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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM PRISCILA SALVAIA NOS CICLOS DA AMBIÇÃO: UMA RELEITURA DOS ROMANCES SONHOS D´OURO (1872), DE JOSÉ DE ALENCAR, E A MÃO E A LUVA (1874), DE MACHADO DE ASSIS, ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA IMPRENSA OITOCENTISTA. CAMPINAS, 2019

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE …5 De acordo com Lúcia Miguel Pereira, para trilhar o caminho do sucesso nas Letras, Machado de Assis teve de deixar para trás os

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

PRISCILA SALVAIA

NOS CICLOS DA AMBIÇÃO: UMA RELEITURA DOS

ROMANCES SONHOS D´OURO (1872), DE JOSÉ DE ALENCAR, E

A MÃO E A LUVA (1874), DE MACHADO DE ASSIS, ATRAVÉS

DAS PÁGINAS DA IMPRENSA OITOCENTISTA.

CAMPINAS,

2019

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PRISCILA SALVAIA

NOS CICLOS DA AMBIÇÃO: UMA RELEITURA DOS

ROMANCES SONHOS D´OURO (1872), DE JOSÉ DE ALENCAR, E

A MÃO E A LUVA (1874), DE MACHADO DE ASSIS, ATRAVÉS

DAS PÁGINAS DA IMPRENSA OITOCENTISTA.

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da

Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de

Campinas (UNICAMP) para obtenção do título de

Doutora em Teoria e História Literária, na área de

História e Historiografia Literária.

Orientador: Prof. Dr. Jefferson Cano

Este exemplar corresponde à versão final

da Tese defendida pela aluna Priscila Salvaia

e orientada pelo Prof. Dr. Jefferson Cano.

CAMPINAS,

2019

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Agradecimentos

Inicialmente agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Paulo (FAPESP) pela concessão da Bolsa de Doutorado (Processo nº 2015/15400-0),

que proporcionou as condições dignas para o desenvolvimento de toda a Tese.

Serei sempre grata ao meu orientador, o Professor Dr. Jefferson Cano, que, há

cerca de uma década atrás, aceitou o enorme desafio de me orientar pelos caminhos da

pesquisa e do ensino, fazendo-me crer que História & Literatura é par que se conjuga.

Agradeço pelos inúmeros ensinamentos, pela disposição ao diálogo, pelas críticas

construtivas e pelo exemplo de ética e dedicação à universidade pública. Agradeço

ainda pelos gestos gentis, pelas palavras de estímulo, e pelo acolhimento e compreensão

diante das viravoltas da vida.

Aos Professores Dr. Eduardo Vieira Martins e Dr. Mário Luiz Frungillo, que

participaram da banca do Exame de Qualificação desta Tese, e proporcionam um debate

primordial para o processo de finalização do nosso trabalho. Posteriormente, na banca

de Defesa da Tese, além do retorno do Dr. Mário L. Frungillo, também tivemos o

privilégio de contar com a arguição minuciosa dos Professores Dr. Hélio de Seixas

Guimarães, Dr. Rodrigo de Camargo Godoi e do Dr. Wilton José Marques.

Às colegas de Seminário de Orientação, que se prestaram às leituras iniciais do

projeto de pesquisa: a doce Melissa R. Z. Franchi, à perspicaz Janaína Tatim e a

Clarissa Rosa (a amiga da Jane!). Muito obrigada pelos encontros, meninas!

Às minhas alencarianas prediletas: Rafaela Mano Sanches e Valéria Cristina

Bezerra. Saibam que o auxílio e a amizade de vocês foram importantíssimos para a

construção das páginas que se seguirão.

Às amigas de tantos anos, e que continuam presentes através do mundo

imagético da internet, ou por meio de abraços prolongados quando conseguimos nos

reencontrar: Ana Laura Evangelista, Cássia Beijo, Letícia Freitas Lemes, Liliana da

Silva Viana, Marina Fontolan, Míriam Eliane e Tarsila Tonsig Teijeiro. Obrigada pelos

ouvidos e corações sempre abertos!

Aos meus, seguem as últimas palavras:

À minha mãe, Wilma, que mesmo sem compreender muito bem a natureza do

meu trabalho, sempre torceu afetuosamente para que tudo transcorresse e terminasse

bem.

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Aos meus familiares, Aparecida de Mattos, Célia C. Salvaia, Lúcia Delazaro,

Caroline Blumer e Leandro Delazaro, por tantos anos de apoio e pelo afeto sempre

dedicado.

Ao Francisco, amor e parceiro de vida! Por um mundo de ideias trocadas, pela

atenção carinhosa a um universo que, a princípio, eu pensava ser somente meu, mas que

você demonstrou que poderia ser nosso. Por me proporcionar o melhor dos lares, feito

de cães tresloucados e bolos de laranja ao final da tarde, e que transborda a alegria

serena da qual se faz a nossa relação. E, sobretudo, que sejamos imensamente gratos por

tudo àquilo que está por vir...

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RESUMO

Separados por um breve intervalo de tempo, os romances Sonhos d´ouro (1872), de José

de Alencar, e A mão e a luva (1874), de Machado de Assis, convergem ao tratarem da

temática da ambição social em meio a um cenário de fim de século tonalizado pelo

ideário moderno/liberal. Nesta tese sugerimos uma (re)leitura dessas obras,

relacionando-as em suas similaridades e disparidades, e tendo como preocupação

constante inseri-las nos debates intelectuais identificados na imprensa oitocentista.

Nesse percurso, pretendemos investigar os possíveis diálogos, empréstimos e

reciprocidades que poderiam ter influenciado a experiência dos autores e de seus

leitores e leitoras de então. E, de maneira específica, abordaremos a concepção e a

recepção dos perfis femininos representados por Guida e Guiomar, cujas sinas são

marcadas, respectivamente, pela consciência de figuração num lugar social proeminente

e pela pecha da origem pobre acrescida por um desejo de ascensão social urgente.

Palavras-chave: Machado de Assis; José de Alencar; imprensa; folhetim; romance;

romantismo.

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ABSTRACT

Separated only by a brief period of time, the novels Sonhos d’ouro [Dreams of gold]

(1872), by José de Alencar, and A mão e a luva [The hand and the glove] (1874), by

Machado de Assis, have in common the social ambition theme, in a scenery of the end

of a century that had modern and liberal ideas. In this work, we suggest a (re)reading of

these novels, relating them in their similarities and differences, having as a constant

concern inserting them into the intellectual debates identified in the 19th

Century press.

Therefore, we aim to investigate possible dialogues, borrowing, and reciprocities that

could have influenced the authors‘ experiences, and their readers from that time.

Specifically, we aim to approach the conception and reception of the female profiles

represented by Guida and Guiomar, whose stories are marked, respectively, by the

appearance in a prominent social place, and by the moral imperfection of a poor origin,

added by the desire of an urgent social climbing.

Keywords: Machado de Assis; José de Alencar; press; roman-feuilleton; romance;

romanticism.

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SUMÁRIO

Introdução..................................................................................................................11

PRIMEIRA PARTE - ADMOESTAÇÕES PATERNAIS: OS DEBATES

LITERÁRIOS EM TORNO DE SONHOS D´OURO (1872), DE SÊNIO.

I. DECREPITUDE E MODERNIDADE EM SÊNIO......................................16

I.1 Cartas a Cincinato....................................................................................16

I.2 Benção Paterna.........................................................................................21

II. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ROMANCE SONHOS D´OURO

(1872), DE SÊNIO........................................................................................25

II.1 Sênio sob a máscara de um narrador romanesco....................................28

II.2 A questão financeira...............................................................................29

II.3 A questão estética...................................................................................40

III. A RECEPÇÃO DE SONHOS D´OURO NAS PÁGINAS DO DIÁRIO DO

RIO DE JANEIRO: ORGULHO E PETULÂNCIA DE MOÇA

RICA..............................................................................................................51

III.1 Expectativas em torno de uma literatura romântica e

folhetinesca....................................................................................................51

III.2 Alceste, colunista do Diário do Rio de Janeiro.....................................55

III.3 A rejeição cativada por uma Guida ―antirromântica‖............................60

III.4 Dissonâncias femininas em meio ao cotidiano do jornal......................74

SEGUNDA PARTE - O FOLHETIM A MÃO E A LUVA (1874), DE

MACHADO DE ASSIS, NAS MALHAS DA IMPRENSA MODERNA E

LIBERAL.

IV. SOBRE O PERIÓDICO O NOVO MUNDO (NOVA IORQUE, 1870 -

1875)..............................................................................................................90

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IV.1 O Novo Mundo e a proposta de uma zona de influência entre mundos

novos..............................................................................................................90

IV.2 Perfil editorial........................................................................................91

IV.3 Da representação do público leitor......................................................105

IV.4 A nova face do liberalismo..................................................................118

IV.5 Por uma nova zona de influência cultural entre Américas..................132

V. SOBRE A MÃO E A LUVA (1874), DE MACHADO DE

ASSIS..........................................................................................................156

V.1 O ―Eu, narrador‖: Guiomar sob os olhos de um romancista imperioso e

em conjuração com os seus leitores.............................................................167

V.2 E quem está afeito a ler romances-folhetins?.......................................180

V.3 O folhetim A mão e a luva (1874) em meio às páginas do jornal

fluminense O Globo.....................................................................................183

V.4 O ―não lugar‖ da mulher no jornal O Globo.........................................185

V.5 Sobre casamenteiras dotadas, comerciantes diligentes, trabalhadoras

proletárias e passarinhas cantantes: o tema da inserção das mulheres ao

universo econômico oitocentista.................................................................191

Considerações Finais...................................................................................214

REFERÊNCIAS..........................................................................................216

ANEXOS.....................................................................................................228

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Introdução:

Em 1874, nas páginas do jornal fluminense O Globo, vinha a lume o folhetim A

mão e a luva, de Machado de Assis.1 Pouco festejado entre a crítica contemporânea, o

romance cativou poucas notas críticas.2 Aliás, uma tônica aparentemente despretensiosa

seria utilizada pelo próprio Machado para referir-se à sua criação.3 Entre a fortuna

crítica, a obra seguiria sendo considerada parte de uma fase inicial da carreira de

Machado, dita imatura e romântica.

Afinada a tal pressuposto e, caminhando por entre as incertezas do biografismo,

Lúcia Miguel Pereira4 postulava que, ao publicar o romance, Machado inaugurava o

início de uma série de produções baseadas no tema da ambição. De acordo com a

autora, o chamado ―ciclo da ambição‖ seria composto pelos seguintes folhetins: A mão e

a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Nestas obras, Machado se utilizaria

de suas personagens femininas para legitimar a própria avidez por ascensão social.5

Dessa maneira, o escritor buscava se justificar, ou, ao menos, tentava sentir-se em paz

consigo e com aqueles que ele tinha de deixar para trás.

1 Os exemplares do jornal O Globo, e dos demais periódicos que serão citados ao longo da tese foram

consultados através do site da Hemeroteca Digital Brasileira - Fundação Biblioteca Nacional (BN):

http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. 2 De acordo com Ubiratan Machado, foram contabilizadas as seguintes críticas: duas notas nos

respectivos jornais: Vida Fluminense (Rio de Janeiro, 12/12/1874 - sem assinatura) e France et Brésil

(Rio de Janeiro, 13/12/1874 - sem assinatura). E duas brevíssimas resenhas nos respectivos jornais: Vida

Fluminense (Rio de Janeiro, 13/12/1874 - sem assinatura) e O Novo Mundo (Nova Iorque, fevereiro de

1875 - assinado por ―Araucarius‖, pseudônimo do cônego Fernandes Pinheiro). Cf.: MACHADO,

Ubiratan (org.). Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003, p. 97 e 98. 3 ―[...] O que aí vai são umas poucas páginas que o leitor esgotará de um trago, se elas lhe aguçarem a

curiosidade, ou se lhe sobrar alguma hora que absolutamente não possa empregar em outra coisa, - mais

bela ou mais útil.‖ M. de A. ―Advertência de 1874‖. In: ASSIS, Machado de. A Mão e a Luva. Texto-

fonte: Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p.1. 4 PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis (Estudo crítico e Biográfico). São Paulo: Gráfica Editora

Brasileira,1949. 5 De acordo com Lúcia Miguel Pereira, para trilhar o caminho do sucesso nas Letras, Machado de Assis

teve de deixar para trás os vestígios de sua origem pobre, e isso incluía o abandono de sua madrasta Maria

Inês, que teria sido a sua preceptora no ensinamento das primeiras letras. (Cf.: PEREIRA, Lúcia Miguel.

―Confissões‖. Ibidem, p. 155-163). Refutando muitas das afirmações de Pereira, posteriormente, e a partir

de pesquisas documentais, Jean-Michel Massa apontaria para novas perspectivas no estudo biográfico de

Machado de Assis. Para o estudioso, a família Assis, pela inserção social e cultural desfrutadas, e pelas

atividades proletárias desenvolvidas, seria representante de uma ―pequena burguesia‖ no contexto do

Segundo Reinado. Quanto à madrasta, segundo Massa, Maria Inês não teria sido determinante para a

formação intelectual de Machado: ―[...] Machado de Assis devia muito pouco à sua madrasta. Tinha dez

anos ao morrer sua mãe (nesta idade já se sabe escrever), quinze quando seu pai se casou pela segunda

vez, vinte e cinco quando ele morreu; Machado de Assis tinha, talvez, deveres a cumprir em relação a

Maria Inês - ninguém pode saber se ele cumpriu efetivamente ou não - mas ela não foi ―o anjo tutelar de

Machado de Assis. [...]‖. In: MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. (Tradução: Marco

Aurélio de Moura Matos). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971, p.74.

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Apropriando-nos do título e do tema sugerido por Pereira, em nossa tese

sugerimos o alargamento de tal questão para além da trajetória pessoal de Machado de

Assis. Sendo assim, propomos a investigação dos possíveis diálogos, debates,

empréstimos e reciprocidades que o escritor poderia ter estabelecido em relação a outros

autores e produções próximas ou coetâneas à publicação de seu folhetim, e que também

abordaram a temática da ambição por meio de um ideário liberal recorrente à época. De

forma específica, sugerimos uma aproximação do citado folhetim machadiano ao

romance Sonhos d´ouro, de José de Alencar, publicado pouco antes, no ano de 1872.

Contudo, e elaborando melhor o nosso argumento, gostaríamos de inserir ambos os

autores e suas obras numa ampla rede de interlocução social, que compreenderia o

horizonte da crítica literária, a imprensa e a historicidade oitocentista.

Admirador confesso de José de Alencar, Machado de Assis sempre acompanhou

de perto a trajetória do literato cearense no campo das Letras. As peças teatrais

claramente aguçaram o jovem autor em suas primeiras produções6; os romances

indianistas eram apresentados de maneira extremamente elogiosa.7 E, como

leitor/interlocutor atento daquele que tanto o inspirava, restava ao bruxo admitir que ―o

homem‖ e ―o artista‖ estavam completamente imbricados à sua formação intelectual:

[...] Quando entrei na adolescência, fulgiam os primeiros raios daquele

grande engenho; vi-os depois em tanta cópia e com tal esplendor que

eram já um sol, quando entrei na mocidade. Gonçalves Dias e os

homens do seu tempo estavam feitos; Álvares de Azevedo, cujo livro

era a boa-nova dos poetas, falecera antes de revelado ao mundo.

Todos eles influíam profundamente no ânimo juvenil que apenas

balbuciava alguma coisa; mas a ação crescente de Alencar dominava

as outras. A sensação que recebi no primeiro encontro pessoal com ele

foi extraordinária; creio ainda agora que não lhe disse nada,

contentando-me de fitá-lo com os olhos assombrados do menino

Heine ao ver passar Napoleão. A fascinação não diminuiu com o trato

do homem e do artista.8

Isto posto, não são novos os estudos que confluem os legados dos dois autores

citados. Na perspectiva de Antonio Candido9, Machado de Assis seria apresentado de

6 Cf.: ASSIS, Machado de. ―A crítica teatral. José de Alencar: Mãe.‖. Texto-Fonte: Obra Completa de

Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado originalmente na ―Revista

Dramática‖, seção do Diário do Rio de Janeiro, 29/03/1860. 7 Cf.: ASSIS, Machado de. ―José de Alencar: O Guarani.‖. In: Texto-Fonte: Obra Completa de Machado

de Assis, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. Publicado como prefácio para uma edição d’O

Guarani, da qual saíram apenas os primeiros fascículos, em 1887. 8 Idem.

9 Ao abordar a narrativa A pata da gazela (1870), de José de Alencar, Candido escreveria: ―[...] Cansado

de amar normalmente, Horácio se apaixona por um pé, a ponto de desprendê-lo de todo o restante do

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maneira superior ao colega mais velho, como alguém capaz de internalizar e aperfeiçoar

suas obras. Seguindo os passos de Candido, Roberto Schwarz10

também nos

apresentaria um ―Machado de segunda fase‖, mais ferino, e hábil em desmistificar a

obra de seu predecessor11

. Nas seguintes páginas, buscaremos nos afastar de tais

pressupostos hierárquicos, porém, seguiremos enfatizando que os escritos de Alencar

habitaram o imaginário e, de alguma maneira, o métier de Machado de Assis. Por isso,

defendemos a hipótese de uma leitura de tais experiências intelectuais em meio à

contemporaneidade que os envolvia.

Mário L. Frungillo12

já propôs uma interessante aproximação entre A Pata da

Gazela (1870), de Alencar, e A mão e a luva, de Machado; tratando especificamente da

identificação de um ―projeto de romance social‖13

associado aos romances urbanos

alencarianos, intento este que encontraria acolhida e resposta na obra do bruxo. Assim,

se no primeiro enredo nos deparamos com Amélia, uma protagonista romântica e

constrangida mediante o benefício de um espólio familiar, e em par com um homem

disposto a percorrer um longo caminho que o regeneraria moralmente; no segundo

folhetim, nos deparamos com um novo tipo de herói, um perfil masculino dado de uma

só vez, sem peregrinações em vista e com gana o suficiente para traçar o próprio

destino, ou seja, o par adequado para Guiomar, esta que receberia herança e proteção

sem esboçar constrangimentos.

corpo e mudar de amor quando supõe que errara quanto à dona. Em sua casa (como exemplo citado em

livros de sexologia), tem o sapatinho numa almofada vermelha, sob redoma de vidro. E ao acabar a

leitura, embora sintamos a relativa argúcia do autor, imaginamos, pesarosos, que conto não teria aquilo

rendido nas mãos de Machado de Assis.‖ In: CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira:

momentos decisivos. (6ª edição), 2º volume (1836-1880). Belo Horizonte – Rio de Janeiro: Editora Itatiaia

Ltda, 2000, p.208. 10

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do

romance brasileiro. São Paulo: Duas cidades, (5ª edição), 2000. 11

Tratando de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Roberto Schwarz afirmaria: ―[...] O modelo

literário, ideológica e socialmente prestigioso, entra como ingrediente negativo na composição de um

protótipo da classe dominante brasileira. A viravolta é considerável, e depende da capacidade realista de

ver nas representações um momento funcional do processo histórico. Nada mais característico da

independência literária de Machado que este uso desenvolto e silencioso das limitações intelectuais de seu

ultra prezado José de Alencar. Desejo de superar ou desmistificar um predecessor ilustre? De aumentar a

densidade alusiva do próprio trabalho? De divertir uma rodinha de iniciados? A busca de energias

extraliterárias emprestadas do mundo da História é constante e vale-se de recursos os mais variados, da

referência franca à observação sibilina.‖ In: SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do

capitalismo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000, p.52. 12

FRUNGILLO, Mário L. ―O cânone das mocinhas: sobre algumas obras menores de autores maiores.‖

In: CORRÊA, Ana Laura dos Reis; PILATI, Alexandre; COSTA, Deane M. Fonseca de Castro e;

BASTOS, Hermenegildo (orgs.). O Brasil ainda se pensa: 50 anos de Formação da Literatura

Brasileira. Vinhedo, Editora Horizonte, 2012, p. 217-230. 13

―Seu projeto é de um romance social, seus personagens, sem prejuízo de sua individualidade,

interessam ao autor não como casos isolados, mas como representantes de grupos e tendências da

sociedade de seu tempo.‖ In: Idem, p. 220.

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14

Em nossa tese, trataremos de questões semelhantes às levantadas por Frungillo,

interessados, sobretudo, na ideia de um Machado de Assis compreendido como ―leitor

ruminante‖14

de José de Alencar. Todavia, de nosso ponto de vista, Machado & Alencar

são, à priori, ―homens de imprensa‖15

, portanto, postulamos por uma investigação que

tenha como preocupação constante a inserção dos autores e de suas obras no arcabouço

documental relativo ao aparato jornalístico, meio onde se deu a literatura ao longo de

todo o século XIX. É bem verdade também que, a nossa dívida para com o legado de

Antonio Candido, Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Bosi e Roberto Schwarz é

incomensurável, e faz-se necessário registrarmos que, novas hipóteses de pesquisa

somente se tornam factíveis quando podemos desfrutar de bases teóricas sólidas,

instigantes e capazes de nos cativar para novas perspectivas.

Por fim, ou para começar, elencamos os eixos temáticos que irão nos orientar: a

sociedade brasileira dos últimos decênios do século XIX; o ideário liberal e as

oposições identificadas entre sujeitos de estratos sociais díspares; o tema da

(i)mobilidade entre classes e o desejo por ascensão social. Acrescentamos,

especialmente, a questão da condição feminina em tal contexto, ou melhor, ―as

condições femininas‖ experienciadas por mulheres reais e verossímeis oriundas dos

mundos da riqueza e da pobreza. Vale reafirmar ainda que, a intenção de se construir

pontes e diálogos entre as obras, permanecerá como uma ―questão sentinela‖ na

concepção de toda a tese.

14

Na célebre frase de um conhecido narrador machadiano: ―O leitor atento, verdadeiramente ruminante,

tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a

verdade, que estava, ou parecia estar escondida.‖ In: ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Texto-fonte: Obra

Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. [Publicado originalmente pela

Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1904]. 15

A expressão foi deliberadamente tomada de empréstimo da tese do Prof. Dr. Jefferson Cano: CANO,

Jefferson. O fardo dos homens de letras: o orbe literário e a construção do Império Brasileiro. Tese

(Doutorado em História). Campinas: IFCH/UNICAMP, 2001.

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE …5 De acordo com Lúcia Miguel Pereira, para trilhar o caminho do sucesso nas Letras, Machado de Assis teve de deixar para trás os

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PRIMEIRA PARTE –

ADMOESTAÇÕES PATERNAIS: OS DEBATES

LITERÁRIOS EM TORNO DE SONHOS D´OURO (1872), DE SÊNIO.

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16

I. DECREPITUDE E MODERNIDADE EM SÊNIO.

[...] Que significa este nome – Sênio – no frontispício de livros que

vozes benévolas da imprensa já atribuem a outrem?

Cada um fará a suposição que entender.

Era preciso um apelido ao escritor destas páginas, que se tornou um

anacronismo literário. [...] Por ventura escolhendo aquela palavra, quis

o espírito indicar que para ele já começou a velhice literária, e que

estes livros não são mais flores da primavera, nem frutos de outono,

porém sim as desfolhas do inverno?

Talvez.16

Em setembro de 1870, no prefácio do romance O Gaúcho, José de Alencar

lançava algumas explicações a respeito da máscara autoral que assumiria naquela e em

outras obras que estavam por vir. Como o termo indicava, Sênio era um sujeito senil,

ciente de sua decrepitude e, supostamente, entregue ao descrédito daqueles que se

acomodam num pretérito aprazível, e cuidam de se manter alheios às revoluções que

arrastam aos novos tempos. Em plena década de 1870, marcada pelos signos do

cientificismo e da modernidade, Sênio bebia na fonte do idealismo romântico. Era

anacrônico. Teria perdido o trem da tradicional História Literária que nos contam os

manuais de estudo, e parecia teimar em escolhas estéticas que caducavam. Contudo, ao

final, restava o vestígio da incerteza em relação à sinceridade confessional de Sênio, e -

talvez - tudo se resumisse a um misto de modéstia afetada e de auto ironia.

Vale explicitar que tal voz narrativa, ou a voz de Sênio, seguirá sendo

compreendida por nós através de suas inter-relações com o autor José de Alencar.

Noutras palavras, temos ciência de que Sênio não era Alencar, porém, optamos por

interpretá-lo como verbo de seu criador. Dessa forma, e buscando respaldo teórico na

obra de Umberto Eco17

, advertimos que Sênio figuraria como ―autor-modelo‖ do ―autor

empírico‖ José de Alencar, sendo o primeiro concebido como sustentáculo de uma

estratégia de interpretação crítico-literária ideada pelo segundo.

I.1 Cartas a Cincinato. 16

SÊNIO (ALENCAR, José de). O gaúcho. (3 ª edição). São Paulo: Ática, 1998, p.1. 17

De acordo com Umberto Eco: ―[...] o autor-modelo é uma voz que nos fala afetuosamente (ou

imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como uma

estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir

quando decidimos agir como o leitor-modelo.‖ In: ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção.

(tradução: Hildegard Feist). São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.21.

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE …5 De acordo com Lúcia Miguel Pereira, para trilhar o caminho do sucesso nas Letras, Machado de Assis teve de deixar para trás os

17

Em 1871, O Gaúcho e as pistas em torno do pseudônimo Sênio sofreriam um

duro ataque protagonizado por uma voz ainda distante, que ressoava das terras do Norte,

mas que não se fazia de rogada ao desestabilizar o patriarcado literário de José de

Alencar.18

Nos referimos à famosa contenda sugerida por Franklin Távora nas chamadas

Cartas a Cincinato19

, estas que, conforme será demonstrado, culminariam numa

reflexão enriquecedora acerca da produção do romance no Brasil dos últimos decênios

do século XIX.

Reconstituindo os detalhes da polêmica, esbarramos inicialmente num cenário

de acirradas disputas políticas, pois o ano de 1871 seria marcado pelas polêmicas em

torno da proposição do Projeto da Lei do Ventre Livre. Nesse contexto, o então

deputado pela província do Ceará, José de Alencar, assim como tantos outros que

figuravam na Câmara, tomaria uma posição contrária à libertação dos filhos dos cativos.

Na época, Feliciano de Castilho, que era favorável ao projeto, fundava no Rio de

Janeiro o jornal Questões do dia, e nele publicaria uma série de cartas, sob o

pseudônimo Cincinato, onde atacava diretamente a postura conservadora de Alencar

frente ao tema da escravidão.

De Recife, o jovem Franklin Távora acompanhava atentamente o libelo contra o

famoso deputado, provavelmente enxergando ali uma ótima oportunidade de fazer-se

conhecido na cena cultural fluminense. Assim, em setembro de 1871, o periódico de

Feliciano de Castilho iniciaria a publicação de uma série de cartas assinadas por

Semprônio, pseudônimo assumido por Távora, e dirigidas a Cincinato. No entanto, as

cartas não iriam versar sobre a questão do ―elemento servil‖, mas trariam críticas

contundentes a dois romances alencarianos: o recente O Gaúcho, e Iracema (1865).

Dessa maneira, observaríamos uma guinada no debate em direção à literatura. E vale

lembrar que, na época, Alencar vivia momentos difíceis em sua carreira política,

motivados especialmente pela preterição de Dom Pedro II de seu nome para o Senado.20

Os tempos, portanto, eram de desilusão e, provavelmente, de indisposição para os

18

De acordo com Wilson Martins, as Cartas a Cincinato ―são um documento expressivo do choque de

gerações em 1871 - 1872, na medida mesmo em que contestavam o patriarcado literário de Alencar.‖ In:

MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. Volume III. São Paulo: Cultrix, Edusp, 1977, p.

370. 19

Consultamos os textos na seguinte edição: TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato: estudos críticos

por Semprônio. MARTINS, Eduardo Vieira (organizador). Campinas: Editora da UNICAMP, 2011. 20

Cf.: MENEZES, Raimundo de. José de Alencar: literato e político. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e

Científicos, 1977.

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18

certames literários que costumavam mobilizá-lo. Enfim, é possível que isso explique a

omissão inicial do literato diante daqueles que vociferavam contra ele.

Pelo recorte proposto, nos ocuparemos das cartas em torno do romance O

Gaúcho, salientando alguns temas essenciais ao nosso trabalho, como, por exemplo, a

concepção do pseudônimo Sênio; o debate em torno da estética do romance romântico;

a suposta função formadora da literatura; e os esforços em delinear-se uma literatura

tida por ―nacional‖ em meio ao cosmopolitismo dos novos tempos.

Na leitura dos textos de Távora, notamos a adesão à ideia - ou armadilha -

lançada pelo próprio Alencar ao associar-se à imagem de um sujeito senil, alienado de

sua contemporaneidade. Em específico, na segunda carta da série, Semprônio já nos

falava das práticas débeis que envolviam a composição discursiva de Sênio:

Sênio tem a mania de notas. Não há volume, dentre os últimos que

assinalam sua precoce decadência literária, que não seja

acompanhado de alguns desses enxertos, que na maioria só servem

para desabonar o autor.21

No trecho, o chiste não era dos menores: quiçá pela formação calcada nos velhos

livros de retórica, ou por mera preguiça, o que se afirmava era que os aspectos formais

do texto de Sênio denunciavam que estávamos diante de uma figura deslocada de seu

próprio tempo. E não importava se era o principal nome de nossa literatura que estava

por trás do pseudônimo, já que, a despeito de qualquer reverência, Távora parecia

disposto a profaná-lo:

Um folhetinista conceituado, referindo-se à Pata da Gazela, chegou a

declarar que, por ser ela escrita por quem fora, merecia as honras da

alta hierarquia literária do autor, e não podia passar sem as salvas do

estilo. Não penso outro tanto. A obra e só a obra – eis tudo, venha de

onde vier, seja de quem for. Pego no volume, sem indagar quem o

escreveu; e se for anônimo, tanto melhor.22

Porém, e para além da semântica, de acordo com Franklin Távora, Sênio,

criatura de José de Alencar, também evocava o obsoleto em suas predileções estéticas, e

era esse o ponto que mais tilintava nas Cartas a Cincinato. Envolvido pelo ideário

propagado pela Escola de Recife, as críticas de Távora tinham por base a defesa de uma

21

(Grifo nosso). TÁVORA, Franklin. Carta II (Questões do dia, tomo I, nº 6, 17/9/1871, p.5-12).

MARTINS, Eduardo Vieira (org.). Op. Cit., 2011, p. 56. 22

Idem, p.49.

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19

nova concepção de nacionalidade, referenciada na construção ideológica de uma

genuína região Norte que, ao contrário do Sul, não estaria tão afetada pelo

cosmopolitismo.23

Retomando o fio do debate, o crítico e seus pares propunham a

reformulação da compreensão de nacionalidade apregoada pela literatura romântica do

período pós-independência. Por isso, as temáticas da idealização do indígena24

, ou o

tratamento de inferioridade dispensado ao negro, sofreriam duras críticas dos

integrantes do grupo, e seriam ressignificados por meio do argumento da miscigenação.

Enfim, o que se defendia era que o conhecimento mais íntimo, e in loco, do povo

brasileiro era primordial ao processo mimético.

Nas Cartas a Cincinato, por diversos momentos, ressurgiria o argumento de que,

como Sênio não havia experienciado o ambiente de sua produção literária, logo, ele não

estaria apto para retratar de maneira fidedigna os pampas e sua gente. Para o crítico,

apesar das pretensões em relação a um projeto de literatura que abrangesse o nacional, o

Brasil conhecido por José de Alencar se resumia àquele tangível aos limites de seu

gabinete:

Além do mais, Sênio tem a pretensão de conhecer a natureza, os

costumes dos povos (todas essas variadas particularidades, que só bem

apanhamos em contato com elas) sem dar um só passo fora de seu

23

De acordo com Cristina Betioli Ribeiro: ―Neste contexto, o Norte – de onde provém o cientificismo das

―novas ideias‖ – assume o estatuto de região mais ―genuína‖ e menos afetada pelo cosmopolitismo que o

Sul. Vale frisar que, nesse período, a geografia regional do Brasil concebe apenas a divisão dos dois

extremos: o Norte corresponde à região compreendida entre as províncias (depois estados) do Amazonas

à Bahia. Reinventado como o lugar das tradições e, portanto, como definidor do caráter e da autenticidade

brasileira, o Norte ganha dimensão de nação na literatura e nos estudos etnográficos.‖ In: RIBEIRO,

Cristina Betioli. Um norte para o romance brasileiro: Franklin Távora entre os primeiros folcloristas.

Tese (Doutorado em Teoria e História Literária). Campinas: IEL/UNICAMP, 2008, p.15. 24

O primeiro romance de Franklin Távora, Os índios do Jaguaribe (1862), teria por temática a questão

indígena, entretanto, segundo Valéria da Silva: ―[...] Embora Távora siga em sua totalidade os passos de

Alencar, tratando dos nativos que foram encontrados quando da chegada dos colonizadores, além de

destacar o importante papel do indígena, o seu diferencial está no seguinte aspecto: primeiro tratar o

indígena como parte orgânica de uma História do país, e não sob a exclusiva ótica do indígena como um

povo que será filtrado pelo branco colonizador. Ou seja, a história do Brasil não começa, para Távora, a

partir da miscigenação do branco com o índio, como em Alencar. Ao contrário: a existência do índio está

em sua terra e a terra em sua existência: o país já é aí um conglomerado que será modificado e

enriquecido pela chegada do colonizador. Portanto, isto é formulado, através de uma pesquisa etnográfica

e histórica. Já se esboça neste romance a ótica histórico-regional que iria permear a maior parte das

composições do escritor. Por outro lado, todo o enredo da narrativa está permeado com o lamento de que

essa colonização não tenha trazido ainda os benefícios do seu vigor imprescindível para essas regiões

mais remotas do norte do país; daí a interpretação sobre o colonizador mais voltada para a ideia de que é

ele quem poderia trazer o desenvolvimento, não apenas cultural, mas também econômico.‖ SILVA,

Valéria da. ―Holograma de um ideal: o projeto estético de Franklin Távora.‖ Cadernos Neolatinos -

UFRJ, dezembro/2010, (ISSN 1678-1872), ano IX, nº 6, p. 1- 2. Disponível no seguinte endereço

eletrônico: http://www.letras.ufrj.br/neolatinas/media/publicacoes/cadernos/a9n6/valeria_silva.pdf

[Acesso em maio/2019].

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20

gabinete. Isto o faz cair em frequentes inexatidões, quer se proponha a

reproduzir, quer a divagar na tela.25

O trecho denota um relevante deslocamento no conceito de verossimilhança

associado à literatura romântica, uma vez que fica implícito que a idealização deveria

ceder lugar à experiência que, teoricamente, iria conferir maior fidelidade ao registro

literário. Na obra Formação da Literatura Brasileira26

, Antonio Candido postulava que

as Cartas a Cincinato seriam um marco representativo da fase final do Romantismo,

quando já se ia aspirando o incremento da observação e da superação do estilo poético

na ficção. Partindo da assertiva de Candido, Eduardo Vieira Martins27

iria esclarecer

ainda que, para Alencar, o verossímil seria compreendido retoricamente, como

coerência interna, adequação ao opinável e às regras dos diferentes gêneros, enquanto

Távora deixaria transparecer uma visão do verossímil como conformidade à realidade

externa ou à informação histórica. Ainda retomaremos tais considerações, mas, por ora,

é importante sublinhar que a noção de verossimilhança defendida por Távora também

flertava com um ideal formador. Ou seja, apesar da aparência revolucionária, as Cartas

a Cincinato ainda ecoavam uma função pedagógica ao gênero do romance:

Parecendo-me, porém, que o romance tem influência civilizadora; que

moraliza, educa, forma o sentimento pelas lições e pelas advertências;

que até certo ponto acompanha o teatro em suas vistas de conquista do

ideal social – prefiro o romance íntimo, histórico, de costumes, e até o

realista, ainda que este não pareça característico dos tempos que

correm.

Em uma palavra prefiro o romance verossímil, possível, quero ―o

homem junto das coisas‖ definição da arte por Bacon.28

A verossimilhança deveria adequar-se à moralidade. E, para tanto, recomendava-

se que o processo criativo do autor fosse parcimonioso, reflexivo. Não obstante, para o

provocador pernambucano, José de Alencar produzia romances às pencas, em meio às

inúmeras atividades políticas que o ocupavam. Por consequência, os cuidados para com

os textos literários seriam negligenciados:

25

TÁVORA, Franklin. Carta II. Op. Cit., p. 53. 26

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. (Volume II). Belo Horizonte: Itatiaia, 1981,

p.366. 27

MARTINS, Eduardo Vieira. ―Tempo de romance‖. A fonte subterrânea: José de Alencar e a retórica

oitocentista. Londrina: Eduel, 2005, p.161-199. 28

TÁVORA, Franklin. Carta VIII. (Questões do dia, tomo I, nº14, 15/10/1871, p.6-12). MARTINS,

Eduardo Vieira (organizador). Op. cit., 2011, p.114.

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É preciso dizer abertamente a Sênio que poucos podem ser Dumas ou

Voltaire. A fertilidade proveitosa só é partilhada pelos gênios. Non

omnia possumus omnes [Nem todos podem tudo]; e a Corinto não vai

quem quer.

Os graves encargos de conselheiro de Estado, de político, de

advogado, de parlamentar, de oposicionista, e de muitas coisas mais,

não permitem aos talentos literários produzir senão abortos, se querem

dar crianças em menos de nove meses.29

Longe de reiterar as afrontas desferidas, acrescentamos apenas a informação de

que, em 1870, José de Alencar havia assinado um vantajoso contrato com o editor

Baptiste-Louis Garnier, no qual vendia os direitos de suas obras produzidas a partir de

então.30

E como inerente ao ofício do autor de folhetins, Alencar sempre se demonstrou

atento às particularidades do mercado das Letras. O argumento de Távora,

especialmente nesse trecho, baseava-se nos preconceitos que diferenciam uma suposta

―cultura elevada‖, voltada para a ilustração, de uma ―cultura inferior‖, dita de fácil

assimilação e com vistas para o entretenimento. Logo, não tardaria para que o arguido

tomasse a palavra em sua própria defesa.

I.2 Benção Paterna.

Em julho de 1872, como preâmbulo ao romance Sonhos d´ouro, José de Alencar,

novamente sob o pseudônimo Sênio, brindava o seu público com um longo texto

intitulado ―Benção Paterna‖31

, no qual demonstrava que estivera a par das observações

proferidas por Franklin Távora. Aceitas as provocações, finalmente chegara o momento

de ir à forra.

Na introdução ao debate surgia a exclamação: ―Ainda o romance!‖32

, e Sênio

iniciava um longo diálogo com o livrinho dourado. Retomando as acusações de

Semprônio, Sênio demonstrava a sua indignação acerca das suposições de que haveria

uma indústria cultural consolidada no Brasil, que garantisse a circulação de obras e

algum conforto àqueles que se dedicavam ao métier literário. Nesse momento, José de

29

Idem, p.115. 30

ALENCAR, José de. ―Como e porque sou romancista.‖. In: José de Alencar, Obra completa. Rio de

janeiro, Editora José Aguilar, 1959. 31

SÊNIO (José de Alencar). ―Benção Paterna‖. Sonhos d´ouro. (4ª edição). Rio de Janeiro: José Olympio,

1957 [1872], p.29-38. 32

―Ainda o romance! Com alguma exclamação, nesse teor, há de ser naturalmente acolhido, pobre

livrinho, desde já te previno.‖ In: Idem, p.29.

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Alencar parecia escrever com as palavras de Távora em mente: ―Musa industrial no

Brasil! [...] Não consta que alguém já vivesse nessa terra abençoada do produto de obras

literárias.‖33

. E se o pequeno Sonhos d´ouro desejasse fugir à pecha de ―produto

industrial‖, o jeito era desagradar ao público, não ser lido, e deixar-se envolver por uma

crosta de pó, num canto qualquer de uma estante esquecida.

Em seus termos, o debate parecia emular algo do famoso texto crítico ―Da

literatura industrial (1839)‖34

, de Sainte-Beuve, que teria problematizado a massificação

da produção e do consumo literário no contexto da França da Monarquia de Julho. Mas,

ao contrário do caso francês, nosso literato advertia que para aqueles que ousavam viver

das Letras no Brasil, seriam reservadas pouca fama e muita precariedade. Aliás, o tema

da profissionalização do trabalho do escritor sempre foi uma preocupação muito

importante para Alencar que, como deputado, chegou a propor um projeto de lei que

tratava dos direitos autorais.35

Porém, ao que parece, não eram somente os escritores

que careciam de maior respaldo e aperfeiçoamento em suas atividades; em sua

―Benção‖, Sênio também demonstrava certa insatisfação com a atuação de nosso corpo

de críticos literários, que esbanjavam insipiência, e pareciam mobilizados pelo prazer de

33

Idem. 34

―É preciso se resignar aos hábitos novos, à invasão da democracia literária como ao advento de todas as

outras democracias. Pouco importa que isso pareça mais gritante em literatura. Escrever e fazer imprimir

serão cada vez menos um traço distintivo. Com nossos costumes eleitorais, industriais, todo mundo, pelo

menos uma vez na vida, terá tido sua página, seu discurso, seu prospecto, seu toast, será autor. Daí a fazer

um folhetim, não há mais que um passo. ―Por que não eu?‖ – cada um dirá a si mesmo. Estímulos

respeitáveis se intrometem aí. Porque tem uma família, porque casou por amor, até a mulher escreverá

sob um pseudônimo. O que há de mais respeitável, de mais digno de interesse que o trabalho assíduo

(ainda que um pouco apressado e negligente) de um escritor pobre, vivendo disso e sustentando os seus?

Essas situações são frequentes: haveria escrúpulo em depreciá-las.‖ In: SAINTE-BEUVE. ―Da Literatura

Industrial‖. (Tradução: Jefferson Cano). Remate de Males, v.29, nº 2, jul./dez. de 2009, p.188. [Texto

originalmente publicado na Revue des Deux Mondes, t. 19, 1 de setembro de 1839, p. 675-691]. 35

Em 1875, após uma longa contenda envolvendo a adaptação de O Guarani para o teatro, o deputado

cearense apresentaria um projeto de lei acerca da questão da propriedade literária. De acordo com

Rodrigo Camargo de Godoi, em tal projeto, ―[...] Alencar expunha as bases da legislação proposta, sendo

sua pedra angular a equiparação da propriedade literária e artística à propriedade em geral. O parlamentar

defendia que ambas usufruíssem das mesmas garantias, nomeadamente a transmissão hereditária, ‗sem

limitação de tempo e sem distinção de nacionalidade‘ (art. 1). O projeto considerava autores os tradutores

e copistas de obras de arte que atuassem nos parâmetros da lei (art. 10). Já em relação ao jornalismo,

estipulava que os artigos que não trouxessem a rubrica ‗reprodução reservada‘ poderiam ser livremente

transcritos em outros jornais e revistas, sendo proibida sua compilação em livro sem a autorização dos

autores (art. 6). [...] A defesa da propriedade literária e artística desdobrava-se na defesa inconteste do

trabalho intelectual. São, portanto, abundantes no ‗Fundamento do projeto‘ os trechos nos quais José de

Alencar revelava-se um fervoroso defensor dos ‗operários da inteligência‘.‖ (GODOI, Rodrigo Camargo

de. ―José de Alencar e os embates em torno da propriedade literária no Rio de Janeiro (1856 - 1875).‖

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 30, nº 62, set./dez. 2017, p. 583.). Ver, também: FERREIRA,

Aline Alves. ―Alencar e os direitos do autor.‖. In: José de Alencar e a edição de romances no Brasil do

século XIX. Dissertação (Mestrado em Filosofia). São Paulo: EACH-USP, 2014, p. 62-89.

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23

contrariar: ―Os críticos, deixa-me prevenir-te, são uma casta de gente, que tem a seu

cargo desdizer de tudo neste mundo. O dogma da seita é a contrariedade.‖.36

Atacando para defender-se, a persona de José de Alencar desqualificava parte da

crítica37

, ao mesmo tempo em que lançava um olhar benevolente, ou, talvez, solidário,

ao público que consumia essa chamada ―literatura industrial‖, que podemos entender

folhetinesca e inscrita nas páginas da imprensa, direta ou indiretamente. No caso de

Sonhos d´ouro, eram esperados dois pontos de inflexão: o peso e a cor. Sênio previa que

o livro seria considerado leve demais, de pequeno cabedal e até descuidado; ademais, e

ainda na ótica dessa crítica, a obra também seria caracterizada por um estrangeirismo

arrebicado.

No que concerne à leveza, o autor-personagem recorria aos leitores para se

resguardar. Filho de seu tempo, Sonhos d´ouro poderia ser considerado um romance

simples, de fácil assimilação, e concebido com a pretensão de agradar ao gosto de um

público leitor habituado às tramas publicadas aos pedaços nos jornais. Sabemos que o

romance em questão não saiu na imprensa, no entanto, a estrutura era a mesma de tantos

folhetins, e a experiência de leitura esperada possivelmente semelhante. O narrador de

Alencar nos fala de um leitor displicente, às voltas com sua própria rotina, e que poderia

encontrar no ―livrinho‖ um recreio para o seu dia:

Em um tempo em que não mais se pode ler, pois o ímpeto da vida mal

consente folhear o livro, que à noite deixou de ser novidade, e caiu da

voga; no meio desse turbilhão que nos arrasta, que vinha fazer uma

obra séria e refletida?

Perca pois a crítica esse costume em que está de exigir em cada

romance que lhe dão, um poema. Autor que o fizesse, carecia de

curador, como um pródigo que seria, e esbanjador de seus cabedais.38

Em sua dissertação, Valéria Cristina Bezerra39

arrolou alguns dos paratextos

vinculados aos romances de José de Alencar, demonstrando a ascendência desses

escritos na recepção de suas obras. Citando alguns exemplos, a pesquisadora trata do

caso de Iracema (1865), cujo prólogo e posfácio estabeleciam um diálogo com a

36

SÊNIO (José de Alencar). ―Benção Paterna.‖ Op.cit, 1957 [1872], p.30. 37

Alguns nomes seriam poupados: ―Aos amigos, como Joaquim Serra, Salvador de Mendonça, Luiz

Guimarães, e outros benévolos camaradas; tu lhes dirás, livrinho, que te poupem a qualquer elogio. Para a

crítica têm eles toda a liberdade, nem carecem que lh´a deem: mas no que toca a louvor, pede

encarecidamente que se abstenham‖. Idem, p.31. 38

Idem, p.32. 39

BEZERRA, Valéria Cristina. A recepção crítica de José de Alencar: a avaliação de seus romances e a

representação de seus leitores. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária). Campinas:

IEL/UNICAMP, 2012.

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representação de um leitor mais erudito, capaz de entregar-se à fruição de uma obra

elaborada. Outros romances, como Lucíola (1862) e Diva (1864), que tratam de perfis

femininos, contavam com paratextos que dialogavam com as leitoras, daí o uso de uma

tônica mais moralista. Em todos esses casos, seria possível notar que a crítica

especializada acabava refletindo as acepções postuladas pelo literato. Desse modo,

Iracema seria aclamada por sua sofisticação retórica: poema em forma de prosa, obra-

prima40

; no caso de Lucíola, tudo se resumiria a pudor: melhor abster-se de singular

leitura41

; e, sobre a casta Diva, restavam as reverências a uma figura exemplar.42

E,

seguindo os passos de Bezerra, podemos afirmar que, em seus preâmbulos, José de

Alencar buscava ―influenciar‖ a crítica especializada (e considerada malformada), além

de esboçar um modelo de leitor (neste caso, dito superficial). Isto posto, partiremos para

a análise de Sonhos d´ouro, mirando a sua recepção na década de 1870 e os caminhos

que se apontavam na ―Benção Paterna‖.

40

―Que o autor de Iracema não esmoreça, mesmo a despeito da indiferença pública; o seu nome literário

escreve-se hoje com letras cintilantes: Mãe, Guarani, Diva, Lucíola, e tantas outras; o Brasil tem o direito

de pedir-lhe que Iracema não seja o ponto final. Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe

chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-

prima.‖ ASSIS, Machado de. ―Semana Literária‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 23 de janeiro

de 1866. 41

―E a primeira coisa que se disse na sua primeira página foi que ele não devia ser lido pelas netas de

suas avós. Com maioria de razão, as sobrinhas de suas tias e as filhas de suas mães tiveram de abster-se

da leitura desse romance singular.‖ (Anônimo). Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 17 de abril de 1864. 42

―Pois bem; agora desse mesmo autor incógnito, dessa mesma pena audaciosa, acaba de desprender-se

um outro romance intitulado Diva. A diferença a notar-se é que deste novo fruto não proibido podem

comer livremente todas as filhas e netas do universo, que saibam ler português, apaixonar-se pela poesia,

compreender toda a beleza de um estilo aprimorado de quantas galas podem enobrecer e enfeitar uma

produção literária.‖ (Anônimo). Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 17 de abril de 1864.

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25

II. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ROMANCE SONHOS D´OURO

(1872), DE SÊNIO.

À sombra de seu intrigante prefácio foram, e têm sido, ínfimas as atenções

destinadas ao escrutínio do enredo de Sonhos d´ouro. E não afirmamos isso como

melindre de pesquisadores que desejam valorizar o próprio trabalho, porém, com o

intuito de demonstrar que a crítica especializada, em sua maioria, parece ter sido

convencida pelo poder de persuasão do narrador-personagem Sênio em sua ―Benção

Paterna‖, e frequentemente aderiu à proposta interpretativa que limita Sonhos à

pequenez de um romance do tipo folhetinesco, um ―livrinho dourado‖ feito para

mocinhas, e sem grandes impactos nos debates estéticos que fervilhavam à época.

Como ponto de partida, recorremos a uma das mais famosas biografias de José

de Alencar que, en passant, teria trazido algo sobre a narrativa: José de Alencar e sua

época, de Raimundo Magalhães Júnior.43 Obra de cabedal, lançada nos anos 1970, com

a chancela do INL, e ainda de grande relevância entre o(a)s alencariano(a)s, o escrito

terminaria por restringir a análise da narrativa aos pormenores da vida afetiva de seu

autor. Dessa forma, no capítulo ―O casamento de um solteirão44‖, Magalhães Jr. se

utilizaria do romance como metáfora aos sentimentos amorosos de um Alencar que,

conforme sabemos, se casaria na maturidade dos seus 35 anos. Ou seja, de maneira

quase clarividente, Sonhos d´ouro refletiria as desventuras de seu enamorado autor:

Na verdade, Sonhos d´Ouro não é mais que o romance de uma

hesitação que no fundo seria a do pequenino, magro, pobre, enfermiço

e idoso Alencar diante da jovem, bela, loura, saudável e abastada

herdeira do médico homeopata e agenciador de negócios

ferroviários.45

Rente à experiência amorosa de um Alencar considerado envelhecido para a sua

época, adoentado, e em condição financeira periclitante, Magalhães Jr. sugeriria que

Sonhos d´ouro seria um ―romance de hesitação‖, que traria consigo os sentimentos de

inferioridade vivenciados pelo literato diante de sua Guida: a resplandecente Srta.

Georgiana Augusta Cochrane. De acordo com o crítico, outros elementos contribuiriam

43

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. José de Alencar e sua época. (2ª edição). Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1977. 44

MAGALHÃES JR, Raimundo. ―O casamento de um solteirão‖ (capítulo XVII). Ibidem, 1977, p. 166-

176. 45

MAGALHÃES JR, Raimundo. Ibidem, 1977, p.176.

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26

para tal constatação, como, por exemplo, a presença do cenário tijucano, lugar de

veraneio da Guida/Georgiana solteira, e bairro escolhido pelo casal para residência fixa

após o enlace:

Surpreendente, na vida de Alencar, a discrição acerca de seus

problemas sentimentais e da vida conjugal. [...] Só nas entrelinhas de

um de seus romances e em alguns dos versos é possível rastrear uns

poucos lances, pelo menos, dessa parte quase secreta de sua

existência. O romance em que transparecerá, embora dissimulada sob

o véu da fantasia, é Sonhos d´ouro, cuja ação se desenrola na Tijuca,

onde, aliás, veraneava habitualmente a sua eleita.46

Em perspectiva distinta, sem presunções biográficas, e com atenções voltadas à

representatividade de José de Alencar para as Letras no Brasil, Antonio Candido, em

seu clássico Formação da Literatura Brasileira47, nos falaria inicialmente do projeto

literário reivindicado e associado ao autor no intento de se construir uma literatura que

pudesse ser concebida como nacional. Seguindo adiante, e tendo por foco a década de

1870, Candido trataria de um Alencar imerso à prática jornalística, oficialmente

contratado pelo prestigiado editor Baptiste-Louis Garnier, e com romances ainda mais

calcados no cenário social de fim de século.

Nesse ínterim, e de maneira didática, Candido nos apresentaria as facetas dos

chamados ―três Alencares‖.48 No primeiro caso, temos o ―Alencar dos rapazes‖, com

protagonistas heroicos, cenários aguerridos e tônica predominantemente masculina.

Seriam representantes desta safra os seguintes romances: O Guarani (1857); As minas

de prata (1865-1866); O Gaúcho (1870); Ubirajara (1874) e O Sertanejo (1875).

O crítico também iria se referir ao ―Alencar das mocinhas‖, este seria mais

gracioso, por vezes pelintra, e caracterizado pela criação de mulheres cândidas e

homens bons que ―dançam aos olhos do leitor‖.49 Esta face seria representada por obras

como Cinco minutos (1856); A viuvinha (1857); Diva (1864); Sonhos d´ouro (1872). No

Alencar do universo feminino iriam predominar os valores da dignidade e da

consciência, sempre mais fortes que os da paixão. Nessas narrativas, cujo ―fulcro vital

seria a mulher‖50, o apelo ao desfecho do final feliz seria predominante (índios evasivos;

46

Idem. 47

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. (9ª edição), 2º volume

(1836-1880). Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda, 2000. 48

Ibidem, 2000, p. 200-211. 49

Ibidem, p.203. 50

Idem.

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sertanejos impreterivelmente serviçais; e protagonistas com ares suicidas não iriam

tonalizar as cenas51). Ou seja, na ótica de Candido, os finais mais duros e desencantados,

seriam associados ao segmento masculino, enquanto o recurso ao happy end, - típico do

clichê folhetinesco - nos informaria de artifícios literários palpáveis entre o segmento

feminino.

Por fim, seria elencado o ―Alencar dos adultos‖, formado por elementos pouco

heroicos e pouco elegantes, porém, com um senso artístico avassalador. No último caso,

o estudioso não propõe uma análise segmentada entre gêneros, mas sim um estudo da

condição humana observada na experiência de homens e/ou mulheres, como Paulo e

Lúcia, de Lucíola (1862), ou, Fernando Seixas e Aurélia, de Senhora (1875), ambos os

romances que melhor representariam este Alencar dito da maturidade.

Interessa-nos enfatizar alguns aspectos preconizados por Antonio Candido.

Primeiramente a vinculação de Sonhos d´ouro ao Alencar identificado a um universo

feminino, que com suas personagens cândidas e de fácil assimilação (dançantes aos

olhos dos leitores), arrebataria especialmente o público feminino, que sempre seria

associado à literatura tipificada como romanesca. Portanto, um José de Alencar que

comporia as suas protagonistas femininas em interlocução com as mulheres reais,

consumidoras de livros e/ou jornais. Nesse sentido, e prevendo outros desdobramentos,

vale dizer que a personagem Guida não fora associada a um perfil puro e ingênuo pela

crítica da época, pelo contrário, a altivez da personagem verteu-se em petulância num

famoso texto analítico prontamente rebatido pelo autor da obra.

Ressaltamos ainda o recurso ao happy end, igualmente associado por Candido

aos ―romances alencarianos para mocinhas‖. Pois bem, e conforme demonstraremos

numa leitura pormenorizada do enredo, Sênio, numa solapada de metaficção, daria as

caras ao final do texto, e em diálogo com B.L. Garnier, proporia o desmonte da

narrativa que havia terminado sombria, mas que por engenho do personagem-narrador,

seria (de)formada ao esperado final feliz e harmonioso. Enfim, um trecho

51

―É de notar-se que nos romances de que os homens são foco – os romances do sertão – Alencar não

apela para o desfecho do final feliz. A palmeira do Guarani desaparece sem deixar vestígios; Arnaldo,

n´O Sertanejo, continua servindo a dama inacessível; Manuel Canho n´O Gaúcho, precipita-se no abismo

enlaçado à amada que lhe roubaram – como se a fibra heroica ficasse mais convincente posta acima da

harmonia sentimental dos romances urbanos, nos quais a rusga ou a barreira não passam de preâmbulo

daquelas cenas de entendimento final, onde surge, triunfante e cheio de cortinados, o ―ninho do amor em

que o bom gosto, a elegância e a singeleza tinham imprimido um cunho de graça e distinção que bem

revelava que a mão do artista fora dirigida pela inspiração de uma mulher‖ (A Viuvinha). Nos seus livros

sentimos aquele desejo de refinada elegância mundana, que a presença da mulher burguesa condiciona no

romance ―de salão‖ do século XIX.‖ Idem.

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importantíssimo, e sumariamente negligenciado pelos poucos que se debruçaram sobre

a obra.

Dessa maneira, e ressignificando o adequado termo sugerido por R. Magalhães

Jr., embora nos coloquemos à margem de qualquer intuito biografista, também

compreendemos Sonhos d´ouro como um ―romance hesitação‖, em específico porque

pensamos que tal obra traz consigo as oscilações e dubiedades que identificam a sua

própria época. Dessa maneira, José de Alencar nos presenteia com um Sênio que,

detentor de experiências advindas de temporalidades distintas, tornar-se-ia capaz de

desvendar as contradições inerentes às transformações sociais, políticas e estéticas que

marcaram o período. Assim, num inebriante esquema de vaivém, Sênio transcorre por

entre projetos políticos que buscavam manter o status quo, e por entre aqueles que

faziam concessões a uma ética já reconhecida como liberal. Por outro lado, os ranços do

patriarcalismo, ainda tão enraizados em nossa sociedade, não passariam despercebidos,

e seriam incorporados ao tecido da trama romanesca. Ademais, e conjugando tais

temáticas aos debates estéticos em voga, Sênio ainda hesitava por entre arquétipos

femininos bibelôs e mulheres com alguma consistência, demonstrando que a

encruzilhada romântica/realista também se encontrava no percurso a ser trilhado

naquele momento.

II.1 Sênio sob a máscara de um narrador romanesco.

No primeiro capítulo da tese, tratamos dos possíveis significados e dos debates

que endossaram a figura de Sênio, a persona criada por José de Alencar. Dessa forma, e

num raciocínio quase linear, relacionamos a figura do narrador-personagem ao seu

entorno, elencando, inicialmente, a publicação do romance O Gaúcho, este que

apresentou Sênio ao público em 1870; seguimos examinando as Cartas a Cincinato,

publicadas entre 1871 e 1872, e cujas provocações desferidas especialmente por

Franklin Távora, trouxeram Sênio à cena novamente, através do texto ―Benção

Paterna‖, prefácio a Sonhos d´ouro (1872).

Nesse momento já não nos parece tão interessante balizarmos a concepção do

narrador-personagem a partir de referenciais externos. Conforme demonstrado

anteriormente, temos ciência de sua falsa modéstia ao apresentar-se como um sujeito

senil ou como um ―anacronismo literário‖, e compreendemos como factível a hipótese

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de que quando Sênio afirmava as suas predileções por ―escolhas estéticas que

caducavam‖, a persona colocava-se a par dos debates relacionados a uma suposta

derrocada da estética romântica. Além disso, a relação crítica com o público, -

reconhecido como displicente e, em alguma medida, (de)formado pela experiência

folhetinesca52 - seguirá como uma questão sentinela em nossa abordagem, todavia, neste

item pretendemos analisar os artifícios do narrador por dentro do texto literário, ou seja,

queremos compreender as formas de enunciação dos referenciais teóricos e estéticos

sugeridos no prefácio ―Benção Paterna‖. Em grossas linhas, pretendemos entender o

modus operandi de um Sênio imerso na narrativa alencariana.

II.2 A questão financeira.

Sem mais delongas, vamos ao romance. O livro Sonhos d´ouro tem como ponto

de partida a descrição do ambiente bucólico e aprazível da Tijuca, o famoso bairro

fluminense que, à época, servia de lugar de refúgio e veraneio para a elite da cidade.

Nos pormenores do cenário reconhecemos as inúmeras referências que denotam a

região de serranias: as tantas cachoeiras, a Pedra Bonita, a Vista Chinesa. Podemos

supor que a presença ostensiva de tantos ―marcadores de realidade‖ prenunciava que a

narrativa mantinha certo compromisso com o prosaico, ou, ao menos, com o verossímil.

De todo modo, o tom romanesco, - impregnado à dicção de nosso narrador na terceira

pessoa do singular - também alertava ao público leitor que a idealização sentimental se

faria presente no tal livrinho dourado:

O sol ardente de fevereiro dourava as lindas serranias da Tijuca. Que

formosa manhã! O céu arreava-se do mais puro azul; o verde da relva

e da folhagem sorria entre as gotas de orvalho, cambiando aos toques

da luz. Frocos de névoa, restos da cerração da noite, cingiam ainda os

píncaros mais altos da montanha, como pregas de véu flutuante, ao

52

―[...] Quantas coisas esplêndidas brotam hoje, modas, bailes, livros, jornais, óperas, painéis, primores

de toda a casta, que amanhã já são pó ou cisco? Em tempo em que não mais se pode ler, pois ímpeto da

vida mal consente folhear o livro, que à noite deixou de ser novidade e caiu em voga; no meio desse

turbilhão que nos arrasta, que vinha fazer uma obra séria e refletida? [...] Estes volumes são folhetins

avulsos, histórias contadas ao correr da pena, sem cerimônia, nem pretensões, na intimidade com que

trato o meu velho público, amigo de longos anos e leitor indulgente, que apesar de todas as intrigas que

lhe andam a fazer de mim, tem seu fraco por estas sensaborias.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). ―Benção

Paterna.‖ Op.cit, 1957 [1872], p.32.

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sopro da brisa, pelas espáduas das lindas amazonas, que durante o

verão costumam percorrer aquelas amenas devesas.53

A linda amazona Guida já estava por vir, mas, de início, as atenções seriam

voltadas ao quase príncipe Ricardo, o par romântico da protagonista na trama. O moço

tinha lá seus 28 anos, traços nobres (embora não fosse um tipo clássico), e olhar de

reflexos inteligentes.54 Ostentava um vestuário completo, do tipo parisiense, conquanto

meio desgastado ou fanado na gola. Além disso, e não menos relevante, notava-se a

ausência completa de ouro: a abotoadura era de marfim e o personagem não possuía

relógio.55 Dessa forma, podemos concluir que, por parte de Ricardo, haveria o

reconhecimento da relevância e um anseio de adequação à moda, - compreendida como

signo de distinção social e elemento emblemático da modernidade metropolitana56 - no

entanto, o mancebo parecia incapaz de sustentar por si o estilo afrancesado.

Um carácter ambicioso começava a ser esboçado aos olhos do(a) leitor(a). E,

completando o perfil, não tardaria para sermos informados de que o moço era um

inexperiente bacharel em Direito, que deixara família e noiva em São Paulo e, junto do

colega/amigo Fábio, teria seguido para a Corte a fim de fazer fortuna.57 Portanto, Sênio

53

SÊNIO (José de Alencar). Sonhos d´ouro. Op.cit, 1957 [1872], p.39. 54

―Era moço de 28 anos. Seu rosto de traços nobres não tinha decerto a beleza correta e artística do tipo

clássico, nem a faceirice de certos casquilhos, príncipes da moda: apresentava porém uma fisionomia

simpática e distinta. O olhar sobretudo, que é o sol d' alma, lhe esclarecia a larga fronte pensativa de

reflexos inteligentes.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.39-40. 55

―Trajava com extrema simplicidade. Tinha um vestuário completo, ou no jargão parisiense dos

alfaiates, um costume ainda bem conservado e decente, apesar de um tanto fanado na gola. Notava-se a

ausência completa do ouro: a abotoadura era toda de marfim; e não se via sinal de relógio.‖ In: SÊNIO

(José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.40. 56

Cf.: SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. (3ª reimpressão).

São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 57

―[...] Estas relações tinham começado havia seis anos na cidade de São Paulo, onde habitava Ricardo

com sua família. No ano em que o talentoso estudante ia concluir o seu curso e formar-se, Fábio, muito

mais moço, matriculou-se na faculdade. Apesar dessa circunstância que os devera separar logo no

princípio de seu conhecimento, a amizade estreitou-se entre os dois. O meigo sorriso de Luisinha foi

naturalmente o fio dourado que teceu essa mútua afeição.

Havia três meses que Fábio se tinha formado. Para ele o prazer que sempre desperta esse dia no coração

do estudante, veio travado de saudades. Sua pobreza não lhe permitia realizar o voto mais querido de sua

alma; tinha de separar-se de Luisinha, para recolher à corte, ao seio da família. Ia trabalhar na esperança

de adquirir uma posição modesta, mas decente, para oferecer à companheira de sua existência. Os dois

corações sofreram com a ausência, mas resignaram-se. Ricardo de seu lado reconhecera que em São Paulo não poderia, apesar de seu talento, obter os recursos

indispensáveis para assegurar o futuro da numerosa família que pesava sobre ele, depois da morte de seu

pai. Aproveitando a ocasião, veio com Fábio para a corte tentar fortuna.

Estabeleceram-se ambos como advogados. Obtido o escritório, posto o nome na porta e feitos os

anúncios, esperaram pelos clientes. Nos três meses decorridos conseguira Ricardo quatro causas gratuitas,

que por grande obséquio lhe arranjara um procurador. Apenas lá de tempos a tempos, uma inquirição, ou

algum requerimento, ia ajudando a compensar as despesas.

