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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NÍVEL MESTRADO

ELISA HOERLLE

INDÚSTRIA CULTURAL E GRATUIDADE NA MIDIATIZAÇÃO DO CAMPO EVANGÉLICO

SÃO LEOPOLDO 2013

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ELISA HOERLLE

INDÚSTRIA CULTURAL E GRATUIDADE NA MIDIATIZAÇÃO DO CAMPO EVANGÉLICO

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Comunicação, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Orientador: Prof. Dr. Jairo Getúlio Ferreira

SÃO LEOPOLDO 2013

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H694i Hoerlle, Elisa

Indústria cultural e gratuidade na midiatização do campo evangélico / por Elisa Hoerlle. -- São Leopoldo, 2013.

105 f. : il. color. ; 30 cm. Dissertação (mestrado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos,

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, São Leopoldo, RS, 2013.

Orientação: Prof. Dr. Jairo Getúlio Ferreira, Ciências da Comunicação.

1.Comunicação de massa em religião. 2.Comunicação – Aspectos

religiosos. 3.Indústria cultural. 4.Religião e sociologia. 5.Midiatização – Cultura evangélica. 6.Cultura gospel. I.Ferreira, Jairo Getúlio. II.Título.

CDU 659.3:2 316.7 2:316

Catalogação na publicação:

Bibliotecária Carla Maria Goulart de Moraes – CRB 10/1252

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Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as cousas.

Romanos 11:36

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, pelos auspícios.

Ao meu orientador, por apostar na minha pesquisa, e por conduzi-la para muito além

das minhas expectativas.

A Marisa Lobo, um exemplo de gratuidade, por tem me incentivado em relação aos

meus objetivos. E também aos amigos Rolf Jesse Fürstenau e Brenda Bianca Füstenau.

A quem sempre ama: Graziella Granata, Priscilla Borges Ribeiro, Maciel Goelzer e

Juarez Böes.

Aos colegas que de alguma forma colaboraram com suas discussões: Carol Casali e José

Eduardo Mendonça Umbelino Filho.

Aos irmãos do Farol, principalmente a José Ulisses Garcia.

Essa pesquisa não teria sido imaginada sem as provocações imaturas do amigo Flávio

Mendonça da Rosa.

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O mundo social se esforça, na medida do possível, por ser considerado como uma coisa óbvia. A socialização obtém êxito na medida em que essa qualidade de ser aceita como coisa evidente é

interiorizada. Não basta que o indivíduo considere os sentidos-chave da ordem social como úteis, desejáveis ou corretos. É muito

melhor (...) que ele os considere como inevitáveis, como parte e parcela da universal “natureza das coisas”. Se isso for

conseguido, o indivíduo que se desgarra seriamente dos programas socialmente definidos pode ser considerado não só como um idiota

ou um canalha, mas como um louco.

Peter Berger

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RESUMO

O objeto desta pesquisa é a tensão entre o fenômeno mercantil, que movimenta

produção e consumo de materialidades na cultura evangélica, e as suas referências

religiosas. Questionamos em que sentido podemos entender a emergência de uma

indústria cultural evangélica como fenômeno de midiatização da religião, e que funções

distintas são exercidas por seus produtos no campo religioso. Nossa hipótese de trabalho

manifesta uma tensão espiritual, fruto da inserção de um grupo religioso no mundo dos

objetos. Teoricamente, mobilizamos proposições sobre a midiatização e sobre a

industria cultural. Nessa situação o escopo será verificar manifestações do esvaziamento

kenótico e das dialéticas de sublimação e de dessublimação na esfera da cultura

religiosa. A metodologia da pesquisa empreende um esforço pela superação das visadas

sobre a dominação pela técnica. O corpus reúne produtos muito diversificados,

organizados em categorias que revelam ações específicas.

Considerando os processos de midiatização da sociedade, percebemos a

autonomização do gospel em relação ao campo religioso originário. A produção cultural

evangélica aciona operações de instituições distintas; eclesiásticas, econômicas;

artísticas. Contudo, é organizada pelo gospel, que centraliza todas as suas disposições.

Uma delas, em especial, é bastante simples, e garante o contato de circularidade entre os

atores da indústria: evangélicos criam para evangélicos.

Nossa pesquisa delineia uma situação social indeterminada, fecunda para

produzir inferências sobre a mudança de contextos das instituições pelos processos de

midiatização da sociedade. Percebemos essa transformação pelo enfrentamento do

campo religioso com o midiático, históricos concorrentes no mister de explicação geral

do mundo.

PALAVRAS-CHAVE: cultura gospel; indústria cultural; religião midiatizada; gratuidade; heterogeneidade;

sublimação; dessublimação.

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ABSTRACT

The object of this research is the tension between the market phenomenon, that

moves production and consumption of materialities in the evangelical culture, and its

religious references. We question in what ways can we understand the emergency of an

evangelical cultural industry as a phenomenon of midiatized religion, and which distinct

functions are performed by its products in the religious field. Our work hypothesis

manifests a spiritual tension, product of the insertion of a religious group in the world of

objects. Theoretically, we mobilize propositions about midiatization and cultural

industry. In this situation, the scoop will be to verify manifestations of kenotic deflation

and of the sublimation and desublimation dialetics in the sphere of religious culture.

The research methodology takes an effort to overcome the views about the domination

by technique. The corpus gathers very diverse products, organized in categories that

reveal specific actions.

Considering the midiatization processes in society, we perceive the

empowerment of the gospel movement in relation to its original religious field. The

evangelical cultural production covers operations from distinct institutions; religious,

economical, artistic. It is, nevertheless, organized by the gospel culture, that centralizes

all its dispositions. One of them, in particular, is pretty simple, and guarantees the

circularity contact among the actors in the industry: evangelicals create for evangelicals.

Our research delineates an undetermined social situation, fruitful for making

inferences over the context change of the institutions by the midiatization processes in

society. We see this transformation by the coping of the religious with the mediatic

field, historical competitors in the role of general world explanation.

KEYWORDS: gospel culture; cultural industry; midiatized religion; gratuity; heterogeneity;

sublimation; dessublimation.

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Índice de Figuras Figura 1: Excerto convite Expocristã 2012 .......................................................................26 Figura 2: Asaph Borba na capa da revista Música Cristã e Sonorização............................53 Figura 3: Antigo Testamento Poliglota.............................................................................57 Figura 4: Bíblia Letra Grande...........................................................................................57 Figura 5: Bíblia “Tropa de Elite de Cristo”.......................................................................58 Figura 6: Bíblia decorada com plumas pink, e com hinário em anexo...............................58 Figura 7: Bíblia Personalizada..........................................................................................59 Figura 8: Diagramação interna de uma Bíblia comum ......................................................60 Figura 9: Diagramação de uma Bíblia de estudo...............................................................61 Figura 10: “As estrelas me mostram você” - filme de romance nacional...........................63 Figura 11: “Smilingüido e sua turma” - revista infantil nacional.......................................64 Figura 12: “Garota perfeita” - livro de autoajuda para mulheres .......................................65 Figura 13: Christafari - Soulfire ......................................................................................67 Figura 14: Christafari - WordSound&Power ....................................................................67 Figura 15: Warriors, Christafari – integrantes da banda interpretam missionários.............69 Figura 16: Warriors, Christafari – Mike Mohr e a esposa .................................................69 Figura 17: Warriors, Christafari – esposa de Mohr dançando ao redor do fogo .................69 Figura 18: Warriors, Christafari – líder da tribo, inimigo dos cristãos...............................69 Figura 19: Warriors, Christafari – líder da tribo, em êxtase religioso ................................69 Figura 20: Warriors, Christafari – líder da tribo, em êxtase religioso ................................69 Figura 21: Carol Celico ....................................................................................................70 Figura 22: Carol Celico e Cláudia Leitte ..........................................................................71 Figura 23: Carol Celico cantando com Kaká ....................................................................71 Figura 24: Carol Celico com Ana Paula e André Valadão ................................................72 Figura 25: Meme “Deus não muda estilo” ........................................................................74 Figura 26: Capa filme “O Pastor”.....................................................................................76 Figura 27: Capa filme “O Seqüestro do Metrô 123” .........................................................76 Figura 28: Redesenho capa filme “O Pastor”....................................................................76 Figura 29: meme “MKópia”.............................................................................................77 Figura 30: Capa filme “Daddy Day Camp”, de 2007 ........................................................78 Figura 31: Capa filme “Eaters”, de 2010 ..........................................................................78 Figura 32: Creme de cabelo “Gospel Line” ......................................................................79 Figura 33: Loja de moda Gospel ......................................................................................79

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Índice de Tabelas Tabela 1: Três fases da cultura gospel ..............................................................................19 Tabela 2: Encontro de Dispositivos ..................................................................................45

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Sumário

1 – Introdução ................................................................................................................12

1.1 Caracterização do objeto ..................................................................................16

1.1.1 Iconoclastia e demonização.......................................................................21

1.2 Perguntas ...........................................................................................................22

1.2 Objetivos............................................................................................................23

1.4 Contexto empírico: o campo evangélico ...........................................................24

1.5 Um lugar de fala ................................................................................................27

2 – Perspectivas teórico-metodológicas .........................................................................29

2.1 Acerca da midiatização .....................................................................................29

2.1.1 O dispositivo como lugar de condensação de formações da cultura ...........32

2.1.2 Tentativas de apropriação dos dispositivos pela indústria ..........................34

2.1.3 A produção cultural evangélica enquanto dispositivo ................................36

2.1.4 Afetação das configurações religiosas por formações da cultura................38

2.2 A carne e o espírito: os movimentos dialéticos do desenvolvimento de Eros ..40

2.2.1 A dialética da sublimação .........................................................................40

2.2.2 A dialética da dessublimação ....................................................................42

2.2.3 Ágape e Kenosis .......................................................................................44

2.2.4 O Eros perfeito .........................................................................................45

2.4 Movimentos em busca do objeto .......................................................................47

2.3.1 Referência preliminar................................................................................48

2.3.2 Para além da técnica .................................................................................50

3 – Explorações empíricas .............................................................................................52

3.1 Mercantilização dos produtos originais............................................................52

Asaph Borba......................................................................................................53

Segmentação do mercado de Bíblias ..................................................................55

3.2 Apropriação dos gêneros da indústria cultural secular ...................................62

Christafari .........................................................................................................66

Carol Celico ......................................................................................................70

3.3 Referência direta a produtos da indústria cultural secular .............................74

3.4 Bens não midiáticos com apelo gospel ..............................................................78

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3.5 Produção demonizadora ...................................................................................79

Edições Ferramenta ......................................................................................................84

4 – Conclusão .................................................................................................................94

Bibliografia...................................................................................................................103

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1 – Introdução

Um longo período de contato da pesquisadora com os materiais proporcionou

que se concebesse a produção de bens simbólicos evangélicos como uma indústria

cultural. Isto porque, aquilo que antes era fruto da criação popular pelas igrejas passou a

ser produzido por empresas que não apresentam necessariamente vínculo institucional

com alguma instituição religiosa, e, quando apresentam, como, por exemplo, a Casa de

Publicações da Assembléia de Deus (CPAD), orientam suas operações para além de

suas fronteiras, com o intuito de abranger a maior audiência possível. Nesse caso, para

dar uma idea da dimensão pretendida, a coletânea de hinos religiosos mais tradicional

do País, a “Harpa Cristã”, é vendida pela CPAD no catálogo da Avon por R$ 4,00.

A indústria cultural evangélica é um fenômeno que contemplaria o surgimento

de novas empresas que dirigem suas atividades ao público em questão, atuando tanto na

criação de bens simbólicos originais quanto na tradução e importação de produtos

estrangeiros, majoritariamente norte-americanos. Editoras, gravadoras, estúdios de

cinema, lojas segmentadas. No novo milênio, os evangélicos, além de estarem presentes

nos meios tradicionais, possuem seus próprios recursos sobre produção, distribuição e

veiculação de seus produtos.

É sabido que as empresas apresentam um resíduo pré-industrial, a saber,

evangélicos preferencialmente contratam evangélicos. A profissionalização do setor

significa que evangélicos se capacitam e são incorporados no mercado gospel.

Eventualmente algum profissional de outra orientação religiosa pode trabalhar para a

indústria, mas não como responsável pela criação dos produtos.

Tomando o caso anterior, um produto como o hinário “Harpa Cristã” agrega

operações religiosas (canções de louvor), operações midiáticas (impressão em massa) e

operações econômicas (venda num catálogo direcionado ao público feminino das

classes B e C).

Observamos, nesse processo, uma transformação do estatuto da cultura gospel,

que se reconfigura com a midiatização da religião. Quer-se dizer com isto que o gospel

transforma-se de expressão da religiosidade evangélica, produzida por operações

estéticas consagradas e facilmente reconhecíveis em uma pluralidade de discursos,

produtos e formatos inerentes a indústria cultural. A penetração da indústria em

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múltiplos segmentos da religião evangélica (mulheres, crianças, negros, universitários)

é realizada a partir da incorporação de gêneros e padrões estéticos da indústria cultural

secular. Assim, para cada produção dela, será fácil encontrar um similar pela indústria

gospel: um filme de ação, um livro de romance, um álbum de rap.

Outro aspecto importante que ajudou na formulação das proposições e

questionamentos iniciais é a oferta de produtos que extrapolam o campo midiático.

Afora as lojas tradicionais, as livrarias evangélicas, surgirão iniciativas curiosas, como

agências de viagens, clínicas de saúde, bares, empresas que produzem festas de

casamento, confecções masculinas e femininas, grifes de surfwear, etc. Negócios

similares ao da indústria secular, que focam suas atividades no público evangélico.

Além disso, vale a pena reforçar que a indústria secular apresenta-se como uma

mediação importantíssima. Nesse ponto, não se trata apenas da indústria cultural incidir

sobre as práticas evangélicas, porque também o gospel se apropria de lógicas e ações da

indústria secular para estruturar atividades que correspondem determinadas funções

entre o público almejado. Por isso, o que acontece lá (no mundo), acontece aqui (entre

os evangélicos).

Num determinado momento, porém, a pesquisa defrontou-se com um problema

de ordem metodológica, quando a proposta sobre uma indústria cultural evangélica

demonstrou-se infrutífera para produzir novas descobertas sobre o fenômeno. Se na

perspectiva frankfutiana a indústria cultural subsume os processos criativos e

administrativos da cultura à lógica econômica, apostamos que o processo não é

homogêneo, que a emergência de múltiplas expressões simbólicas pelos evangélicos

não pode ser explicada por ações econômicas somente. Uma análise como essa

destituiria aspectos espirituais e comunitários importantes, suprimindo a experiência de

transcendência que é vivida pelo fiel.

Por causa disso o desafio que se enfrenta é por um lado conservar a idea de uma

indústria cultural, mas por outro lado superá-la. Produzir um tensionamento que

contemple o que está para além das processualidades de dominação. O mercado que

expomos se origina com a constituição do campo evangélico enquanto público,

ampliando-se pelo crescimento da religião, e também pela incorporação de lógicas de

midiatização introduzidas pelos seus atores.

Este tensionamento considera os discursos e as práticas religiosas em interação

com as lógicas da indústria cultural. O cerne da proposta religiosa cristã se apóia a

partir de uma noção extrema de alteridade, cujo exemplo perfeito se materializa na

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pessoa de Jesus Cristo. A doutrina da trindade ensina que ele é um ser eterno, que

coexistia com o Pai e o Espírito Santo na glória celestial, e assim o apóstolo João inicia

seu evangelho, declarando que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”1. O cristianismo envolve uma forma de amor radical, que instiga

um despojamento profundo.

Nesse sentido a trindade se divide, gerando entre os homens a encarnação de seu

Filho. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai2”. Este movimento de transformação de natureza, que descende da

condição eterna à vida comum humana, é designado pela teologia cristã como kenosis,

palavra da língua grega para esvaziamento. Para além das distinções de amor Ágape

(incondicional, gratuito), e amor Eros (desejo por um objeto que preenche determinada

falta no sujeito); o amor kenótico incorpora o sofrimento. Em Jesus, este amor está

sempre presente, desde a encarnação até sua morte sacrificial. Sua vida não foi para si

mesmo, mas uma forma de culto, uma consagração à vontade do Deus Pai. O propósito

da vida de Jesus se cumpre integralmente na cruz, quando consuma sobre si mesmo o

castigo das ofensas humanas. Nesse enredo dramático, o propósito da vida humana de

Jesus é um propósito de mortificação, enfim, de esvaziamento.

O ritual da eucaristia, pelos católicos, ou da ceia do Senhor, pelos protestantes, é

a suma geral da teologia da cristã, porque celebra o amor kenótico derramado no

sacrifício vicário de Cristo, trazendo a todos alimento de vida e esperança de salvação.

Dessa forma, todo aquele que deseja seguir a Jesus é convidado a assumir uma atitude

semelhante de esvaziamento, negando a si mesmo.

Pode-se perceber duas tendências na interpretação do "negar-se a si mesmo" nas ciências humanas. Por um lado, ele é visto como uma proposta aniquiladora da pessoa, e uma alienação do sujeito, onde a cruz aparece como a negação do homem. Por outro lado, há uma visão antropológica e filosófica que defende a necessidade do "negar-se a si mesmo" como um descentramento da pessoa, para que ela possa aprender a ser com o outro" e "ser para os outros". (Cavalcanti & Ceballos 1999 p. 54) Para essa antropologia, o modelo é seguir a Cristo: Ele não existe para si próprio, mas para o Pai e para os irmãos. Na qualidade de modelo humano, a vida e o comportamento de Jesus está a nos dizer que "existir-para-os-outros" (Pai, irmãos)

1 João 1:01 (ARA) 2 João 1:19 (ARA)

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é o caminho integral da humanização do homem. Na determinação do que seja humano ou desumano, a antropologia teológica cristã tem uma criteriologia bem precisa: o modo de ser humano vivido por Jesus Cristo, a saber, "ser com" os outros e "para os outros". (Cavalcanti & Ceballos 1999 p. 57)

Quem ama a Deus não vive mais para si mesmo, e estará disposto, em última

instância, a morrer pelo seu nome, tornando-se um mártir. O amor kenótico expressa

uma condição trágica, resultando sempre em alguma espécie de sofrimento e de

mortificação. Contudo, se alguém quiser entender a tragédia, há que superar sua

aparência de loucura, resgatando a prerrogativa existencial, que enche a vida humana de

significado, de forma que o sentido porque vivemos é o mesmo sentido porque

morremos. A tragédia é a realização máxima do propósito e da natureza humana.

Vale ressaltar que, embora trágico, o amor kenótico não é uma expressão

masoquista, porque não se compraz no sofrimento, mas no resultado que este

proporciona. Uma vida abundante, transformada, acolhida. O esvaziamento é, em última

análise, o poder para transformação, a realização da graça.

Na história o mistério da encarnação se nos apresenta como o encontro visível, por excelência, entre natureza e graça. Eis o esplendor do todo que se manifesta no fragmento da história. A graça possibilita, enfim, o nascimento de uma casa do homem novo com (...) novos costumes, com um novo modo de agir em Cristo. (Burocchi 2011 p. 108-109) Neste sentido, o ser humano, mais que simples destinatário passivo da graça de Deus é também aquele que, livremente, acolhe o amor doado, agindo de acordo com o dom recebido, tornando-se, assim, partícipe do movimento gracioso da autocomunicação divina. A graça supõe a natureza. A graça não destrói a natureza, mas a plenifica. (Burocchi 2011 p. 108)

Esta breve exposição delineia o espírito cristão na sua forma mais pura. Seu

caráter ideológico pode causar estranhamento aos que não estão familiarizados com o

imaginário referido. Podem inclusive, levantar questões legítimas. Quem um dia amou

com tanta intensidade? Que práticas dos atores religiosos testemunham esta obra de fé?

No Brasil, a religião cristã evangélica ocupa um espaço importante na sociedade

civil. Entretanto, é marcada pela fragmentação, por disputas doutrinárias e por

diferenças de costumes, redundando numa multiplicidade de denominações distintas.

No lugar em que o amor kenótico parece se esvair, a emergência de um mercado de

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bens simbólicos religiosos assume uma dimensão paraeclesiástica, reunindo atores de

um campo disperso.

Nosso projeto trabalha com um fenômeno mercantil, que movimenta produção e

consumo de materialidades na cultura evangélica. Enquanto proposição, enfrenta-se

com uma tensão espiritual, manifesta pelo deslocamento de significado da noção de

esvaziamento. A dissertação, em seu primeiro capítulo, profere a caracterização deste

objeto, contextualizando um fenômeno midiático no âmbito das práticas que o campo

religioso organiza em relação aos signos.

No segundo capítulo, delineiam-se os pilares da nossa fundamentação teórica.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento da midiatização da sociedade, e a visada do

dispositivo como processo condensador de determinadas interações. Em segundo lugar,

a leitura que Marcuse faz da teoria freudiana sobre os movimentos de ascensão e

descensão de Eros na sociedade industrial. Comparamos estas dinâmicas do desejo ao

esvaziamento sagrado.

No terceiro capítulo, fazemos a análise dos observáveis, retomando alguns

conceitos propostos pela teoria crítica. Separamos uma seção específica para contrastar

determinadas interações de antagonismo do campo religioso com os meios de

comunicação de massa. A conclusão tenta responder e reproblematizar as questões

postas no decorrer da pesquisa.

1.1 Caracterização do objeto Entende-se que a produção simbólica evangélica transformou-se de uma

expressão de cultura popular para um caráter industrial-massivo. A dissertação estrutura

sua descrição do fenômeno de midiatização da cultura gospel pela divisão do processo

em três etapas:

O termo gospel significa evangelho, ou “boas novas do Reino de Deus” No seu

sentido estrito, corresponde a música de igrejas negras do sul dos Estados Unidos.

Entretanto, a pesquisa trabalha o termo gospel no sentido amplo, designando a

expressão cultural do campo religioso correspondente, que existe desde a reforma

protestante.

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O gospel em sua primeira fase corresponde à produção de canções executadas

nas congregações, bem como por uma incipiente produção de livros doutrinários, pela

criação de eventos com execução de cantatas3, de peças de teatro e outras práticas

comunitárias de cultura popular. Ele emerge de instituições do campo evangélico, mas

sofre uma metamorfose, tornando-se o que Cunha (2004) sistematiza como cultura

híbrida, adquirindo características específicas, concretizando-se como estilo de vida.

As igrejas evangélicas herdaram da Reforma Protestante o iconoclasmo, o

repúdio às imagens. A fase iconoclasta corresponde a uma produção incipiente, em que

existem somente bens simbólicos originais. É incorreto afirmar com isso que não havia

imagens, pois, na verdade, alguns materiais apresentavam ilustrações bíblicas que

exerciam uma função pedagógica. Por iconoclasmo designamos um período em que a

religião não elaborava formas de espetáculo próprias da sociedade industrial.

