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1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Biguaçu (SC) 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI

CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA

A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS

PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Biguaçu (SC)

2008

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CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA

A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS

PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção de título de Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Centro de Educação de Biguaçu. Orientador: Prof. MSc. Juliano Keller do Valle

Biguaçu (SC)

2008

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí –

UNIVALI, a coordenação do curso de direito do centro de Biguaçu, a banca examinadora e o

orientador de toda e qualquer responsabilidade penal, civil e administrativa que

eventualmente dele possa decorrer.

CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA

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CARLOS EDUARDO BOSQUETTO DA SILVA

A INCONGRUÊNCIA DA ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL, SEM PROVOCAÇÃO DAS

PARTES, EM DECORRÊNCIA DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL ADOTADO PELA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Esta monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Bacharel em Direito e

aprovada pelo Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Centro de

Educação de Biguaçu.

Área de Concentração: Direito Processual Penal

Biguaçu (SC), 12 de novembro de 2008

Prof. MSc. Juliano Keller do Valle

UNIVALI – CE de Biguaçu

Orientador

Prof. MSc. Luiz César Silva Ferreira

UNIVALI – CE de Biguaçu

Membro

Profa. MSc. Rita de Cássia Pacheco

UNIVALI – CE de Biguaçu

Membro

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Dedico este trabalho aos meus

maiores exemplos de vida e que

nunca mediram esforços para, em

todos os sentidos, se dedicarem a

mim: meus pais.

Dedico também a Cleber Rodrigo,

mesmo não tendo a oportunidade

de conhecê-lo (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente a Deus, que me concedeu, acima de tudo, saúde para

alcançar mais este objetivo.

Com amor e infinita gratidão, agradeço a meus Pais, José Nilton da Silva e Maria

Lúcia Bosquetto da Silva, por caminharem em comunhão de desígnios comigo desde o

início do caminho, até porque sem eles realmente seria impossível concluí-lo.

A minha família: avós, Alísio Querino da Silva e Inácia Ávila da Silva, irmãs,

Tânia Mara da Silva Costa e Ana Cláudia da Silva Gubert, cunhados, João César Costa e

Jaime Alberto Gubert, sobrinhos, Guilherme Costa e Alice Gubert, e afilhada, Heloisa Costa,

por terem colaborado de inúmeras maneiras para que eu superasse as intempéries surgidas

tanto na universidade quanto na vida.

A meus avós, Anselmo Bosquetto e Alaíde Eller Bosquetto, pois, embora

ausentes pessoalmente, sempre me protegeram (in memoriam).

As pessoas que tive oportunidade de trabalhar e estagiar, mesmo antes do

ingresso à universidade, especialmente a Jádel da Silva Júnior, que, em seu gabinete, do 4º

ao 7º período do curso, me ensinou a dar as primeiras grandes engatinhadas no direito e

com quem tive os primeiros debates acerca da viabilidade da presente pesquisa.

A todos os colaboradores do BSA – Borges Schmidt & Almeida & BDV – Barros,

Demaria & Vecchio, com os quais passei e passo desde 1º/10/2006 grandes momentos

profissionais e pessoais, e cujo escritório, exemplo de advocacia neste país, fez com que a

confecção do trabalho ficasse mais simples, além de me propiciar a aprender que a

excelência profissional encontra-se nos minúsculos detalhes.

A Juliano Keller do Valle, por receber meu convite de orientação com euforia,

dedicar seu tempo à pesquisa e sugerir algumas referências bibliográficas, principalmente a

obra Direito processual e sua conformidade constitucional, de Aury Lopes Jr.

E, por fim, agradeço a todas as pessoas com quem oxigenava minha mente

após os estudos, mormente durante o intenso período da elaboração da presente pesquisa,

principalmente os amigos Ricardo e Thiago, e de classe, Alvaro, Juan e Luciano.

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Uma boa mentira, repetida

centenas de vezes, acaba se

tornando uma verdade.

Paul Joseph Goebbels

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RESUMO

A Constituição Federal de 1988, ao instituir no Brasil um Estado Democrático,

deu azo à feição garantista que atualmente norteia o nosso direito processual penal. Esta

tendência democrática, aliás, já dominava a maioria dos países do mundo à época. Antes da

mudança de paradigma, servia como sol ao processo penal o Código de Processo Penal de

1941, elaborado no seio do fascismo do “Estado Novo”, com aspirações complemente

antagônicas à Constituição. Enquanto a Lei Maior publicizou o sistema acusatório no

ordenamento jurídico pátrio, separando nitidamente as funções processuais e concedendo

ao acusado tratamento como sujeito de direitos, a lei infraconstitucional, ao contrário,

manteve os velhos ranços da matriz inquisitória, dentre eles a tutela ao juiz a proceder de

ofício à procura e à obtenção de provas sob o fundamento da busca da verdade real,

enfeixando, assim, as funções de acusar e julgar numa mesma pessoa, prevalecendo o

interesse público em detrimento daquelas garantias. Com arrimo em doutrina e

jurisprudência, busca-se apresentar raciocínio no sentido de que a atividade instrutória

judicial de ofício não pode mais subsistir diante desta atual sistemática processual penal,

mesmo com escólio na busca da famigerada verdade real, já que esta não passa de um

mito inalcançável, dando lugar à verdade auferida com respeito aos comandos

constitucionais: a verdade processual. Enfim, a figura do juiz que age sem provocação à

busca e à colheita de provas (juiz-ator ou juiz-inquisidor) cedeu espaço ao juiz garantidor

dos direitos do acusado e que seja expectador no que toca à produção de provas, deixando

tal mister apenas à incumbência das partes (autor e réu), reservando-se a exercer apenas

funções jurisdicionais a fim de preservar sua imparcialidade e a neutralidade judicial.

Palavras-chave: Sistema. Acusatório. Democracia. Garantismo. Inquisitório.

Inquisitivo. Inquisitorial. Autoritarismo. Totalitarismo. Verdade. Função processual.

Constituição. Lei ordinária. Juiz. Acusação. Instrução. Produção. Prova.

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ABSTRACT

The Federal Constitution of 1988, to establish a democratic State in Brazil, has

led to the security feature currently guides our criminal procedural law. This democratic

tendency, in fact, already dominated the majority of countries in the world at that time. Before

the change of paradigm, the sun served as the criminal procedure Code of Criminal

Procedure of 1941, prepared within the fascism of the "New State", with aspirations

completely antagonistic to the Constitution. While the Law Top publicized the accusatory

system in the legal vernacular, clearly separating the processor functions and giving to the

accused treatment as a individual of rights, the law below constitutional, in contrary, kept the

old rancid of the matrix inquisitorial , among them the guardianship to judge the conduct of

the demand letter and the taking of evidence on the basis of the actual search for truth,

focusing thus acknowledge the role of judge and the same person, prevailing the public

interest to the detriment of those guarantees. With strength in doctrine and jurisprudence,

seeks to present arguments to the effect that the activity instructor of judicial office can no

longer survive on this current system of criminal procedure, even with support in search of

the notorious real truth, as this is a unachievable myth, giving rise to the truth received with

respect to constitutional commands: the truth procedure. Therefore the figure of the judge

who acts without provocation to the search and collection of evidence (judge or court-actor-

inquisitor) yielded space to judge guarantor of the rights of the accused and to be spectator

with regard to the production of proofs, leaving only such mister the task of the parties

(author and defender), limiting itself to just exercise judicial functions in order to preserve

their impartiality and neutrality court.

Key words: Accusatory. Democracy. Guaranteed. Inquisitorial. Inquisitive.

Inquisitorial. Authoritarianism. Totalitarianism. Really. Civil Procedure. Constitution. Judge.

Indictment. Instruction. Production. Proof.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Ag Agravo de instrumento

AgRg Agravo regimental

ampl. ampliado

art. artigo

atual. atualizado

CF Constituição Federal de 1988

CP Código Penal (Dec.-lei nº 2.848/40)

CPC Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73)

CPP Código de Processo Penal (Dec.-lei nº 3.689/41)

Dec. Decreto

Des. Desembargador

Dec.-lei Decreto-lei

DJ Diário da Justiça

ed. edição

Edcl. Embargos de declaração

HC Habeas corpus

Min. Ministro

nº número

p. página

RE Recurso extraordinário

rel. relator

REsp Recurso especial

rev. Revisado

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justiça

vol. volume

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que o autor considera estratégico à compreensão do seu trabalho, com os

seus respectivos conceitos operacionais:

AUTORITÁRIO

“Assim se diz do poder público, ou administrativo, que desempenha suas atribuições,

exorbitando da autoridade, que lhe é assinalada em lei ou no ato legal, que o constitui.

Igualmente, designa o próprio regime autoritário ou regime de força, em que o poder

discricionário do governo prevalece sobre as próprias leis. E neste sentido se opõe ao

regime liberal ou regime democrático. O regime autoritário, formador do Estado autoritário, é

forma disfarçada de ditadura, onde, em regra, o governo enfeixa em suas mãos as

atribuições dos poderes constitucionais”1.

DEMOCRACIA

“É o governo do povo, pelo povo e para o povo”2. [...]

DIREITO INDIVIDUAL

“O referente ao indivíduo e assegurador nos aspectos dos direitos à vida, à liberdade, à

segurança e à propriedade e aos meios necessários a preservá-los”3.

ESTADO DE DIREITO

“[...] É a organização de poder que se submete à regra genérica e abstrata das normas

jurídicas e aos comandos decorrentes das funções estatais separadas embora harmônicas.

A expressão ‘Estado Democrático de Direito’ significa não só a prevalência do regime

democrático como também a destinação do Poder à garantia dos direitos; já na expressão

‘Estado Social de Direito’, além de assegurar o caráter democrático, introduz-se o Poder

como agente transformador da sociedade; na expressão ‘Estado de Direito Ambiental’ já

1 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 177. 2 Ob. Cit., p. 428, em itálico no original. 3 Ob. Cit., p. 471.

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agora se pretende situar o poder como garantidor do relacionamento dos indivíduos como o

meio que o circunda”4.

ESTADO DEMOCRÁTICO

“Assim se diz do Estado, cujo governo se constitui sob os moldes da democracia”5.

GARANTIA CONSTITUCIONAL

“É a denominação dada aos múltiplos direitos assegurados ou outorgados aos cidadãos de

um país pelo texto constitucional. [...] As garantias constitucionais, pois, diferem e não se

confundem com os direitos individuais, sendo seu estabelecimento fundado no dever de

ampará-lo e protegê-los. E assim se mostram os princípios constitucionais que podem ser

convocados, a fim de que se respeitem os direitos individuais, anulando-se as molestações

aos mesmos, como e onde quer que se evidenciem tais desrespeitos. Casos há, porém, em

que se podem suspender as garantias constitucionais. E estes se encontram anotados,

também, na própria Magna Carta, que as institui”6.

GARANTIA FUNDAMENTAL

“Representa salva-guardas que as Constituições Políticas agasalham para validade dos

direitos assim consignados. Pode ser: a) ativa – depende de provocação do indivíduo ou da

coletividade (habeas corpus, mandado de segurança, habeas data, mandado de injunção,

ação popular); b) passiva – independem da iniciativa individual ou coletiva, uma vez que se

insculpem como princípio constitucional basilar”7.

GARANTISMO

“Segundo um primeiro significado, ‘garantismo’ designa um modelo normativo de direito:

precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de ‘estrita legalidade’ SG,

próprio do Estado de Direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza com um sistema

cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de

tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como

4 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 555, em itálico no original. 5 Ob. Cit., p. 557. 6 Ob. Cit., p. 651. 7 Ob. Cit., p. 651.

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um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos

cidadãos”8. [...]

“[...] Em um segundo significado, ‘garantismo’ designa uma teoria jurídica da ‘validade’ e

‘efetividade’ como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela ‘existência’ ou

‘vigor’ das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica

que mantem (sic) separados o ‘ser’ e o ‘dever ser’ no direito; e, aliás, põe como questão

teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos

normativos (tendentementes garantistas) e práticas operacionais (tendentementes

antigarantistas), interpretando-a com a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora

destes patológica – que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e

efetividade (e invalidade) das segundas)”9.

“[...] Segundo um terceiro significado, por fim, ‘garantismo’ designa uma filosofia política que

requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos

interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido o

garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre o direito e moral, entre validade e

justiça, entre o ponto de vista interno e o ponto de vista externo na valoração do

ordenamento, ou mesmo entre o ‘ser’ e o ‘dever ser’ do direito. E equivale à assunção, para

os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do

ponto de vista exclusivamente externo”10.

INCONGRUÊNCIA

“S.f. 1. Qualidade do que é incongruente; incompatibilidade. 2. Ato incongruente”11.

INCONGRUENTE

“Adj. 2g. Que não é congruente, que não convém; incompatível, impróprio, inconveniente”12.

INQUISIÇÃO 8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 785-786, em itálico no original. 9 Ob. Cit., p. 786, em itálico no original. 10 Ob. Cit., p. 787, em itálico no original. 11 RIOS, Dermival Ribeiro. Novo dicionário global da língua portuguesa ilustrado. São Paulo: DCL, 2007, p. 386. 12 Ob. Cit., p. 386.

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“[...] Inquisição. Era o nome que se dava ao antigo tribunal de jurisdição eclesiástica,

conhecido pela denominação de Santo Ofício, e estabelecido para conhecer dos crimes

contra a fé cristã. Foi introduzido, no ano de 1 200, pelo papa INOCÊNCIO III, durante a

guerra contra os albigenses. Em Portugal a Santa Inquisição, designação que lhe era

também atribuída, foi instituída em 23 de maio de 1536, por bula do papa PAULO III, sendo

o primeiro inquisidor-geral D. DIOGO DA SILVA, bispo de Ceuta e primaz da África. O

tribunal inquisitorial conhecia dos crimes por delação própria ou mediante denúncia e

acusação. Os componentes da Inquisição diziam-se inquisidores, que eram seus ministros,

com autoridade para inquirir sobre a herética pravidade e depravação dos costumes.

Inquirir, aí, quer significar investigar, promover inquérito ou devassa. Era presidida pelo

inquisidor-geral, que era seu presidente nato e tinha poderes para nomear os inquisidores

particulares”13.

INSTRUÇÃO

“[...] Instrução. Na terminologia forense, é empregado para exprimir a soma de atos e

diligências que, na forma da regras legais estabelecidas, devem ou podem ser praticados,

no curso do processo, para que se esclareçam as questões ou os fatos, que constituem o

objeto da demanda ou do litígio. A instrução, pois, dispondo de elementos na ordem

regulamentar, vem ministrar os esclarecimentos ou trazer elucidação aos fatos que se

precisam saber. Tecnicamente, evidencia-se a reunião ou procura de provas, conseqüentes

dos atos praticados ou das diligências feitas, que determinam a procedência ou

improcedência dos fatos alegados, quando em processo civil, ou dos fatos imputados a

alguém, quando em processo penal”14. [...]

JUDICIAL

“Derivado do latim judicialis, é empregado comumente para indicar ou exprimir todos os atos

ou todas as coisas, que se fazem em juízo ou segundo a autoridade do juiz, e que

pertencem à justiça. Opõe-se, desse modo, a extrajudicial, que é o que se faz fora de juízo e

sem assistência ou autoridade do juiz. É o judicial tido em sentido equivalente a judiciário,

quando empregado como adjetivo. Judicial ou judiciário, assim, têm análogo sentido”15.

13 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 746, em itálico no original. 14 Ob. Cit., p. 752, em itálico no original. 15 Ob. Cit., p. 788, em itálico no original.

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OFÍCIO

“[...] Ofício. Na linguagem forense, notadamente na expressão por ofício (ex officio) entende-

se o que se faz ou se executa por iniciativa própria, sem pedido de alguém, somente porque

se está na obrigação ou no dever legal de assim proceder. Equivale a oficiosamente”16. [...]

SISTEMA

“Do grego systema, e trazendo o sentido de reunião, método, juntura, exprime o conjunto de

regras e princípios sobre uma matéria, tendo relações entre si, formando um corpo de

doutrinas e contribuindo para a realização de um fim. É o regime, a que se subordinam as

coisas. Assim, todo conjunto de regras, que se devem aplicar na ordenação de certos fatos,

integrantes de certa matéria, constitui um sistema. Destarte, há sistemas jurídicos, sistemas

econômicos, sistemas sociais, sistemas de trabalho, etc”17.

TOTALITÁRIO

“De total, exprime geralmente o que encerra a totalidade de partes ou de atributos, sem

nada lhe faltar. Totalitário. Mas, no sentido político, entende-se o regime em que o Estado

absorve e subordina os interesses dos indivíduos aos interesses da coletividade, adotando

como forma de governo a ditadura pessoal ou de grupo. No regime totalitário, o Estado é

que dirige todas as atividades da vida social do país, nele somente se admitindo a existência

do partido ou do grupo de onde saem seus dirigentes ou administradores. Totalitário.

Designa o partidário do sistema político que se firma no totalitarismo”18.