Os dois amigos suportavam sua pobreza nobremente. Às vezes Fábio, mais desabusado, sustentava umas

ideias materialistas, como aquelas que exprimira durante o passeio; mas Ricardo, que não transigia em

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ponderava: estávamos diante de um trabalhador ambicioso, e não de um janota

desprovido de caráter.

Logo em seguida, seríamos apresentados à figura de Guida. Como era de

esperar, a moça esbanjava o ideal de beleza romântico, e seu tipo poderia habitar

qualquer folhetim da época: alva e cândida como flor, de alma viçosa, iluminada, olhos

negros e sorriso primoroso.58 Como já antecipamos, Guida montava a cavalo, e assim

faria a sua primeira aparição na narrativa, domando a égua Isabel, com firmeza,

delicadeza e, se necessário, com a violência representada pela mão que empunhava um

chicote:

A mão esquerda sustinha as rédeas trançadas com bastante firmeza,

porém com a graça fácil que teria segurado no baile o leque ou o

ramalhete. A direita suspensa apertava pela haste um chicotinho, cujo

cabo de madrepérola parecia machucar nos lábios o sorriso faceiro,

que ali brincava, e de vez em quando trinava como um canário.59

Conforme Sênio sustentaria a posteriori, Guida não era um tipo, mas um

caractere, e enquanto personagem ficcional ela seria matizada por elementos de

humanidade. Sendo assim, é importante registrar que não estávamos diante de um

esboço feminino que poderia ser reduzido às dores de amor:

Não brincava mais com bonecas, é verdade; suas bonecas eram

―Edgard‖ e ―Sofia‖, ou as flores de seu jardim. Mas também ninguém

a via tomar ares melancólicos e atitudes pensativas, suspirar a cada

instante, ou recitar poesias de amor, acentuando as frases apaixonadas

do poeta. Em uma palavra, não era romântica. Tinha a suas amigas

afeição sincera; mas não lhes emprestava a linguagem ardente, que

afetam certas moças, e que faz supor, sob pretexto de amizade, a

expansão de algum amor oculto, ou pelo menos de um amor ideal

criado pela imaginação.60

matéria de escrúpulo e honestidade, combatia tais aberrações do espírito de seu amigo, e destruía a

influência nociva que o mal poderoso e laureado exerce sobre as almas cuja têmpera não é bastante forte

para resistir-lhe.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.74-75. 58

―Entre o arvoredo tecido de grinaldas amarelas aparecia uma esfera do azul do céu, como tela fina de

um painel, cingido por medalhão de ouro. A sombra de uma nuvem errante infundia ao horizonte suave

transparência. Debuxava-se na tela acetinada o vulto airoso de linda moça, que montava com elegância

um cavalo Isabel. A alvura de sua tez fresca e pura escurecia o mais fino jaspe. Nem os raios do sol, nem

o exercício acenderam uma rosa mesmo pálida em sua face, cândida como a pétala do jasmim. A seiva

dessa mocidade, o viço dessa alma, não se expandia no rubor da cútis, mas no olhar ardente e esplêndido

dos grandes olhos negros, e no sorriso mimoso dos lábios, que eram um primor da natureza.‖ In: SÊNIO

(José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.50. 59

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.53. 60

SÊNIO (José de Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.144-145.

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Ricardo era um quase príncipe, se não fosse a sua origem social. No lado oposto,

Guida, pela condição social desfrutada, agia de maneira a dispensar os trejeitos e

suscetibilidades de uma princesa. Explicamo-nos: a questão financeira e o tema da

mobilidade social seriam fatores decisivos para a construção, oposição e junção das

personagens. Todavia, os códigos prenunciados pelas mesmas demonstravam os limites

fronteiriços entre os valores de uma sociedade estamental, característica do período

Imperial, e a ética liberal, que anunciava o século que estava por vir. O casal em pauta

representava os valores morais e as idiossincrasias experienciadas à época, de todo

modo, há minúcias que pretendemos explorar.

Guida e Ricardo demonstravam uma ―consciência de si‖ profundamente atrelada

ao lugar social ocupado e/ou almejado por cada um. Em certa ocasião, Fábio contava a

Ricardo de um episódio pueril, da caprichosa Guida que, com intuito de pregar uma

peça no médico que atendia à sua família, chamara o profissional com urgência, no

meio da noite, para atender a uma tal de Sofia que se encontrava adoentada. Ao chegar,

o velho doutor descobriria que Sofia era a cadelinha da casa e, apesar do disparate, o

médico terminaria por relevar a situação, compreendendo-a como uma provocação

inconsequente da garota mimada. Ricardo, que ouvia a anedota, concluía: ― - Acho que

essa moça tem pouco juízo.‖61 No entanto, Fábio, que era mais atento às artimanhas dos

endinheirados, trataria de emendá-lo: ― - Juízo tem ela; mas é juízo de moça rica, muito

diferente do juízo de moça pobre.‖62 Podemos acrescentar que, como criatura fictícia

conjugada ao novo cenário socioeconômico que se prenunciava, os valores morais e a

visão de mundo de Guida também advinham do poder que lhe era atribuído pelo

dinheiro, e não de arcaicos ―lastros‖ emanados do tradicionalismo.

Todavia, tal constatação não deve ser compreendida de maneira unívoca, ou sem

qualquer tipo de problematização a respeito. Por exemplo, o Sr. Soares, pai de Guida e

―milhão feito homem‖63, seria referenciado no romance por diversas vezes como ―o

capitalista‖ que ascendera na vida através de esforços próprios: começara como dono de

armarinho, crescera e expandira os seus negócios até tornar-se um especulador dos mais

prósperos, daí a banqueiro foi apenas uma questão de tempo. O sobrenome não era

61

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.68. 62

Idem. 63

―As vistas fitavam-se com afinco no rosto franco e prazenteiro do capitalista, que se lhes afigurava o

dinheiro encarnado, o milhão feito homem. Estudavam sua fisionomia, aprendiam seus menores gestos,

decoravam suas palavras ainda banais. O Soares tinha em si o grande segredo de ganhar dinheiro; talvez o

precioso condão da riqueza estivesse em alguma particularidade de sua pessoa e fosse possível a um

homem hábil surpreendê-lo.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.124.

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pomposo, e o casamento com D. Paulina, a mãe de Guida, também não teria

apresentado vantagens nos altos círculos de poder.64 E ainda que a família gozasse do

prestígio proporcionado pela ascensão conquistada com algum trabalho e muito engodo,

o Sr. Soares não dispensaria a alcunha de ―comendador‖ no trato de seus negócios e em

suas amabilidades sociais. Contraditório ou não, lidamos com um capitalista que sentia

a necessidade de falsear um título nobiliárquico. Sobre tal episódio, vale acrescentar

que, somente nas páginas derradeiras do livro seríamos informados que o título, advindo

da prática, ou de uma suposta aclamação popular, seria finalmente outorgado em meio a

muita zombaria: de acordo com o anúncio publicado no Jornal do Commercio, o Sr.

Soares seria o Comendador Chenchém:

[...] O barão propôs a saúde nestes termos:

- Ao meu velho amigo Soares, ao homem honrado que se fez por seu

trabalho, e a quem o povo despachou comendador por aclamação,

antes que sua Majestade houvesse por bem nomeá-lo. Aqui está o

decreto.

O velho com gesto solene abriu o pergaminho, onde se via uma

assinatura de quatro contos de réis; as outras eram bagatela.

Ao mesmo tempo D. Clarinha, a filha do barão, prendia ao peito do

Soares a venera da Rosa cravejada de brilhantes.

Patenteou-se o segredo; e as explicações correram ao redor da mesa.

Uma semana havia que no Jornal do Commercio começara a aparecer

uma mofina concebida nestes termos: ―COMENDADOR

CHENCHÉM‖ ―Um marreco bem conhecido na praça, por suas

especulações e trapaças, assentou de fazer-se comendador de meia-

cara. O título ‗soa‘ e não custa cinco ‗rés‘ ou ‗réis‘.‖

O banqueiro, quando lhe mostraram o jornal, riu-se:

- São as unhas do tratante do Aljuba... Não resta dúvida.

- É um desaforo! diziam-lhe os amigos.

- Pois eu tomo a coisa às avessas. É uma fineza, que ele me faz

diferençando-nos.

Quem mais se incomodou com o caso foi o barão de Saí, que no maior

segredo tratou de comprar a comenda para seu velho amigo, a fim de

malograr a vil mofina. D. Paulina e Guida, de combinação com ele,

prepararam a surpresa, a cujo desfecho acabamos de assistir.

Muitos dos convivas não se tinham apercebido da mofina, pela

indiferença com que passam os olhos por essa arena da imprensa,

onde se esgrime, de envolta com ideias e sentimentos nobres, toda a

casta de paixão.65

64

Aliás, o narrador Sênio, numa brevíssima passagem, faria questão de afirmar a inabilidade da matriarca

para a riqueza: ―Na cabeceira estava D. Paulina, a mulher do comendador Soares, senhora de estatura

regular, e bastante nutrida. Tinha na fisionomia um ar de bondade e singeleza que lhe conciliava a

simpatia geral. Seus gestos eram acanhados; via-se que não estava a cômodo, nem se ocupava em

desempenhar o seu papel de dona de casa. Esta senhora, que nascera para uma vida modesta, sentia-se

acabrunhada pela riqueza e opressa por esse luxo de ostentação que a envolvia e se apoderara até de sua

pessoa. Seu vestido feito no rigor da moda era uma túnica de Nessus para aquele gênio pachorrento.‖ In:

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.118. 65

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.309-310.

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Mas, voltemos aos enamorados. Conforme sugerido, a ―consciência de si‖

reivindicada por Ricardo desenhava-se a partir de sua origem inferior e do papel social

que ele almejava ao se mudar para o Rio de Janeiro. O personagem via-se como um

pobretão obscuro, deslocado no cenário de luxo representado pela família do

comendador/banqueiro e por todos aqueles que orbitavam à sua volta. Já o antagonista

Fábio, desde as suas primeiras aparições na narrativa, se assumiria como um sujeito de

poucos escrúpulos quando o tema era ambição social - tal convicção, o levaria a um

relacionamento escuso com D. Guilhermina, uma senhora rica que, nas palavras de

Sênio, fizera do marido um ―figurão‖.66 Ricardo recusava tal caminho para galgar algum

lugar ao sol. O bacharel de Guida primava pelo decoro e, com algum senso crítico,

chegaria a verbalizar o papel que lhe seria incumbido em meio àquela sociedade:

- Somos dois pobretões obscuros; eu podia acrescentar de minha parte,

e desconhecido, por que realmente o sou nesta grande cidade. Em casa

de um milionário, no meio de uma sociedade habituada ao luxo e às

grandezas, qual seria nossa posição? Creio que a classifico bem

dizendo que faríamos o ponto de transição entre o parasita e o criado;

formaríamos o elo desses dois anéis da cadeia.67

Retomando o último trecho: Ricardo e Fábio, jovens forasteiros, ou, recém-

formados ―sem eira nem beira‖, que traziam consigo um tanto de disposição para o

trabalho e tino para os negócios, estariam situados na transição entre o parasita e o

criado na pirâmide social que sustentaria o Império Brasileiro. Apesar da intenção de

criticidade demonstrada pelo rapaz, faz-se necessário que, a partir do próprio romance,

demonstremos as nuances e armadilhas pressupostas em seu raciocínio. No texto, ao se

66

―[...] Em casa, o Barros era manejado pela mulher; se ela não tinha de véspera à noite apartado sobre

um cabide a roupa necessária para o dia seguinte, ele não se vestia, e era capaz de ficar até meio-dia de

chambre e chinelas, como já lhe acontecera. Nunca sabia quando tinha fome, e seria escusado

perguntarem-lhe; era D. Guilhermina quem lhe regulava o apetite, o sono, e até a moléstia. Uma ocasião,

ardendo ele em febre, a mulher o persuadiu de que estava perfeitamente bom; levou-o a um passeio em

que apanharam sol e chuva. À noite, quando se recolheram, o homem nada sentia. [...] Chegado o tempo

de entrar para a roda dos figurões, lembrança que bem se vê não partiu dele, mas da mulher, e entabulada

a negociação, tratou-se da escolha do título. D. Guilhermina tinha paixão pelo de condessa, e achava que

uma coroa de três castelos ia às maravilhas com as tranças opulentas de seus cabelos negros. Desta vez,

porém, o marido quis ter voto e ser homem. Preferiu o título de conselheiro; e turrou de modo que não

houve meios de arrancá-lo daí. Nem a mulher, nem o sócio, nem mesmo o Soares, que era um oráculo

para ele, o demoveram do seu propósito. Essas almas de gelatina têm isso de particular, que em se

inteiriçando, tornam-se guascas; não dobram mais.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872],

p.175-177. 67

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.150.

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referir a D. Leonarda, a afável avó de Guida, o narrador sinalizaria que o enredo de

Sonhos d´ouro transcorria numa sociedade ainda marcada pela escravidão:

À tarde Guida lembrou-se de ir ver a avó no Andaraí.

Aí vivia D. Leonarda retirada na chácara, onde nascera, no meio de

uma récua de crioulas e um bando de moleques de todos os topes e de

todas as cores. Aquela criação pululava e crescia à manga lassa, como

bezerros do sertão sem freio e sem educação.

D. Leonarda, desde que a serviam nos poucos misteres para os quais

bastava uma criada diligente, deixava a troça das mucamas na mais

completa liberdade, até nove horas, em que punha-as todas, mães e

avós de filhos, debaixo de chave, como donzelas recatadas; e nessa

conta tinha-as a todas, crendo realmente enjeitados pelas vizinhanças

os moleques que lhe enchiam a casa.68

O termo escravidão não se faz presente, e se lermos o trecho de maneira

apressada, ou com relógio à mão, quase somos iludidos pelo esboço de um cotidiano

aprazível, no qual vovozinhas cuidam e são cuidadas por crioulas e moleques de todas

as cores, estes que costumavam viver em completa liberdade, mas, que ao final do dia,

eram postos debaixo de chave pela senhora. Enfim, Ricardo se esqueceu que, no Brasil

do século XIX, abaixo dos ―criados‖ ainda haveria a escravaria. E em tal panorama

social, o tema da mobilidade entre classes também iria esbarrar na condição jurídica de

―livre‖ ou ―cativo‖, e na origem étnica do indivíduo, sendo assim, e pelo menos em

teoria, a ética liberal reivindicada pelo bacharel teria dificuldades de encontrar campo

fértil na realidade ficcionalizada.

Por outro lado, e de maneira obliterada pelo próprio Ricardo, podemos especular

que ainda haveria uma situação intermediária, oscilando entre o parasita, o criado e o

escravo, e que talvez atendesse aos anseios de realização do bacharel: a condição de

dependente. De antemão, vale dizer que, diferentemente do parasita, que só tiraria

proveito, o dependente também proporcionaria vantagens ao seu senhor benemérito,

fosse na forma de articulações relevantes à domesticidade; por meio de pequenos

serviços prestados; ou unicamente pela lealdade devida. De acordo com Sidney

Chalhoub69, a experiência da dependência na sociedade brasileira oitocentista seria

caracterizada por uma precariedade inerente à condição, contudo, e ainda de acordo com

o autor, tal situação também deve ser problematizada em suas ―brechas‖ cotidianas de

68

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p. 321-322. 69

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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negociação, que poderiam garantir alguma autonomia para aqueles que, apesar das

instabilidades, gozavam da proteção advinda de núcleos patriarcais.

À guisa de interpretação, um exemplo próximo dessa condição social na trama

de Sonhos d´ouro, pode ser observado na construção da personagem de Mrs. Trowshy, a

preceptora de Guida. Numa leitura pouco detida do romance, diríamos que no papel de

professora da menina, ela seria uma criada. Entretanto, a desmedida fidelidade da

senhora inglesa para com a aluna ultrapassava os limites de uma relação pedagógica, e

pode-se dizer que Trowshy também serviria de confidente, dama de companhia,

alcoviteira, entre outras funções. Nada sabemos sobre as origens da mestra, aliás, o

único vestígio de individualidade que compõe a personagem é o seu gosto literário por

Charles Dickens e Shakespeare. Sobre o suposto vínculo de criadagem, ao longo da

narrativa, jamais encontramos qualquer menção aos termos salário, pagamento... ou

qualquer vocábulo inerente ao cotidiano do mundo do trabalho. Numa passagem

interessantíssima do livro, sinhazinha Guida, através de um trocadilho infame, porém,

profundamente fundamentado na crença da inviolabilidade de seu poder senhorial,

chegaria a se referir à inglesa como ―missis Trouxa‖.70 E, ao fim da narrativa, quando

todos cogitavam o casamento de Guida com Bastos, e uma possível viagem do casal à

Europa, Mrs. Trowshy demonstraria a intenção de acompanhá-los.71 Ou seja,

estranhamente, a preceptora da meninice continuaria a reboque da mulher feita,

demonstrando que o vínculo não se resumiria aos serviços educacionais, compreendidos

como dispensáveis após a formação básica da pupila.

Portanto, supostamente alijada de qualquer autonomia financeira, Mrs. Trowshy,

na condição quase clássica da dependência, vivia à sombra da família do Sr. Soares, que

lhe garantiria a sobrevivência, e cuja notoriedade social também proporcionaria uma

70

―Mrs. Trowshy traçando o braço de Guida e recitando-lhe uns versos de Shakespeare atravessou o

jardim: Come, gently night, come, loving, black brow´d night [...].

Encontrando Ricardo, a mestra parou para dizer-lhe em francês:

- Veja que injustiça, senhor doutor, Guida não gosta destes versos.

- Ouça! disse Guida, e repetiu os versos.

- Se os lesse, poderia dizer alguma coisa, respondeu Ricardo.

- Pois eu pensava que tinha excelente pronúncia, acudiu a moça com ar zombeteiro. Minha mestra diz que

pareço uma inglesa; salvo quando eu repito o nome dela – ―missis Trouxa‖. Aí acha-me horrível.

- Trowshy! emendou gravemente a mestra que pouco entendia de português.‖ In: SÊNIO (José de

Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.249-250. 71

―[...] No verão passado Guida passou em Petrópolis os dois meses de mais forte calor. O pai deixou-lhe

a escolha; ela não quis a Tijuca, de que tanto gostava anteriormente. Nessa ocasião espalhou-se a notícia

de estar justo o casamento de Guida com o Bastos. O Soares interpelado riu-se; e Guida já não

correspondeu às perguntinhas das amigas com um remoque, segundo o seu costume. [...] Mrs. Trowshy

anda muito contente com a esperança de voltar breve à Inglaterra na companhia de Guida, a qual

naturalmente logo depois do seu casamento fará uma viagem à Europa.‖ In: SÊNIO (José de Alencar).

Ibidem, 1957 [1872], p.391-392.

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reputação respeitável e necessária a uma mulher que se encontrava completamente só

num país estrangeiro. Dito isto, podemos voltar a Ricardo, situando-o na pirâmide social

sugerida pelo próprio personagem, mas ressignificando a sua dependência de acordo

com o discurso liberal presente aos últimos decênios do século.

Numa sociedade escravocrata, e de mobilidade quase nula, as origens étnica e/ou

social seriam determinantes para qualquer projeto pessoal que visasse a ascensão a

novos estratos. Sobre o capitalista/comendador, Sênio afirmava: ―[...] um homem tão

recheado de ouro não podia existir sem que fosse ao menos comendador.‖72 Ricardo,

mesmo com estudo e aptidão para o trabalho, também não poderia ―existir‖ em tal

sociedade metropolitana sem vínculos com os altos círculos de poder. Nas simbólicas

palavras de Guida, o rapaz era pobre e, portanto, haveria de ser suscetível.73 Ou seja,

apesar de acreditar que poderia dispensar tal respaldo, Ricardo, assim como Mrs.

Trowshy, também necessitava da rede de proteção proporcionada pela família patriarcal.

E vale dizer que, apesar de todo o discurso progressista insistentemente propagado pelo

personagem, ele só alcançaria algum sucesso com o seu escritório de advocacia após

aproximar-se do círculo social de Guida.74 Em resumo, na narrativa alencariana, a

modernidade liberal se conjugava às velhas estruturas de poder, mantendo-se numa

espécie de (des)ajuste inevitável.

Na sua essência, tal proposta de leitura encontraria farto respaldo bibliográfico.

No conhecido artigo ―As ideias fora lugar‖ (1977), Roberto Schwarz75 já teria tocado na

questão da dissonância das ideias liberais ao cenário brasileiro do século XIX, e suas

implicações nas produções literárias de José de Alencar e Machado de Assis. De acordo

com o autor, no caso de Alencar, que insistiria em adaptar a matéria local à forma do

romance europeu, tudo poderia ser reduzido a um contrassenso no qual a presença do

escravismo desmentiria as ideias liberais. Machado, por sua vez, teria a astúcia de tirar

72

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.179-180. 73

― - Ele é pobre, pensava ela, muito pobre; há de ser suscetível portanto.‖ In: SÊNIO (José de Alencar).

Ibidem, 1957 [1872], p.138. 74

―[...] Agora mesmo, descendo a Rua do Ouvidor, perscrutava ele debalde a causa do conceito que

subitamente adquirira como advogado na corte, onde tantos existem e tão ilustres. Não podia atribuir o

fato ao seu mérito, ou à voga artificial que se arranja por meio de anúncios, e até de escândalos. Também

não se oferecera para advogado de alguma beneficência estrangeira, com o fim de captar a clientela dos

sócios. Lembrava-se de ter visto muitos desses novos clientes em casa do Soares; e quis supor um instante

fosse tudo efeito da amizade de Fábio, que naturalmente falava naquela roda a seu respeito com o

entusiasmo do costume.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.297-298. 75

SCHWARZ, Roberto. ―As ideias fora do lugar.‖ In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo

social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, (6ª edição), 2012, p.09-

31.

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proveito de tal desajuste e, em viés cômico, desnudaria os embates intrínsecos às

relações paternalistas.

Propondo um embate direto, Maria Sylvia de Carvalho Franco, em entrevista

intitulada ―As ideias estão no lugar‖76, problematizaria a questão relativizando a

dualidade pressuposta no esquema de análise que consideraria a periferia como uma

exterioridade da metrópole, esta que imporia seus modelos de pensamento à subalterna.

De acordo com a estudiosa, a periferia estaria completamente articulada à metrópole no

sistema capitalista, e a sua condição de subalternidade seria explicada pela divisão

internacional do trabalho, ou seja, não haveria ideário deslocado, e tudo seria inerente

ao capitalismo. Nesse contexto, o sistema de dominação baseado na ideologia do

―favor‖ teria as suas raízes nos fundamentos econômicos de uma sociedade centrada na

produção do lucro, onde homens livres e equiparados juridicamente, se aproximariam

em trocas de serviços e benefícios que, para Franco, culminariam na aniquilação dos

predicados humanos do dependente.

Há vários estudos mais recentes que demonstram os meandros da resistência

experienciados por homens e mulheres que, apesar de agregados ao seio patriarcal,

demonstravam a habilidade de costurar solidariedades horizontais e de articular a

complexidade das políticas do cotidiano privado, tomando para si o tanto de autonomia

factível a uma existência inegavelmente opressora.77 De todo modo, e retornando ao

cerne da questão que nos foi imposta, vale reafirmar que as relações de dependência, e

todas as demais práticas do regime escravocrata no Brasil, não seriam estranhas à

modernidade que se impunha, tampouco inconciliáveis com a ideologia liberal.

Nesse sentido, Alfredo Bosi, no artigo ―Escravidão entre dois liberalismos‖78,

afirmaria que o suposto paradoxo, representando pelo par escravismo-liberalismo, seria

apenas uma dissonância verbal. Isto porque o consórcio das duas práticas somente se

verteria numa contradição se fosse atribuído ao termo liberalismo um conteúdo pleno e

concreto, equivalente à ideologia burguesa do trabalho livre que se afirmou ao longo da

76

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. ―As ideias estão no lugar‖. Cadernos de debate, São Paulo, nº 1,

1976, p.61-64. 77

Ver, por exemplo. MEGID, Daniele M. À roda de Brás Cubas: Literatura, ciência e personagens

femininas em Machado de Assis. São Paulo: Nankin Editorial, 2014; SALVAIA, Priscila. Diálogos

possíveis: o folhetim Helena (1876), de Machado de Assis, no jornal O Globo. Dissertação (Mestrado em

Teoria e História Literária). Campinas: IEL/UNICAMP, 2014; FAÇANHA, Dayana. Política e

escravidão em José de Alencar - O tronco do ipê, Sênio e os debates em torno da emancipação (1870-

1871). São Paulo: Editora Alameda, 2017. 78

BOSI, Alfredo. ―A escravidão entre dois liberalismos‖. Estudos Avançados. São Paulo, volume 2, nº 3,

1988, p.04-39.

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revolução europeia. No Brasil, tal liberalismo ―livre‖ e ―desenvolvo‖ simplesmente não

existiu; além disso, e retomando o panorama do fim do exclusivismo colonial, o autor

afirmaria que seria um grande equívoco compreender ―comércio livre‖ como sinônimo

de ―trabalho livre‖, haja vista que, mesmo depois do episódio da abertura dos portos, a

mão de obra de origem escrava continuou a predominar no Brasil por décadas a fio. Por

fim, e ainda de acordo com as assertivas de Bosi, destacamos a proposta de uma análise

semântico-histórica do termo ―liberal‖, cujas acepções expõem os aspectos

conservadores que teriam forjado tal concepção ideológica ao longo de nossa história:

1) Liberal, para a nossa classe dominante até os meados do século

XIX, pôde significar conservador das liberdades, conquistadas em

1808, de produzir, vender e comprar.

2) Liberal pôde, então, significar conservador da liberdade, alcançada

em 1822, de representar-se politicamente; ou, em outros termos, ter o

direito de eleger e de ser eleito na categoria de cidadão qualificado.

3) Liberal pôde, então, significar conservador da liberdade (recebida

como instituto colonial e relançada pela expansão agrícola) de

submeter o trabalhador escravo mediante coação jurídica. 4) Liberal pôde, enfim, significar capaz de adquirir novas terras em

regime de livre concorrência, alterando assim o estatuto fundiário da

Colônia no espírito capitalista da Lei de Terras de 1850.79

Reafirmando nosso posicionamento em prol de um Alencar potencialmente

crítico às vicissitudes que matizavam a sua época, salientamos que nos parece injusta a

ideia de um escritor restrito à imitação dos artifícios do romance europeu, fosse em

roupagem romanesca (o leitor de Dumas a pensar seus folhetins80), ou em veio mais

realista (a notável presença de A Dama das Camélias em Lucíola81). Pensamos que tais

leituras seriam, impreterivelmente, intrínsecas ao vocabulário literário do autor, e que

para além de qualquer intuito de replicação com alguma aclimatação, tais textos

poderiam servir de mote para a proposição de debates inovadores junto ao público. O

público, este sim, o norte que guiaria o literato na concepção de Sonhos d´ouro. Em

―Benção Paterna‖, o narrador-personagem nos falaria de práticas de leitura

referenciadas junto à modernidade jornalística, ou de leitores apressados e habituados à

literatura veiculada pela imprensa. Conforme dito, pensamos que seria para este público,

79

BOSI, Alfredo. Ibidem, 1988, p.08. 80

Cf.: BEZERRA, Valéria. C. ―O romance de Alexandre Dumas no Brasil.‖ Dossiê, 2013. Disponível

em: http://www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/arquivos/dossie_valeria_pt.pdf, [Acesso em julho/

2017]. 81

Cf.: De Marco, Valéria. O império da Cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins

Fontes, 1986.

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acostumado às sensaborias romanescas, que Sênio preconizava o seu livrinho de

conteúdo candidamente prazeroso, e final feliz quase previsível.

II.3 A questão estética.

Em texto já referenciado82, Antonio Candido traçaria um breve prognóstico a

respeito da abordagem apaziguadora proposta por José de Alencar em obras como

Senhora, Diva e Sonhos d´ouro, ou nos romances cujo tema da ―competição burguesa‖

se faria presente. Segue:

Alencar sentiu muito bem a dura opção de homem de sensibilidade no

limiar da competição burguesa. Não tinha, contudo, o senso

stendheliano e balzaquiano do drama da carreira, nem a ascensão, na

sociedade em que vivia, demandava a luta áspera de Rastignac ou

Julien Sorel. Por isso, ajeitou quase sempre os seus heróis com

paternal solicitude, sem mesmo lhe ferir a susceptibilidade; em Sonhos

d´ouro por exemplo, faz Guida e o pai auxiliarem Ricardo sem que

este perceba.83

De antemão, a análise torna-se interessante pelo pareamento da obra de Alencar

com os mais conhecidos autores do realismo francês. Nesse momento, Sonhos d´ouro

escaparia temporariamente do status de ―romance de mocinhas‖, e seria aproximado de

notáveis obras estrangeiras, como O vermelho e o negro (1830), de Stendhal e O pai

Goriot (1835), de Balzac, que também trouxeram à tona as temáticas do trabalho e da

ambição social. No entanto, e sob a ótica de Candido, nosso literato não teria a dicção

dos dois grandes, e trataria de ajeitar o destino de seus personagens ―paternalmente‖,

poupando-os de grandes embates ou de conflitos de ordem psicológica.

Isto posto, somos induzidos a pensar que Ricardo, supostamente alheio a tudo o

que se passava ao seu redor, receberia todo o prestígio social emanado dos ricaços da

Tijuca - e que fariam dele um advogado de sucesso - de maneira inconsciente? Nesse

momento, hesitamos diante de uma conclusão. De todo modo, e partindo do viés

sugerido pelo estudioso, seguiremos propondo a aproximação de Sonhos à literatura de

Honoré de Balzac, que, de forma aparentemente subliminar, pode ter sido utilizada por

82

CANDIDO, Antonio. ―Os três Alencares‖. Op.cit, 2000. 83

CANDIDO. Ibidem, p.542.

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Sênio para esboçar certo crivo a respeito das disputas envolvendo as estéticas

romântica/realista na literatura brasileira.

Na trama, enquanto penava para juntar alguma freguesia à porta de seu

escritório, Ricardo seguiria se dedicando a pequenos trabalhos prestados aos jornais da

época, incluindo algumas traduções de romances. No único caso citado, o personagem

verteria para o português o título Eugenie Grandet (1833), de Honoré de Balzac,

trabalho este que lhe proporcionaria alguma independência econômica, haja vista que

logo após o término do serviço, ele deixaria a casa de Fábio, onde permanecia graças à

generosidade do amigo. Assim, e não por acaso, a partir da posição de tradutor, Sênio

faria de Ricardo uma espécie de leitor arguto da literatura de Balzac e mediador

privilegiado de um universo quase avesso à literatura amena e de teor romântico, que

costumava agradar ao perfil de leitor(a) expectado para Sonhos d´ouro e outras obras

semelhantes.

[...] Lembrara-se de fazer algumas traduções para distrair as horas

enfadonhas do estéril plantão, nutrindo a esperança de tirar daí alguns

parcos recursos com que fosse atamancando as necessidades.

Ricardo bem sentia que não tinha real vocação para a profissão

forense; a aridez desses estudos, que os rábulas costumam amenizar

com desbragadas verrinas, não conformava por certo à sua inteligência

brilhante, colorida por uma imaginação de artista.

Mas o mancebo, não obstante, aceitava essa carreira como um dever,

pela impossibilidade de escolher outra que lhe proporcionasse os

meios de subsistência e os recursos para manter a sua família, que se

achava em circunstâncias precárias.

Um camarada de São Paulo se lhe oferecera para obter alguma

colaboração em um dos jornais da corte. Mas até então nada

conseguira; as pequenas empresas não podiam pagar; as grandes

entendem que o verdadeiro redator de uma folha que se respeita, é o

soberano público à razão de tantos réis por linha.

O livro que Ricardo traduzia era de Balzac: Eugênia Grandet.

Esperava achar um editor para a obra-prima do ilustre romancista

francês; coisa bem duvidosa.84

A derradeira frase do narrador pode parecer surpreendente, no entanto, era

realmente duvidoso encontrar um editor disposto a publicar Balzac no Brasil

oitocentista; e são vários os pesquisadores que denunciaram as dificuldades em rastrear

os caminhos da circulação das obras do francês no período.85 Em trabalho recente,

84

SÊNIO (José de Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.273-274. 85

GRANJA, Lúcia & LIMA, Lilian Tigre. ―Leitores e leituras de Honoré de Balzac no Brasil do século

XIX.‖ Polifonia, Cuiabá-MT, v. 23, nº 34, p. 151-164, jul./dez., 2016.

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Lilian Tigre Lima86 demonstra que, publicado em raríssimas traduções nos rodapés de

nossos jornais, e ofertado de maneira esparsa e quase sempre na língua original, o autor

d´ A Comédia Humana somente passaria a circular no Brasil, de maneira majoritária e

em português, a partir da década de 1880, especialmente através da Casa Garraux. Por

isso, e seguindo os passos de Lima, não seria um equívoco sugerir que o leitor brasileiro

de então, associado a um gosto literário incipiente ou em processo de formação, teria

recebido essa literatura de veio realista pelas mãos de José de Alencar e não do próprio

Balzac.87

Em meio a uma narrativa leve e de aparência despretensiosa, Alencar

aproveitava-se para aguçar a curiosidade de seu público por uma nova abordagem

estética, de teor realista, mas que passava ao largo do empirismo suscitado na troca de

farpas com Franklin Távora. O romancezinho dourado, tão desprezado pela fortuna

crítica, provocava o público a partir da sugestão de uma vertente estética ainda pouco

explorada no Brasil: o drama humano balzaquiano. Ainda retornaremos às leituras em

disputa, mas, por ora, faz-se necessário refletirmos sobre os pormenores da presença de

Eugénie Grandet nas páginas de Sonhos d´ouro.

Lançado em 1833, e vindo a integrar a Comédia Humana cinco anos mais tarde,

Eugénie Grandet teria por cenário a França provençal do século XIX que, obliterada

pela Paris moderna, vislumbrava um cotidiano tonalizado por uma atmosfera de

alheamento ou abandono. Na aridez de uma relação familiar concebida sem

idealizações, conviviam a jovem Eugénie e os pais, o Sr. e Sra. Grandet, além da

serviçal Nanon, cruelmente retratada como uma espécie de cão de guarda de toda a

família. O patriarca era um riquíssimo tanoeiro, do tipo sovina, e que chegara à fortuna

graças ao dote vindo de sua esposa, mas que mantinha a todos na mais completa

penumbra material. O cenário seria alterado com a chegada do primo Charles, cujo pai,

falido e suicida, imporia o acolhimento do filho no lar dos Grandet. Por sua condição de

isolamento, não tardaria para que Eugénie se apaixonasse perdidamente pelo primo,

todavia, o rapaz previa partir para as Índias, a fim de recuperar o seu cabedal financeiro.

Enamoram-se, prometem casar-se após o retorno do rapaz, mas o destino seria

implacável. Após longos anos de espera, Charles retornaria à França, endinheirado,

hábil, e sedento por ascensão social; nessas condições, o moço procuraria por um

86

LIMA, Lilian Tigre. Balzac no Brasil: entre livreiros-editores e o romance de José de Alencar.

Dissertação (Mestrado em Letras). São José do Rio Preto, UNESP, 2018. 87

LIMA, Lilian T., Ibidem, 2018, p. 20-21.

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casamento de conveniência com um sobrenome resplandecente dos salões de Paris.

Eugénie, por sua vez, terminaria sozinha, órfã, e herdeira da fortuna acumulada pelo pai,

porém, emocionalmente sucumbida, tal como o meio rural obscuro onde permaneceria

até que os anjos resolvessem levá-la para o céu.88

Ricardo, portanto, traduzia/significava ao público uma história de ambição e

decepção amorosa semelhante à própria experiência. E, embora ele não fosse

apresentado como um ambicioso pérfido tal como o primo Charles, - afinal, ele não se

aproximaria de Guida somente por interesse - em alguns trechos de Sonhos d´ouro

podemos pensar que Sênio incutiria no público certas desconfianças a respeito da

conduta do personagem que, em alguma medida, poderiam fazer do rapaz uma espécie

de transcrição, ou pastiche, do dândi balzaquiano. Dessa forma, no capítulo XXX, após

recusar o pedido de casamento insinuado pela própria Guida, Ricardo seria acometido

por um devaneio dos mais reveladores. Acompanhemos:

No dia em que Ricardo recusara a mão de Guida, espontaneamente

oferecida, chegou à casa de volta de Andaraí, atordoado ainda pelo

procedimento singular, como pela decisão de caráter dessa moça.

[...] À tarde, fumando um charuto e sentado à janela do sótão donde

avistava as verdes encostas de Santa Teresa e mais longe o

Corcovado, o moço deixou-se ir à discrição do pensamento que o

levava para os acontecimentos daquela manhã. Não tardou o

envolvesse um desses castelos encantados de que falava na carta a

Bela.

Imaginou-se outro homem, que não ele. Um moço pobre, de alguma

inteligência, lutando corajosamente com a sorte, mas sem o vínculo de

uma afeição, que o prendesse para sempre. Caminhava curvado ao

peso do trabalho, quando uma voz celeste o chama. Ergue os olhos, e

vê descer das nuvens a moça mais gentil, deslumbrante de beleza,

cintilando graça e espírito que lhe diz:

―Minha alma é virgem e pura, como o sorriso de que Deus a formou.

Nunca amei: não sei que mistério é esse da criação. Ensinai-me vós a

amar; acordai em mim as doces emoções dessa felicidade que eu não

conheço. A linguagem dos anjos que eu falava no céu é doce; mas

quero aprender em vossos lábios outra linguagem mais suave e

maviosa, a que entende o coração. Eu sou a flor que nasce, cheia de

fragrância, que toda guardei para derramar em vosso seio: colhei-me.‖

E o moço ficava enlevado a admirar a esplêndida formosura, não

podendo crer que Deus houvesse formado aquela sublime criatura e a

conservasse imaculada no regaço do céu, para enviá-la de repente a

88

Citamos o derradeiro parágrafo da narrativa: ―[...] Eugénie caminha para o céu acompanhada de um

cortejo de ações generosas. A grandeza de sua alma apaga as pequenezas de sua educação e os costumes

dos primeiros tempos de vida. Esta é a história da mulher que não é do mundo no meio do mundo, que,

feita para ser magnificamente esposa e mãe, não tem marido, filhos ou família.‖ In: BALZAC, Honoré de.

Eugénie Grandet. (Tradução: Marina Appenzeller). São Paulo: Estação Liberdade, 2009, p.238.

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ele, como um anjo, que o inundasse de felicidade. Mas interrompendo

um instante o afã, ajoelhava para admirar a peregrina imagem.

―Erguei-vos, dizia-lhe a moça. Meu senhor não há de calcar o pó da

terra. Tenho riquezas sem conta para dar-lhe. Quero ser querida em

um palácio, entre as magnificências do luxo, cercada de tudo quanto

seduz e deslumbra. Quero ser amada assim para que, no meio de todos

esses esplendores, ele só busque meus olhos, só deseje meu sorriso.‖

Desfraldando as asas, a imaginação de Ricardo bordou sobre o

gracioso tema um desses arabescos orientais, cheios de encantamentos

e fascinações, como são os contos árabes.

Quando ele surpreendeu-se no meio desse devaneio, teve um

remordimento; e para fugir aos enlevos da fantasia, asilou-se nas

recordações das puras afeições da família e dos santos amores de sua

infância.89

Sonhando acordado, o bacharel flertava com uma nova conjuntura de vida, ainda

marcada pela origem pobre, mas sem o vínculo perpétuo com a noiva igualmente

humilde. E, para livrá-lo de todo o peso do cotidiano da labuta, de forma mágica, ou

melhor, por intervenção divina, surgiria o anjo Guida que, ainda há pouco no Andaraí

havia lhe ofertado a própria mão em casamento, descortinando-lhe as possibilidades de

um mundo novo, feito de vaidades e magnificências. No decorrer do delicioso delírio,

bastava apenas um ―sim‖ para que Ricardo fosse soerguido ao universo sedutor de uma

Guida nem tão angelical, mas quase ninfa a atormentá-lo. Censurando-se diante da

constatação de desejos reprimidos, Ricardo desperta, pensa na santidade da família e,

por ironia do destino, - na verdade, pela intervenção do amigo Fábio, este sim, assumido

―senhor de sua própria ambição‖ - o personagem seria surpreendido pela entrega de uma

carta assinada por Bela, cuja mensagem tratava do rompimento do noivado. Aturdido,

porém, implicitamente aliviado, Ricardo, enfim, angariava o argumento necessário para

o desfrute de seu ―sonho dourado‖ sem qualquer sentimento de culpa: ― - E foi por essa

mulher, que eu recusei um coração virgem, e o futuro mais brilhante que podia sonhar

em meus arroubos de imaginação!‖90 Assim, apesar de não exercer protagonismo nas

89

SÊNIO (José de Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.367-369. 90

―Passado o primeiro abalo, quando o mancebo pôde coligir as ideias e refletir sobre o caso, sua mente

procurou naturalmente a explicação do estranho acontecimento; e certo de a ter encontrado, deleitou-se

em passá-la e repassá-la no espírito.

Foi um consolo.

Para Ricardo a carta de Bela não era senão um engenhoso meio de justificar sua ingratidão e perfídia.

Cansada de esperar, a moça de coração volúvel, resolvera casar com o Felício Lemos, que além de

arranjado, estava à mão.

A indignação do mancebo, a revolta do seu caráter em face de tal procedimento, sobrepujou a mágoa de

se ver esquecido, e a dor de perder as mais doces ilusões de sua vida.

- E foi por essa mulher, que eu recusei um coração virgem, e o futuro mais brilhante que podia sonhar em

meus arroubos de imaginação!

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ações que o levariam a Guida, podemos acreditar que Ricardo se mobilizava a partir da

condição de um ―ignorante privilegiado‖ que, no seu âmago, ansiava por uma vida de

ostentação.

Em sua autobiografia, Como e porque sou romancista (1893)91, José de Alencar,

relembrando de seus tempos de estudante em São Paulo, nos falaria das primeiras

impressões ao descobrir a obra de Honoré Balzac na estante de um amigo: tal literatura

constituía-se num modelo a ser imitado; o romance balzaquiano era poema da vida

real.92 De acordo com J. O. Fischer93, o realismo-crítico de Balzac, compreendido de

maneira diversa do realismo preconizado pelas vertentes positivistas que, por sua vez,

iriam preceder ao naturalismo, não deve ser associado ou delimitado à rasa noção de

reflexo do real. Dessa forma, através do retrato de relações inter-humanas coerentes, e

no aparato de universos ricamente pormenorizados e, por isso, verossímeis, a crítica

marxista já teria advertido que ―a imagem do mundo fornecida por Balzac criador

aproxima-se extraordinariamente do quadro crítico da sociedade capitalista em

formação [...].‖.94 Ainda assim, de acordo com Sara R. R. Cordeiro95, não seriam poucos

os compêndios de literatura francesa que associariam o literato à geração de românticos

que marcou o início do século XIX, e que foi representada por nomes como Victor

Hugo, Stendhal, Vigny, Musset, Georg Sand, etc. Para Cordeiro, a apostasia do real e o

saudosismo do passado ideal seriam os principais traços românticos da literatura

balzaquiana, no entanto, a sua contribuição para o conhecimento das forças motrizes da

nova realidade teria sido fundamental para a conceitualização do gênero realista, e não

somente na França.

À noite Ricardo saiu à procura de Fábio, a quem encontrou na Rua do Ouvidor. Conseguiu trazê-lo à casa,

para mostrar-lhe a carta de Bela, e vazar em seio amigo a exuberância de sua alma.

Fábio informou-se do que havia, tratou o ocorrido com a sua habitual leviandade, consolando Ricardo

dessa insignificante derrota, que às vezes, dizia ele, era o princípio dos mais esplêndidos triunfos.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.371-372. 91

Texto-fonte: ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas: Pontes, 1990. 92

―A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-me preparado

para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado pôr mera casualidade aquele arrojo de criança a

tecer uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontrá-lo fundido com a elegância e beleza que

jamais lhe poderia dar. E aí está, porque justamente quando a sorte me deparava o modelo a imitar, meu

espírito desquita-se dessa, a primeira e a mais cara de suas aspirações, para devanear pôr outras devesas

literárias, onde brotam flores mais singelas e modestas. O romance, como eu agora o admirava, poema da

vida real, me aparecia na altura dessas criações sublimes, que a Providência só concede aos semideuses

do pensamento; e que os simples mortais não podem ousar, pois arriscam-se a derreter-lhes o sol, como a

Ícaro, as penas de cisnes grudadas com cera.‖ In: ALENCAR, José de. Ibidem, 1990, p.14. 93

FISCHER, J.O. Époque romantique et réalisme: problèmes méthodologiques. Praha: Université

Charles IV, 1977. 94

LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.41. 95

CORDEIRO, Sara Regina Ramos. O significado do dinheiro em Balzac. Tese (Doutorado em

Sociologia). Campinas: UNICAMP, 2010.

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De todo modo, vale afirmar que não identificamos em Sonhos d´ouro qualquer

vestígio de imitação ou de apropriação vulgar da literatura de Honoré Balzac. Na

verdade, nosso argumento baseia-se na constatação de que a presença visível e invisível

de Eugénie Grandet no texto alencariano, poderia corroborar uma nova leitura do

romance que enunciava parte de seus intercâmbios intelectuais, ou, de forma mais

ampla, que seria capaz de nos aproximar da historicidade cultural contida na obra e em

todo o seu processo de autoria. Nesse sentido, e tomando de empréstimo a reflexão

proposta por Roland Barthes: ―[...] quais os textos que eu aceitaria escrever (reescrever),

desejar, impor como uma força nesse mundo que é o meu?‖96 Através do ensejo

lançamos a seguinte questão: Quais os limites que poderiam ser experienciados ao se

transplantar o realismo crítico de Balzac para o mundo de José de Alencar? É sobre essa

problemática que falaremos a seguir.

Quando tratamos da sinopse de Eugénie Grandet citamos o seu desfecho

desencantado: a condição solitária de uma jovem mulher rica que amargaria um

sentimento de frustação amoroso até o fim de seus dias. Naquele momento omitimos a

informação de que a primeira edição do livro de Balzac contava com um posfácio97, no

qual o narrador reafirmaria a rigidez da narrativa com pretensões de realidade: ―Esse

desfecho não satisfaz necessariamente à curiosidade. Talvez aconteça sempre o mesmo

com todos os desfechos verdadeiros.‖.98 Seguindo adiante, a persona iria ratificar o

destino infeliz de sua protagonista, esta que seria referenciada como uma espécie de

mártir sem direito ao bálsamo dos sofredores:

Entre as mulheres, Eugénie Grandet talvez seja um modelo, o das

dedicações lançadas através das tormentas do mundo e que nelas

submergem como uma nobre estátua arrebatada da Grécia e que,

durante o transporte, cai no mar onde permanecerá para sempre

ignorada. Outubro de 1833.99

Em Sonhos d´ouro, Sênio, por meio de um meticuloso jogo de metaficção100, se

utilizaria de recurso semelhante. Dito isto, salientamos um ―detalhe‖ importantíssimo

96

BARTHES. S/Z. Apud: SANTIAGO, Silviano. ―Eça, autor de Madame Bovary‖. Uma literatura nos

trópicos: ensaios sobre dependência cultural. (2ª edição). Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.47. 97

BALZAC, H. de. ―Posfácio à primeira edição [outubro de 1833].‖ Op. cit., 2009, p.239-240. 98

BALZAC, H. de. Ibidem, 2009, p. 239. 99

BALZAC, H. de. Ibidem, 2009, p.240. 100

Compreendemos o conceito de metaficção como a intenção manifesta do autor em demonstrar ao leitor

o status ficcional da narrativa, expondo os seus procedimentos de construção e composição internos. Em

outras palavras, a metaficção seria o termo associado à escrita ficcional que, de maneira autoconsciente,

chamaria a atenção para a própria condição mimética e/ou artística, culminando numa leitura crítica dos

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do desfecho do enredo que vem sendo ignorado pela crítica: Sonhos é um romance

romântico de final temporariamente infeliz. Num primeiro momento, o par romântico da

trama terminaria separado. Em miúdos: Ricardo é afastado da prima/noiva, mas falta-

lhe iniciativa para procurar por Guida; esta, por sua vez, iria ceder a um casamento de

conveniência com um dos tantos pretendentes que viviam a rodeá-la: o Bastos. Dessa

forma, e com dicção balzaquiana, Sênio proporia o arremate prévio da narrativa: ―[...]

Assim terminaram estes ―sonhos d‘ouro‖, tão parecidos com os outros que a cada

instante por aí acendem e se apagam, como os arrebóis da tarde. FIM.‖.101

Pode-se afirmar, portanto, que uma prerrogativa de desilusão findava o livro

num instante inicial. Contudo, e denunciando a ficcionalidade de sua criação artística,

Sênio/José de Alencar, interviria explicitamente no final da obra, recomendando que o

famoso editor que o contratara, B. L. Garnier, incluísse na impressão do livro um pós-

escrito que, conforme sabemos, verteria o desfecho sombrio da obra:

CARTA AO EDITOR

Ilmo. Sr. Garnier

Se ainda não tirou a lume a segunda parte dos Sonhos d‘ouro, peço-

lhe o favor de mandar imprimir o incluso pós-escrito que leva a última

notícia de nossos personagens.

Amigo e atento venerador

SÊNIO

S.C. 6 setembro, 1872.102

O pós-escrito anexado não trazia novidades sobre a vida dos personagens,

porém, realinhava a obra aos previsíveis artifícios associados à estética romântica. E se

por vezes fomos envolvidos pelo ardil de um narrador de caráter dúbio e oscilante, no

trecho, Sênio tratava de nos arrastar, de maneira melancólica, pelos caminhos de um

insuportável sofrimento amoroso prestes a ser curado pela tópica do happy end

conveniente a todos. Pelas mãos do destino, Ricardo retornaria à Tijuca para um passeio

fortuito e, na ocasião (na rua, andando a cavalo), ele iria se deparar com a moribunda

Guida e sua fiel escudeira Mrs. Trowshy. Ainda solteira, a jovem, que sempre foi

limites estabelecidos entre ficção e realidade. Cf.: WAUGH, Patricia. Metafiction – the theory and

practice of self-conscious fiction. London and New York: Methuen, 1984. 101

SÊNIO (José de Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.393. 102

SÊNIO (José de Alencar). Op.cit, 1957 [1872], p.394.

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caracterizada por um tanto de autonomia e por muita soberba, se encontrava na região

por recomendação médica, para ―tomar ares‖, afinal, desde o afastamento de Ricardo,

Guida teria sido acometida por uma tristeza profunda e de caráter irremediável:

Guida trajava naquela tarde um vestido cinzento e, sobre ele, um

casaco preto guarnecido de marta. A alvura imaculada de seu rosto

destacava-se nesse trajo escuro, entre os negros cabelos, com uma

lividez que assustava: parecia o perfil de uma estátua em alabastro.

Reconhecendo Ricardo, teve a moça uma violenta comoção, e tomou

para suster-se o braço da mestra, que atribuiu o choque a susto e

debilidade da moléstia.

- Não sabia que estava na Tijuca, disse Ricardo.

- Viemos há oito dias.

- Ela tem andado doente; o doutor mandou tomar ares, disse Mrs.

Trowshy em português arrevesado.

- Há de fazer-lhe bem a Tijuca, tornou Ricardo.

- À saúde?... perguntou Guida.

E abanou a cabeça desfolhando um triste sorriso. Foi então que

Ricardo reparou o estado de abatimento da moça. O talhe, tão esbelto

e grácil, retraía-se como o cálix do lírio do vale quando fana-se, e os

olhos de embaciados, só intercadentes, como o trepidar da estrela,

rutilavam para desferir lampejo febril.103

A mesma mocinha que envolvera Ricardo habilmente ao longo de toda a trama,

propondo-lhe casamento e tomando as rédeas da vida pelas próprias mãos, se resignava

e, indiretamente, pedia a para ser salva pelas mãos do homem amado: ―[...] por que não

me deu o criador um raio do fogo sagrado para reanimar esta vida que se extingue, para

reter na terra esta bela mulher que se está transformando em anjo?‖.104 Ao final, ou no

―FIM DO FIM‖105, o casal seria unido, e o interessante perfil feminino apresentado aos

olhos do público, se veria prostrado aos pés de seu futuro marido/senhor:

Ergueu Ricardo surpreso os olhos, e viu o semblante da moça banhado

em lágrimas.

- Guida! exclamou ele.

E cingiu-lhe a cintura com o braço para ampará-la, porque a via

desfalecer.

- Eu queria morrer aqui! balbuciou ela descaindo-lhe a fronte ao

ombro de Ricardo, e reclinando o talhe ao peito onde conchegou-se

hirta, sem movimento.

Mudo e estático, Ricardo não sabia o que fizesse; não tinha forças

para separar de si o corpo desfalecido, nem ousava observar-lhe o

semblante, temendo nele ver a máscara da morte.

103

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.398. 104

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.399. 105

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.403.

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Foi rápido o lance, e durou enquanto Mrs. Trowshy, que duas vezes

investira com o arvoredo, mas fora repelida por causa da sua

rotundidade, fazia volta para aproximar-se.

- Guida! repetiu Ricardo aflito.

A moça ergueu a fronte e engolfando-se no olhar que banhou o rosto

do mancebo, sorriu:

- Cuidei que morria... e era feliz!

Ricardo pousou um beijo casto na fronte da moça.

- Há de viver!

- Para quem?...

- Para mim!

- Por ele e para ele, meu Deus! disse ela ajoelhando com as mãos

erguidas ao céu.106

A essa altura, pensamos ser factível a proposta de um breve cotejamento: se em

Eugénie Grandet o final desencantado seria ratificado pelo posfácio; em Sonhos d´ouro,

o narrador-personagem voltaria atrás e, aparentando arrependimento, negaria o desfecho

infeliz proposto inicialmente, forçando um final aprazível aos olhos dos leitore(a)s.

Assim, intervindo de maneira manifesta, Alencar, sob a máscara de Sênio, expunha os

artifícios da literatura folhetinesca na fronte de um público que fora desqualificado a

priori. Tal movimento, do nosso ponto de vista, poderia ter sido ideado com a finalidade

de esboçar uma consciência crítica junto a tais interlocutores, provocando-os na

superficialidade do próprio gosto literário, e preparando-os, ou, supostamente,

educando-os, para os prenúncios de uma nova concepção estética, mais acomodada à

realidade empírica, e de recursos formais nem tão idealizados.

A partir de tal raciocínio, pode-se inferir que, na relação com o seu público, José

de Alencar iria se deparar com os limites impostos à própria criação literária. Todavia, e

conforme observamos, o autor seria capaz de encontrar meios para, ao menos, perturbar

os supostos preconceitos identificados entre tais leitores, incutindo-lhes, de maneira

hábil, um novo vocabulário literário. Em outras palavras... Ao respeitável público: o

romance! Ou, como diria Sênio: ainda o romance! E tendo-se em vista as suas

predileções estéticas: o bom e velho romance do tipo folhetinesco, porém, através de um

truque de mestre, configurado pela presença de elementos realistas teoricamente avessos

aos seus clichês narrativos.

Nessa perspectiva, e recorrendo às palavras do estudioso Silviano Santiago107,

seria possível afirmar-se que o segundo texto, Sonhos d´ouro, seria organizado a partir

de uma meditação silenciosa e traiçoeira do primeiro texto, Eugénie Grandet; porém, tal

106

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.401-402. 107

SANTIAGO, Silviano. ―O entre-lugar do discurso latino-americano.‖ In. Op.cit., 2000, p.09-26.

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ímpeto de apropriação que, na sua essência, também seria de transgressão, dar-se-ia de

maneira incompleta em decorrência das supostas restrições culturais observadas na

sociedade brasileira oitocentista. Vale reafirmar que o desmonte do perfil audacioso da

protagonista seria o fator mais sensível imposto pela reviravolta. Ao ceder às demandas

de um modelo genérico de leitor, visto como tíbio na sua capacidade de fruição artística,

o literato cearense optava por um retrocesso que desconstruiria a principal força de seu

romance: Guida, a personagem que, ao fim do fim, terminaria completamente entregue

e ajoelhada aos pés de Ricardo e de seus entusiastas.

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III. A RECEPÇÃO DE SONHOS D´OURO NAS PÁGINAS DO DIÁRIO DO

RIO DE JANEIRO: ORGULHO E PETULÂNCIA DE MOÇA RICA.

III.1 Expectativas em torno de uma literatura romântica e folhetinesca.

Rubrica corriqueira em qualquer periódico do século XIX, as ―Variedades‖

tratavam de todo e qualquer assunto julgado pertinente: o cotidiano da cidade; anedotas

cômicas; o lançamento de um livro; uma crítica política; entre outros. O texto que

destacaremos a seguir, assinado por Carlos Frontaura, e com ares de croniqueta, foi

publicado no Diário do Rio de Janeiro em maio de 1872, e tratava das desventuras

impostas àqueles que se propunham à árdua tarefa de fundar um veículo jornalístico no

século XIX. De antemão, o autor advertiria sobre os altos investimentos necessários, e a

completa incerteza dos vindouros lucros:

É opinião geral que o afortunado vivente que tem a propriedade de

uma folha, está a caminho de fazer fortuna, e que por fim sempre a

faz.

É possível que isso seja certo em outros países, mas entre nós não

passa de suposição.

Uma folha entre nós é uma especulação tão lucrativa como a de quem

se puser a vender libras esterlinas a dez tostões, com a diferença que

este não perderia senão dinheiro, e aquele perde dinheiro, saúde, fé,

paciência e outras coisas mais.108

Sublinhadas as desesperanças, o autor apontava o duo básico que comporia o

roteiro para o sucesso de uma nova folha: o aceno por boas intenções e a presença do

aporte literário. A partir daí, o primeiro número de um jornal deveria ser magistral e

indicar - ou forjar - a profissão de fé de sua equipe jornalística; ademais, a presença do

romance era expressamente recomendada, contudo, nos termos clássicos da forma

folhetinesca: com enredos acessíveis; cortes abruptos instigantes; protagonistas

sôfregas; ou, com todos os artifícios que seduziam a um público que se formava junto à

uma cultura literária concebida por entre as páginas da imprensa:

O primeiro número de qualquer folha é excelente. Além de uma

profissão de fé política, capaz de entusiasmar os reis magos de pedra,

que estão na praça do Oriente, uma gazetilha flamejante e inúmeras

notícias, ainda que sejam falsas. Principia-se a publicar um romance,

108

Carlos Frontaura. ―Variedades‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 07 de maio de 1872, nº124,

p.2.

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que promete ser muito interessante, e cujo primeiro folhetim termina

deste ou de outro modo parecido:

―Ao chegar ao alto da montanha, a valorosa donzela estendeu a vista

em volta, depois alçou os olhos para o céu, dobrou os joelhos, rezou

por um momento e voltou logo pelo mesmo caminho porque viera.

Já principiava a amanhecer; os pastores levavam ao campo os seus

rebanhos; os passarinhos saudavam o sol com essa linguagem que só

compreendem as almas privilegiadas, e as flores abriam ―gostosas‖ os

seus cálices e perfumavam a atmosfera com suavíssimo aroma.

A donzela parecia indiferente à alegria da natureza. Oh! Não é de

admirar, pois aquela pobre menina tinha sofrido muito, e com esse

instinto particular dos anjos da terra pressentia que ainda lhe ficava

muito para sofrer.

Continuar-se-á.‖

Será muita infelicidade que entre as 20.000 pessoas que lerem o

primeiro número do jornal, não apareçam 500 curiosos, que queiram

saber ―em que fica‖ a história, isto é, que doença tem a donzela e

porque dá tão cedo aqueles passeios até o alto do morro.109

Incorrendo numa desobediência propositada, não iremos lançar mão da

―profissão de fé‖ que deve ter sido publicada no exemplar inaugural do Diário do Rio

de Janeiro, com o possível intuito de propor os paradigmas de seu perfil editorial. Isto

porque, estamos diante de um dos jornais mais antigos da Corte, que circulou entre os

anos de 1821 e 1878 (com alguns breves intervalos), e que contou com diversos

editores-chefes, os quais, por sua vez, iriam conferir distintos ideários à folha em

constante transformação. Portanto, não há um perfil jornalístico que tipifique o referido

diário, todavia, há algumas características perenes que devem ser enfatizadas.

A mais previsível delas é a sua condição inédita de cotidianidade, ou seja, com

vistas à disseminação de informações úteis e breves, o Diário foi o primeiro jornal

fluminense publicado de segunda a segunda, e com a finalidade de tratar - de maneira

apartidária - de anúncios inerentes ao dia a dia da cidade do Rio de Janeiro.110

Inicialmente, nas quatro páginas que compunham a folha, podia-se acompanhar

anúncios diversos: sortimentos; compra e venda de produtos e víveres; paquetes a partir;

109

Idem. 110

De acordo com Laiz P. Marendino: ―[...] O jornal saía ao público até oito horas e meia da noite e, para

tanto, [...] aqueles que quisessem publicar anúncios ou notícias no jornal deveriam depositar seu texto ―na

Caixa que estará exposta ao público na Loja de Livros de Manoel Joaquim da Silva Porto‖; e o que "fosse

lícito" imprimir sairia divulgado, sem custo, em suas páginas. Nos primeiros meses, o jornal foi impresso

na Tipografia Régia, mas logo em seguida, em 1822, Meirelles [Zeferino Vito de Meirelles, o fundador

do periódico], abriu a sua própria empresa com o nome do periódico, ―Typographia do Diário do Rio de

Janeiro‖, uma das primeiras particulares a serem abertas no Brasil.‖ In: MARENDINO, Laiz Perrut. O

Diário do Rio de Janeiro e a imprensa brasileira do início do oitocentos (1808-1837). Dissertação

(Mestrado em História). Juiz de Fora: UFJF, 2016, p.46-47.

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leilões; anúncios oficiais do governo imperial (referentes a Marinha, Santa Casa, Banco

do Brasil); o aluguel de amas de leite; senhores reclamando seus escravos fugidos; etc.

De acordo com Nelson Werneck Sodré111, o reconhecido apelo publicitário

presente ao jornal, seria o fator que teria lhe rendido o apelido de ―Diário da Manteiga‖

à época, numa suposta referência aos inúmeros anúncios do tal produto nas páginas da

folha. Em estudo recente, Laiz Perrut Marendino112 adverte que a presença do produto

em específico não teria sido tão massiva, no entanto, a associação da folha à ideia de

barateza ou de acessibilidade, seria, indubitavelmente, uma afirmação plausível.

De acordo com Marendino, além de ser conhecido como o ―Diário da

Manteiga‖, o periódico também desfrutava da alcunha de ―Diário do Vintém‖, e isto por

causa de seu convidativo preço: na época de sua fundação, uma edição avulsa do Diário

custava em torno de 40 réis, e a assinatura mensal cerca de 640 réis. Estabelecendo uma

breve comparação com outros jornais similares do período, o Aurora Fluminense, em

1827, custava 80 réis (a folha avulsa), e a assinatura de quatro meses do Correio

Mercantil, em 1830, era ofertada por 4$000 réis. Barato e acessível, para Myriam Paula

Barbosa Pires113, seria possível afirmar-se que o Diário do Rio de Janeiro teria exercido

papel fundamental no fomento de uma noção de ―esfera pública‖, ou de ―opinião

pública‖, ainda incipiente em tal contexto histórico:

Ao contrário do que pregou a historiografia, seu redator, Zeferino Vito

de Meirelles, através do Diário do Rio de Janeiro, criou um meio no

qual apresentava e discutia preocupações sociais mais amplas, em que

o público leitor, colaborador, anunciante, interagia, participando da

construção de uma nova sociedade, imersa nos rumos da

modernização.114

Até aqui, portanto, podemos afirmar uma relação de proximidade envolvendo o

veículo jornalístico e o público leitor. Propondo um salto no tempo, e recorrendo aos

estudos de Ilana Heineberg115, notamos que a partir da década de 1840, o jornal passaria

por uma guinada editorial e, seguindo o exemplo de folhas estrangeiras (especialmente

111

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. (4ª edição). Rio de Janeiro: Mauad, 1999,

p.51. 112

MARENDINO, L.P., Op.cit., 2016, p.52. 113

PIRES, Myriam Paula Barbosa. Impressão, sociabilidades e poder: três faces da tipografia do Diário

na Corte do Rio de Janeiro (1821 - 1831). Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: UERJ,

2008. 114

PIRES, Myriam P. B.. Ibidem, 2008, p.67. 115

HEINEBERG, I. La suite au prochain numéro: formation du roman-feuilleton brésilien à partir des

quotidiens Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro et Correio Mercantil (1839-1870). Paris:

Université de la Sorbonne Nouvelle-Paris III, 2004.

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das francesas), terminaria por aderir à moda da publicação dos romances-folhetins,

possivelmente, com a intenção de arrebatar um novo perfil de leitor(a). Posteriormente,

em 1855, em meio a uma grave crise financeira, o jornal seria comprado por um grupo

de amigos no qual José de Alencar estaria incluído, sendo que, no ano seguinte, o

literato iria se tornar o editor-chefe da publicação. A partir de então, a presença da

literatura no jornal iria se tornar ainda mais constante e, além dos folhetins, o Diário do

Rio de Janeiro também se tornaria espaço legítimo para a publicação de crônicas,

contos e críticas literárias.

