (ILIENKOV, 2006, pp.
172 - 173).
Tomamos como concreto ponto de partida a situação desencadeadora, a partir dela,
revelamos os elementos que compõem a relação universal. Por meio desta relação, abstraída e
apresentada por meio de modelos geométricos e algébricos, é possível resolver o problema
desencadeador da História Virtual. Isso ocorre porque
Quando os estudantes resolvem a tarefa de estudo, eles dominam, inicialmente o
procedimento geral de solução de tarefas particulares. A solução da tarefa escolar é
importante não somente no caso particular dado, sim para todos os casos do mesmo
tipo. Aqui o pensamento dos estudantes se move do geral para o particular
(DAVÍDOV, 1988, p. 179, tradução nossa).
O movimento criado pela história ocorre, portanto, do geral para o particular. O
problema desencadeador contempla o conceito de multiplicação em seu aspecto geral, ele é o
ponto de partida para as diversas situações particulares que podem surgir, “a passagem do geral
para o particular se realiza não só concretizando o conteúdo das abstrações iniciais, mas,
77
também, substituindo os símbolos expressos por letras pelos símbolos numéricos concretos”
(DAVÍDOV, 1988, p. 215, tradução nossa).
Nesse sentido, o professor pode, portanto, sugerir que os estudantes apresentem
valores aritméticos para representar as quantidades envolvidas na história e, a partir destes,
proceda a modelação da grandeza, que nesse caso, é a discreta.
As grandezas discretas, segundo Costa (1866), são aquelas que “não podem
aumentar ou diminuir por graus tão pequenos [...]” (COSTA, 1866, p. 09). Já as grandezas
contínuas, “são as que podem aumentar ou diminuir por graus tão pequenos quanto se queira
[...]” (COSTA, 1866, p. 09). Desse modo, objetos soltos, como por exemplo, flores, bonecas,
bicicletas, pessoas, entre outros, são contados por meio da grandeza discreta, pois só podem
aumentar ou diminuir de unidade em unidade: uma rosa, duas rosas, três rosas e, assim,
sucessivamente. Não faz sentido contar meia rosa, por exemplo. A menos que o foco seja seu
volume, massa, entre outras. Pois, as grandezas contínuas, diferentemente das discretas, podem
ser aumentadas ou diminuídas em partes menores.
Ao contrário da história em análise, se pensarmos nos dados analisados no capítulo
anterior, este movimento do geral para o particular não ocorre. Os estudantes resolvem, apenas,
problemas particulares. Diante disso, cabe ressaltar, conforme já mencionado, que os estudantes
resolvem “[...] com inteiro acerto somente problemas do tipo que eles conhecem e cuja
identificação prévia é a premissa fundamental para reproduzir o método resolutivo concreto que
antes assimilaram” (DAVÝDOV, 1982, p. 155, tradução nossa).
A título de exemplificação, supomos que os estudantes sugeriram os números 4 e
6. Essa situação particular, no contexto do conceito de multiplicação, pode ser modelada do
seguinte modo (Ilustração 28):
Ilustração 28 - Modelação da grandeza discreta a partir dos valores 4 e 6.
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
78
Como trata-se da grandeza discreta, cada unidade de medida básica é representada
por um ponto. Os valores 4 e 6 são dispostos por meio de linhas e colunas. Essa situação
particular (Ilustração 28), no contexto da multiplicação, possibilita duas singularidades: quatro
vasos com seis rosas ou seis vasos com quatro rosas. A modelação da relação universal expressa
por meio da grandeza é importante porque, o conteúdo do pensamento teórico,
[...] é a existência mediatizada, refletida, essencial. O pensamento teórico é o processo
de idealização de um dos aspectos da atividade objetal-prática, a reprodução, nelas,
das formas universais das coisas. Tal reprodução tem lugar na atividade laboral das
pessoas como peculiar experimento objetal-sensorial. Logo este experimento adquire
cada vez mais um caráter cognoscitivo permitindo para as pessoas, passar, com o
tempo, para os experimentos realizados mentalmente (DAVÍDOV, 1988, p. 125,
tradução nossa).
Assim, o ponto de partida para a apropriação do conceito é a atividade objetal,
possibilitada pelos órgãos do sentidos. Entretanto, a “essência das coisas permanece oculta no
olhar imediato, requerendo-se grandes esforços para revelar esta essência” (ROSENTAL, 1962,
p. 354). Visualmente, por meio da modelação da grandeza (Ilustração 10), pode-se constatar
uma situação particular que depende do valor tomado como unidade de medida intermediária
para ser transformada em uma situação singular. O valor da unidade de medida intermediária
depende do contexto singular em análise. Se considerarmos, por exemplo, a quantidade disposta
na linha como a unidade de medida intermediária, quantas vezes ela se repete no todo
(Ilustração 29)?
Ilustração 29 – Linha tomada como unidade de medida intermediária
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Na situação singular anterior (Ilustração 29), a unidade de medida intermediária (6)
se repete por (4) vezes, conforme o esquema de setas a seguir (Ilustração 30):
79
Ilustração 30 - Esquema de setas para 6 x 4
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Entretanto, ainda é desconhecido o valor do total de rosas. Como podemos realizar
esse cálculo? A sugestão davydoviana é que se inicie o processo de ensino e aprendizagem das
operações básicas no contexto da reta numérica (ROSA, 2012; CRESTANI, 2013; ALVES,
2013; MATOS, 2013; HOBOLD, 2014; SILVEIRA, 2015;). Na reta, as unidades de medidas
intermediárias (agrupamentos) serão representadas por arcos. O ponto geométrico de partida é
o zero e o resultado consistirá no ponto de chegada do último arco (Ilustração 31).