16 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 25. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 979, em itálico no original. 17 Ob. Cit., p. 1.306, em itálico no original. 18 Ob. Cit., p. 1.411, em itálico no original.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................ ...................18

1 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS...........................................................................20

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .....................................................................................20

1.2 ACUSATÓRIO ...........................................................................................................21

1.3 INQUISITÓRIO ..........................................................................................................28

1.4 MISTO ......................................................................................................................32

2 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS E O SISTEMA ACUSATÓRIO -

MECANISMOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL EM FACE DO PODER (MONOPÓLIO)

ESTATAL .......................................................................................................................38

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .....................................................................................38

2.2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL ...............................................................................41

2.3 A PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE E O IN DUBIO PRO REO ...................43

2.4 A IGUALDADE PROCESSUAL ..................................................................................48

2.5 O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA ...............................................................50

2.6 A IMPARCIALIDADE (DO JUIZ NATURAL) ...............................................................53

3 ASPECTOS TANGENTES À ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL - A

NECESSIDADE DE REMODELAGEM DO PAPEL DO JUIZ EM DECORRÊNCIA DO

MODELO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL ..............................................................56

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .....................................................................................56

3.2 O ÔNUS DA PROVA E O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO ..................................56

3.3 A SUPOSTA DISTINÇÃO ENTRE VERDADE REAL E FORMAL ..............................59

3.4 A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE REAL - O PROCESSO PENAL DE CUNHO

ACUSATÓRIO (DEMOCRÁTICO) RUMO À BUSCA DA VERDADE PROCESSUAL .......62

3.5 A UTILIZAÇÃO DA VERDADE REAL PARA A ATIVIDADE PROBATÓRIA JUDICIAL

DE OFÍCIO ......................................................................................................................66

3.6 A INCOGRUÊNCIA DA PRODUÇÃO DE PROVA EX OFFCIO PELO JUIZ ................70

3.7 A AMPLIAÇÃO DE PODERES DO JUIZ COM O ADVENTO DA LEI Nº 11.690/2008 -

PERMANÊNCIA DE PROCEDIMENTO INQUISITIVO NO CÓDIGO DE PROCESSO

PENAL BRASILEIRO .......................................................................................................76

CONCLUSÃO..................................................................................................................77

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REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS .........................................................................79

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INTRODUÇÃO

Partindo-se de construção histórica atinente aos grandes sistemas informadores

do processo penal mundial, visa-se inicialmente identificar as reais partes que os integram

para, posteriormente, digerir algumas questões relativas ao modelo empregado no Brasil

pela Constituição Federal de 1988.

Uma vez identificadas as características primordiais de cada um dos três

protótipos, poder-se-á observar que, dentre outras, a principal diferença entre o acusatório e

o inquisitório diz respeito à divisão entre os sujeitos processuais. Historicamente, no primeiro

há notória divisão entre o acusador e o juiz. A acusação é considerada como parte na

relação processual, assim como o réu, e o julgador reserva-se a praticar tão-somente

atividades jurisdicionais; no segundo sistema, as funções de acusar e julgar concentram-se

enfeixadas na pessoa do inquisidor, que mantém relação linear com o réu, que não é

considerado parte, tampouco é visto como sujeito de direitos. O protótipo misto, por sua vez,

é a miscigenação de ambos os modelos, só que dividido em duas fases. Apesar de tudo,

identificar-se-á que cada país modela seu sistema de acordo com sua opção política,

podendo haver uma miscelânea entre as características de cada um, desde que não

desnaturem a própria configuração do próprio sistema, como a divisão de funções entre

acusar e julgar, típica do acusatório, no inquisitório.

Além da separação de funções, será possível perceber que o tratamento dado

ao acusado como sujeito de direitos também serve de alicerce para a anomalia entre

aqueles dois sistemas, principalmente pelas garantias fundamentais concedidas ao réu. Na

verdade, decorrem daí as razões pelas quais elege-se o modelo acusatório como o eleito

pela Constituição Federal de 1988. Por outro lado, serão esposadas opiniões doutrinárias a

fim de se perceber se tal entendimento é uníssono (pacífico).

Superada a diferenciação dos aplicadores da lei material penal, mergulhou-se no

bojo de algumas garantias fundamentais trazidas pela atual Constituição. Assim, será

demonstrado o conceito, o valor e a abrangência do devido processo legal e de seus

corolários (presunção de não-culpabilidade, contraditório, ampla defesa, igualdade

processual e imparcialidade), direcionando a atenção para as suas interferências na

produção de prova de ofício pelo juiz. Estas ponderações terão, certamente, forte influência

no terceiro capítulo.

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Em último lugar, no terceiro capítulo, serão esboçadas considerações que

reflitam pontualmente na oficiosa atividade instrutória judicial. Para tanto, além das garantias

já aludidas no segundo capítulo, que serão trazidas à tona novamente, apresentar-se-ão

aspectos relativos ao ônus da prova e à verdade real, tendo em vista que a busca por esta

verdade, insculpida no art. 156 do CPP, fornece ao julgador poderes para procurar e colher

provas, enquanto o ônus da prova estabelece que apenas à acusação incumbe provar a

pretensão punitiva em face do réu.

Todo o embasamento para chegar-se ao raciocínio explicitado, porém, será

realizado sob interpretação constitucional, deixando o Código de Processo Penal (legislação

infraconstitucional) de lado, embora analisado com ênfase o seu art. 156, cujo dispositivo

regula concomitantemente o ônus de prova e a liberdade do juiz para atividade instrutória.

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1 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Por amor à metodologia e visando facilitar a compreensão do assunto objeto do

capítulo, torna-se imprescindível esclarecer que sistema processual penal, resumidamente,

“é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de

cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito

penal a cada caso concreto”19.

Na oportunidade, traz-se à baila outra definição também preconizada pela

doutrina:

Sistemas processuais penais são, pois, campos criados a partir do agrupamento de unidades que se interligam em torno de uma premissa. Funcionam como uma indicação abstrata de um modelo processual penal constituído de unidades que se relacionam e que lhe conferem forma e características próprias20.

Para não confundi-lo com sistema penal, é de bom alvitre colacionar seu

significado, cujo instituto, por não estar atrelado ao tema, não merecerá nossa atenção:

[...] sistema penal é um conjunto de agências de poder, que interage com o meio social, influenciando e sendo por este influenciado (mídia, família, igreja, vizinhos, escola etc., os quais formam o senso comum), funcionando com o objetivo de combater a criminalidade (função declarada) para proteger as pessoas de bem daquela minoria muito má que põe em risco a segurança pública (ideologia da defesa social)21.

Dirimida, através dessas lições, eventual dúvida existente acerca do conceito de

sistema processual penal, far-se-á em seguida pertinentes considerações concernentes a

cada um dos grandes sistemas informadores do processo penal, tudo com a finalidade de

que o leitor possa identificá-los futuramente. De todo modo, para evitar prolongamento de

conteúdo que fuja do âmbito da pesquisa, será dado ênfase às características históricas e,

acima de tudo, às relações com o direito processual brasileiro, haja vista que “muitos dos

19 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 45. 20 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 38. 21 NEPOMOCENO, Alessandro. Além da lei: a face obscura da sentença penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 43.

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aspectos do sistema hoje vigente no Brasil configuram repetição de procedimentos adotados

em épocas mais remotas”22.

Em relação à gradativa evolução histórica dos moldes processuais penais,

acredita-se que “a mudança de paradigma, decorrente da transformação do próprio

pensamento humano, foi o fator relevante para conferir ao processo penal sua feição

contemporânea”23.

Existem dois protótipos em que o processo penal pode revestir-se para alcançar

seu objetivo especial e precípuo: o inquisitivo e o acusatório24. Há ainda o misto, que nada

mais é do que a compilação entre aqueles25.

No mais, em sendo o foco – cerne – da pesquisa analisar de maneira restrita a

produção de provas pelo juiz, sem provocação das partes, sob o prisma constitucional

advindo da Constituição Federal de 1988, será percorrido neste capitulo um curto caminho

no âmago dos aplicadores da lei penal material, porque será mister distingui-los para

entendimento da celeuma.

1.2 ACUSATÓRIO

Afirma-se que era acusatório o protótipo procedimental utilizado em toda a

Antigüidade26, o qual predominou até meados do século XII, quando foi substituído pelo

inquisitório27.

22 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 39. 23 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 233. 24 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 64. 25 “Historicamente, e conforme a atual estrutura básica dos procedimentos vigentes em vários países, os tipos processuais classificam-se, segundo a terminologia usual e levando-se em conta os princípios que os informam, em processo acusatório e processo inquisitivo – admitindo-se ainda uma terceira forma mista – cujo traço fundamental revela-se pela existência, no primeiro, de um órgão próprio de acusação separado do órgão jurisdicional, contrariamente ao segundo que acumula ambas as funções”. OLIVEIRA, Gilberto Callado de. O conceito de acusação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 36. 26 TUCCI, Rogério Lauria. Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 62. 27 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58.

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Originariamente a acusação penal era privada, competindo ao ofendido (vítima)

ou a qualquer pessoa do povo a difícil outorga de acusar publicamente aquele que tivesse

praticado uma infração penal. O Estado, indiferente, não se importava com a “guerra”

processual formada, que dependia da habilidade, tenacidade ou malícia das partes, razões

pelas quais qualificou-se o processo como “coisas das partes” (sache der partein)28.

No mesmo trilho percorrido acima, LOPES JR. ratifica:

A origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, onde se desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício da acusação e como julgador. Vigorava o sistema de ação popular para os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do Direito Civil29.

Percebe-se com facilidade que não só a acusação como a persecução penal,

tarefa que “consiste no poder de promover a perseguição do indigitado autor da infração

penal”30, ficava a encargo dos particulares.

Na medida em que o Estado não auxiliava os particulares na persecução penal,

referida atividade ficava conseqüentemente prejudicada, uma vez que os particulares não

detinham instrumentos ou meios pelos quais poderiam realizá-la de forma satisfatória a fim

comprovar suas alegações, carência que dificultava, por vezes, a condenação do autor da

infração e ensejava a desistência ou o desinteresse pela sua realização31.

Esterilizando eventual imprecisão a respeito da origem do procedimento,

discorre PRADO:

A forma acusatória adotada na época, prescindindo de uma investigação anterior, era dominada integralmente pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e produzirem as provas das suas alegações. Tratava-se de um modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão. Neste paradigma processual as partes tinham, via de regra, a disponibilidade do conteúdo do processo,

28 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 29 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58. 30 TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estudo sistemático). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 166. 31 “Não é difícil perceber que tal sistema debilitava em muito a persecução penal, sendo fruto da sociedade liberal e individualista romana. [...] O particular, quando não se desinteressava, encontrava-se desarmado do instrumental mínimo e necessário para desincumbir deste pesado fardo”. JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42.

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competindo ao Estado tão-só o conhecimento e julgamento da ação criminosa, em se tratando de delicta pública

32. [...]

Atualmente, por exemplo, a persecução penal no Brasil é promovida pelo Poder

Executivo – e não pelo Poder Judiciário – através das Polícias Civil e Federal33 e fiscalizada

pelo Ministério Público34.

Retornando à evolução histórica, restou evidenciado à época do império romano

que o procedimento mostrou-se insuficiente para reprimir novas formas de infrações,

possibilitando freqüentemente os inconvenientes de uma persecução inspirada por ânimos

de vingança. A insatisfação propiciou aos juízes concentrarem as funções de julgar e acusar

num mesmo órgão, oportunidade em que começaram a proceder de ofício, caracterizando o

procedimento extraordinário (extra ordinem), o qual, após alterações, originou o sistema

inquisitório35, cujo modelo terá exposição no item seguinte.

No sistema acusatório – antítese do inquisitório – autor e réu figuram na relação

processual em pé de igualdade, sendo o titular da jurisdição órgão imparcial de aplicação da

lei e, assim, sobrepondo-se a ambos36. Portanto, “como decorrência lógica do equilíbrio e

divisão de poderes processuais penais, não há coincidência subjetiva entre o órgão

acusador e julgador”37.

Segundo BADARÓ, sem esta separação não há que se falar em processo

acusatório, tampouco em relação jurídica. O acusado torna-se objeto do processo e não em

sujeito de direitos, o que inviabiliza a existência de um verdadeiro processo:

A característica insuprimível do modelo acusatório, sua conditio sine qua non, é a nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Eliminada a divisão de tarefas não há processo acusatório. Sem tal separação e inviabilizada a existência de uma verdadeira relação jurídica processual, não há que se falar em sujeito de direitos, sendo o acusado convertido em um objeto do processo. Na verdade, sem separação de

32 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 75-76. 33 Art. 144, § § 1º, I, II, III, IV, e 4º, da CF. 34 Art. 129, VII, da CF. 35 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58. 36 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 66. 37 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 38.

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funções e sem relação processual, não há sequer um verdadeiro processo38.

Dentro desse contexto, o julgador não praticava qualquer tipo de interferência na

produção de provas, tarefa que, em verdade, cabia privativamente ao acusador e ao

acusado (partes)39.

Tendo em vista que, aqui, o julgador não exerce qualquer tipo de ativismo

probatório durante o trâmite processual, não carregando conseqüentemente nenhum fardo

acusatório ou probatório, seu estado de ânimo permanece – deveria permanecer –

preservado para conduzir o processo e, ao final, prolatar sua decisão.

A imparcialidade do magistrado na estirpe acusatória resulta, grosso modo, do

seguinte raciocino:

No sistema acusatório, o juiz não tem contato com as partes: o único contato processual que tem é com a pretensão das partes, que conhece através de seus pedidos manifestados no processo, e cuja verossimilhança examina através dos fatos ou circunstâncias provadas no processo40.

Convém identificar que “o processo acusatório, como visto, corresponde a uma

concepção de processo penal em que as partes se encontrem em pé de igualdade e que

deve ser resolvido por um terceiro imparcial, o órgão jurisdicional”41.

Em que pese existir divergência doutrinária em rotular as reais partes integrantes

deste modelo, as ponderações supracitadas sedimentam, pelo menos, seus traços

fundamentais, servindo satisfatoriamente para identificá-lo diante dos demais sistemas

(inquisitório e misto).

Comenta-se, contudo, que os sistemas acusatório e inquisitório são abstrações

ou modelos ideais, inexistindo atualmente suas formas “puras”, pois, em tese, nenhum

legislador estruturaria o processo penal integralmente em seus moldes, fato que

38 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 108. 39 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 234. 40 MALCHER, José Lisboa da Gama. Manual de processo penal: teoria geral e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980, p. 69. 41 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 59.

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possibilitaria várias combinações entre as suas características em diversos ordenamentos

jurídicos42.

Sobre a discussão do estado puro dos sistemas processuais penais,

FERRAJOLI tece distinta consideração:

[...] Embora de fato dessa reconstrução possa resultar um esclarecimento dos nexos funcionais que ligam os diversos elementos de qualquer modelo teórico, na experiência prática estes nunca aparecem em estado puro, mas sempre misturados a outros não logicamente e nem axiologicamente necessários. Isso depende de contingentes e espontâneas dinâmicas histórico-políticas, ou de explícitas escolhas legislativas precárias, ou ainda do fato de que muitos princípios relativos a uma ou outra tradição acabaram se afirmando como universalmente válidos na Idade Moderna, surgindo, portanto, ao menos no papel, em todos os ordenamentos processuais evoluídos: pense-se, por exemplo, o caráter público da acusação em lugar do caráter privado, de origem inquisitória, ou no livre convencimento do juiz, no contraditório e nos direitos de defesa, de ascendência acusatória43.

Embora pertinentes, cuida-se de assertivas um tanto delicadas, podendo levar o

leitor ao pensamento errôneo que seria plenamente aceitável, via de regra, todas as

características inquisitórias em sistemas acusatórios ou vice-versa, dependendo do

ordenamento jurídico de cada Estado, isto é, uma miscelânea processual, a teor do que

preconiza a doutrina44.

Assim, com fulcro nas palavras de PRADO citadas no parágrafo antecedente,

nota-se que cada um deles possui alguns ferrenhos traços que lhes são peculiares e não

podem se coadunar sob pena de anomalia, como, por exemplo, a divisão entre o órgão

acusador e julgador (condição sine qua non da matriz acusatória) no estereótipo inquisitório,

uma vez que a centralização destas funções numa só pessoa é requisito fundamental para a

sua configuração.

42 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 101-102. 43 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 519. 44 “10. Não existe uma compreensão exclusiva e unicamente válida sobre que elementos compõem os sistemas processuais, variando conforme a história dos povos e o enfoque teórico que conferem à questão do comportamento delituoso e seu modo de controle, de sorte que nem sempre coincidem as visões histórica e teórica dos sistemas; 11. é possível, todavia, determinar alguns pontos convergentes, sendo que, relativamente ao sistema acusatório, há, além do pacífico reconhecimento de que se fundamenta na divisão das tarefas de acusar, defender e julgar (princípio acusatório), concordâncias sobre as exigências de publicidade e oralidade;”. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 242.

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Apresentado este sucinto e necessário escorço histórico, vê-se a seguir algumas

características relativas à consagração (publicidade) do sistema acusatório no Brasil, eis

que adotado explicitamente pela Constituição Federal de 198845, muito embora antes dela

vigorasse entre nós um sistema acusatório privado46.

Parte da doutrina, entretanto, não comunga da assertiva a respeito da adoção do

sistema acusatório no Brasil, de modo que a fase prévia representada pelo inquérito policial

estaria incluída na idéia de processo judicial, razão pela qual ter-se-ia um sistema misto:

Não é unânime a conclusão a respeito do real enquadramento do processo penal brasileiro no sistema acusatório ou no sistema misto. Para os defensores da primeira posição, o inquérito policial não se inclui no conceito de processo. Prepondera, portanto, o processo acusatório, visto que os autos de investigação, de coloração inquisitiva, não constituem processo47.