Vale lembrar que, entre outros nomes, o próprio Alencar publicou vários de seus

romances no periódico116; ademais, ao longo da década de 1860, e sob o comando dos

editores Saldanha Marinho e Quintino Bocaiúva, seria possível conferir os escritos de

Machado de Assis a estampar as páginas do periódico.117 Enfim, recorrendo aos citados

trabalhos de pesquisa, procuramos demonstrar algumas referências em torno da

redefinição de rumos observados num jornal que surgiria com um projeto estritamente

comercial, e que ao longo das décadas, no intuito de firmar-se enquanto espaço

midiático propriamente dito, optaria por reservar espaço cativo aos conteúdos literários.

Ao final da década de 1860 e início da década de 1870, seria possível observar-

se um jornal com um olhar gentil ou com discurso claramente alinhado à prosa de teor

romântico; e, em relação à crítica, que se tornava cada vez mais presente no cotidiano

do veículo, a tônica não seria diferente. Nas páginas do Diário do Rio de Janeiro,

podemos notar uma espécie de expectativa por uma literatura que se adequasse àquilo

que chamaremos de uma estética romântico-folhetinesca. E vale informar que a

recepção crítica ou o principal debate suscitado por Sonhos d´ouro, teve por estopim um

texto publicado pelo pseudônimo Alceste na folha, sendo este prontamente rebatido por

José de Alencar no mesmo espaço. No próximo item, buscaremos esclarecer que

116

De acordo com SODRÉ, Nelson W.: ―No Diário do Rio de Janeiro, José de Alencar constituiria

exemplo marcante da conjugação da literatura com a imprensa. Ele mesmo depõe: ‗Em fins de 1856,

achei-me redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro. Ao findar o ano, houve ideia de oferecer aos

assinantes da folha um mimo de festa. Saiu um romance, meu primeiro livro, se tal nome cabe a um

folheto de 60 páginas. Escrevi Cinco Minutos em meia dúzia de folhetins, que iam saindo na folha dia por

dia, e que foram depois tirados em avulso sem nome do autor.‖ (In.: SODRÉ, Nelson Werneck. História

da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.191). Fora isso, no mesmo ano de

1857, o autor também publicaria no Diário do Rio de Janeiro os romances A Viuvinha e O Guarani. 117

Machado de Assis redigiu as seguintes seções no jornal: Revista Dramática; Comentários da Semana;

Conversas Hebdomadárias; Ao Acaso; Semana Literária e Cartas Fluminenses. Para subscrever suas

peças, usou, além da assinatura e das iniciais, os pseudônimos Gil; Job e Platão. Cf.:

http://www.machadodeassis.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/start55eb.html?UserActiveTemplate=

machadodeassis&from_info_index=1&infoid=88&sid=115, [Acesso em junho/2018].

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Alceste falava de um lugar específico, no qual vários discursos - estéticos e jornalísticos

- se entrecruzavam.

III. 2 Alceste, colunista do Diário do Rio de Janeiro.

Sendo assim, e de antemão, devemos admitir que a mais previsível das perguntas

nos soa de maneira intimidadora: Quem seria Alceste? Lamentando os limites de nosso

trabalho de pesquisa, reconhecemos que não temos uma resposta direta e pronta. Na

verdade, pouco sabemos sobre a figura por trás da referência mitológica. Nosso Alceste

geralmente escrevia do Flamengo118; se interessava por questões referentes à política

local da cidade do Rio de Janeiro119; e, numa manifestação rara, sinalizou o seu apoio à

Lei de 1871, esboçando, inclusive, a sua autoimagem através da seguinte máxima: ―sou

um emancipador de velha data.‖.120 Nesse caso, seria ele um dos tantos desafetos do

deputado José de Alencar? É possível. Tal persona, que não era estranha ao mundo das

Letras121, se faria presente nos rodapés das primeiras páginas do jornal a partir de 9 de

julho de 1872 (nº185), depois que fora convidado para ocupar o lugar que pertencera ao

colunista Luiz Guimarães Júnior. Isto posto, é importante sublinhar: Alceste recebia a

batuta de uma figura que teria gozado de grande sucesso no jornal, e que além de

associar-se a uma militância intelectual em torno de um chamado cânone literário

118

Abaixo do título da série, sempre seguia a identificação geográfica ―Flamengo‖ junto da data referente

à escrita do texto. 119

Eram recorrentes as referências à construção do matadouro municipal, que cuidaria do abate dos

animais e do armazenamento das chamadas ―carnes verdes‖. Ademais, burocracias, despachos da

alfândega e questões sobre transportes também eram constantemente citados por Alceste: ―[...] Estas

caravanas do jornalismo é que cansam as mais fortes vontades, e, portanto, muito mais o estro

empalidecido e descrente do seu velho amigo. Vejo diante de mim uma enorme papelada: planos de

matadouro por um lado, mapas de mananciais de água por outro, traçados de estrada de ferro, documentos

sobre docas, queixas acerca da alfândega, petições da marinha moribunda... Nem mesmo posso enumerar

esta montanha de materiais.‖ In: Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - I‖.

Folhetim do Diário do Rio. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de julho de 1872, nº 185, p.1. 120

―[...] Sabe que sou um emancipador de velha data; portanto, não posso deixar de aplaudir um pouco ao

primeiro ministro de 1871.‖ In: Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - VI‖.

Folhetim do Diário do Rio. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1872, nº 220, p.1. 121

No primeiro parágrafo da ―Carta a Philinto – I‖, Alceste diria: ―Pede-me o meu caro amigo, que volte

às lides literárias. Mostra-me a imagem da pátria abatida, roxeados os pulsos pelos grilhões que intenta

apertar-lhe uma legião de pigmeus, e os passos embaraçados pelos lodaçais fétidos que a circundam. Ah!

Meu velho companheiro, se tivesse diante de si o mar imenso que contemplo do meu mirante, como havia

de ver com outros olhos essa cena de comédia a que assistimos.‖ In: Alceste (pseudônimo desconhecido).

―CARTAS A PHILINTO - I‖. Folhetim do Diário do Rio. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de

julho de 1872, nº 185, p.1.

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pátrio122, também seria reconhecido por arrebatar ao público feminino. Assim, na

despedida de Luiz Guimarães Jr. do veículo jornalístico, possivelmente, os próprios

editores da folha, sinalizariam com o seguinte trecho:

[...] Os que ficam porém, continuando de viver, cercados da mesma

monotonia, esses conhecem o que seja a saudade.

A este tempo, a leitora, exigente contigo, que sempre lhe trazia um

morango, uma flor, um sorriso, um galanteio, uma nova leitora,

embora às vezes se arrufasse, por não lhes dares a realeza neste baile

ou naquele concerto, mas que não dava por bem empregado o

domingo em que não lia-te os pensamentos e as imagens, procura

espairecer a saudade, que punge, abre talvez o variado Musset, mas

com tal infelicidade para ela e tal acerto para teu folhetim, que

pousaram-lhes os olhos cintilantes justamente na sentida estrofe que

assim termina: ―En te perdant, je sens que je t´aimais.‖.123

Na sua ―Carta a Philinto – V‖124, datada de 6 de agosto de 1872, Alceste

reconheceria que teria herdado tal segmento de público do colunista anterior, e num

breve diálogo com a leitora, trataria de interceder pela boa recepção de uma artista

francesa, uma cantora, que em breve se apresentaria no Teatro Pedro II.

Acompanhemos:

Se o pedido de um velho de cabelos brancos, que já esqueceu a língua

dos galanteios, pode valer no conceito das belas fluminenses, recebam

no seu tocador este bilhetinho do século passado e deem-lhe despacho

favorável com sua letra microscópica e adorada.125

A partir da leitura do excerto, podemos concluir que o autor não se utilizava de

uma argumentação crítica ou aprofundada para convencer suas leitoras do talento

122

Em sua derradeira publicação no jornal, Luiz Guimarães Jr. afirmava: ―[...] Nesse cantinho, porém, do

Diário, fica o meu coração em grande parte; as mais queridas esperanças de uns dias que não voltarão,

viajam para o passado! Dançaram aqui por um momento, e o folhetim, apesar de brincalhão e travesso,

teve muitas vezes de esconder como Cupido a cabeça dentro da concha flutuante e chorar ao som das

ondas implacáveis. O jornalismo brasileiro nada perde vendo afastar-se de suas fileiras um simples

trabalhador e abrir ligeiro espaço um combatente quase inerme. Ficam-lhe as suas glórias e as suas vestes

prontas e alertas ao pé da chama sagrada. Como os saudei outrora, saudarei hoje, amanhã e sempre os

nomes gloriosos de J. de Alencar, Octaviano, Macedo, Joaquim Serra, Machado de Assis, França, Carlos

Ferreira, Salvador de Mendonça, Bittencourt Sampaio, Pedro Luiz, Rodrigo Octavio e tantos outros

sustentáculos da imprensa e da literatura pátria.‖ In: Luiz Guimarães Jr. ―Folhetim do Diário do Rio.‖.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 21 de julho de 1872, nº 197, p.1. 123

(Sem assinatura). ―A Luiz Guimarães Junior.‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 21 de julho

de 1872, nº 197, p.2. 124

Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - V‖. Folhetim do Diário do Rio.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1872, nº 213, p.1. 125

Idem.

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musical de Mlle. Humbert, a artista francesa que estava por vir ao Brasil. Na verdade,

tudo poderia ser resumido em galanteria barata de um sujeito que, apesar da cortesia, se

julgava claramente superior às suas interlocutoras, e que supunha que a sua apreciação

por si só era motivo suficiente para arrastá-las ao teatro. Nosso folhetinista (a sessão

onde Alceste publicava chamava-se FOLHETIM DO DIÁRIO DO RIO), tinha

consciência de que dialogava com mulheres naquele espaço jornalístico, e sequer

disfarçava o desdém resignado em relação às supostas limitações associadas ao gênero

que, conforme sabemos, não era o alvo específico da folha.

Logo em seguida, na ―Carta a Philinto - VI‖126, o autor tocaria no tema da

educação feminina, advogando que ―o sexo fraco‖ precisava ser instruído para a

―felicidade do lar doméstico‖, e que deveria ser afastado das ―loucas aspirações de

luxo‖ e do ―ensino incompleto de artes de ostentação‖. Às tenras meninas, ele

recomendava ―a abnegação‖, o ―amor da vida íntima‖, e os afetos que tornavam a

mulher o ―doce anjo de consolação‖; sendo que, por consequência, não tardaria para

observarmos o espécime evoluído da chamada ―mãe patriótica‖. Seguindo tais

recomendações moralíssimas, evitar-se-ia o tipo feminino cético, ―enfeitado de

brilhantes e sedas, mas com o coração cheio de cinzas e destroços.‖.127

Assim, e antes de adentrarmos ao confronto entre Alceste e José de Alencar

sobre o romance Sonhos d´ouro propriamente dito, faz-se necessário que o ―terreno‖ da

querela seja devidamente preparado. Dessa forma, esclarecemos que o espaço

jornalístico ocupado por Alceste, a coluna FOLHETIM DO DIÁRIO DO RIO, entre

outros matizes estéticos, tinha por tradição tratar de temáticas associadas à estética

romântica, daí a recomendação de que as leitoras órfãs de Luiz Guimarães Júnior, se

resignassem com Alfred de Musset, ícone do romantismo francês. Enfatizamos ainda a

convicção demonstrada pelos colunistas de que o rodapé do Diário também fosse lugar

propício para o exercício de um tipo indireto de intervenção feminina, no sentido de que

126

Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - VI‖. Folhetim do Diário do Rio.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1872, nº 220, p.1. 127

Segue o trecho completo: ―A educação moral das meninas dará ao coração terno do sexo fraco os

germens da futura felicidade do lar doméstico. Em vez de loucas aspirações de luxo, de ensino

incompleto de artes de ostentação, do desprezo das artes domésticas e modestas em classes que sacrificam

a vaidade à mais segura felicidade de suas filhas, obtereis pela educação moral, a abnegação, o amor da

vida íntima, o cultivo dos diferentes afetos, que tornam a mulher o doce anjo da consolação. Obtereis

mais. Surgirão mães patrióticas, ensinando a seus filhos o sacrifício pela causa pública, o amor à grandeza

nacional, a crença nas recompensas morais! Em vez de ceticismo, enfeitados de brilhantes e sedas, mas

com coração cheio de cinzas e destroços, tereis na presidência do lar doméstico a virtude modesta, que se

enfeita com flores naturais e resume toda a felicidade no amor de seus pais, do esposo, e dos filhos

inocentes e mimosos.‖ In: Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - VI‖. Folhetim

do Diário do Rio. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1872, nº 220, p.1.

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tal espaço midiático era articulado - ainda que não unicamente - a partir do diálogo com

as mulheres, muito embora, tenhamos consciência de que Alceste emergia como o

principal detentor da palavra escrita.

Retomando ainda a ―Carta a Philinto – VI‖, não são necessários grandes esforços

para notar-se a postura conservadora de Alceste quanto ao lugar que deveria ser

almejado pela mulher na sociedade: filha, esposa e mãe. Ou seja, atribuições que

restringissem tais leitoras ao espaço doméstico e ao seio familiar, e que remediassem

um espectro feminino cético, dissimulado e afeito aos luxos. Possivelmente, seria este

um perfil nocivo recorrente entre àquelas que tinham acesso a uma literatura de teor

menos idealizado? Na verdade, tal temor parecia estar implícito ao raciocínio delineado

por Alceste, este que, em vários de seus textos, demonstrou certa parcimônia em relação

ao poder normativo que, de seu ponto de vista, poderia/deveria ser exercido pelas artes.

Na ―Carta a Philinto – IV‖128, Alceste ainda homenageava o seu predecessor,

colocando-o ao lado de José de Alencar e Machado de Assis, todos ex-colunistas do

FOLHETIM, e vistos como representantes de uma ―verdadeira literatura‖,

compreendida de maneira avessa a uma ―arte degenerada‖, que se disseminava por entre

as produções teatrais da época, especialmente entre aquelas que tinham inspiração

francesa.129 Num momento anterior, na ―Carta a Philinto – III‖130, Alceste já teria

formulado assertivas semelhantes, desqualificando concertos, operetas, e outros tantos

sucessos populares, tidos por imorais e desprovidos de conteúdos instrutivos. Mas, ao

fim de tudo, ou separando-se o joio do trigo, a obra de Alencar seguiria incólume aos

olhos de nosso colunista:

128

Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - IV‖. Folhetim do Diário do Rio.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 30 de julho de 1872, nº 206, p.1. 129

Segue o trecho: ―[...] Luiz Guimarães é também um espírito de combate; sabe entrelaçar em seus

bordados mimosos a sátira política; mas é tão branda a picada, e tão natural a graça, que o ferido é o

primeiro a rir-se a apertar a mão do contendor. Estas colunas ilustradas por Alencar, por Machado de

Assis, por Muzzio, por tantos outros espíritos eminentes, guardarão eterna saudade de seu último escritor!

[...] Deixa-nos a verdadeira literatura, e chegam novos exploradores da arte degenerada. Não estava a

Phenix, o Cassino e velho S. Pedro; vamos ter nova cena de funâmbulos no Ginásio. Explore-se mais esta

veia da desmoralização popular. Explore-se o riso boçal, o riso produzido por visagens e trejeitos, o

entusiasmo causado por vestimentas e exibições indecentes e condene-se a arte ao exílio! Não haverá no

jornalismo independente, naquele que não mede os seus juízos pelos rendimentos do balcão, ou pelos

interesses comerciais, um resto de bom senso e amor à educação pública, para repelir estas importações

da França dos últimos tempos do Império? Deem-nos antes Ruy Blas ou Ernani, o drama da democracia,

ou o da honra aristocrática; no meio da luta dos [ilegível], renascerá o gosto; mas comédias de

funâmbulos, exibições de corpos nus, de celebridades do século passado, realmente é insultar a nossa

civilização!‖ In: Idem. 130

Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - III‖. Folhetim do Diário do Rio.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 23 de julho de 1872, nº 199, p.1.

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[...] Diga-me, o meu nobre amigo, se acredita na política, nas finanças,

na literatura ou na arte?

A arte que morre de fome, quando invoca Alfredo de Musset ou

Shakespeare, e vê correr o público ofegante, quando lhe oferece a

―Pera de Satanás‖ ou um ―Fausto‖, embora este seja tão caricato, que

nem ao menos mereça as honras de ridículo.

A arte que vê desertos os concertos de Côrtes ou Miguel Angelo, as

sublimes criações de Beethoven e Mozart ou a interpretação inspirada

do ―Eurico‖, e é festejada e coberta de diamantes, quando insulta a

moral e a polícia nas saturnais sem nome do Cassino.

A literatura, esquecida em Alencar e Thomaz Ribeiro, esquecida nas

mais nobres personificações do ideal e da consciência, e enriquecida

nos especuladores obscuros e enfadonhos da pena jornalística.131

A figura de Alencar era insistentemente referenciada como baluarte de uma

literatura clássica, bem-acabada, e de valor moral inestimável. Imerso no discurso

oficial do jornal, Alceste alimentava uma expectativa romântica, elevada e patriótica

pelas produções do autor cearense. Não sabemos se Alceste ignorava, ou fingia não se

recordar de obras como As asas de um anjo (1858) ou Lucíola (1862), que já teriam

colocado o literato em maus lençóis.132 Em resumo, Alceste esperava que o literato

brasileiro nos brindasse com outras obras exemplares, do quilate de O Guarani (1857)

talvez, que trouxera a temática nacional à tona de maneira rebuscada, e sem apelos aos

refutáveis estratagemas popularescos.

Porém, Sonhos d´ouro não era O Guarani; aliás, o folhetim de 1872 era ―pluma

ao vento‖ quando e se comparado à gravidade heroica do folhetim de 1857. Ainda

assim, munido de muitos preconceitos, Alceste reservaria parte significativa de suas

atenções ao romance dourado na época de seu lançamento. E, na ―Carta a Philinto –

X‖133, datada de 9,10 de setembro de 1872, iríamos conferir os seguintes subtítulos: ―O

livro do Sr. Alencar‖; ―Não às nacionalidades‖; ―Tipos estrangeiros do romance‖;

―Espírito Antidemocrático‖; ―O Sr. Alencar historiador‖.

131

Idem. 132

Abordando a temática da prostituição em ambas as obras, José de Alencar teria trazido a lume

narrativas que se opunham, ou que desestabilizavam, os valores de uma moralidade associada ao período

oitocentista. Em relação à peça As Asas de um anjo (1858), a referência específica a um episódio

incestuoso, provocaria algumas polêmicas junto ao Conservatório Dramático, e a consequente proibição

de sua encenação no teatro. E, no caso do romance Lucíola (1862), além do retorno ao inflamável tema da

cortesã, tal narrativa resultaria numa famosa querela envolvendo o autor e o crítico Joaquim Nabuco, que

desqualificaria o romance, tratando-o como uma espécie de plágio malsucedido de A Dama das Camélias

(1848), de Alexandre Dumas. Cf. De Marco, Valéria. Op.cit, 1986; NASCENTES, Zama Caixeta.

―TEATRO E ROMANCE EM JOSÉ DE ALENCAR: As Asas de um Anjo e Lucíola.‖ Revista de Letras,

Curitiba, v. 06, nº 07, 2005, p.23-37. 133

Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO - X‖. Folhetim do Diário do Rio.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9,10 de setembro de 1872, nº 199, p.1.

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III. 3 A rejeição cativada por uma Guida “antirromântica”.

Alceste (pseudônimo desconhecido). ―CARTAS A PHILINTO – X‖. Folhetim do Diário do

Rio. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9,10 de setembro de 1872, nº 199, p.1.

Ciente das inter-relações entre o romance e o seu prefácio, Alceste dava início à

sua análise sublinhando o tom aguerrido presente à construção de ―Benção Paterna‖:

―No prólogo arrojou o autor tiros certeiros à parcialidade política, à escola estrangeira

de literatura e à indiferença da crítica.‖134. Conforme esclarecido, a contenda

envolvendo as Cartas a Cincinato, que provocaram a contrapartida ―Benção Paterna‖,

surgiu como um debate estritamente político, encabeçado inicialmente por um Feliciano

de Castilho provocador ao conservadorismo do deputado José de Alencar. Contudo, não

pretendemos nos ater a uma compreensão tão limitada de política. Ao rejeitar as

concepções estéticas de Franklin Távora, Sênio também se afastava de pressupostos

científicos aplicados à literatura, - e isto era consequência de uma escolha intelectual e

política. Declarar guerra a uma crítica malformada, alheia às dificuldades de um

mercado editorial dito incipiente, e que costumava desmerecer os sucessos de público

seria uma postura bastante politizada. Propor um projeto de literatura nacional, que

134

ALCESTE (pseudônimo desconhecido). ―Cartas a Philinto - X‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 9, 10 de setembro de 1872, nº 199, p.1.

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reconhecia a presença estrangeira (ou o ―espírito forasteiro‖135) em nossa cultura,

também deve ser compreendido como um ato de representatividade política.

Lembremos ainda que, além do prognóstico de que o romance Sonhos d´ouro

seria reconhecido pela leveza, ou pela pouca substância, o autor também havia previsto

uma recepção tonalizada por negativas suscitadas pelo teor estrangeiro presente à obra.

Em seu prólogo, Sênio se referia às expectativas de que a crítica apontaria o defeito da

ausência de um ―matiz brasileiro‖136 na composição do livro. Ante o arbítrio, a persona

já se prevenia:

[...] Desta luta entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira, são

reflexos Lucíola, Diva, a Pata da Gazela, e tu, livrinho, que aí vais

correr o mundo com o rótulo de Sonhos d´ouro.

Taxar estes livros de confeição estrangeira, é, relevam os críticos, não

conhecer a fisionomia da sociedade fluminense, que aí está a faceirar-

se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a algemia

universal, que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos

franceses, ingleses, italianos e agora também alemães.

Como se há de tirar a fotografia desta sociedade, sem lhe copiar as

feições? Querem os tais arqueólogos literários, que se deite sobre a

realidade uma crosta de classicismo, como se faz com os monumentos

e os quadros para dar-lhes o tom e o merecimento antigo? 137

A crítica de Alceste iria se desenvolver a partir das sugestões do pseudônimo de

Alencar. Por conseguinte, o tema do ―exclusivismo nacional‖ surgiria como um critério

relevante na avaliação da obra. E, para tanto, era proposto um breve exame do casal de

protagonistas, Guida e Ricardo. Alceste questionava se a jovem aristocrática e o rapaz

tão cheio de devaneios, seriam, de fato, tipos naturais de nossa sociedade, considerada

―franca e democrática.‖138. O argumento que Alceste utilizava para explicar o

deslocamento das personagens na cena brasileira oitocentista bebia na fonte inesgotável

do julgamento moral. No trecho, que tratava do casal e de outros vultos do romance, a

análise seguia acachapante:

135

SÊNIO (José de Alencar). Op. Cit., 1957 [1872], p.35. 136

―Quanto ao segundo defeito que te hão de notar, de ires um tanto desbotado do matiz brasileiro, sem

aquele picante sabor da terra: provém isso de uma completa ilusão dos críticos a respeito da literatura

nacional.‖. In: SÊNIO (José de Alencar). Op. Cit., 1957 [1872], p.33. 137

SÊNIO (José de Alencar). Op. Cit., 1957 [1872], p.35-36. 138

―Entretanto, permita-nos o erudito escritor que perguntemos à crítica filosófica, se Guida, a jovem

caprichosa e aristocrática, se Ricardo, o homem dos devaneios e do orgulho intelectual, são tipos naturais

de nossa sociedade íntima, tão franca e democrática?‖. ALCESTE (pseudônimo desconhecido). ―Cartas a

Philinto - X‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9, 10 de setembro de 1872, nº 199, p.1.

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[...] serão estes e outros personagens do seu romance individualidades

morais que ofereçam boa escola ao povo e o encarreirem como os

exemplos da prodigalidade aristocrática, da esmola desdenhosa, da

frieza dos laços de família no bom caminho das virtudes cívicas e de

emancipação política? 139

Com protagonistas de caráter duvidoso e uma trama repleta de estrangeirismos,

Sonhos d´ouro ressoava por seu conteúdo pouco exemplar e, portanto, distanciava-se

das funções do romance postuladas por tantos críticos da época, como Franklin Távora,

do qual tratamos ainda há pouco140. Apesar das amenidades anunciadas pelo título,

Alceste não titubeava ao taxar a narrativa como ―um verdadeiro escrito de polêmica.‖141.

O livrinho de Sênio não retratava a sociedade íntima daqueles tempos com base numa

idealização moralizante, por isso, de acordo com Alceste, como romancista, José de

Alencar revelava-se um péssimo historiador. Ou seja, Alencar falhava como romancista,

por não educar pela emoção; e também falhava como historiador, pois tratava de um

cotidiano prosaico, que fugia às prescrições de uma História compreendida mestra da

vida:

Desculpe-nos o ilustre escritor. Admiramos a sua eloquência e energia

na tribuna, foram para nós modelos os seus escritos de polêmica,

aplaudimos com entusiasmo as suas primeiras criações ideais, mas

tememos o seu influxo como romancista de ideias aristocráticos.

Parece-nos que a sua pena viril e severa estava talhada para a história

filosófica do país, não para a história indigesta e convencional, que

por aí desafia a verdade e não passa do[e] compilação pretensiosa,

mas a história séria que analisando os erros do passado, dá lições às

gerações novas. Aí não haverá o perigo dos tipos ideais e o talento do

escritor achará campo mais desafogado e mais digno de sua energia

moral.142

139

Idem. 140

De acordo com Valéria Augusti, até meados do século XIX, a crítica literária se debruçou sobre o

romance atribuindo-lhe um destino popular e uma função instrutiva e moralizadora. A partir da década de

1860, apesar do critério moralizador não se arrefecer, também seria incorporada a questão da

nacionalidade como crivo para avaliação das obras. A trajetória demonstrava um processo de valorização

do gênero que, em seus inícios, teria sido desqualificado como produção literária e, posteriormente, seria

incorporado a um projeto político mais amplo, e que forjava uma identidade brasileira. Cf.: AUGUSTI,

Valéria. Trajetórias de consagração: discursos da crítica sobre o romance no Brasil oitocentista. Tese

(Doutorado em Teoria e História Literária). Campinas: IEL/UNICAMP, 2006. 141

―Os Sonhos d´ouro do Sr. Conselheiro José de Alencar, apesar de sua aparência de romance, são um

verdadeiro escrito de polêmica.‖. In: ALCESTE (pseudônimo desconhecido). ―Cartas a Philinto - X‖.

Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9, 10 de setembro de 1872, nº 199, p.1. 142

Idem.

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63

Passados apenas dois dias do primeiro texto de Alceste, nas mesmas páginas do

Diário do Rio de Janeiro, acompanharíamos a réplica de Sênio.143 De antemão,

sublinhamos a importância do texto, informando que o escrito passou a ser incorporado

às subsequentes edições do livro, como uma proposta de posfácio. Portanto, estamos

diante de um debate que saiu das páginas efêmeras da imprensa e fundiu-se à recepção

duradoura do livro.

Satisfeito com a contenda144, Sênio retomava os exatos pontos elencados pelo

crítico. Em primeiro lugar, o autor esclarecia que seus personagens não eram

concebidos sob a ótica da intimidade.145 A trama tratava de relações publicizadas,

ocorridas à luz do dia e, muitas vezes, no cotidiano das ruas. Logo em seguida, Sênio

questionava a proposta de análise da personagem Guida: ―Não há capricho no Brasil?‖.

Por que razão, nossa sociedade, ―mundana ou íntima‖, não apresentaria o tipo de uma

moça caprichosa e aristocrática?146 E, concluindo o trecho, a persona atestava que o

espírito aristocrático de Guida tinha lá as suas especificidades, pois não provinha dos

arcaísmos da tradição, mas sim do tóxico inebriante do dinheiro147:

Também será deserdada de toda superioridade essa raça brasileira, a

ponto de não sentirem, os espíritos elevados quaisquer assomos da

aristocracia natural que não vem da linhagem, mas de alguma

proeminência social, chame-se esta dinheiro, talento ou posição? 148

Nossa protagonista era filha de banqueiro. Não carregava a linhagem de um

sobrenome pomposo, tampouco a ilustração e inexpressão de um bibelô feminil. Algo

do traço brasileiro - e periférico - de Guida revelava-se em sua necessidade de imitação

dos hábitos europeus: nas roupas de cachemira, no uso de luvas, no costume de andar

acompanhada de uma governanta e de um criado estrangeiros. O mesmo traço também

se revelava numa domesticidade tonalizada pelos arranjos da casa e pelo controle da

143

SÊNIO. (José de Alencar). ―Os sonhos de ouro‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 12 de

setembro de 1872. 144

―A mim deleitam-me os certames literários.‖ SÊNIO. (José de Alencar). ―Os sonhos de ouro‖. Diário

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1872. 145

―Antes de tudo a ninguém disse o autor que ia esboçar os seus personagens pelo prisma da vida íntima.

Bem ao contrário os apresenta ele a maior parte das vezes fora da intimidade da família, em passeio ou na

convivência de pessoas estranhas.‖. Idem. 146

―Por que razão não apresentará nossa sociedade, a mundana ou a íntima, o tipo de uma menina

caprichosa e aristocrática? Não há capricho no Brasil? Aqui as rosas são, como dizia Milton das do Éden,

sem espinhos (without thorn)?‖. In: Idem. 147

―É indispensável habituar um homem desde criança a lidar com esse tóxico perigoso, que se chama

dinheiro; do contrário corre o inexperiente o risco de embriagar-se com ele.‖. In: Idem. 148

Idem.

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64

escravaria149. Enfim, a riquíssima filha do capitalista também era sinhá e, na ótica de

Sênio, tal combinação não denotava nenhum tipo de contradição. Isto posto, o capricho

apresentava-se como uma forma de diferenciação, especialmente no espaço público,

onde Guida representava uma elegância e altivez que não faziam parte de seu dia a dia

no espaço doméstico. E, nesse processo de autoafirmação social, alguns excessos

faziam-se necessários:

Desconhece a vida fluminense quem negar a existência do que se

chama entre nós a ―alta sociedade‖, embora sem o esplendor do grand

monde em Paris e da high life em Londres.

Se o ilustrado crítico chegasse à janela da sua tipografia em um dia de

festa, veria passar-lhe diante dos olhos não uma, senão muitas moças

mais caprichosas e aristocráticas do que a Guida.

[...] Talvez que o severo crítico sentisse o ressaibo de estrangeirismo

no fato de trazer Guida em sua carteira uma nota de cinquenta mil-réis

para fazer com ela uma esmola disfarçada por uma travessura.

Se ainda não desapareceu em todas as zonas da sociedade fluminense

o tempo do ―papai me dá um vintém‖, não é menos certo que um

melhor princípio de educação doméstica já condenou aquela tacanha e

mesquinha inquisição familiar, que excedia-se em preparar a massa

dos hipócritas, dos avaros e dos perdulários.

[...] Que resta da inculcada aristocracia de Guida?

Uns desperdícios feitos pela moça, que dava chocolate a comer ao seu

cavalo e mandava-o lavar com vinho em vez de aguardente.150

Da afetação de Guida ao anseio de ascensão de Ricardo. O jovem rapaz, de

origem humilde e confessos desejos de elevação social, era fascinado pelo universo de

excessos por onde Guida transitava. Mas Ricardo não era um sonhador. Retomando o

termo utilizado por Alceste, Sênio advogava em defesa de seu personagem: O bacharel

não era um ―homem de devaneios‖, pelo contrário, Ricardo era um homem prático, de

interesses positivos, e ciente dos desafios que lhe eram reservados enquanto chefe de

uma família numerosa e paupérrima, que o via como único arrimo.151

149

―Em um país onde tanto se esbanja com extravagâncias, onde homens sérios queimam centenas de

contos em baboseiras, não se concebe que a filha de um banqueiro pudesse ter quejando capricho? Será

necessário ir às sociedades de velha fidalguia para encontrar exemplos dessas dissipações? Ao contrário,

o traço brasileiro está aí se revelando. Desses caprichos não se lembraria Guida se, apesar de rica, não se

ocupasse com os arranjos da casa e não tivesse as chaves da dispensa.‖. Idem. 150

Idem. 151

―Longe de ser o ―homem dos devaneios‖, Ricardo é o homem prático, preocupado dos interesses

positivos da vida, compenetrado de sua grave responsabilidade como chefe de uma família não pequena e

paupérrima que tem nele o único arrimo. Professa a advocacia, donde espera tirar recursos; luta com uma

corajosa tenacidade contra as dificuldades do tirocínio. Nas horas de lazer não faz verso, desenha, como

eu costumo fazer às vezes, à toa e por desfastio, sem nunca ter aprendido; e confesso que esses grosseiros

empastes me divertem.‖. In: Idem.

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65

Mais uma vez, Sênio insistia: não estávamos diante de tipos estrangeirados.

Aliás, não estávamos diante de tipos. Guida e Ricardo eram caracteres formados pelas

nossas condições sociais e idiossincrasias152, e carregavam consigo os valores de nossa

sociedade de fim de século que, para o autor-personagem, poderia ser caracterizada pelo

afrouxamento das hierarquias de classe. Por conseguinte, e retomando o julgamento de

Alceste, o casal não estaria deslocado nesse cenário brasileiro, dito ―franco e

democrático‖ que, em teoria, admitiria que todos - independentemente da origem -

pudessem almejar um lugar ao sol:

Tachando as duas personagens principais de estrangeiras, deu a

entender que destoavam da nossa ―sociedade franca e democrática‖.

Mas não será franca e democrática a sociedade onde se passam as

cenas do romance? Onde dois moços pobres e desconhecidos são

convidados a jantar, logo depois de rápido conhecimento, feito pela

manhã em um encontro? Onde a fidalguia é representada por titulares

de carregação, como um barão que foi tropeiro, um visconde que foi

belchior, e um conselheiro que tem casa de consignações? 153

Por fim, Sênio registrava uma última lição: ―A vida é um banquete, onde nem

todos são convivas, como disse com lúgubre ironia o infeliz Gilbert; porém muitos

ficam à porta.‖154. Nosso bacharel ficaria à porta, à espreita, e na primeira oportunidade

entraria, e se acomodaria à mesa - fitando a cabeceira dela, talvez. Por trás de Sênio,

José de Alencar lançava a sua última cartada, entretanto, Alceste ainda não se daria por

vencido, e a derradeira tréplica já estava a caminho.

Na ―Carta a Philinto – XII‖155, datada de 24 de setembro de 1872, o crítico

demonstrava toda a sua insatisfação em relação aos contra-argumentos propostos por

Sênio. A respeito de Guida, Alceste compreendia que o autor havia insinuado que ele

não era capaz de enxergar a possibilidade de que o país fosse adiantado o suficiente para

admitir a existência de tal perfil.156 Ou seja, ironicamente, o sujeito senil teria taxado o

152

―Nem Guida, nem Ricardo são tipos, mas caracteres formados pelas nossas condições sociais,

idiossincrasias, como outras que aí estão se reproduzindo ao infinito, sob a influência de um concurso

qualquer de circunstâncias. A diferença entre um tipo e um caráter não careço de a determinar, pois não a

ignora o ilustrado crítico. O tipo é moral; o caráter é psicológico. Este só contraste basta: dá-nos ela outra

importante aferição. O tipo forma-se exteriormente pelo molde social; o caráter é uma criação

espontânea, que se produz internamente pelas modalidades da consciência.‖. Idem. 153

Idem. 154

(Grifo nosso). Idem. 155

ALCESTE (pseudônimo desconhecido). ―Cartas a Philinto - XII‖. Folhetim do Diário do Rio. Diário

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1872, nº 260, p.1. 156

―A propósito vem também o tipo de Guida, que Sênio quis aclimatar em nossa sociedade, quase

acusando-me de que não achasse o país bastante adiantado para admitir a sua existência entre nós.‖. In:

Idem.

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66

seu interlocutor de anacrônico. E quase que precariamente, Alceste tentava contestar as

palavras do romancista, retrucando que os exemplos de excentricidade de Guida não

encontravam respaldo em nossos modelos femininos de aristocracia.157

Alceste continuava a insistir na inverossimilhança de Guida através da tese

moral. A personagem não apresentaria a elevada educação das filhas das famílias

aristocráticas, nem mesmo daquelas erigidas pelo trabalho. O problema não era a

origem de Guida, mas, referindo-se à correção de Sênio (tipo x caractere/caráter), o

crítico dizia que o problema era o (mau-)caráter da moça. Guida não preservava os

valores e a ―santidade do lar doméstico‖158: se enamorava de um sujeito estranho ao seu

círculo social; cometia insanidades; saía a cavalo, desvairadamente, à procura do tal

namorado e ordenava que o levassem até a casa de seus pais...159 Enfim, a rapariga

esbanjava deselegância, e não confluía com os exemplos colhidos na realidade esboçada

por Alceste: ―A mulher jovem peca entre nós pelo contrário. A isenção, o recato e a

dificuldade das primeiras afeições caracterizam os seus anos da primeira mocidade.‖.160

O suposto excesso de liberdades experienciado pela personagem também se

daria mediante a temática do casamento. Reproduzindo as palavras do pai de Guida, o

Sr. Soares, Alceste transcrevia um trecho específico do romance, acompanhemos:

- Nesta matéria de casamento, meu caro doutor, eu sou a coroa, a

Guida é o parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-

me à sanção ou ao veto. Assim o pretendente, quero dizer, o ministro,

se quiser orçamento, deve usar de toda a sua eloquência no parlamento

para derrotar a oposição.161

Como sabemos, o sistema parlamentarista caracteriza-se por uma

representatividade figurativa do monarca, e maior poder de arbítrio das câmaras. Ou

seja, Guida podia flertar com seus pretendentes, pois lhe era concedido o direito da

157

―O próprio autor dos Sonhos d´ouro encarregou-se de enumerar alguns dos atos da caprichosa donzela,

que mostravam não haver por enquanto nesta terra modelos de tão aristocrática prodigalidade e

excentricidade de maneiras.‖. In: Idem. 158

―[...] Realmente, se as nossas filhas de família tivessem usualmente desses ―caprichos elegantes‖ os

seus pais comendadores ou simples cidadãos haviam-se de ver em inúmeras dificuldades para conservar a

santidade do lar doméstico!‖. In: Idem. 159

―Quanto aos verdadeiros pontos do caráter de Guida, permita-me o ilustre crítico que os ache bastante

repreensíveis. Que imaginação portentosa não é a de uma moça, que se enamora de um negligente mortal,

porque o vê em posição assaz ridícula, a colher umas flores bonitas pelas devesas da montanha? Que

espírito bem educado e digno de apresentar-se por modelo às meninas elegantes, uma moça não perde

vasa de ir a cavalo em procura do namorado incógnito e à força ordena aos seus requestadores, que o

tragam à casa de seus pais?!‖ In: Idem. 160

Idem. 161

SÊNIO (José de Alencar). ―Benção Paterna‖. Sonhos d´ouro. (4ª edição). Rio de Janeiro: José

Olympio, 1957 [1872], p.133.

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dubitação e do voto. Aos mancebos, os ministros, eram necessários certos esforços de

convencimento. E, por último, quando tudo já estivesse praticamente decidido, restava o

detalhe da sanção paterna. No cenário oitocentista, quando o casamento era reconhecido

como um acordo de cavalheiros, - pais e noivos que protagonizavam parcerias

vantajosas para suas famílias162 - configurava-se como um disparate a criação de uma

mulher tão influente. Por sinal, era esse o tom sentencioso de Alceste, ainda que

disfarçado pela advertência da desilusão amorosa:

Além de algumas impropriedades da analogia, é esta figura talvez

muito aceitável como alusão política, mas há de achar pouco apoio

entre os moralistas previdentes. Deixar discutir por vários

pretendentes o afeto no coração da filha, para depois do

convencimento, e da final proposta, espedaçar a afeição da infeliz, em

uma rejeição possível, é realmente correr risco ilimitado!163

O crítico literário ainda citaria os outros pretendentes da mocinha mimada: o

pretensioso Nogueira, o interesseiro Bastos, o fútil Guimarães. E, entre tantos

aduladores, a ―bela escrava de ouro‖ escolheria o ardiloso Ricardo, em que Sênio teria

requintado os caprichos da vaidade, e cujo ideal também era o dinheiro. Por isso, de

acordo com Alceste, o principal defeito de Sonhos d´ouro - ou o seu lado mais

―antidemocrático‖ - seria o da ―divinização do orgulho‖. E praticamente todos os

personagens se perderiam nessa falha, que seria o padrão comum da obra. Nessa

perspectiva, o crítico acusava Sênio de ter criado um panteão de contraexemplos sem

abnegá-los ao fim da narrativa. Novamente a desqualificação do romance pautava-se

pelo critério da (i)moralidade, e pela ausência de um intuito pedagógico visto como

inerente ao gênero:

Se procuramos a compensação dos caracteres e tipos de Guida e

Soares nos outros personagens do romance, encontramos as mesmas

qualidades de egoísmo e vaidade. Em Nogueira a vaidade do talento,

em Bastos a vaidade do dinheiro, em Guimarães a vaidade da

garrulice e da elegância fútil. Todos estes conquistadores de esporas

douradas e luneta com imensos reflexos da personalidade interna, vão

à demanda do dote, como quem anda em ajustes de uma compra

difícil e para a qual escasseiam meios. Nem o menor vislumbre de

afeto! A bela escrava de ouro há de pertencer ao mais ardiloso ou ao

162

Cf.: PEREIRA, Cilene Margarete. Jogos e cenas do casamento: estudos das personagens e do

narrador machadianos em Contos fluminenses e Histórias da meia noite. Curitiba: Appris: Prismas,

2012. 163

ALCESTE (pseudônimo desconhecido). ―Cartas a Philinto - XII‖. Folhetim do Diário do Rio. Diário

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1872, nº 260, p.1.

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que apresentar mais habilmente as suas vaidosas qualidades. Será o

melhor namorado da ficção, o Ricardo, em que Sênio requintou as

pretensões e caprichos da vaidade? Não é o seu ideal o dinheiro, e

todas as suas isenções não provém do orgulho ferido pela

superioridade da riqueza?

[...] Esta divinização do orgulho é ainda outro lado antidemocrático do

romance. Quase que todos os caracteres se perdem nesse defeito que

torna-se o seu padrão comum. Se o romance não tem obrigação de ser

uma lição política, ao menos é de boa inspiração apresentar com seu

grau de abnegação a sociedade que descreve.164

José de Alencar, na pele de Sênio, apesar de não abnegar Guida, quase terminou

por condená-la a um terrível sentimento de abandono que poderia levá-la à morte. No

entanto, e conforme dito, tudo seria apaziguado pelos artifícios do romance de tipo

folhetinesco, e o par de egoístas e vaidosos terminaria casado e feliz. De fato, não há

condenação, até mesmo porque não há uma vilania tão bem definida na narrativa. Do

nosso ponto de vista, os clichês românticos que, inegavelmente, compõem a obra,

encontravam-se mesclados - e deturpados - pelos referenciais de uma realidade social e

histórica que contemplava o cotidiano da Corte no final do século XIX; daí a sugestão

na réplica de Sênio, para que Alceste abandonasse brevemente a sua pena e seus

afazeres, e simplesmente observasse pela janela de sua tipografia os perfis femininos

que circulavam pela cidade num dia de festa, podendo concluir que moças aristocráticas

e imperiosas como Guida não eram raras ao cotidiano das ruas fluminenses, e que a

protagonista em questão teria sido concebida sob o amparo da verossimilhança.

***

Recapitulemos uma das assertivas de Sênio: Sonhos d´ouro era filho de seu

tempo. Em sua forma, reverberava o prosaico e os recursos narrativos folhetinescos que

costumavam fisgar os leitores: tramas lineares, com alguns poucos sobressaltos, e um

previsível final feliz. Entretanto, pensamos que em seu conteúdo, José de Alencar,

utilizando-se da máscara associada à senilidade, aproveita-se para propor algumas

redefinições em torno do status do gênero romanesco.

Quando reconstituímos o debate proposto por Franklin Távora, nos deparamos

com uma situação de enfrentamento ao projeto literário publicamente defendido por

Alencar. Sua concepção de brasilidade era questionada, considerada artificial,

164

Idem.

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69

inverossímil. O recurso da idealização - tão caro ao romantismo alencariano - era

colocado em xeque. Faltava ciência, conhecimento in loco. De acordo com o crítico

pernambucano, o arruinado autor de gabinete insistia em práticas discursivas incapazes

de retratar nosso país, e nossa identidade de maneira fidedigna.

A posteriori, abençoando o seu livrinho paternalmente, José de Alencar

retomava a sua posição de autoridade, mas sem ater-se a uma tônica excessivamente

imperiosa. Assumindo uma suposta decrepitude, Sênio oscilava entre a confiança

inspirada pela experiência, e o descrédito suscitado por uma admitida caduquice. O

pseudônimo, portanto, podia inspirar certa dubiedade entre os críticos, ainda que entre o

público sugerisse uma credulidade intimista:

Estes volumes são folhetins avulsos, histórias contadas ao correr da

pena, sem cerimônia, nem pretensões, na intimidade com que trato o

meu velho público, amigo de longos anos, e leitor indulgente, que

apesar de todas as intrigas que lhe andam a fazer de mim, tem seu

fraco por estas sensaborias.165

De acordo com Germana Maria Araújo Sales166

, tratar o leitor com benevolência

era estratégia recorrente nos prefácios literários oitocentistas que, de maneira geral,

buscavam angariar a cumplicidade do público através do estabelecimento de uma

relação de lisonja. Tal relação, em última instância, expectava que a obra fosse aprovada

sem reservas por aqueles que a consumiam. Ou seja, havia uma intenção nesta

desqualificação implícita da figura de um leitor envaidecido, e acometido em sua

capacidade crítica.

Porém, pensamos que no caso de ―Benção Paterna‖ e Sonhos d´ouro, a relação

entre autor e leitor se estabeleceria por meio de outras especificidades. Ainda que

lisonjeado em sua lealdade, os interlocutores de José de Alencar também eram

―alfinetados‖ em suas predileções estéticas: o gosto pelas sensaborias folhetinescas.

Além disso, devemos lembrar que um dos principais argumentos de Alceste para

desqualificar o romance, era o de que Sênio não teria castigado seus personagens

negativos. Por exemplo, a protagonista Guida, cuja índole seria considerada duvidosa,

chegaria ao fim do romance tão rica quanto no início, e casada com o homem por quem

165

SÊNIO (José de Alencar). ―Benção Paterna‖. Op.Cit., 1957 [1872], p. 32. 166

SALES, Germana Maria Araújo. ―O leitor: benévolo e benigno.‖. Palavra e sedução - uma leitura dos

prefácios oitocentistas (1826-1881). 2003. Tese (Doutorado em Teoria Literária). Campinas:

IEL/UNICAMP, 2003, p.66-70.

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se apaixonou. Nessa perspectiva, a repreensão moral não se completava, e não havia

uma lição a ser apreendida.

Retomemos as palavras de Alceste: Sonhos d´ouro divinizava o orgulho. Logo,

José de Alencar, ou Sênio, contrariava as expectativas da crítica e, ao invés de abnegar a

sociedade carcomida que representava, parecia reafirmá-la em seus aspectos mais

abjetos. Dessa maneira, podemos cogitar que, se não estamos diante de um narrador

didaticamente dualista, era delegado aos leitores o exercício de aguçar suas percepções

diante dos matizes que envolviam a trama. Por isso, acreditamos na possibilidade de que

o literato acenasse com um voto de confiança à criticidade de seu público.

No famigerado prefácio, Sênio parecia ciente das particularidades de se produzir

ficção para um público de práticas de leitura apressadas, próprias daqueles tempos

modernos: ―Não se prepara um banquete para viajantes de caminho de ferro, que

almoçam a minuto, de relógio na mão, entre dois guinchos da locomotiva.‖.167

Folhetinesca, a narrativa dourada nos fala da força de um sentimento amoroso capaz de

superar todo e qualquer obstáculo. Sendo assim, o fio condutor emotivo reafirmava

todos os cacoetes que envolvem esse tipo de construção narrativa. Porém, tal

constatação não deve ser compreendida como um empecilho para que o literato tocasse

em temas considerados mais graves. E, em relação à recepção, espreitamos por

leitores/interlocutores afoitamente perspicazes.

Quando reconstituímos parte da polêmica envolvendo as Cartas a Cincinato, nos

referimos ao conceito de verossimilhança implícito à obra alencariana e, citando os

estudos de Eduardo Vieira Martins, sinalizamos com o entendimento do verossímil

como fator de coesão interna à narrativa, tal como na tradição clássica. Em outras

palavras, compreendemos que o literato concebeu sua obra de maneira a representar as

contradições sociais que marcavam o seu devir histórico, todavia, sem um compromisso

rígido de adequação à realidade externa, ainda que houvesse remissão à mesma.

Em ―O romance como epopeia burguesa‖168

, Georg Lukács sugere que o gênero

literário iria se legitimar na esteira de uma modernidade compreendida em seus signos

de decadência moral, e timbrada por uma concepção de individualidade inconcebível ao

período Antigo. Tais acepções seriam prezadas pela nova classe burguesa, surgida em

167

SÊNIO (José de Alencar). ―Benção Paterna‖. Op.Cit., 1957 [1872], p. 32. 168

LUKÁCS, Georg. ―O romance como epopeia burguesa.‖. In: CHASIN, J. (org.), Ensaios Ad

Hominem, Tomo II – Música e Literatura. Santo André: Estudos e edições Ad Hominem, 1999, p.102.

(Tradução de Letízia Zini Antunes, a partir da edição italiana (Einaudi, 1976) e francesa (Editions

Sociales, 1974).

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fins do século XVIII, numa Europa em franca ebulição. Neste cenário, e citando como

exemplo a obra do escritor realista Honoré de Balzac, Lukács argumentava sobre a

aspiração do romancista em tornar-se uma espécie de historiador da vida privada, lugar

de onde seria possível representar a realidade burguesa em roupagem crítica.169

Caminhando paralelamente a essa formulação teórica, e aproveitando-nos da

alcunha de um ―José de Alencar, historiador‖ sugerida por Alceste, defendemos a leitura

pormenorizada de Sonhos d´ouro em diálogo com as transformações que marcaram a

realidade de seu tempo, ou, mais especificamente, em intercâmbio com uma ideia de

modernidade remissiva à década de 1870. Ainda assim, e avessamente à hipótese de

Luckács, conjugamos a ficção de Alencar ao espaço público, onde acreditamos que uma

identidade aburguesada era forjada. Lembremo-nos de uma Guida grosseirona na

intimidade, e coquete pelas ruas. Ou retomemos as palavras assertivas de Sênio: ―Antes

de tudo a ninguém disse o autor que ia esboçar os seus personagens pelo prisma da vida

íntima. Bem ao contrário os apresenta ele a maior parte das vezes fora da intimidade da

família, em passeio ou na convivência de pessoas estranhas.‖.170

E, se falamos de

relações publicizadas, parece bastante coerente recorrer às páginas da imprensa para

refletir sobre tais questões.

O estudioso Marcus Vinícius de Freitas171

tratou de um periódico

contemporâneo ao romance, o jornal Aurora Brasileira (1873-1875), correlacionando

tal veículo ao ideário moderno que teria marcado a época. Nessa trajetória, Freitas se

apropriaria do conceito de um longo século XIX, iniciado na década de 1780, e

prolongado até o início da década de 1920, com o processo de industrialização.172

À

169

Segue a citação: ―O romance abandona a região limitada do fantástico e dirige-se decididamente para a

representação da vida privada do burguês. A aspiração do romancista de ser historiador da vida privada

define-se nesta época com toda a clareza. Os amplos horizontes históricos do romance das origens

restringem-se, o mundo do romance se limita cada vez mais à realidade cotidiana da vida burguesa, e às

grandes contradições motoras do desenvolvimento histórico-social são representadas somente na medida

em se manifestam de maneira concreta e ativa nesta realidade cotidiana. Essas contradições, todavia, são

representadas, e o realismo da vida cotidiana, a recém-descoberta ―poesia da realidade cotidiana‖, a

vitória artística sobre a prosa desta realidade, tudo isso não é mais do que um meio para a representação

concreta dos grandes conflitos sociais da época.‖. In: Idem. 170

SÊNIO. (José de Alencar). ―Os sonhos de ouro‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 12 de

setembro de 1872. 171

FREITAS, Marcus Vinícius de. Contradições da modernidade: o jornal Autora Brasileira (1873-

1875). Campinas: Editora da Unicamp, 2011. 172

De acordo com o autor: ―[...] a investigação da passagem brasileira à modernidade, seja ela literária,

política, econômica ou cultural – passagem desde sempre marcada pelo signo das contradições -, parece

demandar um retorno ao marco temporal da década de 1870, quando a literatura, as instituições científicas

e culturais, os projetos políticos para a nação, o modo de produção, as cidades e mesmo a consciência

sobre a paisagem do sertão iniciaram um longo e complexo processo de mudança em direção à

modernidade.‖ In: Idem, p.18.

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semelhança, Luciana Murari173

também se refere ao contexto como um período marcado

pelo crescimento do mundo capitalista, e pela ascensão de uma triunfante classe

burguesa. De acordo com a autora, o impulso industrial dos Estados Unidos teria

representado um ímpeto para que toda a América se integrasse ao novo sistema

econômico liberal. Conquanto, nossas práticas e formas de compreender o mundo

decorrentes das relações servis, apresentavam-se como pouco adequadas ao liberalismo

clássico, estritamente defendido pelos norte-americanos.

Anteriormente, e abrindo caminho para os autores que citamos, Francisco Foot

Hardman174

já havia questionado a prerrogativa de uma de modernidade restrita aos

anos 1920, ou ao marco da Semana de Arte Moderna (1922), reconhecendo a

propagação de um ideário novo, e que refletiria as mais diversas transformações sociais,

políticas e culturais, na segunda metade do século XIX. No artigo ―Antigos

Modernistas‖, Hardman cita especificamente a ―Escola de Recife‖ como referência de

um movimento que agregava todos os ―ismos‖ que ressignificavam aqueles tempos:

cientificismo, evolucionismo, positivismo, etc. No trecho a seguir, segue um apanhado

sobre tal conjuntura:

No Brasil, desde pelo menos 1870 - meio século antes, portanto, da

Semana de arte Moderna, de 1922, em São Paulo -, uma série de

pensadores e obras já se inscrevia num movimento sociocultural de

ideias e reinvindicações que o historiador literário e crítico José

Veríssimo, em sua História da literatura brasileira (1916),

denominaria de modernismo, abrangendo textualmente: o positivismo

de Comte, o transformismo de Darwin, o evolucionismo de Spencer, o

intelectualismo de Taine Renan, tudo vindo a calhar no Brasil, na

chamada escola de Recife, Tobias Barreto à frente. Com o final da

guerra contra o Paraguai (1865-1870), a percepção espacio-temporal

mudava radicalmente, na sociedade brasileira, segundo muitos

depoimentos coevos – entre eles, algumas crônicas luminosas de

Machado de Assis. Em 1894, por exemplo, em sua coluna ―A

Semana‖, o grande prosador registrava impressões da aceleração do

tempo após o término da guerra, quando foi morto o general-

presidente paraguaio: ―Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e

preguiçosa de outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar

com a eletricidade? Não há dúvida que os relógios, depois da morte de

López, andam muito mais depressa.‖.

Resultante das filosofias positivistas, evolucionistas e materialistas,

esse amplo e heterogêneo mosaico de produções literárias,

jornalísticas, sociológicas e filosóficas abrigou, também, desde logo,

173

MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem: representações da natureza na cultura brasileira. Tese

(Doutorado em História). São Paulo: FFLCH/USP, 2002. 174

HARDMAN, Francisco Foot. ―Antigos modernistas‖. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história.

São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.289-305.

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sobretudo a partir de 1890, a presença do movimento operário

representado pelas correntes de tendência social-democrata e

libertária. É preciso frisar, aqui, que o proletariado, a organização

industrial manufatureira e os conflitos sociais daí resultantes são

fabricações inteiramente modernas.175

Os tempos eram outros, e pelos caminhos que trilhamos, podemos supor que

José de Alencar rejeitasse a ideia de um cientificismo aplicado ao fazer literário.

Colhendo os últimos louros de uma carreira gloriosa, o literato, reconhecidamente

formado nos esteios da tradição clássica, dissonava dos autores de ―espírito jovem‖ que

defendiam o conceito de que a forma do romance deveria refletir - ou daguerreotipar - a

realidade concreta. Nesse sentido, não havia infortúnios em assumir a própria

senilidade. Por outro lado, ocupando-se publicamente de embates acalorados sobre o

tema, o autor também deixava claro o seu interesse pela questão, possivelmente

integrando tais reflexões ao processo de composição de sua obra. Em Sonhos d´ouro,

Alencar tratava de temáticas inerentes à modernidade que apresentamos, em específico

no que concerne ao mote da ascensão social de indivíduos que passavam ao largo das

tradições empoeiradas do baronato e galgavam uma nova posição através do capital

especulativo. Portanto, nas entrelinhas da ficção alencariana ressoava um senso de

modernidade muito próprio de sua contemporaneidade.

Ao longo de toda a nossa argumentação, optamos por reconhecer o embuste de

um autor-personagem impreterivelmente inserido em sua própria historicidade. A

decrepitude representada não nos convenceu.176

Cogitamos ainda que José de Alencar

também contasse com a atuação de seus leitores coetâneos no desvendamento dos

indícios de modernidade implícitos ao seu posicionamento intelectual. E reiteramos a

nossa hipótese de que Sonhos d´ouro contemplaria o projeto de uma identidade

burguesa a ser forjada em esfera pública. Por fim, adiantamos nossa intenção de

conjugar o discurso literário à poética jornalística da época, considerando-se uma

175

Idem, p.290-291. 176

Um adendo: em 1872, na advertência, ou prólogo, ao romance Ressureição, Machado de Assis tratava

da falsa modéstia dos escritores em tal tipo de produção textual. E, tendo em mente os recursos

discursivos apresentados por Sênio no prefácio ―Benção Paterna‖, acompanhemos: ―A crítica desconfia

sempre da modéstia dos prólogos, e tem razão. Geralmente são arrebiques de dama elegante, que se vê ou

crê bonita, e quer assim realçar as graças naturais. Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro alguns

desses prefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó da sua humildade, e o coração nos

píncaros da sua ambição.‖. In: ASSIS, Machado de. ―Advertência da primeira edição‖. Ressureição.

Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, (sem

página).

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relação em via de mão dupla. Isto posto, pensamos que através do exame da imprensa

também iremos nos aproximar dos espectros desses leitores confidentes - e glosadores -

às admoestações do ancião movido ao sabor de seu tempo.

III.4 Dissonâncias femininas em meio ao cotidiano do jornal.

Sendo-nos negada a janela de onde se vislumbrava o cotidiano urbano

oitocentista, seguiremos recorrendo ao jornal. Em alguns momentos ímpares, nas

mesmas páginas do Diário do Rio de Janeiro, além do citado acolhimento a uma crítica

enviesada pelo romantismo, também nos deparamos com as sugestões em torno de um

processo de desconstrução, ou desmonte, de obras alinhadas a tal estética, e que, para

tanto, eram curiosamente associadas a um noticiário ordinário. Dessa forma,

testemunhamos a criação de uma nova poética, simultaneamente literária e jornalística,

e que orientava a compreensão de um público circunspecto, e detentor de um amplo

universo de significados e de significantes, que poderia confluir para uma experiência

de fruição estética um pouco mais aprofundada em relação aos artifícios narrativos.

Um exemplo palpável de tal teoria poderia ser observado na edição do dia 11 de

agosto de 1872 do Diário que, na página 2, ou seja, num espaço distante do comumente

reservado ao folhetim, trazia o seguinte título em negrito: ―Paulo e Virgínia‖. Entre os

leitores coetâneos que passavam os olhos por tal página, certamente viria à memória o

enredo moralíssimo da narrativa setecentista de Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre

que, conforme sabemos, traz as desventuras dos jovens criados como irmãos numa ilha

idílica, a Ilha Maurícia, e que com o passar dos anos acabariam se envolvendo através

de um sentimento amoroso pueril.177

Não temos dúvidas de que os leitore(a)s do jornal reconheceriam tal referência,

pois, conforme apurado por pesquisas recentes178, o livro desfrutou de um estrondoso

177

Na tentativa de evitar o enlace dos enamorados, a mãe de Virgínia decidiria enviá-la para o continente,

sob o argumento do aperfeiçoamento de seus estudos. Paulo prometeria esperá-la. E, vinte anos depois,

Virgínia regressaria, porém, sob os olhos esperançosos do rapaz, a moça morreria afogada no trágico

naufrágio da embarcação que a levava de volta à Ilha. Desesperado, Paulo também viria a sucumbir. Cf.:

SAINT-PIERRE, Bernardin. Paulo e Virginia. Rio de Janeiro, RJ: Aurora, [19--?]. 178

Cf.: ABREU, Márcia. ―Conectados pela ficção: circulação e leitura de romances entre a Europa e o

Brasil.‖ O eixo e a roda. Belo Horizonte: UFMG, v. 22, nº 1, 2013, 15-39. Ver, também: SANTOS,

Eduarda Berteli M. ―As adaptações portuguesas do romance Paulo e Virginia, de Jacques-Henri

Bernardin de Saint Pierre para o teatro entre as décadas de 1840 e 1890.‖ Atas do 8º Colóquio do Pólo de

Pesquisas Luso-Brasileiras: 450 anos de portugueses no Rio de Janeiro, 2016, [sem páginas]. Disponível

em:

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sucesso no Brasil do século XIX, sendo identificado como best-seller em parte

significativa do mundo ocidental. Dessa forma, e demonstrando plena consciência do

fenômeno midiático com o qual lidavam, os redatores do periódico aproveitaram-se para

pregar uma peça no seu público, parodiando os expedientes literários que compunham a

obra através da inserção de um subtexto ordinário, de dicção jornalística e policialesca;

e, como resultado, o elevado melodrama francês seria vertido em quiproquó de um par

(ou trio) vulgar/corriqueiro, ou, no mínimo, bem menos etéreo que o casal de

protagonistas de Saint-Pierre:

Paulo e Virgínia - A Virgínia de que tratamos não é uma menina

mimosa e romântica. Já se casou, e o seu Paulo chama-se

prosaicamente João Manoel do Nascimento. Tendo-se aborrecido de

sua companhia, fez uma escapatória e foi morar com Cândido da

Fonseca Luna na estalagem à rua de S. Leopoldo, nº 71. Anteontem,

às 9 [e] ¾ horas da noite, Paulo, isto é, o Sr. João, teve saudades de

sua Virgínia e veio buscá-la. O amante Luna não esteve pelos autos e,

armando-se de um cacete, bateu no infeliz marido, a ponto tal que o

prostrou por terra, com a cabeça fraturada e o corpo contundido. Em

seguida o malvado evadiu-se. Compareceram o subdelegado da

freguesia e o inspetor. O ferido foi remetido para a Santa Casa da

Misericórdia. Procede-se na forma da lei.179

De maneira espirituosa, os redatores ressignificavam o antigo melodrama

francês a partir da inserção de fragmentos de um cotidiano palpável/identificável ao

leitor comum oitocentista. Temporalidades - e moralidades - distintas se entrecruzavam,

demonstrando que a imprensa também exercia a função de (inter)mediação

tradicionalmente exercida pelo aporte literário ao longo desse período.180 Diante de tal

http://www.mygead.com/geadmedia/packages/giadrgpl_rgpl/documentsmain/20170710141671121f_edua

rdabertelimaoriginal.pdf, [Acesso em julho/2017]. 179

(Sem assinatura). ―Paulo e Virgínia‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1872,

nº 218, p.2. 180

Em obra de autoria coletiva, um grupo de estudiosos franceses ligados à área da História Cultural, e

representado por nomes como Marie-Ève Thérenty, Dominique Kalifa, Alain Vaillant, entre outros, nos

proporciona uma relevante reflexão acerca da presença da literatura na imprensa do século XIX. Dessa

maneira, e parafraseando tais autores, podemos afirmar que haveria três características inerentes aos

periódicos oitocentistas: o jornal seria midiático, cotidiano e coletivo.

Seria midiático, não no sentido simplista de transferir o discurso da esfera privada para a esfera pública,

mas sim, porque era no jornal que se originava a concepção de um espaço público, e a função de

mediação e intermediação entre as pessoas. Assim, em tal contexto histórico, o jornal captava e

organizava a função de mediação tradicionalmente exercida pela literatura. Por outro lado, em tal prática,

o jornal também cumpriria com a função de interpor aos leitores uma representação do real. Nesse

sentido, o grupo propõe a hipótese de que, a função mediadora - prioritariamente exercida pelo jornal no

século XIX - ocorreria de maneira paralela a uma importante mudança no paradigma da literatura da

época.

O jornal também seria, por definição, cotidiano. Porém, não no sentido vulgar, ligado a um emaranhado

de informações superficiais sobre o dia-a-dia. Para os estudiosos, a escrita do jornal não refletiria apenas

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assertiva, tomamos de empréstimo a argumentação de Dominique Kalifa, Philippe

Régnier, Marie-Ève Thérenty e Alain Vaillant181 para o caso brasileiro, advogando que

para refletirmos acerca da História Literária do século XIX, inevitavelmente, temos que

nos debruçar sobre uma poética que se dava por meio da imprensa e a partir do

hibridismo de linguagens. Ou ainda, como já havia antecipado Marlyse Meyer182,

sinalizamos que nossos esforços se alinham à perspectiva da engenhosidade envolvida

no processo de ―folhetinização da informação‖183, admitindo que sem os códigos do

folhetim, ou do romance, o jornal seria inconcebível, e, no limite, os acontecimentos do

dia a dia serviriam de mote às extravagâncias romanescas.