Nessa etapa, o canto congregacional das igrejas negras do sul dos Estados

Unidos demonstra uma inovação estética, que introduz o espetáculo no cenário

evangélico. Então o gospel surge como o germe discursivo daquilo que, em anos

seguintes, constituirá uma cultura híbrida. Uma transformação que começa no início do

século XX nos Estados Unidos, mas que, no Brasil, só inicia na fase seguinte, pela

década de sessenta.

O surgimento de uma sociedade de massas propulsionou a quebra da

transcendência das imagens com a reprodutibilidade técnica4. As imagens perdem o

caráter religioso com os procedimentos de indústria cultural. Com isso, a contemplação

estética deixa de ser sinônimo de adoração ou idolatria. As posturas iconoclastas

tornam-se obsoletas, e é aberta a possibilidade de transformação das práticas sobre a

imagem, inclusive entre os evangélicos.

A proibição de idas ao cinema e de audiência da televisão naturalmente

representam um resíduo iconoclasta, em que os evangélicos se posicionam de forma

arredia à inovação técnica. É um discurso apocalíptico, que perdura até hoje em séquitos

mais conservadores da religião. Por outro lado, entendemos que a reconciliação dos

evangélicos com as imagens inicia com a inserção de programação das igrejas no rádio

e na televisão, usando os meios como suporte a serviço das mensagens proselitistas.

3 Cantata é uma encenação musicada de histórias bíblicas, muito comum em datas especiais, como a páscoa e o natal. 4 Esse argumento é elaborado por Benjamin em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técinica”, e revisto por Arlindo Machado em “o quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges”.

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Então o gospel sofre uma primeira metamorfose, quando deixa de ser uma

expressão de louvor das igrejas negras, configurando-se como um movimento cultural

adaptado aos meios de massa. Na fase da igreja eletrônica, o gospel constitui uma

formação estética específica, identificável por características marcantes no jeito de

pregar, de vestir e de dançar durante os cultos.

Na segunda fase, ainda que não se valendo de fins lucrativos, o gospel incorpora

técnicas industriais. As igrejas ampliam seu espaço de atuação, tornando-se presentes

nos meios de comunicação de massa. É o início da religião midiatizada, situada na

passagem da Grafosfera à Midiosfera (estágios específicos de seu desenvolvimento, que

serão explicados no capítulo seguinte). Entende-se que o protestantismo, na sua

dimensão comunicacional, sempre foi caracterizado como uma religião da palavra

escrita. Nesse sentido a mudança do suporte é também uma mudança de paradigma, que

repercute em transformações das lógicas próprias da religião, por exemplo, quando na

igreja eletrônica os cultos são conduzidos como programas de auditório.

Consideramos que a terceira fase é quando surgem as condições para que o

gospel se descole de suas instituições religiosas de origem. Tal autonomização foi

percebida pela pesquisadora primeiramente em sua intersecção com o campo

econômico, pelo surgimento de empresas sem vínculo institucional que produzem para

o público religioso.

Mas um aprofundamento da questão esclareceu que a cultura gospel ampliou seu

escopo de atuação, resultando ao mesmo tempo em produções de consumo cultural e em

expressões midiatizadas sem fins lucrativos. Nesse mérito, a internet é farta em

exemplos: surgirão redes sociais, blogs de opinião, aplicativos de Bíblia para celular,

memes para facebook com mensagens que incentivam a santificação. Enfim, produções

simbólicas que alimentem a formação de uma identidade comum, o gospel.

Nosso objeto descreve um fenômeno produção de bens simbólicos; entretanto,

entendemos que o gospel nem sempre é produto, e que quando é produto, nem sempre é

midiático. Feita essa ressalva, continuamos nossas proposições sobre um fenômeno de

consumo cultural, que, segundo Canclini:

[O consumo é] o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. [O consumo cultural é] o conjunto de processos de apropriação e usos de produtos nos quais o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e de câmbio, ou onde ao menos estes últimos se configuram subordinados à dimensão simbólica. (apud Cunha 2004 p. 231)

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A incorporação de gêneros de indústria cultural pelos evangélicos modifica

significativamente a cultura gospel, quando apropria formações estéticas de grupos

seculares, dando origem a manifestações inéditas. Então uma música evangélica pode

ser um hino religioso, uma balada sertaneja ou uma canção de choro. Pode falar sobre a

graça redentora de Jesus, sobre como vestir-se adequadamente ou sobre como manter as

finanças em ordem. Assim, para cada produção feita pela indústria cultural secular, será

fácil encontrar um similar pela indústria gospel: um filme de ação, um livro de romance,

um álbum de rap. A proposta sobre o gospel é que ele não é mais um segmento cultural

específico, é o que Magali Cunha (2004) denomina por uma cultura híbrida que

converte diversos discursos sociais às suas práticas.

Entendemos que o gospel designa uma materialidade, que na sua origem está

vinculada a instituições eclesiásticas, mas que se autonomiza com a midiatização da

religião. Na terceira fase, entra no circuito da indústria cultural pela produção e

consumo em massa de bens midiáticos. Esse novo mercado reúne operações de

instituições distintas: empresariais, religiosas, artísticas. É uma zona de passagem, um

espaço heterogêneo da cultura, que, no entanto, é organizado pelo gospel em suas ações,

formações estéticas e discursividades.

Referencias de trabalho para análise do gospel

1ª Fase Reforma

2ª Fase Anos 60

3ª Fase Anos 90

Marco cultural Música negra do sul dos EUA no início do séc XX

Cultos conduzidos como programas de auditório

Incorporação dos gêneros da indústria cultural secular

Práticas em relação aos signos

Iconoclasmo protestante; grafosfera

Reconciliação com as imagens; ingresso na midiosfera

Fetiche da mercadoria

Produções

Somente os produtos originais: Bíblias, livros doutrinários, hinos religiosos, eventos comunitários

Programas de rádio e televisão com mensagens proselitistas

Similares às da indústria cultural secular em todos seus bens e serviços: filmes de romance, festivais de rock, livros de auto-ajuda, etc.

Tabela 1: Três fases da cultura gospel (fonte: a autora)

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20

A partir desse quadro inferimos que, em contextos específicos, determinadas

práticas são desenvolvidas, resultando em produções que podem ser agrupadas

conforme as fases descritas. Essas produções remetem a contextos técnicos e

tecnológicos que atualizam os dispositivos, criando processos que incidem sobre o

marco cultural em novos usos, interações e apropriações. Uma formulação objetiva

destes conceitos será feita no capítulo dois, com base nas proposições de Ferreira e

Braga.

Explicitaremos também que, em Marcuse, o problema central da cultura se

articula a partir da questão da técnica, que, pela dominação da natureza, garante ao

homem o prolongamento e melhoria da sua existência. Em seu pensamento, a técnica

está atrelada a uma ideologia subjugadora, que produz na sociedade a hegemonia dos

homens pelos homens, caindo na dessublimação. Todo esse processo é atravessado por

linguagens, que mediam a produção dos significados, infringindo-lhes suas valorações.

Consideramos que o caminho de investigação pelo aporte dos dispositivos não é

o mesmo forjado por Marcuse, pois este sugere que a técnica é dominante. No esquema

acima, a técnica está atravessada pelo marco cultural e pelas práticas sobre os signos.

Somente quando realizada em materialidades, atravessando produtos, ela agencia suas

determinações sobre os processos culturais de usos e interações. Por um lado,

reconhecimento que as inovações técnicas da era industrial produziram uma

transformação dos interpretantes, abrindo caminho para autonomização da cultura

gospel do campo religioso que a originou. Mas, por outro lado, compreendemos a

incidência da cultura e das práticas sobre as técnicas e tecnologias.

Em nossas proposições sobre a emergência de um mercado de bens simbólicos

religiosos análogos aos produtos da indústria cultural secular, a midiatização da

sociedade é vista como uma transversalidade, presente em todas as dimensões do

fenômeno: sócio-antropológica, semio-discursiva e técnica-tecnológica. Consideramos

que essas três dimensões estão em processo, repercutindo exaustivamente umas sobre as

outras. Embora não seja dominante no processo dos dispositivos, a técnica adquire um

poder agenciador, realizando aspirações sociais que estão latentes na sua forma de

desejo. Este poder se manifesta em sua disposição quantitativa, pela escala que

consegue determinar em relação a algum determinado fenômeno.

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21

1.1.1 Iconoclastia e demonização Na esfera da cultura e das práticas, como já foi dito, a quebra da aura da imagem

na era industrial gera condições para que os evangélicos se desloquem em termos de

meios, incorporando técnicas de produção próprias de grupos seculares que geram uma

circulação de produtos inéditos.

A midiatização da cultura gospel transforma a sua relação com as igrejas

evangélicas, suas instituições de origem, gerando um espaço novo de atuação. O

processo carrega uma ambiguidade, posto que os evangélicos se midiatizam, mas

reproduzem um resíduo ideológico iconoclasta em relação aos meios de comunicação

de massa. A pesquisa propõe que resíduos não são somente sobras de processos

anteriores, são atualizações destes mesmos processos, engendrando lógicas e valores

que lhes garantem permanecer em circulação.

A observação preliminar dos observáveis pela pesquisadora destacou um grupo

de bens simbólicos que merecia ser salientado em relação aos demais. Trata-se de

produtos midiáticos que cumprem uma função específica dentro da indústria gospel:

demonizar a produção cultural secular. São produtos apocalípticos, não no sentido

bíblico, mas no sentido da formulação proposta por Umberto Eco: discursos alarmistas

que repugnam a cultura de massas. São mensagens que carregam um resíduo do

iconoclasmo protestante.

Os produtos apocalípticos da indústria gospel são uma forma de resistência à

industria cultural secular. Mas então estabeleceu-se uma controvérsia, porque os

mesmos produtos que demonizam as instituições midiáticas apresentam operações

idênticas em seus processos. Os evangélicos, além de estarem presentes nos meios de

massa tradicionais, apropriam-se de lógicas de indústria cultural, mas alguns de seus

produtos são destinados a denegrir essas mesmas instituições. Os produtos

demonizantes nem existiriam, não fossem as instituições que tanto criticam. O discurso

pode ser apocalíptico, mas a prática é integrada em relação à cultura de massas. Então o

que acontece lá (no mundo), acontece aqui (entre os evangélicos), mas há resistências,

e, sobretudo, contradições.

Em suma, propõe-se que os produtos da indústria cultural evangélica que

demonizam a indústria cultural secular carregam um discurso ideológico em relação aos

meios, assim o fazem porque estão imbricados com resíduos do iconoclasmo

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protestante. São produtos que carregam uma contradição interna: são integração e

apocalipse, articulação e resistência.

Quando os evangélicos tomam parte dos dispositivos interacionais da sociedade,

torna-se inquietante resolver a contradição que faz alguns grupos do campo religioso

demonizar estes processos. Nesse cenário complexo, muitas perguntas podem ser

propostas. De que forma os evangélicos pensam essas transformações? Que repertórios

mobilizam para isso?

Em se tratando de um campo fragmentado, um consenso sobre estas questões

torna-se inviável. A pesquisa tomará como recorte apenas um objeto do gênero, que

fortuitamente forneça indícios de algumas das posições religiosas em torno da

comunicação e da cultura humana.

Esta questão e as demais perguntas da pesquisa foram estruturadas em duas

instancias; a primeira se move para interpretação antropológica de um fenômeno de

natureza midiática. A segunda reúne um conjunto de questões parciais, que orienta a

caracterização do objeto enquanto situação social indeterminada.

1.2 Perguntas A pergunta geral em relação às nossas investigações foi desenvolvida em contato

com tensões percebidas na interpretação do nosso objeto. Essa questão pode ser

resumida pela seguinte proposta:

De que forma o esvaziamento kenótico e as dialéticas de sublimação e dessublimação se articulam em ações, formações estéticas e discursividades entre os atores da indústria cultural evangélica, compreendida no ambito dos processos de midiatização?

Para tentar responde-la, precisaremos de algumas questões auxiliares, que

contextualizam a problematização. São elas:

• Em que sentido podemos entender a emergência de uma indústria cultural

evangélica como fenômeno de midiatização da religião?

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• Considerando a heterogeneidade da cultura, que funções distintas são cumpridas

por estes materiais da industrial cultural no campo religioso?

• Que motivos justificam a ocorrência simultânea de midiatização e de resíduos

iconoclastas pela indústria cultural evangélica?

• Que propostas do campo evangélico sobre a comunicação humana se relacionam

com o fenômeno estudado?

1.2 Objetivos

Como foi dito anteriormente, o projeto caracteriza uma situação social

indeterminada, que demanda novas regras interpretativas para sua compreensão.

Apresentamos o fenômeno como uma indústria cultural, relativizando a acepção do

termo, considerando sua ocorrência em imbricações heterogêneas com outras

disposições. Esse primeiro objetivo será realizado pelo acionamento de duas referências

teóricas distintas: o aporte do dispositivo interacional e o ensaio marcusiano dos

movimentos dialéticos da cultura.

O objetivo seguinte, ainda no âmbito descritivo, é trabalhar o gospel como uma

instituição que se inscreve em processos de midiatização da sociedade. Esta questão

contextualiza as demais perguntas de pesquisa, um escopo desenvolvido no capítulo de

caracterização de nosso objeto. A midiatização ocasiona a quebra da aura da imagem, e

esta quebra abre caminho para a reconciliação do campo evangélico com a

contemplação estética, proporcionando o surgimento de um mercado de bens simbólicos

e midiáticos. Todavia essa anuência às imagens não ocorre na cultura gospel sem

tensões. Nesse sentido, estudaremos a ocorrência dos resíduos da ideologia iconoclasta,

levando em consideração as propostas do campo religioso sobre a comunicação

humana.

Faremos, em nossas explorações empíricas, um mapeamento do nosso objeto

por categorias que organizam os materiais segundo indícios de processualidades

específicas. Relacionamos a esse esforço nosso próprio conceito de indústria

evangélica, que precede todas as questões posteriores. Quer dizer, um espaço de

circulação de produtos direcionados ao segmento, gerado por empresas que não

apresentam vínculos denominacionais imediatos, e que se apropriam dos gêneros da

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indústria cultural secular em suas criações. Consideramos a heterogeneidade da cultura,

e objetivamos salientar que funções distintas são cumpridas por estes materiais no

campo religioso, e como este último se posiciona frente às tensões em análise. Nosso

capítulo de análise empírica realizará esses dois objetivos com o auxílio de autores que

comentam a teoria crítica da comunicação.

Superado os aspectos descritivos, a problematização da pesquisa se estrutura no

espaço de tensão entre sublimação e dessublimação em ações, formações estéticas e nos

discursos dos produtos evangélicos. Interpõe-se a esses dois processos um espaço de

crença próprio do campo religioso, o esvaziamento kenótico. O objetivo nessa etapa é

verificar as dinâmicas dialéticas destes três dispositivos nas materialidades da indústria.

Como questão de pesquisa, foi formulada no desenvolvimento do referencial teórico e

em relação com a entrada da religião evangélica no mundo dos objetos.

A realização desses objetivos deve permitir, por inferências, visitar as discussões

da linha “Midiatização e Processos Sociais” sobre as relações entre midiatização,

indústria cultural, heterogeneidade e gratuidade, tomando como referência para esta

última um conceito de alteridade religiosa radical, a kenosis.

1.4 Contexto empírico: o campo evangélico A proposta da pesquisa investiga a autonomização da cultura gospel como uma

transversalidade que perpassa diversas instituições, e por isso o trabalho não cita

nenhuma igreja específica. No entanto, para esclarecer o que a pesquisa define como

campo religioso evangélico no Brasil, reproduz-se aqui a categorização da pesquisadora

Magali Cunha (2004 p. 17-18), que organiza uma síntese denominando seis grupos

principais:

• Protestantismo Histórico de Migração, que tem raízes na reforma do século XVI, chegou ao Brasil com o fluxo migratório estabelecido a partir do século XIX, sem preocupações missionárias conversionistas. É representado pelas igrejas Luteranas, Anglicana e Reformada;

• Protestantismo Histórico de Missão, também originado da Reforma

do século XVI, veio para o Brasil trazido por missionários norte-americanos no século XIX. Corresponde às igrejas Congregacional, Presbiterianas, Metodista, Batista e Episcopal;

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• Pentecostalismo Histórico, (...) veio para o Brasil no início do século

XX com objetivo missionário. É caracterizado pela doutrina do Espírito Santo (...), caracterizado pela glossolalia (o falar em línguas estranhas). Composto pelas Igrejas Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Evangelho Quadrangular;

• Protestantismo de Renovação ou Carismático, que surgiu a partir de

expurgos e divisões no interior das chamadas “igrejas históricas”, em especial na década de 60, caracterizado por posturas influenciadas pela doutrina pentecostal. (...) É formado pelas Igreja Metodista Wesleyana, Presbiteriana Renovada e Batista de Renovação, entre outras;

• Pentecostalismo Independente, que, sem raízes históricas na Reforma

do século XVI, surgiu (e surge ainda hoje) de divisões teológicas ou políticas nas “denominações históricas” a partir da segunda metade do séc. XX. Tem como especificidade sua composição em torno de uma “liderança carismática”, a pregação da Teologia da Prosperidade e da Guerra Espiritual, a prática constante de exorcismos e curas milagrosas e o rompimento com o ascetismo pentecostal histórico. Sua enumeração é dificílima dada a profusão constante de novas igrejas: entre outras, Deus é Amor, Brasil para Cristo, Casa da Bênção e Universal do Reino de Deus.

• Pentecostalismo Independente de Renovação (...) Possui as

características do Pentecostalismo Independente (...) mas diferem dele por terem como público-alvo as classes médias e a juventude, estruturando seu modo de ser para alcançá-los. Esse modo de ser atenua a ênfase no exorcismo e nos milagres e ressalta a prosperidade e a guerra espiritual. Grupo de igrejas compostas pela Renascer em Cristo, Comunidades (Evangélicas, da Graça), Sara Nossa Terra e Bola de Neve, entre outras.

As grandes empresas da indústria evangélica não costumam apresentar vínculo

institucional, nem restringir o público-alvo a igrejas específicas. A exceção disto é o

protestantismo histórico de migração, que ainda produz somente bens simbólicos

originais (ver o capítulo 2.1.4) e não participa expressivamente do fenômeno descrito.

Fundado por tentativas estrangeiras, o campo evangélico brasileiro se desenvolve entre

disputas de sentido. Uma dinâmica sectária, conseqüente das tentativas de

estabelecimento de coesão interna, ou ortodoxia. Em relação a esse assunto, Cunha

(2004 p. 74) explica que:

Os missionários que implantaram o Protestantismo histórico de missão no Brasil adotaram uma espécie de uniformidade na propagação desses elementos da fé protestante (teologia, costumes, forma do culto) mas, ao mesmo tempo, mantiveram o espírito divisionista. No Brasil, isso se configurou e se consolidou por meio da conversão de uma cultura religiosa para outra, o que significou que o fato de ser minoria levava

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os grupos protestantes a reforçarem sua coesão interna, com base em racionalidades religiosas. Dessa forma, a característica cismática e divisionista do protestantismo encontrou espaço no Brasil e provocou muitos conflitos. Havia concorrência entre as denominações, agravada pela passagem de fiéis e pastores de uma para outra e pelas polêmicas, como por exemplo, em relação aos batistas, que rebatizavam os fiéis que se transferiam de outras igrejas protestantes.

Em 2012, poucos meses antes da divulgação das características gerais da

população do Censo Demográfico de 2010, uma organização paraeclesiástica chamada

Sepal (Servindo Pastores e Líderes) divulgou uma estimativa ousada, que previa 26,8%

em 2011 e com uma expectativa de crescimento estimando 46,7% até 2020. A Sepal

usou o censo de 2000 e uma pesquisa da Datafolha de março de 2007.

A estimativa da organização foi replicada no convite da Expocristã, uma feira de

negócios que reúne produtores e distribuidores da indústria no mega centro de

exposições Anhembi, em São Paulo5.

Figura 1: Excerto convite Expocristã 2012

Entretanto os resultados do censo de 2010 mostraram uma realidade aquém da

expectativa do setor: os evangélicos atualmente representam 22,2% da população

5 Em 2013 a Expocristã não foi realizada, porque a empresa responsável contraiu várias dívidas, deixando de pagar o aluguel do parque de eventos. Concomitantemente, uma empresa do grupo Globo lançou uma versão concorrente, a Feira Internacional Cristã (FIC). Ainda não podemos interpretar o significado dessa interface da indústria secular com um fenômeno mercadológico criado por e para evangélicos.

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brasileira, o que corresponde a 42,3 milhões de indivíduos. De uma forma ou de outra

os evangélicos emergem como uma potência mercadológica, pois mesmo dispersos em

milhares de denominações com posicionamentos doutrinários específicos, são unidos

enquanto consumidores em potencial.

Essa inserção dos evangélicos no circuito industrial de produção e consumo

expressa uma tensão sensível, quando as transformações da sociedade penetram nos

significados das instituições, mudando sua maneira de agir no mundo. Nesse sentido

nos interessa trabalhar uma noção específica de cultura, elaborada a partir das dinâmicas

entre desejo e plenitude. Dessa forma, considerando a midiatização da sociedade, será

possível delimitar o objeto de pesquisa; uma situação social indeterminada, que emerge

num espaço de disputas de sentido da cultura.

1.5 Um lugar de fala

Sobre o lugar de fala que ocupa e que motiva as formulações e questionamentos

presentes no projeto, cabe nesse ponto relatar brevemente sua situação nos processos

descritos. A pesquisadora foi criada em uma grande igreja evangélica6, que de várias

formas promovia interação entre os jovens, através de festas, retiros, cultos e outros

eventos que geram uma rede de relacionamentos separada de interferências exógenas,

sustentando conteúdos específicos. O posicionamento apocalíptico em relação aos

produtos midiáticos seculares era um conteúdo recorrente, que ganhava destaque nas

pregações direcionadas aos adolescentes. Alguns líderes de jovens não somente

desaprovam o consumo de música secular, como também fazem campanha entre seus

discípulos, incentivando-os a quebrarem seus discos, ou a fazerem uma varredura em

seus computadores, eliminando qualquer distração que os desvie do propósito.

Fundada ou não na realidade, esse tipo de preocupação demonstra que os atores

do campo religioso reconhecem nos media um grande poder de agenciamento. Então o

ingresso da pesquisadora na faculdade de comunicação gerou um desconforto sobre esse

este discurso apocalíptico, porque despreza conhecimentos estabelecidos de um campo

6 Da qual foi desvinculada no início da fase adulta. Hoje congrega num movimento emergente, que propõe uma tolerância em relação a posições doutrinárias, privilegiando a oração como forma de comunhão com o divino.