Data venia, assim como defendeu aquele autor, a melhor doutrina também

defende a idéia relativa à eleição do sistema acusatório:

No processo brasileiro adota-se o sistema acusatório. Quanto à fase prévia representada pelo inquérito policial, já vimos que constitui processo administrativo, sem acusado mas com litigantes (após o indiciamento), de modo que os elementos probatórios nele colhidos (salvo as provas antecipadas a título cautelar) só podem servir à formação do convencimento do Ministério Público, mas não para embasar uma condenação48.

Ainda no que pertine à ratificação do esqueleto acusatório pela Constituição de

1988, interessante averbar as plausíveis considerações de CHOUKR, in verbis:

[...] o texto político que nos governa, se não foi absolutamente coerente no todo, na parte que nos interessa é inequivocamente coeso, adotando um aparelho de processual [...] de matriz acusatória, na busca da salutar separação dos papéis a serem atuados na construção da justiça criminal, tocando fundo, inclusive, na própria estrutura das instituições ligadas à política de segurança pública49.

Superado o embate técnico acerca de qual modelo foi instaurado em nosso

ordenamento jurídico, há de se notar que a publicização promovida pela Constituição deu-se

em virtude da titularidade exclusiva outorgada ao Ministério Público para promover a ação

45 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 16. 46 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 130. 47 AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 13. 48 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58-59. 49 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 9.

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penal pública50, bem como pela injeção de alguns princípios inerentes ao protótipo

acusatório no rol de direitos e garantias fundamentais, sendo que os que interessarem à

finalidade da pesquisa (atividade instrutória judicial) serão objeto do próximo capítulo.

Defende-se que a institucionalização do Ministério Público pela Constituição foi

fundamental para “a evolução do processo penal de um sistema acusatório privado para o

salutar sistema acusatório público, onde o Estado se coloca como titular da ação e

resguarda o Juiz para as funções propriamente jurisdicionais”51, De fato, é inegável que o

juiz, ao passar a exercer apenas funções jurisdicionais, tende – deveria – a permanecer

eqüidistante das partes, principalmente do réu.

Nessa gravitação, “ninguém pode ser condenado por crime de ação pública sem

que o Ministério Público o tenha acusado”52. Todavia, caso a ação penal pública não seja

intentada no prazo legal pelo Ministério Público, a Constituição, em seu art. 5º, LIX53, e o

Código de Processo Penal, em seu art. 2954, permitem o ajuizamento de ação subsidiária da

pública através de particulares, sem prejuízo ainda dos casos exclusivamente de iniciativa

privada, previstos em minoria.

Portanto, o monopólio de promover a ação penal pertence privativamente ao

Estado, mediante o Ministério Público, mas existem determinadas infrações penais (crimes

ou contravenções) que a lei tutelou tão-só ao particular a conveniência (princípio da

oportunidade) de promovê-la, sem embargo da possibilidade de desistência (princípio da

disponibilidade), o que nos faz remontar à sua origem histórica, época em que a acusação

era somente privada, não havendo uma acusação oficial como acontece atualmente55.

50 Art. 129, I, da CF – “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. 51 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 130. 52 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 201. 53 “Art. 5º, LIX, da CF – será admitida ação privada nos casos de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. 54 “Art. 29, do CPP – Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo o tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal”. 55 [...] “O fato de a acusação, hoje entre nós, ficar a cargo do Ministério Público não desnatura, pois, o processo acusatório. Este, à evidência, sofreu alterações, ditadas pela evolução dos tempos, aperfeiçoando-se”. [...] OLIVEIRA, Gilberto Callado de. O conceito de acusação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 37.

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Outra questão que chama a atenção é o caráter democrático do processo

acusatório:

O modelo acusatório de processo nada mais é que uma opção política direcionada para um Estado democrático e de direito, tendo como uma de suas conseqüências diretas um novo mapeamento de interesses e valores para o aparato instrumental penal. Entre eles está um reequilíbrio da balança que tem em cada extremidade as idéias de segurança pública e garantias individuais, e que apresenta justamente no rompimento com a dualidade verdade real x verdade material o seu fiel56.

Não obstante, a adoção da aludida base acusatória ao direito processual penal

brasileiro advém – como não poderia ser diferente – da onda democrática que banhou o

Congresso Constituinte de 1987/198857, culminando em 1988 na promulgação da atual

Constituição da República Federativa do Brasil, classificada à época como “Constituição

Cidadã”.

Ventiladas estas curtas, mas pertinentes, considerações referentes ao sistema

de cunho acusatório, cujo modelo será alvo de atenção permanentemente no decorrer da

pesquisa, segue-se o exame dos demais grandes sistemas informadores do processo penal.

1.3 INQUISITÓRIO58

O procedimento acusatório não foi o único a vigorar em toda a história, de tal

maneira que, “como toda evolução humana (e mesmo da natureza em geral) se faz através

da oposição dos contrários, dialeticamente surgiu, posteriormente, o sistema inquisitório,

sob a forte influência do Direito Canônico”59, o qual paulatinamente “passou a dominar toda

ou quase toda a Europa continental”60.

Sobre sua origem, são valiosíssimos os ensinamentos de RANGEL:

O sistema inquisitivo surgiu nos regimes monárquicos e se aperfeiçoou durante o direito canônico, passando a ser adotado em quase todas as legislações européias dos séculos XVI, XVII e XVIII. O sistema inquisitivo

56 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 74. 57 Ob. Cit., p. 62. 58 Ler-se-á comumente sistema inquisitório e inquisitivo como sinônimos. 59 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 60 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34.

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surgiu após o acusatório privado, com sustento na afirmativa de que não se poderia deixar que a defesa social dependesse da boa vontade dos particulares, já que eram estes que iniciavam a persecução penal. O cerne de tal sistema era a reivindicação que o Estado fazia para si do poder de reprimir a prática dos delitos, não sendo mais admissível que tal repressão fosse encomendada ou delegada aos particulares61.

Precisamente, os séculos XIII e XIV marcam o início da predominância do

sistema inquisitório e o século XIX registra seu descarte, pelo menos, na Europa Ocidental

(Continental)62.

Nesse ínterim entre sua ascensão e seu descarte, mais precisamente no século

XV, o protótipo acusatório foi abandonado e, sobretudo, substituído definitivamente pelo

inquisitório. Comenta-se que a decadência ocorrera, principalmente, em razão da criação do

Tribunal do Santo Ofício, ou Tribunal da Inquisição, perdurando este domínio até o século

XIX63.

Sustenta BARROS a predominância do sistema inquisitivo depois da Idade

Média:

[...] excetuado período mais remoto, ou seja, a Antigüidade e a Idade Média, em que se exigia, para os crimes de ação pública, demanda da parte ofendida ou de qualquer outro cidadão, e o sistema era do tipo acusatório, o processo criminal se caracterizou pelo procedimento inquisitivo64.

Com seu surgimento, “passou, então, o juiz a formular a acusação penal e a

perquirir a prova. Desaparece o frágil triangulo processual (actum trium personarum),

formando-se uma relação linear entre juiz e réu”65. Assim, “a concentração de poderes nas

mãos de um único órgão é o seu marco essencial. Perseguir, acusar, e decidir são

atividades exercidas pelo mesmo sujeito: o inquisidor”66.

Escoimado pelo princípio procedat iudex ex officio, todas as atividades

executadas pelo órgão jurisdicional, inclusive a acusação, são realizadas sem provocação.

61 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 45-46. 62 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 81. 63 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 48. 64 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 130. 65 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 42. 66 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Resquícios inquisitórios na Lei nº 9.034/1998. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo, n. 46, p. 117, jan.-fev. 2004.

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Não se fala “sem provocação das partes”, pois, acumulando o juiz as funções

acusadora/julgadora e o acusado sendo apenas objeto do processo, estas

conseqüentemente sequer podem ser qualificadas como tal, porquanto “inconcebível, em tal

sistema, a existência de uma relação jurídica processual”67.

No tocante à instauração do processo de ofício pelo juiz, CINTRA, GRINOVER e

DINAMARCO aludem que tal iniciativa relaciona-se ao processo inquisitivo, donde a

imparcialidade se mostra ausente:

[...] a experiência mostra que o juiz que instaura o processo por iniciativa própria acaba ligado psicologicamente à pretensão, colocando-se em posição propensa a julgar favoravelmente a ela. Trata-se do denominado processo inquisitivo, o qual se mostrou sumamente inconveniente pela constante ausência de imparcialidade do juiz68.

Por conseguinte, tem-se que o juiz não forma seu convencimento mediante as

provas carreadas no processo; na verdade, almeja ele comprovar sua íntima convicção, pois

já emitiu, anteriormente, determinado juízo de valor ao iniciar, ex officio, a ação69.

Nessa esteira, imperioso se faz transcrever ipsis litteris entendimento

concernente à diferença do impulso processual dos dois estereótipos:

[...] no sistema inquisitivo, o juiz-acusador impulsiona o processo desenvolvendo a função acusatória; no processo acusatório, o juiz impulsiona em busca da formação da certeza, imparcialmente, tanto procurando elementos que possam formar uma certeza sobre a pretensão condenatória do autor, como sobre a pretensão absolutória do réu70.

Trata-se, precipuamente, de um modelo processual penal autoritário71 e que

“aparece em todos os ordenamentos nos quais o juiz tem funções acusatórias ou a

acusação tem funções jurisdicionais”72. Cuida-se, aliás, de monopólio funcional jurisdicional

que lhe é peculiar, enquanto que na forma acusatória, como vimos, não se pode admitir de

forma alguma o enfeixe em tela.

67 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 105. 68 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58. 69 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 46. 70 MALCHER, José Lisboa da Gama. Manual de processo penal: teoria geral e processo de conhecimento. Vol. I. Rio de janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1980, p. 69. 71 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 97. 72 Ob. Cit., p. 96.

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31

Em plena harmonia com o exposto no parágrafo anterior, no que se refere ao

modelo processual penal autoritário, a doutrina brasileira leciona no mesmo diapasão e

afirma que “o sistema inquisitório predomina historicamente em países de maior repressão,

caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a hegemonia estatal

em detrimento dos direitos individuais”73.

Como corolário disso, o processo é secreto, escrito e nenhuma garantia se

confere ao acusado, figurando numa situação de subordinação que se transfigura e se

transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito74. Enfim, “é considerado

primitivo, já que o acusado é privado do contraditório, prejudicando-lhe o exercício de

defesa”75.

Averbe-se, por oportuno, que “sua principal meta é a busca de uma verdade

histórica76, não importando, para tanto, os meios e os modos utilizados para o cumprimento

de tal mister”77, “pois nele prevalece o objetivo de realizar o direito penal material”78. Um

exemplo simplório disso é a possibilidade de o juiz submeter o acusado a torturas com a

finalidade de obter sua confissão, que neste sistema é considerada a “rainha das provas”79,

sendo mais do que suficiente para condená-lo.

Constata-se diante de tudo o que já foi dito que, “nessa postura metodológica,

ganha importância o papel do juiz na colheita do material probatório, em nome de um

tratamento técnico da questão criminal e do ‘interesse público’”80. “Em linguagem

73 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58. 74 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34 75 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 28. 76 “Por verdade histórica entende-se a reconstrução de um acontecimento pretérito. Esta é, aliás, a tônica do processo penal. Embora a verdade, usualmente indicada pela doutrina, como material dificilmente seja atingida, os interesses públicos característicos do processo penal – poder-dever punitivo e liberdade jurídica –, são mais bem conjugados ao se estabelecer como meta a maior aproximação possível e permitida da exatidão fática”. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Resquícios inquisitórios na Lei nº 9.034/1998. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCrim, São Paulo, n. 46, p. 117, jan.-fev. 2004. 77 Ob. Cit., p. 117. 78 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 104. 79 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 58. 80 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 46.

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contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança pública no exercício

do magistério penal”81.

De outro norte, caso se deixe de analisá-lo sob o enfoque histórico para se

vislumbrar suas raízes no direito processual brasileiro, verificar-se-á indubitavelmente que o

atual Código de Processo Penal, elaborado em 1941, manteve fragmentos do molde em

discussão, muito embora àquela época aspirava-se instituir plenamente o protótipo

acusatório no processo penal pátrio.

É exatamente o que se sustenta diuturnamente:

Em 1941, com o advento do atual Código de Processo Penal, pretendeu-se a consolidação do um sistema acusatório, todavia ainda com forte tendência inquisitorial, questão completamente compreensível em razão do momento histórico de seu surgimento, pois estávamos em pleno momento ditatorial no Brasil e com fortes tendências mundiais a governos totalitários. Há que se ressaltar que de 1937 a 1945 o Brasil submeteu-se ao regime do Estado Novo, com fortes ligações com o Estado fascista italiano. Não sem razão, o Código de 1941 inspirou na legislação fascista italiana e adotou postulados inquisitoriais na nossa legislação processual82.

No entanto, de acordo com a Constituição Federal de 1988, “não há, em nosso

processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de

acusar e a função jurisdicional”83.

Após a construção científica relativa ao em questão, identifica-se sem esforço

que sua forma procedimental é consideravelmente antagônica à de cunho acusatório.

1.4 MISTO

O sistema misto, “inaugurado com o Code d’Instruction Criminelle (Código de

Processo Penal) francês, em 1808, constitui-se pela junção dos dois modelos anteriores,

tornando-se, assim, eminentemente bifásico”84.

81 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 105. 82 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 234. 83 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 67. 84 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29.

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Como bem lembrado nas considerações iniciais do capítulo, AQUINO aduz que

“corresponde ele ao temperamento dos dois outros sistemas e, embora possa ser detectada

sua sintomatologia no direito imperial, foi historicamente adotado e sistematicamente

organizado pelo Código de Napoleão, de 1808”85.

Sublinha-se alguns importantes motivos que ensejaram seu advento:

[...] O descontentamento com as formas essencialmente inquisitórias, expresso durante o Iluminismo e posteriormente concretizado na legislação revolucionária francesa, traduziu uma mudança radical de rota na tentativa de se buscar, no sistema inglês, inspiração para mudanças da legislação processual penal até então predominante na Europa Continental86.

Mesmo com o fracasso da inquisição e a paulatina aceitação da matriz

acusatória, o Estado ainda assim mantinha a titularidade absoluta do poder de punir, porém

não podia abandoná-la em mãos de particulares. Logo, tornou-se necessário repartir o

processo em fases e atribuir as atividades de acusar e julgar a órgãos distintos. Diante

disso, a acusação continua como monopólio estatal, mas exercida por intermédio de um

terceiro distinto do juiz87. Pela necessidade desta divisão, surge o Ministério Público88 (fato

relevante lembrado até hoje como um marco histórico do processo penal).

Ora, se o referido tipo de processo penal é composto pelo liame entre os dois

esqueletos anteriormente explicitados, só resta identificar, ao que parece, a ordem

cronológica de aplicação e a abrangência de cada um daqueles em seu âmbito, cuja

conjuntura procedimental foi chamada de “monstro” por FERRAJOLI89.

85 AQUINO, José Carlos G. Xavier de. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 13. 86 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 41. 87 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 69, sem grifo e sublinhado no original. 88 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 51. 89 “Direi antes que, se o processo misto do tipo francês e italiano, nascido da justaposição de uma instrução inquisitória e de um juízo acusatório, é um ‘monstro’, não menos monstruoso é o processo anglo-saxão, também ele fruto de uma híbrida união entre a publicidade da acusação e dos órgãos a ela designados, que é de derivação inquisitória, e sua discricionariedade, que é de ascendência acusatória. É de fato completamente absurda a figura de um acusador público – pouco importa que seja eleito – não sujeito à lei e dotado do poder de escolher arbitrariamente quais violações penais são merecedoras de perseguição ou ainda de predeterminar a medida da pena pactuando com o imputado”. [...] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 524.

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Com arrimo na boa doutrina, inicia-se a identificação:

1ª) instrução preliminar: nesta fase, inspirada no sistema inquisitivo, o procedimento é levado a cabo pelo juiz, que procede às investigações, colhendo as informações necessárias a fim de que se possa, posteriormente, realizar a acusação perante o tribunal competente; 2ª) judicial: nesta fase, nasce a acusação propriamente dita, onde as partes iniciam um debate oral e público, com a acusação sendo feita por um órgão distinto do que irá julgar, em regra, o Ministério Público90.

Conforme grifado outrora, falou-se em processo que foi divido em duas fases e

não em procedimento. É de suma importância ter-se isso em mente para se raciocinar mais

tarde.

Em face do cenário apresentado, observa-se que a primeira fase é

essencialmente inquisitiva e a segunda, obviamente, adota a forma acusatória, haja vista

que “o critério definidor de um sistema ou outro seria a ‘separação das funções de acusar e

julgar’, presente apenas no modelo acusatório”91.

No entanto, reitera-se que a divisão é realizada sob o prisma histórico, podendo

o sistema misto sofrer particulares alterações no caso concreto em certos ordenamentos

jurídicos, como pode ocorrer também com o acusatório e o inquisitório, cuja compilação

funcional já foi pauta de discussão, quando se disse que alguns pressupostos genuínos não

se podem coadunar.

Tratando-se especificamente de Brasil, se demonstrou alhures que alguns

pesquisadores entendem ser o estereótipo empregado ao nosso direito processual penal,

mesmo sob a égide da atual Constituição. Para tanto, atribuem a fase investigativa –

pautada pelo inquérito policial – ao conceito de processo.

Antes mesmo da promulgação da atual Carta Magna havia o entendimento de

que vigorava no país o procedimento misto. Aqui, abre-se parênteses para o respeitável

registro assentado por TUCCI em 1980:

Alastrando-se pela Europa e, por igual, pelos países americanos de origem latina, esse novo tipo procedimental, denominado misto, foi também, obviamente, implantado no Brasil, em que a persecutio criminis se desenvolve em duas fases, a saber: a) a primeira, realizada, quase toda

90 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50, em negrito no original. 91 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 58.