Isto posto, seguiremos destacando as dissonâncias de um noticiário corrente no

Diário do Rio de Janeiro que, muitas vezes, escapava às asserções conservadoras de

Alceste sobre a condição da mulher em tal sociedade; proposições estas, que, do nosso

ponto de vista, teriam conduzido o crítico em sua análise de rejeição à personagem

Guida. Aliás, e construindo melhor o nosso argumento, ousamos afirmar que, ao se

reportar às mulheres reais para defender o seu ―caractere feminino‖, - haja vista que

Guida não seria uma tipificação qualquer - José de Alencar, de maneira subentendida,

nos autorizaria a buscar nas páginas da imprensa as referências que poderiam estar

presentes na construção de sua protagonista. Ademais, e considerando que lidamos com

registros que se interpenetram/misturam, cremos tornar-se factível uma leitura de Guida

a partir do diálogo com o seu principal espaço de recepção à época de seu lançamento.

Conforme dito, apesar da folha e de seus colunistas acenarem com um discurso

recorrentemente moralizante, também seria possível encontrar um apanhado de escritos

díspares, ou insistentes cacofonias que expunham o caráter de coletividade inerente a

todo e qualquer veículo jornalístico.184 Nas suas quatro páginas diárias, o periódico

fluminense nos brindava com a alusão e com a presença de mulheres que, com algum

as demandas de forças individuais, mas sim os aspectos de uma ampla realidade social. Nessa

perspectiva, o jornal traria consigo as concepções de um ―tempo coletivo‖, composto de ritmos e

experiências acumuladas.

Por fim, e conforme dito, o jornal seria coletivo. Todo o discurso jornalístico seria, por sua origem e

destinação, plural e coletivo, - ou, ao menos - inserido num complexo sistema polifônico de interlocução.

Conclui-se, portanto, que todas as narrativas presentes ao cotidiano dos jornais oitocentistas - ficcionais

ou não, contribuiriam para a perspectiva de uma nova poética histórica, cujas práticas e formas de escrita

seriam (res)significadas pela própria matéria jornalística. (Cf.: KALIFA, Dominique; RÉGNIER,

Philippe; THÉRENTY, Marie-Éve et VAILLANT, Alain (Direction). La civilisation du journal: historie

culturelle et littéraire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde Éditions, 2011, 16-

19). 181

KALIFA, D.; RÉGNIER, P.; THÉRENTY, M-É.; VAILLANT, A. Ibidem. 182

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 183

MEYER, Marlyse. Ibidem, 1996, p. 224-225. 184

Retomar nota 180.

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ímpeto de autonomia, conseguiam driblar as opressões de uma sociedade

predominantemente patriarcal/masculina, elaborando experiências caracterizadas por

um tanto de liberdade individual. Enfim, é sobre essas ―mulheres de papel‖185, feitas à

semelhança de Guida, que iremos discorrer a seguir.

Ao longo do ano de 1872, seria possível acompanhar no Diário do Rio de

Janeiro a publicação de uma série de correspondências intitulada ―Cartas Parisienses‖,

que eram assinadas por duas mulheres: Blanche D´Hermenonville e Laura de Carvalhal,

sendo que a primeira escrevia de Paris e a segunda de Lisboa.186 Não abordaremos toda

a série, porém, iremos destacar alguns textos nos quais observamos os lampejos de um

debate sobre a condição feminina em cenários europeus.

Num primeiro momento, em 6 de agosto de 1872, Blanche, em diálogo com a

amiga correspondente, se referia à artificialidade da condição de submissão

experienciada pela mulher na sociedade francesa da época, alegando que este não seria

o ―destino‖ natural reservado ao gênero. Em seguida, também iríamos conferir um

ataque incisivo ao papel preponderante exercido pelos homens em suas relações -

unilaterais - com o sexo oposto. Para a autora, eram necessárias transformações que nos

levassem a uma experiência mais equânime entre os gêneros:

Cartas parisienses – Minha boa amiga – Paris, 8 de julho – Começa

hoje esta minha carta com a revelação de um fato altamente

significativo do quanto valemos nós outras as mulheres, embora por aí

gritem e nos alcunhem de pretensiosas, sabichonas e outras coisas

feias.

Ou não nos apreciaram ainda, ou não nos querem apreciar como

devemos ser apreciadas. Basta lançar um golpe de vista rápido sobre a

sorte das mulheres em geral, para se adquirir a convicção de que a

condição que lhes estabeleceram não esteve nunca em relação nem

com a importância do seu destino, nem com a inteligência que

receberam em dote da natureza, nem com o mérito de que têm dado

tantas e tão diversas provas.

A sua existência representa a de uma ―classe conquistada‖, que não

pode melhorar a sua situação senão pelos meios que emprega para

agradar aos seus senhores e para suavizar a injustiça da sua usurpação

e do rigor dos seus caprichos.

Não querem compreender que independentemente das vistas

interessadas, nas quais às têm dirigido sempre, há uma razão mais

elevada ainda, ligada ao aperfeiçoamento do seu ser, razão tirada da

sua própria natureza e independente da questão material.

185

Cf.: RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e

Machado de Assis. (2ª edição). Rio de Janeiro: Forense Universitária: Fundação Biblioteca Nacional,

2008. 186

Não encontramos vestígios das autoras, e cremos que por se tratarem de nomes muito estereotipados, é

possível que se referissem a pseudônimos.

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E, com efeito, como duvidar que essa metade do gênero humano,

sujeita à outra metade pela sua fraqueza e pela necessidade de ser

protegida, não lhe seja igual em tudo e não tenda para um mesmo fim?

Negam-lhe os homens muitas das suas prerrogativas e privilégios, e

não querem admitir que na mulher se possam conciliar as

necessidades morais da alma com o desenvolvimento da inteligência e

com os interesses materiais da vida. Por isso, bem disse Alphonse

Karr, nas suas Guêpes: ―Há muito tempo que os homens e as mulheres

vivem juntos e ainda não se conhecem.‖

Perdoe a minha boa amiga esta divagação, quando lhe anunciava um

fato honroso para o nosso sexo, fato que por um laço imperdoável me

ia ficando no tinteiro.

Tratarei de remediar o mal. Durante a última luta que tão funestos

resultados teve para esta malfada nação, foi grande o número de

exemplos de virtude cívica e de acrisolado patriotismo praticados

pelas mulheres da França.187

Sob o pretexto da divagação, Blanche esbanjava criticidade a respeito da

condição de opressão enfrentada pelas francesas em tal contemporaneidade. Além disso,

e embora não tenhamos prolongado a citação, é importante registrar que a epístola

também se referia à participação da mulher num cotidiano político público bastante

específico. Em 1872, Paris ainda contabilizava os saldos negativos amargados na

Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), e seria sobre os exemplos de ―virtude cívicas‖

praticados por mulheres ao longo do conflito que a autora seguiria versando:

enfermeiras destemidas em campo de batalha; mulheres que se desfaziam de joias para

colaborar com a Pátria; voluntárias preocupadas com o abrigo de feridos.188 Na verdade,

Blanche parecia não se conformar que tais exemplos de coragem e autonomia, ainda

fossem compreendidos de maneira secundária em tal contexto social: ―E porfiem em

depreciar as mulheres, neguem ainda a ação benéfica e vivificadora que elas exercem

sobre as gerações que as cercam.‖.189 Dessa maneira, podemos inferir que a autora

tratava de uma dimensão da política que não se limitava a um cotidiano de

domesticidades.

E antes de adentrarmos aos pormenores da resposta de Laura de Carvalhal à

carta da amiga parisiense, aproveitaremos o ensejo para uma breve divagação. Tendo-se

em vista o debate sobre a participação da mulher na política, propomos o cotejamento

187

Blanche D´Hermenonville. ―Cartas parisienses.‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 de agosto

de 1872, nº 213, p.1. 188

―[...] Apregoam no bem alto as ambulâncias onde os feridos recebiam os mais solícitos cuidados das

mãos de milhares de improvisadas irmãs de caridade de todas as classes da sociedade. Atestam-nos a

evidência, os sacrifícios voluntários de joias e de dinheiro para a libertação da pátria e para acudir aos

desgraçados reduzidos à miséria pelo incêndio e pela invasão do estrangeiro.‖ In: Idem. 189

Idem.

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do texto com trechos do romance Sonhos d´ouro, nos quais Guida seria confrontada às

funções ligadas à vida pública. No capítulo XXIV da narrativa alencariana, a

personagem orquestrava um jantar que teria como intento surpreender o Sr. Soares,

divulgando a todos os seus pares a honraria de comendador que lhe fora concedida;

porém, o encontro teria várias outras intenções, como, por exemplo, desanuviar algumas

intrigas entre os rapazes que viviam a cortejá-la e, principalmente, seria a oportunidade

para convencer Ricardo de que ele a merecia como esposa. Confiante nos seus

desígnios, Guida, acompanhada da mãe, faria o convite ao moço:

O senhor há de jantar conosco Sábado. Não falte; promete?

- Terei esse prazer, disse Ricardo.

- Mas olhe que é segredo. - Ah! é um banquete político?

- É uma conspiração, observou Guida.190

Ao chegar em casa e se deparar com o imponderável festejo, Soares logo

compreenderia que a ocasião seria, na verdade, uma oportunidade de ―sociabilidade

útil‖ costurada pela herdeira. De pronto, o banqueiro reconheceria o espírito

hábil/manipulador da filha na obtenção dos próprios interesses. Em outros termos, o

personagem identificaria a vocação demonstrada pela moça na condução de uma

política que ele acreditava concernir ao espaço doméstico, já que para ele não seria

factível cogitar-se o envolvimento de Guida nas demandas referentes ao mundo público

(do trabalho, por exemplo):

De todas as pessoas na sala nenhuma estava tão desnorteada, como

ficou o Soares que ao voltar do escritório para o jantar caseiro e o

repouso da sesta, encontrou o palacete em festa, cheio de amigos com

que decerto não contava achar-se naquele dia.

- Que história é esta? perguntou o banqueiro que tudo levava em ar de

brincadeira. Querem ver que o Aljuba espalhou que eu ia pôr-me ao

fresco, e vocês pelo seguro vieram cercar-me a casa? Finórios!...

Também tu, conselheiro! Vieste agarrar o teu velho camarada! [...]

Mas deveras que vieram vocês a fazer? Quem os chamou cá?

- É boa! Pois não nos convidaste para jantar!

- Eu! Vocês querem divertir-se.

- Foi o recado que recebemos.

- Hum!... Não passa de invenções da senhora minha filha! Não resta

dúvida!

O banqueiro levou o dedo à boca:

- Esperem que vou tenteá-la.

Nisto apareceu Guida:

190

SÊNIO (ALENCAR, José de). Op. Cit., 1957 [1872], p.302.

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- Sim senhor, papai, muito bonito! convida a cidade do Rio de Janeiro

em peso para jantar, sem prevenir a mamãe, nem dizer a pessoa

alguma! Pois isto se faz?

- Henh! estão vendo, vocês! disse o Soares disparando a rir.

- Ora não disfarce, papai. Todos estes senhores receberam seu convite,

e com a recomendação de guardar segredo!

- É verdade?

- Então!... Mamãe e eu íamos sair, quando começam a chegar

convidados. Os senhores hão de ter paciência e desculpar. Um

banquete não é um discurso, que se improvisa.

- É pena que não se possa mudar de sexo, Guida. Tu serias o primeiro

banqueiro do Rio de Janeiro.

- Esse lugar já está tomado, papai.

- O jantar!... gritou o Daniel na porta.

- Brejeira! murmurou Soares fazendo cócegas nas faces de Guida.191

Em outra ocasião, Guida, num de seus tantos passeios a cavalo, provocaria um

encontro a sós com Ricardo. Incomodado diante da situação, o rapaz logo interpelaria a

donzela acerca de suas atitudes voluntariosas. No entanto, e revestindo-se de sua

característica ―petulância gentil‖192, a moça retrucaria: ― - Que quer? Estou habituada a

me fazerem todas as vontades!‖193. Ao fim, e demonstrando toda a sua irritação, Ricardo

tentaria enquadrar Guida nos pressupostos de uma ―filosofice moral/religiosa‖ que

visava realocar - ou rebaixar - a jovem ao papel que, em tese, lhe caberia enquanto

mulher naquela sociedade de fim de século:

- A vontade?... É a fera mais indomável que eu conheço, bem

entendido, para aqueles que a têm, porque não dou esse nome ao

influxo que dirige certos indivíduos, como o vento impele o navio. A

vontade é a soberania d‘alma, a acentuação de sua superioridade

moral; é o rei que temos em nós, e que pode tornar-se de repente um

déspota, contra o qual não há nem o recurso da república. Nas

senhoras, este autócrata chama-se capricho, como outrora em Roma

lhe deram o nome de imperador, moda que pegou. O capricho é um

tirano do gênero de Augusto. Ama o despotismo brilhante de luxo e

galas, representando no tom da alta comédia, por bons autores, e com

rica decoração! Ah! perdão que estou falando de política!... exclamou

o advogado interrompendo-se a rir.194

Na interjeição derradeira, restava um último golpe de humilhação: ―[...] Ah!

perdão que estou falando de política!... exclamou o advogado interrompendo-se a rir.‖.

191

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.305-307. 192

―[...] Os dois moços seguiam ao lado um do outro, mudos, e enleados daquele encontro. Afinal Guida,

revestindo-se da sua gentil petulância, rompeu o silêncio: - Eu sou uma estouvada! disse ela voltando-se

para Ricardo com expressão adorável.‖ SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.228. 193

Idem. 194

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.229.

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Ou seja, Ricardo acreditava que a sua exposição professoral se tornara excessivamente

sofisticada, e que Guida não seria capaz de compreendê-lo, já que ele falava de uma

perspectiva política/histórica. Na verdade, o advogado provinciano ainda não havia

notado o tino engenhoso da moça para a temática da política, compreendida por nós, e

por ela, de maneira mais ampla e complexa. Contudo, a réplica viria no mesmo tom

zombeteiro: ― - Que tem? Eu gosto da política... para rir, bem entendido.‖.195 E, ao final,

um ponto de discórdia seria firmado entre o par, demonstrando que Guida entendia de

um fazer político muito próprio, na verdade, particular à sua origem social:

[Guida] - Mas quanto ao capricho, não concordo com sua opinião.

- É natural; as posições são tão diversas!

- Ou os gênios.

- E o que é o gênio senão o molde que a sociedade imprime n‘alma

desde o berço, pela educação primeiro, e depois pela opulência ou

pobreza, pela grandeza ou humildade de condição?

- Então acredita que não é a natureza, porém o mundo, que nos faz o

que somos? Creio que se engana. Há pessoas que vivem deslocadas na

posição em que a fortuna as colocou, e a quem essa posição não pode

transformar a alma que receberam de Deus.196

Invertendo o raciocínio confusamente rousseauniano de Ricardo, a sinhá/filha de

banqueiro, argumentava que as pessoas eram predestinadas, pela fortuna ou por Deus, a

ocupar uma determinada posição na sociedade. Porém, e de seu ponto de vista

remediável, haveria pessoas deslocadas, ou que não desfrutavam das benesses de um

suposto lugar devido numa classe mais abastada. E isso não significava que, se a pessoa

fosse conduzida ao seu lugar de mérito, ou de destino, ela seria necessariamente

corrompida pelo dinheiro. De forma alguma. Isto porque a alma, enquanto dádiva, nem

sempre se transformava ao sabor terreno da ascensão social. Assim, e ao que parece, a

moça, tida como leiga nas artes da política, forjava toda uma teoria pretensamente

crítica, e repleta de uma religiosidade tosca, mas que tinha por intuito convencer

Ricardo a abandonar a vida pobre, aceitando a sua inserção num novo círculo social sem

o fardo da culpa. E, como todos sabemos, Guida seria muito bem-sucedida na sua tarefa

de sedução.

Além disso, e propondo um breve arremate antes de darmos voz à Laura

Carvalhal, vale informar que, apesar da usual dicotomia ―público x privado‖ para se

referir ao século XIX, em nossa tese seguimos os passos de estudiosas feministas como

195

Idem. 196

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.229-230.

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Eleni Varikas197 e Susan Moller Okin198, por isso, não cremos - e rejeitamos - uma

perspectiva liberal que alije a ascendência do Estado junto ao cotidiano privado. Na

verdade, advogamos que o domínio da vida doméstica refletiria e perpetuaria estruturas

e dinâmicas de poder que, de maneira (in)direta, regulavam toda a vida em sociedade.

Nesse sentido, nos interessa, e nos acomete de maneira decisiva, a máxima desferida por

tais autoras de que ―o pessoal é político‖, especialmente quando tratamos das relações

de poder entre os gêneros. Dessa forma, se o jornal trazia as novidades de europeias

que problematizavam a participação feminina numa esfera pública/civil; no Brasil

oitocentista, lidávamos com personagens que mimetizavam experiências que, embora

referentes ao privado, colocavam em xeque o predomínio masculino que perpassava

todas as esferas do cotidiano da sociedade patriarcal.

Dito isso, retomamos o fio que nos conduz de volta às ―Cartas Parisienses‖: a

questão do patriarcalismo. Idealizando a França de sua interlocutora, Laura iniciava a

sua carta-reposta, publicada em 9 de agosto de 1872199, admoestando a atmosfera

vivenciada na capital lusitana: ―[...] não fazes ideia da sensaboria em que se vive nesta

boa cidade de Lisboa, de usos essencialmente burgueses e patriarcais.‖.200 Em seguida, e

reafirmando todo o seu tédio em relação à cidade, Laura admitia que procurava nas

páginas da imprensa nacional e estrangeira, algo de interessante, e que pudesse servir de

assunto ao texto destinado a Blanche:

[...] Queres saber o que se sucede? Fatiga-me o espírito em busca do

que quer que seja que tenha algum interesse; cansam-me os olhos a

força de procurar nos jornais estrangeiros e nacionais alguma coisa

digna de transcrever-se, e enfraquece-se o peito pelo muito que se fala

perguntando e pedindo a todos novidades.201

Expressa toda a sua insatisfação com o status quo lisboeta, Laura então

começava a narrar a sua experiência de viajante só por Sintra. É claro que não cremos

que ela viajasse completamente sozinha, sem criados ou pessoas de confiança ao seu

197

VARIKAS, Eleni. ―O pessoal é político: desventuras de uma promessa subversiva.‖ Tempo, Rio de

Janeiro, vol. 2, n° 3, 1996, p. 59-80. 198

OKIN, Susan Moller. ―Gênero, o público e o privado‖. (Tradução: Flávia Biroli). Estudos Feministas,

Florianópolis, 16 (2): 440, maio-agosto/2008. 199

Laura Carvalhal. ―Cartas parisienses.‖ Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1872,

nº 216, p.1-2. 200

Laura Carvalhal. Ibidem, 1872, p1. 201

Idem.

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83

redor, porém, ao longo da epístola, ela insinuaria a sua condição de solteira202, dando a

entender que, a ausência da companhia de um cônjuge não se configurava como um

empecilho aos seus frutíferos passeios. Dizemos frutíferos porque Laura era afeita aos

flertes e galanteios, e costumava sugeri-los em seus testemunhos: ―Se eu quisesse ser

indiscreta, poderia narrar-te mais de um episódio romântico [...] Mas, para quê? Não

conheces tu todo o poder, todo o encanto, toda a fascinação dos formosos olhos negros

da gentil...‖.203 Porém, faz-se necessário advertir que não estamos diante de um

arquétipo feminino romântico, já que Laura rechaçava a temática amorosa, tratando de

corrigir todo e qualquer princípio de lirismo que pudesse demonstrar:

[...] à sombra das frondosas árvores da poética Sintra [...] abre-se a

alma a sensações mais elevadas, o coração renasce para o amor e... Ia

caindo num lirismo que seria para mim de um grande ridículo, e eu

quero ter a tranquila a consciência.204

Por outro lado, e conforme a própria Laura nos contaria, seria essencial informar

que tal perfil de mulher - excepcionalmente livre - gozava de uma condição financeira

bastante confortável e autônoma. E não sabemos se os leitore(a)s do Diário do Rio de

Janeiro estavam diante de uma herdeira órfã e rica; ou de uma cortesã prestigiada; quem

sabe de uma mulher que, contra tudo e todos, conseguiu projetar-se a partir de esforços

individuais. Mas, ousamos afirmar que o dinheiro era o elemento que lhe garantiria a

seguridade social - e até moral - que a condição de seu gênero, por si só, não seria capaz

de lhe garantir à época. Dessa forma, ao espírito alegre de Laura somaremos o peso e a

gravidade que os seus bens lhe proporcionavam:

[...] Eu que toda a minha vida gostei das festas, do movimento de uma

vida agitada, não posso conformar-me de modo algum com a

existência pacata, desculpa a frase, que levo em Lisboa.

Tenho, contudo, de sujeitar-me a ela, porque em primeiro lugar há

negócios muito importantes, que exigem de mim esse sacrifício.

202

―[...] Oh! Lembro-me, com saudade ainda, do tempo em que viveste na minha companhia antes do teu

casamento. Que alegres dias passamos, confiando-nos mutuamente as nossas alegrias e os nossos pesares!

Tu soubeste cativar o teu coração, amaste e foste amada, e ligas-te a tua sorte ao homem que te soube

despertar esse afeto. Tens hoje novos laços que te prendem à vida, és mãe e no filhinho que te repousa ao

lado, no berço, concentras-te todo o teu amor, toda a tua afeição. O meu coração, este está livre ainda; e

se alguma vez amou, se alguma vez encontrou outro coração que o compreendesse, teve de contentar-se

apenas com o sonho, não conseguiu vê-lo realizado. Não me desconsola, porém, esse desengano. Sou

livre e habituei-me já a ideia de que ficará para tia a tua pobre – Laura de Carvalhal.‖ Laura Carvalhal.

Ibidem, 1872, p.2. 203

Laura Carvalhal. Ibidem, 1872, p.1. 204

Idem.

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84

Anima-me, porém, a esperança de que para a época dos banhos terei

recuperado a minha liberdade e então saberei desforrar-me desta

espécie de reclusão a que me tenho visto obrigada.205

Dito isso, propomos o cotejamento da Laura do jornal à Guida do livro. Em

outra corriqueira situação de flerte, sempre criada por Guida, a personagem alencariana

demonstraria toda a sua habilidade de amazona às custas de uma situação perigosa,

numa cena em que o cavalo montado por ela quase se precipitaria de um penhasco sob o

olhar desesperado de Ricardo. O moço se prontificaria a salvá-la, mas não seria

necessário, pois, apesar das aparências de tragédia, Guida conseguiria manter tudo sob

controle, domando o bicho e evitando qualquer dívida de gratidão com o candidato a

herói romanesco:

- Pensa o senhor que tendo-o convidado para um passeio, era eu capaz

de dar-me ao desfrute de correr um perigo qualquer, como por

exemplo, o de atirar-me da montanha abaixo, para que o senhor, como

um herói de romance, chegasse a tempo de salvar-me? Pois saiba que

nada me aborrece tanto como esses romantismos, já tão vistos e

corriqueiros. Além de que seria incômodo para nós ambos: o senhor

teria de suportar todo o peso da minha gratidão; e eu de combater a

cada instante os escrúpulos de sua modéstia e delicadeza. Imagine o

agradável divertimento que teria cada um de nós, o senhor, esmagado

pela minha riqueza e generosidade, eu, crivada pelos espinhos de sua

dignidade. Ao cabo de um mês não poderíamos nos ver; e faríamos

um do outro a mais triste ideia.206

No trecho, a protagonista indicava o seu anseio por uma relação mais equânime,

e isenta de qualquer dívida de gratidão que pudesse diminuí-la aos olhos de Ricardo.

Nesse momento da trama, Guida ainda evitava qualquer rebaixamento frente ao seu par,

porém, sabemos que tal situação não seria sustentada até a página derradeira do livro.

Ainda assim, a altivez da personagem perpassaria quase toda a narrativa e, como Laura,

Guida costumava buscar respaldo em seu distinto lugar de classe para enfrentar

qualquer expectativa sôfrega em torno de seu papel de gênero. Portanto, julgamos

coerente a seguinte afirmação: Guida fazia-se forte/assertiva por reconhecer-se como

rica.

[...] - Já se vê que fez uma ideia muito errada a meu respeito. Não

tenho queda para romântica, nem jeito para representar de musa

205

Laura Carvalhal. Ibidem, 1872, p.2. 206

SÊNIO (ALENCAR, José de). Op. Cit., 1957 [1872], p.218.

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suplementar, e como Safo atirar-me do rochedo abaixo, a pé ou a

cavalo. Sou filha de banqueiro, e deram-me educação inglesa. Devo

ter pois o espírito positivo, e saber o valor do tempo, o que quer dizer,

da vida. Para mim não há homem neste mundo que valha um suspiro,

quanto mais um suicídio! 207

Tal perspectiva também se faria presente num episódio emblemático do

romance, quando Guida iria se deparar com um pescador prostrado e impossibilitado de

exercer as suas atividades. Para a moça, o trabalhador não tinha o direito de desfrutar do

luxo da tristeza, mas bastava que ela encomendasse alguns peixes e, o seu pedido por si

só, teria o dom de curar a ―manha‖ do preguiçoso serviçal. Enfim, sob a ótica de Guida

e de seus pares, pobreza resumia-se à debilidade moral:

O pescador era homem ativo, incansável no trabalho, porém caráter

débil, que desanimava com os reveses. As contínuas decepções o

acabrunharam; caiu em uma prostração moral, muito mais perigosa do

que a enfermidade do corpo. Convenceu-se de que o seu infortúnio era

um castigo do céu por algum pecado que cometera; e resignou-se a

sofrer sem lutar.

[...] - Ah! Seu marido está doente? De quê?

- Ninguém sabe; depois que o peixe lhe fugiu da rede, começou assim

a desandar.

- Onde está ele? Chame-o.

- Qual! Não pode consigo.

- Chame sempre.

O Simão a custo arrastou-se até a porta da choupana.

- O senhor amanhã há de levar peixe em nossa casa. Olhe lá.

- O peixe conhece as minhas tarrafas! É à toa.

- Verá. Eu sou muito feliz; obtenho tudo que desejo. Basta que eu lhe

encomende o peixe, para o senhor tirar a rede cheia.

- Mas é castigo, senhora.

- Castigo de estar aí deitado, sem fazer nada, enquanto a pobre da

mulher se amofina de trabalhar.

- Mas ele está doente! acudiu Gertrudes.

- Doente de manha!

Guida lançou o cavalo contra o pescador, que, vendo-se ameaçado

pelas ferraduras de ―Edgard‖, arrancou-se à prostração para recuar de

um salto, com uma rapidez aliás desnecessária, porque a mão firme da

moça obrigara o cavalo a girar sobre os pés.

- Não vê como ele salta? disse Guida soltando uma risada. Que

vergonha! Curtindo a preguiça enquanto os filhos e a mulher não têm

o que comer! 208

A lição de uma moral burguesa entrava em curso novamente, demonstrando a

predisposição de Guida para o julgamento alheio a partir de sua limitada experiência

207

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.219-220. 208

SÊNIO (José de Alencar). Ibidem, 1957 [1872], p.99-106.

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social de moça bem-nascida. Não queremos dizer que somente o fator classista

explicaria toda a concepção da personagem, há outras várias matizes envolvidas em seu

espírito altivo e soberbo, porém, e propondo uma interpretação da personagem ao rés de

sua própria historicidade, buscamos demonstrar que a protagonista de Sonhos d´ouro

poderia ser aproximada de outras criaturas femininas que habitavam o mesmo Diário do

Rio de Janeiro, onde Alceste, o principal crítico - e algoz - do romance, também se

encontrava. Tal constatação, nos permite sugerir a possibilidade de experiências de

leituras capazes de relativizar a crítica conservadora do colunista a respeito de Guida,

uma vez que dividindo o mesmo espaço midiático, haveria um noticiário corrente que

não se adequava ao seu discurso reacionário, e isso tanto em termos estéticos quanto em

relação à sua percepção sobre a condição feminina em tal contexto.

Por fim, reiteramos que a rejeição ao perfil de Guida postulada por Alceste, teria

por mote uma suposta inadequação da personagem aos pressupostos de um projeto

alencariano tido por grandioso, patriótico e moral. O crítico ignorava toda a aniquilação

experienciada por Guida ao fim do romance, e seguiria cobrando de Sênio a

admoestação da protagonista, afinal, para Alceste, mulheres como ela exigiam punição

exemplar.

Por outro lado, e sugerindo que o romance possuía um aspecto

―antidemocrático‖, que ―divinizava o orgulho‖, o crítico salientava que a narrativa

também era orientada por questões pertinentes às disputas entre classes sociais. E no

caso específico de Guida, cremos que ela seria associada a um sentimento de orgulho de

si, ou de brio por ser quem ela realmente era: a filha caprichosa de uma família que

esbanjava poder. Sendo assim, e internalizando todo o seu ímpeto de sinhá que

advogava pela meritocracia dos seus, podemos concluir que Guida não tentaria usurpar

nada que não pudesse lhe ―pertencer‖ de alguma forma, e isso a começar pelo próprio

Ricardo.

Dizemos isso porque a nossa segunda protagonista, Guiomar, de A mão e a luva,

irá se mover a partir de uma conjuntura social diversa, por meio de uma ―fenda‖

engenhosamente cavada entre a riqueza e a pobreza, de onde seria possível reconhecer-

se os perigos de uma submissão irrestrita, ao mesmo tempo em que se vislumbrava as

chances de ascensão a uma nova classe social. Dessa forma, e a partir desse momento,

sinalizamos o nosso encontro com o romance-folhetim A mão e a luva (1874), de

Machado de Assis. No entanto, ou para tanto, assim como fizemos com a obra de José

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de Alencar, pretendemos rastrear outros tantos vestígios potencialmente intrínsecos a

esta segunda produção.

Assim, e antes de adentrarmos aos pormenores do enredo de A mão e a luva,

propomos um breve recuo no tempo, voltando-nos a março de 1873, quando Machado

publicaria aquele que viria a ser o mais famoso de seus textos críticos: ―Notícia da atual

literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade.‖209

, nas páginas do jornal O Novo

Mundo, uma folha estrangeirada, e nem tão conhecida do grande público brasileiro.

Como sabemos, o escrito abordaria as agruras inerentes a um debate estético que

trazia consigo os elementos de uma suposta ―brasilidade‖, concebida em diálogo - e em

disputa - com os elementos de uma ―universalidade‖ que, por sua vez, trataria de

remediar as pechas do exotismo que sempre nos acompanhou.210

Enfim, um ideário que,

inegavelmente, também esteve presente aos debates orquestrados por Sênio em ―Benção

Paterna‖. Porém, e seguindo adiante no texto de Machado, no tópico dedicado somente

ao gênero do romance211

, o escritor elencaria uma suposta ―falha‖, vista como

corriqueira entre a produção nacional e que, segundo o autor, de maneira legítima,

causava a insatisfação dos críticos da época: uma dita superficialidade na análise de

paixões e caracteres:

Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos

comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém,

de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais

difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores.

Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de

observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a

rodo nem são a partilha do maior número.212

No excerto, o autor demonstrava certa preocupação em torno da construção de

personagens que primassem por uma maior complexidade psicológica, - ou de

caracteres que pudessem ser explorados através da análise de suas paixões - ausências

209

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107 e 108. 210

―[...] Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente

alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas

que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne

homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.‖. In:

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107. 211

Vale lembrar que, na crítica, Machado abordaria as temáticas do Romance, da Poesia, do Teatro e da

Língua. 212

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107.

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estas que, de acordo com o raciocínio exposto, ainda seriam notáveis entre literaturas

compreendidas como ―menos adiantadas‖. Pouco depois, no final de novembro 1874, o

escritor publicaria a 1ª edição em livro de A mão e a luva, romance este que já teria

vindo a lume de maneira seriada no jornal fluminense O Globo, entre os meses de

setembro e novembro de 1874. A versão livresca contava com um interessante prefácio,

que em seu cerne reverberava parte dos mesmos conteúdos que estiveram presentes no

texto crítico publicado no Novo Mundo, reproduzindo, inclusive, algo de sua semântica.

Segue:

Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos

do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo

padecessem com esse método de composição, um pouco fora dos

hábitos do autor. Se a escrevera em outras condições, dera-lhe

desenvolvimento maior, e algum colorido mais aos caracteres, - o de

Guiomar, sobretudo, - foi o meu objetivo principal, senão exclusivo,

servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os contornos dos

perfis. Incompletos embora, terão eles saído naturais e verdadeiros? 213

Tal como José de Alencar já o fizera, Machado também parecia refutar a

hipótese de conceber personagens que se resumissem a tipificações desprovidas de

profundidade psicológica. Ainda assim, a preocupação com a verossimilhança serviria

de norte para que tais perfis não fossem distanciados dos certames condizentes a uma

dada realidade social e histórica. No caso específico, as atenções se voltariam a um

caractere em específico, o de Guiomar, a protagonista da narrativa que era anunciada.

É claro que pretendemos examinar tal perfil feminino com acuidade. Mas, para

tanto, e sempre tendo-se em mente o entrecruzando entre as linguagens literária e

jornalística, inicialmente iremos nos voltar à análise do jornal O Novo Mundo,

reconstituindo parte dos debates que poderiam dialogar com o texto ―Notícia da atual

literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade‖; afinal, cogitamos haver sentidos

manifestos na presença de tal escrito em determinado suporte. Na verdade, e recorrendo

a mais um espaço midiático, pretendemos nos debruçar sobre temáticas que cremos

envolver ambos os romances que nos mobilizam, como, por exemplo, no caso da

famigerada discussão em torno das dissonâncias de uma modernidade em contexto

periférico (e escravocrata) e; tendo por fim a análise de Guiomar, o tema da condição

feminina como signo - ou consequência - dessa mesma modernidade.

213

ASSIS, Machado de. ―ADVERTÊNCIA DE 1874‖. In: A mão e a luva. Obra Completa, Rio de

Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p.1.

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SEGUNDA PARTE –

O FOLHETIM A MÃO E A LUVA (1874), DE MACHADO DE ASSIS, NAS

MALHAS DA IMPRENSA MODERNA E LIBERAL.

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IV. SOBRE O PERIÓDICO O NOVO MUNDO (NOVA IORQUE, 1870 -

1875).

IV.1 O Novo Mundo e a proposta de uma zona de influência entre mundos novos.

Antes de iniciar o escrutínio do periódico, optamos por esboçar um apanhado

das principais ideias que compunham os seus alicerces, apresentando as primeiras

impressões a respeito de uma folha que surgia com a proposta de propagar o frescor de

―mundos novos‖ - americanos e emergentes -, que forjavam as suas identidades a partir

da prerrogativa da negação de tudo o que remetesse ao ranço de uma cultura europeia,

tida por ultrapassada. Dito isto, pensamos que a análise da imagem do cabeçalho do

jornal, talvez, seja a forma mais simples de tomar contato com tal arcabouço de ideais.

Para tanto, observemos:

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de dezembro de 1870, nº 3, p.33.

Em letras garrafais, cuidadosamente ornamentadas, nos deparamos com o título

do jornal seguido da informação de sua natureza: tratava-se de um periódico ilustrado

comprometido com o progresso de uma nova Era. Um periódico, e não uma revista

ilustrada concebida em torno de superficialidades brejeiras (vale lembrar que essa era

uma acusação frequente em relação às revistas ilustradas, especialmente as

femininas214

). Ao fundo, observamos o desenho do globo terrestre, cuja face exibia os

mapas das Américas do Norte e do Sul, ambas conectadas por um cabo visível, e que

214

Cf.: CRESTANI, Jaison Luís. ―O perfil editorial da revista A Estação: jornal ilustrado para a família.‖

Revista da Anpoll, vol. 1, nº 25, 2008, p.323-353.

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poderia remeter às rotas marítimas que ligavam os territórios (eram muitos os

anunciantes norte-americanos que ofertavam seus produtos no jornal e se

comprometiam com o frete para o Brasil); como poderia se referir às conexões

submarinas que possibilitavam a instalação dos telégrafos (verdadeira obsessão temática

dos redatores do Novo Mundo); além de ser factível que aludisse ao fluxo migratório na

região (caso do próprio José Carlos Rodrigues, o proprietário da folha). De todo modo,

e para além do visível, o que nos interessa são os cabos impalpáveis que deveriam

aproximar as Américas.

No discurso do jornal, a Europa seria constantemente ultrajada como baluarte da

decadência; a França, em específico, que sempre fora a referência do nosso ―longo

século XIX‖215

, surgia como símbolo de uma sociedade carcomida pelas imoralidades

que condenavam o seu sistema político e a sua produção cultural. A América, aguerrida

em sua História de subalternidade, precisava se reinventar a partir de si própria.

Em meio a uma Nova Iorque em ebulição, o Novo Mundo falava ao Brasil. O

olhar, portanto, era de fora para dentro. A matriz que moldava o jornal era norte-

americana, essencialmente protestante, sendo que os seus interlocutores eram

reconhecidos entre os habitantes de um país politicamente retrógrado (monarquista);

com relações de trabalho exploratórias e compreendidas como inadequadas ao

desenvolvimento do capitalismo (a escravidão); e com uma cultura tacanha e

impregnada de lusitanismos. Os Estados Unidos eram o exemplo a ser seguido, e não

somente pelo Brasil, mas pelo México, por Cuba, pelo Panamá, etc. Em roupagem

dialógica o periódico propunha um novo processo de influência: entre Américas, mas,

seguramente, com a liderança da América mais ao norte.

IV.2 Perfil editorial.

215

―O uso da categoria século para organizar a narrativa historiográfica é recorrente entre os

historiadores. Conscientes, porém, de que os momentos significativos que marcam as eras ou os períodos

históricos não coincidem com a passagem de um a outro século conforme a contagem cronológica, os

historiadores são levados a flexibilizar a referida categoria lançando mão de expressões como ―breve

século‖ ou ―longo século‖. Assim, não apenas o início e o término dos séculos históricos não coincidem

com aqueles dos séculos cronológicos, como pode haver superposição entre eles, situação em que

determinado século pode ter o seu término em data posterior ao início do século seguinte.‖ In: SAVIANI,

Dermeval. O legado educacional do século XIX. Campinas: Autores Associados, 2006, p.09.

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Em 24 de outubro de 1870 vinha a lume o primeiro exemplar do jornal O Novo

Mundo. De periodicidade mensal, e variando entre 15 e 20 páginas por exemplar, a

folha ainda chama a atenção pela sua qualidade gráfica. As imagens impressas -

assumidamente retiradas do periódico londrino Graphics - eram produzidas através de

clichês de aço ou de cobre, o que demonstrava o apreço por uma tecnologia arrojada,

haja vista que os impressos da época eram comumente confeccionados a partir de

técnicas de litogravura ou até xilogravura.216

Ainda assim, quando alguma falha passava

despercebida, os editores corriam para se justificar, e o próximo número geralmente

seguia com a errata que expressava o pesar pela falha.217

Até mesmo o papel, item escasso e valorizado no contexto oitocentista218

, era

uma preocupação importante para os editores. Certa vez, em decorrência de uma

estiagem que teria acometido a região da tipografia, o jornal teve de ser impresso em

papel de aspecto inferior (não acetinado como de costume), comprometendo os

resultados das técnicas empregadas na confecção folha; logo, um pedido de desculpas

aos assinantes surgiria através de uma nota explicativa.219

Em outra ocasião, e

demonstrando uma preocupação bastante clara com o colecionismo, os agentes do jornal

passariam a anunciar a venda de capas especiais para que o público pudesse

acondicionar os exemplares de forma mais organizada e à maneira de livros.220

Em

suma, e como ponto de partida, frisamos que o primor em relação à materialidade era

um atributo muito relevante para o corpo editorial d´O Novo Mundo.

216

FONSECA, Letícia Pedruzzi. ―O aprimoramento da tecnologia gráfica no século XIX.‖ In: Uma

revolução gráfica: Julião Machado e as revistas ilustradas no Brasil, 1895 - 1898. São Paulo: Editora

Edgar Blücher, 2016, p.14-26. 217

Segue um exemplo: ―ADVERTÊNCIAS: Na entrega dos números atrasados desta folha tem havido

alguma demora, que somos os primeiros a lastimar, mas de que esperamos desculpas dos srs. assinantes;

porquanto são muitos os números que temos precisado reimprimir, e a impressão de periódicos ilustrados

como este, pelos cuidados que exige, não pode ser muito apressada. [...]‖ (O Novo Mundo, Nova Iorque,

24 de novembro de 1873, nº 38, p.22). 218

MOLINA, Matías M. História dos jornais no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 219

―A grande seca que houve ultimamente na Nova Inglaterra fez parar as fábricas de papel, e o segundo

número do Novo Mundo teve de ser impresso em papel que, posto que igual ao do primeiro em qualidade,

não era tão acetinado como ele. Este periódico é impresso por um processo novo, em papel não

umedecido. Entretanto, o muito linho do segundo número requeria que ele recebesse as impressões

segundo o sistema ordinário. Por uma quase incompreensível negligência de parte do impressor, isto não

se fez, e o resultado foi a sua não esperada má execução tipográfica, que lastimamos não menos do que os

assinantes.‖ (O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de dezembro de 1870, nº 3, p.46). 220

―Advertência: Os nossos principais agentes nas cidades marítimas do Brasil têm amostras de capas

especiais, para conservação e encadernação dos números do Novo Mundo. Eles receberão encomendas

dos Srs. assinantes que as quiserem obter. O preço de cada uma é 2$, que representa o seu custo real por

atacado em Nova Iorque. Essas capas são feitas de modo que à proporção que o assinante recebe os

números do periódico vai cosendo-os, e destarte não só conserva mais limpa a coleção, como também

dispensa a encadernação especial, ao findar-se o volume.‖ (O Novo Mundo, Nova Iorque, 22 de fevereiro

de 1875, nº 53, p. 118).

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Aliás, vale dizer que em determinado momento, poucos anos após a fundação do

jornal, a questão ganharia tamanha especificidade que, a exemplo de outros periódicos

da época, o Novo Mundo também passaria a oferecer os seus serviços tipográficos a

terceiros. No anúncio reproduzido a seguir notamos a ênfase em certos diferenciais:

impressão através de chapas metálicas, o acesso às cores, a menor possibilidade de erros

em decorrência da reprodutibilidade; ou, nos termos de uma publicidade um pouco mais

sedutora: a promessa de nitidez e elegância. E, em tempos de folhas impressas entre

borrões e defeitos tipográficos, não há dúvidas de que a oferta deveria ter público

cativo:

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de março de 1872, nº 18, p.112.

Assim, e a passos nem tão lentos, o Novo Mundo se transformava numa empresa

jornalística de eficiência notável. Por outro lado, há de se ponderar que a deliberada

intenção de configurar o periódico a um cenário mercadológico, também parecia

suscitar alguns conflitos de natureza ética entre os editores que integravam a folha. As

evidências desse paradoxo podem ser notadas no seguinte editorial, parcialmente

transcrito abaixo:

[...] O Novo Mundo é uma mercadoria como outra qualquer, sujeita a

certas leis de demanda, que não nos são desconhecidas. Entretanto

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protestamos que nunca modificaremos o nosso programa em seus

pontos principais para conseguir o que chamamos ―agradar a opinião

pública‖: este periódico não reproduz a ―opinião pública‖, senão como

fato de história. [...] Procuraremos sempre melhorar a qualidade da

mercadoria, mas sem tocar-lhe no que, para nós, lhe é essencial.221

A citação permite que abordemos alguns temas essenciais à compreensão do

veículo em questão. Inicialmente, identificando o Novo Mundo como uma

―mercadoria‖, os editores sinalizavam com uma consciência crítica em relação à

inserção da publicação no contexto de uma indústria de bens culturais, vulneráveis às

demandas de consumo.222

Nesse sentido, a premissa da defesa de ideários e o suposto

compromisso em agraciar as expectativas do público, chocavam-se num campo de

forças quase que inconciliáveis. No entanto, e pelo menos no plano discursivo, os

editores eram assertivos em garantir a lisura do programa que guiava a construção da

folha desde a sua inauguração, por isso, faz-se imprescindível que o analisemos.

Assinado por José Carlos Rodrigues, segue o texto integralmente:

Um simples perpassar da vista por estas páginas basta para dar ideia

do periódico que nos propomos a publicar mensalmente, à saída do

paquete do Brasil. Entretanto, como um único número dele não pode

trazer bem em relevo as linhas do rumo que pretendemos seguir,

diremos aqui, em poucas palavras, o que esperamos fazer para o

diante.

Depois da guerra intestina dos Estados Unidos, o Brasil e a América

do Sul têm procurado estudar profundamente as coisas deste país. ―O

NOVO MUNDO‖ propõe-se a concorrer para este estudo, não dando

notícias dos Estados Unidos, mas expondo as principais manifestações

do seu programa e discutindo sobre as causas e tendências deste

progresso.

Admiradores sinceros das instituições deste país não queremos,

todavia, americanizar o Brasil nem país algum. Cremos muito na

bondade de Deus, e na natureza humana para não fazermos do

progresso de um povo a cópia do progresso de outro. Não crendo em

distinções de raças, para nós, todos os povos são chamados a atingir a

mesma perfeição por meio do trabalho e da fé na Providência. ―O

NOVO MUNDO‖, pois, contentar-se-á em tomar nota do que toca a

estes dois meios de progresso; não será mestre, mas expositor; não

será juiz, mas servo, da verdade.223

Caracterizado pela brevidade, o texto tocava nos principais temas que iriam

nortear todo o jornal ao longo de sua existência (1870 - 1879). Como não é difícil 221

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de setembro de 1872, nº 24, p.206. 222

Sobre o tema, ver: MOLLIER, Jean-Yves. O dinheiro e as letras: história do capitalismo editorial.

(Tradução: Kátia Aily Franco de Camargo). São Paulo: EDUSP, 2010. 223

J. C. RODRIGUES, REDATOR. O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de outubro de 1870, nº 1, p.2.

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prever, a ―guerra intestina‖ referenciada era a Guerra de Secessão (1861-1865), que

culminara com a abolição da escravatura nos EUA; vale antecipar que a temática -

reconhecida como exemplo para a situação brasileira - seria abordada de maneira

frequente nas páginas do jornal. A noção de um ideal progressista concebido nos termos

do liberalismo clássico, também seria uma alusão implícita a cada linha d´O Novo

Mundo. Ademais, e como fica evidente, a menção religiosa, logo tipificada como

protestante, também iria constituir-se como base ideológica do periódico; e isso não

somente por causa da confissão espiritual de José C. Rodrigues, mas especialmente pela

associação do protestantismo com a novidade do progresso, e em detrimento de um

catolicismo visto como símbolo da velha Europa. Eis as primeiras pistas em torno do

programa que integrava o periódico O Novo Mundo. Sem dúvidas, o nosso próximo

passo deverá basear-se na reconstituição da trajetória daquele que assinava tal escrito.

Fazendo caminho inverso à maioria das biografias, apresentaremos o Sr.

Rodrigues com base num discurso derradeiro, proferido oito anos antes de sua morte,

quando o jornalista se despedia da direção do Jornal do Commercio, do qual também

fora principal sócio e redator:

Em torno do chefe que se despedia, legando a esta folha, como

inestimável patrimônio moral, o nobre esforço de uma vida inteira,

formaram ontem, numa perfeita identidade de sentimentos de grata e

leal estima, todos os que se acostumaram a praticar-lhe os

ensinamentos, num convívio diário, que era uma verdadeira escola

nobilitadora dos labores jornalísticos. Essa escola, essa serena

atmosfera de dedicação na defesa das causas justas, do bem coletivo,

dos direitos e aspirações nacionais; esse ambiente de nítida

compreensão da tarefa social da imprensa, que não é, somente, a de

informar, senão também, e sobretudo, a de nortear pelo bom caminho

a opinião pública — o preclaro brasileiro, em cinco lustros de direção,

soube tornar, aqui, uma resultante dos atributos de sua poderosa

individualidade de lutador e de sábio.

[...] Foi, pois, pelo trabalho que me elevei. Não forcei portas, não

saltei pelas janelas escusas de uma casa onde não tivesse, pelo meu

tirocínio, entrada franca. [...].224

224

Despedidas do Dr. José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Rio

de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1915. O exemplar utilizado para a apreciação encontra-se

na Biblioteca Nacional, coleção Christopher Oldham, localização: 32,04,002 nº 003. Apud:

JUNQUEIRA, Julia R. ―O preclaro brasileiro - a memória perpetuada do jornalista José Carlos Rodrigues

(1844-1923).‖ Dia-Logos, Rio de Janeiro, nº 8, outubro de 2014, p.99-110.

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Como homem de letras cunhado pelas acepções do século XIX, J.C. Rodrigues

demonstrou uma grande preocupação com a construção de narrativas memorialísticas

que tratassem de sua vida. Isto posto, chamamos a atenção para duas afirmações do

jornalista: 1) A crença na função formadora da imprensa; 2) A concepção de uma

imagem de si atrelada ao que haveria de mais célebre: J.C. Rodrigues seria o preclaro

brasileiro.

De acordo com a pesquisadora Julia R. Junqueira225

, o texto citado acima foi por

muitos anos a principal fonte de pesquisa a respeito do jornalista, no mesmo texto

Rodrigues contava de seus tempos de estudante, de sua paixão precoce pelas Letras, da

repentina migração para os EUA, e do retorno ao Brasil, quando transformou o Jornal

do Commercio numa empresa prestigiada. A narrativa era clara: estávamos diante de um

trabalhador incansável, que vencera na vida por méritos próprios. Porém, e como exige

qualquer testemunho que tenha por intenção a inscrição na posteridade, ponderamos que

o texto deve ser lido com ressalvas, especialmente naquilo que é suprimido, ou

simplesmente não dito.

Em 1953, e ainda com base no trecho autobiográfico citado, o escritor Charles

Anderson Gauld publicava um longo artigo no qual esmiuçava a biografia de J.C.

Rodrigues. Nas páginas do repaginado Jornal do Commercio, sob o título ―José Carlos

Rodrigues. O patriarca da imprensa carioca‖226

, o escrito se tornaria uma referência

importantíssima entre aqueles que se debruçam sobre os pormenores da vida do

publicista.

Nascido em Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro, no seio de uma família

proprietária de grandes fazendas de café na região, José Carlos Rodrigues viveu seus

longos 79 anos (1844 - 1923) atendido por todos os confortos que o dinheiro poderia lhe

proporcionar. Comum à época, - pelo menos entre os seus pares - na juventude

Rodrigues se mudaria para São Paulo, a fim de bacharelar-se em Direito. Formou-se aos

20 anos. Na mesma Província, o estudante também teria os seus primeiros contatos com

o protestantismo, através do amigo e professor de inglês George Whithill Chamberlain,

um reconhecido missionário da Igreja Presbiteriana no Brasil, e principal fundador da

Escola Americana que, posteriormente, daria origem a Universidade Mackenzie. Nesse

contexto, o rapaz iria se ocupar de suas primeiras publicações: artigos esparsos em

225

Idem. 226

GAULD, Charles Anderson. ―José Carlos Rodrigues: o patriarca da imprensa carioca.” Jornal do

Comércio, Rio de Janeiro, 7 de junho de 1953. (Artigo consultado em: Revista de História, vol. 7, nº 16,

1953, p. 427-438).

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jornais, uma edição anotada da Constituição Imperial, e a fundação de uma revista

jurídica que durou cerca de seis anos.

Findo o curso superior, J.C. Rodrigues retornaria ao Rio de Janeiro para se

dedicar à advocacia, mas, nesse momento ele seria surpreendido pelo convite de um ex-

professor nomeado para Ministro do Estado, e que o cogitava para secretário. Em

passagem um tanto quanto obscura, Charles A. Gauld registraria que Rodrigues não

pôde assumir o cargo em decorrência do cometimento de ―um ato imprudente‖, que

teria sido habilmente utilizado por seus inimigos políticos.227

Sem muitas explicações,

somos apenas informados de que o impasse seria mitigado pela opção do autoexílio nos

EUA. Já instalado em Nova Iorque, o jornalista seria nomeado correspondente

internacional do Diário Oficial do Brasil e do Jornal Commercio; contudo, possuindo

capital para investimento e ótimos contatos espalhados por diversos países, não tardaria

para que J.C. Rodrigues conseguisse fundar o seu próprio periódico. Dessa forma,

chegamos em 1870, ano da fundação do jornal O Novo Mundo.

Muito embora esta seja a narrativa biográfica que ainda permeia os principais

trabalhos sobre o proprietário d´O Novo Mundo, é importante que tratemos de alguns

―pontos cegos‖ sugeridos, em específico sobre o episódio da migração de J.C.

Rodrigues para Nova Iorque. Conforme demonstrado pela pesquisadora Mônica Maria

Rinaldi Asciutti228

, na realidade, o publicista teria se refugiado na América para ver-se

livre de um tumulado processo motivado pelo crime de estelionato. Aliás, o episódio já

teria sido mencionado anteriormente, por Magalhães Jr., em Rui, o homem e o mito.229

De todo modo, Asciutti nos traz mais detalhes: em seu retorno ao Rio de Janeiro como

advogado, Rodrigues teria a oportunidade de trabalhar como oficial de gabinete para um

antigo professor da faculdade, o então Conselheiro João da Silva Carrão, deputado geral

por São Paulo, e nomeado para a pasta do Ministério das Finanças. Tendo-se em vista o

cenário de instabilidades políticas de então, o protetor de Rodrigues não duraria muito

no cargo e logo seria relegado ao ostracismo. Nesse ínterim, e desnorteado com os

rumos dos acontecimentos, Rodrigues teria comparecido ao Tesouro do Império

portando uma ordem irregular de pagamento, já que a assinatura do Conselheiro Carrão

227

―Quando um ex-professor seu foi escolhido ministro do Estado, este o convidou para secretário.

Aparecia-lhe ante os olhos uma carreira brilhante, carreira que os inimigos políticos lhe cortaram,

aproveitando-se de um ato imprudente que cometera.‖ In. Idem, p.428. 228

ASCIUTTI, Mônica Maria Rinaldi. ―Um perfil do jornal e do seu criador, José Carlos Rodrigues.‖ In:

Um lugar para o periódico O Novo Mundo (Nova Iorque, 1870-1879). Dissertação (Mestrado em Letras).

São Paulo: USP, 2010, p.19-62. 229

MAGALHÃES JÚNIOR, R. Rui, o homem e o mito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

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não seria legítima. Um processo criminal seria instaurado, porém, nosso bacharel sequer

chegaria a ser intimado para depoimento, uma vez que a fuga para os EUA já se

encontrava articulada. Em 1887, ano exato da prescrição do crime, Rodrigues retornaria

ao Brasil a fim de prosseguir com a sua quase imaculada carreira à frente do Jornal do

Commercio. Reconstituída a lacuna, podemos seguir cientes de que estamos diante de

uma figura hábil, de posição social proeminente, e que podia contar com uma ampla

rede de sociabilidade230

no Brasil e fora dele.

Outra ―meia-verdade‖ incorrida por Rodrigues, diz respeito ao ineditismo de seu

empreendimento. Já no primeiro número do jornal, em meio a um apanhado sobre os

periódicos que circulavam no contexto externo da época, o editor vangloriava-se de

informar que: ―[...] o Novo Mundo é a primeira publicação periódica em português que

aqui se faz.‖231

De fato, em Nova Iorque, não temos notícias de outra folha brasileira

instalada anteriormente. Todavia, Nelson Werneck Sodré já teria esclarecido que o

Correio Brasiliense ou Armazém Literário (1808 - 1822), produzido em Londres, e de

propriedade do Sr. Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça, foi a primeira

manifestação jornalística impressa no exterior e voltada para o Brasil.232

De qualquer

forma, por meio do engodo podemos notar os esforços de Rodrigues para ser

reconhecido como um visionário, ou como alguém capaz proporcionar novos rumos à

circulação de impressos na América.

Em Nova Iorque, de acordo com excertos colhidos no próprio periódico,

notamos as evidências de que o jornal circulava especialmente entre os leitores de

língua portuguesa reconhecidos na comunidade hispânica. Em certa ocasião, tratando

das particularidades de uma ―Associação de Moços Cristãos‖, o redator descrevia as

instalações e as atividades oferecidas pela instituição: cursos de caligrafia, música,

idiomas; e sobre o gabinete de leitura, eram citados os seguintes detalhes:

A biblioteca está bem ornada de livros, e o gabinete de leitura, onde se

encontram perto de oitenta folhas diárias americanas, e onze

estrangeiras; setenta semanários americanos, e trinta estrangeiros;

sessenta publicações mensais americanas, e quarenta semi-mensais e

trimensais, ao todo trezentos e vinte. Entre eles vemos O Novo

230

De acordo com Jean-François Sirinelli: ―O meio intelectual constitui, ao menos para seu núcleo

central, um ―pequeno mundo estreito‖, onde os laços se atam, por exemplo, em torno da redação de uma

revista ou do conselho editorial de uma editora. A linguagem comum homologou o termo ―redes‖ para

definir tais estruturas.‖. In: SIRINELLI, Jean-François. ―Os Intelectuais‖. RÉMOND, René (Org.). Por

uma História política. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.248. 231

O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de outubro de 1870, nº 1, p.11. 232

SODRÉ, N. W. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

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Mundo, que mostra ter sido bem maneado pelos cubanos e espanhóis,

que frequentam o gabinete.233

É provável que a recepção positiva entre tal público tenha motivado J.C.

Rodrigues a fundar um outro periódico ilustrado em 1872, o La América Ilustrada,

concebido nos mesmos termos d´O Novo Mundo, e igualmente editado em Nova Iorque.

Vez ou outra acompanhávamos alguma informação a respeito do jornal em língua

espanhola: tinha uma periodicidade diversa da folha voltada aos brasileiros, contava

com um preço considerado baixo, e era distribuído entre colônias e repúblicas

espanholas. Das poucas notas colhidas, contamos com um texto publicado no Novo

Mundo em 1874, que tratava da fusão do La América Ilustrada com um outro jornal, o

El Nuevo Mundo234

; e também propunha uma comparação entre as taxas e impostos

para se distribuir jornais no Brasil e nos territórios hispânicos, sendo que os abusos e

atos de corrupção que preconizavam tais trâmites no território brasileiro, eram

sutilmente denunciados no excerto:

LA AMERICA ILUSTRADA

Há três anos anunciávamos o aparecimento em Nova Iorque de um

jornal ilustrado em espanhol, do mesmo formato e aparência geral do

Novo Mundo e intitulado El Nuevo Mundo. Um dos proprietários

desse periódico era o bem conhecido americano, Mr. Frank Leslie,

editor de sete ou oito publicações ilustradas. Apesar, porém, deste

nome tão forte, o proprietário do Novo Mundo não recuou do

propósito que já algum tempo antes havia formado de fundar um

periódico hispânico-americano, mais ou menos como este, e em

janeiro de 1872 apareceu La América Ilustrada que até agora tem

saído ininterruptamente, no primeiro ano, duas vezes por mês e, de

1873 a esta parte, três vezes por mês. Apesar do bom sucesso desta

publicação, o preço de sua assinatura era tão diminuto que ela não

podia ter um brilhante futuro, e com ela nenhum de seus rivais. Ao

passo que El Americano do Sr. H. Varela custa 18 pesos por 64

páginas, a América Ilustrada começou dando 32 páginas por apenas 5

pesos, e por mais d´um ano tem dado 36 páginas pelo mesmo preço.

El Novo Mundo que vendia-se pelo já módico preço de 7 pesos e meio

foi assim compelido a reduzi-lo a 5 pesos, que até agora tem

conservado.

Neste mês, operou-se uma consolidação desses dois periódicos, o

proprietário do Novo Mundo e da América Ilustrada tendo comprado a

233

―Associação de moços cristãos.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 21 de fevereiro de 1871, nº 5, p.71. 234

Já no segundo ano do jornal, o corpo editorial d´O Novo Mundo publicaria uma nota se queixando da

coincidência do título: ―[...] Em Nova York vai também aparecer um jornal como o nosso em espanhol,

que um cubano vai publicar sob o título El Nuevo Mundo, título que num país estrangeiro, principalmente,

tanto se confunde com o nosso.‖ (O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de maio de 1871, nº 8, p.119).

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empresa do Mundo Nuevo, e fazendo de dois jornais fracos uma folha

ilustrada de primeira classe e estabelecida em bases sólidas. A atual

edição da América Ilustrada e El Mundo Nuevo já atinge ao

respeitável algarismo de 8.360 exemplares; e por conseguinte é uma

das publicações mais procuradas no idioma espanhol, nem sabemos

que haja outra de maior circulação neste hemisfério.

É fato curioso que nenhuma das repúblicas e colônias onde chega o

nosso jornal espanhol pagamos direitos de entrada, e que entretanto o

nosso próprio Novo Mundo está sujeito no Brasil a um imposto

oneroso, já de alfandega [e] já de correio. Demais a mais as

autoridades fiscais têm mania de pensar que o público e o comércio

foram estabelecidos para elas e não elas para eles. Certo inspetor de

alfândega, por exemplo, contra a expressa letra da lei, tem por vezes

resolvido em sua própria sabedoria que o Novo Mundo, que lhe tem

sido apresentado como impresso sujeito a direitos específicos na

tarifa, deve passar pelo correio e nos têm feito pagar o selo de jornais.

Não temos falado deste e outros muitos abusos porque nos repugna

escrever contra faltas da pátria em terra estranha. Os nossos pretores

não curam dessas ninharias administrativas e seus subordinados, com

o auxílio de uma legislação que parece promulgada sob o princípio –

que fisco é tudo e que todo importador é um tratante, ainda mais o

público com a sua proverbial laxidão e exceções, legais e ilegais,

Ninharias como sejam, é, todavia, por ela que o estrangeiro julga

quase sempre de um país. Não queremos dizer que o Brasil está mais

atrasado do que as repúblicas hispano-americanas, mas somente que

não devemos tomar toda presunção e água-benta que damos a nós

próprios.235

Podemos supor que J.C. Rodrigues buscasse delinear uma ampla rede de

comunicação entre os continentes americanos, e o modelo d´O Novo Mundo iria se

apresentar como uma referência, ou como uma matriz discursiva a ser imitada e

reproduzida. Ainda retomaremos tal hipótese, todavia, neste momento pensamos ser

necessária a exposição de dados de ordem prática, diretamente ligados à inserção do

periódico no complexo mercado das letras da época.

Como dito, o jornal mensal surgiu em 1870 como um produto editado em reduto

nova-iorquino e com vistas ao público brasileiro, ainda que houvesse a circulação do

meio nos EUA. A partir do periódico não tivemos acesso aos dados sobre tiragens,

porém, de acordo com George C. A. Boehrer236

, pode-se afirmar que, apesar da

circulação acanhada em seus inícios, não tardou para que o Novo Mundo atingisse a

considerável marca de 8.000 exemplares impressos - no entanto, o autor não especifica

o exato intervalo de tempo considerado para o registro de tal cifra. E, se cogitarmos o 235

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de maio de 1874, nº 44, p.143. 236

Segue o trecho: ―[...] Circulation, small in the beginning, rose to 8.000. Most of the copies went to

Brazil, but there were some readers in the United States.‖ In: BOEHRER, G. C. A. ―José Carlos

Rodrigues and O Novo Mundo, 1870-1879.‖ Journal of Inter-American Studies. Miami, nº 1, 1967. p.

131.

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La América Ilustrada como uma folha secundária ao Novo Mundo, podemos até

ponderar um crescimento mais exponencial da folha em português, já que o La América

Ilustrada atingiu o número de 8.360 exemplares em apenas 2 anos de existência.

Ademais, os preços de assinatura para o Brasil eram os seguintes: 5$000 por seis meses,

sendo que o número avulso poderia ser adquirido por 1$000. De maneira inovadora, e

dividindo o mesmo espaço dos informes sobre assinaturas, já seguiam também os

valores cobrados dos anunciantes interessados em divulgar os seus produtos no Brasil,

uma vez que o intercâmbio econômico entre os EUA e o Brasil era uma questão latente

para o editor d´O Novo Mundo:

O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de outubro de 1870, nº 1, p.14.

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Estabelecendo uma breve comparação com outros jornais da época, como a

popular Gazeta de Notícias ou a luxuosa Semana Illustrada237

, há de se afirmar que os

preços d´O Novo Mundo não eram dos mais acessíveis para a população brasileira em

geral, todavia, e considerando os custos de um periódico sofisticado e produzido no

exterior, pode-se argumentar que os valores também não eram configurados de maneira

abusiva. E é importante registrar que a venda avulsa dos exemplares deve ser

compreendida como uma ótima estratégia para maior disseminação da folha a preços

mais leves - trata-se do mesmo artifício utilizado pela Gazeta de Notícias, que era

vendida avulsamente pelas ruas do Rio de Janeiro ao preço de 40 réis. No ano de 1874,

quando somos rapidamente informados de um pequeno reajuste nos preços de

assinatura238

- provavelmente, em decorrência do acréscimo de um suplemento feminino

ao periódico - seguia uma nota corroborando o tema da ―barateza‖ d´O Novo Mundo,

ou, pelo menos, relativizando o seu custo-benefício:

O Novo Mundo, apesar do aumento do preço, ainda é uma das

publicações mais baratas do seu gênero. No fim do ano teremos, no

todo, distribuído pelo menos 375 páginas de impressão que terão

custado ao assinante apenas 40 réis cada uma.239

O amplo espaço reservado aos anunciantes - pelo menos duas páginas por

número - também permite cogitarmos tal setor como uma fonte relevante de

rendimentos para a empresa jornalística. Havia de tudo um pouco: maquinários ligados

à indústria têxtil; máquinas de costura; prensas tipográficas; bobinas de papel; e outras

tantas ―engenhocas‖ movidas a vapor, combustão, eletricidade. De maneira geral,

observávamos produtos caros, modernos, e provenientes de anunciantes estadunidenses

interessados na promessa de um mercado brasileiro em franca ascensão.