Ilustração 31 - Cálculo na reta numérica para 6 x 4 = 24
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Assim temos seis vezes quatro (6 que se repete por 4 vezes). De acordo com o
resultado, obtido por meio da reta numérica, Dona Baratinha precisará de 24 rosas. Como se
pode observar,
[...] a modelação está ligada com o caráter visual, amplamente utilizado pela didática
tradicional. Contudo, no marco do Ensino Desenvolvimental o caráter visual tem um
conteúdo específico. Nos modelos visuais se refletem as relações e as vinculações
essenciais ou internas do objeto, separadas (abstraídas) por meio das correspondentes
transformações (o visual concreto habitualmente só fixa as propriedades externamente
observáveis das coisas) (DAVÍDOV, 1988, p. 214, tradução nossa).
A C
B
6 4
?
80
Desse modo, pode-se constatar que podemos considerar outra situação singular, na
qual a coluna é tomada como unidade de medida intermediária. Quantas vezes ela se repete no
todo (Ilustração 32)?
Ilustração 32 - Coluna tomada como unidade de medida intermediária
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Conforme a Ilustração 32, a unidade de medida intermediária (4) se repete seis
vezes, conforme o esquema de setas a seguir (Ilustração 33):
Ilustração 33 – Esquema de setas para 4 x 6
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Do mesmo modo que procedemos na situação singular anterior, a reta numérica
auxiliará na determinação do valor do todo, conforme segue (Ilustração 34):
A C
B
4 6
?
81
Ilustração 34 - Cálculo da operação 4 x 6 = 24 na reta numérica
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Neste caso temos 4 x 6 = 24 (Ilustração 34). Ou seja, quatro (unidade de medida
intermediária) vezes seis (quantidade de vezes que a unidade de medida intermediária se
repete). O resultado obtido, assim como no cálculo anterior, são 24 rosas. Isso ocorre em função
da propriedade comutativa da multiplicação na qual: “a . b = b . a” (CARAÇA, 2002, p. 19).
Ilustração 35 – As operações 4 x 6 = 24 e 6 x 4 = 24 na reta numérica
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana.
Embora, sejam operações diferentes, que representam situações singulares
distintas, o valor do todo é o mesmo. Desse modo, se Dona Baratinha tiver seis vasos e colocar
quatro rosas, em cada um, precisará de vinte e quatro rosas e se forem quatro vasos com seis
rosas cada, também precisará de vinte e quatro rosas. Estas são apenas duas singularidades
decorrentes da particularidade considerada. No entanto, a História em análise, por seu caráter
geral, possibilita a reflexão sobre infinitas situações particulares e singulares.
Por exemplo, ainda na situação particular em que o número quatro é tomado como
unidade de medida intermediária, serão infinitas as possibilidades de singularidades, se não
delimitarmos o segundo valor. Anteriormente (Ilustrações 33 e 34) ao considerarmos o valor
quatro como unidade de medida intermediária, durante a resolução da operação 4 x 6 = 24,
apresentamos seis possibilidades singulares (4 x 1 = 4, 4 x 2 = 8, 4 x 3 = 12, 4 x 4 = 16, 4 x 5 =
82
20 e 4 x 6 = 24). No entanto, caso a quantidade de vasos seja maior que seis, teremos outras
situações singulares, conforme segue (Ilustração 36):
Ilustração 36 - Situações singulares decorrentes de uma particularidade
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Na sequência apresentada na ilustração anterior (36), o valor da unidade de medida
intermediária, representada inicialmente por z, é a constante (quatro). A quantidade de vezes
que a constante se repete é a variável independente (x). A variável y, por sua vez, depende dos
valores atribuídos a x, portanto, variável dependente. A sequência que resultou da lei 4 . x = y
também é conhecida, na Matemática básica, de tabuada.
Cabe ressaltar, ainda sobre a ilustração (36), que na operação 4 x 0 = 0, ao tomarmos
o número zero como multiplicador, o resultado, será sempre zero. Isto porque, a unidade de
medida intermediária não se repete nenhuma vez, ou seja, não há formação de nenhum
agrupamento.
Mas, onde termina a sequência particular anteriormente apresentada (Ilustração
36)? A continuidade vai depender da situação singular requerida. A perspectiva da continuidade
é necessária para a compreensão de que qualquer número inteiro terá seu lugar na tabuada, que
ela não se limita no número 10. Além disso, também é importante termos clareza que a relação
particular 4 . x = y nos liberta para atribuirmos qualquer valor à x. Por exemplo, para x = 15,
83
teremos: 4 x 15 = 60. O mesmo é válido para o sucessor de 15 (4 x 16 = 64) e assim
sucessivamente.
Nesse sentido, nossa proposição é que a estrutura interna da tabuada seja
compreendida e memorizada, nos limites da unidade de segunda ordem, no caso do sistema de
numeração decimal, a dezena com possibilidade de generalização para a sequência infinita, a
fim de subsidiar o cálculo mental (SILVEIRA, 2015). Por exemplo, 4 x 16 = 64 é o mesmo
que: 4 x 10 = 40 mais 4 x 6 = 24. O que possibilitaria a superação da necessidade permanente
de utilização dos riscos, dedos conforme revelaram os dados que apresentamos no segundo
capítulo da presente dissertação, quando o estudante Guilherme afirma: “[...] quando eu não sei
eu faço risquinhos no rascunho [...] se for muito grande, as vezes, eu me perco” (Entrevista com
Guilherme, agosto de 2014). Conforme mencionamos no capítulo anterior, os primitivos
utilizavam os dedos ou os riscos para representá-los durante o cálculo e os estudantes
participantes da pesquisa assim procedem.