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inquisitorialmente por agente estatal encarregado da investigação criminal, em regra pertencente à polícia judiciária, para a constatação da prática delitiva ou contravencional e da respectiva autoria; e b) a segunda, denominada de ação penal, dirigida por órgão do Poder Judiciário, e com a presença dos órgãos técnicos da acusação e da defesa, postos em contradição recíproca, num procedimento público e, ainda que parcialmente, informado pela oralidade92.

Para fundamentar raciocínio contrário, colaciona-se entendimento segundo o

qual a contaminação do atual sistema brasileiro só seria possível se a investigação

ocorresse perante o juízo (Juizado de Instrução):

[...] somente quando a investigação for realizada diretamente perante o juízo (Juizado de Instrução) será possível vislumbrar contaminação do sistema, sobretudo quando o mesmo juiz da fase de investigação for reservada a função de julgamento. Não é esse o caso brasileiro93. (grifo nosso)

Conforme se comenta adiante, duas atividades procedimentais realizadas no

processo acusatório brasileiro também corroboram para essa acirrada discussão (confusão),

a saber: a) a inserção da prova produzida na fase investigatória aos autos do processo

judicial; e b) a interferência do juiz em procedimentos praticados no caderno policial.

No que toca à inserção da prova produzida na fase investigatória aos autos do

processo judicial (primeira hipótese), comenta-se brevemente:

Maior problema existe quanto à prova pericial produzida na fase policial. Admite-se sua realização como prova definitiva quando há urgência, postergando-se o contraditório para momento posterior, em que as partes poderão contestar o laudo, elaborar quesitos suplementares, pedir esclarecimento aos peritos94.

A segunda menção – interferência do juiz em procedimentos praticados no

caderno policial – sofre contundente crítica doutrinária:

[...] O magistrado deve encontra-se, portanto, distante daquilo que poderíamos chamar de objeto da investigação e, mais do que isto, sua formação de convencimento não se deve deixar levar pelos informes colhidos ainda na fase da preparação da ação penal. E, muito embora desejável, a prática desmente a desvinculação, estimulando o lado oposto da moeda95.

92 TUCCI, Rogério Lauria. Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 79. 93 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 11. 94 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 89-90. 95 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 39, em itálico no original.

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É consabido que a fase investigatória se realiza através de procedimento

administrativo de competência das polícias judiciárias – e não do juiz, como no juizado de

instrução (sistema misto) – que carece das mesmas prerrogativas processuais e

constitucionais inerentes ao processo judicial, como, por exemplo, contraditório, ampla

defesa, publicidade etc., sendo o indiciado apenas objeto da investigação e não de

acusação.

Para MARQUES, por exemplo, o inquérito policial é um procedimento de caráter

inquisitivo e não um instrumento para dar a cada um o que é seu, como o processo:

[...] O inquérito policial não é um processo, mas simples procedimento. O Estado, através da polícia, exerce um dos poucos poderes de autodefesa que lhe é reservado na esfera de repressão ao crime, preparando a apresentação em juízo da pretensão punitiva que na ação penal será deduzida através da acusação. O seu caráter inquisitivo é, por isso mesmo, evidente. A polícia investiga o crime para que o Estado possa ingressar em juízo, e não para resolver um lide, dando a cada um o que é seu96.

Todavia, há quem diga que o inquérito sequer é procedimento, em virtude de lhe

faltar característica essencial: “a formação por atos que devam obedecer a uma seqüência

pretederminada pela lei, em que, após a prática de um ato, passa-se à do seguinte até o

último da série, numa ordem a ser necessariamente observada”97.

Quer seja o inquérito policial um procedimento, quer não, o importante é não

confundi-lo com processo judicial.

Veja-se, então, que o impasse de opiniões relaciona-se à primeira fase, sendo o

divisor de águas para compreensão da celeuma. Para uns ela atine ao processo e, para

outros, seria mero procedimento investigatório de competência do Poder Executivo quando

se tratar de infrações98 de alçada pública (condicionada ou incondicionada).

Por outro lado, fala-se que o sistema acusatório vigente no Brasil não é puro em

sua essência, eis que, além de conter vários resíduos inquisitórios na legislação ordinária

processual, o caderno inquisitivo é juntado os autos do processo judicial depois de

concluído. Nesse trilho, não discrepa a opinião a seguir:

96 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2000, p. 164. 97 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 70. 98 Crimes ou contravenções penais.

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O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são verdadeiros99.

Como se isso não fosse o bastante para dar azo à celeuma, há quem lembre

que o caderno indiciário serve para condução do processo pelo juiz, senão vejamos:

[...] Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer perguntas que entende necessárias. Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade processual. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito100.

Enfim, constata-se que no Brasil não incumbe ao juiz dirigir a fase investigativa

como no juizado de instrução e, também, que, em virtude do caderno indiciário se tratar de

mero procedimento administrativo, não se pode qualificá-lo como processo judicial. Além

disso, afere-se ainda que esse sistema é composto pelas ferrenhas características

imanentes aos outros dois procedimentos que já mereceram nossa atenção (acusatório e

inquisitório).

99 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 51. 100 Ob. Cit., p. 51.

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2 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS E O SISTEMA ACUSATÓRIO –

MECANISMOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL EM FACE DO PODER (MONOPÓLIO)

ESTATAL

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Defende-se muito, mormente em sede doutrinária, que não há conformidade

entre a atual ordem constitucional proveniente da Carta Magna de 1988 e o Código de

Processo Penal de 1941, vigente desde 1º/01/1942 (art. 810), porquanto “o modelo

constitucional é acusatório, em contraste com o CPP, que é nitidamente inquisitório”101.

Via de regra, trata-se de incongruência inadmissível em nosso ordenamento

jurídico, pois, uma vez em vigor, “a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem

e se interpretam todas as normas infraconstitucionais”102.

Antes, é preciso digerir muitas questões para chegar-se à aludida conclusão.

Algumas características que motivaram referida dissonância (constitucional x

infraconstitucional) serão expostas para dar-se continuidade ao raciocínio realizado

inicialmente, de modo que intimamente enraizadas ao assunto central: a atividade

instrutória judicial.

É agora que determinados princípios entram em cena, visto serem também

responsáveis pela mudança de paradigma processual penal – como bem apontado no item

1.2 do capítulo antecedente (acusatório) –, englobando uma série de direitos e garantias

individuais fundamentais ao processo penal de eficácia e aplicação imediata.

Mas o que seriam direitos e garantias fundamentais?

Em suma, “os direitos fundamentais seriam declarações da imprescindibilidade

de um rol de situações jurídicas de vantagem que corresponderia a um núcleo mínimo de

101 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 185. 102 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 285.

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direitos necessários, essenciais e fundamentais para o desenvolvimento do homem”103. Em

contrapartida, “as garantias seriam os mecanismos de proteção de tais direitos”104.

Para melhor visualização: “os direitos são bens e vantagens conferidos pela

norma, enquanto as garantias são meios destinados a fazer valer esses direitos, são

instrumentos pelos quais se asseguram o exercício e gozo daqueles bens e vantagens”105.

No direito nacional, os direitos e garantias fundamentais receberam demasiada

atenção do legislador constituinte. Estão classificados no Título II da Constituição Federal,

disciplinados nos 78 (setenta e oito) incisos do art. 5º. Diga-se de passagem, nenhuma

Carta foi tão generosa neste aspecto.

Na verdade “a maioria dessas regras, verdadeiros princípios da ciência

processual, são mesmo auto-aplicáveis, porque representativas de direitos fundamentais,

prescindindo de disciplina processual ordinária para serem implementadas”106. Some-se a

isso o fato que “todo o direito processual tem suas linhas fundamentais traçadas no direito

constitucional, que lhe fixa as bases, em decorrência de se constituir em ramo do direito

público”107.

Para evitar delongas e propiciar ao leitor apenas uma certa idéia do valor e

abrangência do vocábulo “princípio”, expor-se-á restritamente seu conceito para, aí então,

se tocar naqueles relacionados à temática central.

Quanto à sua definição, REALE preleciona:

Restringindo-nos ao aspecto lógico da questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis

108.

103 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 13. 104 Ob. Cit., p. 13. 105 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 412. 106 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 68. 107 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 31. 108 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 303.

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Abre-se também parênteses para aduzir que os princípios possuem status de

norma jurídica, assim como as regras:

Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram que conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras109.

E mais: “princípios são as idéias fundamentais que constituem o arcabouço do

ordenamento jurídico; são os valores básicos da sociedade que se constituem em princípios

jurídicos”110.

Fala-se ainda que, “em uma ordem democrática, os princípios freqüentemente

entram em tensão dialética, apontando direções diversas”111. Não por acaso, esta premissa

vai a encontro (não de encontro) do que se pretende demonstrar, na medida em que alguns

dos que serão explicitados a seguir foram injetados em nosso ordenamento jurídico graças

aos ventos democráticos que culminaram com a promulgação da Constituição Federal em

1988, resultando na publicização do sistema acusatório (fato relevante lembrado no capítulo

anterior).

Tecido o conceito, grifa-se a definição daqueles imbuídos na Constituição

(princípios constitucionais):

Os princípios constitucionais são normas presentes na Constituição que se aplicam às demais normas constitucionais. Isso porque são dotados de grande abstratividade, e têm por objetivo justamente imprimir determinado significado á demais normas. Daí resulta o que se denomina sistema constitucional, que impõe a consideração da Constituição com um todo coeso de normas que se relacionam entre si (unidade da Constituição). Os princípios constitucionais, portanto, servem de vetores para interpretação válida da Constituição112.

109 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 292-293. 110 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 7. 111 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 293. 112 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 100.

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41

Por conseguinte, BONAVIDES exara que os princípios constitucionais situam-se

no ponto mais alto da escala normativa, razão pela qual são classificados como a norma das

normas:

Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmo, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas113.

Facilitada a assimilação do conteúdo com o resumo esposado, serão analisados

abaixo determinados direitos e garantias fundamentais que regem o processo penal

hodierno. Reitera-se que alguns deles sugiram no ordenamento jurídico brasileiro

concomitantemente com a implantação da nova sistemática processual penal, por estarem

acoplados à Lei Maior.

2.2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL

É pacífico que a origem histórica do princípio do devido processo legal provém

do art. 39 da Magna Carta, outorgada na Inglaterra em 1215 por João Sem Terra, que

estabelecia:

Art. 39. Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou e harmonia com a lei do país114.

Inicialmente utilizava-se a expressão the law of the land, a qual foi alterada em

1355 quando o Rei Eduardo III foi compelido pelo parlamento a aceitar um Estatuto

referente ao devido processo legal (due process of law)115.

113 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 289-290. 114 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 73. 115 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 7.

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Seguem os fatos que ensejaram seu advento:

[...] Ascendendo ao trono de seu irmão, Ricardo Coração de Leão, o príncipe e déspota normando era ignorante e afastado do povo inglês. A idéia de que seu poder vinha diretamente de Deus já não impressionava mais: em toda a Grã-Bretanha brotavam insatisfações, por parte de quem podia manifestar-se, ou seja, os senhores feudais e o alto clero. A situação de João sem Terra, no trono, se deteriorava e enfraquecia, até que, em 1215, sob pressão, e temeroso de perder o trono, outorgou a Carta, em que se concediam algumas liberdades aos baronetes e aos bispos. Redigida em latim, tinha 63 capítulos, mais o preâmbulo. O poder real, divino e incontrastável, estava, agora, submetido à força da lei, cuja observância a todos se impunha. Foi uma notável virada de história116.

Assim, “entende-se, com essa fórmula, o conjunto de garantias constitucionais

que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes

processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição”117 ou, ainda,

como proteção ao cidadão contra o arbítrio do Estado, “proibindo a este exercer o seu direito

de punir senão por meio de um processo judicial legítimo, concedendo ao acusado o direito

de oferecer resistência, produzir provas e influenciar no convencimento do Julgador”118.

Além disso, “pressupõe o contraditório (paridade de armas, a defesa se

pronunciar sempre depois da acusação, etc.), a garantia da ampla defesa (defesa técnica e

auto-defesa), o duplo grau de jurisdição, a proibição das provas ilícitas, etc., etc., etc”119.

Respeitá-lo é, portanto, um dos corolários do Estado Democrático de Direito120.

Esclarece-se que o princípio somente foi incorporado expressamente no Brasil

por intermédio do art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, tendo, assim, o legislador

constituinte inovado em relação às antigas Cartas121, quando estabeleceu que “ninguém

será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Considera-se uma ”cláusula de segurança” do sistema jurídico, havendo

inclusive dois distintos aspectos ínsitos em sua órbita: a) o material; e b) o formal122.

116 VARGAS. José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 84. 117 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 82. 118 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 21. 119 Ob. Cit., p. 122. 120 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 130. 121 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 94. 122 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 39.

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Com espeque nas palavras do sobredito autor, se vê as peculiaridades dos dois

institutos:

[...] a) O devido processo legal em sentido material ou substancial (substantive due process of law) refere-se aos direitos materiais de garantias fundamentais do cidadão, representado, portanto, um garantia na medida em que protege o particular contra qualquer atividade estatal que, sendo arbitrária, desproporcional ou não razoável, constitua violação a qualquer direito fundamental. [...] b) Por seu turno, o devido processo legal formal, ou em sentido processual (procedural due process of law), tem como conteúdo certas garantias de natureza processual, conferidas às partes tanto no trâmite do processo quanto no que diz respeito á sua relação com o Poder Judiciário123.

Ademais, o devido processo legal “está vinculado diretamente à depuração do

sistema acusatório, mormente quando conjugado com a regra do art. 129, inc. I, do novo

texto constitucional”124. Com efeito, o princípio está adstrito também às normas que

“sistematizam e asseguram a independência do Poder Judiciário, em prol de sua

imparcialidade e neutralidade na prestação jurisdicional e aquelas outras que, igualmente,

tutelam a autonomia e independência funcional dos órgãos do Ministério Público”125.

Fazendo-se esta leitura, reporta-se novamente aqui ao item 1.2 para reiterar que

a regra do art. 129, I, da CF está umbilicalmente ligada à publicidade do sistema acusatório

no Brasil, na qual tutelou-se privativamente ao Ministério Público a promoção da ação penal

pública, separando as funções de acusar e julgar.

É viável dizer que, a partir da sua instauração, todos puderam se beneficiar da

tutela legal contra o arbítrio do Estado. Hoje o princípio se desdobra num leque de outros

direitos protegidos de maneira específica pela Constituição126.

2.3 A PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE127 E O IN DUBIO PRO REO128

123 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 39-40. 124 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 318. 125 Ob. Cit., p. 318. 126 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 36. 127 A denominação presunção de não-culpabilidade ou de inocência é controversa na doutrina e jurisprudência brasileira. Optou-se pela expressão “não-culpabilidade” porque a Constituição declara que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. 128 A dúvida interpreta-se a favor do acusado.

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Comenta-se que “desde os primórdios do processo penal acusatório vigorava a

denominada presunção de inocência”129.

A garantia (princípio) remonta ao Direito Romano (escritos de Trajano), mas fora

seriamente atacada e até invertida na inquisição da Idade Média quando a dúvida gerada

pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, resultando um juízo de

semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve, tornando-se, ao contrário,

presunção de culpabilidade e não de inocência130.

O princípio “permaneceu assim ofuscado até o final do século XVIII quando,

simultaneamente com outros postulados jurídicos, veio a ser efetivamente afirmado, não

tardando a ocupar uma posição de destaque”131, sendo “referenciado pela primeira vez no

bojo do Due Process of Law, na declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 2 de

junho de 1766”132.

Ato seguinte, o art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de

1789, prescreveu que toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarado

culpada, preceito preconizado ainda no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos

Humanos da ONU, de 1948133. Este último preceito, aliás, foi objeto da Assembléia Geral de

16/12/1966, quando formalizou-se o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que

teve anuência do Brasil em 06/07/1992 pelo Decreto nº 592, conforme Carta de Adesão

depositada em 24/01/1992.

Em 22/11/1969 a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São

José da Costa Rica) também assentou o princípio134, entretanto o Brasil só depositou a carta

de adesão à convenção em 25/09/1992, sendo ela incorporada (ratificação) à legislação

nacional pelo Decreto 678, de 06/11/1992, tendo o Ministro Gilmar Mendes, atual Presidente

do STF, exposto recente entendimento de que os tratados de direitos humanos subscritos

129 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 280. 130 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 187. 131 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 176. 132 Ob. Cit., p. 176. 133 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 22. 134 “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes condições mínimas [...]”. SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 176.

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pelo Brasil possuem feição supralegal135, isto é, situam-se hierarquicamente em nível

superior à legislação infraconstitucional (legalidade) e inferior à Constituição.

O princípio “deita raízes no movimento filosófico-humanitário chamado

“iluminismo”, ou Século das Luzes, que teve à frente, dentre outros, o Marquês de Beccaria,

Voltarie, Montesquieu, Rousseau”136. Há quem diga que o Código de Processo Penal

brasileiro também adotou, de início, a presunção de culpabilidade (e não de inocência)137.

Acontece que a presunção de não-culpabilidade (ou de inocência) somente

alcançou status constitucional quando a nossa Magna Carta trouxe imbuída em seu bojo a

seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença

penal condenatória” (art. 5º, LVII).