237

Fundada em 1875, rapidamente a Gazeta de Notícias alcançou a tiragem de 24.000 exemplares diários.

Os preços de assinatura na Corte e em Niterói custavam 1$000 (preço mensal) e nas Províncias 4$000

(preço trimestral), além dos números vendidos avulsamente ao preço de 40 réis. (Cf.: PEREIRA,

Leonardo A. de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX, (2ª

edição). Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p.54). No caso da Semana Ilustrada, periódico semanal,

ricamente ilustrado com modernas técnicas de xilogravura, os preços em 1874 eram os seguintes: Corte

(anual e semestral, respectivamente): 16$000 e 9$000/ Províncias (anual e semestral, respectivamente):

18$000 e 11$000. (Cf.: SOUZA, Karen Fernanda Rodrigues de. As cores do traço: paternalismo, raça e

identidade nacional na Semana Illustrada (1860-1876). Dissertação (Mestrado em História). Campinas,

UNICAMP, 2007). 238

O valor do aumento não é especificado, e os anúncios que ofertavam a assinatura do jornal se

tornariam cada vez mais escassos. 239

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de outubro de 1874, nº 49, p.28.

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E a respeito da distribuição/circulação do jornal, vale registrar o mapeamento de

uma rede de proporções impressionantes. A remessa dos exemplares para o Brasil

chegava mensalmente, via paquete, e uma parcela dos exemplares permanecia nos EUA

para ser comercializado por lá. Havia um escritório filial no Rio de Janeiro, localizado

na Rua da Direita, mas, os agentes que representavam o jornal estavam espalhados por

todo o Brasil: Maranhão, Pará, Natal, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Santa Catarina,

Rio Grande do Sul, entre tantas outras províncias. No cenário exterior, o Novo Mundo

contava com assinantes em Macau, Hong Kong, e cogitava-se que chegasse até mesmo

ao Japão.240

240

―[...] Se este nosso número for ao Japão (a Macau e Hong Kong irá ele decerto, pois temos lá

assinantes), a gravura desta página contígua será tida pelas senhoras do Império como ―figurino de

modas.‖ (O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de janeiro de 1872, nº 16, p.64).

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O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de janeiro de 1874, nº 40, p. 73.

O raio de distribuição do jornal era notável, mas a constatação não permite que

tiremos conclusões precipitadas acerca das práticas e modos de leitura do periódico. Por

outro lado, a representação do leitor por meio de expectativas enunciadas, ou através de

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insistentes gravuras que abordavam o universo da leitura, permitem conjecturar algumas

pistas a respeito daqueles que poderiam ler o Novo Mundo.

IV.3 Da representação do público leitor.

Prática comum entre os periódicos da época, os editores d´O Novo Mundo

costumavam divulgar o endereço de correspondência do jornal, a fim de disponibilizar

um canal direto de comunicação com os seus assinantes. Excepcionalmente, em

dezembro de 1871, era publicada a carta de uma leitora de apenas 16 anos, que assinava

com as iniciais D.V., e que escrevia da província do Pará. Dirigida solenemente ao Sr.

Redator, a epístola trazia o deslumbre da jovem com a próspera e fraternal América do

Norte descortinada pelo periódico:

[...] Nestes últimos dias, pois, lendo eu alguns números do Novo

Mundo, jornal desse belo país, vim a conhecer que aí o povo,

fraternalmente, trata de melhorar, não só a causa do bem público,

como o interesse particular de cada um, caminhando na forma daquela

sublime máxima; o que quiseres para vós, deveis ambicionar para os

outros.241

Na leitura da carta ainda restava a impressão de que o contato com os EUA via

O Novo Mundo, teria proporcionado à moça uma tomada de consciência em relação ao

descompasso de seu próprio país. Dessa maneira, e fisgada pela falácia de uma América

governada por instituições incorruptíveis, D.V. afinava o seu discurso ao do próprio

jornal, e denunciava a improbidade das instituições brasileiras:

Aos 16 anos de idade, em que me acho, para uma menina de um país

repleto de incúria e aonde os meios da principal educação, mormente

no município a que pertenço, não são postos em prática, indicando

isso que os homens do Poder no Brasil, antes apreciarão a ignorância

do povo, de que a educação deste.242

241

D.V. ―Sr. Redator do Novo Mundo‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de dezembro de 1871, nº 15,

p.43. 242

Idem.

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106

No desfecho de seu escrito, D.V. ainda pedia que o redator a colocasse em

contato com uma correspondente nova-iorquina, fluente em português, e que estivesse

disposta a trocar informações sobre assuntos de suas respectivas localidades: ―[...] É

ousadia minha desejar correspondência com pessoa, natural de um país cheio de

atividades e nímio melhoramento.‖243

Logo, uma espécie de intercâmbio cultural seria

intermediado pelo redator do periódico.

Ainda que consideremos a hipótese de que a carta possa ser uma ―peça pregada‖

em leitores incautos, chama a atenção o anseio dos editores no estabelecimento de um

diálogo com o leitor, neste caso, com a leitora. Conforme já antecipamos,

posteriormente, o Novo Mundo ganharia um suplemento feminino, tornando-se uma

folha formalmente orientada para tal público; todavia, desde seus primeiros números, a

questão feminina, ou a afirmação dos direitos das mulheres, sempre estaria em pauta no

periódico. Ainda abordaremos tal temática, mas, nesse momento, iremos nos ocupar das

referências em torno da leitora almejada - e estereotipada - pelo jornal.

Páginas atrás nos referimos à qualidade das gravuras que eram apresentadas pelo

Novo Mundo, algumas delas eram acompanhadas de textos explicativos, outras tantas

seguiam avulsamente.244

O caso a seguir, que não conta com nenhum escrito

interpretativo, traz a imagem de quatro perfis femininos: o da noiva que se casava bela e

asseada, em contraposição com a esposa/mãe desleixada por conta do cotidiano

doméstico; e o da ―menina preguiçosa‖ com um livro em mãos decaídas, em confronto

com a ―menina diligente‖ que empunhava o livro de maneira altiva:

243

Idem. 244

Sobre isso, argumentavam os editores: ―Sabemos que alguns de nossos leitores reclamam às vezes

contra a falta de explicação de certas gravuras que publicamos. Mas, se não raramente eles têm razão, há

muitos casos em que é absolutamente inútil acompanhar uma estampa de explicação, e nesses casos

preferimos encher o espaço com matéria que julgamos mais útil.‖ (―As nossas gravuras‖. O Novo Mundo,

Nova Iorque, 23 de julho de 1874, nº 46, p.186).

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107

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de julho de 1873, nº 34, p.172.

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108

Eram estabelecidos, portanto, dois contrapontos: aquele que envolvia o cotidiano

privado, cujas mulheres silenciadas viam-se às voltas com a sobrecarga de funções tidas

por feminis; e do outro lado, crianças em processo de formação, que se dedicavam aos

livros ou não, e que a partir de tal constatação, tinham as feições de seu caráter

definidas. Vale salientar que a inércia da ―menina preguiçosa‖ também dizia respeito à

falta de cuidados para consigo: os cabelos emaranhados, a roupa desmazelada; além

disso, a lassidão também se estendia ao seu estado de espírito: a garota apresentava-se

cabisbaixa e com a mão no peito, como alguém que necessita de acalanto. A ―menina

diligente‖, por sua vez, dirige seus olhos vivos - e quase soberbos - ao expectador e,

esboçando um sorriso, posa com o livro de maneira elegante.

Analisando as imagens podemos inferir que o Novo Mundo cultivava o gosto

pela leitura entre as mulheres não somente como meio de erudição, mas como aparato

para normatizar a índole das mesmas. No caso, a prática que conduzia ao conhecimento

era relacionada à plenitude moral da mulher.

Isto posto, eram recorrentes os excertos que traziam o tema da educação

feminina compreendido como pré-requisito para o progresso de uma nação: ―Outra

pedra de toque das tendências civilizadoras de um povo é a posição que ele dá à

mulher.‖245

Sendo assim, as leitoras d´O Novo Mundo eram constantemente estimuladas

ao hábito da leitura, bem como ao hábito da escrita. Com certa frequência iríamos

acompanhar notas e resenhas sobre as obras de George Sand, e especialmente de

Harriet Beecher Stowe. Ou seja, a escrita de autoria feminina perpassava as páginas do

periódico com notável insistência. Até mesmo a reconhecida precursora das ideias

feministas no Brasil, a Sra. Nísia Floresta, seria reverenciada pela sua capacidade

crítica, e por suas aspirações como publicista. Eis a imagem de uma referência incutida

às leitoras/interlocutoras do jornal O Novo Mundo:

D. Nísia Augusta, ao que nos dizem, conta perto de sessenta e dois

anos, e é realmente um prazer fazer-se um retrospecto de sua vida e

achar-se-á toda elevada de trabalhos elevados e úteis, que bem

mostram que, ainda até entre nós, a mulher não foi feita somente para

criar filhos e encerrar todas as suas aspirações no círculo das afeições

domésticas, e que portanto, ―a mulher não precisa saber muito‖. Se há

um ―direito das mulheres‖ que de todo o bom grado lhes

concederíamos em toda a parte, se déssemos, é o de ilustrarem, como

lhes aprouver, e atirarem aos ares o jugo da ignorância em que nós, os

casacas, as queremos conservar.246

245

―A questão de raças.‖ – Editorial. O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de abril de 1871, nº 7, p.98. 246

―D. Nísia Floresta‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de maio de 1872, nº 20, p.133.

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109

―D. Nísia Floresta‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de maio de 1872, nº 20, p.133.

Num outro momento, sempre demonstrando atenção à cena brasileira, os

redatores iriam se referir à marca do 50º número do jornal O Sexo Feminino. A folha

mineira era aclamada em seu propósito de defesa do ideário feminista, e sua principal

redatora e fundadora, D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz, era especialmente

elogiada, no entanto, através de termos um tanto quanto controversos. Acompanhemos:

O Sexo Feminino, da Campanha (Minas), de que é redatora a Sra.

D.F.S da Motta Diniz, já chegou ao seu 50º número, e tem diante de si

futuro prometedor, a julgarmo-lo pela boa carreira que tem feito e pelo

tom enérgico e masculino da redação. Não queremos dizer, todavia,

que, para suceder bem as senhoras precisem tornar-se masculinas, no

rigor da expressão: nosso sexo, porém, tendo monopolizado tudo o

que é nobre, forte, e severo, e tendo degredado à mulher as tais graças

feminis de vestir-se, namorar e tocar o Orpheu nos Infernos, somos

obrigados a usar aquele termo para nos fazer entendidos.247

As referências de feminilidade e masculinidade dos redatores d´O Novo Mundo

baseavam-se num esquema falocêntrico, onde o feminino era compreendido como o

negativo do masculino.248

A partir dessa perspectiva, o masculino se tornava o

referencial, daí a adjetivação desastrosa aos olhos de hoje. De qualquer maneira, o

247

(Grifos no próprio jornal). O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de novembro de 1874, nº 50, p.43. 248

De maneira crítica, Judith Butler esclarece que: ―[...] Mesmo tomados em sua variedade, os discursos

constituem modalidades da linguagem falocêntrica. O sexo feminino é, portanto, também o sujeito que

não é uno. A relação entre masculino e feminino não pode ser representada numa economia significante

em que o masculino constitua o círculo fechado do significante e do significado.‖ In: BUTLER, Judith.

Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. (Tradução: Renato Aguiar). Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2015, p.33.

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intuito era reconhecer e prestigiar o trabalho intelectual de uma mulher considerada tão

competente quanto os homens que dominavam os meios da época. Dessa forma, vez ou

outra iriamos nos deparar com as dissonâncias de um discurso construído a duras penas,

e sob o inevitável signo da contradição.

Seguindo adiante, vale dizer que o jornal não tratava apenas de meninas

curiosas, que desejavam estabelecer relações com o mundo exterior; nem somente de

mulheres que tomavam para si o direito à ―palavra pública‖.249

Sob a ótica d´O Novo

Mundo, a escrita feminina também era considerada em sua vertente de intimidade, e

como instrumento para expressão de sentimentos afetivos:

249

NESCI, Catherine. ―Uma escritura polêmica: imprensa e espaço público no feminino.‖ In: ANDRIES,

Lise & GRANJA, Lúcia (organizadoras). Literaturas e escritas da imprensa: Brasil/França: século XIX.

Campinas-SP: Marcado das Letras, 2015, p.315.

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―A primeira carta de amor.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de setembro de 1873, nº

36, p.193.

Em roupagem distinta, o periódico O Novo Mundo também costumava retratar

figuras masculinas em meio a elementos que remetiam ao exercício de certa

intelectualidade. Em geral, as figuras dos ―homens leitores‖ eram conjugadas ao mundo

do trabalho, ou às práticas de uma inteligência estéril e tida por infeliz - isso sob o ponto

de vista religioso que tonalizava o jornal. A imagem a seguir, ilustra muito bem a

segunda afirmação:

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O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de novembro de 1871, nº14, p. 28.

De maneira um pouco deslocada, na 31ª página do periódico, acompanharíamos

um texto que propunha uma interpretação acerca da imagem. Intitulado ―Dois andares:

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113

o casado e o celibatário‖250

, em suas primeiras linhas o excerto admitia o pundonor

inerente ao quadro comparativo: ―Cheias de lição de moral são as duas gravuras que

estampamos à página 28 do corrente número.‖ Referindo-se aos pavimentos, - e

possivelmente às qualidades morais dos indivíduos - o redator explicava que, no andar

superior, comumente mais barato, vivia uma família numerosa e feliz, que certamente

sofreria percalços e ansiedades, mas que poderia contar com um futuro abençoado e

repleto de amor. Abaixo da família encontraríamos o celibatário, claramente irritado

pelo barulho das crianças, e incomodado pelo fato de não poder ler o seu jornal em paz.

O texto reiterava que aqueles tempos seriam marcados pela ―profusão dos jornais‖251

, e

vendo-se impedido de entregar-se ao seu único deleite, nada mais poderia elevar a alma

do solteirão, restando-lhe apenas um ―deserto de vida‖.252

Ao longo do escrito ainda

iríamos nos deparar com outras duras sentenças, porém, destacamos as conclusões que

evocavam o caso brasileiro:

Nós não somos apologistas ―absolutos‖ do casamento, há condições

da vida em que é melhor ao homem ficar como está: aqueles,

principalmente, que são de constituição doente, os que acham muito

difícil ganhar o pão substancial, esses, em nosso entender, devem

primeiro tratar de saúde e do trabalho, antes do que de casarem. Mas,

em regra geral, a vida matrimonial é melhor do que a de solteirão, e é

com muito pesar que vemos que no Brasil não se estimula o

casamento como se deveria. [...] Muitos são os motivos que arredam

os mancebos de se receberem em casamento no Brasil. [...] Basta-nos

dizer que o principal de todos é a escravidão, que desonra a família e o

casamento dos negros e que, como por justiça divina, também desonra

a família e o casamento da inteira sociedade, que os retém na

servidão.253

Embora o trecho escape ao tema deste item, optamos por transcrevê-lo no intuito

de demonstrar que as representações propostas pelo periódico eram delineadas a partir

250

O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de novembro de 1871, nº14, p.31. 251

―[...] Agora desçamos ao andar de baixo: eis ali o celibatário, agora não só aborrecido, como está

ordinariamente irritado pelo barulho que as crianças fazem no assoalho por verem o papai de gatinhas. Ei-

lo a puxar a campainha e quebrar-lhe a corda, talvez pela vigésima vez, até que lhe aparece o servo

enfadado que recebe intimação de dizer ao andar de cima que o inquilino do inferior não pode ler o seu

jornal. Que contraste de vida! Na profusão de jornais, o que é que este homem encontra que lhe eleve a

alma? Onde está quem lhe dê um sorriso, quem o acompanhe nas suas alegrias e dores, que lhe derrame

as graças na vida? Nada disto tem o celibatário. A sua companheira é a estátua que ele tem à mesa. A sua

vida é uma exatidão inexorável: ele mesmo é reto e puro; mas em tudo que lhe pertence há uma dureza,

um egoísmo, um deserto de vida.‖ (O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de novembro de 1871, nº14,

p.31). 252

Idem. 253

Idem.

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114

de um ―caldo ideológico‖ cujas matrizes pressupunham uma conduta moral

multifacetada. A educação e o acesso às benesses da modernidade eram pré-requisitos

para a formação crítica do indivíduo, contudo, a constituição do núcleo familiar, - nos

moldes conservadores da ―tradicional família burguesa‖ - também seria exigência

fundamental para a formação dos chamados ―cidadãos de bem‖. O tema do trabalho, a

antítese da vadiagem, e a exploração da escravidão, iriam se integrar ao debate, e,

tendo-se em vista a prerrogativa protestante que orientava os editores d´O Novo Mundo,

não seria difícil reconhecer a defesa do labor [assalariado] em sua função normativa.254

Assim, ―ilustração, família e trabalho‖ iriam compor a tríade que fundamentava todo o

discurso do jornal.

Por consequência, também iríamos nos deparar com muitas imagens que

abordavam a prática da leitura em meio ao cotidiano do trabalho. Na maioria das vezes,

vultos de trabalhadores disciplinados que se aproveitavam de breves intervalos para

desfrutar do conteúdo de um periódico, ou para tomar contato com as palavras sagradas

da Bíblia. Nesses casos, por entre bigornas e ambientes insalubres, o jornal e o livro

eram reiterados como instrumentos de informação, entretenimento e religiosidade de

sujeitos briosos por se dedicarem às agruras da labuta:

254

Utilizando-nos de termo proposto por Jefferson Cano, no discurso do jornal O Novo Mundo podemos

identificar o tema da ―nobilitação pelo trabalho‖, ou seja, opondo-se à ideia de uma nobreza por

―merecimento particular‖, e em defesa de uma meritocracia essencialmente liberal e contra os privilégios

sociais. Ver: CANO, Jefferson. ―Irmãos de arte: trabalho, identidade e imprensa em São Paulo no século

XIX.‖ Locus: revista de história. Juiz de Fora, v.15, nº 1, 2009, p.68-69.

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O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de outubro de 1871, nº 13, p.1.

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O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de agosto de 1874, nº 47, p.197.

Conforme afirmado, o Novo Mundo foi erigido a partir do estímulo às ideias

liberais e progressistas. Sendo assim, é importante destacar uma constante nas citações e

imagens reproduzidas: o acesso à prática da leitura fazia-se por iniciativa individual, ou

seja, não pressupunha a intermediação de instituições formais providas por órgãos de

poder. Tal constatação se fazia presente inclusive no estímulo aos gabinetes de leitura,

geralmente vinculados às irmandades ou associações autônomas. Para os editores do

jornal, a proposição desse tipo de organização atenuava os supostos excessos delegados

ao Estado.255

255

Em texto elogioso ao Real Gabinete Português de Leitura, fundado no Rio de Janeiro na primeira

metade do século XIX, a questão era elencada por um correspondente do jornal: ―Gabinetes Portugueses

de Leitura no Brasil – Sob este modesto e despretensioso título tem os nossos compatriotas fundado e

desenvolvido nas províncias do Império, - nas principais, senão ainda em todas, - verdadeiros

estabelecimentos de instrução, cuja importância de dia para dia se torna mais considerável. O último

relatório do gabinete português de leitura no Rio de Janeiro, primeiro instituído, ou um dos primeiros,

chamou a atenção e os justos louvores da imprensa periódica do reino para o vulto e grandeza dos

resultados obtidos. [...] As necessidades sociais aumentam dia a dia com a civilização. Um país livre não

pode levantar os olhos do código em que inscreveu seus foros para satisfação daquelas necessidades,

respondendo como Hamlet: words, words, words! Não acho aqui senão palavras, palavras e mais

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117

Dessa forma, a jovem D.V. que remeteu a carta ao redator à procura de laços em

Nova Iorque, o fez por livre arbítrio; a ―menina diligente‖ também não parece

condicionada a um ambiente de ensino formal. Além disso, por entre publicistas

proeminentes e mulheres que escreviam aos seus amados, haveria um largo espectro de

percepções acerca da expressividade feminina, e representar todas elas nas páginas do

jornal reiterava as distintas vertentes contempladas e estimuladas pelos editores. Enfim,

ao público ou aos seus pares íntimos, as mulheres que habitavam o Novo Mundo

falavam de/por si.

No caso dos leitores estereotipados, também podemos notar o incentivo às

práticas individuais, porém, há referências mais específicas ao cotidiano do trabalho e à

inserção na vida pública. Nas narrativas do ―celibatário‖ e do ―menino cristão‖,

evidenciavam-se ainda as insignes puristas presentes ao discurso do jornal,

demonstrando que o incentivo à instrução era coordenado à formação do caráter moral

do sujeito.

E, em quase todos os casos, o jornal fazia-se presente como fonte imprescindível

àqueles que buscavam tomar contato com as ideias que renovavam aqueles tempos.

Aliás, e utilizando-nos da expressão cunhada por J.C. Rodrigues, a imprensa traria

consigo os signos de uma ―Nova Era‖ em curso na virada do século XIX. Sendo que a

hipótese de uma sociedade construída sob a égide do liberalismo, seria um debate

primordial a ser construído junto ao público. Assim, ao propor a representação de

leitoras e leitores resolutos, honrados e disciplinados, os redatores demonstravam a

projeção de um público capaz de emular tal ideário de modernidade.

E, à guisa de uma breve conclusão, propomos a tese de que o jornal O Novo

Mundo trouxesse consigo as marcas de uma nova identidade burguesa256

, tipificada por

palavras! É moda hoje falar de descentralização. Fala-se muito para fazer estrondo; procede-se porém em

sentido oposto. Não há descentralização possível enquanto os povos andarem aconselhados a pedir e

esperar da tutoria do estado quanto precisam e quanto desejam. Os que tais costumes lhes têm favorecido,

e continuam a favorecer, são os maiores antagonistas dessa ideia; são-lhe estorvo permanente e

fatalíssimo. [...] Os gabinetes portugueses de leitura, tão importantes já, com um papel tão distinto em

perspectiva, são exemplos vivo de descentralização, dessa descentralização que, para viver e produzir,

não necessita mais que dois elementos – deliberação e capacidade. (Mendes Leal [Da “América” de

Lisboa]. ―Gabinetes Portugueses de Leitura no Brasil‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de janeiro de

1872, nº 16, p.67. 256

De acordo com Guillaume Pinson: ―[...] muitos grupos e meios sociais terão o jornal como mediação

compartilhada e unificadora. [...] talvez nenhuma das formas de sociabilidade do século XIX deixe de ser,

no mínimo, virtualmente uma vocação midiática. Frequentemente publicizada, a sociabilidade não é

vivida na estrita intimidade. O grupo existe porque afirma e representa seus limites e suas exclusões.

Nesse sentido, afirmar que a cultura midiática produziu no século XIX a sociabilidade, não é exagero: é

até mesmo evidente o tanto que o jornal permite traçar fronteiras sociais, formar e confirmar identidades

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sua americanidade, e associada às potencialidades individuais de homens e mulheres

que, entre outros atributos, estivessem dispostos a ―arregaçar as mangas‖ e construir o

próprio destino. Dito isso, a seguir, trataremos especificamente do mundo do trabalho, e

do tóxico inebriante advertido por José de Alencar: o dinheiro, e as formas de se ―fazê-

lo‖ num cenário economicamente ascendente, porém, recalcado em seus sentidos

periféricos.

IV.4 A nova face do liberalismo.

No tópico anterior, através de um exercício interpretativo, trouxemos à tona

alguns dos perfis de leitores projetados, ou, supostamente almejados, pelos editores do

periódico. No presente trecho, ainda daremos prosseguimento ao reconhecimento de

estereótipos sugeridos e, de antemão, iremos abordar um ―tipo‖ diretamente

referenciado e problematizado pelos publicistas d´O Novo Mundo: o ―money maker‖, ou

o arquétipo do sujeito de caráter duvidoso, hábil nas artes de se fazer fortuna:

Se um americano que fosse ao Rio de Janeiro escrevesse para Nova

Iorque que todas as senhoras brasileiras carregam os filhos às costas, -

porque aconteceu-lhe ver algumas negras africanas carregando os

filhos desta maneira, - esse americano estaria exatamente à mesma

distância da verdade em que está um oficial da marinha brasileira

chamado Miguel Ribeiro Lisboa, que aqui veio em viagem de

instrução na corveta Nytherohy e que, depois de uma estada de quinze

dias, escreveu ao Diário do Rio um tecido de patranhas, como, por

exemplo: ―Todo americano dos Estados Unidos é money-maker, ou

por outra, almeja a uma fortuna enorme, pouco se inquietando em

geral com os meios que empregue. Assim é que nesta honra-se muitas

vezes o milionário que começou por pick-pocket e no comércio miúdo

a arte do cheating é levada à perfeição. Pobres dos estrangeiros: são

esfolados. Mata-se em pleno dia em Broadway o transeunte que se

sabe levar alguns mil dólares na carteira... Em Nova Iorque há

diariamente assassinatos, parricídios, matricídios, e a delícia dos

americanos é ler no Herald e comentar estas cenas horrorosas. E em

seguida o oficial da marinha brasileira passa a falar de uma história de

perversidade em que ninguém aqui acredita e que ele naturalmente

escavou do lixo da imprensa ―de sensação‖.257

comuns.‖. (PINSON, Guillaume. ―Jornal e sociabilidade no século XIX.‖ In: ANDRIES, Lise &

GRANJA, Lúcia (organizadoras). (2015). Op. Cit., p.332-333. 257

―Tópicos do dia.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de setembro de 1873, nº 36, p.199.

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O trecho foi publicado na coluna ―Tópicos do dia‖, que geralmente trazia um

apanhado de notícias colhidas em jornais brasileiros, americanos e ingleses. E, embora a

coluna não se configurasse num editorial propriamente dito, seria possível notar a

interferência dos redatores da folha, que sempre encontravam brechas para expressar

alguma opinião a respeito dos temas abordados. No caso, o incômodo estava

relacionado à nota de um oficial da marinha brasileira, que após visita aos EUA, teria

publicado um artigo no Diário do Rio de Janeiro taxando os habitantes do país de

―money-makers‖, numa referência ao ímpeto ganancioso que, de maneira genérica,

denotaria os norte-americanos.

Os redatores procuravam demonstrar que o termo carregava consigo uma série

de preconceitos, principalmente no que diz respeito à suposta dubiedade do caráter

daqueles que ascendiam socialmente na América; bem como na afirmação ilusória de

um lugar onde todos teriam a oportunidade de viver prosperamente. A violência

estampada nos fait-divers, ou os terríveis crimes veiculados pela ―imprensa de

sensação‖258

- que, a contragosto dos editores d´O Novo Mundo, encontrava público

cativo entre os americanos - advertiam que o horror também se fazia presente nos EUA.

A comparação inicial de que, assim como nem todas as mães brasileiras

reproduziam os hábitos das escravas de carregar os filhos às costas, nem todos os

norte-americanos seriam “money-makers”, soava toscamente estranha. Porém, a

analogia nos permite uma afirmação: o estereótipo era reconhecido. Logo em seguida,

iríamos observar certo esforço na desconstrução do cliché a partir do qual se estabelecia

um padrão negativo ao norte-americano que obtinha sucesso financeiro. E ainda que

houvesse uma intenção na condução da interpretação, é importante notar que a

decodificação do tipo proposto exigia o crivo do público leitor. Portanto, e de acordo

com Umberto Eco259

, pensamos que a fruição do recurso da tipificação resultaria de

uma relação dialógica entre personagem e leitor. Em suma, e por mais que afirmação

258

Cf.: GUIMARÃES, Valéria. ―O vício chic – os fait-divers e as representações dos bas-fond na belle

époque brasileira.‖ In: ANDRIES, Lise & GRANJA, Lúcia (organizadoras). (2015). Op. Cit., p.189-214.

Ver, também: KALIFA, Dominique. Crime et Culture au XIXe siècle. Paris: Éditions Perrin, 2005. 259

De acordo com o autor: ―[...] a tipicidade não é um dado objetivo que a personagem deva adequar para

tornar-se esteticamente (ou ideologicamente) válida, mas resulta da relação de fruição entre personagem e

leitor, e um reconhecimento (ou uma projeção) que o leitor realiza diante da personagem. Visto por este

ângulo, o problema do típico liberta-se das contradições que haviam perturbado a estética idealista, e o

conceito de tipicidade não se coloca como categoria estética que diz respeito à definição da personagem,

como produto autônomo da arte, mas define uma certa relação com a personagem que se resolve em seu

―emprego‖ ou desfrute.‖ In: ECO, Umberto. ―O uso prático da personagem‖. Apocalípticos e integrados.

(Tradução: Pérola de Carvalho). São Paulo: Perspectiva, 2015, p.216-217.

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pareça óbvia, faz-se necessário inscrevê-la: nossos publicistas também flertavam com o

imponderável.

Considerando a nossa experiência de pesquisa com o jornal O Novo Mundo,

ousamos inferir que a criticidade demonstrada no trecho se configurava como uma

exceção. Os EUA, desde os primeiros números do jornal, sempre seriam narrados

através da promessa da ―terra prometida‖, onde todos poderiam gozar de fortuna e bem-

estar social. Aliás, a teoria do ―Destino Manifesto‖, que respaldou o expansionismo

yankee ao longo de séculos, seria referenciada algumas vezes no intuito de reiterar a

suposta liderança geopolítica que toda a América deveria exercer no cenário mundial -

muito embora, nas entrelinhas, tal protagonismo fosse efetivamente associado à

América do Norte.

O FUTURO E A AMÉRICA - O ―povo americano‖, a ―raça

americana‖, a ―grande nação‖, os ―Yankees‖ - e outros muitos são os

termos que nos escapam dos lábios sempre que queremos nos referir

aos habitantes do Estados Unidos. A muita fé dos seus cidadãos na

forma atual das suas instituições lhes gera no espírito a ideia de terem

aqui um povo que não se parece em nada com os outros do velho

mundo. [...] Cultivemos o espírito e tenhamos fé no Evangelho: só

assim é que transformaremos pouco a pouco a nossa imagem nacional

segundo a luz da civilização mais alta; só ali é que poderemos lançar

os alicerces de uma grande nação, e que aprenderemos em que

consiste a verdadeira grandeza; em suma só ali é que se nos dará o

meio de cumprirmos o verdadeiro ―destino manifesto‖ dos continentes

do Novo Mundo.260

Ademais, eram constantes as adulações ao povo considerado engenhoso por

natureza. Certa vez, num texto que abordava a construção da grandiosa Ponte do

Brooklyn, iniciada em 1869, os jornalistas d´O Novo Mundo, quase que a reboque da

megalomania da obra, teciam elogios incontestes aos filhos do tio Sam:

260

O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de março de 1871, nº 6, p.83.

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121

―Vista de Nova Iorque do Novo Mundo.‖ Nova Iorque, O Novo Mundo, 23 de dezembro

de 1870, nº 3, p.41.

A linda vista das páginas precedentes é publicada com o fim [de] dar

aos leitores do Novo Mundo uma ligeira ideia da grande metrópole do

Hemisfério Ocidental, de como se acha ali concentrada entre dois rios

aquela população industriosa que eles estão acostumados a admirar.

[...] Quando um célebre engenheiro inglês propôs elevar a velha ponte

de Londres a uma altura de sessenta e cinco pés, julgou-se o seu

projeto irrealizável. Como fazer-se, pois, uma ponte em Nova Iorque

que precisa de altura, pelo menos, três vezes maior do que essa, em

ambas as ribanceiras do rio? Mas o que o Americano não engendra,

nenhum mais o faz. Essas obras têm sido impossíveis porque não eram

Americanas.261

Num outro momento, seriam abordados os males associados ao cotidiano

daqueles que trabalhavam em excesso. No excerto, a dispepsia, uma patologia

estomacal, seria classificada como ―a moléstia dos americanos‖. E os hábitos que

causavam a doença eram evidentes: a vida corrida, o excesso de tarefas, ou a inaptidão

para a calmaria improdutiva:

261

(Grifo nosso). ―A cidade de Nova Iorque‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de dezembro de 1870, nº

3, p.42.

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122

A dispepsia, como se sabe, é a moléstia dos americanos. [...] O

americano faz tudo às pressas. Ainda quando não esteja fazendo nada,

ele há de aparecer como se estivesse cheio de negócios. Nota-se nele

como uma grande necessidade de fazer tudo agora; parece que o

mundo vai-se-lhe acabar a toda a hora. Com o cérebro sempre

sobrecarregado destes cuidados e negócios que ele mesmo se impõe, e

que inventa quando não os tenha, está visto que nem come com

sossego, nem se importa com a qualidade da comida com que entulha

o estômago.262

Portanto, o periódico se baseava no argumento de que haveria certas

particularidades inerentes ao povo norte-americano, porém, a manifestação dessas

mesmas capacidades valorosas somente se daria mediante o exercício de uma conduta

idônea, e da dedicação irrestrita ao trabalho. Em outros termos, a América era o lugar

para se fazer dinheiro, mas era imprescindível que o indivíduo trouxesse consigo um

tanto de integridade moral. Excepcionalmente, os redatores d´O Novo Mundo

demonstravam cautela em relação ao próprio discurso sedutor, de uma América

destituída de misérias, entretanto, é provável que tais cuidados fossem empregados para

que aventureiros vorazes não aderissem às promessas de um ―sonho americano‖

propagado à exaustão. Sendo assim, o prognóstico parecia claro: os EUA não seriam o

lugar para ―money-makers‖ sedentos por dólares; mas os EUA seriam o lugar onde

―homens de bem‖ poderiam encontrar campo fértil para constituírem vida digna/farta

com base em princípios cristãos. Em leitura a contrapelo, vale dizer que a América não

era para todos.

A abordagem do tema do trabalho feminino também seguiria as mesmas

orientações. E ainda que a moralidade rondasse a questão de forma um pouco mais

específica, os jornalistas d´O Novo Mundo sempre iriam se opor com veemência ao

cerceamento da mulher ao espaço privado, bem como à sua limitação às tradicionais

profissões associadas ao gênero, como no exemplo do magistério. Isto posto, o trabalho

fabril, reconhecido por certa precariedade, ao mesmo tempo em que era admitido,

também seria problematizado pelo corpo editorial do periódico. Na edição de outubro

de 1872, nos deparamos com a abordagem do tema através da veiculação de uma

imagem, e de um texto interpretativo que propunha a comparação das condições de

trabalho das operárias do setor têxtil na Inglaterra e nos EUA.

262

―Em geral‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de dezembro de 1870, nº 3, p.46.

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―Inglaterra: as operárias de Manchester ao saírem das fábricas.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque,

23 de outubro de 1872, nº 25, p.4.

O breve artigo, intitulado ―As fábricas de Manchester‖263

, que acompanhava a

imagem acima, era superficial, e consistia muito mais numa nova propaganda a respeito

da pujança norte-americana. Eram listadas as péssimas condições de trabalho

enfrentadas pelas inglesas que, ao contrário das operárias norte-americanas, não

desfrutavam de bons quartos, alimentação adequada, algum dinheiro em caixa, e tempo

para se dedicarem aos estudos se assim o quisessem. Por isso, as raparigas de cá

apresentariam ―muito melhor aspecto‖264

do que aquelas que figuravam no quadro. No

excerto ainda se concluía que, na América, ―nunca se viu uma cena tão pouco

consoladora, como a que representa estampa.‖265

A ilustração traz perfis de mulheres humildes, trabalhadoras, claramente

inseridas no cotidiano da cidade, e à vontade com os códigos que regem a sociabilidade

urbana. De um lado, uma anônima figura feminil não se faz de rogada ao experimentar

um novo par de sapatos no meio da rua, enquanto outras escolhem um vestido, ao

263

―As fábricas de Manchester‖, O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de outubro de 1872, nº 25, p.4. 264

Idem. 265

Idem.

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124

mesmo tempo em que uma dupla rebate ao comentário de um homem; sendo que tudo

acontece ao mesmo tempo, por entre crianças, velhos e filhos recém-paridos. Em

resumo, um alvoroço próprio de uma ―saída de fábrica‖ num ambiente metropolitano.

Dessa forma, e através desse breve exercício de leitura, chamamos a atenção para a

multiplicidade de sentidos que pode ser suscitada pela imagem, demonstrando que as

percepções acerca da mesma poderiam não se limitar às conclusões ajuizadas pelo

jornal.

A comparação da situação da mulher americana que, sob a ótica d´O Novo

Mundo, estaria dignamente inserida no espaço público, em detrimento da mulher

europeia, vista de maneira restrita à domesticidade, ou relacionada à publicidade em

situações amorais; iria ressoar nos mais distintos espaços da folha. Conforme será

demonstrado com mais acuidade, embora a temática da crítica literária sempre estivesse

presente às páginas do jornal, raramente iríamos conferir a publicação seriada de

folhetins. Ao contrário da maioria dos jornais oitocentistas, o Novo Mundo não contava

com um espaço ao pé da folha dedicado aos escritos de literatura. Contudo, vez ou

outra, em meio às imagens e rubricas que teciam as tramas do periódico, iriamos

conferir um folhetim em lugar não pré-fixado, e iniciado sem grandes alardes.

Foi este o caso do romance-folhetim Minha mulher e eu, que conforme advertido

pelo subtítulo, era de autoria da Sra. Harriet Beecher Stowe, a aclamada autora de A

cabana do Pai Thomaz. O folhetim, publicado entre agosto de 1872 e maio de 1873, era

narrado na primeira pessoa do singular pelo publicista Harry, um jovem rapaz que após

perder a primeira namorada para um homem de posses, decidiria que o objetivo da

ascensão social seria a forma de reparar os males sofridos, e o único caminho para se

obter o respeito alheio. Em sua trajetória, Harry teria a oportunidade de trabalhar nos

mais distintos jornais de Nova Iorque, mas jamais seria bem-sucedido no seu intuito de

enriquecer. Passados alguns anos, ele conheceria Eva, uma figura tão ambiciosa quanto

ele, e juntos, o casal aprenderia a se conformar à vida mediana que levavam, tornando-

se capazes de desfrutar de uma felicidade comedida, porém, verdadeira. Diante da

compreensão dessa experiência, Harry narraria o processo criativo de um livro de

própria autoria que, sob o título de ―Minha mulher e eu‖, abordaria os três perfis

femininos que teriam cruzado a sua vida: 1) a ―mulher da infância‖, vista como uma

ilusão afetiva; 2) a ―mulher dos sonhos‖, idílica, e perfeita por sua posição social

superior; 3) a ―mulher verdadeira‖, capaz de priorizar os afetos genuínos.

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125

Baseado na sua limitada experiência pessoal, o protagonista criado por Harriet

B. Stowe propunha o exame de tipologias femininas. No capítulo XIV do folhetim, num

paralelismo semelhante ao debatido ainda há pouco, Harry confrontava inglesas e

americanas e, mais uma vez, o direito das estadunidenses ao espaço público era

postulado:

Preciso agora dizer a meus leitores que, se nos poucos meses da minha

residência em Nova York pus cuidado de viver retirado da sociedade

elegante, todavia, andando nos carros e barcas da cidade, nunca deixei

de fazer silenciosamente meus estudos e observações sobre minhas

belas compatrícias. Na Inglaterra, a sociedade está predisposta de

modo que as suas melhores e mais cultas donzelas se acham

inteiramente veladas aos olhos profanos dos estranhos. Na França, as

moças vivem em retiro quase conventual. Aqui na livre América, as

raparigas das melhores classes andam por toda a parte. Elas pisam

com passo firme de princesas, e têm muita consciência de sua

dignidade para sonharem temer qualquer coisa.266

Num segundo momento, em contraponto não somente ao arquétipo feminil

francês, mas enfatizando certa rivalidade com a produção cultural europeia, os redatores

d´O Novo Mundo replicariam, com o acréscimo de alguns comentários, uma crítica

publicada no Journal de Débats a respeito de uma montagem teatral da obra A Dama

das Camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho.267

Nesse momento iremos ignorar o

mote estético que conduz o debate, mas citamos o escrito a fim de demonstrar que os

extremos considerados pelo jornal na classificação de vultos feminis, também se davam

por meio da representação ficcional. Assim, e de maneira genérica, seriam demarcados

dois opostos acerca do tipo feminino europeu: a mulher enclausurada e a mulher

publicizada vulgarmente.

Estabelecidos esses paralelos, faz-se necessário informar que o enaltecimento da

mulher norte-americana também se dava por ela ser considerada peça-chave no

desenvolvimento da economia do país. A questão do déficit populacional masculino nos

EUA, decorrente da Guerra de Secessão (1861-1865), teria colocado o gênero feminino

como força de trabalho primordial às demandas do capital.268

Daí a ressignificação dos

arbítrios morais em torno daquelas que ocupavam os espaços públicos. Por

266

STOWE, Harriet B. ―Deparo com uma visão.‖ – capítulo XIV. In: Minha mulher e eu. O Novo Mundo,

Nova Iorque, 23 de novembro de 1872, nº 26, p. 25. 267

―O ―moralista‖ Dumas‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de junho de 1873, nº 33, p. 159. 268

Ver, por exemplo: GODINEAU, Dominique. ―Filhas da liberdade e cidadãs revolucionárias.‖ In:

FRAISSE, Geneviève e PERROT, Michelle (direção). História das Mulheres no Ocidente: o Século XIX.

Volume 4. (Tradução: Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves). Porto: Afrontamento, 1991, p.21-39.

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consequência, a necessidade de formação desse contingente, seria uma prerrogativa

constantemente reiterada nos editoriais do jornal:

[...] Assim, por maiores que sejam nossos prejuízos contra a

participação da mulher em outras labutações da vida, que não as

domésticas, somos obrigados a admitir que outras lidas além dessas,

são também para ela, e uma vez admitido isto, nosso dever é

juntamente com ela, procurar-lhe essa partilha no trabalho, que a

conserva independente e pura, que, só a faz digna de si mesmo e do

seu companheiro mais rude; é nosso dever comum combater todos os

prejuízos e causas que a tolhem no cumprimento de sua missão

especial. [...] Se a mulher pode aprender, como o homem, ela também

poderá fazer o que ele faz; se ela não pode aprender, então, admitido o

que nos diz a estatística das populações, a sociedade procede com uma

tirania revoltante, de que ela mesma há de sofrer sob a forma ulterior

da miséria, e da prostituição e toda a casta de vícios. [...] Quando a

mulher, porém, é livre para aprender o que quiser, como ao homem,

então, se ela não melhora sua condição, a culpa é toda sua. [...] Em

conclusão, pois, as reformas do trabalho da mulher devem provir dela

mesma. Eduque-se, e ela poderá emular-se com o homem, em muitas

profissões que agora são suas exclusivamente, e avantajar-se-á sobre

ele em muitas outras, que tem monopolizado.269

Aliás, o tema da educação, compreendido como pré-requisito ao desfrute de uma

civilidade liberal, também seria associado ao ideário abolicionista. Em um longo artigo,

intitulado ―Escravidão e educação popular‖, publicado em dezembro de 1870, era

reafirmado o posicionamento do veículo jornalístico que, de maneira reducionista,

buscava sustentar o argumento de que o déficit educacional de uma nação estaria

diretamente relacionado à manutenção do sistema escravista. Por conseguinte, a análise

da conjuntura brasileira seguia com ares peremptórios:

Os brasileiros, num todo concordam que inteiramente [sic] na

necessidade da educação; eles percebem que mal imenso herdam com

a escravidão; mas, entretanto, se a natureza mais alta repugna a esta

instituição, enquanto ela existir entre si, eles não podem furtar a seus

resultados imediatos, às relações morais e econômicas que ela crê e

desenvolve. [...] Não é, pois, sem razão que o Brasil deseja ver quanto

antes varrido do meio de si este mal assolador, que frustra todos os

seus esforços civilizadores e que, tendo-se radicado nele, não deixa

frutificarem as aspirações mais nobres de seus filhos.270

269

―O trabalho das mulheres‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 21 de fevereiro de 1873, nº 29, p.75. 270

―Escravidão e educação popular.‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de dezembro de 1870, nº 3, p.34 e

35.

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O mesmo artigo trazia uma crítica ferrenha ao sistema educacional brasileiro,

que passava ao largo da inclusão social dos negros, e corroborava com os interesses das

elites senhoriais:

[...] quanto aos filhos dos senhores de escravos, esses vão aos

colégios, é verdade; mas não é tanto um motivo moral, nem a

necessidade e a honra do trabalho que lá os manda, como é um desejo

de posição social, um título que ajunte um pouco de lustre a quem vai

senhor de homens.271

Ou seja, embora operando por leituras incompletas, e à revelia de uma

compreensão mais ampla do cenário econômico mundial; o periódico acenava com uma

visão potencialmente crítica a respeito dos setores que lucravam com a exploração da

mão de obra escrava, demonstrando certa conscientização sobre os processos de

exclusão social que caracterizavam o Brasil do século XIX, onde o acesso à educação

também serviria ao princípio da distinção entre classes.

Sobre a problematização de perspectivas elitistas, vale citar ainda as

adversidades dos editores com a atuação política de José de Alencar que, à época,

encontrava-se envolvido com debates em torno de projetos que se chocavam com o

ideário apregoado pelo jornal. As referências geralmente diziam respeito às reformas

veementemente defendidas pelo periódico: a abolição da escravatura e a expectada

revolução republicana; enfim, temas diretamente relacionados ao caldo liberal

propagado pelo Novo Mundo.

Reproduzindo uma troca de correspondências originalmente vinda a lume no

jornal A República, num primeiro escrito, os publicistas falavam da publicação do

romance-folhetim Til (1872) nas páginas do citado periódico. Ou seja, nossos redatores

confabulavam a respeito da publicação da produção de Alencar num veículo de

orientação política semelhante ao Novo Mundo. E, embora saibamos que tal negociação

exigia a especial interlocução do editor B. L. Garnier, de maneira surpreendente, o

próprio José de Alencar enviaria uma carta aos editores d´A República, na qual

expressava a sua aprovação pela venda dos direitos de Til à folha fluminense. No

entanto, a epístola versava muito pouco sobre literatura, e parecia tratar da demarcação

de um posicionamento gentilmente adverso às concepções apregoadas por tal veículo:

Meus ilustrados colegas,

271

Idem.

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128

Por minha parte, de boa vontade convenho na cessão que lhes fez meu

editor o Sr. B. L. Garnier, de algumas folhas de lavra tosca, pois são

da minha; para que vv. as publiquem em folhetim de seu diário.

Lembrança esta, que partindo de qualquer, me lisonjearia; neste caso

vale honras, porque provém de antagonistas políticos, mais propensos

entre si e por natural tendência, a se mostrarem severos na censura, do

que pródigos no apreço.

[...] Não me demove a consideração de ter sua folha consagrada à

opinião adversa; embora esteja bem convencido de que há de ser o

fato muito explorado pela intriga, que de antemão já me assinalou

como um republicano disfarçado.

[...] Pese-lhes embora: sou monarquista sincero e convicto. Mas como

nunca professei o fetichismo da realeza, espero o triunfo para minhas

ideias, da civilização do povo, nunca de sua ignorância.

Quero que meu país seja monarquista, não pela rotina, mas por

verdadeira fé nessa instituição; e, para isso, é necessário que estude as

doutrinas opostas e se esclareça com a livre discussão [...].

Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1871, J. de Alencar.272

E, a réplica dos jornalistas d´A República, igualmente transcrita no Novo Mundo,

não inspirava amistosidades em relação às vertentes políticas apregoadas pelo escritor

monarquista:

Agradecendo tão fino obséquio, devemos acrescentar algumas

palavras.

A nossa situação, como republicanos, nos obriga a manter um posto

afastado, de vigilância e de hostilidade, contra os princípios e os

homens que representam a ideia monarquista no nosso país.

Se porém como políticos achamo-nos divorciados de todos os partidos

e de todas as individualidades afeiçoadas ao atual regime; como

brasileiros teremos sempre orgulho e desvanecimento em prestar a

devida homenagem a todos os nobres caracteres e ilustres talentos que

são a glória da nossa pátria, qualquer que seja a posição política que

ocupem.

Está neste caso o eminente escritor e parlamentar, cujo nome serve de

título a este artigo, e que tão graciosamente acaba de autorizar a

publicação de uma de suas obras inéditas nas nossas colunas [...].273

Posteriormente, numa nova referência à atuação do deputado José de Alencar, os

redatores do jornal lançavam uma sutil provocação a respeito da aprovação da Lei de 28

de setembro, a Lei do Ventre Livre, à qual o parlamentar orquestrou ferrenha oposição.

272

J. de Alencar. ―O Sr. Alencar e a República.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de dezembro de 1871,

nº 15, p. 46. [Correspondência originalmente publicada em: José de Alencar. ―JOSÉ DE ALENCAR.‖ A

República, Rio de Janeiro, 03 de novembro de 1871, n° 172, p. 03]. 273

―O Sr. Alencar e a República.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de dezembro de 1871, nº 15, p. 46. [Correspondência originalmente publicada em: (Sem assinatura). A República, Rio de Janeiro, 03 de

novembro de 1871, n° 172, p. 03].

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129

A breve nota tratava do retorno do Imperador que, durante os trâmites de proposição e

votação do projeto, estivera em viagem ao exterior. No trecho, os redatores previam um

possível constrangimento do parlamentar conservador que, face à ausência de D. Pedro

II, teria feito comentários hostis à vossa majestade:

A VOLTA DO IMPERADOR

Anuncia-nos o telégrafo que D. Pedro II está de volta ao Brasil.

Alguns de nossos patriotas devem estar muito satisfeitos de que na sua

ausência de dez ou onze meses, os negócios públicos correram

mansamente, e decretou-se a lei de 28 de setembro sem perturbação

alguma. Muito desejaríamos nós saber o que pensa agora o distinto Sr.

J. de Alencar do seu discurso na Câmara dos Deputados, a 9 de maio

p. p., quando, entre muito mais, disse, tratando da viagem imperial:

―É justamente neste momento, em que se vai resolver a mais grave, a

mais melindrosa das questões que tem agitado o país, porque ela pode

subverter a sociedade até seus fundamentos; é nesta situação tão

prenhe de perigos e complicações; é em circunstâncias tão arriscadas e

momentosas; que o defensor perpétuo do Brasil, deixa o seu posto;

que o primeiro magistrado do império se quer ausentar? É nesse transe

supremo de sua pátria que o soberano quer romper o laço de

solidariedade que o prende a nação?‖ [...].274

Havia, portanto, um prazer incomensurável na constatação de que o autor

estivesse em ―maus lençóis‖ junto ao poder imperial. Todavia, e colocando-nos no lugar

dos leitores d´O Novo Mundo, ainda restava a dúvida se os editores do periódico

desvencilhavam a atuação política de José de Alencar de sua profícua produção literária;

e logo descobriríamos que, sob a ótica do veículo jornalístico, tais perspectivas seriam

compreendidas de maneira pareada, se não de forma integrada.

Num novo excerto, publicado na edição de agosto de 1873, e sugestivamente

intitulado ―Um estadista-romancista‖275

, os publicistas, novamente após exame de

discurso de José de Alencar proferido na Câmara, abordavam o tema da ―Questão

Eclesiástica‖ que mobilizou diversos setores da sociedade brasileira na década de 1870.

Em grossas linhas, a chamada Questão Eclesiástica ou Religiosa tratava dos desgastes

nas relações entre a maçonaria, a igreja católica e a própria monarquia; e tornou-se

reconhecida por culminar num longo debate a respeito da laicização do Estado, bem

como por contribuir para a decadência política do Império. E, a serviço de seu ideário

moderno, os editores d´O Novo Mundo engrossavam o coro pela desvinculação entre os

274

―A VOLTA DO IMPERADOR‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de março de 1872, nº 18, p.90. 275

―UM ESTADISTA-ROMANCISTA‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de agosto de 1873, nº 35,

p.179.

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poderes temporal e espiritual. No lado oposto, e argumentando pela manutenção de

prerrogativas consideradas tradicionais, poderíamos observar o político/literato

empenhado em contagiar o seu público ouvinte. Os trechos do discurso eram

estrategicamente pinçados, e emendados por comentários tecidos pelo anônimo redator

que escrevia em nome da folha.

Resguardado em sua pretensa modernidade liberal, e movido por um ímpeto

protestante supostamente capaz de soerguer qualquer nação ao progresso; talvez, nem

seja tão profícuo nos dedicarmos ao conteúdo do certame provocado pelo jornalista. De

todo modo, nos parece especificamente interessante as formas de se referir, ou de

chamar o ―Estadista-Romancista‖ ao debate. Por diversas vezes podemos observar o

emprego de uma linguagem discursiva que denunciava uma compreensão imbricada do

homem público político [com perdão da redundância] à figura do homem de letras:

UM ESTADISTA-ROMANCISTA

O Sr. Alencar é um dos escritores mais festejados do Brasil: é o chefe

de uma escola de literatura muito apreciada da mocidade do país e,

pois, foi com verdadeira curiosidade que procuramos ver o que ele

pensa acerca destas importantes questões sociais que felizmente estão

agitando-se no Brasil. Todavia, confessamos que não tivemos mais

que curiosidade. Não admiramos nada a carreira política do insigne

romancista.

[...] o romancista brasileiro é um grande idolatra da forma. Parece que

as brilhantes descrições dos jesuítas do Paraguai por Charlevoix, e por

Chateaubriand, que ele cita no seu discurso, produziram perdurável

impressão na rica imaginação do orador: aquele governo paternal,

aquela inocência das novas ovelhas de Cristo, aquela sabedoria e

meiguice dos padres, são realmente assuntos poéticos.

[...] ―Que é necessário para a felicidade de um povo a união da Igreja

com o Estado‖. Tal é a doutrina do Sr. José de Alencar, que, ainda não

satisfeito com essa exposição de princípios, e como querendo ainda

mais mofar da Liberdade, preza-se ―de ser um liberalíssimo muito

adiantado‖ – liberalíssimo do Syllabus.

[...] O Sr. Alencar não acha digno de imitação o exemplo dos Estados

Unidos a respeito da separação da Igreja e do Estado. O governo deste

país, segundo o romancista da[e] Lucíola, é um governo de ateístas.

Tudo aí está corrupto.

[...] o romancista só deixou mais claro no seu discurso que é

extremamente perigoso a uma sociedade nova dar proeminência

política a um homem, simplesmente pelo fato que lê muito, e escreve

elegantemente – homem mais dominado de viva imaginação do que

do bom senso prático com que devemos tratar de nossos negócios de

todos os dias.276

276

Idem.

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131

Em seu clássico estudo Dialética da colonização277

, Alfredo Bosi, debruçando-

se sobre o longo processo de consolidação do Estado brasileiro autônomo, nos fala do

falso impasse representado pela conjugação entre liberalismo e escravidão. De acordo

com o autor, a contradição somente seria real se se atribuísse ao liberalismo um

conteúdo pleno e concreto, equivalente à ideologia do trabalho livre afirmada ao longo

da revolução industrial europeia. Dessa forma, e não paradoxalmente, no Brasil do

século XIX, observaríamos as práxis de um liberalismo que admitia a escravidão, a

exclusão educacional, a marginalização da mulher, e a manutenção de privilégios

classistas. Nas apropriadas palavras do estudioso Raymundo Faoro278

, o liberalismo

além de não significar democracia, também poderia ser hostil a ela.

Porém, os jornalistas d´O Novo Mundo não demonstravam acuidade para

compreender tantas nuances. O liberalismo reivindicado por José de Alencar era

considerado falso por não corresponder a uma leitura teoricamente plena da filosofia de

Adam Smith. A reprovação alencariana a respeito do liberalismo praticado nos EUA era

deslegitimada simplesmente por advir do ―romancista de Lucíola‖, ou seja, o

julgamento moral em torno da produção literária do autor, parecia torná-lo inapto para

acusar outrem de ateísmo ou de corrupção. Pensamos ser factível afirmar que as

frequentes afrontas dirigidas ao escritor se dessem por ele personificar tudo aquilo que,

nas cândidas acepções dos editores do periódico, não deveriam compor a nova face do

liberalismo americano. Noutras palavras, o conservadorismo político representado por

Alencar, ou as pechas de paternalismo associadas ao seu perfil, eram inconciliáveis com

o projeto de sociedade defendido pelo jornal.

Fascinados pela modernidade dos novos tempos, os jornalistas d´O Novo Mundo

buscavam impor outros padrões sociais, políticos e culturais ao distante Brasil.

Esbarravam em ruínas de temporalidades decadentes, fruto de uma inércia provocada ao

gosto das elites senhoriais. Precisávamos sofrer reformas profundas, revolucionárias,

transformações que tomassem como exemplo o referencial estadunidense, e que

arrastassem o Brasil aos famigerados caminhos do progresso. Porém, como forjar uma

identidade liberal tendo-se em vista uma sociedade que ainda caminhava para o fim da

escravidão?279

Ademais, quais seriam as formas e meios para se inventar outras

277

BOSI, Alfredo. ―A escravidão entre dois liberalismos.‖ Dialética da colonização. (3ª edição). São

Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.194-245. 278

Raymundo. Faoro. "Existe um pensamento político brasileiro?" Estudos Avançados, São Paulo, nº 44,

out./dez. 1987. 279

Cf.: CANO, Jefferson. (2009). Op. Cit.

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sociabilidades que concernissem a uma modernidade progressista e particularmente

americana? Pensamos que as repostas para os questionamentos expostos dizem respeito

a uma ―cultura midiática‖, da qual o Novo Mundo era parte integrante, e que se referia a

um conglomerado de identidades e imaginários sociais que, quando compartilhados,

poderiam acarretar em processos de reconhecimento e/ou de diferenciação. Por isso,

compreendemos o jornal como uma ferramenta de mediação entre o ―novo‖ e o ―velho‖,

pois, conforme buscamos demonstrar, havia indícios de uma nova cultura, - moderna e

não europeia - sendo concebida a partir dos discursos mobilizados pela imprensa, e

cujos efeitos poderiam ressignificar as práticas de então.280

IV.5 Por uma nova zona de influência cultural entre Américas.

Ideando novas hierarquias em meio a um contexto periférico, parece claro que o

Novo Mundo buscava definir uma nova zona de influência sociocultural, entre

Américas, ainda que o seu intento civilizador em relação ao Brasil fosse indisfarçável.

Aos olhos dos editores do periódico, precisávamos nos adequar às suas escansões e

modos de compreender o mundo. De acordo com o jornal, apesar da independência

política, ainda teimávamos em reproduzir o ideário tacanho da antiga metrópole

portuguesa; e quando tínhamos a presunção de ―evoluir‖, somente imitávamos os

censuráveis franceses. Emulando o tenso debate sobre ―identidade nacional‖ que

perdurou durante todo o século XIX, os publicistas do veículo não mediam palavras

para repreender a ideia de uma suposta falta de originalidade cultural entre a

intelectualidade brasileira.

Nesse sentido, e buscando traçar uma reflexão acerca de um projeto de literatura

nacional brasileira, eram muitos os textos veiculados no jornal que, em roupagem de

crítica literária, postulavam pela demarcação de um suposto caráter de brasilidade,

concebido à margem da velha Europa, e em diálogo com o mundo americano. No

entanto, uma particularidade à sociedade brasileira tilintava como um empecilho

considerável: a instituição escravista. Reproduzindo o termo carregado de estigma

utilizado pelo redator abaixo, nosso painel social encontrava-se ―enegrecido‖ pelo

africano escravo, e nossas instituições estariam carcomidas pelas hierarquias erigidas 280

Cf.: PINSON, Guillaume. (2015). Op. Cit.

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em torno da imoral prática. E, se a literatura refletiria os sentimentos e as aspirações de

uma sociedade em sua própria historicidade, parecia urgente conduzir o país num

processo crítico acerca de suas instituições e de sua produção cultural.

LITERATURA NACIONAL

Pouco espaço de nosso periódico temos dado à literatura nacional, - a

notícia de suas produções principais e à crítica de suas tendências. [...]

é que não simpatizamos absolutamente com as tendências da literatura

brasileira, com o caráter geral das suas produções, com a ética de que

está repassada. Aflige-nos tratar deste assunto. Nós reconhecemos que

nossos autores fazem o melhor possível e precisam respirar a mesma

atmosfera em que vivem; a nossa queixa, ou antes a nossa mágoa, não

é deles: é o do próprio estado da sociedade que fá-los conceber essas

suas produções. Bem sabemos que a literatura reflete o sentimento e

as aspirações da sociedade: pois bem – não é um mau espelho que

lamentamos, é aquilo mesmo que ele nos transverbera.

Não há no Brasil meia dúzia de homens sinceros e patriotas que

estejam satisfeitos com o padrão da sua moral social. A tristeza tem

achado um longo repouso em todos os corações. O painel social está

enegrecido pelo africano escravo. O europeu olha para nós com

desdém, e o pobre brasileiro parece que foi defraudado por seus

antepassados de certo vigor na sua constituição, que mal pode

dispensar.

[...] Está visto que, livre dos elementos que tanto o escandalizam

agora, tais como a religião da superstição e a escravidão, a sociedade

há de ganhar apetite por uma literatura mais sólida, que então há de

necessariamente aparecer. A literatura, porém, não é nem devia [sic]

ser somente o reflexo do sentimento atual da sociedade: ela mente a

seus fins, quando não procura formular as aspirações mais sinceras e

patrióticas da civilização da idade, quando não procura moldar o

caráter nacional num tipo de virtudes sólidas, de conhecimentos úteis,

e quando não se esforça por ensinar ao povo o caminho do futuro,

como águia, voejando diante dos filhos, e voltando sobre seu voo para

os guiar pelo espaço.

[...] Temos tantos romances, ―folhas soltas‖, e poesias, quanto nos

faltam obras instrutivas e educadoras. Já que a escravidão, o nosso

temperamento, e a péssima influência de certa literatura francesa,

querem que isto seja assim, ao menos não nos esquecemos de exigir

renitentemente que esses romances e ―páginas soltas‖ e poemas se

ocupem só com aquilo que está na esfera do artista, e vigiemos que

eles não desçam a apanhar o lodo das pequenas misérias da vida, a

título de fisiologias das paixões humanas, ou fotografias sociais.281

De acordo com o texto, nossos sentimentos, temperamentos e aspirações seriam

determinados por uma atmosfera de vícios e imoralidades decorrentes da instituição

281

―LITERATURA NACIONAL‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de junho de 1872, nº 21, p.154.

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escravista, e das influências negativas de certa literatura francesa. Ou seja, almejando

um esboço psicossocial - quiçá, íntimo - do caráter do brasileiro, os publicistas d´O

Novo Mundo reverberavam um aparato teórico forjado ao gosto das correntes filosóficas

que matizavam aqueles tempos. Em outras palavras, o binômio literatura/sociedade seria

compreendido de maneira espelhada, como num jogo de ―causas e efeitos‖, no qual a

complexidade do processo mimético seria implicitamente desqualificada. Nesses

termos, se evoluíssemos socialmente, abolindo a relação servil, certamente deixaríamos

de repercutir somente o chamado ―sentimento atual da sociedade‖, e logo seríamos

capazes de desfrutar de uma ―literatura mais sólida‖, de intentos próprios, educativos e

civilizadores.

A problemática parecia ainda mais grave quando se considerava o gosto do

público leitor brasileiro, tido como malformado e incapaz de distinguir obras de

qualidade; em específico, quando se tratava do público feminino, reconhecido como

principal consumidor dos folhetins publicados na imprensa da época. No trecho a

seguir, concebido em interlocução com as leitoras, os redatores d´O Novo Mundo,

comumente comprometidos com a causa da inserção da mulher na sociedade, pareciam

cometer um breve ―deslize‖282

no trato com o gênero, repreendendo-o de maneira

incisiva, e demonstrando certo intuito de normatizar a relação feminina com o universo

midiático:

[...] É verdade que lês pouco, - menos do que era para desejar e ainda

menos dos livros que devias ler. No jornal só te interessa o obituário e

a gazetilha, e de livros lês coisas triviais. O estudo, a aquisição de

conhecimentos é tarefa a que não te entregas. Mas disto não tens toda

a culpa: tem-a teus pais, tem-a a nossa civilização que há reduzido o

teu papel ao de vestir-se, casar, ter filhos e governar os escravos. E

que livros temos nós para leres? Serão as insulsas histórias de Júlio

Verne, as imorais novelas de certos grandes romancistas e os versos

dispépticos dos nossos bardos sem sentimento, que fazem hinos à

Liberdade, ou, para variar, às tuas olheiras, à tua rabugem? Há, de

certo, muita coisa excelente em nossos livros, - mas tudo isso já leste

em dois meses, - tudo o que te pode interessar, considerados os

elementos da tua educação, tão mal curada.283

De todo modo, é importante afirmar-se que tal projeto de ingerência cultural não

se limitava às especificidades do segmento feminino. Como sabemos, o Novo Mundo

282

É possível cogitar que o citado ―deslize‖ na abordagem com o gênero feminino, talvez, se configurasse

num projeto consciente de interferência e moralização da relação da mulher com a literatura produzida em

meio à imprensa. 283

―BELEZA E SAÚDE‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de novembro de 1874, nº 50, p.50.