Tais resultados são confirmados pela Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA)
de 2014. De acordo com Renato Janine, ministro da Educação, o maior problema das crianças
do 3º ano do Ensino Fundamental é a Matemática, área na qual 57% mostraram um nível
inadequado de aprendizagem (AGÊNCIA BRASIL, 2015). Para a avaliação de Matemática, o
MEC dividiu a aprendizagem em quatro níveis, foram considerados inadequados os dois
primeiros. Em relação à esta divisão, o ministro afirma que no “[...] primeiro, a criança tem
apenas o conhecimento que traz de casa. No segundo, ela é capaz de fazer operações, mas muito
simples” (AGÊNCIA BRASIL, 2015).
Desse modo, os resultados da ANA, publicados em setembro de 2015, reforçam o
que dizem alguns pesquisadores brasileiros (ROSA, 2012, BRUNELI, 2012, HOBOLD, 2014,
entre outros): a maioria dos estudantes brasileiros permanecem nos limites do conhecimento
empírico. Porém, ao ingressar na escola, os estudantes deveriam desenvolver a atividade estudo,
destinada a apropriação do conhecimento teórico de sua época que é diferente daqueles
utilizados na vida cotidiana:
O desenvolvimento desta relação teórica para a realidade permite ao homem ‘sair’ dos
limites da vida cotidiana, observada diretamente; A inserção no amplo círculo dos
conhecimentos mediatizadamente representados que transcorrem no mundo e também
nas relações das pessoas (DAVÍDOV, 1988, p. 162, tradução nossa).
Para nós, ao permanecer nos limites da vida cotidiana, como por exemplo, o que
demonstra os resultados da ANA, a escola pouco contribui na formação mais ampla do ser
humano.
84
[..] A atividade de estudo plena, como atividade principal dos estudantes, pode ser a
base de seu desenvolvimento omnilateral. Em segundo lugar, as aptidões e hábitos
realmente firmes de leitura compreensiva e expressiva, de escrita e cálculo corretos
se forma nas crianças na presença de determinados conhecimentos teóricos. Em
terceiro lugar, a atividade consciente dos estudantes para o estudo se apoia na sua
necessidade, desejo e capacidade de aprender, os que surgem no processo de
cumprimento real da atividade de estudo (DAVÍDOV, 1988, p. 171, tradução nossa).
O cumprimento real da atividade de estudo, a partir da situação desencadeadora de
aprendizagem, consiste em observar e transformar os dados da história, não solucionáveis pelos
procedimentos conhecidos pela criança. A finalidade é revelar e distinguir “uma relação
completamente definida de certo objeto integral” (DAVÍDOV, 1988, p. 182, tradução nossa).
O conceito matemático adotado no processo de reflexão da primeira pergunta de
Dona Baratinha (total de rosas), a fim de tornar o processo de contagem menos trabalhoso, foi
o de multiplicação. Coletivamente, a partir dessas reflexões, os estudantes podem sintetizar a
definição do conceito de multiplicação, como uma soma de parcelas iguais (CARAÇA, 2002),
conforme os termos matemáticos do conceito (Ilustração 37):
Ilustração 37 – Termos do conceito de multiplicação
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
Dada a expressão anterior (Ilustração 37), z é o multiplicando, x o multiplicador e
y o produto. É importante adotar os termos corretos, para que os estudantes se apropriem, além
do conceito, da linguagem adequada. Para Lefebvre (1991, p. 88), os instrumentos do
pensamento “não podem ser separados dos objetos aos quais se aplicam. A lógica concreta
[dialética], portanto, descreverá tais instrumentos mais aperfeiçoados, tais ‘formas racionais’, e
resumirá assim milhões e milhões de experiências”. Desse modo, a relação universal do
conceito de multiplicação, modelada algebricamente, corresponde e se aplica a diversas
situações particulares.
Nascimento (2014), com base em Davídov, diz que
85
Os modelos teóricos possuem um duplo papel: são instrumento de análise para o
estudo do conteúdo das relações essenciais de um objeto (na medida em que nos
permitem de forma “direta” a análise das relações internas de um fenômeno, testando
as hipóteses sobre quais seriam essas relações e como se dá a conexão ou os nexos
entre os seus elementos) e são, também, um modo de exposição sintética dos nexos
internos encontrados pela análise (NASCIMENTO, 2014, p. 54).
Os modelos gráficos e literais permitem a análise e revelam as sínteses realizadas
a partir da experiência sensorial, “que constitui a base do conhecimento humano” (SILVEIRA,
2015, p. 134). Nesse sentido, Davídov (1988, p. 176, tradução nossa) aponta que:
Segundo a lei geral de interiorização, a forma inicial das ações de estudo é o seu
cumprimento empregado em objetos exteriormente representados. ‘... o domínio das
ações mentais – escreveu Leontiev – que estão na base da apropriação, da ‘herança’
pelo indivíduo dos conhecimentos, dos conceitos elaborados pela humanidade, requer
indispensavelmente a passagem do sujeito desde as ações realizadas externamente
para as ações no plano verbal e, finalmente, a paulatina interiorização destas últimas,
como resultado do qual adquirem o caráter das operações mentais’ [...].