Enfatiza-se sua dupla aplicação:

Como amplamente reconhecido pela doutrina, a regra da presunção de inocência tem dupla aplicação. A primeira relaciona-se ao tratamento processual e social a ser dispensado ao réu que, para todos os efeitos e perante todos, deve ser considerado inocente até que a condição resolutiva representada pelo trânsito em julgado da sentença condenatória autorize tratamento diverso. Nesse sentido, a regra dirige-se, também, ao julgador a quem cabe o respeito estrito à imparcialidade operativa, ficando, pois, proibido de realizar qualquer ato indicativo de adesão prévia à tese acusatória. A segunda, por seu turno, está associada ao âmbito probatório que, para muitos, se relaciona com a fixação do ônus de provar imposto á acusação. Caberia a esta, portanto, demonstrar a presença de requisitos objetivos e subjetivos ensejadores do reconhecimento da prática de uma infração penal, e não ao réu, o encargo processual de provar a sua inocência138. (grifo nosso)

Denota-se, com efeito, que a primeira aplicação interfere no tratamento do réu

durante o trâmite processual, devendo o juiz manter-se imparcial mesmo frente à acusação

articulada. Assim, deve considerá-lo inocente até o trânsito em julgado de uma possível

sentença condenatória, pois agora “não mais visto como um objeto do processo, mas sim

um sujeito de direitos da relação processual”139.

135 Ver Recurso Extraordinário (RE) n.º 466.343/SP. 136 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29. 137 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 6. 138 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 147-148. 139 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 27.

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A segunda aplicação refere-se ao campo probante, cuja repercussão também é

ministrada por ZILLI:

E é justamente a acepção probatória da presunção de inocência que toca profundamente a temática da iniciativa instrutória. De fato, o discurso doutrinário é uníssono ao reconhecer como imperativa a absolvição na hipótese de persistência de dúvida da mente do julgador140. (grifo nosso)

Some-se a isso a atenção de GOMES, ao se referir sobre natureza jurídica

(extrínseca e intrínseca) do princípio em questão:

[...] do ponto de vista extrínseco (formal), destarte, no Brasil, o princípio da presunção de inocência configura um direito constitucional fundamental, é dizer, está inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais da pessoa (art. 5.º). Do ponto de vista intrínseco (substancial), é um direito de natureza predominantemente processual, com repercussões claras e inequívocas no campo probatório, das garantias (garantista) e de tratamento do acusado. Cuida-se, por último, como não poderia ser diferente, de uma presunção iuris tantum, é dizer, admite prova em sentido contrário141. (grifo nosso)

Valioso, por ora, tecer considerações também a respeito do princípio do in dubio

pro reo, uma vez que “ambos são manifestações ou espécies do gênero favor rei”142.

A presunção de inocência é uma presunção juris tantum que vigora desde a

deflagração do processo penal e que, para ser desvirtuada, requer atividade probatória

suficiente da autoria do crime; já o in dubio pro reo é aplicável depois da produção de provas

no processo, vedando a condenação do réu em caso de dúvida, mas isso após a realização

da atividade probatória143 – principalmente a produção de provas pelo acusador, a quem

incumbe provar a culpa do acusado, cuja inocência se presume.

Conseqüentemente, parece uma tarefa simples concluir que, como o ônus da

prova pertence à acusação, seja na ação pública, seja na ação privada, mas não tendo o

acusador comprovado nos autos suas alegações por ausência de provas, a absolvição do

réu pelo juiz seria a única medida a se impor – conforme preceitua o princípio do in dubio

pro reo –, sendo defeso ao julgador praticar qualquer ativismo probatório que implique

posteriormente em sua condenação. Contudo, na prática forense isso não é bem assim,

140 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 148. 141 GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 109, em itálico no original. 142 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 48, em itálico no original. 143 Ob. Cit., p. 48.

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haja vista a liberdade dada ao magistrado pelo art. 156 do CPP, dispositivo que consagra –

ainda – o princípio da verdade real (princípio inquisitivo estritamente enraizado à produção

de prova judicial, conforme será visto no próximo capítulo).

Ainda no que atine ao in dubio pro reo, massifica-se que a absolvição do

acusado deve obrigatoriamente ser prolatada quando sua culpabilidade não for suficiente

demonstrada:

Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução de incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento (não condenar o réu sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada). A única certeza exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade, necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. Do contrário, em não sendo alcançado esse grau de convencimento (e liberação de cargas), a absolvição é imperativa144.

E diga-se mais: “parte da doutrina entendeu que esse preceito só possibilita a

prisão durante o processo se tiver natureza cautelar; custódia sem essa natureza

representaria indevida antecipação da pena”145.

Não destoam as ponderações de TOURINHO FILHO, no sentido de que a prisão

do réu antes do trânsito em julgado da sentença condenatória é cabível tão-só a título de

cautela, sob pena de antecipação da pena:

[...] Sendo o homem presumidamente inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória implicaria antecipação da pena, e ninguém pode ser punido antecipadamente, antes de ser definitivamente condenado, a menos que a prisão seja indispensável a título de cautela146.

Ao relacionar o princípio de submissão à jurisdição e o princípio da presunção de

inocência, concluiu-se que a prova apta a incriminar alguém deve ser encontrada por

intermédio da jurisdição, caso contrário ninguém poderá ser considerado culpado de alguma

prática delituosa:

Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada

144 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 520. 145 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 342. 146 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 29.

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mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a (sic) pena147.

Como consectário lógico, “a culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é

a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que forma o objeto

do juízo”148.

2.4 A IGUALDADE PROCESSUAL (PARIDADE DE ARMAS ENTRE AS PARTES)

O princípio da igualdade em nosso ordenamento jurídico emana do caput do art.

5º da Constituição da República de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

A propósito, é importante que se diga que “a noção de igualdade, como a de

liberdade, é fluída, variável. Cada credo, cada Estado, cada ideologia acaba externando-a

de forma diversa”149.

De qualquer forma, o que precisamos é esmiuçar alguns fatores relativos à

igualdade que tenham influência no âmbito processual (igualdade processual) para, em

segundo lugar, verificar sua aplicação material (dinâmica) e não só meramente formal

(estática)150.

De efeito, define-se: “a igualdade processual é um desdobramento do princípio

da isonomia ou da igualdade (art. 5º, caput, da CF), reconhecida com verdadeira medula do

devido processo legal”151.

147 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 505. 148 Ob. Cit., p. 506. 149 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 49. 150 Sobre igualdade material e formal ver GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1985, p. 12. 151 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 50, em itálico no original.

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Apoiando-se na lição de FERNANDES, pode-se verificar a existência de dois

sentidos de manifestação da igualdade processual, quais sejam:

1.ª) como exigência de mesmo tratamento aos que se encontrem na mesma posição jurídica no processo, como, por exemplo, o mesmo tratamento a todos os que ostentem a posição de testemunha, só se admitindo desigualdades por situações pessoais inteiramente justificáveis e que não representem prerrogativas inaceitáveis; 2.ª) como exigência de igualdade de armas no processo para as partes, ou par condicio, assegurando-se às partes equilíbrio de forças; no processo penal, igualdade entre Ministério Público, ou querelante, e acusado152.

Ao que se propôs pesquisar, apenas a segunda manifestação – paridade de

armas entre as partes – será objeto de estudo, visto identificar-se com o equilíbrio específico

entre acusação e defesa.

Segundo GRINOVER, “entende-se, modernamente, por par condicio ou

igualdade de armas, o princípio de equilíbrio de situações, não iguais mas recíprocas, como

são, no processo penal, as dos ofícios de acusação e da defesa”153.

Isso porque é cediço que o processo penal democrático possui estrutura

dialética angular ou triangular (autor, juiz e réu) e não linear (horizontal), fato que

sacramenta as vigas mestras do sistema acusatório. Ao juiz incumbe exercer a função de

julgar, despindo-se, então, da iniciativa da persecução penal154. Tanto é que o juiz não é

parte, razão pela qual mantém-se eqüidistante delas (ou, ao menos, deveria).

Dessa forma, na justaposição processual temos, de um lado, a acusação e, de

outro, a defesa, esta última representando o acusado/denunciado (réu) – lembra-se que no

processo não há que se falar em indiciado (denominação atribuída no inquérito policial).

Assim, a acusação deduzirá sua pretensão em juízo e o réu, por meio da defesa, resistirá ao

direito pretendido.

Muito bem.

152 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 50. 153 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1985, p. 13. 154 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 33.

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Se é certo que essa igualdade é relativa e não absoluta, sofrendo

temperamentos especialmente pelo principio do favor rei em favor do acusado155-156,

também é certo que, diferentemente do processo civil, donde prevalecem relações entre

particulares, no processo penal o litígio põe o particular, na maioria das vezes, contra um

órgão do Estado (Ministério Público), o qual, sabe-se, detém toda uma estrutura suficiente

para a promoção do jus puniendi (direito de punir).

Sob pena de desigualdade, torna-se fundamental que a defesa do réu tenha

habilitação técnica:

[...] Sendo acusatório, deve haver uma igualdade entre as partes. Sem essa igualdade de condições, não haverá equilíbrio entre elas, e a ausência de equilíbrio implicaria negação da Justiça. Note-se, por exemplo, que o réu não pode defender-se a si mesmo, salvo se tiver habilitação. É como soa o art. 263 do CPP. Se fosse possível a defesa a cargo de pessoa sem habilitação, defesa e acusação ficariam desniveladas, e a contraposição ou possibilidade dialética entre as partes tornar-se-ia impossível157.

Prima facie, nada parece mais sensato e justo do que o réu possa utilizar-se do

seu direito à defesa técnica frente a um órgão técnico como é o Ministério Público.

Entretanto, veremos no desaguar do trabalho se a interferência do magistrado no campo

probatório, sem provocação, poderá mitigar a igualdade processual entre as partes.

2.5 O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA

O princípio do contraditório “decorre do brocardo romano audiatur et altera

pars158 e exprime a possibilidade, conferida aos contendores, de praticar todos os atos

tendentes a influir no convencimento do juiz”159, o qual, “por força de seu dever de

155 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 50. 156 “O princípio do favor rei é a expressão máxima dentre de um Estado Constitucionalmente Democrático, pois o operador do direito, deparando-se com uma norma que traga interpretações antagônicas, deve optar pela que atenda ao jus libertatis do acusado”. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 32. 157 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 18. 158 Que a parte contrária seja também ouvida. 159 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 19.

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imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas eqüidistante delas: ouvindo uma, não pode

deixar de ouvir a outra”160.

Isso porque “a bilateralidade da ação gera a bilateralidade do processo. Em todo

processo contencioso há pelo menos duas partes: autor e réu”161. No processo penal, a

defesa do réu ocorre sob dois aspectos: defesa técnica e autodefesa.

Para visualizar-se a importância do direito de defesa, colaciona-se a salutar

ponderação:

A nomeação de um defensor técnico ao réu visa exatamente garantir o equilíbrio na relação jurídico-processual, onde as partes (autor e réu) ficam no mesmo pé de igualdade, mantendo uma perfeita harmonia entre os bens jurídicos que irão se justapor (e não contrapor): direito do Estado de punir e proteção dos direitos e garantias do acusado

162.

A defesa técnica “é sem dúvida indisponível, na medida em que, mais do que

garantia do acusado, é condição da paridade de armas, imprescindível à concreta atuação

do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz”163.

Por conseguinte, alega-se que o direito à defesa e ao contraditório está inserto

no sistema acusatório, o que não acontece no sistema inquisitório:

[...] A defesa, que por tendência não tem espaço no processo inquisitório, forma, portanto, o mais importante instrumento de solicitação e controle do método de prova acusatório, consistente precisamente no contraditório entre hipótese de acusação e hipótese de defesa e entre as respectivas provas e contraprovas164.

Logo, “em todo o processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora este

princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação

penal, goza do direito “primário e absoluto” da defesa”165. Quanto à decorrência do

160 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 55. 161 Ob. Cit., p. 55. 162 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 17, em itálico no original. 163 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO; Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 9. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, 87. 164 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 564. 165 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21.

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contraditório, “o réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la,

evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido”166.

No Brasil, o princípio do contraditório está esculpido/insculpido no art. 5º, LV, da

CF, e vem atrelado com o da ampla defesa, in verbis: “aos litigantes, em processo judicial ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,

com os meios e recursos a ela inerentes”, em que pese já estivessem contidas na ordem

constitucional anterior, consoante a redação do art. 153, §§ 15 e 16 da Emenda n.º 1, de 17

de outubro de 1969167.

Em relação à influência do contraditório na atividade instrutória judicial, que é o

que mais interessa para a pesquisa em apreço, defende-se que o magistrado deve

participar intensamente do processo, mas, ao mesmo tempo, deve evitar atuar de

ofício e não possuir poderes instrutórios, sob a possibilidade de comparação com o

juiz-inquisidor, assertiva que é, por ora, embasada na doutrina:

Numa visão moderna, o contraditório engloba o direito das partes de debater frente ao juiz, mas não é suficiente que tenham a faculdade de ampla participação no processo; é necessário também que o juiz participe intensamente (não confundir com juiz-inquisidor ou com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz), respondendo adequadamente às petições e requerimentos das partes, fundamentando suas decisões (inclusive as interlocutórias), evitando atuações de ofício e as surpresas. Ao sentenciar, é crucial que observe a correlação acusação-defesa-sentença168.

Não é demais lembrar que o inquérito policial carece da garantia do contraditório,

“pois o chamado “acusado” não passa de mero objeto de investigação, não sendo,

tecnicamente, acusado, e sim investigado, motivo pelo qual não há que se falar e

contraditório na fase pré-processual ou no procedimento administrativo”169.

Ademais, a consistência da previsão de defesa reflete, além da distinção entre

juiz e acusador, a principal diferença prática entre os processos acusatório e inquisitório170.

166 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 21. 167 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 72. 168 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 193, em negrito e sublinhado no original. 169 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 17, em itálico no original. 170 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 143.

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“Portanto, quando o processo abre mão das atividades defensivas clássicas – de resistência

à pretensão de condenação –, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo inquisitório”171.

Analisado que os princípios sob exame são quase confundíveis – não foi à toa

que a Constituição Federal os consolidou no mesmo dispositivo – e que, além disso, estão

embutidos no processo penal de cunho acusatório, explicita-se sobre outra garantia

constitucional.

2.6 A IMPARCIALIDADE (DO JUIZ NATURAL)

A jurisdição (dizer o direito) é uma só. “O monopólio da administração da Justiça

é, pois, do Estado, por meio do Poder Judiciário – Estado-Juiz”172. Logo, “o exercício da

jurisdição, em um Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto ao exercício de

qualquer outro poder no âmbito deste Estado, condicionado a regras de impessoalidade”173.

De qualquer maneira, “não basta a garantia da jurisdição, não é suficiente ter um

juiz, é necessário que ele reúna algumas qualidades mínimas, para estar apto a

desempenhar seu papel de garantidor”174.

Figurando o juiz como terceiro imparcial (eqüidistante) na relação processual

dialética formada entre autor é réu, sua imparcialidade apresenta-se como conseqüência

lógica da adoção da heterocomposição175. Logicamente, “de nada adianta o princípio da

igualdade na lei se juízes e tribunais não mantiverem sua posição de imparcialidade no

processo”176.

171 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 143. 172 BARROS, Antonio Milton de. Processo penal segundo o sistema acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme: Editora de direito, 2002, p. 19. 173 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 110. 174 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 128, em itálico no original. 175 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 80. 176 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 272.

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A imparcialidade, como um corolário natural do devido processo legal e de um

Estado Democrático de Direito, tem o condão de manter o julgador eqüidistante das partes

processuais para tornar válida uma atividade jurisdicional, senão vejamos:

[...] a imparcialidade é uma decorrência natural do devido processo legal e de um Estado verdadeiramente Democrática de Direito. Não há como se conceber uma atividade jurisdicional válida que não venha a ser conduzida por um juiz eqüidistante das partes processuais177. [...]

Antes disso, “para que possamos garantir um Estado-jurisdição impessoal, é

imperiosa a adoção de um sistema que preveja o órgão jurisdicional competente para

julgamento anteriormente ao acontecimento do fato”178. Falamos, por ora, do princípio

constitucional do juiz natural, conhecido como “o órgão jurisdicional estabelecido

constitucional e legalmente antes da ocorrência do fato delituoso”179.

No direito pátrio a imparcialidade do juiz “representa uma das facetas da garantia

do juiz natural, sendo assegurado constitucionalmente pela impossibilidade de tribunais de

exceção (art. 5.º, XXXVII) e pela competência previamente fixada (art. 5.º, LIII)”180.

Nessa íntima e tênue relação, suscita-se que os dois princípios asseguram às

partes o fato de o juiz não aderir uma das alternativas de explicação contrapostas no

processo, in verbis:

A posição equilibrada e que o juiz deve ocupar, durante o processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz natural – garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição – que consiste na combinação da exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que o autor e réu reciprocamente contrapõem durante o processo181.

Parece uma tarefa árdua, quiçá impossível, a possibilidade de alcance pelo

magistrado da imparcialidade plena, tendo em vista que os julgadores, assim como qualquer

outro ser humano, possuem qualidades, defeitos, valores, paixões etc. e, obviamente, não

177 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 140. 178 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 240. 179 Ob. Cit., p. 240. 180 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 80-81. 181 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 109.

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estão isentos de pôr um pouco de si no teor do processo. A imparcialidade, entretanto,

impõe um limite.