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costumava repercutir alguns conteúdos de publicações advindas do Brasil. Sendo assim,

na edição de fevereiro de 1872, acompanharíamos a publicação de um texto sobre o

Almanak de Campinas, veículo que costumava contar com sessões fixas de literatura e

tendências artísticas. Em seus pormenores, os jornalistas d´O Novo Mundo

questionavam um catálogo de livros reproduzido nas páginas do almanaque, o qual

acreditava-se revelar os hábitos dos leitores brasileiros de então:

[...] Outra parte do Almanak que muito nos interessou – é um

Catálogo dos Livros existentes no Gabinete de Leitura Campineiro – e

bastante os tem ele. Pesa-nos ter de dizer que este gabinete representa

muito fielmente os gostos e as necessidades do espírito do geral da

nossa população que pode ler. Nota-se aí, como se nota em toda a

parte no Brasil, uma falta extraordinária de obras didáticas, de

biografias, de história, de moral e religião, da ciência posta ao alcance

da inteligência meã dos leitores. Ao contrário, abunda esta literatura

abominável de ―matar o tempo‖, que faz do leitor um sábio dos vícios

humanos, descrente, voluptuoso e inútil à sociedade, e a si mesmo.

Não há neste Gabinete de Leitura um só exemplar da Constituição do

Império, ou dos códigos do país; não um só volume dos Lusíadas de

Camões, ou do nosso Gonçalves Dias, nem até do Alvares de

Azevedo; Bossuet ou o Padre Vieira também não merecem ser

representados. Agora, da outra banda temos CENTO E QUARENTA

volumes de Alexandre Dumas, SESSENTA E QUATRO de Paul de

Kock, ONZE de Paul Féval, e uma infinidade de romances, que em

número deixam muito longe os poucos, mas excelentes dicionários

que o Gabinete tem. Não imputamos, porém, a falta disto à direção do

Gabinete: ela compra o que há para ler-se e não se pode negar que a

literatura portuguesa carece muito de bons livros.284

O julgamento moral dos jornalistas se fazia presente nas conclusões a respeito

das obras elencadas: liam-se poucos textos didáticos, poucas biografias, livros de

história, de religião. Todavia, e ao que tudo indica, havia uma ótima recepção aos

folhetins concebidos sem grandes cuidados, ao toque do jornal de amanhã, e sem lições

muito valorosas a ensinar. Ao que parece, tal público mantinha uma relação

despretensiosa com a literatura, rechaçando qualquer oportunidade sisuda de ilustração

ali contida. Nas admoestações dos publicistas, era repreensível a ausência de

exemplares de Camões, de Gonçalves Dias, e até de Alvares de Azevedo no tal gabinete

capaz de revelar o perfil do leitor brasileiro oitocentista. Era imprescindível que nos

dedicássemos aos clássicos, às epopeias, à temática nativista, aos românticos - neste

caso, até os limites do erotismo de uma Noite na taverna (1855), talvez. Enfim, de

284

―LITERATURA DO DIA‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de fevereiro de 1872, nº 17, p.79.

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acordo com o Novo Mundo, o público brasileiro deveria se render ao papel moralizador

supostamente exercido pelo aporte literário.

O excerto também especificava um pouco melhor a tal literatura francesa

referenciada. Enfáticos na grafia em caixa alta, os redatores denunciavam que o

gabinete contava com números expressivos de obras de Alexandre Dumas, Paul de

Kock e Paul Féval. Nas referências aos três autores, a oposição do jornal começava a

ganhar as cores de um romantismo folhetinesco, com ares populares e concebido junto à

imprensa. E, no caso específico dos dois segundos autores citados, as críticas também se

referiam a uma produção de natureza prosaica, própria do realismo literário que tomava

a cena francesa, e cujas influências se faziam presentes no Brasil.

Vale lembrar que, não obstante a frequente rejeição dos doutos, as narrativas

aventurosas de Dumas encontrariam público cativo no Brasil, sendo publicadas em

jornais de grande circulação285

, e figurando de maneira insistente nos catálogos de

livrarias.286

Os folhetins Paul de Kock e Paul Féval, igualmente relegados a um segundo

plano pela crítica especializada, também gozariam de acalorado respaldo entre o grande

público brasileiro.287

Isto posto, podemos concluir que havia um desajuste entre as

expectativas postuladas por tal vertente crítica e o gosto dos leitores de então.

Ainda sobre o mesmo assunto, destacamos que na ocasião da morte de

Alexandre Dumas, ocorrida em dezembro de 1870, o Novo Mundo publicaria um retrato

do escritor, acompanhado da seguinte homenagem póstuma: ―O velho, popular

romancista, morreu este mês deixando atrás de seu nome uma coleção volumosa de

escritos que vão conservar por muito tempo a memória do vão, gracioso e bonachão

escritor.‖288

E, observando os termos utilizados na descrição do perfil, não são

necessários grandes esforços para se notar o desdém reafirmado contra o grande escritor

francês. As pechas tratavam do suposto arcaísmo de produções que, embora

popularescas, passavam ao largo das funções de instrução delegadas à literatura, daí a

285

Em sua tese dedicada à disseminação da obra de Alexandre Dumas na imprensa brasileira, Ilana

Heineberg localizou um total de 35 romances do autor publicados entre os anos de 1839 - 1870. Dentre os

títulos, destaca-se o sucesso O Conde de Monte Cristo, publicado no Jornal do Comércio entre junho de

1845 e abril de 1846. Cf.: HEINEBERG, Ilana, Op.cit., 2004. 286

De acordo com Valéria Cristina Bezerra: ―Nas províncias do Brasil, as obras de Dumas também

tinham grande circulação, pois a imprensa e o mercado livreiro percebiam o quanto o comércio de seus

romances era bem-sucedido e buscavam tomar parte desse êxito. Pesquisas revelam a presença dos

romances de Dumas nos periódicos e no comércio livreiro do Ceará, do Rio Grande do Sul, de São Paulo,

do Pará, das quais se pode concluir que havia uma disseminação de suas obras pelo país em meados do

século XIX.‖ In: BEZERRA, Valéria Cristina. (2013). Op. Cit. 287

Cf.: PAES, Alessandra Pantoja. Das imagens de si ao mundo das edições: Paul de Kock, romancista

popular. Dissertação (Mestrado em Letras). Belém: UFPA, 2013. 288

―ALEXANDRE DUMAS‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de janeiro de 1871, nº 4, p.55.

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adjetivação derradeira associada ao perfil do autor: o vão Alexandre Dumas. Num outro

momento, através da mesma tônica galhofeira, os jornalistas falavam dos artifícios de

Paul Féval ao criar suas produções folhetinescas. E, apesar de risível, o excerto também

inspirava uma dura crítica à literatura de folhetins que, por seu teor comercial, era tida

por ―mal-acabada‖, ou considerada desprovida de agudeza formal:

Paul Féval escrevia às vezes quatro folhetins ao mesmo tempo,

folhetins longos que levavam meses a sair nos periódicos. Para não

perder o fio deste labirinto de sua cabeça, ele tinha em casa um grande

número de bonecos de gonço vestidos de toda a guisa imaginável. Em

cada mesa em que o romancista escrevia, o criado conservava sempre

uma fileira grotesca dos seus ―personagens‖. Quando um deles morria,

o criado tinha de tirar o boneco e guardá-lo. Mais eis que uma vez

esqueceu-se ele de tirá-lo: o autor, esquecendo-se também que havia

matado o herói, fê-lo reaparecer e até casou-o, e só dali há um mês

soube do erro quando o redator do periódico em que saía o romance,

mandou-lhe uma pilha de cartas de leitores que desejavam saber como

ressuscitara aquele personagem que fora morto.289

E, tratando das confluências de um debate cujos âmbitos não se limitavam às

rubricas de apenas um jornal, devemos retomar as palavras de Sênio, o pseudônimo de

José de Alencar, que atento ao conceito de uma ―literatura industrial‖, questionava os

críticos que se opunham às obras bem-sucedidas junto ao grande público, acusando-os

de insipiência e vocação à contrariedade. Podemos acrescentar ainda que o reconhecido

diálogo paternal entre o autor e a sua obra Sonhos d´ouro, presente no prefácio ―Benção

Paterna‖, faria uma oposição perfeitamente ajustada aos ranços destilados pelo corpo de

críticos que publicavam no Novo Mundo:

[...] Dá-te por advertido pois, livrinho; e, se não queres incorrer na

pecha, passando por um produto de fábrica, já sabes o meio é não cair

no gosto da pouca gente que lê, e deixares-te ficar bem sossegado,

gravemente envolto em uma crosta de pó, à espera de um dente de

traça ou da mão de um taberneiro que te há de transformar em

cartucho para embrulhar cominhos.290

289

―NOTAS EM GERAL‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de fevereiro de 1874, nº 41, p.87. 290

SÊNIO (José de Alencar). ―Benção Paterna‖. Sonhos d´ouro. (4ª edição). Rio de Janeiro: José

Olympio, 1957 [1872], p.30.

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Em sua tese sobre o processo de consagração do gênero do romance no Brasil,

Valéria Augusti291

esclarece que, de acordo com o discurso da crítica do início do

século XIX, o romance, por não requerer qualquer conhecimento das artes poéticas e

retóricas, seria destinado ao deleite de um público parcamente instruído. No intuito de

moralizar tais práticas, não tardaria para que o gênero literário também fosse associado

a uma finalidade disciplinadora. A partir da década de 1860, o romance seria apropriado

pelo discurso escolar, tornando-se expressão de uma identidade nacional; embora ainda

distante de autores como José de Alencar, que já tratavam da temática nas páginas dos

jornais. Dessa maneira, e de forma paralela aos debates institucionalizados, seria no

circuito da imprensa que ocorreriam boa parte das discussões em torno da consagração

do romance até a sua inserção no corpus canônico.

Dito isso, também seria interessante notar que o Novo Mundo ainda operava por

pressupostos avaliativos do início do século, quando o critério moral e a suposta função

pedagógica da literatura tonalizam o mérito das obras. Assim, apesar da roupagem

moderna do jornal (especialmente no sentido econômico/liberal), no campo cultural,

seria possível identificar uma conduta discursiva pautada por muita ponderação e algum

conservadorismo. E isso se tornará ainda mais claro quando tratarmos de outras

oposições sinalizadas por tais publicistas.

Em suas avaliações de cunho artístico, vez ou outra os jornalistas também

demonstravam alguma atenção à cena teatral francesa, que servia de inspiração ao caso

brasileiro. Por isso, esporadicamente acompanharíamos algumas análises a respeito de

adaptações da literatura para o teatro, sendo que as obras de teor realista, sempre

sofreriam um escrutínio mais duro por parte dos críticos da folha. O trecho a seguir

expõe uma oposição quase que raivosa à principal tríade do teatro francês: Victorien

Sardou, Émile Augier, e Alexandre Dumas (filho); reconhecidos como ícones do gênero

dramático burguês, e cujas produções eram sempre censuradas pelo jornal:

Folgamos em ver anunciado que nem até Sardou, Augier e Alexandre

Dumas acham agora quem lhes pague bons preços por suas novas

produções daquele gênero de literatura com que inundam o teatro

francês, e até o do Brasil, nestes últimos anos. Nosso desejo é que eles

façam tal bancarrota [e] que nunca mais escrevam as peças imorais

com que pretendem pregar a moral. Somos decididamente opostos à

escola que assenta regenerar o mundo apresentando-lhe o painel dos

seus vícios mais torpes, ou enfeitando o vício com tanta virtude que

291

AUGUSTI, Valéria. (2006). Op. Cit.

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praticamente acaba por confundi-los. É impossível calcular-se bem a

influência perniciosa desta literatura.292

Sobre Alexandre Dumas (filho), vale trazer à tona um caso específico da

avaliação de seus méritos por parte dos redatores do jornal. Em junho de 1873, através

do título ―O ‗moralista‘ Dumas‖293

, os leitores do Novo Mundo tomariam contato com a

análise da terceira edição do drama La femme de Claude294

, que seria precedido de um

polêmico texto assinado pelo autor, no qual ele respondia a algumas das críticas

negativas publicadas no famoso Journal des Débats, em janeiro de 1873. De maneira

resumida, as restrições do periódico francês se voltavam especialmente ao desfecho da

personagem principal, Césarine, a esposa adúltera do inventor Claude, que seria

assassinada ao fim da trama. No prefácio do livro, Alexandre Dumas (filho) estabelecia

um paralelo entre La dame aux Camélias (1848) e La femme de Claude, enfatizando que

ao contrário da personagem cortesã Marguerite Gautier, reabilitada pela força do

sentimento amoroso, no caso de Césarine, o tipo danoso da mulher infiel seria

penalizado/moralizado através da morte. Ou seja, na segunda narrativa, o autor não

proporcionaria qualquer possibilidade de regeneração à protagonista vil. A citada crítica

publicada no Novo Mundo buscava questionar se o escritor, reconhecido por propagar as

imoralidades e os vícios da sociedade burguesa, teria condições de admoestar uma

personagem feminina, concebendo-a como um contraexemplo perante o público:

A terceira edição de La femme de Claude de M. Alexandre Dumas

Fils é precedida de um longo prefácio em que responde à justíssima e

severa crítica a que um dos redatores do Journal des Débats sujeitou a

sua peça imoral. Não há nada mais divertido do que ver este escritor

impudente apresentar-se em público como um moralista. [...] Este

Alexandre Dumas por muitos anos pintou-nos o vício e fez-lhe a

apoteose: de fato ele até fundou uma escola que tem achado

imitadores e adoradores em todos os países latinos. Familiar com uma

pequena parte, muito vil, do mundo, ele descreveu-a com inegável

talento; mas longe de limitar-se a isto, tem pretendido representar nos

seus quadros a sociedade inteira.

Depois de nos ter mostrado chagas que nunca devera descobrir só para

tocá-las e assanhá-las; depois de nos ter pregado a virtude com a

ostentação do vício e da prostituição, Dumas meteu-se ultimamente a

292

―TÓPICOS DO MÊS‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de outubro de 1871, nº 13, p.7. 293

―O ‗MORALISTA‘ DUMAS‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de junho de 1873, nº 33, p.159. 294

DUMAS FILS, Alexandre. La femme de Claude, pièce en trois actes, précédée d'une préf. Paris, M.

Lévy, 1873. Disponível no seguinte endereço eletrônico:

https://archive.org/stream/lafemmedeclaudep00dumauoft#page/n7/mode/1up, [Acesso em agosto/2017].

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moralista mais severo, e agora vem nos ensinar a virtude pelo

crime.295

Reorganizando, portanto, as acepções apregoadas pelos editores da folha até

aqui, podemos afirmar que os combates sugeridos se davam em torno de três frentes: 1)

na aversão às obras de cunho realista/naturalista em voga nos últimos decênios do

século XIX; 2) na proposição de uma formação moral aos leitores e leitoras,

qualificando-os em seus gostos e hábitos, especialmente mediante à literatura veiculada

no cotidiano da imprensa; 3) na defesa de um projeto de literatura nacional brasileira

pautado por princípios edificantes e civilizadores.

Contudo, vale acrescentar que, apesar das constantes negativas frente aos autores

franceses citados, no discurso do periódico, o nome de Victor Hugo seria apresentado

como uma exceção à regra, e como um exemplo a ser seguido - porém, não imitado -

pelos escritores brasileiros.

Ocupando uma página inteira do jornal, a edição de maio de 1872 seria marcada

por um longo texto dedicado ao escritor, no qual o redator demonstrava um apreço

inconteste pela chamada ―revolução romântica‖ liderada pelo autor de Os Miseráveis

(1862). Não nos ocuparemos de todo o escrito, haja vista que parte significativa dele

traz apenas os louros de uma longa biografia, no entanto, daremos ênfase a dois trechos

em específico. Inicialmente, na referência ao prefácio de Cromwell, no qual podemos

reconhecer a nostalgia dos editores d´O Novo Mundo por uma estética literária

referenciada no drama hugoano do início do século XIX; e, num segundo momento, nos

voltaremos às preocupações em torno das possíveis influências do autor francês na

produção literária nacional:

[...] A verdadeira revolução romântica começou em 1827 com a

publicação de Cromwell, do nosso poeta. No prefácio o autor expunha

abertamente as novas doutrinas. O drama foi sujeito a uma crítica

desabrida entre os partidários das duas escolas, clássica e romântica.

No ano seguinte, a vitória inclinou-se para o lado dos inovadores com

a publicação de Les Orientales, que para muitos é o livro mais

maravilhoso de Victor Hugo.

[...] Este escritor é um dos que tem exercido mais influência na

literatura do Brasil. Essa influência tem sido, no todo, benéfica.

Entretanto o desejo de imitar um gênio, como ele é, tem estragado

muitos talentos de mérito real, que em vez de seguirem as suas

aspirações próprias e imprimirem suas feições originais na literatura

pátria, tornam-se muitas vezes insinceros, alando-se a regiões em que

295

―O ´MORALISTA´ DUMAS‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de junho de 1873, nº 33, p.159.

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se não podem suster e em que não podem deixar de se fazerem

ridículos.296

Acenando em defesa de um movimento artístico que, num passado distante, fora

revolucionário por questionar as referências do classicismo e idear uma nova estética

literária baseada no drama romântico, os editores d´O Novo Mundo, mais uma vez,

demonstravam um descompasso em relação aos debates associados a sua própria

contemporaneidade, buscando no pretérito o ―fio‖ capaz de conduzi-los na tese de um

projeto de literatura nacional para o Brasil. Possivelmente, o flerte com a História, a

construção de personagens baseados em princípios éticos, e a afirmação de um senso de

justiça implacável; seriam os fatores presentes na obra de Hugo que mais empolgavam

os publicistas da folha. De todo modo, no prefácio de Cromwell também nos deparamos

com algumas assertivas sobre a temática da ―cor local‖ que não devem ter escapado aos

jornalistas leitores de Victor Hugo. Segue:

[...] Concebe-se que, para uma obra deste gênero [dramático], se o

poeta deve escolher nas coisas (e ele o deve), não é o belo, mas o

característico. Não que convenha dar, como se diz hoje, cor local, isto

é, acrescentar tarde demais alguns toques berrantes aqui e ali num

conjunto aliás perfeitamente falso e convencional. A cor local não

deve estar na superfície do drama, mas no fundo, no próprio coração

da obra, de onde se espalha para fora dela própria, naturalmente,

igualmente, e, por assim dizer, em todos os cantos do drama, como a

seiva que sobe da raiz à última folha da árvore. O drama deve estar

radicalmente impregnado desta cor dos tempos; ela deve, de alguma

forma, estar no ar, de maneira que não se note senão ao entrar e ao sair

que se mudou de século e de atmosfera.297

Relacionando as palavras do romancista às considerações dos editores do jornal

direcionadas aos escritores brasileiros, torna-se possível inferir que o projeto de

concepção e/ou forjamento de uma literatura nacional se daria em torno de um cerne,

ou, talvez, de um instinto de brasilidade, que estaria conjugado aos indícios de uma

realidade concreta, passível de ser reconhecida na experiência de fruição da matéria

literária. Daí os riscos de artificialidade inscritos em qualquer ímpeto de imitação de

literaturas de alhures. Todavia, assegurados em seu irredutível ―argumento de

autoridade‖, os editores d´O Novo Mundo pareciam duvidar que o Brasil, marcado pelos

296

―VICTOR HUGO‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de maio de 1872, nº 20, p.132. 297

HUGO, Victor. ―Cromwell – Prefácio.‖ In: Do grotesco e do sublime. (Tradução e notas de Célia

Berrettini). São Paulo: Perspectiva, 2007 [1827], p.70.

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resquícios da colonização europeia e pelas máculas da escravidão, tivesse solidez

política/social para afirmar-se culturalmente, e de maneira original.298

Por consequência,

caberia ao país buscar em referências próximas um exemplo de ideário a ser

reproduzido, sem fidedignidade, porém, com alguma reverência.

Nesse sentido, e com o intuito de conceber uma nova zona de intercâmbio

cultural entre as regiões neo-continentais, os editores d´O Novo Mundo buscavam

reduzir a ascendência cultural da França sobre o Brasil, propondo uma alternativa

genuinamente americana de representação literária. E, como ponto de partida, parecia

urgente uma reformulação na dinâmica de circulação de impressos que, ao longo do

período oitocentista, fora marcada pelo influxo Europa/América. Para tanto, propunha-

se o diálogo entre continentes supostamente irmanados em seus contextos pós-coloniais,

mas em condições de ―evolução social‖ consideradas distintas. A nota abaixo traz

algumas pistas sobre o novo movimento proposto:

[...] É por certo bem singular o fenômeno que se observa no nosso

país, onde distintos literários fazem timbre de ignorar o movimento

intelectual que se opera nas regiões neo-continentais, e onde mais

depressa se sabe do livro publicado em Paris, Bruxelas, ou Lisboa do

que do vindo à luz em Buenos-Aires, Montevideo, Lima, Santiago,

Valparaíso, Nova Iorque, Boston e Filadélfia.299

No novo arranjo sugerido, um nome em específico se faria presente nas colunas

d´O Novo Mundo como modelo a ser seguido pela intelectualidade periférica: Harriet

Beecher Stowe, a autora de A cabana do Pai Tomás. Tal obra que, desde o seu

lançamento em folhetim em 1852, exercera enorme influência sobre o imaginário

estadunidense, seria reconhecida como uma referência por sua abordagem cristã a

respeito da temática da escravidão, o que se afinava às prerrogativas apregoadas pelo

298

De maneira semelhante, mas tratando da temática educacional, a abordagem já teria permeado o jornal

em outra ocasião: ―[...] A educação de um jovem não consiste somente na língua estrangeira ou na

matemática e medicina que adquira fora do seu país. Tão valiosa instrução como a dos livros é a que ele

recebe continuamente das influências sociais que o cercam, influências que preparam o futuro cidadão

para seus sagrados deveres. O espírito do cidadão não se deve quadrar inteiramente com o modo de

pensar e com os hábitos nacionais, a ponto de excluir aquelas vistas largas e liberais que devem adorná-

lo: mas também, do outro lado, os estudos e o caráter do estudante devem ser primeiramente moldados na

fôrma nacional. É extraordinário o valor desta influência social que completa a educação da mocidade. Se

esta influência social é má, devemos tratar de melhorá-la, mas nunca de eliminá-la, pois ela é o nosso

transunto, o nosso mesmo caráter, e cada um de nós tem de suportar a sua cruz.‖ (―EDUCAÇÃO NO

EXTERIOR‖. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de janeiro de 1874, nº 40, p.66.). 299

―LITERATURA - MOVIMENTO LITERÁRIO NO BRASIL.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de

junho de 1874, nº 45, p.164-165.

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veículo jornalístico: ―[...] No Novo Mundo até o romance da Sra. Beecher Stowe é

consoante com a sua ideia de propagar a autonomia do indivíduo pelo Evangelho.‖300

E,

tendo-se em vista a trajetória de infortúnios do protagonista ―Uncle Tom‖, pode-se crer

que a busca por emancipação pressupunha o martírio - ou a vitimização - do indivíduo

escravizado, que gozaria de alguma liberdade num horizonte celestial.

Em outra edição do jornal, iríamos nos deparar com uma leitura mais direta da

questão servil por meio do romance. Num artigo sugestivamente intitulado ―Escravidão

‗branda‘ e escravidão ‗dura‘.‖301

, os publicistas procuravam posicionar-se diante de um

debate comparativo, vulgarizado em alguns periódicos da época, sobre a condição dos

escravos nos EUA e no Brasil. E, de acordo com o texto veiculado no jornal, nos EUA,

a escravidão teria sido reconhecida como mais ―dura‖ em decorrência da narrativa de

Stowe, e das constantes violências sofridas por seus personagens negros. Por outro lado,

e ainda de acordo com o escrito, seria um equívoco atribuir à escravidão brasileira

qualquer ideia de ―brandura‖, pois, em detrimento do ―domínio redentor‖ exercido pelos

senhores norte-americanos, os proprietários brasileiros manteriam uma relação de cunho

mais ―material‖ com os escravos, daí a fatalidade que rondava a experiência dos sujeitos

cativos no país:

Temos visto os nossos amigos do Brasil aludindo muito à condição do

escravo no Brasil comparada com a que era neste país. Há entre nós

uma noção preconcebida que o cativo nos Estados Unidos era tratado

com muito mais dureza do que o é o do Brasil. As exagerações da

imprensa do norte da União, e da estrangeira, quando aqui se agitava

fortemente a questão da emancipação, e, em grande parte, os tocantes

quadros da Cabana do Pai Tomás, da Sra. Stowe, concorreram muito

para deixarem nos espíritos esta impressão, de que agora se quer fazer

cabedal para não se tocar na escravidão no Brasil.

[...] O domínio do proprietário [estadunidense], baseado como era nas

suas crenças religiosas, tinha um ideal, que por mais errado que fosse,

não deixava de lhe dar uma certa tintura de nobreza. No Brasil, não há

tanta inteligência em serviço do geral de sua lavoura, e a posição do

negro e do senhor, é muito mais material, e mais fatal.302

Ainda sobre A cabana do Pai Tomás, torna-se importante abordar uma longa

homenagem feita à autora no 52° número do periódico. Acompanhado de um grande 300

―Correspondência: A POLÍTICA DO BRASIL, segundo um professor de Direito.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 23 de novembro de 1872, nº 26, p.27. 301

―Escravidão ‗branda‘ e escravidão ‗dura‘.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de julho de 1871, nº 10,

p.146. 302

Idem.

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retrato de Harriet B. Stowe, o artigo tratava novamente do tema da escravidão e da

Guerra de Secessão (1861-1865) que marcaram a história dos Estados Unidos. Mais

uma vez, e numa associação recorrente à época, o romance era preconizado pelo

respaldo oferecido em relação à abolição da escravatura, e por sua influência junto à

opinião pública sensibilizada a partir da narrativa.

Retrato da Sra. Harriet Beecher Stowe. O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de janeiro de 1875, nº

52, p.100.

[...] Havia então em Washington um periódico redigido pelo Dr.

Bailey, intitulado The National Era. A Sra. Harriet Beecher Stowe

recebeu um convite do redator para escrever alguma história pequena

que finalizasse em dois ou três números, e pela qual receberia 200$ de

remuneração. A escritora aceitou o convite, mas pondo-se a escrever o

conto, inflamou-se-lhe o coração e, iluminada por uma luz mais que

humana, escreveu a mais poderosa novela social do século atual, -

poderosa porque a autora só fez descrever vivamente e com fogo

aquilo que via todos os dias. A cabana do Pai Tomás não falou aos

políticos, mas ao povo, às massas: foi diretamente à fonte de todo o

poder; popularizou a vergonha da escravidão, e anunciou a todos os

cantos da terra a iniquidade da gente do Sul da União. E este apelo aos

sentimentos cristãos da humanidade não foi baldado, pois desde então

até 1860 o poder do Sul foi decaindo, e o do Norte aumentando, até

que Lincoln foi eleito, e com sua eleição foi morta a escravidão.303

303

―Harriet Beecher Stowe.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de janeiro de 1875, nº 52, p.100 e 101.

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No trecho os publicistas retomavam o debate sobre as relações entre literatura e

sociedade já sugerido anteriormente. Contudo, desta vez, algumas prerrogativas teóricas

ganhavam ares de análise empírica, e o romance de Stowe seria reconhecido em seus

aspectos de verossimilhança por ―descrever vivamente‖ as mazelas de seu próprio

tempo, - daí a alcunha de ―novela social do século atual‖ utilizada para designar o

folhetim. Deve-se acrescentar ainda que as referências protestantes que acompanhavam

a figura de Stowe, também seriam fator motivador da inscrição de elogios por parte dos

jornalistas. Seguia em curso, portanto, a tese de um projeto literário enraizado na

representação de uma realidade social concreta, e em diálogo constante com as

diretrizes éticas atreladas à confissão religiosa professada pela escritora e pelo Novo

Mundo.

Ademais, é importante notar-se que, apesar dos editores da folha idealizarem os

EUA como um baluarte na proposição de uma zona de ingerência cultural entre

Américas, em certos momentos, por meio do próprio jornal, ficava implícito que a

crítica e os escritores estadunidenses também enfrentavam dificuldades mediante as

reflexões de uma literatura que pudesse ser considerada original, e que fosse capaz de

romper com o passado da tutela europeia. Assumidamente retirado da imprensa inglesa,

o excerto a seguir, tratava da questão:

[...] A sua literatura é tão puramente provincial, como se nunca

houvesse ocorrido a Declaração ou Guerra da Independência. Eles têm

alguns historiadores e homens de ciência, de bastante mérito, mas não

os têm tantos nem melhores do que se não se tivessem separado deste

país. Não há coisa alguma que escrevam, que escape à pecha de

imitação. No grande campo da ficção ou imaginação, que tanto se tem

dilatado nestes últimos anos, vê-se perfeitamente que o americano

bebeu a sua concepção em fonte estrangeira... Uma novela americana

é tal qual um conto sobre gente inglesa com acessórios da América.304

A busca por uma literatura que pudesse ser considerada original e identificada

como americana, parecia mobilizar os editores d´O Novo Mundo. Tal literatura deveria

contar com temáticas que ―descrevessem‖ as relações sociais que nos diferenciavam da

velha Europa. Todavia, o projeto também previa a afirmação de aspectos morais que, na

concepção dos jornalistas, deveriam ser conjugados ao fazer literário. De todo modo, e

304

―LITERATURA DO DIA. [Retirado do periódico Pall Mall Gazette].‖. O Novo Mundo, Nova Iorque,

24 de novembro de 1871, nº 14, p.30.

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pensando na poética305

que compõe todo o veículo jornalístico, faz-se necessário

expandir o debate, procurando outras vozes que reverberavam, ou desestabilizavam, os

argumentos expostos pelos publicistas.

Assim, em 1872, Joaquim Nabuco lançava o título Camões e os Lusíadas, que

seria amplamente divulgado no jornal O Novo Mundo. O livro, de caráter

essencialmente biográfico, tratava da trajetória do escritor lusitano até a concepção de

sua reconhecida epopeia que, naquele ano, completava três séculos. Mas, para além da

obra propriamente dita, o que causou certa repercussão à época foi o texto introdutório

ao livro, no qual Nabuco teria traçado algumas considerações acerca do mesmo debate

sobre literatura nacional em contexto periférico, que já animava os redatores do jornal

há alguns anos. No 22° número da folha, e com certo destaque, seguia uma espécie de

resenha a respeito da introdução assinada por Joaquim Nabuco:

O Sr. Joaquim Nabuco, do Rio de Janeiro, na introdução do seu

recente livro sobre Camões e os Lusíadas, expende sua opinião sobre

a existência de uma literatura brasileira. Ele acredita que não temos

ainda uma literatura própria, e que os vários ensaios que se tem feito

no sentido de cria-la hão gorado inteiramente. [...] Diz ainda o escritor

que a única coisa que forma a originalidade brasileira é a escravidão,

que o Brasil está passando atualmente por uma época de transição, e

que a razão da esterilidade dos ensaios que se tem feito para se criar

uma literatura nacional é que a literatura assim criada não tem relação

alguma com a raça, as tradições e a história do país; e a nossa

nacionalidade moral foi traçada com o auxílio da escravidão que está

condenada a desaparecer. Em suma, diz ele que as literaturas não se

criam, mas formam-se.306

Novamente o argumento da escravidão como um empecilho à concepção de uma

literatura nacional ressoava nas páginas d´O Novo Mundo. As acepções defendidas por

Joaquim Nabuco pareciam corroborar a perspectiva defendida pelo jornal. E, de fato,

debruçando-nos sobre todo o texto introdutório ao livro307

, seria possível notar que, nas

considerações de Nabuco, os publicistas encontrariam uma interlocução primorosa no

fortalecimento de suas projeções para a literatura brasileira.

305

Conferir nota 180. 306

―LIVROS E AUTORES.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 23 de julho de 1872, nº 22, p.179. 307

NABUCO, Joaquim. ―Introdução‖. In: Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial

Instituto Artístico, 1872, p. 5-17. Edição disponível no seguinte endereço eletrônico:

http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/01204900#page/7/mode/1up [Acesso em agosto/2017].

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De antemão, e reverenciando o poema épico de Luís Vaz de Camões, Joaquim

Nabuco se alinhava à concepção de uma literatura clássica, e seguiria desprezando a

prosa de teor realista/naturalista que circulava no período: ―Uma outra literatura tomou

o lugar da forte poesia épica. Já não se fala ao coração nem ao espírito, fala-se ao

sistema nervoso, à sensibilidade doentia das mulheres histéricas e dos homens

ociosos.‖.308

Assim, e sob uma perspectiva normativa, Nabuco recomendava a leitura de

Os Lusíadas especialmente à mocidade, cuja apreciação estética se encontraria

deturpada pelo consumo de obras questionáveis: ―É a mocidade que se deve dar a ler

esse livro tão elevado e puro. Em suas páginas aprenderá ela a amar a glória.‖309

Dessa

forma, e retomando as recomendações expressas no discurso do jornal, Nabuco também

postulava uma função pedagógica e de cunho moral para a experiência literária.

Num segundo momento, e voltando-se ao tema da identidade nacional na

literatura, Nabuco buscava se justificar em relação ao seu aparente retrocesso no apreço

dos referenciais culturais metropolitanos. De acordo com o autor, ao tratar da obra-

prima dos lusitanos, ele falava de algo nacional, posto que diante da ausência de uma

literatura que pudesse ser considerada ―brasileira‖, a literatura portuguesa deveria ser

considerada a nossa literatura. O autor argumentava ainda que as produções do período

pós-independência, marcadas pela temática indianista, não representavam a realidade

nacional brasileira, e deveriam ser tipificadas como ―literatura tupi guarani.‖310

Além

disso, e novamente trazendo à cena o estigma da escravidão, Nabuco tratava do estado

deplorável da sociedade brasileira de então, e das impossibilidades da produção de uma

literatura original - e com a afirmação de ideais - num contexto tão adverso:

Ora acontece que há sempre nas obras dos escritores que querem ser

nacionais, traços, reflexos, sinais dessa deplorável instituição. O que

constitui nos seus livros a particularidade de nossas cenas familiares,

de nossa vida campestre, são os quadros do cativeiro humano.

Assim, a nossa vida é a mesma dos outros países, com a diferença de

que, entre nós, há a escravidão demais. É isso que forma a

originalidade brasileira. É certo que alguns de nossos escritores

pintaram a escravidão de modo a fazê-la odiar; ao lado desses, porém,

cujas obras pertencem mais à polêmica do que ao romance ou à

poesia, há muitos, quase todos, que confundem insensivelmente os

dois estados, e que quando querem dar a cor local do país às suas

obras, trazem uma lembrança do cativeiro, sem indagarem se isso não

308

Idem, p.7 e 8. 309

Idem, p.7. 310

―Uma literatura inspirada pela vida errante das tribos primitivas, que se servisse amplamente de seu

rude vocabulário, que não nos descrevesse senão os seus costumes, seria bem uma literatura tupi ou

guarani, mas não a brasileira.‖ Idem, p.11.

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é um estigma, que eles imprimem, em vez de uma honra que fazem ao

seu país. Este sistema que não peca por falta de relação com a

sociedade brasileira, peca por falta de ideal, sem o qual não existem

nem letras nem artes.

[...] Não duvido que venhamos a ter uma abundante literatura pátria,

mas para isso é preciso primeiro que a alma beba amplamente

inspirações na nossa natureza e, depois, que a sociedade chegue pela

liberdade a tomar sua forma definitiva. Enquanto tais resultados não

se produzirem, os Lusíadas, como obra prima de nossa língua, serão a

obra prima de nossa literatura.311

De maneira geral, a obra de Joaquim Nabuco teve ampla repercussão na

imprensa da época, sendo muito bem recebida e até festejada por alguns.312

Nesse

contexto, um convite nem tão formal nos chama a atenção. Em correspondência datada

de 1872, Nabuco expressava o desejo de que o escritor Machado de Assis estivesse

presente num sarau que promoveria a leitura de Camões e os Lusíadas: ―Meu caro

Machado, Se você quiser ouvir umas folhas de má prosa sobre os Lusíadas apareça às 7

da noite à rua da Princesa do Catete, n.º 1, casa sua e de Joaquim Nabuco.‖313

Não

sabemos se Machado esteve presente à reunião. De todo modo, podemos inferir que, na

polifonia de sentidos de que se fazia o jornal314

, torna-se possível acrescentarmos uma

importante voz ao debate que se prolongava.

Ainda sobre correspondências, vale dizer que em setembro de 1872, José Carlos

Rodrigues, o proprietário d´O Novo Mundo, escreveria a Machado de Assis com o

propósito de encomendar-lhe um artigo no qual fosse abordado o caráter geral da

literatura brasileira, criticando suas tendências literárias e morais. Ou seja, buscando

ratificar o debate estético que seguia em curso no seu jornal, Rodrigues convocava ―as

razões‖ de um dos maiores nomes da literatura da época. E, conforme sabemos, não

tardaria para que o famoso texto crítico ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de

Nacionalidade‖315

lhe chegasse às mãos e às páginas da folha.

311

Idem, p.13 e 14. 312

Em setembro de 1872, a Semana Ilustrada anunciava que: ―Publicou-se e acha-se à venda em todas as

livrarias Camões e os Lusíadas, obra de perto de 300 páginas do Dr. Joaquim Nabuco. A Semana não será

exceção dos jornais que em coro elogiaram e proclamaram ótima a publicação, que não somente honra o

jovem autor, como mostra que ainda há pessoas dedicadas aos estudos sérios.‖ (Semana Ilustrada, Rio de

Janeiro, 8 de setembro de 1872). 313

NABUCO, Joaquim. (1872). Apud: ROUANET, S. P. (Org. e Coord.). Correspondência de Machado

de Assis: tomo II, 1870-1889. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2009, p.81. 314

Ver nota 180. 315

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107 e 108.

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Este jornal (que tem chegado agora ao 3.º ano a salvamento) precisa

de um bom estudo sobre o caráter geral da literatura brasileira

contemporânea, criticando suas boas ou más tendências, no aspecto

literário e moral: um estudo que, sendo traduzido e publicado aqui em

inglês, dê uma boa ideia da qualidade da fazenda literária que lá

fabricamos, e da escola ou escolas do processo da fabricação. Como

sabe, se não escrevo bem sobre assunto nenhum, muito menos sobre

literatura; nem tenho tempo de ir agora estudá-la. Quererá o amigo

escrever sobre isso? – Não posso dizer-lhe de antemão quanto lhe

pagarei pelo trabalho; mas digo-lhe que desejo muito ter esse artigo e

que hei de retribuir-lhe o melhor que puder, regulando-me sempre

pela qualidade, não pelo tamanho do escrito.316

Na 30ª edição do jornal, datada de março de 1873, viria a lume o texto integral

do artigo ―Notícia da Atual Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade‖,

devidamente assinado por Machado de Assis.317

A partir do título já seria possível

conferir que o autor buscava atender aos anseios de José Carlos Rodrigues318

e, ao longo

da leitura, poderíamos notar ainda que Machado demonstrava ciência a respeito das

particularidades do suporte envolvido: ―Mas, pois que isto vai ser impresso em terra

americana e inglesa.‖319

Dividido em quatro partes, o escrito propunha uma análise

profunda de aspectos do nosso Romance, da Poesia, do Teatro e da Língua. Contudo, e

estabelecendo um recorte aos propósitos deste trabalho, iremos nos dedicar

especificamente à abordagem sobre o romance.

Entrecruzando as perspectivas presentes ao jornal, propomos que através da

publicação de ―Instinto de Nacionalidade‖, Machado de Assis320

se posicionava como

um defensor da consolidação da forma do romance no Brasil. Isto posto, e retomando os

316

RODRIGUES, José Carlos. (1872). Apud: ROUANET, Sergio Paulo (Org. e Coord.). Op.cit.,(2009).

p.78-79. 317

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107 e 108. 318

Ao que parece, Machado de Assis adequava o título e a forma textual de sua crítica ao suporte

jornalístico em questão, no entanto, e antevendo qualquer equívoco interpretativo, ponderamos que as

ideias em debate já eram gestadas pelo crítico/romancista há algum tempo. Conforme demonstrado por

José Luís Jobim, o veio crítico acerca do universo romântico, - em específico sobre a temática da cor

local e da apropriação literária do índio - já teria sido demonstrado pelo literato no texto "O passado, o

presente e o futuro da literatura", publicado em 1858. Nesse sentido, além de incluirmos ―Notícia da atual

literatura brasileira. Instinto de nacionalidade‖ nas páginas da imprensa, a fim de atrelar o escrito à outra

rede de produção de sentidos; também reafirmamos a prerrogativa da inserção do escrito num profícuo

projeto literário ideado por Machado ao longo de toda a sua carreira. Cf.: ASSIS, Machado de. ―O

passado, o presente e o futuro da literatura.‖ Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de

Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. [Publicado originalmente em A Marmota, Rio de Janeiro, 09 e

23/04/1858]. Ver, também: JOBIM, José Luís. ―Machado de Assis: o crítico como romancista.‖ Machado

de Assis em linha, ano III, nº 5, junho/2010, p. 75 - 94. 319

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107. 320

Assim como José de Alencar já o fizera em ―Benção Paterna‖.

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argumentos elencados pela equipe do periódico e por Joaquim Nabuco, o literato

dissonava daqueles que desqualificavam o romance classificando-o como um gênero

inferior à matéria clássica. Para Machado, o fato de o Brasil não se constituir num nicho

de mercado para obras rebuscadas de filosofia, linguística ou alta política não se

configurava exatamente num fator negativo. Pelas facilidades formais, líamos romances.

Ainda assim, o fato não seria compreendido como um argumento que pesava contra o

público leitor brasileiro que, na tolerante observação do autor, encontrava-se na

―mocidade‖ de sua capacidade receptiva. Por fim, a análise também se voltava aos

autores de romances - e devemos incluir ―de folhetins‖ - que, no escrito machadiano,

seriam soerguidos pela afirmação do engenho de suas criações:

Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de

linguística, de crítica histórica, de alta política, e outros assim, que em

alheios países acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui

essas obras e escasso o mercado delas. O romance pode-se dizer que

domina quase exclusivamente. Não há nisto motivo de admiração nem

de censura, tratando-se de um país que apenas entra na primeira

mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos. Isto não é

desmerecer o romance, obra d'arte como qualquer outra, e que exige

da parte do escritor qualidades de boa nota.321

Na sequência, o autor buscava amenizar os julgamentos negativos acerca da

influência estrangeira, ou do realismo francês, na literatura brasileira. Nas palavras de

Machado de Assis, os livros de certa escola francesa, apesar de muito lidos entre nós,

não teriam contaminado a literatura brasileira.322

O termo, carregado de sentido

pejorativo, denunciava que a questão moral também se fazia presente na análise do

crítico. No mesmo sentido, e convergindo com as considerações já traçadas no Novo

Mundo, Machado reafirmava com algum entusiasmo a presença da literatura francesa de

teor romântico entre nós, representada especialmente por autores como Victor Hugo.323

321

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107. 322

―As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão de princípio a

fim irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar e corrigir. Mas o tom

geral é bom. Os livros de certa escola francesa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a

literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que é já notável mérito. As

obras de que falo, foram aqui bem-vindas e festejadas, como hóspedes, mas não se aliaram à família nem

tomaram o governo da casa.‖ In: Idem. 323

―Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade são os do período romântico; os escritores

que se vão buscar para fazer comparações com os nossos, — porque há aqui muito amor a essas

comparações — são ainda aqueles com que o nosso espírito se educou, os Vítor Hugos, os Gautiers, os

Mussets, os Gozlans, os Nervals.‖ In: Idem.

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Considerando outras demandas e inter-relações, ainda restam a temática da

escravidão e do substrato social brasileiro, que estiveram muito presentes ao discurso do

suporte midiático e de Joaquim Nabuco. É sabido que em ―Instinto de Nacionalidade‖,

Machado de Assis não tocaria na questão dos negros cativos, demonstrando até alguma

indisposição ao tema naquele momento: ―[...] conviria examinar se possuímos todas as

condições e motivos históricos de uma nacionalidade literária; esta investigação (ponto

de divergência entre literatos), além de superior às minhas forças, daria em resultado

levar-me longe dos limites deste escrito.‖324

Por outro lado, e insistindo na inserção do

autor à roda de debates observada no periódico, o apreço à obra A Cabana do Pai

Tomás, de Harriet Beecher Stowe, poderia ser observado como principal ponto de

convergência no estabelecimento de um diálogo entre as partes envolvidas.

De acordo com Hélio de Seixas Guimarães325

, o folhetim contou com ampla

repercussão no Brasil do século XIX, sendo amplamente divulgado e traduzido na

imprensa da época. Para Guimarães, a obra deve ser compreendida como o primeiro

best-seller americano, e o estrondoso sucesso teria o mérito de fornecer um estoque de

―imagens literárias do escravo e de situações relacionadas à escravidão, que passariam a

integrar o imaginário dos escritores brasileiros.‖.326

Alinhando-nos às assertivas do estudioso, constatamos que Joaquim Nabuco não

teria ficado alheio aos quadros de Stowe, e em Minha formação admitiria que: ―Mil

vezes li a Cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando.‖.327

Machado

de Assis, por sua vez, teria citado a obra em duas de suas críticas teatrais328

; e, em 1876,

na condição de censor do Conservatório Dramático, o autor licenciaria uma peça

deliberadamente baseada na narrativa.329

Dessa maneira, torna-se possível afirmar que, -

324

ASSIS, Machado de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo,

Nova Iorque, 24 de março de 1873, nº 30, p.107. 325

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. ―Pai Tomás no romantismo brasileiro.‖ Teresa - revista de Literatura

Brasileira [12|13]; São Paulo, 2013 p. 421-429. 326

Idem, p.424. 327

NABUCO, Joaquim. Minha Formação (introdução de Gilberto Freyre). Brasília: (Coleção Biblioteca

Básica Brasileira, tomo II), Senado Federal, 1998, p.182. 328

Primeiramente na análise da peça Mãe, de José de Alencar. (ASSIS, Machado de. A crítica teatral.

José de Alencar: Mãe. Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

vol. III, 1994. [Publicado originalmente na ―Revista Dramática‖, seção do Diário do Rio de Janeiro,

29/03/1860]). E, posteriormente na análise do drama Os cancros sociais, de Maria Ribeiro, em crônica

datada de 16 de maio de 1865. (Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis. Rio de Janeiro: Edições

W. M. Jackson,1937. [Publicado originalmente no Diário do Rio de Janeiro]). 329

De acordo com Hélio de Seixas Guimarães: ―A informação foi publicada na Revista Illustrada de 15

de julho de 1876, p. 3. João Roberto Faria, que recolheu todos os escritos de Machado relativos ao teatro,

diz ser bem possível que a informação seja verdadeira, embora não conheça esse parecer. Machado foi

censor na primeira fase do Conservatório, entre 1862 e 1864, e também na segunda, a partir de 1871, mas

infelizmente toda a documentação dessa segunda fase se perdeu‖. In: GUIMARÃES, Hélio de Seixas,

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dentro e fora do discurso d´O Novo Mundo - a obra certamente se encontrava no

horizonte de expectativas de Nabuco e Machado.

Numa das críticas teatrais, Machado analisava a peça Mãe (1860), de José de

Alencar. O drama, cujo enredo tratava de uma mãe cativa vendida pelo próprio filho,

seria generosamente elogiado pelo crítico. Ao longo do texto, Machado evocaria a obra

de Stowe numa reflexão a respeito das virtudes da peça ao abordar o drama da

escravidão: ―Esse drama, essencialmente nosso, podia, se outro fosse o entusiasmo de

nossa terra, ter a mesma nomeada que o romance de Harriette [sic] Stowe, fundado no

mesmo teatro da escravidão‖.330

Ou seja, podemos pensar que, em alguma medida, a

narrativa norte-americana se constituía num referencial para Machado avaliar as obras

que tivessem como mote a temática da escravidão.

Todavia, também podemos inferir que Machado reelaborasse alguns dos

expedientes defendidos por Harriet B. Stowe em sua própria criação. Nas parcas

produções do autor com referências diretas à escravidão, não observamos um

sentimento de resignação tão intenso como aquele que tipificou Pai Tomás, - embora

também não observemos figuras escravas completamente aguerridas. De todo modo,

não compactuamos com a velha ideia de um Machado absenteísta. Com base em autores

como Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub, reconhecidos como representantes de uma

vertente dos estudos machadianos que busca relacionar a produção literária do autor à

sua própria historicidade, ousamos afirmar que há matizes em toda a obra de Machado

que denunciavam tal realidade social.

Nos referimos a José Dias, Helena, Guiomar e tantos outros personagens que

sabiam opinar obedecendo, porque viviam na corda bamba da dependência. Num

debate a respeito de sua própria obra, Roberto Schwarz331

já teria afirmado que a

relação particular dos dependentes se configurava a partir da existência da escravidão.

Inclusive, segundo o crítico, um dos maiores pavores de qualquer dependente era o de

ser tratado como escravo. Posteriormente, Sidney Chalhoub332

iria reiterar as afirmações

do primeiro estudioso, acrescentando que, de acordo com a lógica paternalista, a

escravidão seria a situação máxima de dependência, e isso esclarecia o porquê de a

(2013), Op.cit., p. 426. Ver, também: FARIA, João Roberto. Machado de Assis – do teatro. São Paulo:

Perspectiva, 2008. 330

ASSIS, Machado de. [A Crítica Teatral: José de Alencar: Mãe], texto publicado em 29 de março de

1860. Obra completa, Op. Cit. vol. 3, p. 840. 331

―Machado de Assis: um debate. Conversa com Roberto Schwarz.‖ Novos Estudos, Cebrap, nº 29,

março de 1991, p.83. 332

CHALHOUB, Sidney. ―Entreato teórico.‖ In: Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia

das Letras, 2003, p.55 e 56.

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situação do dependente ser compreendida a partir da condição dos escravos. Assim, e

ainda de acordo com Chalhoub, no Brasil oitocentista, existiriam condições

intermediárias entre a escravidão e a liberdade que, ao mesmo tempo em que

problematizavam a visão de uma sociedade rigidamente dividida entre senhores e

escravos, também poderiam sugerir a precariedade inerente à condição dos dependentes.

Em muitos de seus romances, - como em A mão e a luva (1874) que

abordaremos a seguir - Machado nos traz as nuances de conflitos muito próprios do

contexto brasileiro do século XIX, no qual a presença dos dependentes denunciava a

representação de uma sociedade calcada nas violências do paternalismo e da escravidão.

Sendo assim, e retomando as assertivas do escritor, pensamos que ao retratar tais

relações em sua produção literária, Machado se prestava às demandas de seu tempo e de

seu país333

; demonstrando ainda certo nível de adequação aos embates que relacionavam

―literatura e sociedade‖ presentes na imprensa da época, porém, de maneira mais

complexa, e dispensando as simplificações pedagógicas/dualistas constantemente

empregadas. Também seria possível afirmar-se que, através da publicação do texto

crítico ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de Nacionalidade” no periódico O

Novo Mundo, Machado interpelasse os debates que circulavam na época, aproveitando-

se para afirmar um lugar para o romance no Brasil e, possivelmente, (re)elaborando a

criticidade de seu processo mimético, no qual a escravidão, além de não figurar como

um entrave para um projeto de literatura nacional, seria implicitamente referenciada -

em tantas de suas narrativas - como mácula intrínseca ao teor de brasilidade que nos

representava naquele momento.

Concluímos ainda que, em tal contexto, Machado de Assis não iria se ater aos

debates em torno da influência do realismo no romance brasileiro334

; tal como José de

Alencar já o fizera. Aliás, e propondo certo alinhamento em relação à vertente estética

do drama romântico francês, devemos ponderar que o escritor fluminense chegava a

flertar com as referências de um ideário bastante tradicional para examinar o caráter

geral da nossa literatura. De todo modo, é igualmente importante sublinhar que o

substrato moderno que matizava as ―cores dos tempos‖ de então, encontrava-se

333

―O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu

tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.‖. In: ASSIS, Machado

de. ―Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque, 24 de

março de 1873, nº 30, p.107. 334

Posteriormente, e conforme sabemos, Machado se envolveria num profícuo debate acerca da literatura

realista através do exame da obra O primo Basílio (1978), de Eça de Queirós. Cf.: NASCIMENTO, José

Leonardo do. O Primo Basílio na imprensa brasileira do século XIX: estética e história. São Paulo:

Editora UNESP, 2008.

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impregnado à poética machadiana que, não a despeito da forma romanesca, também

reverberava as especificidades de nossas condições periféricas, além de trazer consigo

as tantas promessas e falácias do progresso liberal.

Noutras palavras, inserido nas malhas discursivas de uma imprensa moderna,

Machado cuidava de se comunicar com um público afeito aos estrangeirismos,

contando-lhes da atualidade de nossa literatura, porém, precavendo-se para não incorrer

nos exotismos, ou nas ressonâncias de uma tipificação de brasilidade tida por

inadequada à tônica liberal. É bem verdade também que, o tal ―sentimento íntimo‖

expresso pelo homem de então, deveria ser conjugado a uma referencialidade universal

acomodada - e, acrescentamos, conflagrada - à sua experiência social em tal

historicidade. Assim, e a partir de tal assertiva, sugerimos que a literatura brasileira

poderia refletir, entre outros aspectos, os desdobramentos da essência humana

ambiciosa mediante às tantas promessas de mobilidade e ascensão social associadas ao

estatuto da modernidade liberal dos últimos decênios do século XIX.

Aliás, e para endossar tal proposta interpretativa, antecipamos que nas páginas

d´O Novo Mundo seria publicada uma das poucas críticas dedicadas ao romance-

folhetim A mão e a luva, de Machado de Assis, sendo que em tal escrito, podemos notar

algo das percepções elencadas acima. Assinado por ―Araucarius‖ (pseudônimo do

cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro), o texto vindo a lume na coluna ―Revista

Brasílico-Literária‖, em fevereiro de 1875, elogiava o aspecto formal romântico da

narrativa machadiana, porém, a ―substância‖, ou, talvez, o conteúdo de realidade do

folhetim parecia gerar certo desconforto em relação à esmerada estilística. Segue:

[...] Mostrou-se mais uma vez o ilustre romancista esmerado cultor da

forma, mantendo os foros dum dos nossos primeiros estilistas; a

substância porém não condiz com esse primor externo.335

E, conforme abordaremos a seguir, advertimos, de antemão, a presença de um

―ruído‖ de modernidade na obra machadiana em questão, que até poderia inspirar certo

senso de realismo em relação à sua ―substância narrativa‖. Todavia, neste momento,

sugerimos apenas que tal dissonância teria sido possivelmente concebida em diálogo

com os modos de se experienciar as tantas novidades associadas à época. Conquanto

demonstrado por meio do aparato jornalístico d´O Novo Mundo, cogitamos ainda que a

335

ARAUCARIUS (pseudônimo do cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro). REVISTA

BRASÍLICO-LITERÁRIA: ―A mão e a luva, pelo Sr. Machado de Assis.‖ O Novo Mundo, Nova Iorque,

22 de fevereiro de 1875, nº 53, p.126 - 127.

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condição feminina, representada no veículo ilustrado por meio de signos de

intelectualidade e de autogoverno, também poderia emergir como uma preocupação

proeminente na ficção assinada por Machado de Assis, em específico se nos atentarmos

aos movimentos da ambiciosa Guiomar, a protagonista que irá conferir as ―cores frias‖

de nossas próximas páginas.

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156

V. SOBRE A MÃO E A LUVA (1874), DE MACHADO DE ASSIS.

Romance-folhetim apresentado por seu criador como obra de ―pequeno tomo‖336,

A mão e a luva, de Machado de Assis, saiu a público primeiramente no jornal

fluminense O Globo, de forma seriada, entre os meses de setembro e novembro de

1874. Ao fim do folhetim, a Tipografia do Globo editaria a sua primeira versão em

livro. Tal edição contava com uma breve introdução ou ―Advertência‖, escrita pela pena

do próprio Machado, e que tratava da natureza folhetinesca inerente à obra, tanto no que

concernia à sua forma quanto em relação à sua característica sutileza/leveza estética. E,

alvitrando um passatempo quase pueril, Machado recomendava o seu livro como

alguém que ofertava um mimo gracioso, porém, pouco útil àqueles que estivessem

interessados em recebê-lo. Segue o trecho:

ADVERTÊNCIA DE 1874

Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos

do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo

padecessem com esse método de composição, um pouco fora dos

hábitos do autor. Se a escrevera em outras condições, dera-lhe

desenvolvimento maior, e algum colorido mais aos caracteres, que aí

ficam esboçados. [...] O que aí vai são umas poucas páginas que o

leitor esgotará em um trago, se elas lhe aguçarem a curiosidade ou se

lhe sobrar alguma hora que absolutamente não possa empregar em

outra coisa, - mais bela ou mais útil.337

Com uma dicção muito semelhante à utilizada por Sênio, o pseudônimo de José

de Alencar, Machado de Assis também parecia desprestigiar a própria obra,

apresentando-a em sintonia com os hábitos de um público que consumia a literatura por

meio das vertiginosas páginas jornalísticas. Sendo assim, e tendo por expectativa um(a)

leitor(a) impaciente, Machado admitia as supostas inconsistências presentes numa

narrativa feita às pressas ou ao toque do jornal de amanhã. Na verdade, se fôssemos

adiantar algo, diríamos que o narrador machadiano também irá alimentar uma relação

bastante crítica com seus leitores e leitoras. Mas, por ora, vale reafirmar as atenções

dedicadas a um caractere em específico: Guiomar.

336

ASSIS, Machado de. ―ADVERTÊNCIA DE 1874‖. In: A mão e a luva. Obra Completa, Rio de

Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p.1. 337

ASSIS, Machado de. ―ADVERTÊNCIA DE 1874‖. Ibidem.

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Retomando o mesmo registro alencariano, Machado buscava reiterar a

complexidade mimética envolvida na concepção de Guiomar, buscando não reduzi-la a

uma tipificação, e reconhecendo certa psique individual presente em sua composição;

muito embora, e tomando de empréstimo as palavras de Sênio, possamos afirmar que os

caracteres também seriam formados pelas nossas condições sociais, idiossincrasias,

como outras que aí estão se reproduzindo ao infinito, sob a influência de um concurso

qualquer de circunstâncias.338 Por fim, e demonstrando certa preocupação com a

naturalidade ou com a ―aparência de verdade‖ de seus personagens, Machado

circundava a questão da verossimilhança, acenando com uma narrativa moderna e,

consequentemente, referenciada numa realidade manifesta:

[...] Convém dizer que o desenho de tais caracteres, - o de Guiomar,

sobretudo, - foi o meu objeto principal, senão exclusivo, servindo-me

a ação apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis.

Incompletos embora, terão eles saído naturais e verdadeiros? 339

Em 1907 sairia uma nova edição do livro, reimpressa pela Casa Garnier, e com

um outro prefácio assinado por Machado de Assis. Inicialmente, e de maneira

notavelmente nostálgica, o autor reconhecia as relações da obra com as suas

experiências de um tempo distante. Desta vez, Machado não chamava a atenção para a

personagem Guiomar, somente advertia que havia decidido eliminar algumas quinze

linhas que estiveram presentes ao folhetim, e que não seguiram na versão em livro. Do

restante, tudo saía como em 1874:

ADVERTÊNCIA DE 1907

Os trinta e tantos anos decorridos do aparecimento desta novela à

reimpressão que ora se faz parece que explicam as diferenças de

composição e de maneira do autor. Se este não lhe daria agora a

mesma feição, é certo que lh´a deu outrora, e, ao cabo, tudo pode

servir a definir a mesma pessoa.

[...] O autor aceitou o conselho de confiar a reimpressão ao editor dos

outros livros seus. Não lhe alterou nada; apenas emendou erros

338

―Nem Guida, nem Ricardo são tipos, mas caracteres formados pelas nossas condições sociais,

idiossincrasias, como outras que aí estão se reproduzindo ao infinito, sob a influência de um concurso

qualquer de circunstâncias. A diferença entre um tipo e um caráter não careço de a determinar, pois não a

ignora o ilustrado crítico. O tipo é moral; o caráter é psicológico. Este só contraste basta: dá-nos ela outra

importante aferição. O tipo forma-se exteriormente pelo molde social; o caráter é uma criação espontânea,

que se produz internamente pelas modalidades da consciência.‖ SÊNIO. (ALENCAR, José de). ―Os

sonhos de ouro‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1872. 339

ASSIS, Machado de. ―ADVERTÊNCIA DE 1874‖. Ibidem.

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tipográficos, fez correções de ortografia, e eliminou cerca de quinze

linhas. Vai como saiu em 1874.

M. de A.340

Decidimos rastrear as tais quinze linhas, e descobrimos que elas tratam de...

Guiomar. No décimo capítulo do romance, publicado no jornal O Globo em 16 de

outubro de 1874, a protagonista era envolvida na teia de sua antagonista, Mrs. Oswald,

vendo-se constrangida à declaração amorosa de um pretendente desprezado. Dizemos

constrangida porque o pretendente era Jorge, um homem a quem, por questões sociais,

de dependência e de gratidão, Guiomar não poderia negar qualquer tipo de cortesia.

Mrs. Oswald, por sua vez, tinha ciência da vulnerabilidade da garota, e forçaria a

aproximação. Nesse sentido, as tais quinze linhas omitidas no livro, falavam de um

profundo desdém em relação aos dois personagens que a teriam colocado em tal

situação. O excerto omitido, embora acessório à construção da personagem na

totalidade da narrativa, reiterava um caráter resoluto que seria sustentado ao longo de

todo o enredo. Segue o trecho:

E desta vez o gesto não foi de cólera, foi de alguma coisa mais,

metade fastio, metade lástima, mescla difícil e rara... que só o

desprezo em certos espíritos pode produzir. Guiomar sentia que

de quantas armas de combate a natureza deu à criatura humana,

o desdém é a verdadeiramente invencível, e em certos lances, a

mais nobre de todas.341

À época de seu lançamento em folhetim, A mão e a luva recebeu algumas parcas

críticas nas páginas da imprensa, todas tímidas e pouco festivas à narrativa, porém

constantes num quesito: a frieza de Guiomar. A crítica publicada no periódico Vida

Fluminense seria emblemática nesse quesito e, de maneira acachapante, denotaria que

Guiomar seria um ―tipo soberbo de mulher, adorável mas fria.‖342 Isto posto, seria

possível cogitar-se que, diante da má recepção à personagem em 1874, Machado teria

buscado amenizar as tintas utilizadas na concepção de Guiomar para a versão livresca

340

ASSIS, Machado de. ―ADVERTÊNCIA DE 1907‖. In: A mão e a luva. Obra Completa, Rio de

Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p.1. 341

O trecho em negrito encontra-se presente somente na versão em folhetim: ASSIS, Machado de. ―A

revelação‖ (capítulo X). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 16 de outubro de 1874, p.1. 342

CAVACO (pseudônimo desconhecido). ―A vida fluminense‖ [coluna]. A Vida Fluminense: Folha

Joco-Seria Illustrada, Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1874, nº 363, p.2058.

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de 1907? Embora tal questão não seja primordial para a nossa análise, decidimos partir

dela para começar a esboçar o escopo de nosso texto.

De antemão, e a exemplo de Guida, afirmamos que não estamos diante de uma

figura caracterizada por ares melancólicos e sensibilidade romanesca, no entanto,

somente Guiomar seria conjugada a um perfil gélido e soberbo. A pergunta que nos

fazemos é: Por qual razão? Guida tem verdadeiros arroubos de insensibilidade ao longo

da trama, e não seria julgada pela crítica nesse sentido.343 Perversa em diversos

momentos, o perfil feminino de Alencar seria, no máximo, chamado de caprichoso por

Alceste.344 Já Guiomar, reverberando sentidos muito mais graves no que concerne aos

valores de uma ética cristã impreterivelmente intrínseca aos oitocentos, seria associada a

um vocábulo que, de nosso ponto de vista, parecia esbarrar nas agruras de sua origem

social. Nos explicamos: suspeitamos que Guiomar, por ser oriunda de uma classe

inferior, seria considerada soberba por ousar almejar uma nova vida que a livrasse das

pechas do favor e da dependência. Ademais, - e sem sucumbir ao final da trama -

Guiomar buscou uma união afetiva mais equânime, ou ao menos que não a colocasse de

joelhos aos pés do marido. Viria daí o seu tanto de frieza vociferado pela crítica? Enfim,

nesse momento, apenas sinalizamos que em nossa análise temos por meios e fins tais

temáticas e/ou expectativas.

343

Retomando um episódio do enredo de Sonhos d´ouro, a citada família do pescador Simão, - cujo

patriarca seria humilhado por Guida devido à sua suposta indisposição (ou ―preguiça‖) para o trabalho -

seria vítima constante dos insultos promovidos pela menina rica. No trecho seguinte, a personagem, do

alto de seu cavalo (Edgard), promoveria uma fortuita quebradeira de louças no lar da gente humilde:

―[...] A Guida tinha dirigido ―Edgard‖ para o lugar onde estava a secar a mesquinha louça da pobre gente,

e o elegante cavalo divertia-se em espedaçar desdenhosamente com a pata cada um dos pratos.

Os meninos assistiam à cena admirados; Guida ria-se como uma criança; a inglesa despedia da garganta

uma cascata de ―ohs!‖ e o Sr. Daniel impassível estava mentalmente calculando o custo da louça

quebrada. Ricardo viu esta cena pelas fendas da choupana. Quando não houve mais nada a quebrar,

Guida, sofreando com força o cavalo, exclamou com um fingido assomo de mau humor:

- Este cavalo é insuportável! Está sempre fazendo destas! Não posso mais aturá-lo!

A mãozinha afilada virou o chicote com força. ―Edgard‖ saindo se sua habitual impassibilidade, começou

a pinotear, o que espalhou a mestra, o português e as crianças cada um para seu lado. O resultado dessa

escaramuça foi atirar ao chão a vara da roupa, que o lindo Isabel despeitado pisou acabando de esgarçar

com os cascos aqueles andrajos.