Para que estas ações de interiorização adquiram um caráter mental, por meio da
reprodução e apropriação do conceito, a proposição davydoviana sugere a inclusão, também,
de tarefas que envolvam as grandezas discretas e contínuas (DAVÝDOV, 1982). Para que isso
ocorra, a história elaborada contempla duas perguntas e envolve a grandeza discreta (rosas) e a
contínua (valor monetário).
Em relação à segunda pergunta apresentada na História Virtual: “Quanto dinheiro
vou ter que retirar da minha caixinha?” Utilizaremos a mesma operação que adotamos para
determinar a quantidade de rosas. Para isso, precisaremos saber o custo de cada rosa.
Supomos que cada rosa custará três moedas. Além disso, consideremos as situações
singulares propostas anteriormente (4 x 6 = 24 ou 6 x 4 = 24). Como são 24 rosas, e cada rosa
custa 3 moedas, este será o valor da unidade de medida intermediária (3). Portanto, faremos
agrupamentos compostos por três unidades cada, que se repetirão por 24 vezes (total de rosas),
conforme o esquema de setas (Ilustração 38).
Ilustração 38 - Esquema de setas para a situação singular 3 x 24 = ?
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
A C
B
3 24
?
86
Até então, realizamos o cálculo com o auxílio da reta numérica, pois, de acordo
com a proposição davydoviana, a reta numérica é o ponto de partida para a introdução do
conceito de multiplicação (CRESTANI, 2013; HOBOLD, 2014). Entretanto, temos agora, uma
situação singular na qual a unidade de medida intermediária se repetirá por vinte e quatro vezes,
o que torna o cálculo na reta numérica um procedimento demorado e, portanto, precisa ser
superado por um outro mais rápido. Faz-se necessário o algoritmo do conceito da multiplicação
ou, nas palavras de Davýdov e colaboradores (ГОРБОВ, C. Ф. МИКУЛИНА Г. Г.;
САВЕЛЬЕВА О. В., 2003)17 a multiplicação em coluna.
A sugestão da referida proposição é a decomposição do multiplicando pelas
centenas, dezenas e unidades que o compõem. Isto porque, ao decompor o multiplicando, os
estudantes podem orientar-se pela tabuada. Por exemplo, para realizar a operação da situação
particular em análise, temos (Ilustração 39):
Ilustração 39 - Decomposição do multiplicando (24)
Fonte: Elaboração nossa com base em ГОРБОВ, C. Ф. МИКУЛИНА Г. Г.; САВЕЛЬЕВА О. В., 2003.
Para determinar o produto (total) da operação 24 x 3 = ___, por meio da
decomposição, temos duas dezenas que se repetem por três vezes e quatro unidades que também
se repetem por três vezes. Para determinar o resultado, a continuidade do cálculo (Ilustração
20), ocorre do seguinte modo (Ilustração 40):
Ilustração 40 - Cálculo da operação da multiplicação em linha
20 . 3 + 4 . 3 = 60 + 12 = 72
17 Livro didático e no livro de orientação ao professor referente ao terceiro ano do Ensino Fundamental da
proposição davydoviana.
87
Fonte: Elaboração nossa com base em ГОРБОВ, C. Ф. МИКУЛИНА Г. Г.; САВЕЛЬЕВА О. В., 2003.
Conforme a ilustração 40, ao orientar-se pela tabuada do número três, o estudante
determina o valor da operação. Assim, para duas dezenas vezes três, teremos seis dezenas e
para quatro unidades vezes três teremos doze unidades. A conclusão do cálculo ocorre por meio
da adição dos resultados parciais obtidos. Nesta situação singular, Dona Baratinha precisaria de
setenta e duas moedas.
Em seguida, para a introdução do algoritmo da multiplicação, sugere-se a redução
do registro, por meio da decomposição mental do multiplicando (centenas, dezenas e unidades).
Por exemplo, se Dona Baratinha tivesse 1324 flores (Ilustração 41):
Ilustração 41 - Redução do registro: cálculo da multiplicação em linha
1324 . 3 = 3000 + 900 + 60 + 12 = 3972
Fonte: Elaboração nossa com base em ГОРБОВ, C. Ф. МИКУЛИНА Г. Г.; САВЕЛЬЕВА О. В., 2003.
Ao reduzirmos o registro, demos mais um passo em direção ao procedimento que
agiliza o cálculo mental (Ilustração 41). Além disso, também é importante sistematizar o
algoritmo da multiplicação (multiplicação em coluna). Se Dona Baratinha precisasse adquirir
2132 rosas ao custo de 3 moedas cada, seria necessário o cálculo do produto (2132 . 3 = ____),
conforme a ilustração 42:
Ilustração 42 - Cálculo da operação da multiplicação em linha e coluna
2132 . 3 = 6000 + 300 + 90 + 6 = 6396
2132
x 3
6396
Fonte: Elaboração nossa com base em ГОРБОВ, C. Ф. МИКУЛИНА Г. Г.; САВЕЛЬЕВА О. В., 2003.
Para determinar o produto da operação 2132 . 3 = ____ (Ilustração 42),
determinamos e anotamos em linha o primeiro produto parcial (6000). Ele é colocado também
na coluna correspondente a unidade de milhar (6). De modo análogo, gradativamente, anotamos
os demais resultados parciais (centenas, dezenas e unidades). Conclui-se, por meio da
comparação dos dois modos de cálculo, linha e coluna, que no de coluna já temos a resposta
88
final e no procedimento em linha temos que executar a operação da adição. Assim, o novo modo
de registro, torna-se um procedimento de cálculo mais rápido que o anterior.