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de conhecimento em relação aos processos comunicacionais. Entretanto, a produção de

pesquisa sobre mídia e religião apresenta empecilhos semelhantes, ignorando

processualidades necessárias para um entendimento mais preciso do objeto. Dessa

forma, a pesquisadora encontra-se numa zona de passagem, que lhe permite construir o

objeto a partir de transversalidades, articulações e resistências.

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29

2 – Perspectivas teórico-metodológicas 2.1 Acerca da midiatização

O processo de midiatização da sociedade se caracteriza pela subsunção dos

processos sociais às lógicas dos meios. Enquanto fenômeno sócio-histórico, permite

várias formas de localização. Faremos nossa exposição no âmbito da linha de pesquisa

“Midiatização e Processos sociais” do programa de ciências da comunicação da

Unisinos. Introduzimos o assunto a partir de um gráfico elaborado por Pedro Gilberto

Gomes (2011b p.2). De acordo com essa formulação, é possível perceber a evolução

dos dispositivos de comunicação em relação com a complexidade da sociedade. A

divisão por estágios condensa características de eras específicas, em relação aos seus

processos interacionais de referência, que também podem ser entendidos como modos

de produção dominantes.

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Pedro Gilberto Gomes introduz o processo de midiatização da sociedade pelo

universo simbólico que veio a existir com a invenção da palavra pelo homem. Nessa

esfera, a criação da linguagem é concomitante ao surgimento da consciência. Ainda que

intencionalidade e pensamento sejam anteriores à invenção da fala, não é difícil concluir

que ela modifica de forma definitiva a mente humana.

A palavra pela invenção de uma técnica fonética cria um universo semio-

discursivo, um mundo de significados, que existem através de convenções, permitindo

que uma coisa esteja em lugar de outra. A palavra “sol” toma o lugar do astro,

permitindo a comunicação. À logosfera corresponde um modo de produção, que da fala

humana convenciona interpretantes. Tudo isso produz uma nova sociedade, capaz de

compartilhar imaginários. Esta sociedade está em proximidade espacial, no contato da

fala e na produção do ritual.

O estágio seguinte da evolução da midiatização remete a consolidação dos tipos

móveis. Um novo dispositivo, que redunda mais uma vez numa transformação profunda

da vida humana. A invenção do alfabeto e a produção de livros manuscritos já estavam

Logosfera Grafosfera Midiosfera Ciberesfera

Consciência

Universo Simbólico

Palavra Falada

Ideografia

Alfabeto

Prensa de Gutenberg

Televisão Homem simbiótico

Rádio Internet 2.0

Internet 1.0 Telégrafo

Complexidade

Evolução

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presentes na logosfera. Mesmo assim a prática social da palavra escrita demorou a se

consolidar, porque por milênios foi relegada a classes específicas, de forma que poucas

pessoas dominavam a técnica. A invenção de tipos móveis propulsionou uma

transformação midiática, quando a produção em massa de livros impressos amplia a

comunidade de leitores, gerando uma demanda de alfabetização.

A criação da escola foi a solução inventada para socializar as gerações seguintes

na leitura. Durante grafosfera a escrita foi o que Braga (2007) denomina processo

interacional de referência, um modo de interação dominante, que impõe suas lógicas aos

demais processos. Dessa forma o período não caracterizou uma supressão completa da

oralidade, mas uma subsunção à escrita como parâmetro de legitimidade.

À midiosfera corresponde um estágio de pluralização dos dispositivos em

circulação. Rádio e televisão resgatam o contato imediato produzido pela fala,

provocando o que McLuhan chama de retribalização. Na imagem, os interpretantes

serão transformados pela reprodutibilidade técnica. Cai a aura, sobe o espetáculo. Na

análise de Gomes, a midiosfera é a era mais curta, compreendendo aproximadamente

um século. Caracteriza principalmente uma sociedade de massas (e midiática), inclinada

ao fetiche de mercado.

A criação da internet desencadeia o último estado conhecido de midiatização da

sociedade. Ela reúne ante si todos os dispositivos anteriores, fazendo emergir uma

ambiência pela interconexão das mentes humanas em uma nova forma perceptiva. É um

processo incompleto e em muitos sentidos desigual, porque nem todos desenvolvem

competência necessária para serem inseridos nas interações virtuais.

Braga explica que no estágio presente ainda não existem claras articulações entre

as interações midiatizadas e aquelas da cultura escrita e da presencialidade. Isso

significa que em determinadas situações sociais a oralidade permanecerá como

interação de referência, como na socialização primária das crianças, momento de

aquisição da fala. De maneira semelhante, o âmbito acadêmico combina a sala de aula

(dispositivo de oralidade) com um programa de leituras próprio da cultura escrita.

A cibercultura caracteriza uma sociedade em que vários modos de produção

coabitam, um processo cuja diversidade é inerente aos dispositivos. É um momento de

transição de uma dominação anterior a uma dominação posterior, em que ainda não fica

claro o processo interacional dominante.

Embora a midiatização da sociedade seja um processo em andamento Fausto

Neto salienta que já estão presente indícios de uma transformação que subsume os

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processos sociais às lógicas dos meios. Na cieberesfera o próprio conceito de meio é

modificado:

Ou seja, seus papéis são transformados, uma vez que, da condição de suportes passam a ocupar “uma centralidade da vida cotidiana, como fonte de informação e de entretenimento, como fonte de construções de imaginários”. Temos aí a passagem da sociedade midiática para a midiatização, uma vez que é graças a crescente complexidade da cultura dos meios que se dá origem, em tempos depois, algo que o próprio Martín-Barbero chamaria de um “entorno comunicativo”. Não se trata mais da problemática dos meios subordinados às mediações, mas da emergência de novos e complexos objetos técnico-comunicacionais arquitetando uma nova ambiência e os padrões de funcionamento de novas interações sociais. (2011 p. 8-9)

Feita uma introdução sobre o conceito de midiatização, importa agora falar mais

sobre o conceito de dispositivo nela incorporado.

2.1.1 O dispositivo como lugar de condensação de formações da cultura

Braga o toma o termo emprestado de Foulcault, que o elabora como um sistema

de relações sociais, um tipo de formação que abre possibilidades de contato e

participação. Braga elucida que dispositivos são processos sociais que podem ser

repetíveis, reconhecíveis e nomeáveis, como, por exemplo, uma conversa de pai para

filho. Os dispositivos também podem ser pensados como matrizes socialmente

elaboradas e em constante reelaboração, que a sociedade aciona para poder interagir.

Dessa forma, estar dentro da cultura é socializar-se nos dispositivos que ela oferece.

Até aqui dispositivos representam uma categoria ampla, que não é

imediatamente relacionada às interações comunicacionais. Braga insere o conceito de

dispositivo como uma alternativa ao conceito de “meios”, que foi historicamente

esvaziado por sua falta de especificidade. Se, por um lado, o conceito de meio abrange

uma sociedade massificada, pautada pelas lógicas industriais; o dispositivo é uma

perspectiva epistemológica que permite verificar uma condensação de formações da

cultura, por critérios que nem sempre correspondem à dominação do homem pela

técnica. O dispositivo interacional é uma entrada para entender a circulação,

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problematizando os processos comunicacionais. Para entendermos seu funcionamento,

Braga (2010 p. 78-79) propõe uma série de perguntas:

– quais são os processos normatizados e qual o grau de abertura das regras? – como o dispositivo lida com suas margens específicas de imprecisão e probabilismo? – que tentativas sociais transcendem as metas comunicacionais singulares dos participantes? O que a sociedade encaminha, nos processos do dispositivo? – que competências interacionais são solicitadas dos participantes para assegurar que o desenvolvimento de uma interação (no âmbito de determinado dispositivo) apresente boas probabilidades de realização, com adequada precisão? – como explicitar o risco de autonomização dos códigos e sistemas de regras, que lhes retira a flexibilidade para ajustes sensíveis às situações vividas?

Jairo Ferreira complementa o argumento de Braga, abordando o dispositivo a

partir de uma tríade de operações sócio-antropológicas, semio-linguísticas e técnico-

tecnológicas. Os dispositivos são produzidos em usos, apropriações e interações que,

quando estabilizadas, se autonomizam e retroagem sobre os contextos, organizando

agendas e processos sociais.

Este processo ocorre na história, requisitando durações específicas. Sobre esse

assunto, Ferreira (2013 p.4) explica:

Compreendemos que as interações reguladas por práticas [processos de longo prazo] são aquelas em que se observa uma estabilização de narrativas, o que significa uma estabilização do valor simbólico de determinados signos que a constituem (bandeiras, objetos, atos, etc.). Já no processo regulado pelos usos [processos de curto prazo], há uma instabilidade sobre o lugar e espaço ocupados pelos signos, gerando-se uma sobrevalorização das interações.

As formações estabilizadas em um determinado dispositivo da cultura podem

mover novos discursos e interações, exigindo inclusive apropriações de competências

técnicas em proporção massiva na sociedade. Isso aconteceu na grafosfera, quando a

implementação da prática escrita requisitou, em última instância, a criação de um

sistema público de ensino.

Nesse exemplo, a sedimentação de um dispositivo retroagiu sobre seu contexto

de formação. O processo de midiatização da sociedade em seu último estágio se

caracteriza por mediações ditas ‘midiatizadas’, que, através dos dispositivos sócio-

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semio-tecnológicos quebram as lógicas de produção-consumo, fazendo emergir uma

circulação que propõe novas formas de engajamento. Nesse ponto há uma mudança de

paradigma, quando os dispositivos comunicacionais geram interações distintas das

lógicas da ideologia industrial e de subsunção ao valor econômico.

Essa perspectiva do dispositivo abrange circularidades das formações da cultura.

Através dela, percebemos que a técnica não é neutra, porque se desenvolve em relações

com aspirações preexistentes na sociedade. Antes que se inventasse o telefone celular,

por exemplo, a ficção já fabricara o seu conceito. Um dispositivo bem-sucedido captura

o sonho de uma formação da cultura humana. A simples oferta da indústria não significa

que os processos sociais serão transformados em usos e apropriações compatíveis com

as suas estratégias. Os dispositivos não se instalam necessariamente de acordo com as

lógicas industriais, porque estas, por mais inteligentes que possam ser, sempre se

enfrentam com formações, usos e interações que se autonomizam e se condensam em

termos de práticas.

2.1.2 Tentativas de apropriação dos dispositivos pela indústria

A proposta de uma indústria cultural evangélica como fenômeno de midiatização

religiosa tenciona dois aportes teóricos distintos. Em nossas proposições, a tese de uma

sociedade em vias de midiatização não extingue a carga factual de uma indústria

cultural como ela é trabalhada na teoria crítica e na economia política da comunicação.

Entretanto, a teoria da midiatização é estruturada a partir de uma nova perspectiva

epistemológica, um viés diferente para entender a comunicação. Nessa perspectiva dá-se

uma importância maior à processualidades outras que tomam lugar inédito na

sociedade. Há, por exemplo, uma ampliação nas formas de participação e resistência.

Por causa disso Ferreira aponta que

Os dispositivos, os processos midiáticos e as disposições das instituições midiáticas, não midiáticas e dos indivíduos se transformam, incidindo inclusive sobre a indústria cultural. (Ferreira 2011a p.12)

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35

Para Ferreira a indústria cultural não deixa existir, mas será transformada pelas

processualidades em jogo. A midiatização amplia o campo de interação, mas continuam

a atuar forças vinculadas aos capitais pertinentes.

No nosso caso de estudo, a indústria se forma em contato com o campo

religioso. Evangélicos criam para evangélicos num processo que reduz a defasagem

entre produtores e receptores. Essa circularidade delineia uma indústria com

características próprias, que foge do paradigma clássico. Na indústria frankfurtiana, os

consumidores eram abstraídos no processo. No nosso fenômeno, produtores estão em

relação de familiaridade, quando participam dos mesmos rituais e instituições. Podemos

imaginar, em um culto de domingo, um cantor de sucesso partilhando o pão da ceia do

Senhor com um consumidor em potencial. É claro que essa situação celebra um outro

tipo de relação, uma interação que não tem nada a ver com objetivos mercadológicos.

Mesmo assim entendemos que este contato e circularidade reduzem

ambigüidades, garantindo o sucesso da interação. Uma indústria em contato contempla

usos, interações e apropriações que se auto-regulam, estruturando a cultura gospel. Essa

circularidade pode ser trabalhada como um macro-dispositivo que organiza os micro-

dispositivos: bens simbólicos em produção e recepção.

Entendemos que o fenômeno se origina pela mercantilização de produções

originais do campo religioso, pela apropriação industrial de uma fortuna criativa que é

própria de um grupo determinado da cultura. Entretanto, uma indústria evangélica

propriamente dita se caracteriza pela apropriação dos gêneros da indústria cultural

secular. Dessa forma entendemos que a indústria cultural evangélica se constitui na

tentativa de captura de dispositivos da cultura secular, que são potencializados pela

midiatização da sociedade. Formações da cultura, apropriadas pelo campo religioso.

Neste processo se atravessam práticas de valor cultural-econômico.

A midiatização evangélica atualizada pela indústria cultural proporciona pistas

de dinâmicas em trânsito que são simultâneas a processos estabelecidos. Esse tipo de

processualidade indicia uma mudança dos contextos das instituições. Referenciada

nessa tensão entre práticas, usos e interações, compreendemos que a produção cultural

evangélica articula diversos usos, mas a ele se interpõe e atravessa uma prática de um

campo outro, da economia strictu sensu.

Não queremos inferir com isso que o processo redunde naquilo que Marcuse

conceitua enquanto dessublimação homogênea de resultados, uma subsunção de todos

os processos à ideologia de dominação pela técnica. Inferimos somente que a religião

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36

ainda não consolidou nenhuma prática própria em relação a circulação de tais produtos

em sua vivência interna, e que o próprio campo é muito fragmentado em relação a essas

questões. Um exemplo disso está nas interações iconoclastas, que são mais ou menos

incorporadas de acordo com o posicionamento dos atores. Ao mesmo tempo em que

algumas igrejas apresentam uma postura severa, proibindo inclusive o consumo de

produtos da indústria gospel que apropriam os gêneros da indústria secular;

denominações religiosas emergentes promoverão seus artistas, reconhecendo seu

trabalho como ministério.

Finalmente, entendemos que a iconoclastia strictu sensu foi superada enquanto

formação pelo campo religioso. Em seu lugar, ocupam disposições de resgate da

oralidade e de reformulação do estatuto visual.

2.1.3 A produção cultural evangélica enquanto dispositivo

Se a perspectiva da indústria cultural permite verificar uma prática estabelecida

do campo econômico atravessando processualidades da religião, o aporte do dispositivo

na midiatização da sociedade problematiza este posicionamento, avaliando outras

múltiplas interações da esfera da cultura, que engendram novas possibilidades.

A instituição religiosa é basicamente fechada em relação ao controle de seus

conteúdos de salvação (soteriológicos). Mas, ao mesmo tempo, há uma evidente

interação com outras instâncias. Nosso objeto de estudo se estrutura a partir de

múltiplos usos de formações da cultura no cumprimento de funções variadas do campo

religioso. São bens simbólicos dispostos para diversas finalidades: cuidado da família,

satisfação matrimonial, orientação financeira, entretenimento, evangelização, etc. Trata-

se de uma produção que atualiza diversos dispositivos em estado potencial, tanto do

campo religioso, nos materiais que suportam aconselhamento pastoral, profecias e

ensinos da doutrina como em formações de outras esferas da cultura, como, por

exemplo: biografias, convertidas em testemunho das obras da fé; pedagogia,

redirecionada a formação de princípios cristãos na criação dos filhos; moda e

tendências, a serviço de uma determinada valoração sobre o corpo feminino.

Disposições múltiplas, que apresentarão um relativo grau de sucesso em sua

ativação. As confecções evangélicas de moda feminina (saias abaixo do joelho, blusas

Page 39: UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS ELISA …

37

sem decote) e masculina (ternos populares) não costumam ultrapassar a barreira

denominacional que sugere o código vestuário específico. Não é o caso de outras

produções, amplamente aceitas pelos evangélicos e até mesmo apropriadas por

consumidores que não praticam a religião.

Usos, que constituem interações específicas na construção de um imaginário de

um estilo de vida gospel. Enquanto dispositivo, ainda não sedimentam uma prática

determinada, todavia orientam uma série de tentativas que estão relacionadas com os

movimentos de sublimação da cultura humana, quando, em suas interações, incentivam

determinados comportamentos de santificação.

Em relação ao funcionamento do dispositivo, a pesquisa se aproveita de algumas

questões articuladas por Braga. A primeira delas é sobre os processos que estão

normatizados no dispositivo, e o grau de abertura das suas regras. Entendemos que as

operações industriais sedimentam práticas do processo, entretanto o dispositivo

apresenta vestígios de uma lógica pré-industrial, próprios de um setor incipiente. Isso

ocorre quando se dá preferência a contratação de evangélicos em relação a profissionais

qualificados para uma determinada função.

Há também uma ortodoxia implícita em relação à infalibilidade das Escrituras

Sagradas, que inibe possibilidades de discussão de interpretações concorrentes. As

produções da cultura gospel costumam abafar questões profundas da fé, reproduzindo

posições estandardizadas sobre o problema do sofrimento ou da constituição do cânon.

O grau de abertura a essa norma se verifica em disputas de sentido em materiais que

discutem não a autoridade da Palavra, mas a validade de correntes doutrinárias e de

movimentos da religião evangélica, por exemplo, da teologia da prosperidade. A

indústria contempla posicionamentos teológicos divergentes, disponibilizando obras de

apologia e de refutação. No entanto, esse tipo de produção corresponde a uma parcela

pouco significativa no montante de bens simbólicos em circulação pela indústria. Os

produtos que alcançam mais sucesso passam longe desse tipo de preocupação.

Outro questionamento de Braga se refere a como o dispositivo lida com suas

margens específicas de imprecisão e probabilismo. A normatividade das operações

industriais é ameaçada pela pirataria e pela concorrência de produtos seculares. O

consumo de ambos pode ser trabalhado como pecado pelos grupos alarmistas.

O livro “A Cabana” exemplifica uma produção direcionada ao público

evangélico que tenciona a ortodoxia doutrinária fundamentalista. Ele foi distribuído no

Brasil pela Sextante, uma editora secular, mas, por causa do seu grande sucesso, teve

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38

sua venda disponibilizada por lojas especializadas ao segmento. A polêmica se

instaurou, e a tentativa de redução da improbabilidade constituída deu-se pela produção

de publicações de refutação à obra. Dessa forma, em uma mesma loja poderiam ser

encontrados o livro “A Cabana” e seu rival “Não Entre Nessa Cabana”.

Em terceiro lugar, consideram-se as tentativas sociais que transcendem as metas

comunicacionais singulares dos participantes. Em outras palavras, O que a sociedade

encaminha, nos processos do dispositivo. Essa questão é de difícil verificação. Uma

suposição possível é que a segmentação do mercado pode recrudescer a fragmentação

do campo religioso ao invés de unir todos abaixo do guarda-chuva da cultura gospel.

Entretanto esse tipo de inferência só pode ser confirmada por uma imersão no campo

religioso propriamente dito, verificando as práticas de consumo específicas das

denominações.

A penúltima questão que apropriamos de Braga preocupa-se com as

competências interacionais que são solicitadas dos participantes para assegurar que o

desenvolvimento de uma interação apresente boas probabilidades de realização. De

maneira geral os produtos da indústria cultural evangélica exigem um conhecimento

superficial em relação às Escrituras. Mas há também os produtos que fazem referências

diretas à produções da indústria secular. Casos de paródia, que exigem um

conhecimento prévio dos sucessos da indústria secular para adequada compreensão.

Finalmente, se questiona como explicitar o risco de autonomização dos códigos

e sistemas de regras, que lhes retira a flexibilidade para ajustes sensíveis às situações

vividas. Essa questão é bastante sensível ao nosso caso. A indústria cultural evangélica

constitui-se como um investimento da religião no mundo dos objetos, veiculando

diversos conteúdos que integram tentativas de ascensão. São tentativas que geralmente

não dão cabo de si, porque produzem um amálgama discursivo que nem sempre se

transforma em ações de esvaziamento por parte de seus atores. Verifica-se um risco de

reversão dos valores evangélicos aos valores industriais. Entretanto a questão da

gratuidade não pode ser dada como encerrada, ela merece ser devidamente avaliada nas

tensões da cultura.

2.1.4 Afetação das configurações religiosas por formações da cultura

Page 41: UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS ELISA …

39

Entendemos que as religiões sempre construíram mediações e se dinamizaram

em articulações e resistências com os dispositivos dominantes em determinados modos

de produção ou formações. A igreja católica durante a maior parte da sua existência se

estabeleceu no contato da fala, transmitindo suas tradições sem a mediação da palavra

escrita. Nessa esfera, as imagens nos templos e a própria liturgia da igreja funcionavam

como “bíblia para iletrados”. Na logosfera, as palavras sagradas eram recitadas em

práticas mnemônicas que constituíam uma forma de meditação. Exercícios de oração.

Por causa disso, os próprios textos sagrados encontraram empecilhos para o seu registro

em forma escrita.

A escrita é, ao contrário da fala, uma modalidade de interação diacrônica, que

permite registros duradouros e de alcance significativamente mais amplo. No campo da

religião, a reforma protestante se assenta como prática correlata da palavra escrita,

quando reivindica uma relação direta com as Escrituras, dispensando a tradição católica

na formulação de suas doutrinas.

A introdução do trabalho descreve uma fragmentação do campo religioso

evangélico, salientando que os protestantes históricos de missão ficam de fora do

fenômeno proposto pela pesquisa. Os luteranos, por exemplo, figuram inserções

discretas em rádio e televisão, mas, em geral, não produzem mais que bens simbólicos

originais. Enquanto permanecem no paradigma da palavra escrita, outros grupos

evangélicos modificam suas atividades em processos de midiatização.

Na atualidade o campo religioso defronta-se com o midiático em concorrência

pela circulação de suas mediações, suas práticas, seus conteúdos. A midiatização da

sociedade sugere uma prevalência das mediações midiatizadas, onde tecnologias

convertidas em meios produzem uma forma de vida cognitiva. Em relação a esse

assunto, Gomes comenta em um projeto de pesquisa:

Nossa hipótese [...] é que as religiões cristãs, ao se aventurarem no mundo das mídias, ainda permanecem na antiga ambiência. Idilicamente, elas olham o mundo midiático apenas como dispositivo tecnológico ignorando o seu projeto de totalidade. Existem dois projetos de compreensão da sociedade, ambos com pretensão de totalidade (o religioso e o midiático), que não se encontram. Levantamos a possibilidade de o segundo sobrepor-se ao primeiro, condicionando o modo como as pessoas vivem e projetam a sua religião. (Gomes 2007a p. 84)

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40

Em relação a nossas proposições, nos importa colocar que a cultura gospel se

autonomiza do campo de origem, produzindo expressões de indústria cultural, e também

muitas outras, que circulam pela web. Expressões sem fins lucrativos, criações de

amadores; veiculação oficial de instituições; e-commerce; pirataria gospel; enfim, uma

miríade de objetos em circulação, mas que não figuram em nossas questões de pesquisa.