- Tome, Daniel, dê a esta gente: é para pagar o estrago que fez o cavalo.

A Guida tirara de uma carteirinha de tartaruga uma nota de cinquenta mil-réis.

- Mas agora me lembro: talvez eles não tenham louça para comer hoje. Mande o moleque comprar!

- Não é muito, senhora?

- Sr. Daniel, eu não pedi a sua opinião. O Daniel abaixou a cabeça.‖ In: SÊNIO (José de Alencar). Sonhos

d´ouro. (4ª edição). Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p.103-104. 344

―Entretanto, permita-nos o erudito escritor que perguntemos à crítica filosófica, se Guida, a jovem

caprichosa e aristocrática, se Ricardo, o homem dos devaneios e do orgulho intelectual, são tipos naturais

de nossa sociedade íntima, tão franca e democrática?‖ ALCESTE (pseudônimo desconhecido). ―Cartas a

Philinto - X‖. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9, 10 de setembro de 1872, nº 199, p.1.

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Desse modo, e conforme sinalizamos, nossa leitura do romance machadiano faz-

se em diálogo com Sonhos d´ouro, de José de Alencar. Na verdade, reafirmando uma

reconhecida relação de admiração, empréstimos e reciprocidades; nossa hipótese de

pesquisa se baseia na proposta de que, ao escrever A mão e a luva, Machado tivesse em

seu ―horizonte de expectativas‖345 as polêmicas de Sênio e a publicação de Sonhos

d´ouro em 1872. Isto posto, o folhetim publicado no periódico O Globo faria parte de

uma ampla rede de interlocução social, que abarcaria perspectivas distintas ao tratar de

temas coetâneos a ambos: a sociedade moderna brasileira do fim do século XIX; o

liberalismo e as oposições estabelecidas entre sujeitos de estratos sociais díspares; o

tema da (i)mobilidade entre classes e o desejo por ascensão social; a condição feminina,

ou melhor, ―as condições femininas‖ entre mulheres oriundas dos mundos da riqueza e

da pobreza.

***

O enredo de A mão e a luva baseia-se na trajetória de Guiomar, uma jovem de

origem humilde que desejava ascender socialmente. Na meninice, através da fenda de

um muro divisor, a garota tomaria ciência de sua posição inferior.346 Num primeiro

momento calou-se, ficou absorta e assumiu certa gravidade que passaria a caracterizá-la.

Por fim, toda ela era cobiça. Aos treze anos ficou órfã e passou a viver com a madrinha

baronesa, que lhe proporcionaria uma vida mais confortável e promissora. A menina

tornou-se filha postiça da rica senhora e, finalmente, a fortuna emendava o equívoco do

nascimento.347 Alguns inconvenientes surgiriam: a rivalidade com uma dama de

345

Cf.: JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. (Tradução:

Sérgio Tellaroli). São Paulo: Editora Ática, 1994 [1967]. 346

―A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ela

estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da

chácara pertencente a uma casa da vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir

espairecer ali os olhos, já sérios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as mangueiras,

a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente aparecer-lhe

diante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam

por entre as árvores os seus vestidos, e faziam luzir aos últimos raios do sol poente as joias que as

enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum afago;

mas foram-se, e com elas os olhos da interessante pequena, que ali ficou largo tempo absorta, alheia de si,

vendo ainda na memória o quadro que passara.‖ ASSIS, Machado de. ―Meninice‖ (capítulo V). A mão e a

luva. O Globo, Rio de Janeiro, 01 de outubro de 1874, p.1. 347

―[...] Além disso, a natureza deu-lhe um espírito superior, de maneira que a fortuna não fez mais do

que emendar o equívoco do nascimento. Finalmente é de uma beleza pouco comum...‖ In: ASSIS,

Machado de. ―Conspiração‖ (capítulo IX). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 15 de outubro de

1874, p.1.

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companhia, ou ainda, um pretendente socialmente conveniente, mas pouco desejável.

No entanto, tudo seria contornado com destreza, malícia e embates (quando inevitáveis).

Esse ímpeto de autodeterminação, ou essa predisposição para traçar o próprio

destino, - uma característica inegavelmente presente na índole de Guiomar - já teria sido

notado por Alfredo Bosi em Machado de Assis: o enigma do olhar.348 Rechaçando uma

interpretação de caráter unicamente sociológico, Bosi advogava que haveria um

sentimento íntimo de insatisfação/obstinação capaz de mover a personagem ao longo de

toda a trama, sendo que este mesmo sentimento faria dela uma ―figura de resistência‖349

à semelhança de outras figuras machadianas. Ou seja, para Bosi, Guiomar enxergava

com criticidade as disparidades sociais de sua época, mas somente a sua origem pobre e

a sua condição de dependente - embora tal termo não seja enfatizado - não fariam dela

uma ambiciosa.

Na verdade, ao propor tal análise crítica sobre o romance, Bosi buscava um

diálogo com Roberto Schwarz, que já se debruçara sobre a mesma obra. Em Ao

vencedor as batatas350, Schwarz buscava enfatizar o potencial liberal inerente às páginas

da narrativa, no entanto, e no seu viés interpretativo, A mão e a luva confluiria para um

final romanesco, no qual as reciprocidades afetivas teriam o poder de neutralizar as

relações de interesse entre as personagens. Dessa forma, apesar de calculista, era

notável que Guiomar amava deveras a madrinha, por isso, ela não poderia ser

compreendida como uma interesseira completamente fria e racional. O argumento

partiria do pressuposto de que o cinismo e a virtude seriam levados a coincidir, gerando

um conformismo que encontrava respaldo no movimento real da sociedade da época.

Nesse sentido, para o autor, em A mão e a luva as relações paternalistas seriam

analisadas por Machado com finura, mas não em veio crítico, o que seria uma forma de

legitimação.

Elencando este breve legado analítico, pretendemos demarcar alguns aspectos

acerca do lugar teórico de onde partiremos para analisar o romance. No rastro de

Alfredo Bosi, buscamos propor algumas explicações acerca das resistências observáveis

nos caminhos criados e trilhados por Guiomar ao longo da trama. Todavia, e de maneira

assumidamente antiquada, advertimos que em nossa análise fitamos um chão histórico e

348

BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Editora Ática, 1999. 349

―[...] Neste movimento de atenção para o que não é esquema do social ossificado, Machado acabou

inventando figuras de resistência.‖ In: BOSI, Alfredo. Ibidem, 1999, p.44. 350

SCHWARZ, Roberto. ―O paternalismo e a sua racionalização nos primeiros romances de Machado de

Assis: A mão e a luva.‖ In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do

romance brasileiro. (6ª edição). São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, p. 95-115.

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social muito bem definido, por isso, também nos aproximamos dos referenciais

―liberais‖ propagados por Roberto Schwarz a respeito da narrativa. Contudo, e tentando

conjugar as duas abordagens, pensamos que o tino à resistência, quase que natural à

personalidade de Guiomar351, somente entraria em curso na medida em que as

circunstâncias fariam dela uma excluída precariamente incluída. Em outras palavras,

Guiomar, de origem humilde e introjetada ao mundo dos ricos através dos artifícios do

favor, encontrava-se num entre-lugar marcado pela vulnerabilidade e pelo desejo

urgente de autoafirmação.

Em vários trechos do romance iremos notar que, apesar dos afetos irrestritos

dedicados à madrinha, Guiomar também desejava uma nova experiência de vida

distante da ascendência sufocante representada pela matriarca; uma existência na qual

ela não tivesse a constante obrigação de demonstrar gratidões e de tentar suavizar

insolências que, no fundo, eram indômitas. Enfim, a moça se acostumara à bonança,

mas ela também desejava o seu tanto de autogoverno. De todo modo, e tendo-se sempre

em vista a sua posição suscetível, faz-se necessário refletirmos sobre as vias factíveis

para que a personagem pudesse galgar uma existência menos opressora. E, se de início

sinalizamos com uma narrativa de matizes liberais, seria possível que aqueles que nos

acompanham sugerissem a mais previsível das hipóteses: por meio do trabalho? Porém,

não pensamos lidar com um ―Ricardo de saias‖, até mesmo porque, e conforme

demonstramos, não foi exatamente o trabalho que o conduziu a uma vida opulenta no

mesmo cenário oitocentista.

O caso de Guiomar era distinto, e isso por vários motivos que pretendemos

demonstrar ao longo de toda a tese, porém, adiantamos que a causa mais previsível de

todas é a sua condição de gênero que, implicitamente, a alijava da esfera pública do

trabalho associada aos homens. No entanto, ainda restaria a possibilidade do magistério,

um métier tido por feminino ao longo do século XIX, uma vez que compreendido como

uma espécie de extensão das funções maternais.352 Nesse momento, lembramos da

evidente procrastinação da moça e de sua não intenção em tornar-se professora, - muito

embora, diante da baronesa, ela se esforçasse para disfarçar todo o seu desprezo por tal

carreira.

351

―[...] Há nela certa altivez natural, que pode explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria

penoso receber o amor de alguém que julgasse levantá-la até si.‖ In: ASSIS, Machado de. ―Conspiração‖

(capítulo IX). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 352

Cf.: HAHNER, June E. ―Escolas mistas, escolas normais: a coeducação e a feminização do magistério

no século XIX.‖ Estudos Feministas, Florianópolis-SC, 19 (2): 467-474, maio-agosto/2011.

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Recorrendo novamente à bibliografia, ao analisar a obra Dom Casmurro (1899),

Alfredo Bosi353 citaria os casos de dois conhecidos personagens do romance

machadiano: os agregados prima Justina e José Dias. Como sabemos, ambos viviam de

favor na casa de D. Glória, porém, seria possível identificar-se peculiaridades nos afetos

dispensados e na importância atribuída a cada um deles no interior de tal microcosmo

familiar. José Dias era mais disposto às bajulações, e colocava-se de maneira mais

próxima à senhora; já prima Justina era toda feita de azedume e implicância, e optava

por manter-se alheia à parentela. Diante de tal quadro, Bosi advertiria que, no seio da

família patriarcal, conviviam agregados e agregados. Dessa maneira, e tratando da

condição de Guiomar no folhetim A mão e a luva, também pensamos que seria um

equívoco ler a dependência de maneira homogeneizante.

A nossa protagonista era, se assim podemos dizer, uma dependente um pouco

mais especial. Reconstituindo alguns pormenores do enredo, lembramos que seria num

episódio anterior à morte de Henriqueta, a filha legítima da baronesa, que Guiomar

falaria pela primeira vez sobre a hipótese de lecionar. Na cena, - anunciada por um

narrador sempre arredio à personagem - notamos os esforços e os indícios de uma ―falsa

modéstia‖ demonstrada pela jovem que, ao reclamar o desamparo paternal, reconhecia e

insinuava que o trabalho seria a sua única garantia de sobrevivência. No excerto,

constrangimento e apelo à proteção seguiam parcialmente ocultos à fala da órfã; sendo

que aos ouvidos e, principalmente, ao coração da madrinha, nada disso passaria

despercebido:

Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia

talvez em seu afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia

parecer simulação. O afeto era espontâneo; o encarecimento é que

seria voluntário.

Tinha a moça dezesseis anos quando passou para o colégio da tia de

Estevão, onde pareceu à baronesa se lhe poderia dar mais apurada

educação. Guiomar manifestara então o desejo de ser professora.

— Não há outro recurso, disse ela à baronesa quando lhe confiou esta

aspiração.

— Como assim? perguntou a madrinha.

— Não há, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor

que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se

deve cumprir. A minha é... é ganhar o pão.

Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força. O

rubor subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de

vergonha.

— Guiomar! exclamou a baronesa.

353

BOSI, Alfredo. Ibidem, 1999, p.44.

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— Peço-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com

simplicidade.

A madrinha sorriu e aprovou-a com um beijo, - assentimento de boca,

a que já o coração não respondia, e que o destino devia mudar.354

Porém, o golpe fatal estava por vir e, de maneira súbita, Henriqueta morreria,

deixando um enorme vazio na vida da baronesa, rapidamente preenchido pelos afetos e

pela dedicação irrestrita de Guiomar. Assim, a personagem seria definitivamente

acolhida/introjetada a um estrato social superior e, nas palavras do narrador, a borboleta

(ou a mulher de espírito superior que Guiomar sempre fora) fazia esquecer a crisálida

(da pobreza que a originou).355 Por consequência, a moça abandonaria definitivamente

os simulados planos de tornar-se professora356, afinal, e de acordo com a madrinha, já

não lhe convinha ensinar.357 Em outras palavras, ao tornar-se pupila da baronesa, a

personagem também internalizava os valores morais daqueles que viviam sob a égide do

patriarcalismo, e que rechaçavam a experiência proletária. Além disso, e também por

seu caráter individual e por sua trajetória de ascensão, a protagonista interpretava a

alternativa da labuta como uma oportunidade de humilhação, ou como um retrocesso a

um mundo inferior do qual ela acreditava ter sido justamente livrada:

Ela vivia do presente e do futuro e, - tamanho era o seu futuro, quero

dizer as ambições que lho enchiam, - tamanho, que bastava a ocupar-

lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do

passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.358

Já em meio aos endinheirados, ainda restava a necessidade de autonomia que,

conforme afirmamos, era inerente à personalidade de Guiomar. E se o trabalho não era

reconhecido como um caminho factível para a jovem mulher quase sinhá, o casamento

podia apresentar-se como uma alternativa de arbítrio, ainda que com limitações

previsíveis. Longe de cogitar a própria aniquilação individual, Guiomar buscava uma

união que, na medida do possível, a colocasse em pé de igualdade com seu par. Ou seja,

ela não cobiçava um companheiro que a levantasse para si; tampouco um homem frágil

354

ASSIS, Machado de. ―Meninice‖ (capítulo V). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 355

―[...] Ninguém adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquela moça, a origem mediana que ela

tivera; a borboleta fazia esquecer a crisálida.‖ In: Idem. 356

―[...] Voluntariamente, só uma vez aceitara a obscuridade e a mediania; foi quando se propôs a seguir

o ofício de ensinar; mas é preciso dizer que ela contava com a ternura da baronesa.‖ In: ASSIS, Machado

de. ―Explicações‖ (capítulo XIII). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1874, p.1. 357

ASSIS, Machado de. ―Ao pé da cerca‖ (capítulo III). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 29 de

setembro de 1874, p.1. 358

ASSIS, Machado de. ―Conspiração‖ (capítulo IX). A mão e a luva. O Globo. Ibidem.

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que a tornasse vulnerável a possíveis inseguranças emocionais e materiais. Na verdade,

Guiomar desejava alguém que compartilhasse de seu tino ambição e, nesse caso, o amor

também era apresentado como fria eleição do espírito.359

A historiadora Muriel Nazzari, no livro O desaparecimento do dote360, aborda

algumas das mudanças ocorridas na legislação brasileira, e que podem esclarecer um

pouco melhor a questão do casamento à época. Por exemplo, a partir do Código Penal

de 1831, tomou forma a declaração de que todas as pessoas eram individualmente

responsáveis pelos crimes que cometessem; ou seja, ao contrário do que acontecia no

século XVII, a família não poderia ser mais responsabilizada pelos crimes cometidos

por seus membros. Trata-se de uma mudança legal que beneficiava o individualismo em

detrimento do caráter corporativo da família patriarcal. Outra mudança elencada pela

autora, diz respeito ao rebaixamento da idade de maioridade para 21 anos, com

emancipação automática (antes essa faixa etária era de 25 anos, e o indivíduo somente

seria emancipado após casamento ou processo judicial formal que lhe concedesse tal

status). Entre os filhos que permaneciam solteiros, tal mudança significou a liberdade

legal do jovem adulto em administrar a própria pessoa e seus bens independentemente

da autoridade dos pais. Entre aqueles que optavam pelo casamento, e salientamos o caso

das mulheres, notava-se que, apesar da mulher não se tornar plenamente emancipada,

pois sairia do controle do pai para o controle do marido, ela passaria a desfrutar de um

status mais elevado, uma vez que adquiria direito sobre os bens que possuía juntamente

do marido. Além disso, livrando-se do controle dos genitores, a mulher passava a

exercer o papel de ―senhora da própria família‖, uma condição que exigia alguma

maturidade e que inspirava certa respeitabilidade.

Alinhando os ponteiros cronológicos de nossa análise, vale ponderar que no

primeiro capítulo do romance-folhetim A mão e a luva, publicado n´O Globo em 26 de

setembro de 1874361, o narrador, geralmente na terceira pessoa do singular, nos

forneceria a informação de que ele falava a partir do tempo presente, ou seja, tal figura

359

―Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele sentimento? Era-o até o ponto de

lhe não desbotar à nossa heroína a castidade do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas

faculdades afetivas. Até aí só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar como

uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor silencioso e tímido.‖ ASSIS,

Machado de. ―Embargos de terceiro‖ (capítulo XV). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 28 de

outubro de 1874, p.1. 360

NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,

Brasil, 1600-1900. (tradução: Lólio Lourenço de Oliveira). São Paulo: Companhia das Letras, 2001,

p.165-170. 361

ASSIS, Machado de. ―O fim da carta‖ (capítulo I). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 26 de

setembro de 1874, p.1.

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assumiria que compartilhava da contemporaneidade de seus leitores. Todavia, o tempo

do romance era outro, já que somos informados de que os primeiros sofrimentos de

Estevão por Guiomar aconteceriam em 1853. Portanto, localizado duas décadas à frente,

o narrador conduzia os seus leitores por um passado tido por decadente, no qual o

lirismo romântico era ridicularizado e associado a um tipo débil como Estevão; ao

mesmo tempo em que homens e mulheres ambiciosos tentavam forjar o próprio destino,

almejando a ruptura com núcleos patriarcais/matriarcais. Por isso, arriscamos afirmar

que, ao contrário de Sênio, que se colocava numa posição anacrônica, o narrador

machadiano parecia se autoproclamar uma voz do futuro:

Estevão meteu a mão nos cabelos com um gesto de angústia; Luiz

Alves sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da

casa de Luiz Alves, à Rua da Constituição, - que então se chamava

dos Ciganos; - então, isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que

lá vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e deixando-lhe em

troca (usurários!) uma triste, crua e desconsolada experiência.

Eram nove horas da noite; Luiz Alves recolhia-se para casa,

justamente na ocasião em que Estevão o ia procurar; encontraram-se à

porta. Ali mesmo lhe confiou Estevão tudo o que havia, e que o leitor

saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas histórias de amor,

velhas como Adão, e eternas como o Céu.362

Ainda de acordo com o recorte temporal prenunciado pelo narrador, faz-se

possível associarmos as mudanças impostas pelo Código Penal de 1831 aos modos

encontrados por Guiomar para mover-se no transcorrer da década de 1850. Dessa

maneira, o enlace matrimonial poderia ser cogitado como um meio para que a

personagem galgasse uma existência um pouco mais autônoma, ou, no mínimo, distante

do estado de ―submissão agradecida‖ que ela experienciava junto ao clã dos afortunados

de Botafogo. E embora Guiomar não pudesse agir com a mesma voluntariedade de

Guida, ela também encontraria os meios de eleger o próprio marido, ou o senhor de sua

ambição: Luiz Alves. Enfim, ao colocarmos Guida e Guiomar lado a lado, faz-se

necessário que tenhamos em mente que, a primeira era filha de um respeitável

comendador/banqueiro, e, portanto, a sua conduta nunca seria colocada em xeque pelos

seus pares; ao contrário da segunda, que aprendera a tolerar os olhares daqueles que a

observavam sob a constante suspeita de parasitismo e de manipulação dos sentimentos

alheios. Em suma: Guiomar via-se obrigada a calcular cada um de seus atos, pois sabia

362

Idem.

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167

que tinha muito a perder; ao passo que Guida carregava apenas a certeza de que

ganharia sempre.

V.1 O “Eu, narrador”: Guiomar sob os olhos de um romancista imperioso e em

conjuração com os seus leitores.

Conforme dito, a narração do folhetim de Machado de Assis se daria por meio

de uma voz onisciente e onipresente, geralmente na 3ª pessoa do singular, muito

embora, e em situações bastante específicas, tal voz também soubesse apelar para

variações na 1ª pessoa do singular, sugerindo a sua presença de maneira ainda mais

indelével, como se o assumido romancista363 também devesse ser reconhecido por seus

interlocutores como parte do enredo que se engendrava. De forma deliberada,

pretendemos chamar a atenção para uma especificidade de A mão e a luva: há

evidências que nos levam a crer que lidamos com uma voz narrativa masculina; sendo

que tal pressuposto poderia sugerir novos rumos acerca da construção e da recepção da

personagem Guiomar.

De maneira inovadora, - e vale lembrar que A mão e a luva seria apenas o

segundo romance da carreira de Machado - iríamos nos deparar com um narrador que se

dirigia especificamente aos leitores e às leitoras, buscando estreitar uma relação

discursiva com vistas à cumplicidade, mas que primava por conceber

leituras/interpretações implicitamente conjugadas à experiência de gênero dos

envolvidos.

Na verdade, se nos debruçarmos sobre a produção contista do autor, elencando

especialmente os textos publicados ao longo da década de 1860 em revistas e jornais

femininos364, poderíamos antecipar tal prática de expectar-se uma interlocutora ao texto

literário; no entanto, faz-se necessário esclarecer que A mão e a luva não veio a lume

numa folha voltada à tal de segmento. Além disso, pensamos que tal ―intuito de

correspondência‖ sugerido pelo narrador do folhetim, envolveria os pormenores de um

363

―[...] Ninguém a observava; mas é privilégio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem

aquilo que as outras não veem ou não podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio

que lhe causava aquela opinião unânime contra o projeto da baronesa, mas ainda a expressão de um gênio

imperioso e voluntário.‖ In: ASSIS, Machado de. ―A viagem‖ (capítulo XII). A mão e a luva. O Globo,

Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1874, p.1. 364

Ver, por exemplo: CRESTANI, Jaison Luís. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo:

Nankin/EDUSP, 2009.

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posicionamento crítico do autor em relação aos debates que escamoteavam a estética

romântica e às práticas de leitura de um público que, conforme argumentamos, tinha o

seu gosto moldado junto ao cotidiano da imprensa. Ou seja, pensamos que ao criar tal

narrador, Machado retomava boa parte dos temas apontados e levados a cabo por Sênio,

ou José de Alencar, em ―Benção Paterna‖ e Sonhos d´ouro.

Em A formação da leitura no Brasil365, Marisa Lajolo e Regina Zilberman

argumentam que em A mão e a luva, Machado, a exemplo de Manuel Antônio de

Almeida em Memórias de um sargento de milícias (1853), iria propor um narrador que

objetivava estabelecer um novo tipo de familiaridade com o público. Ilustrando tal

proposta, as autoras destacariam que, no intuito de estreitar tal relação de cumplicidade,

muitas vezes o narrador machadiano colocaria o leitor num mesmo patamar, utilizando-

se inclusive do pronome pessoal ―nós‖ para equipara-se ao seu destinatário: ―[...]

Vamos nós com eles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luiz foi beijar a mão de

sua mãe.‖366 Ainda de acordo com Lajolo & Zilberman, na prosa do bruxo, tal relação

de intimidade com o leitor, iria beirar a promiscuidade, já que o primeiro (o narrador)

teria o prazer de lembrar ao segundo de que, graças a posição privilegiada de ambos,

eles teriam acesso a informações inalcançáveis aos que estavam à margem de tal pacto,

o que os tornava confessos voyeurs:

[...] Estevão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas

estas minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de

contador de histórias.367

[...] Ninguém a observava; mas é privilégio do romancista e do leitor ver no

rosto de uma personagem aquilo que as outras não veem ou não podem

ver.368

Seguindo a proposta das estudiosas, partilhamos da ideia de um pacto narrativo

que transformaria narrador e leitores em observadores privilegiados dos acontecimentos

do romance. Porém, advertimos que as autoras ignoraram o trato diferenciado entre

leitores e leitoras proposto pelo próprio narrador; tampouco buscaram esclarecer em

quais situações os leitores - e somente os leitores - seriam chamados às práticas deste

365

LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Editora

Ática, 1996. 366

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: Mérito, 1959, p.12. Apud: LAJOLO, Marisa &

ZILBERMAN, Regina, Ibidem, 1996, p.22. 367

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: Mérito, 1959, p.37-8. Apud: LAJOLO, Marisa &

ZILBERMAN, Regina. Ibidem, 1996, p. 23. 368

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: Mérito, 1959, p.154. Apud: LAJOLO, Marisa &

ZILBERMAN, Regina. Idem.

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chamado voyeurismo. De antemão informamos que, assim como consta no excerto

citado, na maioria das vezes, os leitores seriam conclamados a uma observação mais

íntima - e, prazerosamente cruel - das situações que envolviam a protagonista Guiomar.

Por outro lado, salientamos que, para este mesmo pacto de conjuração contra a

personagem ambiciosa, as leitoras do folhetim não seriam convidadas. Enfim, diante de

tal constatação, cremos que não estamos diante de uma simples coincidência.

Se quisermos ser pragmáticos, podemos iniciar nossa análise elencando que o

vocábulo ―leitor(es)‖ seria utilizado 33 vezes na narrativa, enquanto o termo ―leitora(s)‖

apareceria em apenas 4 oportunidades. Até aqui, podemos inferir que os indivíduos do

sexo masculino seriam chamados com maior frequência a adentrar à narrativa,

tornando-se partícipes na concepção de suas figuras ficcionais. No lado oposto, ou no

caso feminino, as leitoras somente seriam enunciadas em condições notavelmente

pueris, ou quando se buscava uma ―recepção certeira‖ aos prenunciados clichês da

estética romântica. Portanto, e utilizando-nos dos preceitos teóricos de Umberto Eco

expostos no livro Seis passeios pelos bosques da ficção369, cremos que no folhetim A

mão e a luva, Machado de Assis evocasse determinados espectros de ―leitore(a)s-

modelos‖370, sujeitos criados pelo próprio texto literário, e que serviriam de sustentáculo

a uma estratégia de interpretação.

Ao que parece, a estratégia do nosso narrador ganhava corpo na constatação de

que, enquanto idealizador sui generis de seu universo ficcional, ele seria capaz de

compreender, de maneira privilegiada, as suas próprias criações e criaturas. Nesse

sentido, em certas ocasiões, tal persona chegaria a abandonar o discurso indireto livre,

passando a atuar no texto de maneira deliberada, sem máscaras ou disfarces,

vocalizando, inclusive, a primeira pessoa do singular, o que terminaria por configurá-lo

naquilo que chamaremos de um ―Eu, narrador‖. E, embora destituído de um nome,

como o ―Sênio‖ de Alencar, tal sujeito costumava sugerir algumas pistas da

369

ECO, Umberto. Op. Cit., 1994. 370

Nas palavras do autor: ―Quem já assistiu a uma comédia num momento de profunda tristeza sabe que

em tal circunstância é muito difícil se divertir com um filme engraçado. E isso não é tudo: se assistir ao

mesmo filme anos depois, mesmo assim talvez não consiga rir, porque cada cena irá lembrá-lo da tristeza

que sentiu na primeira vez. Evidentemente, como espectadores empíricos, estaríamos ―lendo‖ o filme de

maneira errada. Mas ―errada‖ em relação a quê? Em relação ao tipo de espectadores que o diretor tinha

em mente – ou seja, espectadores dispostos a sorrir e a acompanhar uma história que não os envolve

pessoalmente. Esse tipo de espectador (ou de leitor, no caso de um livro) é o que eu chamo de leitor-

modelo – uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar.

Em texto que começa com ―Era uma vez‖ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu

próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que

extrapola o sensato e o razoável.‖ In: ECO, Umberto. Ibidem, 1994, p.15.

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individualidade peremptória que o compunha; todavia, e conforme demonstraremos,

vale lembrar que ele seria especialmente imperioso no trato com a personagem

Guiomar. Assim, supostamente legitimado pelas suas razões indubitáveis de

romancista-criador, o mesmo convocaria o leitor a conjurar com o seu ponto de vista:

[...] Já o leitor ficou entendendo que a viagem a Cantagalo era obra

quase exclusiva de Guiomar. A baronesa relutara a princípio, como

das outras vezes fizera, e o comendador pouca esperança tinha já de a

ver na fazenda. Mas o voto de Guiomar foi decisivo. Ela fortaleceu,

com as suas, as razões do comendador, alegando não só a obrigação

em que a madrinha estava de desempenhar a palavra dada, mas ainda

a vantagem que lhe podiam trazer aqueles três meses de vida roceira,

longe das agitações da Corte; enfim, invocou o seu próprio desejo de

ver uma fazenda e conhecer os hábitos do interior.

Não havia tal desejo, nem coisa que se parecesse com isso; mas

Guiomar sabia que na balança das resoluções da madrinha era de

grande peso a satisfação de um gosto seu. O sacrifício duraria três ou

quatro meses; ela afrontaria, porém, dez ou doze, se tantos fossem

necessários, para fugir algum tempo às pretensões de Jorge, sem

embargo de lhe repugnar todo o viver que não fosse a vida fastosa e

agitada da Corte. Eu, que sou o Plutarco desta dama ilustre, não

deixarei de notar, que, neste lance, havia nela um pouco de

Alcibíades, - aquele gamenho e delicioso homem de Estado, a quem o

despeito também deu forças um dia para suportar a frugalidade

espartana.371

Preconizando a capacidade de compreensão do leitor, o narrador daria a entender

que a astúcia de Guiomar era implicitamente evidente aos receptores do discurso

literário, por isso, não haveria a necessidade de que ele reiterasse tal condição. A

protagonista rejeitava o sobrinho da baronesa, mas, como sabemos, tal desprezo não

poderia ser escancarado aos olhos da madrinha; Guiomar devia muito à senhora,

desfrutava de sua proteção, e não queria desagradá-la negando claramente a

possibilidade do enlace com Jorge. Nesse caso, o jeito era propor uma fuga estratégica

rumo às roças alhures, ou, talvez, confabular para que a viagem parecesse desejo da

própria madrinha. Enfim, conduzidos pelas mãos do narrador, é nisso que os leitores são

levados a crer. Nas últimas linhas do excerto, o ―Eu, narrador‖ terminaria por

apresentar-se como o ―Plutarco‖ de sua ―Alcebíades‖, ou seja, tal persona reivindicava o

papel de historiador e/ou biógrafo da dama ilustre. Portanto, aos leitores empíricos372

371

ASSIS, Machado de. ―Ex abrupto‖ (capítulo XIV). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 27 de

outubro de 1874, p.1. 372

De acordo com Umberto Eco: ―O leitor-modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor

empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de várias formas,

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poderia permanecer a sugestão de que a Guiomar retratada também era feita dos

arbítrios de seu mentor.

Ainda sobre Jorge, ou melhor, sobre a campanha orquestrada por Mrs. Oswald

pelo casamento dos dois, podemos notar de maneira ainda mais veemente o tom de

julgamento do narrador. Na companhia da inglesa, Guiomar demonstraria certa

autoconsciência de uma pretensa condição de superioridade social373, um status que

parecia livrá-la de dissimular a índole arrefecida que a caracterizava. Na disputa dos

afetos da baronesa, Oswald queria fazer-se útil, levando a cabo um projeto matrimonial

que, num primeiro momento, ela supunha ser relevante para a senhora. Isto posto, e

propondo um paralelo com Mrs. Trowshy, a inglesa serviçal de Sonhos d´ouro, notamos

um novo tipo de dependente, uma vez que a personagem seria erigida em torno de uma

capacidade de conspiração que a tornava potencialmente decisiva aos (des)caminhos do

enredo. Retomando o trocadilho malcriado de Guida374

, não cremos que Mrs. Oswald

acharia graça se alguém a chamasse de ―Mrs. Otária‖; tal dependente buscava não se

anular completamente em torno de vontades alheias, e o casamento de Guiomar e Jorge

tornara-se um desejo dela. E, reafirmando impressões que não deveriam escapar ao

leitor, mais uma vez, o narrador recomendava o tino sagaz - quiçá ardiloso - da

protagonista que não se furtava ao embate com a alcoviteira:

Guiomar não tinha a experiência nem a idade da inglesa, que podia ser

sua mãe; mas a experiência e a idade eram substituídas, como sabe o

leitor, por um grande tino e sagacidade naturais. Há criaturas que

chegam aos cinquenta anos sem nunca passar dos quinze, tão

símplices, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o

crepúsculo é o prolongamento da aurora. Outras não; amadurecem na

razão das flores; vêm ao mundo com a ruga da reflexão no espírito, —

embora, sem prejuízo do sentimento, que nelas vive e influi, mas não

domina. Nestas o coração nasce enfreado; trota largo, vai a passo ou

galopa, como coração que é, mas não dispara nunca, não se perde nem

perde o cavaleiro.

O que a afilhada da baronesa buscava ler no rosto de Mrs. Oswald era

se efetivamente a madrinha nutria aquele desejo, ou se tal revelação

não era mais do que um embuste. O leitor sabe que era verdadeira;

e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um receptáculo de

suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto.‖ In: ECO,

Umberto. Ibidem, 1994, p.14. 373

―[...] Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar, mas Guiomar não protestou,

quero dizer não protestou de viva voz; fez apenas um gesto negativo, bastante a satisfazer os melindres da

inglesa. A moça foi sincera; não atribuía realmente a nenhum interesse vil, - pecuniário, - a ação de Mrs.

Oswald. Nem por isso a absolvia, - não só porque ela viria concorrer talvez para uma crise penosa, mas

também, - bom é notá-lo outra vez, - porque a condição da inglesa naquela casa era relativamente

inferior.‖ In: ASSIS, Machado de. ―A revelação‖ (capítulo X). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 374

Retomar página 36 deste trabalho.

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mas admitirá, sem dúvida, que a moça só depois de muito interrogar e

examinar lhe desse fé. Creu enfim; creu, porque era verossímil, creu

porque a inglesa não se arriscaria a qualquer indiscrição da parte dela,

que de todo a desmascararia.375

O coração de Guiomar era enfreado e não se perdia facilmente. São incontáveis

as referências ao espírito antirromântico da moça ao longo do folhetim. Nas palavras do

narrador, tal criatura possuía uma natureza ―meia estátua e meia mulher‖, além de

esbanjar um ar de ―majestade tranquila‖ e ―senhora de si‖.376 Diferentemente de Guida,

a segunda protagonista não seria considerada ―senhora das próprias vontades‖, mas sim

―senhora de sua própria pessoa‖; daí a capacidade de mover-se por meio da persuasão,

porquanto os apelos ao autoritarismo ficariam reservados à personagem de origem

abastada. Ademais, chamamos a atenção para um notável senso de realidade que a

afastava de devaneios doentios e/ou romanescos, ou de quaisquer sentimentos que

pudessem induzi-la a uma condição ilusória e socialmente periclitante:

Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou

também, soltando o pano todo a essa veleira escuna da imaginação,

em que todos navegamos alguma vez na vida, quando nos cansa a

terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A

imaginação dela porém não era doentia, nem romântica, nem piegas,

nem lhe dava para ir colher flores em regiões selváticas ou adormecer

à beira de lagos azuis. Nada disso era nem fazia; e por mais longe que

velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra.377

Como Sênio fizera em Sonhos d´ouro, o narrador machadiano relembrava o

status ficcional de sua obra, proibindo que o leitor olvidasse que Guiomar era criação de

sua pena: ―[...] Eu não a quero dar como uma alma que a paixão desatina e cega, nem

fazê-la morrer de um amor silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria.‖378 Vale

acrescentar que, o aspecto antirromântico de Guiomar se tornaria ainda mais perceptível

nos momentos em que ela seria confrontada ao perfil de Estevão, o primeiro de seus

375

ASSIS, Machado de. ―A revelação‖ (capítulo X). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 376

―Estevão do lugar onde estava podia examinar-lhe as feições, sem ser visto por ela; mas foi justamente

do que não cuidou, desde que lhas pôde distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aqueles grandes

olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, não maviosos nem quebrados, como

ele os cuidara ver, mas de uma beleza severa, casta e fria. Valia a pena admirar como eles comunicavam a

todo o rosto e a toda a figura um ar de majestade tranquila e senhora de si. Não era ela uma dessas belezas

que, ao mesmo tempo que subjugam o coração, acendem os sentidos; falava à inteligência primeiro do

que ao coração, tanto a arte parecia haver colaborado com a natureza naquela criatura, meia estátua e

meia mulher.‖ In: ASSIS, Machado de. ―Ao pé da cerca‖ (capítulo III). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 377

ASSIS, Machado de. ―A revelação‖ (capítulo X). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 378

ASSIS, Machado de. ―Embargos de terceiro‖ (capítulo XV). A mão e a luva. O Globo. Ibidem.

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pretendentes. No trecho a seguir, narrador e leitores, sempre unidos por meio das tramas

da lisonja, dariam vida ao coração duro da jovem:

Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh!

sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir

até aqui, e seguir até o fim, numa história, como esta, em que o autor

mais se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns

sentimentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa

não se animaria a fazer; - não será preciso declarar ao leitor, dizia eu,

que toda aquela jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe

cravavam no peito ao nosso Estevão. Ele não podia supô-la abatida;

mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que

havia nele, isto, sim, imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o

pobre rapaz saiu dali mais cedo do que pensara e quisera sair.379

Estevão se faria presente desde o primeiro capítulo do folhetim, como um

romântico convicto, ou um leitor de Werther aparentemente deslocado na sociedade

liberal do fim do século XIX.380 O bacharel em Direito, recém-saído da academia

paulista381, - reduto de tantos escritores românticos - agonizaria ao longo de toda a

narrativa mediante o desamor de Guiomar. O rapaz conhecera a jovem no período em

que ambos estudaram no colégio que pertenceu à sua tia, e, por uma coincidência

providencialmente folhetinesca, eles voltariam a se encontrar em Botafogo, onde

Guiomar moraria com a madrinha após a orfandade, tornando-se vizinha de muro de

Luiz Alves, o principal amigo de Estevão na Corte.

Apesar das afinidades bacharelescas, os amigos possuíam gênios completamente

diferentes. Luiz Alves tinha um proceder sóbrio, direto e resoluto, ou, retomando os

termos presentes ao texto: era notável que ele ―nascera para vencer‖, e que ―a sua

ambição tinha verdadeiramente asas.‖382 Em relação ao sentimental Estevão, tudo se

379

ASSIS, Machado de. ―Conspiração‖ (capítulo IX). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 380

―[...] Mas, ai triste! a dor dele era uma espécie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa às

vezes, às vezes mais fraca, mas sempre infalível. O rapaz acertara de abrir uma página de Werther; leu

meia dúzia de linhas, e o acesso voltou mais forte que nunca.‖ In: ASSIS, Machado de. ―O fim da carta‖

(capítulo I). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 381

―[...] Duas vezes viu ele a formosa Guiomar, antes de seguir para São Paulo. Da primeira sentiu-se

ainda abalado, porque a ferida não cicatrizara de todo; da segunda, pôde encará-la sem perturbação. Era

melhor, - mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da academia, com o desespero no

coração, lavado em lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas

que lhe hei de eu fazer? Ele foi daqui com os olhos enxutos, distraindo-se dos tédios da viagem com

alguma pilhéria de rapaz, — rapaz outra vez, como dantes.‖ In: ASSIS, Machado de. ―O fim da carta‖

(capítulo I). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 382

―[...] As duas ambições tinham-se adivinhado desde que a intimidade as reuniu. O proceder de Luiz

Alves, sóbrio, direto, resoluto, sem desfalecimentos, nem demasias ociosas, fazia perceber à moça que ele

nascera para vencer, e que a sua ambição tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo, que as tinha ou

parecia tê-las o coração. Demais, o primeiro passo do homem público estava dado; ele ia entrar em cheio

na estrada que leva os fortes à glória. Em torno dele ia fazer-se aquela luz, que era a ambição da moça, a

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resumiria à frouxidão, ausência de engenho e incapacidade para construir o próprio

destino. Diante dos opostos esboçados, e utilizando-se de seus poderes outorgados pela

onisciência, o narrador chegaria a afirmar que Estevão inspirava somente um piedoso

sentimento de perdão na sempre gélida Guiomar:

Estevão inspirava-lhe mais algum respeito; era uma alma ardente e

frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor,

capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá. O sentimento de

Guiomar em relação a Estevão não podia nunca chegar ao amor; tinha

muito de superioridade e perdão.383

Por fim, quando a rejeição de Guiomar se tornaria verbalizada, - na verdade,

quase vociferada384 - Estevão se veria sem forças para insistir e lutar pelos afetos de sua

eleita. E, mais uma vez, os leitores seriam convocados pelo narrador a analisar as

reações íntimas de seus personagens, todavia, a tônica utilizada projetava a

ridicularização da figura de Estevão, tornando-o risível aos seus espectadores:

Um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor deste

livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu,

diversos e contraditórios, como é de razão em análogas situações.

Apenas direi por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em

fugir à cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais

mortal pântano de corrupção em que apodrece e morre tantas vezes a

flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espírito apenas um joguete de

sensações contínuas e variadas. A força, a permanência do afeto não

lhe bastava a dar seguimento e realidade às concepções vagas de seu

cérebro, - enfermo, ainda quando estava de saúde.385

Espírito titubeante diante da própria melancolia, Estevão não teria condições de

levar seus trágicos planos adiante. Sobre a vaga hipótese do suicídio, o narrador

atmosfera, que ela almejava respirar. Estevão dera-lhe a vida sentimental, - Jorge a vida vegetativa; em

Luiz Alves via ela combinadas as feições domésticas com o ruído exterior.‖ ASSIS, Machado de.

―Embargos de terceiro‖ (capítulo XV). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 383

ASSIS, Machado de. ―Explicações‖ (capítulo XIII). A mão e a luva. O Globo, Ibidem. 384

―[...] Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estevão, receando perder a ocasião que a fortuna lhe

oferecia, disse de longe com voz triste e súplice:

— Atenda-me um só minuto!

— Não um, mas dez — respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto para ele - e serão

provavelmente os últimos em que falaremos a sós. Cedo à comiseração que me inspira o seu estado; e

pois que rompeu o longo e expressivo silêncio em que se tem conservado até hoje, concedo-lhe que diga

tudo, para me ouvir uma só palavra. A moça falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a

impaciência do que à comiseração a que vinha de aludir. O coração de Estevão batia-lhe como nunca, -

como o coração costuma bater nas crises de uma angústia suprema.‖ In: ASSIS, Machado de. ―Golpe‖

(capítulo VIII). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1874, p.1. 385

ASSIS, Machado de. ―Luiz Alves‖ (capítulo XI). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 21 de

outubro de 1874, p.1.

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esclareceria que ―a frouxidão do ânimo negou-lhe essa última ambição.‖386. De acordo

com Lajolo & Zilberman387, o personagem poderia ser compreendido como a caricatura

do perfil romântico e do mau leitor que, exposto à produção romanesca, não seria capaz

de distinguir lirismo de realidade. Partindo da mesma assertiva, Hélio de Seixas

Guimarães em Os leitores de Machado de Assis388, enfatizaria que a comicidade

associada à figura de Estevão teria por objetivo despertar a identificação do leitor para

corrigir, pelo riso, ideias que fossem eventualmente compartilhadas com o personagem.

O estudioso concluiria que, apesar de Machado ter declarado que o principal objetivo da

obra era traçar o perfil de Guiomar, o pathos de todo o folhetim estaria concentrado no

romanesco e retrógrado Estevão, pois, sem fazer alardes da própria presença, o narrador

seria capaz de direcionar toda a empatia do público em torno da recepção deste

personagem.

Em nossa análise passamos ao largo de uma compreensão do narrador de A mão

e a luva associada a qualquer ideia de discrição, ao contrário, e conforme buscamos

demonstrar, pensamos numa presença ostensiva que, por meio de sua imodesta

expertise, orientava os caminhos para a recepção do romance. Além disso, não

conseguimos enxergar em que medida, uma figura tão frágil e obtusa como Estevão

pudesse despertar alguma identificação num público sempre convidado ao exercício da

crueldade no exame dos atos do personagem na narrativa. A exemplo de Sonhos d´ouro,

cremos que o folhetim de Machado de Assis também teria por mote o ideário moderno

associado ao fim do século XIX, perspectiva esta que seria retratada sob o signo da

contradição em relação a uma velha ordem social que teimava em fazer-se presente. Em

tal cenário, ao ser conjugado aos expedientes de um romantismo decadente, Estevão

reverberava obsolescência; e ao ser significado a partir de um espírito roto e sem tino à

iniciativa individual, tal personagem cativava uma condição de inadequação às práxis

da novidade liberal. Enfim, sabemos que o efeito da compaixão estaria previsto na

experiência do pathos, porém, em nosso trabalho, advogamos que o chamado ―Eu,

narrador‖ convidaria os seus leitores a achincalhar Estevão, e, nesse caso, não restaria a

386

―[...] Mas este plano não podia realizar-se, pela razão de que era mais um devaneio, que se lhe dissipou

como os outros. A frouxidão do ânimo negou-lhe essa última ambição. Os olhos podiam fitar a morte,

como podiam encarar a fortuna; mas faltavam-lhe os meios de caminhar a ela.‖ In: ASSIS, Machado de.

―Conclusão‖ (capítulo XIX). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 03 de novembro de 1874, p.1. 387

LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. (1996), p.26, Ibidem. 388

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público

de literatura no século 19. (2ª edição). São Paulo: Nankin: Edusp: 2012, p.126-134.

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possibilidade do estabelecimento de uma relação de empatia entre tais interlocutores e o

personagem machadiano.

Retomando ainda a questão de um Estevão romanesco e incapaz de distinguir

lirismo de realidade, pensamos que esta seria uma tópica que permearia não somente a

construção do personagem, mas toda a concepção do enredo. Sobre o bacharel, já no

capítulo inicial do folhetim, quando Estevão enxugava as primeiras lágrimas

derramadas por Guiomar, o narrador advertiria sobre a urgência em encarar-se as

necessidades práticas da vida mesmo diante dos sofrimentos de amor: ―A natureza tem

suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive não só do que ama, mas também

(força é dizê-lo) do que come.‖389 Explorando a mesma oposição entre idealismo e

realidade, Guiomar sempre esbanjaria uma noção de praticidade que parecia torná-la

mais apta para a vida. Assim, quando Estevão, de maneira abrupta, decidiria declarar

toda a sua paixão pela protagonista, a moça, de maneira serena, lhe ―acolheria‖ com

uma explicação coesa acerca das ―ilusões‖ que o motivavam: ― - Era ilusão, disse ela. O

sentimento que me acaba de revelar inteiro, ninguém o recebe ou nutre de vontade; a

natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso?‖.390 Em outra ocasião, num dos

famigerados episódios de embate entre as dependentes, a serviçal inglesa, ainda

ignorante da escolha amorosa de Guiomar por Luiz Alves, seguiria em sua campanha

matrimonial por Jorge. Contudo, e notando que a jovem não iria ceder tão facilmente à

sua vontade, Mrs. Oswald iria lhe dirigir um breve conselho/sermão, cujo conteúdo

rechaçava as supostas expectativas românticas de Guiomar sobre o casamento:

[...] Um conselho último, - último se me não consentir mais falar-lhe

nisto; - eu creio que a senhora sonha talvez demais. Sonhará uns

amores de romance, quase impossíveis? digo-lhe que faz mal, que é

melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é

brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.391

Porém, e conforme sabemos, Oswald se enganava ao expectar uma Guiomar

entregue às sensibilidades romanescas:

Guiomar cravara desta vez os olhos no chão, com a expressão vaga e

morta de quem os apagou para as coisas externas. As palavras de Mrs.

Oswald responder-lhe-iam acaso a alguma voz íntima? A inglesa

389

ASSIS, Machado de. ―O fim da carta‖ (capítulo I). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 390

ASSIS, Machado de. ―Golpe‖ (capítulo VIII). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 391

ASSIS, Machado de. ―Um rival‖ (capítulo VII). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 07 de

outubro de 1874, p.1.

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prosseguiu na mesma ordem de ideias, sem que ela a interrompesse ou

desse sinal de si. Quando ela acabou, Guiomar estremeceu, como se

acordasse; levantou a cabeça, e lenta, e comovida, proferiu esta única

resposta:

- Talvez tenha razão, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos são

tão bons!

Mrs. Oswald abanou a cabeça e saiu; Guiomar acompanhou-a com os

olhos, a sorrir, satisfeita de si mesma, e a murmurar tão baixo que mal

a ouvia o seu próprio coração:

- Sonhos, não, realidade pura.392

Ao desejar uma nova vida em parceria com o resoluto e obstinado Luiz Alves,

Guiomar lidava de frente com a realidade de sua própria condição social, ao mesmo

tempo em que flertava com a possibilidade de conceber uma vida pródiga ao lado de um

homem que compartilhasse de seus factíveis planos de ambição. De acordo com Tania

Rebelo Costa Serra393, na concepção de A mão e a luva observaríamos uma espécie de

―ruído‖ entre forma e conteúdo, uma vez que a obra transitava por entre os referenciais

do romantismo e do realismo, muito embora, os protagonistas, Guiomar e Luiz Alves, já

estivessem integralmente inseridos na psicologia da ética realista.

Dito isto, retomamos aqui o mesmo debate proposto por Sênio acerca do

desmonte do romance romântico e do gosto deficitário de um público formado em meio

às narrativas folhetinescas que perpassavam o cotidiano da imprensa. Ao abordar tal

problemática, recorremos à identificação de elementos balzaquianos em Sonhos d´ouro,

enfatizando, entre outros temas, o seu final temporariamente infeliz, e a oportunidade de

autocrítica implicitamente criada junto ao público. Acreditamos que ao idear o folhetim

A mão e a luva, Machado tratasse da mesma encruzilhada entre romantismo e realismo

presente ao enredo alencariano, daí o incômodo ―ruído‖ associado à obra. Não obstante,

e através da proposta de um narrador que demonstrava maior atenção às especificidades

de seu público, poderíamos confluir para uma interpretação que mobilizava outras novas

experiências que, do nosso ponto de vista, concerniam às expectativas em torno dos

papeis de gênero dos leitores e leitoras envolvidos, bem como às possibilidades de

fruição dos expedientes literários no período oitocentista.

No nono capítulo do folhetim, intitulado ―Conspiração‖, e publicado no jornal O

Globo em 15 de outubro de 1874, pela primeira vez, nosso conhecido narrador

convocaria a ―leitora minha‖ para atuar na trama. Na cena, a protagonista Guiomar,

392

Idem. 393

SERRA, Tania Rebelo Costa. ―Guiomar, c´est moi! Compaixão ou admiração em A mão e a luva

(1874), de Machado de Assis.‖ Machado de Assis em linha, Rio de Janeiro, ano 2, nº 3, junho/2009, p.78.

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sempre às voltas com seus pretendentes, encontrava-se meditativa, e com ares

românticos a observar o céu noturno fluminense:

[...] Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para

contemplar a noite, — o luar que batia nas águas, o céu sereno e

eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais desconsoladora

lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas,

ânsias, paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante,

que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade,

impassível e muda como a morte.394

Adotando uma postura diferenciada, ou menos áspera com Guiomar, o narrador

convidaria à leitora a examinar o agir contemplativo da personagem. Em outras

palavras, o tom de julgamento - sempre utilizado quando a parceria se dava com os

leitores - era temporariamente abandonado, e o narrador readequava o seu discurso aos

ouvidos de interlocutoras que, teoricamente, estariam mais habituadas aos códigos e

clichês da literatura romântica. É claro que tal percepção envolveria uma série de

preconceitos e estereótipos acerca da recepção dos romances e folhetins no século XIX;

como, por exemplo, a ideia ou noção de que o público que consumia tal gênero literário,

era composto quase que exclusivamente por mulheres. Ademais, chamadas a um

exercício menos nocivo e/ou decisivo à construção dos caminhos do enredo, as leitoras

seriam implicitamente desprestigiadas em sua capacidade crítica, já que tal habilidade

seria aparentemente reconhecida apenas entre os leitores. Porém, e antes de qualquer

conclusão precipitada, vale acompanhar o desenvolvimento da cena que acabamos de

citar:

Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela

era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em

plena aurora. Que lhe importava, — ou quem lhe chegara a fazer

compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do presente e do

futuro e, - tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho

enchiam, - tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda

que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber;

provavelmente havia-o esquecido.395

Admitindo a inocuidade da própria ―filosofice romanesca‖, o narrador informava

que tais devaneios não passavam pelo intelecto de Guiomar: ela era toda da vida e do

394

ASSIS, Machado de. ―Conspiração‖ (capítulo IX). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 395

Idem.

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mundo. No início deste capítulo, estabelecendo um contraponto ao Sênio de Alencar,

sugerimos que o narrador machadiano se autoproclamava uma voz do futuro e, do nosso

ponto de vista, tal protagonista, por suas características afinadas ao liberalismo clássico

e às nuances de uma nova experiência feminina, parecia mimetizar algumas dessas

esperanças vindouras.

Haveria ainda outras duas referências diretas às leitoras. No segundo caso,

quando seria insinuado que a leitora notaria por si só, - ou sem a ajuda do deus ex

machina - o sentimento amoroso de Luiz Alves por Guiomar. E, posteriormente, num

terceiro momento, quando o narrador iria sugerir que a leitora seria capaz de

compreender de maneira especialmente perspicaz a frivolidade maldosa de Jorge.

Seguem os respectivos excertos:

[...] Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha.

Jorge fitou-a com uma expressão de vaidade e cobiça. Luiz Alves, que

se achava de pé, recuou um pouco para deixá-la passar. Os olhos com

que a contemplou não eram de cobiça nem de vaidade; a leitora, que

ainda lembrará da confissão por ele mesmo feita a Estevão, suporá

talvez que eram de amor. Talvez, - quem sabe? - amor um pouco

sossegado, não louco e cego como o de Estevão, não pueril e lascivo,

como o de Jorge, um meio-termo entre um e outro, - como podia

havê-lo no coração de um ambicioso.396

[...] Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão

pertinaz esperança, e terá razão; mas os olhos da baronesa não são os

da leitora; ela só lhe via o lado bom, - que era realmente bom, - ainda

que de uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via nem

podia ver-lhe a frivolidade grave do espírito, nem o gênero de afeto

que se lhe gerava no coração.397

Parece claro que, o narrador optava por dirigir-se às leitoras em específico,

quando tratava dos pormenores de uma domesticidade feita de pequenas intrigas, às

quais, por sua vez, colocariam em movimento o jogo matrimonial protagonizado por

Guiomar. Existiria, portanto, um pressuposto desdenhoso em relação a tais

interlocutoras, evocadas de maneira aparentemente despretensiosa, como se todos

estivessem numa roda de conversas a fofocar sobre amores alheios? Na verdade, se

lermos o folhetim de maneira mais atenta, notaremos algumas pistas que podem sugerir

que o narrador não compreenderia as suas ―leitoras-modelo‖ de maneira tão rasa. Dessa

forma, e retomando a nossa última citação, não seriam explicados os motivos pelos

396

ASSIS, Machado de. ―A viagem‖ (capítulo XII). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 397

ASSIS, Machado de. ―Explicações‖ (capítulo XIII). A mão e a luva. O Globo. Ibidem.

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quais a leitora seria hábil por enxergar ―o lado mau‖ de Jorge. Afinal, quais os sentidos

de vilania presentes aos galanteios do rapazola? Todavia, no capítulo subsequente, o

narrador desvendaria a índole mercenária do sobrinho da baronesa:

[...] O sacrifício da parte dele era compensado pela probabilidade da

vitória, a qual não consistia só em haver por esposa uma moça bela e

querida, mas ainda em tornar muito mais sumárias as partilhas do que

a baronesa deixaria por sua morte a ambos. Esta consideração, que

não era a principal, tinha ainda assim seu peso no espírito de Jorge, e,

sejamos justos, devia tê-lo: possuir era o seu único ofício.398

Ou seja, apesar de dissimular uma tônica de menosprezo em relação à

experiência de leitura das mulheres, o narrador admitiria que, indubitavelmente, elas

enxergavam para além dos floreios e suspiros amorosos. E, mediante tal excerto, não

restavam dúvidas das intenções do sobrinho em abocanhar integralmente a herança que

seria deixada pela baronesa. Por fim, seria importante apontar que, ao criar uma

personagem antirromântica que seria bem-sucedida em suas aspirações de ascensão

social, Machado de Assis, em interlocução com o seu público (fictício e/ou real),

parecia agir para descontruir certos arquétipos em torno da experiência feminina no

Brasil do século XIX, trazendo luz, em específico, sobre as possibilidades de arbítrio

encontradas e criadas por uma jovem mulher oriunda da pobreza.

V.2 E quem está afeito a ler romances-folhetins?

Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco

distante dos grupos de curiosos, atraídos pela festa de uma casa grande

e rica, um vulto de homem sentado sobre uma lájea que acaso topara

ali. Quem está afeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o

começo, supõe logo que esse homem podia ser Estevão. Era ele.

Talvez o leitor, em lance idêntico, fosse refugiar-se em sítio tão

remoto, que mal pudesse acompanhá-lo a lembrança do passado.399

Mas, afinal, nos últimos decênios do período oitocentista, quem estaria afeito a

ler romances? Ou, refinando a pergunta aos nossos interesses, quem estaria afeito a ler

os romances-folhetins publicados cotidianamente nas páginas da imprensa? Envolvidos

pela prosa do bruxo, nos aproximamos dos espectros de leitores e leitoras sugeridos

398

ASSIS, Machado de. ―Ex abrupto‖ (capítulo XIV). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 399

ASSIS, Machado de. ―Conclusão‖ (capítulo XIX). A mão e a luva. O Globo. Ibidem.

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pelo próprio folhetim. Todavia, e buscando estabelecer um diálogo entre realidade e

idealismo, - uma relação que cremos ser intrínseca à obra - sugerimos que, através de

projeções acerca de seu público, Machado de Assis buscasse travar um diálogo com os

seus leitores e leitoras empíricos, estes que acessavam o romance por meio do jornal.

Dessa maneira, adiantamos que o nosso próximo passo no desenvolvimento da tese,

deve voltar-se ao escrutínio do jornal O Globo, para que possamos examinar todo o

discurso jornalístico que circundava o folhetim, especulando se a interpretação que

seguimos propondo seria plausível.

De todo modo, e propondo alguns arremates parciais à nossa análise,

retomaremos uma das derradeiras cenas do romance de Machado: a escolha de Guiomar

por Luiz Alves. No capítulo, sugestivamente intitulado ―A escolha‖, a moça, em

entrevista com a baronesa, optava pelo noivo ambicioso. Porém, e recuperando a nossa

proposta comparativa, Guiomar não era Guida, e os seus desejos íntimos não poderiam

soar como caprichos intransigentes aos ouvidos de sua benfeitora. Daí, portanto, a

necessidade de que o casamento com Luiz Alves se tornasse um desejo da própria

senhora. Em outras palavras, Guiomar, sem abandonar os pressupostos em torno de sua

condição inferior de dependente, agiria para arrancar da madrinha a sua própria vontade.

E é claro que o ―Eu, narrador‖ não deixaria tal situação passar de maneira despercebida:

[...] Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia

vir-lhe do coração aos lábios e querer rompê-los, não foi ela quem a

proferiu, foi a madrinha; e se leu atento o que precede verá que era

isso mesmo o que ela desejava. Mas por que o nome de Jorge lhe

roçou os lábios? A moça não queria iludir a baronesa, mas traduzir-lhe

infielmente a voz de seu coração, para que a madrinha conferisse, por

si mesma, a tradução com o original. Havia nisto um pouco de meio

indireto, de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia, se

não tomassem à má parte o vocábulo. Havia, mas isto mesmo lhe dirá

que esta Guiomar, sem perder as excelências de seu coração, era do

barro comum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e

lhes dirá também que, apesar de seus verdes anos, ela compreendia já

que as aparências de um sacrifício valem mais, muita vez, do que o

próprio sacrifício.400

Conforme dissemos anteriormente, em A mão e a luva notamos um novo registro

acerca da situação da dependência no Brasil oitocentista e, de maneira diversa da

proposta alencariana, que conjugava tal condição social a uma espécie de anulação do

indivíduo, em seu folhetim, Machado buscava sugerir os subterfúgios ideados por tais

400

ASSIS, Machado de. ―A escolha‖ (capítulo XVIII). A mão e a luva. O Globo. Ibidem.

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pessoas para lidar com um cotidiano inegavelmente opressor. Nesse sentido, e ainda

pensando no modelo observado em Sonhos d´ouro, podemos sugerir uma espécie de

inversão de valores, pois, se o romance de 1872 representava os desmandos de uma

nova elite advinda das fileiras liberais, o enredo de 1874 era feito dos arbítrios de jovens

destituídos de prestígio, mas que sabiam utilizar-se das próprias habilidades pessoais

para alvitrar uma vida melhor. Em Sonhos somos expostos a um cotidiano feito ao sabor

de uma elite presunçosa, representada pela prole do banqueiro/conselheiro Bastos; já em

A mão e a luva, a senhora/baronesa/madrinha sequer recebe um nome próprio, dada a

sua inocuidade frente à inteligente e vívida Guiomar. Para José de Alencar, os tempos

eram potencialmente novos, mas ainda traziam consigo a poeira dos séculos anteriores,

enquanto para Machado os tempos eram avassaladores, e tomavam de assalto o status

quo patriarcal.

Por fim, e retornando à questão do público de literatura no Brasil do século XIX,

novamente chamamos a atenção para a presença do leitor-modelo que, no último trecho

citado, era convidado pelo narrador a constatar a dissimulação - e até a hipocrisia - de

Guiomar ao eleger o seu par junto à madrinha. Por outro lado, e admitindo os signos de

humanidade que compunham a personagem, o mesmo narrador parecia propor uma

breve trégua nos trabalhos de seu tribunal de inquisição, reconhecendo que a moça

também era feita do ―barro comum de que Deus fez a nossa pouco sincera

humanidade‖. Enfim, pensamos que, ao sugerir as vulnerabilidades da personagem aos

olhos de seus ―leitores‖, Machado de Assis também pudesse alcançar a compreensão de

seus leitores não fictícios, que, em determinados momentos, poderiam sentir-se

sensibilizados ao acompanhar uma trajetória feita de engodos, mas também de uma

enorme e inegável capacidade de superação que levaria a menina pobre e órfã a um

novo patamar social.

Dessa forma, seria possível afirmar-se que, na aproximação entre e o narrador e

as leitoras, notamos um processo de confabulação em torno da desconstrução dos

expedientes romanescos, o que nos parecia exigir, de maneira implícita, algum

posicionamento crítico de tais interlocutoras. Paralelamente, o pacto que envolvia o

narrador e os leitores era feito, na maioria das vezes, de um voyeurismo cruel, que se

propunha ao exame frio de uma figura feminina sempre passível de julgamento.

Todavia, e conforme demonstramos, em momentos ímpares, identificamos um narrador

que, nas entrelinhas, também convidava os seus leitores a compartilhar de uma

perspectiva menos atroz, ou um pouco mais tolerante para com Guiomar, o que

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denotava certa humanidade à personagem, tornando factível o desencadeamento de um

processo de identificação entre tal caractere e os receptores do texto literário. Portanto,

nosso argumento conflui para a tese de que, através de pequenas brechas introduzidas

num discurso narrativo essencialmente misógino, fosse construída a hipótese de que os

leitores empíricos perscrutassem o próprio olhar mediante mulheres pobres e

ambiciosas como Guiomar, cuja verossimilhança se afinava à historicidade de tal

período.

V.3 O folhetim A mão e a luva (1874) em meio às páginas do jornal fluminense O

Globo.

O Criador do universo trabalhou seis dias e descansou no sétimo. Eu

não pareço com Ele: trabalho no sétimo dia, e descanso durante seis.

É verdade que só faço folhetim.

Mas o folhetim deve ser um mundo, deve ocupar-se de tudo, embora o

seu principal mérito consista em não ter substância.401

O trecho acima, pinçado de um escrito publicado nas páginas do jornal

fluminense O Globo em 1874, traz consigo os signos de uma famigerada despretensão -

já identificada na dicção de Sênio - associada ao fazer folhetinesco. Em teoria, o

folhetinista seria o sujeito que vivia ao sabor da modernidade acalentada, significada e

materializada pela imprensa oitocentista e, por isso, via-se imbuído, ou até

constrangido, em assumir um papel compreendido como ―de pouca envergadura‖, pelo

menos quando e se comparado aos poetas e glosadores de uma suposta ―literatura

superior‖, dita ―não massificada‖. Por outro lado, a desafetação sinalizada, ou a falsa

modéstia pressuposta, também trazia consigo algo de vantajoso, uma vez que fazendo

apenas seus folhetins, tais escritores poderiam tomar de assalto as regras estilísticas que

regiam a poética literária da época, tornando-a frouxa à matéria jornalística, e

supostamente destituída de uma substância elevadíssima. Assim, todo e qualquer

assunto poderia vir à baila nos rodapés dos jornais, pois o folhetim deveria ser o mundo,

e poderia se ocupar de toda e qualquer matéria, relevante ou não.

Sobre o mesmo excerto, e prevendo algum possível equívoco, recorremos às

assertivas de Marlyse Meyer explícitas no texto ―Voláteis e versáteis: de variedades e

401

(Autor não identificado) - [página rasurada]. FOLHETIM DO GLOBO. O Globo, Rio de Janeiro, 27

de setembro de 1874, p.1, n° 54.