Mas está correto iniciar pela unidade de milhar? Reflitamos sobre duas operações.
Na primeira iniciaremos o cálculo a partir da unidade de milhar e na segunda a partir da unidade
(Ilustração 43):
Ilustração 43 - Cálculo a partir da unidade de milhar e a partir da unidade básica
2252
x 3
6656
6756
Fonte: Elaboração nossa com base em ГОРБОВ, C. Ф. МИКУЛИНА Г. Г.; САВЕЛЬЕВА О. В., 2003.
As operações (Ilustração 43) foram desenvolvidas de dois modos distintos. Na
primeira, iniciando pelo número da ordem maior e na segunda pelo número da menor ordem.
No primeiro caso, ao final do cálculo, é necessário corrigir o registro. Isso ocorre em função da
transformação de unidades em dezenas, de dezenas em centenas, e assim sucessivamente. No
segundo caso, o resultado parcial pode ser memorizado e em seguida adicionado ao produto
obtido na sequência18. Ou, ao ocorrer a formação de uma nova ordem, esta pode ser indicada
com uma seta e o número que representa o novo valor (SILVEIRA, 2015). Assim, a operação
realizada a partir da unidade, torna o procedimento mais cômodo, pois não é necessário corrigir
o registro ao término do cálculo.
Mas, retomando, as reflexões sobre resposta à Dona Baratinha, conforme já
mencionamos, a situação singular em análise consiste em setenta e duas moedas (Ilustração 19).
Será que Dona Baratinha terá moedas suficientes? Ainda não temos essa informação. Como é
um valor desconhecido, representaremos o total de dinheiro pela letra H e daremos algumas
sugestões para Dona Baratinha:
18 Esse procedimento, no ensino tradicional, é empiricamente conhecido como “vai um”.
1423
x 3
4269
89
Ilustração 44 - Três possibilidades de singularidades
Fonte: Elaboração nossa, 2015.
Caso a opção seja pela última possibilidade, primeiramente, faz-se necessário
determinar o custo para cada vaso: serão quatro agrupamentos (parcelas) de 2,50 cada. Na reta
numérica, o ponto de partida é o zero, e o resultado consistirá no ponto geométrico no qual o
último agrupamento atingir.
Ilustração 45 - Cálculo na reta numérica da operação 2,50 x 4 = ___.
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana, 2015.
De acordo com o resultado obtido (Ilustração 45), Dona Baratinha precisará de 10
moedas para cada vaso. Cabe ressaltar que, no decorrer do processo de ensino e aprendizagem
dos conceitos matemáticos, em especial do conceito de multiplicação, o estudante irá apropriar-
se do algoritmo também para situações com números decimais. Entretanto, este não é o objetivo
nesse momento de introdução do conceito.
90
Além da reta numérica e do algoritmo referente ao conceito de multiplicação, há
outro procedimento de cálculo que poderá ser utilizado para determinar o produto em todos as
situações apresentadas: a calculadora.
Como produção humana contemporânea, a calculadora atende ao princípio dos
pressupostos da Teoria Histórico-Cultural de apropriação de conceitos em seu atual estágio de
desenvolvimento. Na proposição davydoviana, a sugestão do uso deste instrumento é para
operações com números altos e, também, como comprovação de resultados obtidos por meio
da reta numérica, cálculo mental, contagem um a um, etc.
Em algumas tarefas da referida proposição a sugestão é a resolução, da mesma
tarefa, por modos diferentes de cálculo: “o professor propõe que uma criança conte de unidade
em unidade (1, 2, 3, ..., 15), outra utilize a calculadora e as demais realizem o cálculo com
auxílio da régua” (HOBOLD, 2014, p. 109). Esta sugestão estende-se as situações particulares
e singulares que apresentamos nesta resolução.
Para finalizar o cálculo da quantidade de moedas é preciso determinar o valor total
dos vasos. Para tanto, formaremos agrupamentos de dez unidades cada (valor de cada vaso)
que se repetirão por 6 vezes (quantidade de vasos), considerando a situação particular proposta
anteriormente, conforme ilustração a seguir:
Ilustração 46 – Cálculo na reta numérica do valor total de moedas que Dona Baratinha precisará
Fonte: Elaboração nossa com base na proposição davydoviana.
Vale ressaltar que Dona Baratinha não mencionou em sua carta qual moeda tem em
sua caixinha. No contexto brasileiro, a moeda oficial é o Real. Supomos, por exemplo, que as
moedas totalizem R$ 80,00 e que seus gastos sejam de R$ 60,00. Como ela poderá saber se
possui dinheiro suficiente?
91
A resposta matematicamente correta, será obtida por meio da subtração (80 – 60 =
20)19. Com base nos resultados obtidos a partir das situações particulares e singulares sugeridas
no decorrer deste, a resposta à Dona Baratinha poderia ser do seguinte modo:
Ilustração 47 – Carta para Dona Baratinha
Cara Dona Baratinha,
Somos pesquisadoras sobre Educação Matemática e pretendemos ajudá-la com o
problema de seu casamento. A dificuldade que você encontrou para contar as rosas, uma a
uma, também encontramos por aqui atualmente. A limitação desse modo de cálculo também
ocorreu, historicamente, quando as quantidades a serem contadas foram aumentando. A
solução encontrada, pela humanidade, foi a contagem por agrupamento. Este é o princípio que
seguiremos nesta carta resposta.