Ainda nessa linha de raciocínio, FERRAJOLI argúi que a imparcialidade do juiz

possui três perfis:

Chamarei eqüidistância ao afastamento do juiz dos interesses das partes em causa; independência à sua exterioridade ao sistema político e em geral a todo sistema de poderes; naturalidade à determinação de sua designação e à determinação das suas competências para escolhas sucessivas à comissão do fato submetido ao seu juízo182.

Ventilado acima os três perfis, vejamos suas respectivas explicações no dizer do

mesmo autor:

[...] Esses três perfis da imparcialidade do juiz requerem garantias orgânicas que consistem do mesmo modo em separações: a imparcialidade requer a separação institucional do juiz da acusação pública; a independência requer a sua separação institucional dos outros poderes do Estado e por outro lado a difusão da função judiciária entre sujeitos não dependentes um do outro; a naturalidade requer exclusivamente a sua separação de autoridades comissionadas ou delegadas de qualquer tipo e a predeterminação exclusivamente legal das suas competências183. [...] (grifo nosso)

No tocante ao primeiro perfil (imparcialidade), já vimos alhures que no Brasil há

separação institucional entre juiz (Poder Judiciário) e acusação pública (Ministério Público);

quanto ao segundo (independência) e ao terceiro (naturalidade) perfis, a Constituição de

1988 prevê, além dessas duas, outras garantias aos juízes, fornecendo toda autonomia

necessária para o exercício da função, afastando qualquer possibilidade de influência que

acarrete, teoricamente, na atividade judicial.

Por derradeiro, sabendo-se da liberdade que o juiz detém em nosso

ordenamento jurídico para produzir prova de ofício, fala-se muito que tal atividade

compromete a imparcialidade do julgador, mais isso é assunto para o capítulo seguinte.

182 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 534, em itálico no original. 183 Ob. Cit., p. 534, em itálico no original.

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3 ASPECTOS TANGENTES À ATIVIDADE INSTRUTÓRIA JUDICIAL – A NECESSIDADE

DE REMODELAGEM DO PAPEL DO JUIZ EM DECORRÊNCIA DO MODELO

PROCESSUAL CONSTITUCIONAL

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Construídos os capítulos anteriores, nos quais se pretendeu esmiuçar e delimitar

da forma mais essencial possível aspectos históricos e atuais tocantes ao trabalho, chega-

se ao terceiro e último capítulo.

Em síntese, viu-se no primeiro capítulo as principais características e diferenças

entre os grandes sistemas informadores do processo penal mundial e, ainda, que o Brasil

adotou há vinte anos o modelo acusatório. Constatou-se, no entanto, que cada Estado

(país) implanta e ajusta seu modelo de acordo com sua opção política, inexistindo, em tese,

suas formas puras (históricas), muito embora alguns pressupostos genuínos de cada

sistema não pudessem (podem!) se miscigenar com os de outros.

Aproveitou-se o segundo capítulo para apresentar algumas garantias

constitucionais que estariam sofrendo mitigações quando da iniciativa da produção de

provas pelo Estado-juiz, tendo elas íntimo e relevante envolvimento com o tema pesquisado.

É hora de complementar e findar a elaboração do desenvolvimento da pesquisa.

Para tanto, até poder-se-ia trazer aqui outros tópicos para a discussão, mas, pela exígua

extensão duma monografia, expõem-se aqueles que possuem maior relação com a

atividade instrutória judicial.

3.2 O ÔNUS DA PROVA E O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO

O ônus da prova, no processo penal, está inserto na dicção da primeira parte da

cabeça do art. 156 do CPP: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer...”.

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Apesar da lei nº 11.690/08, em vigor desde agosto, alterar o dispositivo em

exame para ampliar a produção de prova pelo magistrado para a fase policial, deixou intacta

a redação no que diz respeito ao ônus da prova na esfera judicial.

A construção da sua teoria no processo penal pode advir da mesma acolhida

pelo Código de Processo Civil, segundo a qual cabe à acusação a prova do fato constitutivo

de seu direito ou pretensão e ao réu incumbe provar a existência de fato impeditivo,

modificativo ou extintivo do direito do autor184. Conclui-se, portanto, que “o sistema

processual civil adota técnica superior à do processo penal, que refere-se tão-somente ao

ônus de provar o fato alegado”185.

Veja-se, destarte, a redação trazida pelo Código de Processo Civil referente ao

onus probandi:

[...] Art. 333. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. [...]

Não é relevante, no momento, apontar aspectos imanentes às divisões ou às

espécies de ônus186 ou até mesmo adentrar à teoria da prova. Interessa, por outro lado,

trazer à tona que o encargo de provar recai tão-só sobre o pólo ativo (acusação) e, em

poucas hipóteses, sobre o passivo da ação (réu), mas de forma alguma paira sobre a

pessoa do julgador, embora a Código de Processo Penal o autorize a produzir provas187.

Define-se ônus como sendo “uma faculdade cujo exercício é necessário para a

obtenção de um interesse”188. No âmbito do direito processual penal, conceitua-se o ônus de

provar como “a faculdade que tem a parte de demonstrar no processo a real ocorrência de

um fato que alegou em seu interesse, o qual se apresenta como relevante para o julgamento

da pretensão deduzida pelo autor da ação penal”189.

184 GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 205. 185 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 115. 186 Sobre ônus da prova ver BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 187 NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 117-118. 188 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 171. 189 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 203.

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Como dito noutra ocasião, em decorrência do art. 129, I, da CF, a titularidade

privativa de figurar como autor da ação penal pública é outorgada ao Ministério Público, ou

seja, é quem carrega o fardo de acusar e provar os fatos constitutivos da pretensão

condenatória alegados nos autos do processo, porque a norma em apreço (art. 129, I, CF)

deu publicidade à divisão entre acusador e julgador, adotando as linhas mestras da base

acusatória, conforme reza a explanação a seguir:

[...] é ela, na verdade, uma das bases do princípio acusatório, na medida em que impõe a um determinado mecanismo do Estado a persecução oficial, impossibilitando a confusão entre julgador e acusador, em estrita sintonia com todos os modelos reformistas em curso na Europa continental190.

E de mais a mais, como o acusado tem ao seu lado a benesse da presunção de

não-culpabilidade (ou de inocência), o princípio em comento só vem reforçar que todo o

ônus probatório recaia sobre a acusação:

Afirmar que ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória implica e deve aplicar a transferência de todo o ônus probatório ao órgão da acusação. A este caberá provar a existência de um crime, bem como a sua autoria

191.

Inclusive o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já se manifestou pela

impossibilidade da inversão do ônus da prova no processo penal, não tendo o réu o ônus de

provar sua inocência, que é presumida:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO CONDENATÓRIA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTO APRESENTADO PELA DEFESA IGNORADO PELO ÓRGÃO JULGADOR. VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO PENAL E INFRINGÊNCIA AOS ARTIGOS 231 E 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. 2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. 3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento

190 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 63. 191 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 292, em itálico no original.

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apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal. 4. ORDEM CONCEDIDA para anular a decisão condenatória, para que outro julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental ignorada192. (grifo nosso)

Em razão da nítida divisão de funções, bem como da regra do ônus probante,

maior discussão ocorre quando o juiz produz provas, principalmente porque a disciplina do

ônus da prova perderia seu objeto num sistema puramente inquisitório:

Os poderes de iniciativa do juiz com relação à prova dos fatos controvertidos, seja no processo penal, como visto acima, seja no processo civil (CPC, art. 130), têm importante reflexo na relevância da distribuição do ônus da prova. Num imaginário sistema puramente inquisitório, em que o Estado chamaria a si toda a função de investigar a verdade dos fatos, perderia todo sentido a disciplina legal do ônus da prova193. (grifo nosso)

Visto, mesmo em linhas gerais, que o juiz não carrega consigo qualquer tipo de

ônus probatório ou acusatório no processo penal e que as funções de julgar e acusar foram

devidamente separadas pela Constituição Federal de 1988, passa-se a verificar alguns

aspectos atinentes à forma adotada pelo Código de Processo Penal para a reconstrução

dum acontecimento pretérito (crime ou contravenção penal) nos autos do processo.

3.3 A SUPOSTA DISTINÇÃO ENTRE VERDADE REAL E FORMAL

Assinala-se, de plano, que “a questão da verdade real normalmente é vista a

partir da lição clássica de distinção entre verdade material (real, substancial) e sua dicotomia

com a verdade formal”194.

Não raro, atribui-se o princípio da verdade formal ao direito processual não penal

(cível), por tratar na maioria das vezes com bens disponíveis, e o princípio da verdade real

ao direito processual penal, já que este lida com bem indisponível fundamental (liberdade),

senão vejamos:

192 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 27684 – AM. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=acusat%F3rio&livre=%F4nus+da+prova&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 11 out. 2008. 193 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Rangel Cândido. Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 352. 194 DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas (atualizado de acordo com as Leis 11.689/80, 11.690/08 e 11.719/08). Campinas: Millennium Editora, 2008, p. 93.

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A distinção se justifica. No âmbito cível, a maioria das causas versa sobre interesses patrimoniais disponíveis, que em tese têm menor grau de relevância para a sociedade. Já no âmbito penal, tendo em vista a possibilidade concreta de aplicação de penas que restrinjam o direito fundamental da liberdade, bem como pelo elevado grau de interesse social com relação às condutas tuteladas no direito penal material, é muito mais relevante que a elucidação dos fatos que fundamentam as decisões seja feita da forma mais acurada possível. De forma excepcional, somente, aplica-se o princípio da verdade formal, como na hipótese de absolvição por insuficiência de provas (art. 386, VI, do CPP)195.

Ao contrário, quando possível, procura-se que o resultado obtido no direito

processual civil seja o mais aproximado da verdade real196, principalmente em virtude da

atual mitigação do princípio da verdade formal no âmbito do processo civil197.

Para se ter noção do descontentamento na órbita processual civil, BEDAQUE

aduz que “o que não se pode mais aceitar é a suposta vinculação do juiz civil à denominada

verdade formal, prevalecendo a verdade real apenas no âmbito penal”198, defendendo aí

maiores poderes instrutórios ao julgador.

Tanto é verdade que o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA decidiu

recentemente:

PROCESSUAL CIVIL. PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL. DETERMINAÇÃO DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ART. 130 DO CPC. PRECLUSÃO QUE NÃO SE APLICA, NA HIPÓTESE. ART. 183 DO CPC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. RECURSO ESPECIAL. INADMISSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 211/STJ E ADEMAIS, DA SÚMULA N. 83/STJ. I - A matéria inserta no dispositivo infraconstitucional suscitado (art. 183 do CPC) não foi objeto do julgamento a quo, sequer implicitamente, carecendo o recurso especial do pressuposto específico do prequestionamento (Incidência da Súmula n. 211/STJ). II - Demais disso, esta Corte tem entendimento pacífico no sentido de que a livre iniciativa do magistrado, na busca pela verdade real, torna-o imune aos efeitos da preclusão, sendo lícita a determinação de produção de prova pericial, que indevidamente não foi deferida em primeira instância, mesmo de ofício (art. 130 do CPC). III - Noutras palavras, ainda que tenha havido o anterior indeferimento da produção de prova pericial, pelo juízo de primeiro grau, ainda assim pode o

195 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49. 196 “Quando se trata de bens indisponíveis, procura-se, de forma mais acentuada, fazer com que, o quanto possível, o resultado obtido no processo (verdade formal) seja o mais aproximado da verdade material, que se pretende fielmente retratar no processo, como, por exemplo, na anulação de casamento”. [...] ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 10. ed. Vol. II. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 405. 197 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49. 198 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 16, em itálico no original.

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Tribunal de apelação, de ofício, determinar tal produção, se entender pela sua indispensabilidade. IV - Precedentes citados: AgRg no REsp nº 738.576/DF, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJ de 12/09/2005; Edcl no Ag nº 646.486/MT, Rel. Min. BARROS MONTEIRO, DJ de 29/08/2005; AgRg no AG nº 655.888/MG, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES DE LIMA, DJ de 22/08/2005; REsp nº 406.862/MG, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJ de 07/04/2003. V - Aplicação, de qualquer modo, da Súmula n. 83/STJ. VI - Recurso especial não conhecido. Manutenção do acórdão que determinou a realização de nova perícia judicial199. (grifo nosso)

A básica e maior distinção entre os dois princípios, na verdade, diz respeito aos

poderes dados ao magistrado de produzir provas, justamente pelas características já

elencadas de cada processo. Enquanto no processo não penal (tributário, do trabalho,

administrativo, civil etc.) o julgador, via de regra, forma seu convencimento somente a partir

das provas trazidas pelas partes, no processo penal o juiz não está adstrito às provas

produzidas pelas partes, podendo perquirir outras que entender pertinentes à reconstrução

do acontecimento pretérito.

No tocante à verdade formal, aufere-se a seguinte lição:

Verdade formal, dogma tradicional do processo não penal (especialmente o civil), corresponde ao princípio pelo qual a verdade processual será aquela produzida exclusivamente pela vontade das partes, ou seja, somente os dados levados ao processo pelas partes serão analisados pelo julgador, que permanece inerte, sem imiscuir-se na produção probatória200.

Agora, quanto à verdade material:

[...] Por outro lado, quando se fala em verdade real, não se tem a presunção de se chegar à verdade verdadeira, como se costuma dizer, ou, se quiserem, à verdade na sua essência – esta é acessível apenas à Suma Potestade –, mas tão-somente salientar que o ordenamento confere ao Juiz penal, mais que ao Juiz não penal, poderes para coletar dados que lhe possibilitem, numa análise histórico-crítica, na medida do possível, restaurar aquele acontecimento pretérito que é o crime investigado201. [...]

Apesar de tudo, modernamente chegou-se à conclusão que não há distinção

entre verdade formal e verdade material, quando visa-se diferenciar a verdade alcançada na

instrução processual:

199 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 896072 – DF. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=verdade+real&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=20>. Acesso em: 5 out. 2008. 200 SCHMITT, Augusto Ricardo (Organizador). Princípios penais constitucionais: direito e processo penal à luz da constituição federal. Bahia: Podivm, 2007, p. 231. 201 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 17.

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A distinção entre verdade formal e verdade material é falsa, quando se procura distinguir a verdade obtida em decorrência da instrução processual – obviamente com as limitações que lhe são inerentes – da verdade obtida por meio de técnicas ou métodos próprios de outras formas do conhecimento, com a do historiador ou a do cientista – que, do ponto de vista epistemológico, também encontram limitações instransponíveis. Também não se pode aceitar que a dicotomia verdade formal/verdade material seja válida para distinguir a verdade objetivada no processo penal daqueloutra que se busca no processo civil. Por fim, a distinção entre verdade formal e verdade material também tem sido utilizada para tentar justificar a distinção entre verdade obtida, respectivamente, no processo acusatório e no inquisitório202.

Visualizada, grosso modo, a falsa distinção entre os dois princípios que são

aplicados no processo para a busca a verdade, tentar-se-á apresentar no próximo tópico

que o conceito de verdade real é relativo e não absoluto, bem como que este dogma não

encontra amparo nos atuais modelos de processo penal (democrático e garantista), devendo

o julgador formar seu livre convencimento motivado com a verdade carreada nos autos do

processo obtida pelas partes: a verdade processual.

3.4 A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE REAL – O PROCESO PENAL DE CUNHO

ACUSATÓRIO (DEMOCRÁTICO) RUMO À BUSCA DA VERDADE PROCESSUAL

Na medida em que o processo penal é um “modo de construção do

convencimento do juiz”, torna-se imperioso, ao se tratar de provas, identificar “que verdade”

foi perquirida no processo203.

O processo é o instrumento que permite ao julgador conhecer a verdade sobre

os fatos, apesar de haver opiniões defendendo a impossibilidade de o processo atingir a

verdade ou, ainda, que a verdade é irrelevante para a decisão judicial204. Outrossim,

enfatiza-se acertadamente que “verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente

atingíveis”205.

202 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 35. 203 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 537. 204 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 21. 205 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 15.

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No entanto, “mesmo que se aceite a impossibilidade de se atingir um

conhecimento absoluto ou uma verdade incontestável dos fatos, não é possível abrir mão da

busca da verdade”206, mormente em razão de que “a busca da verdade é o único critério

aceitável como premissa para uma decisão justa”207.

E para que se tenha um processo justo, com o alcance da verdade necessária à

conclusão justa, imprescindível que não ocorra qualquer transgressão à integridade humana

ou às garantias fundamentais do indivíduo, não se admitindo uma verdade real auferida de

qualquer maneira, a teor da afirmação perfilada:

O processo justo, pois, não se compadece com violação alguma de garantia fundamental do indivíduo – devendo atentar-se para que as garantias fundamentais têm por referencial a dignidade humana, não o patrimônio de alguns. A verdade necessária à conclusão justa do processo é a que se pode atingir sem arranhaduras na integridade humana do cidadão, não uma verdade real arrancada a qualquer preço208. (grifo nosso)

Nessa esteira, “a obtenção da ‘verdade plena’ configura, pois, um mito que não

se sustenta diante da realidade imposta pela obediência aos métodos de acertamento

regrados por um Estado de Direito”209, obediência esta não respeitada pela verdade real:

[...] A verdade a que aspira o modelo substancialista do direito penal é a chamada verdade substancial ou material, quer dizer, uma verdade absoluta e onicompreensiva em relação às pessoas investigadas, carente de limites e de confins legais, alcançável por qualquer meio, para além das rígidas regras procedimentais. É evidente que esta pretendida “verdade substancial”, ao ser perseguida fora de regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, denegera em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognitivismo ético sobre o qual se baseia o substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do processo penal210. (grifo nosso)

206 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 24. 207 Ob. Cit., p. 25. 208 BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 186. 209 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 114. 210 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 519, em itálico no original.