Em nossa problematização, a midiatização da religião se origina na passagem da

grafosfera para a midiosfera. Inserimos nosso objeto em outra passagem, da midiosfera

à ciberesfera. Entendemos que a sociedade também participa de uma transição

semelhante, em que modos de produção em concorrência ainda não estabeleceram

práticas consolidadas. Uma sociedade cujos processos são marcados por usos e

interações, em detrimento das formações de longo prazo. 2.2 A carne e o espírito: os movimentos dialéticos do desenvolvimento de Eros

O desenvolvimento da técnica na cultura ocidental marca uma tensão entre duas

dialéticas, entre dois dispositivos que, em tese, são contrários entre si, mas que são

imbricadas perpetuamente nos materiais que produz. Dois princípios, que são fruto da

pulsão de vida da alma humana. A evolução de um desejo que, elevado na sua última

potência, se tornaria completo em si mesmo. Nessa etapa faremos uma breve

apropriação da leitura que Herbert Marcuse produz da teoria freudiana sobre o Eros na

sua constituição da civilização e da sociedade industrial. Em seguida, a pesquisa

problematizará o encontro das duas dialéticas com um terceiro, o esvaziamento sagrado

kenótico. Dessa forma pretende-se problematizar as suas incidências no fenômeno

caracterizado neste trabalho por produtos da indústria cultural evangélica.

Vale salientar que tanto Freud quanto Marcuse, e também a própria pesquisadora

se originam de um imaginário judaico-cristão, que é particularmente fecundo para

pensar os movimentos ascendentes e descendentes, de preenchimento e de esvaziamento

do espírito humano.

2.2.1 A dialética da sublimação

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41

Marcuse lê em Freud uma noção bastante ampla sobre o conceito de

sexualidade, tomando a libido por pulsão vital que move o homem, tanto contra como a

favor dos seus instintos. Esse instinto de vida é chamado por Freud de Eros.

Eros é desejo, e, portanto, falta. Ele inicia sua trajetória guiado pelo princípio do

prazer, da livre gratificação das necessidades instintivas. Mas logo surge um impasse,

quando o homem percebe que a satisfação desenfreada dos objetivos carnais gera morte.

O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua réplica fatal, o instinto de morte. Sua força destrutiva deriva do fato deles lutarem por uma gratificação que a cultura não pode consentir: a gratificação como tal e como um fim em si mesma, a qualquer momento. Portanto, os instintos têm de ser desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios. A civilização começa quando o objetivo primário - isto é, a satisfação integral de necessidades - é abandonado. (Marcuse 1972 p. 33)

O apóstolo Paulo, maior teólogo da cristandade, expressa um pensamento

praticamente idêntico:

Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis. (Romanos 8:13 ARA)

Não é necessário partir de um princípio moral para constatar que a submissão

aos interesses carnais, levada às últimas conseqüências, gera destruição, isolamento e

morte. Mas Eros é pulsão pela vida, que se contrapõe ao medo da morte. Daí se insere o

princípio da realidade, que substitui o prazer imediato pelo prazer mediato; a satisfação

instantânea pela satisfação adiada. Num movimento idealizador, de dialética

ascendente, Eros produz a sublimação.

Para Freud, o conceito de sublimação refere-se ao destino da sexualidade sob um princípio da realidade repressivo. Assim, a sublimação significa uma alteração na finalidade e objeto do instinto, "em vista do qual os nossos valores sociais entraram em jogo". (Marcuse 1972 p. 180)

Levý-Strauss indicou precisamente que a instituição do tabu do incesto e a

emergência da civilização são concomitantes. Nesse sentido entendemos pela dialética

da sublimação que a cultura é fruto da repressão dos instintos sexuais, gerando

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42

disposições duradouras de deslocamento da libido - invenção da linguagem, estruturas

de parentesco, divisão social do trabalho - que permitem a socialização e o progresso.

Freud acusa a cultura humana de coagir a existência social e biológica do

homem, mudando sua estrutura instintiva. A felicidade não é um valor cultural, se não

estiver sujeita a expressões socialmente úteis, como a jornada de trabalho integral e a

reprodução monogâmica. Á primeira vista, tanto a teoria psicanalítica como a tradição

cristã paulina parecem trabalhar a sublimação como um conceito essencialmente

negativo:

A carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer. (Gálatas 5:17 ARA)

Entretanto, incorporado o princípio da realidade na nova estrutura instintiva, o

próprio querer do homem é transformado pela cultura, gerando uma nova forma de vida.

Na dialética ascendente de Eros, o homem se esvazia para se encher. O poder criador da cultura de Eros é sublimação não-repressiva: a sexualidade não é desviada nem impedida de atingir seu objetivo; pelo contrário, ao atingir o seu objetivo, transcende-o em favor dos outros, buscando uma gratificação mais plena. (Marcuse 1972 p. 184)

O progresso da técnica, como vimos, é resultado da sublimação na cultura. Na

sociedade industrial, o homem pobre verifica um aumento significativo da sua

qualidade de vida, tanto pelas condições de higiene quanto pelo aumento da segurança

no trabalho, da quantidade de alimentos, de bens de consumo disponíveis, e,

principalmente pela redução de horas dedicadas ao trabalho braçal.

A era industrial problematiza as categorias iniciais, das dinâmicas ascendentes e

descendentes, do princípio do prazer e do princípio da realidade.

2.2.2 A dialética da dessublimação

O sonho iluminista de uma sociedade administrada, que com a automação

eliminaria a necessidade de trabalho braçal, enfadonho e repetitivo; e que pela redução

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43

da jornada de trabalho geraria espaço para a contemplação artística, às manifestações

lúdicas e à atividade criativa foi traído pela realidade da era industrial.

Apesar das melhorias implementadas pela técnica, o homem comum não

conseguiu livrar-se da necessidade do trabalho rotineiro. Para piorar a situação,

verificou-se na ideologia da indústria cultural uma inclinação pela valoração dos

objetos. A cultura de massa caracteriza-se pelo fetiche da mercadoria, em que os objetos

tomam a forma sucedânea das relações sociais. Ele é um engodo de duas faces, uma

confusão perceptiva, que trata as pessoas como coisas, e as coisas como valores de

vinculação. A fetichização anula qualquer possibilidade de transcendência, porque é

regida pelo princípio do prazer. Ela redunda numa reificação do outro, impedindo a

comunhão.

A dialética de dessublimação caracteriza-se pelo movimento descendente de

Eros, em que o desejo regride às coisas, em detrimento das relações. No campo das

artes, a sociedade industrial gera uma ruptura que nivela seus produtos de acordo com a

ideologia do mercado, de maneira que as produções culturais demonstram-se a serviço

de discursos e valores fetichizados.

Alienação artística é sublimação. [...] Agora essas imagens mentais estão invalidadas. Sua incorporação à cozinha, ao escritório, à loja; sua liberação para os negócios e a distração é, sob certo aspecto, dessublimação - substituindo satisfação mediata por satisfação imediata. Mas é dessublimação praticada de uma "posição de vigor" por parte da sociedade, que está capacitada a conceder mais do que antes pelo fato de os seus interesses se terem tornado os impulsos mais íntimos de seus cidadãos e porque os prazeres que ela concede promovem a coesão e o contentamento sociais. (Marcuse 1969 p. 82)

Em Marcuse, a dessublimação é o movimento predominante, gerando uma

sociedade unidimensional, em que o desejo fica retido nas materialidades. Com isso ele

propõe que a civilização não alcança a dimensão do espírito humano, geradora de

cultura, porque essa realização do desejo nos objetos bloquearia o processo de ascensão.

Uma vez que a dominação dos homens sobre os homens decorre da dominação

sobre a natureza, a técnica passa a dominar o cenário das realizações, e a sublimação

não se completa em termos ideais, restringindo-se na realização das coisas. A técnica

produz uma civilização regida por uma ideologia correlata. Por causa disso, o desafio

proposto pelo autor seria pensar uma técnica que funcionasse não pela dominação, mas

pela comunhão com a natureza, liberando o processo de ascensão.

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44

Em última análise, a dessublimação da cultura gera a circulação, a produção e

consumo de bens variados; mas essa multiplicação da oferta de objetos não alcança a

satisfação do espírito humano. A abundância não é plenitude, de maneira que o homem

tenta se encher, mas continua vazio.

2.2.3 Ágape e Kenosis

O seio da eternidade, pleno por definição, não contempla nenhuma falta. Esse

estado, querido com ansiedade pelo espírito humano, é chamado pela psicanálise de

princípio do Nirvana. Propõe-se que a tradição cristã carrega um conceito análogo, do

amor Ágape. O amor Ágape tem caráter estático, imutável, sublime. Ele é

incondicional, de forma que as falhas dos homens não mudam a natureza de Deus.

O amor Ágape é um conceito idealizado, uma formação absoluta, inexprimível.

A sua existência é santa, separada da existência humana, de forma que não pode ser

entendido, ainda que desejado com ardor pela alma devota.

Por causa disso o amor Ágape se dá a conhecer a partir de um movimento de

esvaziamento, a kenosis. O movimento descendente pelo qual Deus se faz homem na

pessoa de Jesus Cristo realiza toda a graça que existe no Pai. Este esvaziamento

sagrado, movido pelo espírito de Deus é a salvação dos homens. Como foi dito no início

dessa dissertação, Jesus não existiu para si mesmo, mas para dar a conhecer o amor pela

via do sofrimento, produzindo um exemplo transformador.

No amor kenótico, me esvazio porque estou cheio. Nenhum esforço ascético

pode atingir esta revelação. Ela é produzida pelo Espírito Santo, gerando no discípulo

uma entrega semelhante, como a do apóstolo Paulo, quando prega em um sermão:

Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus. (Atos do Apóstolos 20:24 ARA)

O apóstolo, ao listar uma cartilha das características do amor kenótico, nos

ensina que o amor tudo sofre (I Coríntios 13:07). Mais uma vez, não se trata de um

sofrimento carnal somente, mas do clamor do Espírito, para que este último mova os

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homens à reconciliação. O martírio provocado pelo princípio do desempenho da

dialética da sublimação pode ter uma finalidade semelhante, mas que na tradição cristã

é evocada por uma origem sobrenatural. Por causa disso, em sua cartilha sobre o amor,

Paulo adverte:

E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. (I Coríntios 13:03 ARA)

Este amor veio por meio de um só, que o cumpriu integralmente. E que não está

em crise, porque não pode ser abalado na sua glória eterna. Discípulos de Cristo, o

apóstolo Paulo e diversos outros homens expressarão graus de comprometimento da fé

em ações kenóticas específicas. Argumentos céticos podem denunciar, com certa razão,

um obscurecimento destas práticas na cristandade. Levando isso em consideração, o

trabalho problematizará o encontro de duas dialéticas com o ethos kenótico em ações,

formações estéticas e discursos nas materialidades da indústria.

Eros Ascendente Eros Descendente Kenosis Dispositivo sublimação dessublimação

esvaziamento sagrado

Princípio realidade; desempenho

prazer Ágape/nirvana

Movido por espírito humano carne Espírito Santo

Produz cultura circulação: produção e consumo

ações de graça; salvação

Movimento dialético

me esvazio para me encher

tento me encher, mas continuo vazio

me esvazio porque estou cheio

Tabela 2: Encontro de Dispositivos (fonte: a autora)

2.2.4 O Eros perfeito A crítica freudiana em relação ao cristianismo é demasiadamente complexa para

ser abordada satisfatoriamente nessa pesquisa. No entanto, nos interessa num ponto

específico, quando repete a denúncia corrente de que os povos cristãos estariam mal-

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46

cristianizados, não incorporando o ideal Ágape em suas práticas, aceitando-o apenas sob

uma forma altamente transcendente.

Em Marcuse, lemos que a história da civilização “ainda tem de ser escrita tal como a história da transformação de Eros em Ágape” (1969 p. 118-119). Outra vez,

propõe que:

A noção de que Eros e Ágape podem, no fim das contas, ser uma e a mesma coisa - não que Eros é Ágape, mas Ágape é Eros - talvez pareça estranha, depois de quase dois mil anos de teologia. (Marcuse 1969 p. 184)

Ágape é um estado de satisfação plena da alma, que segundo a tradição cristã,

não é atingido por esforço humano, mas por uma experiência mística, de revelação do

sacrifício vicário de Cristo. A entrega ao sagrado encontra uma fonte de água viva, da

qual, parafraseando Jesus, aquele que bebe jamais terá sede7. A psicanálise freudiana,

em contrapartida, humaniza o processo, propondo que Ágape é uma idealização de Eros

em sua última potência. Ágape seria o resultado do livre desenvolvimento de Eros, que

superaria a sublimação repressiva e a subjugação dos instintos.

A natureza de Ágape, assim como a natureza do homem, permanece mistério.

Além disso, sob a perspectiva das dialéticas de sublimação e dessublimação, uma breve

menção dos pecados capitais trazem à tona uma questão bastante sensível, que existem

pecados da carne, mas também pecados do espírito humano. Enquanto a gula, a

preguiça e a avareza podem sem muita dificuldade ser associados ao movimento de

dessublimação carnal; resta ao espírito o pecado do orgulho. São do espírito os pecados

associados à justiça própria, vanglória e distinção.

Não se pretende aqui discutir a natureza do sublime de acordo com as matrizes

teológica e psicoantropológica. O desafio desse projeto é verificar na dimensão

empírica as tensões e os imbricamentos dos três dispositivos, bem como as

conseqüências espirituais da inserção de um grupo religioso no mundo das

materialidades.

7 João 4:13-14

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47

2.3 Movimentos em busca do objeto Pensamos a emergência do objeto de mercantilização de bens midiáticos

evangélicos em torno da questão da técnica, de sua função ao mesmo tempo originária e

traidora da sublimação da cultura ocidental. No entanto o caminho metodológico que

orientou essas questões deu-se por um alinhamento ao conceito que Ferreira (2006)

elabora sobre o dispositivo, em suas dimensões sócio-antropológicas, semio-discursivas

e técnico-tecnológicas.

Segundo a proposta metodológica desenvolvida por Ferreira (2011b) o projeto

de pesquisa foi desenvolvido pela conjunção de dialéticas ascendentes e descendentes;

por movimentos indutivos, dedutivos e abdutivos, em que materiais empíricos,

contextos e hipóteses coadunam para uma iconização e para uma interpretação

adequada do problema. Nesse âmbito, a construção do objeto de pesquisa enquanto

hipótese de indústria cultural deu-se a partir de materialidades da realidade ontológica:

bens simbólicos religiosos, comoditizados. São materiais amplamente diversificados,

que apresentam operações mercantilizantes de natureza diversa. Num primeiro

momento esse foi o indício mais evidente, entretanto, uma análise mais cuidadosa

revelou índices novos, relativos a funções outras que os produtos cumprem no campo

religioso.

Neste processo nos deslocamos relativamente a hipótese apresentada na

qualificação. Diversamente do que acreditávamos, não há na cultura uma vitória do

pensamento unidirecional, quer dizer, o que Marcuse acusava como subsunção de todos

os processos sociais à lógica do mercado ou da dominação pela técnica. Há

heterogeneidade, dessublimação e sublimação concorrendo em simultaneidade, em uma

nova forma de vida, na qual se verificam tensões, mas, também, um novo espaço de

fruição de cultura humana. Nesse âmbito, é o gospel que organiza o processo,

articulando operações artísticas, mercadológicas e as próprias do campo religioso. A

pesquisa considera que a gratuidade, característica intrínseca do campo religioso,

sobrevive ao fenômeno em questão. Permanecerão presentes práticas kenóticas de amor

ao próximo; de devoção, que é entrega ao divino; e, enfim, de renúncia de interesses

próprios em favor do sagrado.

A questão introdutória, da emergência de uma indústria cultural evangélica

como fenômeno de midiatização da religião tem caráter indutivo-abdutivo, partindo de

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uma proposta original para realizar o movimentos ascendente, permitindo a realização

de tensionamentos de indução teórica sobre a hipótese da religião midiatizada. A

questão seguinte, das funções heterogêneas exercidas pelos produtos no campo religioso

tem caráter dedutivo, mas que pode ser redirecionado no mesmo sentido da questão

anterior.

Em seguida, temos a pergunta sobre os motivos que justificam a ocorrência

simultânea de midiatização e de resíduos iconoclastas pela indústria cultural evangélica.

Essa questão é fruto do desenvolvimento da pesquisa, que proporcionou que surgissem

novas regras interpretativas, nascidas de deslocamentos abdutivos, mas redirecionado a

processos dedutivos e indutivos. O desdobramento sobre as elaborações evangélicas

incipientes sobre a comunicação humana e sua decorrente relação com as posturas

apocalípticas tem uma dinâmica semelhante.

Num determinado momento, nossa questão de pesquisa configura um

encaminhamento dedutivo, quando parte dos conceitos de sublimação, dessublimação e

esvaziamento kenótico para tentar captar a natureza do fenômeno estudado. Pela

dinâmica dialética, proporciona uma reviravolta indutiva, quando pelas ações,

formações estéticas e discursividades dos materiais tenciona o conceito de indústria para

além de suas acepções tradicionais.

Nossas explorações empíricas reúnem objetos muito diferentes, direcionados a

segmentos múltiplos dentro da religião evangélica. A escolha deles como corpus

analítico é fruto mais de uma imersão em pontos de venda e em sites especializados do

que de uma familiarização prévia por parte da pesquisadora.

2.3.1 Referência preliminar

A principal referência de elaboração do objeto de pesquisa foi a tese de Magali

Cunha, defendida em 2004 na Universidade Metodista de São Paulo. A autora

caracteriza o desenvolvimento da cultura gospel no Brasil numa análise diacrônica

extensa, que contempla a história da religião evangélica no País desde o protestantismo

histórico de migração, passando pela chegada de missionários pentecostais no início do

século XX até os dias atuais. Além disso, a autora descreve amplamente a inserção dos

televangelistas norte-americanos na televisão nacional, que abriram caminho para o

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49

fenômeno da igreja eletrônica. Só então surgem condições para aquilo que chama de

"explosão do gospel no cenário religioso brasileiro".

O caráter diacrônico da tese é intrínseco a uma problematização que percebe a

cultura gospel contemporânea como resultante das tensões entre tradição e modernidade

pelos atores do campo referido. Em lugar de retomar a história da religião evangélica no

Brasil, esta pesquisa ocupou-se em caracterizar a cultura gospel a partir das práticas

estabelecidas em relação aos signos, seu estado de midiatização, marcando três fases

distintas.

Cunha aposta que a explosão gospel pode ser entendida pela tríade música-

consumo-entretenimento. Nossa pesquisa pretende avançar nesse sentido,

sistematizando casos muito diversificados, que estão para além da música.

Mencionamos também ocorrências de cultura gospel que não são lucrativas,

principalmente no campo digital, mas também em eventos comunitários que

permanecem enquanto práticas originais da religião. Na verdade as funções exercidas

pelos produtos evangélicos são bastante diversificadas, variando mensagens de

esvaziamento com auxílios para relacionamento familiar e manuais financeiros. Então,

não haverá entretenimento somente. Mesmo assim, concordamos que a sociedade de

consumo estende um espetáculo a todos seus formatos industriais, que pode assim

entendido.

Sua principal contribuição consiste na sua formulação do fenômeno como

"vinho novo em odres velhos". No evangelho8, Jesus menciona a expressão como uma

combinação quimicamente incompatível, que faz os odres se romperem. O vinho novo

deve ser deitado em odres novos, para que ambos sejam conservados. Simbolicamente,

ele estava ensinando que a revelação do Reino de Deus não cabia na tradição judaica

nem em nenhum outro sistema de doutrina. Magali Cunha usa esta parábola para

descrever uma questão bastante delicada sobre a transformação do campo evangélico

brasileiro, remontando-nos à ditadura militar, que reprimiu ativamente os movimentos

ecumênicos e a teologia da libertação. Esses movimentos congregavam católicos e

protestantes que pretendiam uma transformação pela tomada de ação da igreja na

sociedade. A teologia da libertação fazia uma leitura crítica do capitalismo enquanto

8 E ninguém deita vinho novo em odres velhos; de outra sorte o vinho novo romperá os odres, e entornar-se-á o vinho, e os odres se estragarão; Mas o vinho novo deve deitar-se em odres novos, e ambos juntamente se conservarão. Lucas 5:37-38 (ACRF)

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50

sistema de dominação, e, ao mesmo tempo, fazia uma leitura alternativa da Bíblia, que

favorecia o pobre e oprimido.

Num momento de efervescência cultural e religiosa, a ditadura militar devastou

as tentativas ecumênicas. Este cenário carente de novidades foi preenchido pela atuação

de ministérios paraeclesiásticos norte-americanos, que vieram atuar no País trazendo

consigo uma nova estética para um antigo discurso. A cultura gospel no Brasil

caracterizou-se como vinho novo em odres velhos, um híbrido que é estéril, infrutífero.

Uma modernização mal-sucedida. Sua denúncia é indefectível, articulando informações

que atuam efetivamente na sua problematização, auxiliando na interpretação de seus

materiais.

Nosso projeto não problematiza um enfrentamento entre tradição e modernidade,

ele articula a tensão por uma outra abordagem, a partir da matriz da sublimação,

dessublimação e kenosis em ações, discursos e formações estéticas da indústria. A

matriz nos permite olhar para o sagrado e o profano em um caso de religiosidade

midiática, permitindo propor novas questões, que fortuitamente respondam em que

sentido o gospel é um híbrido estéril na produção de transformação social, e em que

sentido pode ser frutífero. Um desafio da cultura.

2.3.2 Para além da técnica

Nosso entendimento sobre as dinâmicas de Eros na sociedade é de que a

dialética ascendente se realiza, gerando instituições duradouras (como mencionamos

anteriormente - a linguagem, o parentesco e o trabalho). Entretanto, a sublimação não se

completa em plenitude, por causa do bloqueio do movimento de ascensão, quando o

desejo fica retido na realização dos objetos, produzindo uma cultura massiva

dessublimada.

Por outro lado, ao contrário do pensamento marcusiano, a pesquisa se orienta

pela noção de que a cultura não se restringe à processualidade técnica de dominação;

que embora exista realização do desejo nas coisas, não há, todavia, um processo

predominante, uma vitória do pensamento unidirecional. O mundo é heterogêneo, não

existem somente os formatos estritamente industriais. A interpretação de todos os

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51

processos sociais como derivados da lógica de dominação pela técnica ou dos interesses

imediatos produz uma leitura cínica do espírito humano.