Como você gosta muito de rosas, supomos que haverá mais de uma em cada vaso.
Temos, portanto, a unidade de medida básica (uma rosa) e o que chamaremos de unidade de
medida intermediária (quantidade de rosas por vaso), pois ela facilita o processo de contagem.
Primeiramente, para possibilitar nossa comunicação, vamos representar os valores
desconhecidos algebricamente (por letras): Quantidade de rosas por vaso (z), quantidade de
vasos (x) e total de rosas (y). Os elementos essenciais para que você encontre um modo mais
rápido de contagem são:
O conceito que adotamos para responder sua carta, em Matemática, é denominado de
multiplicação. Quando você precisar agilizar um processo de cálculo poderá orientar-se pela
19 O cálculo, com o auxílio da reta numérica, diferente da multiplicação, para qual o ponto de partida é o zero,
neste caso o ponto de partida é o valor total (80). No entanto, os valores maiores são realizados no algoritmo. Para
aprofundar o estudo das operações de adição e subtração em Davýdov sugerimos as leituras de Rosa, Damazio e
Alves (2013) e Silveira (2015).
92
relação universal da multiplicação que, ao considera a representação algébrica desta carta,
consiste em z . x = y.
Para o procedimento de cálculo sugerimos que você adote a reta numérica, ela é o
lugar geométrico do conceito de número. Cada unidade de medida intermediária formará um
agrupamento (arco). O ponto de partida é o zero e o resultado consistirá no ponto geométrico
que o último agrupamento atingir (ponto de chegada):
Você adotará a mesma operação para calcular a quantidade de rosas e o quanto de
dinheiro que você terá que retirar de sua caixinha. Para isso, você precisará saber o valor de
cada rosa e a quantidade de vezes que ela se repete (y).
Concluímos nossa carta desejando-lhe um ótimo casamento e que não corra nenhum
imprevisto. Por falar em imprevistos, tome cuidado, ficamos sabendo que você tem um noivo
guloso, que pode empolgar-se demais e acabar caindo em alguma deliciosa panela de feijão
que estiver “dando sopa”.
Além disso, reflita sobre a necessidade da compra de rosas e sobre a lógica do capital.
Mas, como nossa carta já se estendeu demais, deixamos essa conversa para outras
correspondências que trocaremos. Até breve!
Lembranças à bicharada, em especial ao seu noivo Sr. Ratão.
Abraços dos integrantes do TEDMAT
Fonte: Elaboração nossa, 2015.
Enfim, as ações de estudo apresentadas no decorrer deste, como possibilidades de
resolução da história Virtual intitulada O Casamento de Dona Baratinha, estão dirigidas para
que:
Os estudantes revelem as condições do surgimento do conceito do qual estão em
processo de apropriação (para quê e como se separa seu conteúdo, por quê e em quê
se fixa este, em que casos particulares se manifesta depois). É como se os próprios
estudantes construíssem o conceito, embora com a direção sistemática do professor
(ao mesmo tempo o caráter dessa direção muda gradativamente e cresce, também
gradativamente, o grau de autonomia do estudante) (DAVÍDOV, 1988, p. 183-184,
tradução nossa).
93
Foi esse movimento de construção do conceito que tentamos imprimir ao longo do
presente capítulo. O ponto de partida foram as reflexões sobre uma possível situação vivenciada
pela personagem principal da história, por concebermos que, “os conceitos nascem da prática e
resumem, sintetizam o que previamente está dado na vida real, na prática” (ROSENTAL, 1962,
p. 328).
Por outro lado, se consideramos o conhecimento empírico como ponto de partida,
isso significaria que os estudantes precisariam, primeiramente, realizar generalizações e
abstrações empíricas e formarem conceitos igualmente empíricos, conforme, os dados
apresentados no capítulo anterior, para, somente depois disso, realizarem generalizações,
abstrações e conceitos teóricos? No entanto, Davídov (1999) é enfático ao afirmar que o
pensamento empírico obstaculiza o desenvolvimento do pensamento teórico.
A aprendizagem dos conceitos científicos e o desenvolvimento do pensamento
teórico, finalidades principais da atividade de ensino, só ocorrem por meio de um processo
orientado, organizado e sistematizado, mediante procedimentos analíticos que ultrapassem os
limites das experiências empíricas. Davídov (1988, p. 111, tradução nossa) enfatiza que “sem
dúvida alguma, a experiência vital da criança deve ser utilizada no ensino, mas somente por via
de sua reestruturação qualitativa dentro da forma, especial e nova para o aluno, do
conhecimento científico teórico”.
Portanto, não é qualquer ensino que oportuniza a aprendizagem e o
desenvolvimento mencionados, ao contrário, somente aquele cuja intencionalidade está
direcionada a este objetivo. Nas palavras de Vygotsky (1988), como mencionamos, o bom
ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento.
No entanto, segundo Davídov (1988, p. 59, tradução nossa):
As gerações anteriores transmitem para as sucessivas não somente as condições
materiais da produção, mas, também, as capacidades para produzir as coisas nessas
condições. As capacidades são a memória ativa que a sociedade tem de suas forças
produtivas universais.
Com as palavras de Davídov (1988) enfatizamos, a título de fechamento deste
capítulo, que o modo de organização de ensino é uma “herança” de gerações anteriores, que
precisa ser superado. Sabemos que o desafio é grande, inclusive na formação de professores.