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Exatamente ao inverso, tem-se que a verdade formal ou processual “não é

obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto pessoal; está condicionada em si

mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa”211.

Não bastasse isso, veja-se, com o respaldo de DEZEM, que o conceito de

verdade real vem sendo relativizado, haja vista a impossibilidade de alcance à verdade

absoluta:

[...] o conceito da verdade real tem sido cada vez mais relativizado, na medida em que é reconhecível a impossibilidade de se atingir a verdade absoluta, ou seja, é impossível atingir com grau de certeza o que efetivamente tenha ocorrido, daí porque se fala, modernamente em verdade possível

212. [...]

Em lapidar conclusão bastante citada pela doutrina, DINAMARCO defende que o

máximo que se pode obter no processo é um grau muito elevado de probabilidade, pois

jamais se tem segurança de atingir a verdade e jamais se consegue a certeza, tendo em

vista serem dois conceitos absolutos. Ademais, salienta o mesmo autor que o juiz deve

renunciar à certeza no processo de conhecimento, de modo que a obsessão pela certeza

constitui fator de injustiça:

[...] A verdade e a certeza são dois conceitos absolutos e, por isso, jamais se tem a segurança de atingir a primeira e jamais se consegue a segunda, em qualquer processo (a segurança jurídica, como resultado do processo, não se confunde com a suposta certeza, ou segurança, com base na qual o juiz proferiria os seus julgamentos). O máximo que se pode obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto à subsunção destes nas categorias adequadas. No processo de conhecimento, ao julgar, o juiz há de contentar-se com a probabilidade, renunciando à certeza, porque o contrário inviabilizaria os julgamentos. A obsessão pela certeza constitui fator de injustiça [...]213.

Nesse viés, assevera-se que a verdade perseguida no processo penal é formal,

assim como no processo civil, mas nem por isso seria menos verdade:

Desenganadamente, a verdade que se persegue no processo penal, como no civil, é a verdade ética, ou verdade suficiente, pragmaticamente

211 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 48. 212 DEZEM, Guilherme Madeira. Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas (atualizado de acordo com as Leis 11.689/80, 11.690/08 e 11.719/08). Campinas: Millennium Editora, 2008, p. 93, em itálico no original. 213 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 390, em itálico e negrito no original.

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construída mediante argumentação, para pôr termo a uma contenda, a uma tensão oriunda da proposta punitiva do Estado, visante a atingir o imputado, sempre, em sua dignidade (com a desonra da reprovação pública) e, por vezes, em sua liberdade de locomoção. O deslinde desse conflito deve dar-se de tal forma que o povo, e sobretudo a comunidade jurídica, aceite a solução como satisfatória, ou, no mínimo, consiga compreendê-la, conquanto dela discorde, em razão dos argumentos de sua fundamentação. Essa verdade, força é admitir, é formal, vale dizer, aceitável somente porque atingida com a observância de raciocínios gnoseologicamente válidos214. [...] (grifo nosso)

Ainda no que concerne à comparação entre verdade real e formal, colhe-se

opinião no sentido de que, se o juiz só pode buscar a verdade real pelas provas carreadas

“em seu mundo”, qual seja, o processo, a verdade revelada nos autos seria igualmente

formal, in verbis:

É certo que ao magistrado não cabe apenas julgar, mas julgar bem, apresentando uma decisão a mais próxima do justo, com isso se requerendo um bom embasamento jurídico e lastro probatório, todavia essa certeza há de ser adquirida nos limites da prova trazida nos autos, pois esse é seu mundo. Como encontrar uma “verdade real” que não seja aquela revelada pelos autos e, pois, igualmente “formal”? Vê-se, portanto, a corroborar as idéias esposadas no segundo capítulo do trabalho, que as expressões verdade formal e verdade real carregam inerente imprecisão215. [...] (grifo nosso)

Diante disso, a verdade apurada no processo não passa de uma verdade

processual ou uma falsa verdade real:

[...] É certo, ademais, que, mesmo na justiça penal, a procura e o encontro da verdade real se fazem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas, e, por isso, melhor seria falar de “verdade processual”, ou “verdade forense”, até porque, por mais que o Juiz procure fazer a reconstrução histórica do fato objeto do processo, muitas e muitas vezes o material de que ele se vale (ah! as testemunhas...) poderá conduzi-lo a uma “falsa verdade real” [...]216.

No sentido de que a verdade buscada no processo é processual e não real,

colaciona-se o presente entendimento:

[...] O conceito de verdade não é ontológico nem absoluto e, no processo penal – penal ou civil que seja –, o juiz só pode buscar a verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo possível da

214 BAPTISTA, Francisco das Neves. O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 213. 215 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 124-125, em itálico no original. 216 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 17.

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certeza, centrando suas atenções sobre os fatos apontados pelas partes como juridicamente relevantes para, assim, lastrear um conclusão oficial217.

E sacramenta-se: “a verdade é processual. São elementos de prova que se

encontram dentro dos autos que são levados em consideração pelo juiz em sua sentença. A

valoração e a motivação recaem sobre tudo que se apurou nos autos do processo”218. Em

outras palavras, conclui-se que “toda verdade judicial é sempre uma verdade processual. E

não somente pelo fato de ser produzida no curso do processo, mas, sobretudo, por tratar-se

de uma certeza de natureza exclusivamente jurídica”219.

Enfim, passando os olhos sobre o que disse FERRAJOLI e o mosaico de

informações trazidas a lume, pode-se perceber que a verdade real não reflete um conceito

absoluto de verdade, mas sim relativo, sendo somente possível a obtenção da verdade

processual e não real; além disso, viu-se também que a verdade real não encontra guarida

num Estado Democrático de Direito que adotou o sistema acusatório como o nosso, tendo

em vista o meio pelo qual – inquisitivo – é obtida, infringindo, sobretudo, as garantias

fundamentais individuais analisadas no segundo capítulo desta pesquisa, que são utilizadas

de escudo em face de eventual poder irracional praticado pelo Estado.

3.5 A UTILIZAÇÃO DA VERDADE REAL PARA A ATIVIDADE PROBATÓRIA JUDICIAL DE

OFÍCIO

Argüiu-se anteriormente que o Código de Processo Penal brasileiro foi decretado

em 1941 e entrou em vigência a partir de 1º/01/1942 (art. 810).

Não é necessário ser um professor de história para perceber que a situação

atual do Brasil, especialmente política, é muito divergente daquela à época do advento do

Decreto-Lei 3.689/1941 (Código de Processo Penal). Em 1941 estávamos no meio da 2ª

Guerra Mundial (1939-1945) e sofríamos, no “Estado Novo” da “Era Vargas”, contundente

influência autoritária (ditatorial) do regime fascista italiano, que havia inspirado a legislação

217 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 125. 218 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 7. 219 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 291.

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processual penal daquele país, de 1930220. Utiliza-se como apoio a esta lição a oportuna

averbação a seguir na mesma trilha:

Inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias, por razões óbvias e de origem. E nem poderia ser de outro modo, a julgar pelo paradigma escolhido e justificado, por escrito e expressamente, pelo responsável pelo projeto, Ministro Francisco Campos, conforme se observa em sua Exposição de Motivos

221.

Infere-se da primitiva redação do art. 596 do CPP222 que, nos crimes cuja pena

correspondesse a período igual ou superior a 8 (oito) anos, a sentença absolutória –

pasmem! – não era suficiente para restituir a liberdade ao réu. “Do mesmo modo,

dependendo da pena abstratamente cominada ao fato, uma vez recebida a denúncia, era

decretada, automaticamente, a prisão preventiva do acusado”223.

Tudo porque “o princípio fundamental que norteava o CPP era, como se

percebe, o da presunção de culpabilidade”224 e não o princípio da não-culpabilidade (ou de

inocência) carreado na Constituição Federal de 1988.

Pautando pelas práticas autoritárias e abusivas do Poder Público em detrimento

das liberdades individuais, o Código de Processo Penal concebeu em seu art. 156 poderes

instrutórios ao órgão julgador, cuja assertiva pode ser confirmada com o escólio da doutrina:

Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo, período autoritário em que a supressão das liberdades contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer valer os interesses da ditadura Vargas”225.

220 “O caso brasileiro é curioso na medida em que trabalha com texto instrumental penal nascido durante um governo de exceção e inspirado em um modelo igualmente autoritário, onde o respeito às conquistas individuais contra o Estado não era exatamente o valor dominante”. [...] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17. 221 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5. 222 “Art. 596. A apelação da sentença absolutória não impedirá, que o réu seja posto imediatamente em liberdade, salvo nos processos por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos”. 223 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 7. ed. Rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5. 224 Ob. Cit., p. 6. 225 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 140.

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Aduziu-se noutras vezes que o princípio da verdade real encontra guarida

apenas em sistemas inquisitivos, modelo este empregado por governos totalitários e

autoritários em que o interesse público prevalece sobre os direitos individuais, tutelando-se

ao inquisidor (juiz-ator ou juiz-instrutor) a busca da “verdade” a qualquer custo, consoante se

lê a seguir:

O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estrutura do sistema inquisitório; com o “interesse público” (cláusula geral que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com os sistemas políticos autoritários; com a busca de uma “verdade” a qualquer custo (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históricos); e com a figura do juiz ator (inquisidor)226.

Pois bem.

Descortinado que a verdade real e os poderes para a produção de provas pelo

juiz caminham lado a lado, visto serem pressupostos de sistemas inquisitivos, veja-se a

seguir que o princípio da verdade real ainda dormita sob a toga de muitos magistrados

brasileiros.

Iniciando a demonstração, colhe-se julgado do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE

SANTA CATARINA:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. NULIDADE. SENTENÇA TACHADA DE NULA EM RAZÃO DE HAVER PROFERIDO JULGAMENTO COM BASE EM PROVA NÃO SUBMETIDA AO CONTRADITÓRIO. PRINCÍPIO DA VERDADE REAL. LIVRE CONVENCIMENTO DO JULGADOR. EIVA INEXISTENTE. ""No sistema misto, acusatório e inquisitório, consagrado pelo art. 156 do CPP, ao magistrado incumbe suprir a deficiência do feito, buscar a verdade, esclarecimento, ao invés de se acomodar ante falhas das partes" (TACRIM-SP - AP - Rel. Geraldo Pinheiro - JUTACRIM-SP 33/316)" (Franco, Alberto Silva; Mañas, Carlos Vico; Cintra Júnior, Dyrceu Aguiar Dias; Choukr, Fauzi Hassan; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Lauria Filho, Márcio; Podval, Maria Fernanda de Toledo R.; Moraes, Maurício Zanoide de; Podval, Roberto; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Martins, Sérgio Mazina; Bicudo, Tatiana Viggiani, e Ninno, Wilson, Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 2, 2ª tir., São Paulo, Ed. Revista jurisprudencial, 2001, p. 1706). HOMICÍDIO CULPOSO. ART. 302, DA LEI 9.503/97. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. ELEMENTOS DE PERSUASÃO HARMÔNICOS, QUE EVIDENCIAM O COMPORTAMENTO IMPRUDENTE DO RÉU. CULPA CARACTERIZADA. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO. INADMISSIBILIDADE. Pratica o delito capitulado no art. 302, do Código de Trânsito Brasileiro, o agente que conduz veículo automotor com desatenção e provoca acidente de que resulta vítima fatal. PERDÃO

226 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 538.

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JUDICIAL. ALMEJADO RECONHECIMENTO. ARGUMENTO DE QUE A VÍTIMA ERA SUA AMIGA, PARTICULARIDADE QUE EVIDENCIARIA O SOFRIMENTO SUPORTADO EM CONSEQÜÊNCIA DO ÓBITO. AUSÊNCIA DE PROVAS DE QUE O DESFECHO FATAL TENHA ATINGIDO GRAVEMENTE O APELANTE. RECURSO DESPROVIDO. Embora afigure-se viável a concessão do perdão judicial nos crimes de trânsito, sem provas seguras de que o óbito da vítima tenha provocado intenso sofrimento no condutor não há ensejo ao respectivo reconhecimento227. (grifo nosso)

No mesmo diapasão, expõe-se acórdão do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO

GRANDE DO SUL:

EMENTA: APELAÇÃO-CRIME. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. NULIDADE PROCESSUAL. INOCORRÊNCIA. Sobressai no Processo Penal a busca pela verdade real, o que autoriza, na esteira do artigo 209 do CPP, a oitiva de ofício pelo juiz de testemunhas não arroladas na denúncia. PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. Incontroversa a apreensão de dois veículos na garagem do condomínio do acusado, provenientes de ilícitos penais. Demonstrado, ainda, à saciedade pelo caderno probatório, que o acusado, não só podia, como tinha plena ciência da origem espúria dos veículos que adquiriu. DESCLASSIFICAÇÃO PARA RECEPTAÇÃO CULPOSA. IMPOSSIBILIDADE. Evidenciando o conjunto probatório que o acusado agiu mediante dolo, impossível a desclassificação para a modalidade culposa. AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA. INVIABILIDADE. Uma vez que o próprio acusado admitiu laborar com a compra e venda de veículos, razão pela qual adquiriu os veículos apreendidos, inviável o afastamento da qualificadora. Apelo desprovido, à unanimidade228. (grifo nosso)

E, finalmente, para concretizar o raciocínio, colaciona-se julgado do SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA com o mesmo entendimento:

CRIMINAL. HC. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA NA QUAL NÃO TERIA SIDO INDICADO O ROL DAS TESTEMUNHAS. EXORDIAL QUE ATENDE AOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. JUIZ QUE ORDENOU A INTIMAÇÃO DE TESTEMUNHA OUVIDA NA FASE INQUISITORIAL. DILIGÊNCIA OPORTUNAMENTE DETERMINADA. BUSCA DA VERDADE REAL. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. RÉU DENUNCIADO EXCLUSIVAMENTE PELA PRÁTICA DO DELITO PREVISTO NA LEI DE TÓXICOS. FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO QUE RECEBEU A INICIAL. DESNECESSIDADE. ORDEM DENEGADA. I. Hipótese em que o impetrante pugna pelo trancamento da ação penal, ao argumento de inépcia da denúncia, pois o Parquet teria entendido que a produção de provas seria despicienda, eis que a autoria e a materialidade do crime imputado ao paciente teria sido sobejamente comprovada no inquérito policial, não tendo arrolado o rol de testemunhas. II. O Ministério Público poderá deixar de indicar o rol de testemunhas caso entenda não ser necessária a produção de prova testemunhal, sendo que

227 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal nº 2006.045830-2. Disponível em: <http://tjsc6.tj.sc.gov.br/jurisprudencia/VerIntegraAvancada.do>. Acesso em: 5 out. 2008. 228 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70023495831. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 5 out. 2008.

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tal omissão não pode ser considerado vício apto a ensejar o reconhecimento da inépcia da denúncia. III. Peça acusatória atende aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, na medida em que houve a exposição do fato considerado criminoso, com suas circunstâncias, assim como se deu a devida qualificação do acusado e a classificação do crime. IV. Eventual inépcia da denúncia só pode ser acolhida quando demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da acusação, em flagrante prejuízo à defesa do acusado, ou na ocorrência de qualquer das falhas apontadas no art. 43 do CPP e no art. 39 da Lei 10.409/02 V. É posição desta Corte que o trancamento da ação penal, normalmente, é inviável em sede de writ, pois dependente do exame da matéria fática e probatória. VI. Não há que se falar em nulidade do feito por ter o Julgador determinado a oitiva de testemunha que havia prestado depoimento durante o inquérito, por entender que tal prova seria necessária à busca da verdade real. VII. O art. 40 da Lei 10.409/02 estabelece que ao receber a denúncia, o Juiz designará dia e hora para a realização da audiência de instrução e julgamento, restando claro que a oitiva da testemunha foi determinada no momento oportuno, em face do rito da Lei de Tóxicos. VIII. Paciente denunciado, apenas, pela prática, em tese, do crime de associação para o tráfico de entorpecentes, sendo infundado o argumento de duplo enquadramento legal da conduta a ele atribuída. IX.A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que o despacho de recebimento da denúncia, em face de sua natureza de decisão interlocutória simples, prescinde de fundamentação substancial, mesmo no rito da Lei de Tóxicos, por constituir em um mero juízo de admissibilidade da acusação. X. Ordem denegada229. (grifo nosso)

Vislumbrado no item antecedente que a verdade real é um mito (3.4), viu-se

agora que ela nada mais é senão uma “artimanha engendrada nos meandros da inquisição

para justificar o substancialismo penal e o decisionismo processual (utilitarismo), típicos do

sistema inquisitório”230, mas que vem servindo de “desculpa” (subterfúgio) para muitos

magistrados tomarem a iniciativa probatória nos autos do processo.

Sendo assim, tentar-se-á demonstrar no tópico seguinte que, de acordo com a

atual ordem constitucional, a figura do juiz-instrutor (juiz-ator) não pode mais subsistir no

processo penal brasileiro, na medida em que a Constituição aclama pela figura do juiz

garantidor desde a sua promulgação.

3.6 A INCOGRUÊNCIA DA PRODUÇÃO DE PROVA EX OFFCIO PELO JUIZ

229 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 66600 – MG. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?ementa=verdade+real&ref=CPP-41&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=14>. Acesso em: 5 out. 2008. 230 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 537.