O movimento metodológico da pesquisa parte da instituição religiosa, que em

seu espaço de crenças requisita o movimento ascendente, assumindo como alvo último a

semelhança de Cristo, o ideal Ágape. Em requisitar a ascensão, a religião se enfrenta

com a problemática da cultura e vê o movimento bloqueado pela retenção de Eros na

carne. A religião evangélica quando fala aos que estão na esfera dos desejos vê o mundo

seduzido pela ideologia unidirecional: a sociedade industrial não movimenta mais o

esvaziamento para a ascensão, nem tampouco o esvaziamento kenótico, que é a

manifestação de Ágape.

Delineamos a discussão do trabalho no enfrentamento de Ágape com Eros, do

movimento ascendente bloqueado e do descendente que se reitera. Consideramos que há

na instituição religiosa um espaço de crenças que parte de um ideal sublime,

apresentando uma dinâmica distinta dos desejos humanos. Mesmo assim, esse espaço

repercute em suas práticas e processualidades. As investigações sobre esse assunto

serão conduzidas na dimensão empírica, pela caracterização de um fenômeno industrial

heterogêneo, que demanda novas regras para sua interpretação.

Nessa situação o escopo será o estudar o tensionamento de sublimação e

dessublimação na esfera da cultura religiosa, considerando os processos de

midiatização. Propõe-se a emergência de uma indústria cultural evangélica para

identificar o fenômeno da multiplicação da oferta de bens simbólicos religiosos, mas

não usamos o termo “indústria cultural” em seu strictu sensu, porque não haverá

dessublimação somente. À dessublimação está subsumida a noção de uma indústria e

sua ocorrência em uma sociedade de consumo, que se verificam em nossos objetos

empíricos em imbricamentos heterogêneos com outras disposições.

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3 – Explorações empíricas

Todas categorias trabalhadas pela pesquisa demonstram a ocorrência de

estratégias de instituições seculares apropriadas pela indústria evangélica. Nesse mérito,

um mesmo produto poderá apresentar propriedades de mais de uma categoria

simultaneamente. As duas primeiras foram estabelecidas a partir da revisão do

desenvolvimento da cultura gospel. As três divisões seguintes foram destacadas das

anteriores por apresentarem características particulares, que lhes destacaram, tornando

necessária a criação de novos conjuntos para a sua descrição.

3.1 Mercantilização dos produtos originais

A comercialização dos produtos próprios do campo evangélico não é nova,

estando presente, no caso da religião protestante, mesmo em sua fase iconoclasta. A

comercialização de Bíblias, de partituras de hinos, de livros doutrinários, e de álbuns

religiosos estará presente a partir do momento em que o incremento técnico assim o

permitir. Propõe-se, entretanto, que, num primeiro momento, esse mercado incipiente

não constitui uma indústria propriamente dita. Em sua primeira fase, a cultura gospel é

um fenômeno popular e artesanal, que não trata contingente evangélico como um

público alvo a ser atingido por técnicas de segmentação.

Por outro lado, com a midiatização da cultura gospel, propõe-se que esse

mercado incipiente abrirá caminho para novas manifestações, que, a fortiori, culminarão

na emergência de uma indústria cultural evangélica.

Nessa categoria serão tomados casos na música e no mercado editorial, com o

intuito de ilustrar as transformações dos bens simbólicos originais.

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Asaph Borba

Figura 2: Asaph Borba na capa da revista Música Cristã e Sonorização

É um consagrado compositor de músicas de louvor, considerado pela indústria

como “pai do canto congregacional brasileiro”, um gênero sonoro específico do campo

evangélico, que abrange hinos criados para execução coletiva, cantados por todos os

participantes do culto9. No País, verificou-se uma substituição progressiva dos corinhos

religiosos. Como as igrejas foram fundadas por missionários estrangeiros, o acervo era

composto majoritariamente por canções de hinários oficiais, (Harpa, Cantor Cristão)

traduzidas para o português. A partir da década de 70 a situação muda de figura, já que

a consolidação da religião no país propicia abertura para manifestações endógenas. Esse

tipo de canção circula livremente pelo campo religioso, nenhum compositor cobra pela

execução de suas músicas em outras igrejas.

Borba tem gravadora própria, a Life, onde atua como músico, produtor e

arranjador há mais de 35 anos. Ao todo lançou 70 discos e vendeu mais de duas milhões

de cópias. Suas composições são conhecidas por evangélicos de todo o Brasil, da

América Latina e também de países do oriente médio, onde participa como missionário.

9 Por exemplo, é comum nos hino a divisão das estrofes, indicando frases que serão cantadas somente por homens e frases que serão cantadas somente por mulheres, produzindo um efeito acústico que engaja os participantes.

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A sua música é uma obra de doxologia, de conhecimento e exaltação da glória

de Deus. Nesse ponto traremos um exemplo apenas, a canção “Infinitamente mais”,

executada em milhares de igrejas por todo o País, composta em um momento de crise,

quando a esposa do cantor perdeu a terceira gravidez consecutiva.

Infinitamente Mais Asaph Borba, 1989 Sim, eu sei Senhor que tu és soberano Tens os teus caminhos tens teus próprios planos Venho pois a cada dia, venho cheio de alegria E me coloco em Tuas mãos pois és fiel Sim, eu sei Senhor que tu és poderoso És um Deus tremendo, Pai de amor bondoso Venho pois a cada dia, venho cheio de alegria E me coloco em tuas mãos pois és fiel Fiel é tua Palavra oh Senhor Perfeitos os teus caminhos meu Senhor Pois sei em quem tenho crido Também sei que és poderoso Pra fazer infinitamente mais (2 vezes) Do que tudo que pedimos, infinitamente mais Do que tudo que sentimos, infinitamente mais Do que tudo que pensamos, infinitamente mais Do que tudo que nós cremos, infinitamente mais

O conhecimento da glória de Deus se aperfeiçoa no sofrimento, então a canção

“Infinitamente Mais” demonstra um exemplo preciso de esvaziamento kenótico, quando

do luto enuncia uma expressão de louvor; e, ao invés de lamento, exprime confiança no

poder e na bondade do Altíssimo. Depois do episódio, Borba e a esposa geraram dois

filhos.

Enquanto compositor de corinhos religiosos, Asaph Borba é um criador de bens

simbólicos originais do campo religioso, e assim os mercantiliza desde o início da sua

carreira. Entretanto, em 2011, após um período de sondagem e resistência, assinou uma

parceria com a Som Livre, pela qual distribuiu um álbum inédito e três outros

relançamentos. Não foi a primeira parceria de uma empresa do grupo Globo com

artistas evangélicos. O Ministério Diante do Trono, grupo com as maiores vendagens

em todo o Brasil, abriu caminho com a Som Livre. Entretanto, Borba sentiu necessário

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fazer uma longa justificativa no seu blog10, em resumo, defendendo que a iniciativa

colaboraria para a difusão do evangelho num nicho bastante específico, dos produtores

da indústria secular.

Nesse caso de industrialização dos bens simbólicos originais, foi a indústria

secular que apropriou produtos e discursos evangélicos. A Som Livre e outras

gravadoras seculares investirão na distribuição de artistas do nicho gospel, como a

Universal e a Sony BMG, que por sinal, participa com um stand na Expocristã.

Segmentação do mercado de Bíblias

Como foi dito no início deste capítulo, o fomento de comercialização de bens

simbólicos originais da religião não é um fenômeno recente. No caso da Palavra

Sagrada, desde o século XIX há na Europa condições de produção em massa que

possibilitam que o homem comum adquira um exemplar para uso pessoal. Contudo,

Umberto Eco conta no livro Apocalípticos e Integrados que, antes mesmo da invenção

dos tipos móveis por Gutemberg, houve uma edição que se popularizou por causa do

barateamento dos custos produzidos por uma outra técnica de reprodução em escala, a

xilogravura. A Bíblia Pauperum abrangeu uma audiência muito maior do que as versões

manuscritas. O autor explica que a ampliação de consumidores provocou uma

adaptação do produto à sua compreensão. Dessa forma, foram inseridas ilustrações que

orientavam a interpretação por parte dos iletrados.

Eco traz o exemplo para explicar que a indústria cultural, enquanto sistema de

condicionamentos que orientam práticas de produção de acordo com o gosto médio do

público é anterior ao surgimento de uma sociedade de massas. Mas nas últimas décadas

percebemos uma diferença importante no processo: quando a Bíblia, enquanto livro, é

modificada de acordo com estratégias de segmentação.

Antes disso é necessário fazer um preâmbulo do tamanho do negócio. O Brasil é

o maior produtor, exportador e mercado consumidor de Bíblias no mundo. Com 16 anos

de atuação, a Gráfica da Bíblia, localizada no município de Barueri, em São Paulo,

logrou a marca de 100 milhões de exemplares produzidos, servindo a demanda nacional

10 Disponível em: <bit.ly/asaph_somlivre>, acesso em 20.04.2013.

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e exportando para 105 países. Com um aumento de produção de 5% ao ano, executam

um projeto de expansão pela construção de uma nova unidade física, especializada na

impressão de Bíblias de Estudo. Só em território nacional, são comercializadas mais de

5 milhões de livros ao ano, e a previsão de crescimento do mercado estimula que no ano

de 2020, o número subirá para 14 milhões11.

A Gráfica da Bíblia está vinculada à Sociedade Bíblica do Brasil, uma

organização que atua internacionalmente, movida pela convicção de que a Bíblia é um

presente de Deus para a humanidade, e de que todas as pessoas deveriam ter um

exemplar disponível em sua língua materna. Recentemente, com a expansão de suas

iniciativas, trocaram seu slogan de “dar a Bíblia à Pátria” para “dar a Bíblia ao mundo”.

A Bíblia Sagrada é um texto de licença livre, cujas versões mais populares são

produzidas a um custo de R$ 1,19 e vendidas no varejo por R$ 2,00. Está disponível na

internet em dezenas de sites que publicam traduções do texto integral aliadas a um

sistema de busca por palavras-chave. Em último lugar, é distribuída gratuitamente em

escolas, hospitais e várias outras instituições por organizações paraeclesiásticas, como

os Gideões Internacionais.

Não é difícil solicitar uma Bíblia gratuitamente. Mesmo assim, florescem novos

apelos de venda, que aliciam formas de fetichização, de atribuição de diferenciais

distintos ao valor de uso do produto. Atinge-se desta maneira uma penetração maior

pela segmentação. Não é mais o caso de adaptar a produção ao gosto do público médio,

mas de criar estratégias que atendam a demandas específicas dos consumidores, e que,

enfim, alarguem as fronteiras para novas oportunidades de negócio.

Um detalhamento do fenômeno editorial da Bíblia no Brasil foi procedido pela

pesquisadora na conclusão do seu bacharelado12 (Hoerlle 2010). Recapitulam-se aqui

alguns resultados, categorias que permitiram mapear este processo.

11 Os dados são do nº 231 da Revista A Bíblia no Brasil, de circulação trimestral, com uma tiragem de 100.000 exemplares em todo o País. A Revista é um subproduto do setor, e também está disponível em versão online no site da Sociedade Bíblica do Brasil em: <bit.ly/ABNB>. 12 Esforço que, sem dúvida, contribuiu para a percepção de um fenômeno bem mais amplo, ajudando nas formulações incipientes das nossas questões de pesquisa.

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a. Apelos de venda presentes em Bíblias comuns

Figura 3: Antigo Testamento Poliglota

Bíblias Bilíngues: adaptam a diagramação tradicional, separando um idioma para uma

das duas colunas da página. Dessa forma os versículos ficam lado a lado, favorecendo a

comparação. Os casos mais comuns de Bíblias bilíngues são de exemplares do Novo

Testamento em Português-Inglês e em Português-Grego. Também aparecem versões do

Antigo Testamento em Português-Hebraico, para estudiosos do idioma em que o texto

foi originalmente escrito.

Figura 4: Bíblia Letra Grande Ergonômicas: versões de bolso para facilitar o transporte; versões em letra grande (e

gigante) para idosos e deficientes visuais; versões em cores especiais para ressaltar

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determinados trechos da leitura (profecias, falas de Jesus); versões que dispõem na

mancha gráfica de todas as páginas espaços em branco para anotações do leitor.

Figura 5: Bíblia “Tropa de Elite de Cristo”

Decorativas: nesse item entram as versões que se diferenciam meramente pela estética,

sem apresentar nenhuma outra função especial: Bíblias esportivas em estilo

basquetebol; Bíblias com capa em jeans; em pelúcia cor-de-rosa; executiva, com

estampa militar camuflada; emborrachadas; capa tipo carteira com glitter e velcro; capa

tipo agenda; etc.

Figura 6: Bíblia decorada com plumas pink, e com hinário em anexo Com Anexos: o produto pode apresentar mais de um apelo de venda. Este é o caso da

Bíblia decorativa de plumas pink, que anexa um hinário ao final do seu volume. Os

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anexos mais comuns são hinários e chaves-bíblicas. As “chaves” são índices, que ligam

um termo a referências dos versículos em que o mesmo aparece.

Figura 7: Bíblia Personalizada

Personalizadas: O Projeto “Bíblia de Afinidade” da Sociedade Bíblica do Brasil

proporciona edições por demanda, em que a capa e um encarte interno são

personalizados de acordo com o pedido do cliente. As aplicações mais comuns são

feitas para congregações ou igrejas, mas também ocorrem versões comemorativas

distribuídas como brindes em casamentos e festas de debutantes. A Oficina G3, uma das

bandas de rock cristão mais prestigiadas do País, produziu como ação promocional um

Novo Testamento com foto da banda e logomarca ilustrando a capa (Manga, 2008).

Igrejas, empresas, organizações e até mesmo pessoas físicas têm à disposição um serviço que permite fazer uma edição da Bíblia ou do Novo Testamento com sua logomarca ou associada a alguma data especial. (...) No caso de Bíblias, o pedido mínimo é de mil exemplares; já para o Novo Testamento é preciso encomendar uma tiragem de pelo menos 5 mil. (Bíblia no Brasil, A n. 214, p. 20)

b. Apelos de venda presentes em Bíblias de estudo

As Bíblias comuns podem apresentar alguns auxílios para o leitor, como mapas e

cronologia, que são geralmente anexados ao final da encadernação. As Bíblias de estudo

se diferem por incluir notas explicativas na maioria das páginas. Nestas edições os

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auxílios ao leitor são mais abundantes. Algumas delas incluem na diagramação, além de

notas de rodapé, caixas de textos auxiliares, que pretendem narrar histórias análogas

àquelas contidas no primeiro nível de leitura. Esses auxílios podem acabar ocupando

mais espaço na página do que o texto principal.

As imagens a seguir contrastam a diferença da diagramação de uma página de

uma Bíblia comum versus a diagramação de uma página da Bíblia da Mulher.

Figura 8: Diagramação interna de uma Bíblia comum

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Figura 9: Diagramação de uma Bíblia de estudo (no caso a Bíblia da Mulher)

Na segunda imagem percebe-se uma profusão de elementos hipertextuais

tomando lugar da página em relação ao texto principal: nota explicativa, caixa de texto

sobre tópico paralelo, parágrafo de referências cruzadas e citação.

Além de Bíblias de estudo para mulheres, são produzidas versões específicas

para jovens, para idosos, para pastores, para alcoólicos anônimos (Despertar). As

Bíblias de estudo são segmentadas de acordo com interesses específicos: bênção para a

saúde, vitória financeira, auxílios para defesa de alguma doutrina específica, relatos de

pregadores famosos.

Incidem nesse mercado estratégias de mercadologização de bens simbólicos

originais, e isto se dá tanto pela inserção de textos auxiliares, que ampliam o valor de

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uso do produto, quanto por apelos estéticos, que correspondem à fetichização. Em

ambos os casos geram-se diferenciais que aumentam o valor de troca da mercadoria.

A dessublimação é imediatamente perceptível em Bíblias decorativas,

mascarando seu aspecto, tornando sua aparência como a de um produto de outra

natureza, como uma agenda feminina ou uma carteira de luxo. Por outro lado, ela

também está presente em algumas Bíblias de estudo, de uma maneira mais sutil. O

problema da dessublimação em algumas destas edições está no conteúdo dos seus

hipertextos, que, ao invés de cumprir a função de auxílio ao leitor, provocam um

deslizamento do significado do texto original. No caso da Bíblia da Mulher, a pesquisa

de bacharelado verificou uma proposta de modificação do sentido da narrativa bíblica

por uma ênfase exacerbada dada ao papel feminino em seus recursos adjacentes.

3.2 Apropriação dos gêneros da indústria cultural secular

Foi-se o tempo em que o gospel podia ser considerado como um gênero de

música religiosa, que propunha características estéticas facilmente reconhecíveis. A

música gospel pode ser tanto aquela que é cantada nas igrejas (os hinos de louvor e

adoração) quanto aquela canção pop em língua inglesa, que meninas escutam enquanto

ensaiam coreografias em casa com as amigas. Na religiosidade midiática, o fenômeno

evangélico adquire manifestações inéditas, não apenas na música, mas em filmes, livros,

programas de televisão, redes sociais e até mesmo sites de namoro. Dessa forma, de

acordo com as proposições da pesquisa, o gospel não constitui mais um gênero

específico, mas uma cultura híbrida que dispõe conteúdos um determinado público-

alvo.

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Figura 10: “As estrelas me mostram você” - filme de romance nacional

Embora alguns produtos dessa indústria exijam competências específicas para

sua apreensão (principalmente os livros teológicos, mas também outras obras, que

demandam conhecimentos bíblicos), verifica-se neles algumas operações simétricas as

da indústria secular. Adorno (apud Strinati 1999) falava sobre a música popular como

um “cimento social”, que ajustava as pessoas às realidades das suas vidas. De maneira

análoga, os bens simbólicos da indústria cultural evangélica serão produzidos em

operações padronizadas e simplificadoras, que permitem uma forma de lazer adequada,

promovendo pertencimento a um grupo social disperso em miríades de denominações,

mas unidos pela mesma fé, e também pelo consumo dos mesmos produtos. Como

explica Santana,

[...] com o crescimento dos evangélicos e a negação dos atrativos mundanos feita por eles, surgem condições culturais para uma socialização sectária através de discursos de variados tipos e produtos de bens simbólicos e materiais para dar sustentação à fé. (Santana 2005 p. 57-58)

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Figura 11: “Smilingüido e sua turma” - revista infantil nacional

Adorno (apud Strinati 1999) relaciona a criação de gêneros ao processo de

padronização existente no capitalismo. Para o autor, o processo de padronização está

vinculado ao modo de vida imposto, que se reflete numa rotina de trabalho enfadonha, e

também no consumo dos produtos culturais massivos. Em outras palavras, padronização

desestimula criações originais tanto no campo do trabalho quanto no campo da cultura.

Esta categoria do projeto demonstrará a incidência de padronizações que articulam os

gêneros da indústria cultural evangélica numa relação direta com os gêneros da

indústria cultural secular, possibilitando um posicionamento de seus produtos a

segmentos preexistentes. Em ambas os casos,

O estímulo do lucro determina a natureza das formas culturais. Industrialmente, a produção cultural é um processo de padronização pelo qual os produtos obtêm a forma comum a todas as mercadorias. (Strinati 1999 p. 71)

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Figura 12: “Garota perfeita” - livro de autoajuda para mulheres A constatação dos gêneros da indústria cultural secular apropriados pela

indústria evangélica foi o ponto de partida de toda esta pesquisa, motivando a percepção

de que o que acontece lá (no mundo) também acontece aqui (entre os evangélicos). Os

casos são tantos, que chegam a causar a impressão de que para cada produção da

indústria secular, um similar evangélico será produzido, desde que haja interesse por

parte do público em questão.

Por causa disso, foi difícil escolher dentre tantos casos quais fossem profícuos

para análise. Então foram selecionados dois empíricos no campo da música. Numa

reportagem da Revista Veja, foi divulgado que o gospel

[...] É hoje o segundo gênero mais consumido no País, atrás apenas do sertanejo, e sofre menos com a pirataria (o público considera pecado lograr o artista do qual é fã). Em 2010, o mercado gospel faturou 1,5 bilhões de reais. (Martins 2012 p. 108-109)

Serão trazidos dois casos; um estrangeiro e um nacional. Uma banda consagrada em seu

gênero e uma cantora emergente. Um deles com intenção claramente evangelística,

outro que não salienta essa preocupação. Produtos muito diferentes, que, comparados

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um com o outro, revelarão relações importantes para o entendimento das questões de

estudo.

Christafari

É a maior banda de reggae gospel de todos os tempos, reconhecida não somente

entre evangélicos, mas também entre fãs do gênero sonoro. Na verdade é bastante

comum que uma banda evangélica de sucesso torne-se admirada pelo público secular de

segmentos musicais específicos. Há exemplos como o “P.O.D” (metal), “Supertones”

(ska) e, no Brasil, “Apocalipse 16” (rap), bandas que, apesar de não serem apreciadas

por todos os evangélicos, serão facilmente reconhecidas pelos fãs dos gêneros em que

estão segmentadas. De maneira semelhante, no campo editorial, o best-seller “A Cruz e

o Punhal”, de 1962, extrapolou o público pretendido dentro do campo religioso,

aumentando o alcance da sua penetração.

O fundador, produtor e vocalista do Christafari, Mike Mohr, converteu-se aos 17

anos de idade, deixando para trás seu envolvimento com álcool e outras drogas. Mohr é

pastor, e montou a banda em 1989 quando fazia seminário de teologia em Los Angeles.

Dez anos mais tarde, lançou seu próprio selo musical, a Lion of Zion Entertainment,

empresa responsável pelo lançamento de vários outros artistas. Mohr também é dono do

portal gospelreggae.com.

Entre singles, dubs13 e coletâneas com outros artistas, sua banda soma 18 álbuns,

dos quais os mais importantes são: “Soufire”, de 1994; “Valley of Decision”, de 1996;

“WordSound&Power”, de 1999; e “No Compromise”, lançado em 2009, no jubileu de

20 anos. Os discos são comercializados em mais de 50 países, e a banda fez shows ao

redor do globo, inclusive no Brasil, onde tocou em São Paulo e em Porto Alegre, na

Bola de Neve Church.

Apesar do nome sugerir uma junção entre Christ + Rastafari, a banda reclama

uma origem e significados diferentes. Pronunciando CHRIST-AH-FAR-EYE em grego,

língua em que o Novo Testamento foi escrito, Christafari é o nome dado a “um grupo de

pessoas que coletivamente representam a Cristo”.