Porém, nas palavras de Vigotski (1995, p. 12), “[...] é mais fácil mil fatos novos em qualquer
âmbito que um ponto de vista novo sobre uns poucos fatos já conhecidos”. Para Araújo (2003,
p. 43),
94
Trazer à mesa de discussões a formação de professores, não é apresentar uma
preocupação nova. Trata-se de um tema desgastado, até mesmo pela forma como tem
sido abordado: procurando culpados. Condenados e absolvidos revezam-se no banco
dos réus, sem direito a fala; e parece que a “justiça” nunca se concretiza. Pouca coisa
muda, muito permanece. Razão pela qual o tema continua a figurar com freqüência
nas manchetes pedagógicas. Falar de formação fugindo do terreno infértil, onde na
maioria das vezes foi plantada, é um grande e necessário desafio.
Conscientes de quão grande é o desafio, alertamos que somente a organização do
ensino com vistas ao desenvolvimento do pensamento teórico não dá conta da diversidade de
problemas que a educação brasileira está submetida. Entretanto, tampouco sem ele, haverá
mudanças. Nesta “mesa de discussões”, entra, portanto, a formação de professores, as condições
objetivas de trabalho docente, entre outros. Pois,
[...] a questão sobre as potencialidades de desenvolvimento de um ou outro sistema
de educação e ensino se pode analisar do seguinte modo: o sistema historicamente
formado e já estabelecido garante a apropriação, pelas crianças, de determinado
conjunto de capacidades, que correspondem às exigências da sociedade. Os meios e
procedimentos de organização da atividade reprodutiva se tornam tradicionais e
cotidianos. O papel desenvolvimental deste sistema torna-se oculto. Mas, se a
sociedade dada deve formar nas crianças um novo conjunto de capacidades, torna-se
indispensável criar um sistema de educação e ensino que organize o funcionamento
eficaz de novos tipos de atividade reprodutiva. Neste caso, o papel desenvolvimental
do sistema atua de forma aberta e se torna objeto de discussão especial, de análise e
organização consciente, orientada a um objetivo definido por parte da sociedade
(DAVÍDOV, 1988, p. 59, tradução nossa).
Assim, no sistema historicamente formado e já estabelecido na realidade brasileira
a formação ocorre, conforme os dados da presente pesquisa e de outras realizadas por
pesquisadores brasileiros (ROSA, 2015; HOBOLD, 2014; ROSA, 2012; entre outros), em sua
essência, para desenvolver o pensamento empírico. E este parece atender as exigências da
estrutura social vigente, já que perdura. Vislumbramos, pois, que esta realidade seja
transformada e que a essência requerida para os estudantes brasileiros seja o desenvolvimento
do pensamento teórico.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na atividade de estudo, as jovens gerações reproduzem em
sua consciência as riquezas teóricas que a humanidade
acumulou e expressou nas formas ideais da cultura
espiritual (DAVÍDOV, 1988, p. 174, tradução nossa).
A epígrafe que finaliza este estudo aponta aquilo que defendemos desde a
elaboração do projeto da presente dissertação: Na atividade de estudo ocorre a reprodução, no
processo de apropriação, do conhecimento produzido historicamente pela humanidade. Para
compreendermos esse processo elencamos como objetivo: investigar o conhecimento
matemático dos estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação.
Os dados de pesquisa foram obtidos por meio do acompanhamento de uma turma de 3º ano
escolar, de uma escola da Rede Estadual, no município de Tubarão, durante o segundo semestre
de 2014.
A fim de investigarmos o conhecimento dos estudantes, consideramos que este é
composto por abstrações, generalizações e conceitos. Assim, a análise dos dados obtidos, teve
por objetivo revelar como ocorre o processo de formação de conceito, a partir das abstrações e
generalizações desenvolvidas. Para atingir tal objetivo, fundamentamo-nos nos três princípios
investigativos de Vygotsky (1988): analisar processos e não objetos; explicação e não apenas
descrição e o estudo do comportamento fossilizado.
Diante de tais princípios, a análise dos dados foi realizada no contexto dos
isolados/unidade de análise, abstrações auxiliares e dos episódios. Como unidade de análise,
que nos possibilitou revelar a essência do fenômeno investigado, elencamos a relação entre a
lógica adotada e o processo de ensino e aprendizagem do conceito de multiplicação. A partir
desta unidade, constituímos dois episódios: O movimento de formação do conhecimento
referente ao conceito de multiplicação e um diálogo sobre o conceito de multiplicação.
No primeiro episódio, analisamos o movimento de formação do conceito de
multiplicação, pelos estudantes, a partir das aulas da professora titular do terceiro ano.
Constatamos que o processo de ensino e aprendizagem investigado fundamenta-se na lógica
formal. Nesta lógica, o movimento conceitual é organizado a partir do estabelecimento, por
comparação, das características comuns a partir das sensações e percepções de determinado
objeto, ou, em outras palavras, com base somente na aparência externa. Após esta comparação,
96
ocorre a união de objetos soltos em classes, de acordo com os atributos comuns, substanciais.
Por fim, há a formação de uma imagem geral representativa do objeto no plano mental.
O esquema percepção – representação – conceito desenvolve nos estudantes, de
acordo com Davídov (1988), o conhecimento empírico. A essência, neste processo de
elaboração do conhecimento, consiste na redução do conteúdo do conceito aos dados sensoriais,
aos seus traços comuns, com a contagem nos dedos, típica do homem primitivo.