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Alcança-se aqui o ponto culminante da pesquisa. É onde será sustentada a

incompatibilidade de interferência ex officio do juiz na atividade probante de acordo com os

moldes do processo penal vigente no Brasil. Para construir-se tal raciocínio, será crucial se

reportar às informações acostadas anteriormente, as quais já são aptas a levar o leitor à

referida conclusão.

É de bom grado ter-se em mente que, “dentro da matriz constitucional, a parcela

de atuação reservada ao juiz ficará destinada à idéia de garantismo que permeia a atual

concepção do processo penal”231. Partindo da premissa que “não há verdade absoluta,

verdade real, a maneira mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente não

justificará o desrespeito aos valores fundamentais da pessoa humana”232, conforme requer o

sistema acusatório233.

Para cumprir essas exigências, o sistema acusatório compele o julgador a se

manter numa posição eqüidistante e acima das partes, sobretudo em atenção à

incolumidade de sua imparcialidade (veja item 2.6) e à divisão entre as funções de julgar e

acusar (art. 129, I, CF)234.

Logo, não se pode olvidar que a intromissão do magistrado na gestão da prova,

além de provocar interferência numa atividade de prerrogativa apenas da acusação (seja

pública ou privada), implicará certamente na quebra da sua imparcialidade, como bem

lembra PRADO, quando disse que “quem procura ao certo o que pretende encontrar e isso,

em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência

perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”235.

231 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 70. 232 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 131. 233 “Por outro lado, o modelo acusatório do processo penal também acarreta uma nova forma de atuar do Estado-Juiz em relação ao tema da instrução probatória. Particularmente delicado é este tema, na medida em que exige um redimensionamento da tradicional dicotomia existente no processo quanto as chamadas verdades real e material”. CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição. Bauru: Edipro, 1999, p. 73, em itálico no original. 234 “A imparcialidade do juiz tem perfeita e íntima correlação com o sistema acusatório adotado pela ordem constitucional vigente, pois, exatamente visando retirar o juiz da persecução penal, mantendo-o imparcial, é que a Constituição Federal deu exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando, nitidamente, as funções dos sujeitos processuais”. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 20. 235 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 137.

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Sobre a mácula da imprescindível garantia constitucional da imparcialidade pelo

juiz ao lançar-se de ofício à produção de prova, o TRIBUNAL DE JUSTIÇA GAÚCHO

manifestou-se acerca do assunto:

EMENTA: CORREIÇÃO PARCIAL. INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS: 1. ROL MINISTERIAL INTEMPESTIVO. INVIABILIDADE. 2. INQUIRIÇÃO DE OFÍCIO. SISTEMA ACUSATÓRIO. VEDAÇÃO DA INICIATIVA JUDICIAL. 1. O rol de testemunhas, na dicção do Art. 41, CPP, deve instruir a denúncia, sendo vedado, pela preclusão apresentação de rol complementar; 2. No sistema acusatório, o réu é tratado como sujeito de direitos, devendo ter suas garantias constitucionais respeitadas, sem qualquer concessão (favor rei). O Estado acusador, através do agente ministerial, manifesta a pretensão ao agente imparcial que é o Estado-juiz. Essa imparcialidade que se apresenta mais nítida agora, com a definição constitucional dos papéis processuais, é a plataforma na construção de uma ciência processual penal democrática, pelo que é vedada a iniciativa judicial na produção de provas (ex officio). Recurso provido236. (grifo nosso)

Em conluio com os argumentos carreados ao acórdão em exame, acredita-se

que só a transgressão à imparcialidade já teria o condão de coibir a iniciativa judicial sem

provocação das partes, por ser um requisito supremo do processo, de maneira que, “quando

diligencia, de ofício, além dessa fronteira do aclaramento das imputações e elementos a ele

já elevados, o julgador expõe-se, sim, ao parcialismo”237.

De qualquer forma, além da imparcialidade, pensa-se que a estrutura dialética

(ver tópico 2.5) formada entre os contendores (partes) no sistema acusatório também sofre

intempéries com tal atividade judicial, como bem lembrado na seguinte lição:

Sempre que se atribuem poderes instrutórios ao juiz, destrói-se a estrutura dialética do processo, o contraditório, funda-se um sistema inquisitório e sepulta-se de vez qualquer esperança de imparcialidade (enquanto terzietà = alheamento). É um imenso prejuízo gerado pelos diversos pré-juízos que o julgador faz238. (grifo nosso)

No sentido de que os poderes instrutórios ao juiz relacionam-se tão-só com o

sistema inquisitório, excluindo por óbvio o contraditório, FERRAJOLI afirma:

[...] Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas,

236 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Correição parcial nº 70020177036. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 6 out. 2008. 237 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 127. 238 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 79.

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produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa239. [...]

Ora, se a estrutura dialética do processo penal acusatório prevê um duelo entre

as partes sob o pálio do contraditório, mas que deve ser resolvida por um terceiro imparcial

e longe delas, é forçoso reconhecer que a invasão deste sujeito processual em qualquer

atividade de incumbência daqueles, especialmente a probatória, aniquila totalmente a

igualdade processual garantida no processo penal democrático (ler item 2.4).

Não parando por aí, urge ressaltar que a condição de igualdade processual

engloba ainda a defesa ampla (veja tópico 2.5), cuja garantia também sofre mitigação pela

produção de provas ex officio, conforme reza LOPES JR.:

A defesa técnica obriga (e garante) a presença de defensor em todos os atos do processo, principalmente em matéria probatória. Não apenas a comunicação dos atos e oportunidade para que os exerça, senão que a garantia da defesa também impõe a presença efetiva do defensor nos atos que integram a instrução, sendo absolutamente ilegal a prática neo-inquisitória de alguns (prepotentes) juízes que resolvem colher a prova sem a presença do réu e de seu defensor (!). Nem o art. 93, IX, da Constituição, nem o art. 217 do CPP autorizam essa prática absurdamente ilegal240.

Sabe-se que toda pretensão punitiva deve obrigatoriamente ser comprovada em

juízo a fim de que o órgão julgador possa formar o seu livre convencimento motivado, sob

pena de improcedência da ação e, logicamente, a absolvição do denunciado (ação publica)

ou do querelado (ação privada). Se processo é o único instrumento hábil à reconstrução de

um fato ocorrido no tempo, como o próprio destinatário da prova pode produzi-la241?

Esta indagação surge ao passo que se tem conhecimento que a absolvição do

réu é a única opção do juiz quando não emergir no processo provas aptas a condená-lo, em

atenção ao in dubio pro reo e à presunção de não-culpabilidade (ver item 2.3), não podendo

239 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 520, em itálico no original. 240 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 529. 241 “O juiz é o destinatário da prova e, sem dúvida alguma, sujeito de conhecimento. Quando, porém, se dedica a produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas: há crime e o réu e responsável ou isso não é verdade, a prova produzida de ofício visará confirmar um das duas hipóteses e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que pretende comprovar”. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 141.

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o jus puniendi do Estado se sobrepor ao jus libertatis do réu, tampouco o ônus da prova da

acusação ser invertido em prejuízo do acusado, a teor do julgado colacionado abaixo:

EMENTA: FURTOS. CHAMADA DE SUSPEITOS. EXCULPAÇÃO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. Não obtém vigor probatório para sustenmtar (sic) a condenação a palavra de menores identificados na sentença como co-participes que incriminam o acusado e exculpam-se. Reduz-se o valor informativo quando um deles estava na posse dda (sic) res furtivae (sic). O modelo acusatório vigente no sistema penal pátrio, a partir da Constituição Federal de 1988, consagra o estado de inocência, cabendo à acusação fazer prova extreme de dúvidas da culpabilidade do acusado. Considerando que o órgão ministerial não comprovou que o réu praticou o delito de forma suficiente a ensejar o juízo condenatório, imperativa é a absolvição, como consagração do princípio do in dubio pro reo. RECURSO PROVIDO242. (grifo nosso)

Então, como se não bastasse a presunção de inocência e o in dubio pro reo para

fazer com que o julgador não produza provas, tem-se que o ônus probandi (vide tópico 3.2)

carregado apenas pela acusação corrobora para impedir este incongruente comportamento.

O juiz, ao deparar-se com a fragilidade das provas juntadas aos autos pela acusação, deve

decretar a absolvição do réu e não incorporar a si o ônus probante de responsabilidade da

acusação.

Ou seja: o ônus acusatório da prova não pode recair sobre a pessoa do juiz:

[...] a rígida separação dos papéis entre os atores do processo, que como se viu nos parágrafos 10.7 e 39.3 forma a primeira característica do sistema acusatório, impede que tal ônus possa ser assumido por sujeitos que não da acusação: não pelo imputado, a quem compete o contraposto direito de contestação, e de modo algum pelo juiz, que tem ao invés a função de julgar livremente a credibilidade das verificações e das falsificações exibidas243. [...] (grifo nosso)

Superados estes apontamentos relativos à imparcialidade, ao contraditório, à

ampla defesa, à paridade processual, à presunção de inocência, ao in dubio pro reo e ao

ônus da prova, chega-se à busca da verdade real.

Forte nos argumentos ventilados nos itens 3.4 e 3.5 deste capítulo, nos quais

demonstrou-se que a verdade real não passa de um subterfúgio utilizada por juízes –

inquisidores – para agirem de ofício em detrimento da liberdade individual do acusado,

242 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70022224331. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 11 out. 2008. 243 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1. ed. italiana, Noberto Bobbio. Tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 562.

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ofendendo suas garantias fundamentais, a atividade instrutória de ofício não pode prosperar,

por fim, com fulcro na busca deste famigerada “verdade real”, cujo óbice a jurisprudência

vem, ao poucos, firmando entendimento:

PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. GESTÃO DA PROVA. INQUIRIÇÃO DA OFENDIDA DE OFÍCIO PELO JUIZ. ILEGITIMIDADE. A oficiosidade do juiz na produção de prova, sob amparo do princípio da busca da “verdade real”, é procedimento eminentemente inquisitório, que agride o critério basilar do sistema acusatório: a gestão da prova como encargo específico da acusação e da defesa. Lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Precedentes da Câmara. PROVA ORAL POLICIAL: seu desvalor. PROVA ORAL COLETADA DE SURPRESA: agressão à ampla defesa inadmissível porquanto medieval. PERSONALIDADE: não pode aumentar pena do cidadão por invadir a intimidade – garantia constitucional. REGIME INTEGRAL FECHADO: excluído do sistema por inconstitucional. À unanimidade, deram parcial provimento ao apelo defensivo e negaram acolhida ao recurso ministerial244. (grifo nosso)

Com supedâneo no acórdão em tela, resta evidenciado que a prova produzida

de ofício com espeque – “desculpa” – na busca da verdade macula não só a ampla defesa

como ofende todo o sistema acusatório, sobretudo por se tratar de procedimento

genuinamente inquisitivo, apesar de existirem pensamentos em contrário245.

A verdade no processo penal é construída por intermédio da estrutura dialética

firmada entre as partes numa base isonômica, a qual, por seu turno, é garantida mediante

ferramentas asseguradas constitucionalmente e que se enquadram no processo penal de

cunho acusatório. Se é assim, perde sentido valer-se o magistrado do princípio da verdade

real a fim de arvorar-se do poder de produzir provas, porquanto concretizará a figura do juiz

instrutor, incompatível com as diretrizes esposadas na Lei Maior246.

Para findar o exposto, traz-se a fulminante afirmação:

[...] dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem ser expurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois é patente a quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminada está a principal garantia da jurisdição: a

244 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação criminal nº 70015801350. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 11 out. 2008. 245 Sobre a admissibilidade da produção de prova de ofício pelo juiz no sistema acusatório ver ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003; e BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 246 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: Incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 145.

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imparcialidade do julgador. O sistema acusatório exige um juiz expectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório)247.

Ato seguinte, abre-se espaço para informar que a Lei nº 11.690/2008, que entrou

em vigor no ínterim da elaboração da pesquisa, em nada alterou o que se disse até aqui.

3.7 A AMPLIAÇÃO DE PODERES DO JUIZ COM O ADVENTO DA LEI Nº 11.690/2008 –

PERMANÊNCIA DE PROCEDIMENTO INQUISITIVO NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

BRASILEIRO

A Lei nº 11.690/2008 modificou recentemente o art. 156 do CPP, que passou a

vigorar com a seguinte redação, in verbis:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

O dispositivo, nota-se, continua em contraste com o sistema acusatório,

mantendo intacto o espírito da dicção antecedente no que toca ao âmbito processual,

consagrando, ainda, o princípio inquisitivo da verdade real.

Acontece que agora os poderes instrutórios do juiz foram ampliados

taxativamente para a fase policial, com a inserção do inciso I.

Vejamos a redação anterior revogada:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Parece, então, que a saga ou obstinação de muitos juízes à procura da verdade

real está longe de terminar. E agora será possível buscá-la até no inquérito policial...

247 LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 429.

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CONCLUSÃO

Diante de tudo o que foi articulado, restou-nos tecer essenciais considerações a

respeito da tendência declinada no teor do trabalho, com o escopo, inclusive, de facilitar a

compreensão da celeuma.

Compreendeu-se que manejar o vigente Código de Processo Penal (Dec.-lei

3.689/41) frente à declinação democrática tornou-se uma tarefa de aguçada hermenêutica

constitucional. Não há como se prescindir da contemporânea Constituição para a aplicação

de um processo penal, acima de tudo, justo. Interpretá-lo somente à luz do Código seria, no

mínimo, um absurdo.

Isso porque, em primeiro lugar, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou

o Ministério Público como essencial à função jurisdicional do Estado, tendo, na

oportunidade, atribuído ao parquet a competência para promover privativamente a ação

penal pública. Decretou-se, assim, o fim da confusão entre acusador e julgador,

descentralizando-se o poder estatal a órgãos distintos

Por esse motivo, mas não só por ele, a matriz acusatória foi eleita, razão pela

qual o órgão julgador ficou defeso de interferir em funções de acusação, reservando-se a

exercer apenas aquelas relativas à jurisdição.

Contudo, o grande mecanismo processual não foi remodelado nesse tocante,

mantendo sua redação original na qual o juiz se enfeixa, algumas vezes, com a acusação,

como na liberdade para a produção de provas, por exemplo. A produção de provas, na

verdade, incumbe a quem tem o encargo (ônus) de provar a culpa do réu nos autos: a

acusação (Ministério Público na ação penal pública e o particular na ação de alçada

privada). O juiz, por sua vez, é o destinatário da prova, ou seja, é quem irá valorá-la para

seu íntimo convencimento motivado, não carregando eventual ônus que seja.

Em segundo lugar, a percepção quanto à escolha da sistemática processual

também pôde ser observada pelo status de direitos fundamentais dado a algumas garantias

típicas do molde acusatório, oriundas da opção do constituinte por um Estado Democrático.

Estas normas, verdadeiros princípios que possuem eficácia imediata no ordenamento

jurídico, passaram a servir de escudo ao acusado em face do poder de punir, equilibrando a

relação processual.

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O processo penal pátrio deve, necessariamente, se nortear por tais ditames. O

atual papel do juiz deve ser repensando, bem como sua afinidade com a produção de

provas. É inadmissível a manutenção do resquício inquisitorial insculpido em 1941 pela

ditadura de Getúlio Vargas correspondente à produção de prova, outorgando ao julgador

poderes para produzir provas no curso do processo e, agora com a Lei 11.690/2008, no

inquérito policial. As opções de governo quando da elaboração do Código e da Constituição

são completamente antagônicas. Saiu-se de arbítrio, do autoritarismo, do totalitarismo, da

ditadura para, meio século depois, chegar-se à aspirada democracia.

Como consectário lógico, o acusado hoje passou a ser tratado no processo

como sujeito de direitos, não ficando a mercê da arbitrariedade do magistrado como visto

outrora, que procurava – há muitos ainda que procuram – a torto e a direito a verdade real,

fazendo com que a segurança pública sobressaísse em detrimento da sua liberdade. Tanto

é que o acusado presume-se inocente até prova em contrário escoimada por sentença

transitada em julgado, a teor do que preceitua o princípio da presunção de não-culpabilidade

(ou de inocência). Aliás, vale dizer, o denunciado só pode ser condenado quando não pairar

sobre a pessoa do julgador dúvida da sua culpabilidade, pois, do contrário, sua absolvição é

a única medida a se impor, exemplo de típica aplicação do princípio do in dubio pro reo.

Além do mais, o dogma responsável pela verdade obtida a qualquer preço foi

desmitificado no transcorrer da pesquisa. Além de se desvendar que o conceito de verdade

real é relativo e não absoluto, o meio pelo qual é obtida fere gravemente os cânones

constitucionais. Assim, só há uma verdade apta a não arranhar os direitos fundamentais do

réu no processo penal hodierno, qual seja, a verdade processual, eis que auferida em

consonância ao devido processo legal e aos seus corolários, especialmente por um juiz

eqüidistante das partes, cuja imparcialidade e a neutralidade judicial manteve-se ou

presumiu-se incólume durante o trâmite processual.

Sob nossa ótica, merece prosperar o entendimento doutrinário e jurisprudencial

segundo o qual o julgador, ao lançar-se à atividade probatória com o fito de instruir o

processo, quebra o sistema processual constitucionalmente adotado. Afinal de contas, a

Carta Federal exige um juiz penal que garanta os direitos fundamentais do acusado e seja

expectador quanto à produção de provas, atividade genuinamente de competência das

partes, especialmente da acusação.

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