13 Dub, no reggae, corresponde a versões estritamente instrumentais.

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De uma forma ou de outra, há uma clara articulação com um segmento cultural

preexistente, dando à banda um posicionamento de mercado dentro de um nicho

específico. Isso fica claro quando olhamos para algumas capas de seus álbuns:

Figura 13: Christafari - Soulfire (1994)

Na imagem acima percebemos uma proposta estética que pode ser reconhecida

imediatamente como um produto da cultura reggae, pelo uso de cores próprias do

movimento, uma combinação de preto, vermelho, verde e ouro. Um consumidor

desavisado só entenderá que se trata de um produto gospel se prestar muita atenção nas

letras das músicas.

Figura 14: Christafari - WordSound&Power (1999)

Numa ilustração marcante, o rosto do vocalista da banda se funde com a face de

um leão. A entidade emerge no centro de uma estrela de Davi, e no fundo há uma

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textura que parece arder como brasas. Há uma semelhança evidente com representações

do rosto de Jesus Cristo.

Se, pela proposta da banda, Christafari significa “um grupo de pessoas que

coletivamente representam a Cristo”, Mike Mohr metonimicamente interpreta algo

como um Jesus de dreadlocks. É uma imagem bela e polissêmica, na qual a apropriação

de símbolos judeus, cristãos e rastafáris configura uma mensagem evangelística.

Embora cause um estranhamento à primeira vista, ao público leitor da Bíblia evoca que

Jesus descendeu da linhagem do rei Davi, e ambos pertenciam à tribo de Judá, em

Israel. Aos cristãos, que acreditam que Jesus é o messias, o Filho encarnado, enviado

para a remissão de pecados e salvação do homem, a imagem lembra que Jesus Cristo é o

leão da tribo de Judá14.

A referência do leão está presente também no nome da gravadora, Lion of Zion,

em português, leão de Sião. Mais uma vez, codifica a mensagem evangelística, pela

referência a Sião, monte sagrado no imaginário judeu, cristão e também no rastafári.

Christafari se insere num gênero de musical consagrado, segmentado de acordo

com práticas discursivas específicas. A sua obra apresenta operações de indústria

cultural evidentes, quando, por exemplo, grava discos com versões reggae de hinos

populares, e quando relança seus álbuns em versões em espanhol ou dub, explorando

novas formas de capitalização de um mesmo produto. Por outro lado, a banda trabalha

com símbolos preexistentes de uma forma bastante original, convertendo-os à narrativa

do evangelho. A seguir, será feita uma breve análise do videoclipe “Warriors15”, do

álbum WordSound&Power.

O vídeo dramatiza uma versão africana da narrativa bíblica da conversão de

Saulo, contada no livro Atos dos Apóstolos. A história conta que, algumas décadas após

a ressurreição e assunção de Jesus, um jovem versado na lei dos judeus ocupava-se em

perseguir os cristãos, condenando-os a morte. Certa feita, Saulo empreendeu uma

viagem à cidade de Damasco, mas no caminho lhe sobreveio um êxtase, quando viu

uma luz muito brilhante, que lhe deixou cego. E ouviu a voz de Jesus, que lhe

perguntava: “Saulo, Saulo, porque me persegue?”. Três dias após a experiência mística,

um profeta lhe restaura a visão, e então Saulo começa seu ministério apostólico,

mudando o nome para Paulo.

14 “Leão da tribo de Judá” é uma expressão de louvor entre os cristãos, com referência à profecia do livro Apocalipse 5:05: Então um dos anciãos me disse: "Não chore! Eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos" (NVI). 15 O videoclipe pode facilmente ser assistido no YouTube.

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No videoclipe, a banda aparece em um barco, no meio da selva. O enredo é

bastante simples: os missionários, em uma investida perigosa pela selva africana,

movem-se com temor de uma retaliação por parte do líder da tribo. Mas então lhe

sobrevém uma luz ofuscante, seguida por uma voz que fala como um trovão. É Jesus,

que se manifesta como a Paulo. Depois disso, os missionários são encurralados pelos

nativos, que os fustigam com lanças; mas então o líder, renascido, retorna no tempo

exato para lhes salvar a vida.

Figura 15: Warriors, Christafari – integrantes da banda interpretam missionários com roupas militares

Figura 16: Warriors, Christafari – Mike Mohr e a esposa

Figura 17: Warriors, Christafari – esposa de Mohr dançando ao redor do fogo

Figura 18: Warriors, Christafari – líder da tribo, inimigo dos cristãos

Figura 19: Warriors, Christafari – líder da tribo, em êxtase religioso

Figura 20: Warriors, Christafari – líder da tribo, em êxtase religioso

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No clipe Warriors, a história do Paulo africano é narrada no mesmo compasso da

música, que está repleta de referências literais à Bíblia. Embora manifeste apropriações

da indústria cultural, a banda apresenta um movimento inovador, semelhante ao da

origem da música gospel: uma reconciliação do evangelho com expressões estéticas

africanas. Se na origem o gospel apresentou um novo canto, uma nova dança,

Christafari não deixa de lado vestimentas, cores, cenários, narrativas.

Carol Celico

Figura 21: Carol Celico

Casada com Kaká, um dos jogadores de futebol mais famosos do mundo, Carol

Celico em 2011 gravou seu primeiro álbum, que a princípio foi produzido de forma

independente, mas que meses seguintes foi comprado pela gravadora Universal. A ação

aumenta a abrangência do público pretendido, ampliando para além dos canais de

distribuição especificamente evangélicos.

O álbum pode ser ouvido integralmente no site de Celico. No mês de seu

lançamento, atingiu mais de um milhão e trezentos mil downloads. Os vídeos do DVD

também estão disponíveis no seu canal no YouTube. Além disso, a renda das vendas

será revertida ao projeto "Amor Horizontal", uma plataforma online de doações para

instituições de amparo a crianças carentes.

Após a desvinculação da igreja Renascer, Celico e o esposo não firmaram

compromisso com nenhuma outra denominação. Mesmo assim, mantém uma relação

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com o campo religioso, sendo reconhecidos internacionalmente por sua fé em Jesus, e

de uma forma ou de outra atuam como porta-vozes do evangelho. Fazem parte de um

grupo que não para de crescer: cristãos desigrejados.

Carol Celico admite que não é uma cantora profissional, e não deseja fazer

shows do seu trabalho. Entretanto, mesmo que sem preocupações lucrativas, a

apropriação de estratégias de indústria cultural em seu trabalho é evidente. Celico segue

uma fórmula consagrada: regravar grandes sucessos da música gospel e firmar parcerias

com outras celebridades, inclusive com cantoras da indústria secular, como a amiga

Cláudia Leitte, que é um dos maiores nomes do Axé nacional.

Figura 22: Carol Celico e Cláudia Leitte

A música “Mesma Luz” não tem nenhuma mensagem evangelística, mas celebra

a amizade entre as duas.

Figura 23: Carol Celico cantando com Kaká

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Kaká também participa, com uma composição própria, que fez para o seu

casamento. A música “Presente de Deus” é um agradecimento ao romance. A última

parceria do DVD é com a artista gospel que mais vende no Brasil, Ana Paula Valadão e

seu irmão, André Valadão, ambos do Ministério Diante do Trono, cantando “Preciso de

Ti”.

Figura 24: Carol Celico com Ana Paula e André Valadão

Celico se insere no segmento pop, cantando principalmente baladas. Se, por um

lado, vale-se de um gênero da indústria secular, é também apropriada por ela, quando

firma parceria com a gravadora Universal. Então as instâncias seculares e religiosas

atuam numa relação de mutualidade, porque, se de um lado importa aos evangélicos

usarem dos gêneros seculares como dispositivos veiculadores dos seus discursos,

importa também a indústria secular firmar presença num segmento de mercado que não

para de crescer. Carol Celico atravessa vários campos; esportivo, religioso e da música

popular brasileira com uma liberdade ímpar, demonstrada pelas parcerias que firma em

seu álbum. Assim se afirma como uma expressão da cultura gospel, reproduzindo

valores específicos dela, mesmo sem manifestar maiores intenções proselitistas.

A indústria cultural evangélica insere-se num contexto de religiosidade

midiática, cujas manifestações serão frequentemente polissêmicas. Não há uma proposta

única presente em todos os seus produtos. A banda Christafari atualiza uma visada

compartilhada por muitos televangelistas, atores de um momento anterior, de igreja

eletrônica, porque toma o reggae de maneira utilitarista aos seus fins evangelísticos.

Outros artistas também se valem do rock, do samba ou do cinema como dispositivos

para propagação da mensagem de Jesus.

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Contudo a utilização dos gêneros da indústria cultural secular pode servir para

diversos fins: para geração de lucro, para uma socialização dos fiéis a partir do

entretenimento, para afirmação de modelos desejáveis de conduta como, por exemplo,

no caso de Carol Celico, um padrão de romance tido como santificado.

Holisticamente, a apropriação dos gêneros da indústria secular carrega em si a

mensagem que o evangelho é para todos: para reggeiros, patricinhas, para crianças, para

mulheres casadas, homens de negócios, etc. afinal, Deus não muda o estilo, Ele

transforma o coração. Este também é o caso do item anterior, das Bíblias segmentadas.

Operações que a primeira vista demonstram uma segmentação mercadológica revelam

também que a incorporação de estratégias mundanas não anula os objetivos primeiros

do campo religioso, servindo inclusive como forma de realização da sua gratuidade,

ainda que de forma paradoxal.

São atores que se esvaziam de um espaço ritual originário, inserindo seus

discursos no circuito de produção e consumo de mercadorias, participando do processo

interacional da sociedade de massas. Uma atitude semelhante a do apóstolo Paulo:

Porque sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus (...) Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. (I Coríntios 9:19-22 ARA)

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Figura 25: Meme16 “Deus não muda estilo”

3.3 Referência direta a produtos da indústria cultural secular

Alguns produtos da indústria evangélica são configurados a partir de referências

diretas a produtos da indústria secular, e isso é conduzido de várias formas diferentes.

Por exemplo, como vimos anteriormente, a Bíblia decorativa “Tropa de Elite de Cristo”

faz da paródia de um filme nacional de sucesso um apelo de venda sobre um bem

simbólico original do campo religioso. A pilhéria evangélica não é rara, e está presente

em outros produtos. Uma banda norte-americana se especializou em criar versões

jocosas de grandes hits. A “ApologeticX” muda as letras das canções, trazendo sempre

referências bíblicas.

16 Memes são mensagens que circulam livremente pelas redes sociais, frequentemente sem indicação de autoria, como o exemplo trazido.

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Mais adiante o projeto irá mostrar produções da indústria gospel que demonizam

a indústria secular. Mas, por mais estranho que possa parecer, a referência direta a

produtos seculares irá além de paródias e maldições, manifestando também expressões

de adoração, como no caso de Lincoln Brewster, que adaptou a letra de uma canção

muito famosa, usada como trilha sonora de vários filmes, inclusive da animação

“Shrek”. Abaixo inserimos lado a lado as duas versões, no intuito de demonstrar a

operação evidente.

Hallelujah17 Leonard Cohen, 1985 I've heard there was a secret chord That David played, and it pleased the Lord But you don't really care for music, do you? It goes like this the fourth, the fifth The minor fall, the major lift The baffled king composing Hallelujah Hallelujah (4x) Your faith was strong but you needed proof You saw her bathing on the roof Her beauty in the moonlight overthrew you She tied you to a kitchen chair She broke your throne, and she cut your hair And from your lips she drew the Hallelujah Hallelujah (4x) (...) Hallelujah (17x)

Another Hallelujah18 Lincoln Brewster, 2005 I love You Lord with all my heart You've given me a brand new start And I just want to sing this song to You It goes like this the fourth, the fifth The minor fall, the major lift My heart and soul are praising Hallelujah Hallelujah (4x) I know You are the God above You’re filling me with grace and love And I just want to say thank You to You You pulled me from the miry clay You’ve given me a brand new day Now all that I can say is Hallelujah Hallelujah (4x)

17 Aleluia, Leonard Cohen, 1985. Ouvi que havia um acorde secreto / Que Davi tocou, e agradou ao Senhor / Mas você não gosta muito de música, gosta? / E ele soa assim, a quarta a quinta / A menor cai, a maior ascende / O rei perplexo compondo aleluia / Aleluia (4x) / Sua fé era forte, mas você precisava de provas / Você a viu tomando banho no telhado / A beleza dela sob a luz do luar te arruinou / Ela te amarrou numa cadeira de cozinha / Quebrou seu trono, e cortou seu cabelo / E de seus lábios extraiu aleluia / Aleluia (4x) (tradução da autora) 18 Outro Aleluia, Lincoln Brewster, 2005. Eu te amo oh Deus, como todo meu coração / Você me deu um recomeço / E eu só quero cantar essa música a você / E ela soa assim, a quarta a quinta / A menor cai, a maior ascende / Meu coração e alma estão louvando aleluia / Aleluia (4x) / Eu sei que és o Deus dos céus / Estás me enchendo com graça e amor / E só quero dizer obrigado a você / Você me tirou de um lamaçal / Você me deu um novo dia / Agora tudo o que posso dizer é aleluia / Aleluia (4x) (tradução da autora)

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O uso de melodias populares para emissão de conteúdos diferentes do

cancioneiro original é uma estratégia presente em diversas esferas: na publicidade, em

campanhas políticas, em gritos de futebol. No campo religioso não é diferente. Cunha

(2004 p. 158) relata que Martinho Lutero e outros pastores protestantes pioneiros

compunham hinos usando este método, ao qual chamavam de “contrafação”.

Também ocorrem apropriações de design gráfico. A capa do filme “O Pastor”,

de 2008, foi redesenhada no ano seguinte: o personagem negro no canto superior

esquerdo, o latino de cavanhaque no canto inferior direito, a tarja preta no meio,

constando o nome dos protagonistas e o título do filme. Ficou quase igual à capa de um

grande lançamento hollywoodiano, “O Sequestro do Metrô 123”, de 2009.

Figura 26: Capa filme “O Pastor”

Figura 27: Capa filme “O Seqüestro do Metrô 123”

Figura 28: Redesenho capa filme “O Pastor”

Da mesma forma que a indústria gospel faz referências diretas à indústria

secular, a produção evangélica nacional elabora casos análogos aos da indústria norte-

americana. Na página seguinte, o trio R&B “Ellas”, da gravadora MK Publicitá

reproduz o mesmo conceito musical e visual do grupo “Trin-I-Tee 5:7”. A gravadora

produz muitos casos semelhantes, que foram denunciados em memes pela página

“Hipster do Gospel19”, dentro do Facebook.

19 www.facebook.com/HipsterGospel

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Figura 29: meme “MKópia”

Esse tipo de apelo marca ações de um setor que ainda não está consolidado

dentro de sua indústria. São estratégias parasitárias, oportunistas, mas que não são de

forma alguma exclusivas à indústria cultural evangélica. O cinema chinês, por exemplo,

faz o mesmo, quando copia o desenho de capas de filmes americanos.

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Figura 30: Capa filme “Daddy Day Camp”, de 2007

Figura 31: Capa filme “Eaters”, de 201020

3.4 Bens não midiáticos com apelo gospel

A pesquisa não deu prioridade a uma análise mais detalhada deste aspecto, que,

no entanto, será aqui referenciado. A indústria contempla produtos e serviços diversos:

cremes de cabelo, roupas, achocolatados, lan houses, salões de beleza, clínicas de saúde

etc. É nesta categoria que incorre uma dessublimação mais expressiva, porque reúne

negócios com apelo de “produto cristão”, ou “empresa cristã”, mas que, no entanto, não

vinculam nenhum comprometimento com a mensagem religiosa.

No início do projeto, este grupo empírico foi importante na elaboração do

conceito de uma indústria cultural, ainda que represente casos que se situam no limite

do objeto construído. As imagens da página seguinte foram produzidas pela

pesquisadora em imersão pela Rua Conde de Sarzedas, a “Rua dos Evangélicos”, em

20 Este e outros exemplos da indústria chinesa são do blog “Slash Film”, e, 14 mar de 2012, no endereço: <www.slashfilm.com/chinese-movie-poster-ripoffs-gallery>.

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São Paulo, onde se concentram atacadistas que fornecem para lojas segmentadas em

todo o País.

Figura 32: Creme de cabelo “Gospel Line”

Figura 33: Loja de moda Gospel

3.5 Produção demonizadora

Esta categoria de produtos foi trabalhada inicialmente em correlação à proposta

de Umberto Eco em seu livro Apocalípticos e Integrados. Relatou-se uma aparente

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contradição entre discursos apocalípticos e práticas integradas dos produtos que

demonizam a indústria cultural secular. Propôs-se que tal discurso apocalíptico constitui

um resíduo do iconoclasmo protestante.

Esta formulação ajudou a construir este objeto, mas, pelo desenvolvimento da

elaboração teórica demonstrou-se insuficiente, por estar subordinada às noções clássicas

de indústria cultural. A perspectiva da midiatização propôs uma indústria distinta desta

última, por estar em contato de circularidade com atores e instituições do campo

religioso. Essa circularidade é o macro-dispositivo que organiza todos os usos,

apropriações e interações da produção cultural evangélica, em suas instâncias de

criação, distribuição e consumo.

O dispositivo tenciona nossas proposições anteriores, permitindo que se façam

novas inferências sobre a produção apocalíptica. Entendemos que as tentativas de

apropriação que a indústria evangélica faz de determinados dispositivos da cultura é

manifesta em usos diversos, que, como vimos, vão desde livros de auto-ajuda a

cruzeiros internacionais. Todas essas apropriações manifestam uma busca por bem-

estar, uma forma de aproveitar as formações que a sociedade oferece sem comprometer

os princípios da fé cristã.

Essa abertura em relação às interações previstas pelo campo religioso indicia

uma mudança dos contextos das instituições pela midiatização. Podemos então pensar a

produção apocalíptica como uma tentativa de remarcação das fronteiras do campo

religioso, que se alargaram na interação com dispositivos de outra origem.

Alguns produtos desta categoria são vídeos da série “Prepare-se” e livros,

revistas e dvds da editora Chamada da Meia-Noite. Seria muito interessante fazer uma

verificação extensa e comparada das noções de comunicação implicitadas nesse tipo de

produção, para então fazer uma indução ascendente em relação ao campo religioso.

Entretanto, para economia de nossos objetivos, analisaremos somente um caso desse

tipo de publicação, um livreto da série “Ferramenta”.

Entendemos que qualquer produção da cultura tem caráter polissêmico, que

muitas vezes produz discursos e interpretações contraditórios. Tendo isso em vista,

procedemos nossa análise levando em conta movimentos recorrentes do autor, que

compõe camadas de leitura.

Interessa-nos particularmente verificar ocorrências de:

• Visadas apocalípticas

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• Visadas integradas

• Outras visadas sobre comunicação

• Tentativas de sublimação

• Movimentos de dessublimação

Poremos em tensão as propostas de Eco com o a questão da tentativa de

fechamento pelo campo religioso. Porém, antes disso, faremos uma breve revisão do

“Apocalípticos e Integrados”, para então analisar satisfatoriamente o observável.

A obra foi lançada no ano de 1964, sob a preocupação de propor uma alternativa

teórica à histeria da crítica da indústria cultural. Umberto Eco dedicou seu ensaio aos

colegas apocalípticos, mas de maneira alguma encara o surgimento de uma cultura de

massas como o apocalipse, quer dizer, como o fim da cultura propriamente dita.

O surgimento de uma cultura de massa ressignifica o próprio conceito de cultura.

“‘Cultura de massa’ torna-se, então, uma definição de ordem antropológica (do mesmo tipo de definições como ‘cultura alorense’ e ‘cultura banto’)” (Eco 1964 p. 15). Fica

estabelecida uma dialética: por um lado uma produção teórica que fomenta uma crítica

carregada de certos valores de classes, que reivindicam determinados critérios para o

conceito de cultura; e, por outro, lado a opinião pré-sistematizada oriunda

principalmente por produtores da própria indústria. Umberto Eco resume os argumentos

de cada parte, não para refutá-los, mas para ir além de formulações que questionem o

surgimento de uma cultura de massas como “bom” ou “ruim”. Em lugar disso, Eco

reconhece a dificuldade de se produzir uma teoria para a cultura de massa, e como

alternativa parte à análise de casos, levando em conta

seus meios expressivos, o modo pelo qual são usados, o modo com que são fruídos, o contexto cultural em que se inserem, o pano de fundo político ou social que lhes dá caráter ou função.” (Eco 1964 p. 67)

Para além do “bom” e do “ruim”, em uma sociedade de massas as classes

subalternas tem o mesmo acesso à fruição de bens culturais das classes dominantes.

A situação conhecida como cultura de massa verifica-se no momento histórico em que as massas ingressam como protagonistas na vida associada, como responsáveis pela coisa pública. (Eco 1964 p. 24)

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O conceito de uma sociedade de massas está diretamente relacionado a uma

forma de consumo que foi possibilitada pelos incrementos técnicos de sucessivas

transformações do modo de produção em escala industrial. Nesse sentido participar da

vida pública significa, em termos de indústria cultural, consumir produtos que

obedecem leis de oferta e de procura, e isso se dá também no campo dos bens

simbólicos. Dessa forma surge uma vasta gama de produtos desenvolvidos para as

massas, mas não pelas massas. No entanto, é difícil de avaliar de que forma os

interesses do povo são contemplados, de que forma as massas usam e modificam os

produtos que lhes são dirigidos, enfim, de que modo as massas acabam interferindo no

processo. Como vimos, não é o caso do nosso objeto de pesquisa, que se estabelece em

contato potencial com o público.

Quando Marcuse acusa no livro Ideologia da Sociedade Industrial que

subsunção da produção dos bens simbólicos às leis de mercado implica na

dessublimação por causa do fetiche de mercado, ignora a heterogeneidade deste

processo. Em alternativa a essa acusação, Eco dá pistas sobre como a sociedade de

massas democratiza vários bens de cultura. O consumo da indústria cultural modifica as

formas de vida, dando vazão para novos modos de percepção, e, enfim, para um novo

homem.

A discussão em torno da cultura de massas e da indústria cultural somam mais

de cinquenta anos. Alguns autores a consideram como ultrapassada, diante de novas

visadas sobre processos midiáticos, que abrangem novas formas de participação social.

Entretanto, os argumentos apocalípticos e integrados são repetidos exaustivamente,

tanto no meio acadêmico quanto pela opinião popular, demonstrando em ambas as

partes uma falta de compromisso epistemológico com os processos sociais presentes na

esfera da comunicação. Embora estejamos prestes a superar algumas processualidades

da sociedade de massas, isso não significa uma supressão da indústria cultural. A

relação entre indústria cultural e a crescente midiatização da sociedade carece, portanto,

de uma problematização adequada, e este projeto é um esforço neste sentido.