Diante desta análise, nos questionamentos: Onde está a saída? De acordo com a
Teoria que fundamenta a análise crítica que desenvolvemos, se conteúdo e método sustentam-
se na unidade de abstração, generalização e conceitos formais, irá desenvolver o conhecimento
empírico. Por outro lado, se a organização do ensino ocorre na unidade entre abstração,
generalização e conceitos teóricos, com a finalidade de desenvolver capacidades teóricas de
reflexão, análise e planejamento, o conhecimento desenvolvido será o teórico, típico do homem
contemporâneo (DAVÍDOV, 1988).
Com isso, elaboramos o capítulo final da presente dissertação, com o objetivo
refletir as possibilidades de materialização, dos fundamentos da Teoria Histórico-Cultural, no
modo de organização do ensino do conceito de multiplicação. O movimento conceitual que
culmina no conceito teórico, teve como ponto de partida a relação entre grandezas discretas e
contínuas, na redução do concreto ao abstrato e ascensão do abstrato ao concreto. No caráter
geral do conceito, focamos na relação universal, nas relações internas do conceito, ou seja, sua
essência, que possibilita a aplicação do mesmo nas diversas situações particulares e singulares.
Reproduzimos esta relação em modelos objetais, gráficos e literais, para proceder ao estudo das
propriedades do conceito na inter-relação entre as significações algébricas, geométricas e
aritméticas. Desse modo, por meio de elementos mediadores (esquema, reta numérica, entre
outros), atingimos o concreto ponto de chegada.
Ao realizar a síntese do movimento de nossa investigação e ao chegarmos ao fim
deste estudo, é possível que, ainda, nos perguntem: Mas, afinal, é possível a objetivação em
sala destes pressupostos? A resposta está nos 25 anos de pesquisa de Davýdov e colaboradores
para a elaboração de tal proposta, que afirma que, sim, é possível. Vale lembrar que a realidade
da educação russa, quando Davýdov propôs elaborou sua teoria, era semelhante a nossa (ROSA,
2012; BRUNELLI, 2012; HOBOLD, 2014).
Além disso, a experiência no curso de Pedagogia, como estagiária de docência na
disciplina de Fundamentos da Matemática para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, indica
que há possibilidades. Isto porque, tanto no decorrer do processo de aprendizagem das
97
acadêmicas, quanto nos relatos dos estágios que as mesmas realizaram, levando para a sala de
aula aquilo que aprenderam na disciplina, tivemos indícios dessa possibilidade.
Para finalizar, cabe retomar dois movimentos trazidos na constituição enquanto
pesquisadora: intimidade e distância. Estes dois movimentos considerados inversos por sua
etimologia são vistos, dialeticamente, ao fim desta pesquisa, pois não há mais como “separar”
a professora da pesquisadora e vice-versa. Para tanto, diante do compromisso social assumido,
vislumbramos algumas possibilidades de temáticas para futuras pesquisas: A organização do
ensino de Matemática na Educação Infantil e a formação de professores com base na Teoria
Histórico-Cultural. Educação infantil, por ser a base necessária ao desenvolvimento da
atividade de estudo e formação de professores por transitar em todos os níveis de ensino.
98
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106
APÊNDICE A
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
TERMO DE CONSENTIMENTO
Prezado (a) Diretor (a):
Solicito por meio deste a sua colaboração para realização de uma pesquisa na escola sob
sua responsabilidade. A pesquisa intitulada “O conhecimento matemático de estudantes do
3º ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação: um estudo com base na
Teoria Histórico-Cultural” tem como objetivo investigar o conhecimento matemático de
estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação.
O presente estudo será realizado nos meses de agosto à novembro, nos dias e horários
que forem combinados. A pesquisa será realizada por meio de observação da turma investigada,
entrevistas com os estudantes, registros escritos e fotográficos. Destaca-se que a realização
deste estudo é condição para a pesquisadora concluir seu curso de Mestrado em Educação na
Universidade do Sul de Santa Catarina.
Ao final da pesquisa, a pesquisadora se coloca a disposição da instituição para socializar
os resultados da pesquisa.
Afirmo desde já que a identidade dos participantes e da escola será mantida em sigilo e
os dados obtidos durante a pesquisa serão utilizados para fins didáticos, de pesquisa e
divulgação de conhecimento científico.
Obrigada pela colaboração.
_________________________ __________________________
Pesquisadora Responsável Professor Orientador
De acordo: ________________________________________________________
Assinatura e carimbo da Direção da escola
107
APÊNDICE B
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E DEPOIMENTOS
Eu_________________________________, depois de conhecer e compreender os objetivos
desta pesquisa, AUTORIZO, através do presente termo, a pesquisadora Ana Paula da Silva
Galdino do projeto de pesquisa intitulado “O conhecimento matemático de estudantes do 3º
ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de multiplicação: um estudo com base na
Teoria Histórico-Cultural” a realizar as fotos que se façam necessárias e/ou a colher o
depoimento sem quaisquer ônus financeiros a nenhuma das partes, do (a) meu (minha) filho(a):
________________________________________________________.
Ao mesmo tempo, libero a utilização destas fotos (seus respectivos negativos) e/ou depoimentos
para fins científicos e de estudos (livros, artigos, slides e transparências), em favor da
pesquisadora da pesquisa, acima especificados, obedecendo ao que está previsto nas Leis que
resguardam os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA, Lei N.º 8.069/ 1990).
Tubarão, __ de ______ de 2014
___________________________ _____________________________
Pesquisador responsável pelo projeto Pais ou responsáveis