Para este exercício, no entanto, é suficiente resumir os principais argumentos,

que serão posteriormente relacionados com o caso, a série de livretos Edições

Ferramenta. Começaremos pelos itens famigerados pela crítica:

• Como já foi dito, os meios de comunicação de massa dirigem-se a um

público muito amplo e heterogêneo, por isso orientam suas práticas a

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partir da “média do gosto”, submetendo a produção às leis

mercadológicas da oferta e da procura;

• os meios de comunicação de massa dirigem-se a públicos que não tem

consciência de si próprios, que não tem autonomia para manifestar suas

necessidades. A produção é feita para as massas, mas não pelas massas;

• os meios de comunicação de massa costumam reificar sensações

intensas. As emoções não são sugeridas ou representadas, elas são

confeccionadas aprioristicamente por técnicas tipificadoras;

• os produtos são condensados, nivelados, para que exijam um esforço

mínimo de apreensão por parte dos espectadores;

• dessa forma os meios de massa encorajam uma visão passiva e acrítica

em relação as mensagens recebidas;

• em última instância, são usados para fins de controle e planificação das

consciências, pelo esvaziamento da ideologia crítica.

Eco reuniu argumentos produzidos por outros teóricos, mas também fez um

esforço em sistematizar a opinião dos integrados em relação a cultura de massas:

• A cultura de massas não é exclusiva de regimes capitalistas, ela nasce em

qualquer sociedade de regime industrial, proporcionando que a massa de

cidadãos participe pela primeira vez da vida pública: dos seus direitos,

dos seus consumos e de suas fruições de comunicação;

• a cultura de massas difunde bens simbólicos a uma significativa parcela

da população que em outros períodos não tinha qualquer acesso aos bens

de cultura;

• a divulgação de livros sob a forma de digest estimulou uma revolução

editorial que difunde obras culturais validadas em enormes quantidades a

preços baixos e em edição integral;

• a homogeneização do gosto contribui no fundo para eliminar certas

diferenças de classes, pois os pobres passam a ter acesso aos mesmos

produtos que os ricos.

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O autor nos explica que a fórmula “Apocalípticos e Integrados” não significa

uma oposição entre duas atitudes, mas pode ser vista como adjetivos que são

complementares em produtores de uma “crítica popular da cultura popular” (p. 9). O

caso escolhido para este trabalho emerge num espaço de resistência aos meios de

comunicação de massa, fazendo este tipo de crítica.

Edições Ferramenta

É uma série de livretos em formato canoa, de aproximadamente quarenta

páginas cada um em tamanho A6, a venda em livrarias evangélicas de todo o Brasil.

Apresentam uma preocupação apologética, que propõe uma defesa sistematizada de

alguma doutrina. Dessa forma, trabalham assuntos muito variados, que constituam

alguma forma de ameaça à religião. Listamos alguns títulos a seguir:

• O Perigo Oculto: em Símbolos; em Amuletos, Rituais e Música.

• A Atração Perigosa: em Super-heróis e Contos de Fadas; em Games; em

Histórias em Quadrinhos e Mangás.

• O Lado Sombrio: da Televisão; da Internet; do Cinema e Artes

• Saiba o que Deus Pensa: nessa coleção os livretos são numerados, e cada

volume reúne exposições curtas de tópicos muito variados, como Jogos de

Azar; Tatuagens; Filmes de Terror; Cavaleiros do Zodíaco; Os Simpsons;

Orkut; a Disney; Realidade Virtual; Pirataria; A Criança e a TV; etc.

A Série Ferramenta se diferencia de outras produções evangélicas de crítica da

mídia por fazer um apanhado de citações de autores da teoria da comunicação,

incluindo Baudrillard, Santaella, Barthes, e curiosamente, Umberto Eco, com

Apocalípticos e Integrados. Para este exercício interpretativo, foi selecionado o livreto

“O lado sombrio da nova mídia”, que entre obras de teologia, de conhecimentos gerais e

de teoria da comunicação, somam sessenta referências. Serão replicados alguns excertos

que demonstram como o autor aciona essas referências, e de antemão pode-se dizer que

ele pensa o assunto de uma forma bastante peculiar.

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Os livretos são de autoria do Pastor Édino Melo, mas em nenhum momento

explicitam vínculo institucional com alguma denominação ou ministério religioso. Ao

invés disso o autor se põe à disposição, publicando seu contato para negociar convites

para “palestras, conferências e seminários” sobre “Simbologia, Brinquedos- O Perigo Oculto, Seitas e Heresias e Mídia.” Assim, mesmo sem ser um pesquisador da área,

pretende explicar os fenômenos comunicacionais de uma forma que supra as

necessidades mais imediatas de fiéis evangélicos.

Além de uma ampla bibliografia, o pastor Édino Melo constantemente cita

passagens das Bíblia. O autor faz uma proposta original de uma teoria dos meios,

quando parte das Escrituras para fazê-lo. Comentam-se abaixo este e outros itens

recorrentes em suas análises.

a. Bíblia, manual de teoria da comunicação? Saiba o que Deus pensa.

Se durante mais de um século os apologetas tomam a Bíblia como fonte infalível

de conhecimento sobre a origem do universo, não é de se surpreender que uma

iniciativa semelhante incorra para além das ciências exatas, no campo da comunicação.

Nesse sentido o autor faz uma teoria da mídia a partir de referências bíblicas sobre a

língua e sobre a palavra. As citações são abundantes, e nem sempre se relacionam

imediatamente ao assunto trabalhado. Aprecem na forma abreviada, sendo usadas como

ilustração de seus argumentos. Por causa disso, foram inseridos para consulta nas notas

de rodapé.

30 fatos sobre o poder da mídia e a síndrome da língua digital Curiosamente a comunicação humana, a mídia, é simbolizada na Bíblia pela língua. Veja, segundo a Bíblia, o que ela pode fazer: (...) 2. Tem poder de vida e morte (Pv 18.20-2121) (...) 21. Abençoa ou amaldiçoa (Tg 3.822) (...) 26. Pode tornar o evangelho conhecido (Mc 16.1523) (p.11)

21 Do fruto da boca enche-se o estômago do homem; o produto dos lábios o satisfaz. A língua tem poder sobre a vida e sobre a morte; os que gostam de usá-la comerão do seu fruto. (NVI) 22 a língua, porém, ninguém consegue domar. É um mal incontrolável, cheio de veneno mortífero. (NVI) 23 E disse-lhes: Vão pelo mundo todo e preguem o evangelho a todas as pessoas. (NVI)

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Apesar de a palavra ser originariamente divina, ela perde relativamente suas propriedades na condição humana e se perde. A mídia não passa de um veículo que media as relações humanas neste mundo enlameado pelo pecado. O mundo, de fato, é um atoleiro pecaminoso, e os homens, encalhados, lançam lama em tudo. Por isso, a mídia está contaminada (Rm 5.1224, Gn 6.5-625). Conforme diz Francis Schaeffer e, A morte da Razão, SP, A.B.U. “o homem em sua totalidade era obra de Deus; agora, porém é decaído em toda sua natureza, inclusive intelecto e vontade” (Rm 3.2326; 6.2327). (p. 10) James Houston cita a frase de Lewis Murriford de que “a era moderna tem se especializado no rebaixamento da linguagem”. Marshall McLuhan chega a defender que hoje “o meio é a mensagem.” A comunicação divina, porém, difere da humana. A Palavra de Deus é a verdade transcultural (Jo 8.3228), absoluta em qualquer cultura, em qualquer época. Ela possui autoridade divina (Mt 4.4,7,1029); indestrutibilidade (Mt 5.17,1830); infalibilidade (Jo 10.3531); supremacia absoluta (Mt 15.3,632); inerrância nos fatos (Mt 22.2933; Jô 17.1734); confiabilidade histórica (Mt 19.4-535; Jo 3.1236). é viva e eficaz (Hb 4.1237). “... Ele levanta a sua voz, e a terra se derrete (Sl 46.6)”. (p. 34)

24 Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram (NVI) 25 O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra; e isso cortou-lhe o coração. (NVI) 26 pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus (NVI) 27 Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor. (NVI) 28 E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará. (NVI) 29 Jesus respondeu: "Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’". Jesus lhe respondeu: "Também está escrito: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’". Jesus lhe disse: "Retire-se, Satanás! Pois está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus e só a ele preste culto’". (NVI) 30 Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra. (NVI) 31 Jesus lhes respondeu: Não está escrito na Lei de vocês: "Eu disse: Vocês são deuses"? (NVI) 32 Respondeu Jesus: E por que vocês transgridem o mandamento de Deus por causa da tradição de vocês? ele não é obrigado a ‘honrar seu pai’ dessa forma. Assim vocês anulam a palavra de Deus por causa da tradição de vocês. (NVI) 33 Jesus respondeu: Vocês estão enganados porque não conhecem as Escrituras nem o poder de Deus! (NVI) 34 Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade. (NVI) 35 Ele respondeu: “Vocês não leram que, no princípio, o Criador ‘os fez homem e mulher’ e disse: ‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne”? (NVI) 36 Eu lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram; como crerão se lhes falar de coisas celestiais? (NVI) 37 Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração. (NVI)

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A proposta de Édino Melo sobre a palavra como mídia humana não expressa

nenhuma diferença entre a modalidade oral (língua) e a escrita. Deus é o “Deus da palavra” (p. 34), mas a palavra dele difere da palavra do homem. A palavra de Deus

tem sempre poder de transformar a realidade ontológica; por meio dela, todas as coisas

vieram a existir. A palavra enquanto mídia humana também tem poder, mas carrega

uma valoração ética, porque pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal.

Para além de uma visão conteudista dos meios de comunicação, o autor propõe

que a diferença entre a palavra de Deus e a palavra do homem produz um rebaixamento

da linguagem. Com isso ele quer dizer que o pecado destitui a linguagem de suas

características motoras originais.

Parte da mídia é uma espécie de coador sujo, porque côa a borra do coração humano, borrado pelo pecado (I Jo 5.1938). Conclusão: a mídia é decadente em muitas áreas por ser de fato, como defende Marshall Mcluhan, uma extensão do próprio homem, só que de acordo com a bíblia, em decadência (Rm 3.10-1839). Enfim, o que sai da boca do homem contamina o homem (Mt 15.1140). (sic) (p.10)

Além disso, sua apreensão precipitada da teoria McLuhiana proclama que o

meio, enquanto extensão do homem, expressa conteúdos decadentes, e que, por isso,

torna-se idêntico a estes últimos.

b. Acionamento das teorias da comunicação

Reúne diversas expressões de argumentos apocalípticos, citando vários autores

da teoria da comunicação. Mas não para por aí. Édino Melo relaciona o conceito de

indústria cultural à concepção evangélica de “mundo”: um sistema engendrado por para

enredar o homem em prazeres enganosos. A mídia está a serviço da indústria cultural, e

38 Sabemos que somos de Deus e que o mundo todo está sob o poder do Maligno. (NVI) 39 Como está escrito: "Não há nenhum justo, nem um sequer; não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus. Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer"."Suas gargantas são um túmulo aberto; com suas línguas enganam". "Veneno de serpentes está em seus lábios". "Suas bocas estão cheias de maldição e amargura". "Seus pés são ágeis para derramar sangue;ruína e desgraça marcam os seus caminhos, e não conhecem o caminho da paz"."Aos seus olhos é inútil temer a Deus". (NVI) 40 O que entra pela boca não torna o homem ‘impuro’; mas o que sai de sua boca, isto o torna ‘impuro’. (NVI)

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têm um fim último de reificação, ou seja, de transformação de valores de cultura e de

indivíduos em mercadorias.

Como o cristão deve se posicionar em relação à influência dos meios de comunicação na cultura atual, enquanto ela é confundida com a própria cultura? (p. 09) A idea de mundo aqui, então, diz respeito a um “sistema” que, comanda, segundo Theodor Adorno, a indústria cultural por trás da mídia. Esse sistema faz do mundo um mercado de almas e parte dos detentores da mídia em seus mercadores. Conclusão: neste sistema o homem é a sua própria mercadoria (Ap 18.12-1341). (p. 12) A cultura mundana é uma teia de sedução. Raquel Paiva e Muniz Sodré afirmam em Cidade dos artistas, SP, Mouad, 2004, que a cultura é hoje interpretada como o imperativo individualista de se divertir a todo custo, preferencialmente nas formas sugeridas a cada dia pela mídia eletrônica. Cutura-entretenimento, associada a consumo de luxo, é de fato a grande mercadoria da gentrificação. (p. 13) A mídia, aliada ao mundo, é patrocinada por instituições e inescrupulosas, a fim de mercadejar almas. Muniz Sodré diz: A mediatização é uma espécie de articulação das múltiplas instituições tradicionais, com as várias e novas organizações de mídia, com atividades regidas por finalidades tecnológicas e mercadológicas, além de culturalmente afinadas com uma forma ou um código cultural específico. Mídia, comerciantes e tecnoburocratas dos serviços públicos são os agente sociais de uma forma de vida “midiatizada” (p. 13) A mídia faz uso do entretenimento, ou humor (Adorno, 1978);do fait-divers, que apela para o sensacionalismo (Barthes, 1984), ou então a ironia (Mongelli, 1983) como meio de banalizar o mal Como é que de repente todo o mundo faz aquilo que considera errado? Hannah Arendt se perguntou sobre isso quando estudou o nazismo, tentando entender como uma população inteira aderiu à loucura de Hitler... (p. 33)

c. Neutralidade do meio

41 artigos como ouro, prata, pedras preciosas e pérolas; linho fino, púrpura, seda e tecido vermelho; todo tipo de madeira de cedro e peças de marfim, madeira preciosa, bronze, ferro e mármore; canela e outras especiarias, incenso, mirra e perfumes, vinho e azeite de oliva; farinha fina e trigo, bois e ovelhas, cavalos e carruagens, e corpos e almas de seres humanos. (NVI)

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Corresponde a expressões já consagradas de uma visão utilitarista dos meios de

comunicação de massa. É como Gomes (2007a) aponta em relatório de pesquisa: as

religiões tradicionalmente vêm pensando os meios como ferramentas úteis para

proselitismo doutrinário.

Este avanço tecnológico pode ser uma bênção ou uma maldição. Evidentemente que não podemos demonizar a cultura. Não é esta intenção aqui. (p. 04) Deus capacitou-nos com a palavra. A mídia, na verdade, são meios pelos quais o homem se expressa. Em si, ela não é ruim. Não obstante, ela é condenada per Deus se usada para o mal (Mt 12:3642). (p. 12) Paulo fala da necessidade de usarmos todos os meios legítimos para pregarmos o Evangelho (...) Paulo pregou ao homem todo (...), em todo tempo disponível (...), toda a mensagem do Evangelho (...). Por isso, certamente Paulo utilizaria a mídia atual para pregar o Evangelho. (p. 35)

d. Virtual, imaginário e real

Ao final do livreto, o autor lista o livro “O que é o virtual”, de Pierre Levý,

entretanto, não o cita no texto, embora repita algumas de suas perguntas. Como não é

feito nenhum desenvolvimento nesse sentido, fica exposta uma oposição forçada entre o

virtual e o real. A confusão funciona como um alerta a imutabilidade divina.

Mas, afinal o que é real e o que é imaginário? O que é virtual? Quem está na outra ponta da teia é o que? Gente ou inteligência artificial! Ouve-se de traição virtual, mas isto é real ou só virtual? Sexo cibernético, terrorismo on line, conspiração em rede, assalto a banco sem explodir cofres e igreja eletrônica. Fique alerta, porque embora o pecado esteja virtualizando-se, o juízo divino continua real (Ec 12.1443). Deus não digitalizou-se. (p. 03)

e. Meios de Comunicação de Massa a serviço de Satanás 42 Mas eu lhes digo que, no dia do juízo, os homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado. (NVI) 43 Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja mal. (NVI)

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Neste item a análise apocalíptica ganha um novo sentido, porque o que o autor

da série faz não é somente uma crítica popular da cultura popular. O apocalipse é

tomado na acepção escatológica do termo, quando se propõe que os meios de

comunicação de massa estão a serviço de Satanás para a planificação das consciências,

preparando o mundo para o governo do anticristo. Assim, mais uma vez, ele parte de

suas crenças bíblicas para avaliar os fenômenos comunicacionais.

A Bíblia de estudo da CPAD, explica que satanás usa os meios de comunicação em massa para destruir os padrões divinos de conduta, inclusive a agricultura para produzir drogas destruidoras da vida, tais como o álcool e os narcóticos, e, a educação, para promover a filosofia ímpia humanista. (p. 22) Arno Froese, autor do livro a Era do Deus Digital concorda que a chegada do Anticristo só será possível quando houver uma teia de comunicação que interligue as relações comerciais do planeta. A nova mídia caminha a passos largos para esse fim (Ap 13.16-1844). (p. 32) O camaleão pode mover seus olhos para dois lados diferentes. Ele usa a sua capacidade de mudar de cor para se camuflar e enganar suas vítimas. Satanás, camufladamente, tem utilizado os recursos da mídia que, na verdade, deveriam ser usados pelo evangelho. (p. 35) Enquanto a mídia não se sujeita plenamente à instrumentalidade divina, ela tem propagado práticas ligadas à carne, ao mundo e ao diabo, ofensivas a Deus. Por isso, como cristão você deve avaliar os conteúdos transmitidos por ela. Analise alguns à luz da Bíblia. (p. 36) A teia do inferno A seda é produzida no abdômen da aranha e sai ainda em forma líquida através de estruturas microscópicas (...). Quando puxa a seda com as patas de trás, ela assa para o estado sólido, formando um fio. (...) Indiscutivelmente, parte do entretenimento que aí está sai das próprias entranhas do diabo para capturar inclusive o povo de Deus (1Co 11.345). (p. 38) A nova mídia tem atuado como uma espécie de vampirismo que suga o tempo pertencente a Deus. São os filmes, a TV, os seriados, os blogues, orkut, e-mail, as locadoras (ou será loucadoras?), o show

44 Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa, para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome. Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e seis. (NVI) 45 Quero, porém, que entendam que o cabeça de todo homem é Cristo, e o cabeça da mulher é o homem, e o cabeça de Cristo é Deus. (NVI)

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musical da onda, o noticiário, etc. coisas normais, mas que em excesso, se tornam videotizantes. Esterilizam a fé e amordaçam o amor cristão. Paralisam ministérios entulhando a mente com imaginação ímpia. Embrutecem as relações familiares e injetam o mundanismo na veia da igreja. Enfim, cada elo dessa teia banal, imobiliza-nos na sua morbidez, para, então, sermos vitimados pelo secularismo insonso, que inocula a sua picada mortífera na alma cristã, e a sepulta no marasmo devocional (Rm 12.1-246). Deixe Deus “romper a teia do coração” (Os 13.847). (sic) (p. 39)

f. Proposta de esvaziamento

O livreto “O lado sombrio da nova mídia” desde seu título se destina a provocar

um alarme em relação à influência demoníaca nos processos comunicacionais. No

entanto, esse tipo de discurso não encerra toda a intenção da obra, porque em última

instância cumpre um objetivo próprio do campo religioso: o esvaziamento, um

abandono de pulsões imediatistas em prol do propósito eterno de Deus para a sua igreja.

A exposição escancarada da corrupção da cultura ancora um chamado à separação dos

interesses mais vulgares da sociedade, um apelo à santificação.

Deslocar Deus do centro de nossas vidas é o mesmo que descentrar o Sol. Se isso ocorrer todos nos deslocaremos em profundas trevas. Tire o caroço do âmago do fruto, e ele fenecerá; não haverá mais gerações. Sem Deus não há continuidade para a vida. Ela perece. (p. 14) [...] “se o olho o faz pecar porque a tentação o assola através de seus olhos (os objetos que você vê), então arranque seus olhos. Isto é, não olhe! Comporte-se como se você realmente tivesse arrancado os seus olhos e os tivesse jogado fora, como se estivesse agora cego e sem poder ver os objetos que anteriormente o levavam a pecar. Repito, se a sua mão ou o seu pé o fazem pecar, porque a tentação o assola através de suas mãos (coisas que você faz) ou de seus pés (lugares que você visita), então corte-os fora. Isto é: não faça! Não vá! Comporte-se como se na realidade você tivesse cortado e jogado fora seus pés e suas mãos, e estivesse agora aleijado e sem poder fazer as coisas ou visitar os lugares que anteriormente o levavam a pecar.”

46 Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (NVI) 47 Como uma ursa de quem roubaram os filhotes, eu os atacarei e os rasgarei. Como leão eu os devorarei; um animal selvagem os despedaçará. (NVI)

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Este é o significado de “mortificação” (Mt 16.24-2848). (apud John Stott p. 19) Peixes se reúnem em cardumes, abelhas em coolméias, camelos em cáfilas, gatos em cambadas, cachorros em matilhas, formigas em colônias, e os crentes? Em clubes? Não! A igreja não é clube. Nós nos reunimos em rebanhos guiados pelo Pastor de almas, Jesus. (p. 15)

Umberto Eco (1964 p. 43) ilustra que a indústria cultural, como controle das

massas “desenvolvem uma função que, em certas circunstâncias históricas, tem cabido às ideologias religiosas”. É por isso que atores como Édino Melo emergem

contrapondo-se aos meios de massa, numa tentativa de recobrar ao espaço religioso o

que era seu no princípio. Nesse sentido ele parte da Bíblia para pensar os meios. É uma

abordagem sem dúvida bastante interessante, mas que expressa uma imaturidade

metodológica em sua realização. As citações de autores do campo são usadas da mesma

forma que os versículos bíblicos, para ratificar as opiniões que propõe, sem fazer uma

interpretação contextualizada destes materiais.

A apologética enquanto defesa de alguma determinada doutrina pode valer-se de

conhecimentos científicos, mas tende à repetição de suas próprias lógicas, numa

dinâmica pressuposicionalista. Não podemos esquecer que Édino é um pastor, que

procura de alguma forma suprir as demandas espirituais mais imediatas de seu rebanho,

e que, nesse âmbito, uma análise bíblica do fenômeno pode ser entendida como legítima

pelo público pretendido.

A visão apocalíptico-integrada consagra um mal entendido em relação à

natureza dos meios: são tão bons quanto as mensagens que disseminam. Superando

estes discursos mais imediatos, a produção demonizadora apresenta uma operação

apocalíptica fetichizante, pela provocação do medo, impedindo uma análise racional dos

processos. Então o apocalipse assume um caráter sinteticamente escatológico, quando

os meios de comunicação de massa são considerados como instrumento de Satanás para

implementação do governo do anticristo. Consciente ou não, o autor usa como

48 Então Jesus disse aos seus discípulos: "Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a vida por minha causa, a encontrará. Pois, que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou, o que o homem poderá dar em troca de sua alma? Pois o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então recompensará a cada um de acordo com o que tenha feito. Garanto-lhes que alguns dos que aqui se acham não experimentarão a morte antes de verem o Filho do homem vindo em seu Reino". (NVI)

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estratégia comunicacional aquilo que Carrascoza (1999) ensina em seu manual

publicitário por “invenção de inimigos”.

Em sua índole pastoral, Édino Melo trata os produtos midiáticos como lobos que

ameaçam a saúde espiritual de suas ovelhas. Seus argumentos apocalípticos manifestam

não somente esta preocupação, mas também um chamado à renúncia dos prazeres

mundanos. Uma tentativa sublimadora, sem dúvida, mas que é realizada a partir de

conceitos-fetiche, que impedem a produção de novos conhecimentos. A santificação

que proclama não é movida pelo amor kenótico, é movida pelo medo da cultura, de

Satanás e do fim dos tempos. Seu pecado é o mesmo dos teóricos apocalípticos: a

distinção forçada, um julgamento imaturo sobre algum determinado fenômeno.

Esse tipo de movimento é um subproduto da abertura do campo religioso aos

usos e às interações da cultura, uma tentativa de autorregulação pelo dispositivo da

produção evangélica. Uma ameaça de inquisição que provoca um efeito repuxo,

trazendo para dentro o que estava na dúvida. O apocalipse, pelo excesso e pela ameaça

restitui o lugar de controle da instituição religiosa sobre os signos.

Pedro Gomes (2007a) explica que a mídia e a religião são dois projetos distintos

de compreensão da sociedade, ambos com pretensão de totalidade. Os encontros e

desencontros destes dois campos produzem disputas de sentido que polarizam

concepções sobre o bem o mal. Essa dinâmica produz um grande espaço de irritação do

sistema social, que ainda está longe de se estabilizar. A produção apocalíptica pelos

evangélicos é só mais um indício dessa tensão.

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4 – Conclusão

Nosso projeto inicia sua trajetória pela localização do desenvolvimento da

cultura gospel em relação com a midiatização da sociedade. Fizemos referência a esse

contexto pela criação de três fases, que descrevem condições específicas das práticas

exercidas pelo campo religioso em relação aos signos. Nosso objeto observa esse novo

mercado, que reúne operações de instituições diversas: empresariais, religiosas,

artísticas. É uma zona de passagem, um espaço heterogêneo da cultura, que, no entanto,

é organizado pelo gospel em suas ações, formações estéticas e discursividades.

Nesse contexto descrevemos a indústria cultural evangélica como uma situação

social indeterminada, na qual se identificam sobreposições e tensões da religião com o

mundo dos desejos. Nesse propósito elaboramos nossas referências teóricas através das

dinâmicas de ascensão e descenção em Marcuse. Uma visada da cultura a partir do

desenvolvimento de Eros. Complementamos à essa proposição o conceito do amor

Ágape, estado de plenitude espiritual, que, entre os homens, se dá a conhecer a partir do

sofrimento kenótico, uma manifestação radical de alteridade.

Desde o início procuramos superar o paradigma de uma indústria cultural strictu

sensu, e por isso trabalhamos os conceitos específicos desta escola somente na

apresentação dos nossos empíricos. O avanço do conceito inicial deu-se pela abordagem

de duas perspectivas distintas, uma da religião e outra da cultura. A primeira delas é o

esvaziamento sagrado, conteúdo central da religião cristã, que permanece enquanto

referência central de suas processualidades. A segunda delas é o aporte do dispositivo,

que permite analisar relações de superação da polaridade produção/consumo.

O dispositivo reproblematiza a questão da técnica, que, na indústria cultural

clássica reproduz uma ideologia de dominação. Em nossas formulações, a dimensão

sócio-antropológica do dispositivo antecede as demais. A técnica é inventada para

suprir aspirações do desejo que já estão presentes na cultura. É possível pensar que, na

midiatização, a sociedade requisite técnicas que possibilitem reverter esses contextos

hegemônicos, ainda que de forma tentativa.

A comunicação tornou-se objeto de análise sociológica com a emergência de

meios de comunicação de massa, e de uma indústria correlata. Embora tenha superado

seus paradigmas iniciais, ainda não foram criados dispositivos suficientemente

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heurísticos para tornar a gratuidade da cultura objeto de investigação. Este é um

movimento de indução teórica, que nossa pesquisa objetiva por em circulação.

A religião cristã se organiza a partir da problemática da graça, do perdão de

pecados da alteridade vinculada ao amor ao próximo. Cultua um sacrifício sagrado que

libera a comunhão entre os homens. Na produção cultural evangélica, a gratuidade é

celebrada em narrativas que retomam o esvaziamento kenótico. Aparece em primeiro

lugar nos bens simbólicos originais do campo religioso: hinos de louvor, livros

doutrinários, eventos comunitários e, enfim, na Bíblia. É uma narrativa que organiza os

demais conteúdos da religião, e que, por isso, permanece presente, mesmo nos produtos

derivados das apropriações industriais.

Avaliamos em nossos empíricos manifestações desse esvaziamento em atores

individuais da indústria. Asaph Borba extrai do luto uma significativa expressão

religiosa de ação de graças. Carol Celico abre mão da exposição e do lucro que poderia

obter em shows, e reverte os rendimentos da venda de seu álbum a organizações

benemerentes. No campo institucional, diversas iniciativas colaboram para proliferação

das Escrituras de forma gratuita. A Bíblia é em si percebida como um dom de Deus a

humanidade. Suas traduções são disseminadas em licença livre. Há, por parte das

sociedades especializadas, uma força tarefa constante para dar a Bíblia ao mundo,

arregimentando doadores e profissionais que produzam versões de acordo com a

demanda de todos os povos.

A midiatização da cultura gospel movimenta uma transformação de seus signos

religiosos, e, então, há abertura para uma mudança que ocorre segundo as lógicas de

mercado, convertendo bens simbólicos gratuitos em valores de troca. A forma de

mercadoria é assumida como prática por empresas que se autonomizaram em relação ao

campo de origem. Há uma apropriação pela indústria gospel de uma fortuna que é

oriunda das práticas religiosas. Põe-se a venda aquilo que era gratuito.

Então a produção religiosa toma a forma padronizada dos gêneros da indústria

secular. A cultura gospel, além de adaptar-se ao gosto do público médio, produz apelos

diferenciados, investindo na segmentação. Verificamos nessa dinâmica um

deslocamento do significado, da mensagem do evangelho a formações outras, que

valorizam determinadas formações estéticas. É o caso das Bíblias decorativas, Bíblias

Personalizadas e até mesmo de algumas Bíblias de Estudo, que na sua diagramação

abrem espaço a outros tipos de discurso.

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Entendemos que a indústria cultural evangélica constitui-se enquanto

investimento do campo religioso na esfera dos materiais, atendendo a fins múltiplos por

parte dos seus atores. Todavia, não há como participar do mundo dos objetos sem cair

na dessublimação. Trata-se de um problema de escala, uma mudança quantitativa que

gera uma mudança qualitativa. A mercantilização somente não redunda na

dessublimação, mas as operações industriais de segmentação de mercado implicam em

formas de distinção pelo fetichismo da mercadoria. Incluímos nessa problemática toda a

categoria de produtos religiosos não-midiáticos, bem como a de produtos contrafeitos,

que alimentam uma relação direta com a indústria secular.

O fetichismo da mercadoria sobrepõe-se a quebra de transcendência das

imagens. A contemplação idólatra pode ter sido superada com a transformação dos

signos, mas percebemos que a dessublimação da cultura pela fetichização dos objetos

persiste enquanto desafio para o entendimento da questão. O fetiche evoca uma

fantasmagoria, um engano das aparências, que atiça o desejo por aquilo que não satisfaz

enquanto relação social. A idolatria troca de plataforma, mas persiste no fetiche de

mercado pelos evangélicos.

A tese de Cunha trabalhou o termo “híbrido” em uma perspectiva questionadora

crítica e não complacente em relação a cultura gospel. Para a autora,

o hibridismo gospel é a geração de uma cultura de manutenção e não algo novo, transformador, desafiador, que responda às demandas sociopolítico-econômico-culturais do tempo presente. Este trabalho deverá demonstrar nos próximos capítulos como a cultura gospel traz em si elementos do conservadorismo protestante expressos por meio de um “invólucro” de modernidade – hibridismo que pode ser avaliado a partir da própria origem do termo que remete às noções de anomalia e esterilidade. (Cunha 2004 p.111)

De acordo com nossas proposições, entendemos que esse invólucro de

modernidade que a autora comenta corresponde ao fetiche de mercado e a conseqüente

dessublimação da cultura pela indústria. Desde o início a pesquisa preocupou-se em

superar esse tipo de julgamento, que implica na acepção de uma sociedade

unidimensional e homogênea. Entendemos que conceitos carregam valorações

específicas, e que então, nesta altura, podemos propor que a cultura gospel não é uma

cultura híbrida, é uma cultura heterogênea em relação às suas tentativas de ascensão do

desejo.

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Em sua acusação sobre a dessublimação da cultura gospel, Cunha cita a análise

de Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, que em breves linhas

relaciona os esforços de negação da carne pelos protestantes com a acumulação de

capital. A ética protestante é ascendência de Eros, que, pelo desenvolvimento da

técnica, cai na armadilha da valorização dos objetos. A ética protestante oferece

condições para o surgimento do seu oposto: o espírito do capitalismo, uma inclinação ao

fetiche do mercado, uma realização nas materialidades, que resulta em um vazio das

relações sociais.

Em sua análise sobre a relação protestantismo-modernidade, Weber concluiu: quando o ascetismo saiu dos mosteiros e foi levado para a vida profissional, passando a influenciar a moralidade secular, contribuiu “poderosamente para a formação da moderna ordem econômica e técnica”. O protestantismo ascético remodelou o mundo e os bens materiais, que eram o seu fim, assumiram força sobre os homens. Para Weber, porém, com o triunfo do capitalismo, o espírito religioso “safou-se da prisão”, e o capitalismo, vencedor, não careceria mais dele. Isso pode ser observado nos países protestantes, onde a procura da riqueza está despida da religião e cada vez mais associada com “paixões puramente mundanas”. O pensador termina afirmando: “Ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão”. O futuro indicado por Weber, que está sendo vivido hoje, demonstra, por meio da cultura gospel, que é o protestantismo quem agora está preso ao espírito do capitalismo. Quando os evangélicos brasileiros inserem nas suas práticas religiosas aspectos profanos, aqueles integrantes da modernidade, e estes passam a produzir sentido à sua forma de viver a fé e relacionar-se com o sagrado, revelam como esta nova ascese protestante revela-se uma homologia do sistema socioeconômico em curso. (Cunha 2004 p. 280-281)

Se, por um lado, comprovamos essa dessublimação nos produtos da indústria

gospel, não acreditamos que ela redunde no fim da prática religiosa evangélica. Para

além das lógicas do mercado, verificamos que os produtos são forjados em outras

processualidades, que resgatam o projeto cristão e a gratuidade da cultura. O dispositivo

da produção cultural evangélica se estabelece em contato de produtores e consumidores,

mediados pelas instituições religiosas. Dessa forma os atores atualizam formações

diversas da cultura em usos e interações que suprem necessidades variadas por parte do

rebanho. Relacionamentos, carreira, resolução de conflitos, cura. Está sempre presente

uma tentativa de proporcionar conteúdo cristão em relação a algum determinado

assunto.

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Subsiste neste processo uma tentativa de sublimação, e isso se dá em discursos

de esvaziamento, em apelos de santificação e em mensagens evangelísticas. A

apropriação de formações estéticas seculares serve como um pretexto, uma estratégia de

contato do campo religioso na divulgação do seu conteúdo de salvação: o sacrifício de

Cristo. Vários atores da indústria gospel se esforçam para fazer de tudo para com todos,

na tentativa de salvar alguns; como o fez, em sua época, o apóstolo Paulo.

A indústria evangélica, como vimos, atua num campo fragmentando, reunindo

atores dispersos por grupos de tradições distintas. Em relação à unidade da igreja, essas

empresas geram um espaço paraeclesiástico, quando seus conteúdos extrapolam

barreiras denominacionais. Tal espaço representa uma tentativa de amenizar tensões

religiosas pela produção de conteúdos estandardizados. Uma proposta de unidade, que é

distinta da proposta ecumênica. O movimento ecumênico promove a tomada de ação da

igreja para transformação da sociedade. É movimento que, pela prática de boas obras,

estabelece comunhão com outros grupos, reduzindo disputas.

A cultura gospel nunca assumiu nenhum projeto revolucionário, mas isso não

significa que apresente um caráter conformista em relação ao curso da sociedade,

apenas que sua proposta de transformação dá preferência à solidariedade e à prática do

amor ao próximo na vida cotidiana. O discurso de reconciliação da cultura gospel não se

relaciona diretamente com os movimentos da sociedade civil ou com as formas

institucionais de representatividade; se relaciona com um esvaziamento prosaico, sem

elaborar nenhum outro projeto ideológico específico. Dessa forma, no contato com a

religião, indivíduos manifestam mudanças de atitude no âmbito pessoal, abandonando a

mentira, as drogas e o adultério, por exemplo. Conversão de valores e de

comportamentos, que reverberam na esfera comunitária.

Lógicas como estas estão para além da ideologia do mercado, e subsistem à

introdução dos evangélicos na esfera dos desejos, à busca do bem-estar. O dispositivo

da produção cultural evangélica assume uma função de transicionalidade, quando põe

em contato fragmentos diversos, gerando um amalgama cultural-religioso, um novo

espaço de interação com a sociedade. O que acontece lá (no mundo), também acontece

aqui (entre os evangélicos).

Nesse fenômeno de midiatização da religião, percebemos uma mudança de

contexto das instituições, cujas fronteiras estão ameaçada por usos e interações da

cultura, ainda que redirecionadas a propósitos do campo religioso. Em nossos objetos,

verificamos que o apocalipse que é atualizado pela produção demonizante objetiva

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resgatar à instituição religiosa o poder final sobre os signos, sua explicação geral sobre

o mundo. A produção apocalíptica exerce a função de sentinela, de observatório geral

da sociedade.

O apocalipse é, na da teoria da comunicação, uma crítica da cultura popular; na

religião evangélica, uma preparação para o domínio do anticristo; em Eco, um

escândalo, que impede a produção de novos conhecimentos em relação a algum

determinado fenômeno da cultura. Na produção cultural evangélica, ele aciona uma

tentativa de retomada de hegemonia, que é não feita de maneira elaborada, mas numa

ameaça inquisitória, de cunho patológico.

Movimentos de expansão e retraimento desenham a conversa da religião com a

cultura, especialmente em relação à problemática dos desejos. Podemos então responder

a nossas questões de pesquisa. A primeira delas pergunta em que sentido podemos

entender a emergência de uma indústria cultural evangélica como fenômeno de

midiatização da religião. Podemos respondê-la de formas diferentes. Em primeiro lugar,

entendemos que a indústria é uma expressão de midiatização da cultura gospel, que se

autonomizou em relação ao campo religioso. O espaço é organizado por empresas que

não manifestam vínculos denominacionais, acionando operações mercadológicas para

abranger um nicho mais amplo.

Entretanto, visto de outra forma, a produção cultural evangélica é um dispositivo

que está em contato de retroalimentação com o campo religioso. A indústria está em

circulação, mediada por uma simples formação do setor, a saber, evangélicos criam para

evangélicos. Essa redução da defasagem entre produção e consumo por parte dos atores

da indústria exerce uma função importante no campo religioso, em que os bens estão

dispostos a vários fins, usos e interações que suprem a necessidade específicas do

rebanho.

Nossa segunda questão é sobre as funções distintas que são cumpridas pelos

materiais no campo religioso. Nossos empíricos trouxeram vários exemplos em relação

a isso. A tese de Cunha identificou a explosão gospel no Brasil a partir da tríade música-

entretenimento-consumo. Cremos que o fenômeno extrapolou esse tipo de proposição

inicial, abrangendo múltiplas manifestações e atualizações de dispositivos da cultura.

Destacamos, nestas formações, duas funções específicas que os bens simbólicos

evangélicos exercem em relação ao campo religioso. A primeira delas é a de fornecer

uma entrada segura da religião na esfera do bem-estar, da satisfação do desejo, e de sua

realização nas materialidades. A segunda delas é a criação de um espaço de

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socialização, que se torna necessário por causa da diluição da comunidade na sociedade

contemporânea, refletida no campo evangélico pela fragmentação institucional. A

produção religiosa é transicional, porque ao mesmo tempo em que realiza a inserção no

mercado, promove a criação de uma comunidade de pertencimento, disposta para

amenizar crises de identidade diversas.

Nossa terceira pergunta versa sobre os motivos que justificam a ocorrência

simultânea de midiatização e de resíduos iconoclastas pela indústria cultural evangélica.

A princípio, a pesquisadora interpretava a controvérsia como puro desconhecimento dos

evangélicos em relação às teorias da comunicação. A questão, contudo, demonstrou-se

bastante mais rica. Vimos em toda a processualidade apocalíptica um esforço centrípeto

por parte do campo religioso, que procura remarcar as fronteiras que foram expandidas

pelos usos e interações com a cultura.

Enfim, as propostas do campo evangélico sobre a comunicação humana que

relacionam com o fenômeno estudado revelam uma polarização fetichizada, um juízo de

valor em relação ao homem. Em nosso caso de estudo, os livretos do pastor Édino

Melo, a palavra de Deus tem sempre poder de transformar a realidade ontológica; por

meio dela, todas as coisas vieram a existir. A palavra enquanto mídia humana também

tem poder, mas carrega uma valoração ética, porque pode ser usada tanto para o bem

quanto para o mal. Os meios de comunicação de massa são extensões do coração do

homem, corrompido pelo pecado. Nessa perspectiva não há nenhum espaço da cultura

livre de uma natureza sobrenatural: são de Deus ou do diabo. Uma perspectiva ética que

não passa pelo desenvolvimento do desejo, mas que é simplificada em atribuições

místicas.

Até aqui respondemos as questões iniciais em relação ao projeto, perguntas que

tiveram como objetivo descrever as processualidades que delineiam a indústria cultural

evangélica. Nossa pergunta de pesquisa avança para um nível mais profundo de

compreensão do objeto. Isso passa pela gratuidade da religião, que está em relação com

a gratuidade da cultura e em tensão com a dessublimação do desejo na era industrial.

De que forma o esvaziamento kenótico e as dialéticas de sublimação e dessublimação se articulam em ações, formações estéticas e discursividades entre os atores da indústria cultural evangélica?

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Primeiramente, começaremos a responder essa questão a partir do campo

religioso, pela sua proposta radical de gratuidade. Não é muito razoável a este projeto

de pesquisa julgar a intenção que move as ações de esvaziamento por parte dos atores.

Esse permanece o principal empecilho para o conhecimento da graça nos processos

comunicacionais. Todavia, verificamos que o esvaziamento kenótico é a narrativa

primeira da cultura gospel, e que permanece central enquanto discursividade, sem ser

afetada pelas formações estéticas em sua realização. Apostamos que esse repertório

sagrado move ações de graça no espaço da religião evangélica, ainda que não seja

levado até suas últimas conseqüências.

Em seguida trabalhamos a dinâmica da sublimação, que é o movimento

ascendente de Eros. São tentativas que estão sempre presentes no âmbito da cultura, e

que são requisitadas de forma análoga pelo campo religioso. Manifestam-se em

discursividades, que protocolam determinados comportamentos de santificação: amor

ao próximo, prudência nas finanças, respeito às autoridades, abstinência sexual. Valores

específicos das instituições religiosas, que os realizam em variados graus de sucesso. As

formações estéticas atualizam usos e interações com dispositivos da cultura,

estabelecendo uma estratégia de contato que facilita as transmissões de seus conteúdos.

Em terceiro e último lugar, verificamos os movimentos de dessublimação,

imediatamente perceptíveis em formações estéticas projetadas de acordo com o fetiche

de mercado. Operações de indústria cultural, planificadas para obtenção de lucro sobre

aquilo que já foi gratuito na cultura e na religião. Os movimentos de dessublimação

também estão presentes enquanto discursividade em usos inadequados das Escrituras

Sagradas, redirecionadas a outros propósitos por parte dos comunicadores. Finalmente,

constituem toda a tentativa de entrada segura da religião na esfera dos objetos, dos

prazeres da carne e das materialidades.

Resumindo, em relação ao nosso objeto, cremos que as ações kenóticas são

possíveis, mas que a verificação antropológica de sua ocorrência demandaria uma

incursão na esfera religiosa propriamente dita. Esse tipo de esvaziamento transcende as

formações estéticas, que são desnecessárias aos seus processos. As tentativas de

sublimação, que geram a cultura humana, são retomadas pela cultura gospel em

diversos usos e interações. O sublime está sempre presente enquanto narrativa, mas

inexpressivo nas formações estéticas, estandardizadas pelas operações industriais.

Entretanto, restam em alguns bens simbólicos originais do campo religioso, na sua

prática ritual, e, principalmente, nos hinos que cotejam o sacro. Os movimentos de

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dessublimação são imediatamente perceptíveis nas ações e nas formações estéticas, mas

também ocorrem em deslocamentos de significado produzidos pela religião em suas

discursividades.

Como proposta de finalização, deixamos a questão sobre as dinâmicas de

interpenetração e de resistência que os campos sofrem quando entram em contato por

causa da midiatização da sociedade. No caso da religião, verificaram-se movimentos de

expansão e de retração em relação às suas atividades. Um esforço autorregulador, que

pode ser comparado com outros campos que estão em transformação pela apropriação

das lógicas dos meios em suas práticas.

Propomos que a incorporação de operações industriais na criação de bens

simbólicos para consumo religioso é engendrada no paradigma funcionalista; uma visão

conteudista, que se apropria dos dispositivos da cultura para propagação de suas

mensagens. Em contraposição, a produção demonizante manifesta um esforço de

remarcação das fronteiras que foram alargadas pelos usos seculares. A religião

protestante é seminalmente iconoclasta, e desta forma permanece apocalíptica,

relacionando suas conceitualizações sobre a mídia à ação de Satanás e ao fim do mundo.

Questionamos se esse tipo de movimento delineia uma tendência, se está presente em

outras religiões, como a católica e a muçulmana. Um exercício dessa natureza revelaria

processualidades caras ao entendimento da midiatização da religião no mundo.

Os dispositivos são produzidos em usos, apropriações e interações que, quando

estabilizadas, se autonomizam e retroagem sobre os contextos, organizando agendas e

processos sociais. A midiatização da sociedade ainda não é um processo estabilizado,

entretanto mostra indícios de superação da indústria cultural. A consideração que a

pesquisa propõe sobre essa temática é que, pela midiatização, poderão surgir indústrias

culturais endógenas, que se estabelecem em contato com seus grupos de interação.

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