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folhetins se fez a Chronica.‖402

, no qual a estudiosa esclarece os imbróglios que

envolvem o termo folhetim, demonstrando que, muitas vezes, especialmente na primeira

metade do século XIX, quando ainda ―macaqueávamos os franceses‖403

, era comum que

no Brasil o termo ―folhetim‖ fosse utilizado como sinônimo de ―crônica‖ (folhetim de

crônica) e não de romance, até mesmo porque FOLHETIM era o termo utilizado para

designar o espaço localizado no rodapé do jornal reservado aos escritos de

entretenimento de uma maneira geral. Contudo, o folhetim, na sua acepção de ―romance

rocambolesco‖, ou na sua célebre forma do ―amanhã continua...‖, ganharia contornos

mais precisos entre os brasileiros a partir do final dos anos 1830 e início dos anos 1840,

novamente por influência das publicações presentes na imprensa francesa. De todo

modo, e situando-nos na moderna década de 1870, refutamos a ignorância do redator

acerca de tal debate. E, ainda que o embaralhamento dos gêneros narrativos fosse

factível, o mesmo escritor não identificado pode e deve contar com a nossa indulgência,

pois, conforme defendido por Meyer:

São movediças, como já se observou, as fronteiras entre os numerosos

escritos abrigados no hospitaleiro folhetim. E parece que neste país

[...] da oralidade, escrever, com cunho literário, histórias, não foi de

fácil aprendizagem.404

Em outros termos, e recorrendo aos recentes estudos de Alain Vaillant405

,

advogamos ainda que as evidências de ―novidade‖ e de ―modernidade‖ associadas à

época, refletiam, e eram fruto, dos aspectos de uma ―cultura jornalística‖ em franco

processo de desenvolvimento, na qual o poeta, e, acrescentamos, o folhetinista, estariam

imersos. Daí, portanto, a necessidade de (re)inserção do romance-folhetim ao seu

entorno, de forma a absorver o burburinho da matéria jornalística que pensamos ser

incorporada à urdidura ficcional:

402

MEYER, Marlyse. ―Voláteis e versáteis: de variedades e folhetins se fez a chronica.‖ In: As mil faces

de um herói-canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998, p.109-196. 403

―[...] Já que ‗nós macaqueamos dos franceses tudo quanto eles têm de mal, de ridículo e grotesco‘

[Apud: Alencar, Ao Correr da Pena, 29/10/54], o tão mal afamado folhetim não podia faltar aqui. Como

não faltou. Basta um relance pela imprensa do século XIX para vê-lo, em todas as suas modalidades. Tal

e qual na matriz.‖ In: MEYER, Marlyse. Ibidem, 1998, p.119. 404

MEYER, Marlyse. Ibidem, 1998, p. 141 e 154. 405

VAILLANT, Alain. ―Modernidade poética e cultura midiática no século XIX.‖ In: ANDRIES, Lise &

GRANJA, Lúcia (organizadoras). Literaturas e escritas da imprensa: Brasil/França: Século XIX.

Campinas-SP: Mercado das Letras, 2015, p.277-286.

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[...] ao longo das colunas impressas, o mundo moderno invade a

imaginação coletiva e transborda sobre o espaço poético. Enfim - e

isto é talvez o essencial -, o poeta faz pela imprensa a experiência da

alteridade. Sua voz não é única [...], mas ela se mistura ao burburinho

confuso e dissonante do texto jornalístico. A verdadeira polifonia não

é mais aquela do romance, onde há sempre um narrador último para

conduzir a trama, mas aquela do jornal onde o poeta-jornalista tem

inserida a sua voz.406

Neste capítulo pretendemos tratar daquilo que rodeia o folhetim A mão e a luva

(1874), de Machado de Assis, nas páginas de seu suporte original: o jornal O Globo.

Todavia, e dando continuidade ao viés interpretativo proposto, faz-se necessário pontuar

que as temáticas que envolvem a construção da ―figura de resistência‖ representada por

Guiomar, ainda nos servirão de mote em tal processo. Isto posto, seguiremos

conjugando tal perfil de mulher ao teor de modernidade que marcou a década de 1870 e,

através do escrutínio do periódico, pretendemos recuperar os vestígios de um discurso

jornalístico que pensamos ser inerente ao processo de concepção e recepção da prosa

machadiana. Sendo assim, e para trilharmos tal caminho, elencamos alguns

questionamentos que irão nos acompanhar em tal empreitada. O primeiro deles seria se

o teor moderno/liberal que associamos ao folhetim também comporia o projeto editorial

do periódico, ou, ampliando nossas expectativas, quais os sentidos que poderiam ser

apreendidos no fato de A mão e a luva ocupar tal espaço midiático originalmente? A

partir de então, nos voltaremos à questão do casamento, - temática que perpassa o

folhetim e o jornal - propondo uma abordagem para além da chave de leitura da

―subordinação feminina‖ recorrentemente associada ao enlace matrimonial no século

XIX. Ademais, e ainda englobando a condição feminina, afinal, qual seria o lugar

reservado para as mulheres no discurso de uma folha de aspecto ―sisudo‖ e conhecida

por privilegiar um universo econômico tido por masculino? Haveria subterfúgios

através dos quais ―o segundo sexo‖ poderia acessar este mesmo universo do qual

sabemos que elas eram sumariamente alijadas? Enfim, verbalizadas as questões, vamos

ao Globo de Machado.

V.4 O “não lugar” da mulher no jornal O Globo.

406

VAILLANT, Alain. Ibidem, p. 282.

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O projeto original d´O Globo, com suas quatro páginas diárias407

, e seu

insistente refrão de dedicação ―aos interesses do Comércio, Lavoura e Indústria‖408

,

surgiu em agosto de 1874 na cidade do Rio de Janeiro. A veiculação do folhetim A mão

e a luva foi, portanto, quase concomitante ao período inaugural do periódico. Pela

referência ao jornal francês Le Globe, e através das máximas desferidas no slogan, de

antemão, fazia-se clarividente a orientação liberal e progressista da folha em questão.

Porém, podemos afirmar que a presença da literatura foi, talvez, uma das poucas

inspirações colhidas na imprensa francesa; haja vista que a referência estadunidense,

compreendida de maneira mais tangível à realidade brasileira409

, fazia-se muito presente

nos editoriais do jornal. O Globo falava do novo, da modernidade, de uma economia

dinâmica e da força de trabalho que, esperava-se, em breve liberta.410

Enfim, o

407

Salvo em edições comemorativas, o jornal O Globo sempre era composto por quatro páginas. Na

primeira, geralmente acompanhámos notícias de natureza econômica; além do espaço cativo no rodapé da

página dedicado aos escritos de folhetim. Nas segunda e terceira páginas, questões de natureza política e

o noticiário cotidiano da Corte se juntavam às temáticas mercadológicas; e, de maneira excepcional, na

terceira página também figuravam pequenos contos ou crônicas importadas de jornais alhures. Por fim, a

quarta página era impreterivelmente tomada pelos pequenos anúncios. (Conferir Anexos, p. 228) 408

Na íntegra: ―Órgão da Agência Americana Telegráfica, dedicado aos interesses do Comércio, Lavoura

e Indústria.‖ 409

―[trecho com rasuras] [...] Prova irrefragável do que acabamos de dizer encontra-se no

desenvolvimento dado à instrução pública entre os nossos irmãos norte-americanos. Escolas, colégios,

universidades e academias, quase tudo ali é de instrução particular, o estado pouco ou nada concorre para

essa exuberância de vida intelectual. Verdade é que o yankee pertence a uma raça privilegiada, que sabe

compreender, e ainda melhor praticar, a teoria do self governement. Pertencemos nós outros à raça latina,

que, na frase de Ribeyrolles, nada faz sem intervenção do pretor: tudo esperamos do governo, a quem

atribuímos a glória ou o vitupério do bom ou mau êxito de qualquer empreendimento. Parece até que

declinamos da responsabilidade das nossas próprias ações, e sentimos oculto prazer em criminar os outros

pelas consequências da nossa incúria ou improvidência.‖ (Autor não identificado. ―Instrução pública.‖ O

Globo, Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1874, p.3, n° 09). 410

Embora a temática da libertação dos escravos se constituísse numa das principais ―bandeiras

humanitárias‖ d´O Globo, a questão financeira e os prejuízos aos proprietários eram constantemente

sublinhados nas páginas do periódico, em específico, quando eram abordadas as relativamente recentes

resoluções da Lei do Ventre Livre (1871). Por fim, e a exemplo dos EUA, clamava-se pela novidade da

mão de obra imigrante para o caso brasileiro. Seguem alguns trechos:

―[...] O Brasil, como os Estados Unidos, tem empregado esforços para livrar-se do anátema da

escravidão, e, conquanto o esforço se faça de modo pouco ruidoso, não deixa, todavia, de ser bem-

sucedido e promete ser coroado de excelentes resultados.‖ (Autor não identificado. SEÇÃO

ECONÔMICA - ―As finanças no Brasil.‖ O Globo, Rio de Janeiro, 05 de setembro de 1874, p.1, n° 32).

―[...] O governo, em vez de promover a adoção de uma lei de serviços em benefício da lavoura, não cogita

senão as leis de guerra ou leis de política estreita. A Lei de 28 de setembro está suscitando clamores; mas,

o governo finge que não os ouve, e não cuida senão da reforma judiciária, de reforma da guarda nacional,

de reforma do recrutamento, e de reforma eleitoral. [...] O Brasil está sobre um barril de pólvora: somente

os poderes públicos manifestam a serenidade da bonança! Pode ser um governo ilustrado, um governo

estratégico, um governo de combate partidário; mas, com certeza, é um governo imprevidente, e inferior

às necessidades públicas. Sem conhecimento algum da economia política e da ciência das finanças, os

seus expedientes são de uma vulgaridade desastrosa.‖ (―Molière‖ [pseudônimo não identificado].

CORRESPONDÊNCIAS - ―Perigos e esperanças.‖ O Globo, Rio de Janeiro, 09 de agosto de 1874, p.3,

n° 05).

―[...] finalmente a iniciativa particular, de combinação com o governo promovendo a introdução no país

de imigrantes morigerados e amigos do trabalho, são a alvorada do belo dia em que o sol do Brasil

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argumento de uma jovem nação que despontava para o progresso era prerrogativa

constante nas colunas do citado periódico:

Uma nação nova, como a nossa, não pode viver ainda de glórias, nem

de poemas: vive de seus esforços e trabalho, tendentes ao seu

aperfeiçoamento moral, intelectual e material: vive de estudo prático e

comparativo dos progressos das nações mais cultas e adiantadas.

Os povos são operários encarregados da construção do grande templo

social. Seu salário está na razão direta do mérito que possui e do

trabalho que executa, mas não depende de veleidades.

Concentremos, pois, nossas forças, para chegarmos a ser

verdadeiramente grandes.

Deixemos a outros a tarefa de fazer nossa epopeia, (quando a

merecermos): para isso é justo que continuemos a fornecer

praticamente os motivos e assuntos de um modo nobre e verdadeiro.

Não nos queiramos ser galvanizados na história.411

Pouco dispostos às quimeras, os editores d´O Globo clamavam por trabalho

duro, pois esta seria a única condição que poderia nos alçar a uma posição relevante

num contexto mundial. Tendo à frente a figura do editor-chefe Quintino Bocaiúva412

, -

daí o vínculo de Machado de Assis com o jornal desde o início413

- a folha foi

recorrentemente ligada ao ideal republicano por alguns estudiosos; no entanto, e após

análise dos exemplares disponíveis para pesquisa, citamos apenas uma divergência

muito clara ao regime monárquico em relação à temática da escravidão (esta que seria

compreendida como um enorme empecilho ao modelo clássico de liberalismo cobiçado

iluminará a mais profunda reforma do nosso antigo sistema agrícola e manufatureiro, reforma tanto mais

importante quanto a ideia da vulgarização da instrução por todas as camadas da sociedade acaba de

apoderar-se de todos os espíritos e a promulgação da lei salutar, benéfica e altamente humanitária de 28

de setembro de 1871, estancando as fontes da escravidão incompatíveis em um país de liberdade, nobilita

as indústrias e faz com que a sociedade não veja no operário a máquina bruta do trabalho, porém o

homem que vivendo de sua dignidade, se emprega a força física procura ao mesmo tempo libertar-se das

algemas do labor ignorante para seguir a atividade racional.‖ (Autor não identificado. COMUNICADOS

- ―A agricultura do Brasil.‖ O Globo, Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1874, p.2, n° 13). 411

(Autor não identificado). COMUNICADO - ―O Brasil [...] futuro‖ – [jornal rasurado]. O Globo, Rio

de Janeiro, 09 de outubro de 1874, p.3-4, n° 66. 412

A trajetória profissional de Quintino de Souza Bocaiúva começaria nos anos de 1850, inicialmente

como tipógrafo e revisor em São Paulo, onde também cursava a faculdade de Direito que não chegaria a

concluir. Posteriormente, Bocaiúva se mudaria para a cidade do Rio de Janeiro, onde atuaria como

jornalista e editor em diversos e importantes jornais da época, como o Correio Mercantil (1860-1864); o

Diário do Rio de Janeiro (1854); A República (1870-1874), folha fundada a partir do ―Manifesto

Republicano‖ (1870), cuja redação é atribuída ao jornalista; atuou também como editor do jornal O Paiz.

Ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves. Diccionario Bibliographico Brasileiro. (volume 7). Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1902.; SODRÉ, Nelson Werneck. (1999). Op.cit. e COSTA, Emília Viotti

da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. (8ª edição). São Paulo: Fundação Editora UNESP,

2007. 413

Conforme comprovada pela correspondência de Machado de Assis, sabe-se que os intelectuais

mantiveram um profícuo diálogo intelectual. E, embora já não mais sob a chefia de Quintino Bocaiúva, ao

longo da década de 1860, Machado publicou parte significativa de sua produção cronística no citado

Diário do Rio de Janeiro. (Cf.: ROUANET, Sergio Paulo (Org. e Coord.). Op. Cit., 2009).

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para o caso brasileiro), porém, não nos deparamos com qualquer reinvindicação de

alinhamento ao republicanismo propriamente dito.

Ademais, e tratando de questões de ordem prática, o Globo pertencia a Gomes

de Oliveira & C.; tal nome se referia à Companhia de Comunicação Agência Americana

Telegráfica, cujo diretor era o Sr. M. Gomes de Oliveira; tratava-se de uma agência que

fornecia notícias nacionais e internacionais para vários jornais da Corte. E, tentando nos

aproximar das possibilidades de alcance do periódico entre o seu público de então,

apesar de não sabermos os números de tiragens, podemos afirmar que os preços de

assinatura eram os seguintes: na Corte e em Niterói: 20$000 (por ano) e 12$000 (por

seis meses), nas províncias: 24$000 (por ano) e 14$000 (por 6 meses); sendo que as

assinaturas podiam ser adquiridas na Tipografia do Globo, localizada na Rua dos

Ourives, nº 51. Assim, nem caro, tampouco barato; podemos afirmar que, em teoria, o

jornal visava a um público de comerciantes, produtores rurais, pequenos e médios

proprietários, especuladores de toda a espécie, e trabalhadores liberais ávidos por

notícias que tratassem de assuntos econômicos; e isso explicaria o fato do projeto

gráfico da folha sempre privilegiar tal noticiário. Árido, pelo menos em seus inícios; o

Globo de 1874 era feito basicamente de colunas sempre abarrotadas de números e

oscilações cambiais, preços de mercadorias (primárias e secundárias), cotações de

produtos agrícolas, e informações sobre paquetes que circulavam ao sabor dos ventos do

capital. De todo modo, e reafirmando os aspectos imponderáveis das práticas de

leitura414

, cremos que o Globo também pudesse escapar às delimitações preconcebidas

por seu corpo editorial.

Ainda sobre as expectativas sugeridas pelos editores em relação ao público, faz-

se necessário ponderar que, apesar de acreditarmos na existência de uma carta inaugural

assinada pelo editor-chefe, o primeiro número d´O Globo acessível para consulta

(datado de 07/08/1874 - Ano 1, nº1) encontra-se quase que completamente rasurado.415

Portanto, não obtivemos acesso a um possível texto oficial acerca dos paradigmas que

envolvem a concepção da folha. Por outro lado, e debruçando-nos sobre os demais

exemplares do jornal, nos deparamos com inúmeros indícios que permitem especular

acerca dos ideários que compunham o Globo, e de nos aproximarmos da relação

antevista com seus interlocutores. Reafirmando certo ―espírito prático‖, associado às

414

Cf.: CHARTIER, Roger (org). Práticas da Leitura. (Tradução: Cristiane Nascimento). São Paulo:

Estação Liberdade, (2ª edição), 2001. 415

Vale informar que o jornal O Globo circulou, com alguns intervalos, até o ano de 1883.

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odes da modernidade liberal, era comum que, vez ou outra, algum colunista ou

correspondente reivindicasse uma comunicação direta com os leitores, dita imparcial e

sem muitos floreios, como se houvesse um pacto de confiança que os aproximasse de

seu público:

Não esperem de nós os leitores do Globo longas dissertações, quer

sobre política, quer sobre administração, quer sobre operações

comerciais ou financeiras, ou assuntos literários, quer sobre notícias

mais ou menos interessantes; faremos, porém, a diligência de tudo que

nos parecer de interesse mencionarmos.

Mesmo perfunctoriamente faremos, de quando em quando, a crítica

dos acontecimentos, segundo o nosso juízo, que não damos pelo mais

seguro, mas que será sempre consciencioso.416

No trecho citado os jornalistas reafirmavam, sem meias palavras, a obviedade de

um viés ideológico presente ao discurso do periódico. Ou seja, muito embora o lema da

―neutralidade‖ seguisse estampado junto ao cabeçalho417

, na prática, notamos as marcas

de um posicionamento bastante crítico em relação aos mais diversos temas e, no que

concerne à condição feminina na época, tais ―homens de imprensa‖ costumavam

sinalizar de forma especialmente conflituosa. Conforme exposto, o Globo não fora

criado com a intenção específica de se comunicar com o segmento feminino. O Globo

era, se assim podemos dizer, um jornal de homens feito para homens, e a situação das

mulheres na sociedade oitocentista aparecia em raros momentos, sempre de maneira

breve e com alguma desconfiança.

Porém, e ainda que conjugado a uma atmosfera estereotipada como masculina,

sublinhamos primeiramente a presença dos folhetins no jornal, com recepção certeira

entre o grande público, em específico entre o público feminino, comumente associado

às narrativas.418

Todavia, e para além de tal constatação, postulamos a tese de que, se a

modernidade era a ―pedra de toque‖ do periódico, por consequência, haveria a

imposição de refletir-se sobre o papel da mulher na esteira das mudanças sociais

previstas e idealizadas para o contexto brasileiro em debate, pois cremos que a própria

416

(Autor não identificado). EXTERIOR. O Globo, Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1874, p.2, n° 12. 417

Junto ao cabeçalho eram recorrentes os seguintes dizeres: ―LIBERDADE PLENA DE ENUNCIAÇÃO

DO PENSAMENTO COM RESPONSABILIDADE REAL E EFETIVA DO SEU AUTOR.‖ /

―COMPLETA NEUTRALIDADE NA LUTA DOS PARTIDOS POLÍTICOS.‖ / ―OFERTA GRATUITA

DAS SUAS COLUNAS A TODAS AS INTELIGÊNCIAS QUE QUISEREM COLABORAR EM

ASSUNTOS DE UTILIDADE PÚBLICA.‖ 418

Além disso, pensamos que a preocupação em publicar conteúdos literários, também demonstrava que o

Globo surgia em compasso com os movimentos da imprensa de sua época, - até mesmo porque seria

inadmissível para um jornal dito progressista inaugurar-se sob a pecha do anacronismo.

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figura de uma mulher potencialmente mais emancipada estaria inevitavelmente

associada ao ideário moderno.

Isto posto, e enfrentando tal problemática, partimos da ideia de que as mulheres

gozavam de um ―não lugar‖ no discurso midiático d´O Globo, ou de um lugar

implicitamente anexo ao grande projeto de desenvolvimento de um país progressista.

Ainda assim, fosse na constante condição de ―esteio do lar‖, ou como signo de

liberdades futuras ainda receadas, elas eram impreteríveis ao amálgama deste projeto de

sociedade vindoura e, portanto, faziam-se forçosamente presentes ao discurso do

periódico. Os trechos que seguem foram publicados no Globo de maneira quase

contemporânea, e se no primeiro caso notamos os aspectos de literariedade de um texto

cronístico, aparentemente sensível aos movimentos internacionais em prol de uma

condição mais libertária para as mulheres; no segundo, e denotando aspectos

conservadores, era reafirmado o princípio da maternidade a reger a vida e o sistema

educacional ao qual as jovens de então deveriam ser submetidas:

[...] De tanto ver o sexo fraco mostrar-se forte, vou acreditando que a

fragilidade já não é mais atributo da mulher. [...] Está o mundo às

avessas. [...] Dispensa-se tudo, desde o coração até o talento, mas é

preciso mostrar que estamos no século da força. Da força feminina.

Dalila é deusa e Onfália sua profetisa.419

[...] É no berço, e nos dias da primeira infância que a criança recebe o

influxo das ideias, que têm de moralizar ou perverter o coração – e

disso só cabe responsabilidade à mãe de família – educar, pois, a

mulher que um dia há de ser mãe, nos princípios da mais pura

moralidade é, sem dúvida, a primeira condição do progresso social.420

Dessa forma, vale dizer que o periódico O Globo era composto de vozes

dissonantes, que muitas vezes refletiam visões de mundo aparentemente antagônicas, e

que continuam escapando a qualquer tentativa de equalização. Isto posto, e cientes dos

aspectos de polifonia intrínsecos à imprensa oitocentista, pretendemos trazer à tona as

vertentes de um discurso jornalístico que, apesar de suas ambiguidades, fazia-se mais

perene ao rechaçar as ideias em torno da emancipação feminina.

Contudo, e relativizando tal abordagem, também destacamos que, no panorama

da segunda metade do século XIX, era possível notar mobilizações em prol de pautas

419

(Autor não identificado). FOLHETIM DO GLOBO - ―Chronica de Domingo.‖ O Globo, Rio de

Janeiro, 11 de outubro de 1874, p.1, n° 68. 420

(Autor não identificado). ESTUDOS ADMINISTRATIVOS - ―As províncias do Império: Bahia.‖ O

Globo, Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1874, p.2, n°14.

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feministas em vários lugares do mundo, como na França, Inglaterra e Estados Unidos421

,

países nos quais sabemos que o Globo mantinha correspondentes, inclusive. Nesse

sentido, pode-se afirmar que uma gama de revoluções tomava de assalto o status quo, e

certamente conferia impactos às práticas dos redatores que respondiam a Quintino

Bocaiúva. Ademais, entre os pares d´O Globo, já havia uma imprensa de teor feminista

circulando no Brasil de então; citamos como exemplo o semanário O Sexo Feminino,

editado por D. Francisca Senhorinha da Motta Diniz, em Minas Gerais, entre outros.422

Sendo assim, embora as mulheres fossem destituídas de um ―lugar de fala‖423

, e

obliteradas por um discurso um tanto quanto arredio à temática feminina/feminista,

cremos que o Globo, mesmo quando se utilizava de ―negativas‖, também demonstrava

um envolvimento irremediável com a demanda que era imposta. Por isso, pretendemos

examinar este ―não lugar‖ reservado a elas no jornal, para que possamos compreender

os múltiplos sentidos conferidos à condição feminina, mesmo quando na forma de

ausências irremediavelmente enunciadas.

V.5 Sobre casamenteiras dotadas, comerciantes diligentes, trabalhadoras

proletárias e passarinhas cantantes: o tema da inserção das mulheres ao universo

econômico oitocentista.

Quando abordamos a trajetória da protagonista de A mão e a luva, destacamos

alguns ―marcadores sociais‖ que, do nosso ponto de vista, seriam preponderantes na sua

construção enquanto personagem de ficção, e que poderiam viabilizar uma interpretação

em resposta ao perfil feminino anteriormente apresentando por José de Alencar. Dessa

forma, e em oposição a Guida, Guiomar amargava as condições particulares da origem

humilde e da orfandade que, por consequência, a encaminharam para o aceite dos afetos

e dos favores oferecidos pela baronesa. Acolhida, porém, evidentemente ilegítima; a

jovem demonstrava ciência da tenuidade de sua condição, e temia por infortúnios que

421

Cf.: SALVAIA, Priscila. ―Do noticiário estrangeiro: até parece que as mulheres fazem as leis.‖

SALVAIA, Priscila. Diálogos possíveis: o folhetim Helena (1876), de Machado de Assis, no jornal O

Globo. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária). Campinas, IEL-UNICAMP, 2014, p.68-85. 422

Cf.: SOUTO, Bárbara Figueiredo. “Senhoras do seu destino”: Francisca Senhorinha da Motta Diniz e

Josephina Alvares de Azevedo – projetos de emancipação feminista na imprensa brasileira (1873 -

1894). Dissertação (Mestrado em História Social). São Paulo, FFLCH- USP, 2013. 423

Cf.: RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

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pudessem arrastá-la às agruras do desamparo ou à condição humilhante relacionada ao

mundo do trabalho. Porém, e conforme procuramos demonstrar, a personagem

machadiana faria do casamento uma possibilidade de ascensão social sob a égide de

uma ética liberal; sendo assim, ao eleger Luiz Alves como o seu companheiro, a moça

afirmava a escolha diligente de ver-se livre da rede de proteção proporcionada pela

matriarca protetora/opressora, sinalizando a favor de uma nova experiência de vida,

avessa aos laços/amarras do patriarcalismo, e que oxalá pudesse livrá-la de ver-se

prostrada diante de um marido janota.

Nesse momento, faz-se imprescindível que retomemos o enredo de Sonhos

d´ouro (1872) para reestabelecermos as linhas de nosso raciocínio. No derradeiro

capítulo do romance de José de Alencar, quando acompanhamos a moribunda Guida, de

joelhos, a implorar que Ricardo a salvasse de um sofrimento amoroso que a reduzira a

um farrapo humano; entrava em curso uma guinada na narrativa, que anulava toda a

insolência que teria marcado a personagem até então, tornando-a compatível com o

perfil feminino romântico, casadoiro e subjugado pelas desilusões amorosas. O

casamento, neste caso, era apresentando como única possibilidade de salvação/redenção

para a personagem em questão.

Reverberando algo do desfecho de Sonhos d´ouro, no último capítulo do

folhetim A mão e a luva, Machado também cuidaria de casar seus protagonistas,

proporcionando o aprazível happy end esperado por todos nós e, possivelmente,

colocando um ponto final ao diálogo travado com Alencar, mas aproveitando-se para

sinalizar com uma noiva de ares mais resolutos e altivos. No excerto abaixo, os recém-

casados se elogiavam mutuamente, sendo que Luiz Alves admitia identificar em

Guiomar uma ―força nova‖ capaz de alimentar a sua própria ambição. De pronto, e

esbanjando graciosidade, a jovem esposa barganhava em troca de sua benfazeja

companhia e, divertindo-se com a pilhéria proposta, o marido terminaria acenando com

uma oferta descaradamente impregnada de autoelogio varonil. Segue:

O destino não devia mentir nem mentiu à ambição de Luís Alves.

Guiomar acertara; era aquele o homem forte. Um mês depois de

casados, como eles estivessem a conversar do que conversam os

recém-casados, que é de si mesmos, e a relembrar a curta campanha

do namoro, Guiomar confessou ao marido que naquela ocasião lhe

conhecera todo o poder da sua vontade.

— Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que,

assentado, a escutava.

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193

— Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter

percebido que sou uma e outra coisa.

— A ambição não é defeito.

— Pelo contrário, é virtude; eu sinto que a tenho, e que hei de fazê-la

vingar. Não me fio só na mocidade e na força moral; fio-me também

em você, que há de ser para mim uma força nova.

— Oh! sim! exclamou Guiomar.

E com um modo gracioso continuou:

— Mas que me dá você em paga? Um lugar na Câmara? Uma pasta de

ministro?

— O lustre do meu nome, respondeu ele.

Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas

suas, deixou-se cair lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas

ambições trocaram o ósculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como se

aquela luva tivesse sido feita para aquela mão.424

Apesar do destino ter sido generoso com Luiz Alves, fora Guiomar quem

―acertara‖ na escolha do marido. Ou seja, negando as vicissitudes romanescas e

reafirmando o traquejo liberal que envolve toda a trama, o narrador esclarecia que o

enlace se dera por engenho da protagonista. Por isso, e em tom de zombaria, a moça

exigia uma recompensa em troca de sua auspiciosa presença, sugerindo para tanto

qualquer bagatela referente ao universo do poder público restrito aos homens: uma pasta

de ministro; quem sabe um lugar na Câmara. Em contrapartida, Luiz Alves lhe

ofereceria uma prenda factível ao ensejo do casamento, e ao lugar social supostamente

reservado ao gênero feminino na época: a condição de ―mulher bem casada‖, ou, em

outras palavras, ―o lustre de seu nome‖. Satisfeita, a moça que sempre estivera em pé - e

não ajoelhada - defronte do rapaz, permite-se cair sobre os seus joelhos, demonstrando

todo o seu contentamento.

Colocando limites ao ego inflado do marido em questão, vale lembrar que, Luiz

Alves não pertencia às fileiras enobrecidas e/ou endinheiradas da alta sociedade

fluminense oitocentista. Ao descrever a moradia do vizinho da baronesa, o narrador

enfatizava: ―A casa de Luiz Alves ficava quase no fim da praia de Botafogo, tendo ao

lado direito outra casa, muito maior e de aparência rica.‖425

. É verdade também que ele

não poderia ter origem pobre, afinal, morava no conhecido bairro de chácaras, possuía

ao menos um escravo426

, e estudara Direito em São Paulo. Contudo, sempre sequioso da

influência política e social proporcionada pela vizinha matriarca, e chegando a exercer o

424

ASSIS, Machado de. ―Conclusão‖ (capítulo XIX). A mão e a luva. O Globo. Ibidem. 425

ASSIS, Machado de. ―Um roupão.‖ (capítulo II). A mão e a luva. O Globo, Rio de Janeiro, 28 de

setembro de 1874, p.1, nº 55. 426

―Sentou-se o bacharel em um banco que ali achou, recebeu a xícara de café, que o escravo lhe trouxe

daí a pouco, acendeu um charuto e abriu o livro.‖ (ASSIS, Machado de. ―Um roupão.‖ (capítulo II). A

mão e a luva. O Globo. Ibidem.)

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194

papel de ―bajulador/conciliador‖ em tal núcleo familiar em determinados momentos427

;

pode-se concluir que o esposo de Guiomar ainda não possuía luz própria, tampouco

poder para iluminar aqueles que estivessem ao seu redor.

Nesse sentido, nos parece relevante sublinhar que, em oposição ao romance

alencariano, o tema do casamento na obra de Machado de Assis denota matizes

interpretativas para além da tópica da ―redenção feminina‖. Por conseguinte, e muito

embora ressoem sentidos retrógrados no desencorajamento das mulheres à vida pública,

e na ideia conformista do devir matrimonial; deve-se enfatizar também que o enlace em

A mão e a luva se dá a partir de novos termos, menos passionais e socialmente mais

equânimes. Acreditamos que tal interpretação se conjuga aos signos de modernidade

experienciados à época, e que se encontram presentes no suporte jornalístico O Globo.

Dessa forma, faz-se necessário rastrear no periódico os sentidos conferidos ao tema do

casamento e à condição social desfrutada pela mulher casada em tal historicidade. Nesse

trajeto, o tema da inserção feminina ao universo econômico, - pelo meio indireto do

matrimônio ou através do trabalho assalariado - também servirá de norte às reflexões

que seguimos propondo.

***

No Brasil do século XIX, mesmo após o processo de ruptura com o marco

institucional português, ainda se encontravam em vigência as Ordenações Filipinas

(1603)428

, legislação esta que perdurou até o advento do Código Civil em 1916.

427

No episódio da iminente viagem da Baronesa para Cantagalo, Jorge recorreria a Luiz Alves para

persuadi-la a desistir da empreitada, tendo-se em vista que, o afastamento da senhora e de Guiomar da

Corte ao longo de meses, poderia esfriar a ideia de casamento insistentemente acalentada pelo tal

sobrinho:

―[...] Ora, o que Jorge vinha propor era, - expressões dele, - uma conjuração de amigos para dissuadir a tia

daquele projeto. Afiançava ao advogado que, ainda descoberta a conjuração, teria ele a vida sã e salva.

Luiz Alves supôs a princípio que aquilo era um simples pretexto; mas, tendo observado que a bela

Guiomar não era indiferente ao rapaz, compreendeu que este tinha na conjuração proposta, um interesse

inteiramente pessoal. Enfim, Jorge chegou a confessar que, se a tia insistisse em sair da Corte, ele não

tinha remédio senão acompanhá-la.

O acordo não foi difícil; ficou assentado que fariam todos os esforços para dissuadir a baronesa. Jorge

quis sair logo; reteve-o Luiz Alves algum tempo mais, com expressões de louvor habilmente tecidas e

mais habilmente encastoadas na conversação; e também deixando-se ir à feição do espírito dele,

aceitando-lhe as ideias e os preconceitos, e aplaudindo-os discretamente, - sério, quando eles o eram ou

pareciam ser, - chocarreiro quando vinham com ar de graça, - respondendo enfim a todos os gestos e

meneios do outro, como faz o espelho por ofício e obrigação: - toda a arte em suma de tratar os homens,

de os atrair e de os namorar, que ele aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na vida

pública.‖ (ASSIS, Machado de. ―A viagem‖ (capítulo XII). A mão e a luva. O Globo. Op. Cit.). 428

Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733 [Acesso em fevereiro/2019].

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Conforme informa Hildete Pereira de Melo & Teresa Cristina de Novaes Marques429

, tal

compilação jurídica inaugurava uma longa tradição que se prolongou por muitos anos

no direito brasileiro, baseada numa concepção negativa da condição feminina, - o

fragilitas sexus - e que arbitrava que a mulher deveria ser mantida sob o jugo do pai ou

do marido. Entretanto, faz-se imprescindível conhecermos os meandros da letra da lei

para que possamos elucidar tal questão.

Por exemplo, ao optar pelo casamento, se não houvesse um acordo pré-nupcial

estabelecido, a mulher sempre usufruía da condição de meeira do esposo, tornando-se,

portanto, herdeira legítima da metade dos bens acumulados pelo casal ao longo da

união. Ademais, se os pais da noiva lhe concedessem um dote, - ou seja, o adiantamento

de sua legítima na herança familiar - tal patrimônio passava às mãos do marido, a quem

cabia a responsabilidade de administrá-lo como bem entendesse. Todavia, imbuído

apenas do direito de posse, o esposo não estava autorizado a alienar ou hipotecar tais

bens, e estes deveriam ser obrigatoriamente restituídos à mulher no caso de falecimento

do cônjuge. E, se nos atentarmos ao obituário d´O Globo, não teremos dificuldades em

encontrar casos desta natureza:

Testamento: Faleceu ontem à meia-noite, na rua Fluminense nº 12, em

Paula Mattos, José Gonçalves de Macedo, católico apostólico romano,

natural de Portugal, batizado na freguesia de S. Miguel do Monte,

bispado de Braga, conselho de Fafe, filho legítimo de Francisco José

Gonçalves, e de Maria Gonçalves de Macedo, sendo aquele já

falecido, casado com D. Fausta Augusta de Oliveira.

[...] Deixou à sua mulher D. Fausta, além do dote a que tem direito,

os prédios ns. 14 e 14 A da rua do Mattoso e Travessa do Cabido, dos

quais gozará em sua vida, não podendo vender, hipotecar ou permutar

sem consentimento dos testamenteiros, e caso combinem vender para

compra de outros bens será deles usufrutuária, passando por sua

morte, aos seus legítimos herdeiros com a condição de celebrar 300

missas pela sua alma, fazendo os referidos herdeiros o enterro da

usufrutuária com decência, caso não cumpram essas cláusulas

passarão os bens para a Santa Casa de Misericórdia desta Corte.430

Porém, e ainda de acordo com Hildete P. de Melo & Teresa C. de N. Marques,

há de se advertir que, no cotidiano hostil e imponderável das práticas, eram inúmeros os

casos de mulheres ludibriadas que terminavam por perder completamente o controle dos

próprios bens. Por outro lado, também vale dizer que a condição da solteirice poderia

429

MELO, Hildete Pereira de & MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. ―A partilha da riqueza na ordem

patriarcal.‖ Revista de Economia Contemporânea. Rio de Janeiro, 5(2): 155-179, jul./dez. 2001. 430

[Grifo nosso]. ―Testamento.‖ O Globo, Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1874, p.2, nº 82.

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196

ser ainda mais cruel, uma vez que, sempre salvaguardadas pelos genitores, muitas vezes,

tais mulheres terminavam reféns da boa vontade dos irmãos, estes que eram

tradicionalmente privilegiados pelos costumes sociais.

Não obstante, ao longo do processo histórico até a instituição do Código Civil no

século XX, entraram em vigência outras legislações específicas, que buscavam atender

às demandas sociais não contempladas pelas velhas Ordenações Filipinas. De maneira

prioritária, elencamos a elaboração da Carta Constitucional que, restrita à questão da

restruturação política do Império no período pós-independência, resultou na

Constituição outorgada em 1824. Em seguida, e conforme discorremos

anteriormente431

, em 1831, quando o nosso primeiro Código Penal entrava em vigor,

fortalecia-se a máxima da igualdade dos indivíduos perante a lei, ao mesmo tempo em

se enfraquecia o caráter corporativo da família patriarcal. Dessa maneira, se antes a

célula familiar respondia pelos crimes de seus membros, a partir de então o indivíduo

passava a responder sozinho por quaisquer infrações às leis. Além disso, também

passava a vigorar o rebaixamento da idade de maioridade para 21 anos, com

emancipação automática, ou, sem a necessidade de processo judicial ou casamento para

tal. Seguindo adiante, em 1850, em atenção aos reclames dos comerciantes brasileiros

que exigiam a elaboração de um corpo de leis que regulasse as relações contratuais

referentes à tal classe, foi promulgado o Código Comercial que, entre outras novidades,

previa a condição inédita da ―mulher comerciante‖. Dito isso, vamos à boa nova em

detalhes:

TÍTULO I

Dos Comerciantes

Capítulo I

Das Qualidades Necessárias para ser Comerciante:

Art. 1 - Podem comerciar no Brasil:

[...] 4 - As mulheres casadas maiores de 18 (dezoito) anos, com

autorização de seus maridos para poderem comerciar em seu próprio

nome, provada por escritura pública. As que se acharem separadas da

coabitação dos maridos por sentença de divórcio perpétuo, não

precisam da sua autorização.

Os menores, os filhos-famílias e as mulheres casadas devem inscrever

os títulos da sua habilitação civil, antes de principiarem a comerciar,

no Registro do Comércio do respectivo distrito.

431

Retomar página 165 deste trabalho. (Cf.: NAZZARI, Muriel. (2001). Op. Cit.).

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197

[...] Capítulo IV

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 27 - A mulher casada comerciante não pode obrigar, hipotecar ou

alhear os bens próprios do marido adquiridos antes do casamento, se

os respectivos títulos houverem sido lançados no Registro do

Comércio dentro de 15 (quinze) dias depois do mesmo casamento

(artigo nº. 31), nem os de raiz que pertencerem em comum a ambos os

cônjuges, sem autorização especial do marido, provada por escritura

pública inscrita no dito Registro.

Poderá, porém, obrigar, hipotecar e alhear validamente os bens

dotais, os parafernais, os adquiridos no seu comércio, e todos os

direitos e ações em que tiver comunhão, sem que em nenhum caso

possa alegar benefício algum de direito.

Art. 28 - A autorização para comerciar dada pelo marido à mulher

pode ser revogada por sentença ou escritura pública; mas a revogação

só surtirá efeito relativamente a terceiro depois que for inscrita no

Registro do Comércio, e tiver sido publicada por editais e nos

periódicos do lugar, e comunicada por cartas a todas as pessoas com

quem a mulher tiver a esse tempo transações comerciais.

Art. 29 - A mulher comerciante, casando, presume-se autorizada pelo

marido, enquanto este não manifestar o contrário por circular dirigida

a todas as pessoas, com quem ela a esse tempo tiver transações

comerciais, inscrita no Registro do Comércio respectivo, e publicada

por editais e nos periódicos do lugar.432

Num mundo em que as mulheres ainda amargavam as heranças sociais tacanhas

do colonialismo, o Código Comercial deve ser apresentado como um avanço

significativo em direção à igualdade de direitos entre os sexos no âmbito jurídico.

Reafirmando o conteúdo do excerto, as mulheres casadas, maiores de 18 anos e com

autorização prévia do marido, estavam aptas a exercerem o papel de comerciantes. As

separadas da coabitação dos maridos por ―sentença de divórcio perpétuo‖433

- e é

importante dizer que, em decorrência do patriarcalismo, os casos não eram comuns à

432

[Grifo nosso]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L0556-1850.htm [Acesso em

fevereiro/2019]. 433

Evitando-se qualquer confusão em relação ao uso do termo divórcio, esclarecemos que a ―Lei do

Divórcio‖ foi sancionada no Brasil apenas em 1977, e o que se compreende como ―divórcio‖ no século

XIX, além de estar a cargo da Igreja Católica, previa somente a separação de toro (leito conjugal) e mútua

coabitação, uma vez que não havia a possibilidade de rompimento do vínculo matrimonial, tampouco a

autorização para se contrair novas núpcias. (Cf.: AMARAL, Isabela Guimarães Rabelo do. ―Divórcio e

nulidade de matrimônio: uma forma de reação feminina‖. Resistência feminina no Brasil oitocentista: as

ações de divórcio e nulidade de matrimônio no bispado de Mariana. Dissertação (Mestrado em Direito).

Universidade Federal de Minas Gerais, 2012, p.125-205).

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época434

- eram dispensadas da necessidade de autorização masculina. Fora isso, e

embora arbitrados pelo Direito Canônico, os casamentos geralmente seguiam um

protocolo semelhante ao regime de comunhão de bens435

, todavia, e reproduzindo as

práticas portuguesas, costumava prevalecer a autoridade marital na sociedade conjugal,

sendo assim, era esperado que a mulher não pudesse dispor dos bens adquiridos pelo

parceiro antes do casamento, tampouco dos que pertenciam em comum a ambos os

cônjuges. Porém, e surpreendentemente, a legislação comercial propunha uma brecha

oportuna à experiência feminina: a possibilidade de acesso aos bens dotais. Em outras

palavras, dispensando-se a desventura da viuvez, a esposa comerciante poderia

apoderar-se do seu quinhão na herança familiar.

Passados mais de vinte anos desde a aprovação do Código Comercial, o recém-

inaugurado jornal O Globo abordava os pormenores da legislação. O interesse em trazer

o código a lume certamente poderia ser explicado pela temática econômica que,

conforme dito, encontrava-se no cerne do projeto editorial do veículo jornalístico. Além

disso, e conforme demonstrado por Julio Bentivoglio436

, ao longo da segunda metade do

século XIX, especialmente a partir de 1850, devido ao fim do tráfico negreiro, seria

notável, sobretudo na Corte, o aumento exponencial do capital circulante oriundo das

atividades comerciais (uma vez que a terra era compreendida como capital fixo), daí a

necessidade de adoção de instrumentos jurídicos para regulamentação do setor em

específico.

Dito isso, vamos ao primeiro texto publicado no periódico acerca do tema. Com

a intenção deliberada de provocação, o longo escrito datado de agosto de 1874 era

iniciado com a seguinte epígrafe: ―A mulher casada pode ser negociante?‖. Dessa

maneira, numa tônica que misturava oposição e desconfiança, o redator seguiria

expressando o posicionamento defendido pelo Globo:

434

O ―divórcio‖ somente era permitido em casos de adultério ou de sevícias graves. E, de acordo com

Isabela Guimarães Rabelo do Amaral: ―Se o divórcio fosse decretado, trazia como efeito imediato a

separação material dos cônjuges, ficando o cônjuge inocente liberado da obrigação de viver conjunta e

inseparavelmente do outro cônjuge. Entretanto, cabe ressaltar que a sentença de divórcio não transitava

em julgado. Logo, os cônjuges poderiam se reconciliar a qualquer momento. Na esfera civil, em virtude

do divórcio cessava o poder marital, a mulher readquiria sua capacidade jurídica, os bens eram divididos

e partilhados, segundo o regime de bens, como se um dos cônjuges fosse morto, e os filhos continuavam

sob o poder do pai, embora a mãe fosse obrigada a amamentar e criar os filhos até os três anos de idade.‖

In: AMARAL, Isabela G. R. do. Ibidem, 2012, p.134. 435

À época, e seguindo as regras estabelecidas pelo Concílio de Trento (1545 - 1563), os casamentos

eram realizados pela Carta de Ametade, ou seja, com comunhão de bens. 436

BENTIVOGLIO, Julio. ―Elaboração e aprovação do Código Comercial Brasileiro de 1850: debates

parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850).‖ Justiça e História, vol.5, nº 10, 2005, p.1-23.

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199

REVISTA JURÍDICA – A mulher casada pode ser negociante? –

Segundo a doutrina expressa no nosso Código Comercial, (art.1 º, n.

4) as mulheres casadas maiores de dezoito anos podem comerciar em

seu próprio nome, uma vez autorizadas por seus maridos em virtude

de escritura pública.

Estabelece que a mulher casada assim autorizada pode obrigar,

hipotecar e alhear validamente os bens dotais, os parafernais, os

adquiridos no comércio e todos os direitos e ações em que tiver

comunhão, sem que nenhum caso possa alegar algum benefício de

direito.

Esta disposição toda ela em proveito do comércio, é de pernicioso

efeito e triste resultado para a segurança, ordem e estabilidade da

família, como tem sido entendida e julgada.

O direito comum, tratando do regime dos bens no casamento,

estabelece o da comunhão, chamado pela antiga Ordenação – regime

de costumes e leis do reino, e o regime dotal ou de exceção.

Esta distinção fundava-se em conceder à mulher fraca e sem apoio

uma garantia de futuro, pondo em precaução os meios protetores para

ela e para a família, lançando mão do regime dotal que, tornando

inalienável os bens dotais, não privava a família do recurso de

presente que lhe dava o rendimento, não a inutilizava no futuro,

porque lhe assegurava a propriedade.

Sem constituir uma regra e sim exceção – o regime dotal dava ao pai

laborioso a segurança de que o fruto do trabalho legado à filha dileta

de seu coração, estava garantido das eventualidades da sorte, do

desperdício do luxo, e o que ainda mais doloroso é, das loucuras do

marido, que abandona a esposa e os filhos para tudo sacrificar aos

prazeres de uma vida dissoluta, de prazeres que embriagam, mas que

levam depois ao desespero nos dias da desventura e do abandono.

O juiz de órfãos repousava tranquilo em sua consciência dando arras à

fortuna da órfã entregue a seus desvelos, a seu cuidado e sua proteção,

pai pela lei que vela cuidadosamente na sorte daquela que já não tem

braços que a defenda, coração que a ame com desinteresse,

conselheiro experimentado que a dirija nas tortuosas sendas da vida.

A sociedade enfim tinha os meios de estabilidade da família, que

recebe apoio pelo menos em seus verdes anos por um regime

garantidor.

Desde, porém, que a mulher pode ser autorizada por seu marido a ser

comerciante, e desde que com essa qualidade tem o direito de

sacrificar a fortuna que lhe foi legada com a condição de resistir às

desgraças voluntárias ou involuntárias que acompanham a fraca e

apaixonada humanidade, destruído completamente fica o regime

consolidador e protetor da família.

E se em tese o princípio do código facultando a revogação e

privilégios do regime dotal é de fatal resultado, maior é ele quando se

vê e se sabe por testemunho diário, o abuso a que dá lugar por não ter

sido definido praticamente como devia ser.

Tem-se entendido, e por assim dizer passado como certo, que a

faculdade de alienar os bens dotais se dá apenas recebendo a mulher

casada autorização de seu marido para comerciar, e matriculando-se

nesta qualidade no respectivo tribunal de comércio.

Muitas fortunas colossais que por aí têm sido legadas a filhas por pais,

que descem ao túmulo certos de lhe terem garantido o futuro,

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200

desaparecem; muitas legítimas, que juízes de órfãos pensam ter

acautelado com todo o critério e prudência, têm-se evaporado – graças

a facilidade de se transformar a mulher casada em comerciante pela

doutrina do nosso Código Comercial.

[...] Cumpre que o legislador atenda para os perigos a que se acha

exposta a família entre nós, com a doutrina do nosso código,

facultando que a mulher casada, com autorização de seu marido possa

ser comerciante, e que recebendo essa qualidade pelo simples fato de

autorização e matrícula no tribunal do comércio, fique habilitada, sem

realmente praticar ato algum de comércio, e fazer alienação de seus

bens dotais só por sua livre vontade e ação.

Melhor fora que o regime dos bens do matrimônio fosse todo o de

comunhão – abolindo-se o regime dotal do direito comum, porque

então os males eram consequência da verdade da instituição e não de

uma ilusão feita à essa verdade, por meio de um sistema, que não

existe realmente desde que o homem tem os meios de seduzir e talvez

dominar sua pobre mulher, arrancando-lhe a alienação de seus bens.

Esta matéria merece todo o estudo e consideração, aí fica esboçada

ligeiramente para ser tratada e tomada em consideração pela maestria

de preclaro jurisconsulto, que se acha incumbido de apresentar o

nosso futuro Código Civil, umas das mais palpitantes necessidades

que experimenta há muitos anos a nossa sociedade.437

Conforme advogado quase que à exaustão, a condição da mulher comerciante e

o consequente acesso da mesma aos bens dotais significava uma enorme ameaça à

estabilidade da instituição familiar. De acordo com o texto, o dote, compreendido como

uma garantia para a filha proporcionada pelo pai laborioso, deveria continuar sendo

mantido sob proteção do ―cabeça do lar‖: o marido. De antemão, deve-se notar que,

apesar de os bens dotais consistirem no adiantamento da herança familiar, à qual a filha

tinha direitos legítimos, o redator d´O Globo parecia interpretar tal prática como uma

espécie de ato benevolente do genitor em relação à prole feminina. Num segundo

momento, e recorrendo aos argumentos subjetivos dos ―prazeres que embriagam‖ e das

―eventualidades da sorte‖, o excerto admitia que, os tais maridos guardiões de fortunas

alheias também poderiam e, constantemente, colocavam, tudo a perder; no entanto, o

perigo inexorável ao patrimônio familiar se referia estritamente à mulher, vista como

―fraca‖, inapta para os negócios e incapaz de gerir a própria vida.

Por fim, e numa viravolta curiosa, o redator insinuava que muitas mulheres,

cientes dos processos legais, fraudavam o sistema e, apesar de não exercerem nenhuma

atividade relacionada aos negócios, efetuavam a matrícula no Tribunal do Comércio,

tornando-se, portanto, aptas para alienar os bens dotais ―só por sua livre vontade e

437

(Autor desconhecido). REVISTA JURÍDICA - ―A mulher casada pode ser negociante?‖ O Globo, Rio

de Janeiro, 24 de agosto de 1874, p.2, nº 20.

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ação‖. Conforme dito, sabemos que a autorização marital era indispensável para o

trâmite, ainda assim, e conforme demonstraremos, talvez a acusação dos redatores d´O

Globo tivesse algum fundamento.

Pouco tempo depois, em setembro de 1874, o mesmo debate retornaria às

páginas do periódico e, mais uma vez, os publicistas demonstravam uma postura

combativa em relação à presença feminina nas lidas do comércio:

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Neste tribunal foi proferido

o acórdão da revista nº 8.514, já publicado no Globo nº 17, que

estabelece a seguinte doutrina: Que uma mulher casada para alienar,

hipotecar, ou transigir com seus bens dotais, não basta ter

autorização de seu marido para comerciar por escritura pública, e

que seja matriculada como negociante em um tribunal de comércio, é

preciso mais que faça profissão habitual do comércio, e que a

alienação ou hipoteca seja feita em proveito do comércio.

Merece-nos todo o respeito e consideração a sabedoria dos primeiros

magistrados do Império, mas pesa-nos dizer que com esta doutrina o

supremo tribunal legislou e não julgou.

Que a doutrina expendida pelo venerando tribunal é a melhor, não há

que duvidar; que a lei, porém, que rege a matéria não a contém,

também se não pode contestar – e assim já o demonstramos em nossa

revista publicada neste jornal. Se a lei, porém, é má, nem por isso está

o magistrado autorizado a torna-la boa; se tem lacunas, não compete

aos tribunais supri-las.

[...] Sempre se entendeu que a mulher casada maior de dezoito anos,

tornava-se negociante uma vez que seu marido lhe dava autorização

por escritura pública, e que era matriculada em um tribunal de

comércio.

Sempre se entendeu que assim revestida desse título legal de

negociante recebia o direito de dispor de seus bens dotais – ainda

quando não fizesse ato algum de mercancia, ou profissão habitual de

comércio.

E assim sempre se entendeu, e foi julgado, depois que o código do

comércio foi promulgado; porque na lei não existe essa restrição ou

declaração que o supremo tribunal lembrou-se de adotar no acórdão

citado.

[...] Tanto é negociante aquele que é simplesmente matriculado no

tribunal, como o que, sem ser matriculado faz profissão habitual de

comércio – as duas condições não operam conjuntamente – senão para

o efeito de gozar de proteção, que o código liberaliza em favor do

comércio – nada tem a ver, porém, com direitos que podem ser

exercidos, independente do concurso destas duas circunstâncias.

[...] Eis o grande perigo das doutrinas jurídicas inovadoras de juízes e

tribunais, trazer a desordem e o caos nas relações jurídicas do passado

e nas presentes já realizadas, e daí esses intermináveis pleitos que

perturbam os direitos que se julgam os mais bem consolidados pela

tradição sempre constante, e pela diuturnidade de apreciação, e que

são fulminados de um momento para outro.

[..] Não basta definir as relações jurídicas, é preciso que a doutrina do

poder judiciário que hoje firma um princípio não o reforme amanhã, é

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preciso que a praxe e estilo de julgar que constitui costume pela

tradição, garantindo os contratos celebrados in bona fide dessa

tradição, não seja a todo momento alterado.

Na ausência da lei não há sociedade: na contradição das doutrinas há

perturbação social – no desprezo da tradição e do costume toca-se à

anarquia.438

O texto tocava num ponto crucial da lei: não havia menção sobre a mulher ter de

usar o dote em proveito do comércio, muito embora a vinculação estivesse

supostamente - mas não obrigatoriamente - subentendida. Nesse sentido, por vezes

cabia ao poder judiciário preencher as lacunas deixadas pelo legislativo, sentenciando

acórdãos que pudessem servir de inspiração para casos análogos. Fora isso, e ainda de

acordo com o Globo, se a lei não estabelecia limites claros sobre os usos do dinheiro

pelas mulheres, logo, estávamos à beira de um estado de exceção, ou de uma ―anarquia‖

na qual os maridos perderiam o poder de pensar, decidir e agir pelas esposas. Enfim, ao

que parece, o Código Comercial (1850) trazia consigo uma espécie desierarquização de

costumes patriarcais consagrados pela tradição.

E se partirmos para o exame de outros documentos da época, talvez possamos

elucidar um pouco melhor as oposições sinalizadas pelos jornalistas. Os escritos

referentes à burocracia do Tribunal do Comércio da Corte encontram-se disponíveis

para consulta no Arquivo Nacional-RJ e, debruçando-nos sobre o Fundo/Coleção –

―Série Indústria e Comércio‖439

, tivemos a oportunidade de acessar os registros que

tratavam das matrículas dos comerciantes. Propondo um recorte temporal compatível

aos interesses de nossa tese, informamos que, em 1870, algumas poucas mulheres

começariam a figurar entre os varões matriculados; posteriormente, a partir da década

de 1880, a presença feminina se tornaria ainda mais numerosa; e, no período

republicano, elas passariam a contar com livros de registros quase exclusivos,

verdadeiros calhamaços dedicados aos ―Títulos de Habilitação Civil dos menores filhos,

famílias e mulheres comerciantes‖.440

. Dessa forma, é importante pontuar que os

redatores d´O Globo presenciavam o início de um crescimento exponencial da presença

das mulheres no métier comercial. 438

(Autor desconhecido). SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. O Globo, Rio de Janeiro, 03 de

setembro de 1874, p.2, nº 30. 439

ANRJ. Fundo/Coleção - ―Série Indústria e Comércio.‖ (Código de Referência: BR NA, Rio - Código

do Fundo: 9 X). 440

ANRJ. Livro 1º - Tomo 15º - ―do registro dos títulos de habilitação civil dos menores filhos, famílias e

mulheres comerciantes‖ - Junta Comercial da Capital Federal, 10 de julho de 1895. [Fundo/Coleção -

―Série Indústria e Comércio.‖ (Código de Referência: BR NA, Rio - Código do Fundo: 9 X - Notação do

documento: IC³ 107)].

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No processo de varredura de tais manuscritos referentes à década de 1870,

notamos que, apesar da condição de ―mulher casada‖ ser imprescindível para a

efetuação do registro, não havia a obrigatoriedade da assinatura do marido para a

chancela do trâmite. Aliás, e conforme sugerido no Artigo 29 do Código, em casos de

uniões que envolvessem homens previamente inscritos como comerciantes, era

pressuposto o direito da esposa poder comerciar. Dito isto, talvez a desconfiança

incutida pelo Globo em relação às mulheres que falseavam documentos públicos

matriculando-se à revelia de seus maridos, tivesse o seu quê de verdade, ou, no mínimo,

o seu tanto de coerência. O fato é que a lei e o cotidiano de suas práticas eram frágeis

aos espíritos feminis astutos. Exemplificando o modelo do ofício à época, abaixo

transcrevemos integralmente os casos de Rita Maria, responsável por um comércio de

fazendas e armarinhos, e de Carolina, responsável por um comércio de importações:

Nº 4309 – Rita Maria da Conceição Bourroul, de idade de 46 anos,

cidadã francesa, natural da França, domiciliada e estabelecida na

cidade de São Paulo da província de mesmo nome com comércio de

fazendas e objetos de armarinhos, foi nesta qualidade admitida a

matrícula, publicada esta na data à margem [1875] e sua carta

registrada a of. 169 do livro 1º tomo 7º do registro competente.441

Nº 4627 – Carolina Maynnh de Azevedo, de idade de 30 anos, cidadã

brasileira, natural da província do Rio de Janeiro, domiciliada e

estabelecida nesta Corte com comércio de importação e comissões, foi

nesta qualidade admitida à matrícula, publicada esta na data à margem

[1877] e sua carta registrada of. 468 do livro 1º tomo 7º do registro

competente.442

Ainda sobre tal questão, no pequeno - porém, não inexpressivo - universo das

matrículas femininas, somente nos casos que tratassem de sociedades comerciais

notamos a indelével presença dos homens. Ou seja, até o fim da década de 1870, não

temos registros da presença masculina em termos de responsabilidade marital, ou como

testemunhas comumente exigidas em escrituras públicas. Citamos o exemplo da Sr.ª

Maria Wellesch que, em sociedade com os filhos, esteve à frente de um negócio de

armarinhos:

441

ANRJ. Livro 1º - Tomo 7º - ―do registro das cartas de matrícula dos comerciantes‖ - Junta Comercial

da Capital do Império. (Código de Referência: BR NA, Rio - Código do Fundo: 9 X - Notação do

documento: IC³ 9, p.167). 442

ANRJ. Livro 1º - Tomo 7º (Código de Referência: BR NA, Rio - Código do Fundo: 9 X - Notação do

documento: IC³ 9, p.09).

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Nº 4632 – M. Wellesch & Filhos, firma social estabelecida na cidade

do Rio de Janeiro com comércio de objetos de armarinho para atacado

e varejo nesta praça, foi nesta qualidade admitida à matrícula,

publicada esta na data à margem [1877], sendo sócios Maria

Wellesch, Alberto Wellesch e Hermann Wellesch, súditos húngaros

domiciliados na mesma cidade, e sua carta registrada of. 469 do livro

1º tomo 7º do registro competente.443

Em meio à poeira dos Livros de Matrículas, vez ou outra também nos deparamos

com Cartas e Escrituras de Compra e Venda envolvendo cônjuges comerciantes. Abaixo

segue um trecho de escritura de venda, datada de 1875, e estabelecida entre dois casais.

As esposas são citadas como proprietárias meeiras dos imóveis. Dessa forma, pode-se

notar que o vínculo matrimonial garantia que tais mulheres fossem salvaguardadas em

tais negociações:

Escritura de venda de três prédios térreos enumerados dezoito, vinte e

vinte e dois na rua do Barão da Gamboa que faz Antonio Rodrigues

Pichel, e sua mulher [sem transcrição do nome] à Vicente de Paula

Felício dos Santos, e sua mulher Dona Maria Henriqueta Monteiro dos

Santos, com salvaguarda.444

Posteriormente, já no período republicano, as formalidades para a matrícula da

mulher comerciante seriam alteradas, e o marido tornar-se-ia responsável pela tutela da

esposa. Em outras palavras, o cerco começava a se fechar, e se antes fazia-se vista

grossa à mulher casada que procurava pelo Tribunal do Comércio desacompanhada do

parceiro, a partir de então, a presença do casal e de testemunhas seria apresentada como

uma exigência:

Registro de escritura de autorização para comerciar que faz Álvaro

Pereira de Gouvêa à sua mulher Dona Marcellina Pereira de Araújo,

feito na data da margem [1897] sob número vinte e um mil novecentos

e noventa e quatro.

[...] perante mim Tabelião compareceram como outorgante Álvaro

Pereira de Gouvêa e como outorgada sua mulher Dona Marcellina

443

ANRJ. Livro 1º - Tomo 7º (Código de Referência: BR NA, Rio - Código do Fundo: 9 X - Notação do

documento: IC³ 9, sem página). 444

[Registro de escritura de venda de imóvel]. ANRJ - BR NA, Rio OI – Diversos GIFI – Caixas e

Códices.

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Pereira de Araújo, residentes nesta capital, conhecidos das

testemunhas abaixo nomeadas e assinadas.

[...] pelo outorgante me foi dito que reconhecendo na outorgada sua

mulher aptidão para comerciar, pelo presente instrumento e na forma

do parágrafo quarto do artigo primeiro do Código Comercial, lhe

confere autorização para poder comerciar em seu nome [...] ficando

portanto investida de todos os direitos, ônus e vantagens que

decorrerem legalmente desta autorização, visto como os capitais

empregados são de exclusiva propriedade da mesma outorgada, pelo

que os lucros que auferir não ficarão sujeitos à dividas ou encargos

dele outorgante, não podendo ele outorgante revogar a presente

autorização.445

Conforme visto, as regras previstas no Código Comercial também começariam a

ser mais esmiuçadas nas redações das escrituras, evidenciando-se de maneira mais

formal quais seriam os direitos dessas mulheres. Abaixo transcrevemos a matrícula de

Dona Maria Francisca, concedida pelo marido Raphael Lanza, na qual sublinhamos os

pormenores da legislação:

Registro de escritura de autorização para comerciar que dá Raphael

Lanza à sua mulher Dona Maria Francisca.

[...] E perante as mesmas testemunhas pelo outorgante me foi dito que

reconhecendo na outorgada, sua mulher, aptidão para a vida

comercial, na forma do parágrafo quarto do artigo primeiro do

Código Comercial lhe dá pela presente escritura autorização para

comerciar em seu nome individual ou constituir qualquer firma, em

qualquer gênero de comércio lícito e permitido pelas leis do país nesta

capital ou em outra qualquer parte desta República, e portanto com

todos os direitos e vantagens que decorrem desta autorização podendo

a dita sua mulher obrigar, hipotecar e alhear validamente quer os bens

que adquirir em seu comércio, quer todos os direitos e ações em que

tiver comunhão nos termos do artigo vinte e sete do Código

Comercial.446

Neste último caso, para além do 4º parágrafo do Artigo 1, que previa o álibi para

a mulher casada comerciar, notamos também a referência ao Artigo 27 do Código

Comercial, que previa o acesso aos bens dotais. Sendo assim, ficava devidamente

explicitada a cláusula que autorizava a mulher a lançar mão dos bens trazidos por ela ao

enlace matrimonial.

445

ANRJ. Livro 1º - Tomo 15º (Código de Referência: BR NA, Rio - Código do Fundo: 9 X - Notação do

documento: IC³ 107, p.75-76). 446

[Grifo nosso]. ANRJ. Livro 1º - Tomo 15º (Código de Referência: BR NA, Rio - Código do Fundo: 9

X - Notação do documento: IC³ 107, p.93-95).

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Vale elencar que, nos mesmos Livros dedicados quase que exclusivamente aos

registros das mulheres comerciantes, muitas vezes, no decorrer do arrolamento dos

bens, também eram citados os acordos pré-nupciais que as envolviam. E, em episódios

pontuais, geralmente quando o cônjuge já era comerciante matriculado, nos deparamos

com esposas que abriam mão de usufruir do direito de comerciar, sugerindo, mais uma

vez, as usuais práticas em torno da prerrogativa da extensão de tal permissão:

[...] A primeira outorgante cônjuge faz desde já expressa desistência

dos favores concedidos para comerciar pelo Código Comercial às

senhoras, visto não ter ela outorgante vocação para tal fim.447

[...] a desposada renuncia a faculdade de comerciar, assim como seu

futuro marido obriga-se pela presente a jamais conceder-lhe

autorização para esse fim.448

Por fim, e estabelecendo alguns arremates prévios a este item, até aqui podemos

concluir que o Globo trazia à baila um debate vigente à época que, grosso modo,

abordava as formas de acesso das mulheres aos próprios bens e/ou ao dinheiro de uma

maneira geral. Conforme exposto, o Código Comercial permitia que a mulher

desfrutasse de um status jurídico inédito que, em seu cerne, refutava a condição de

fragilus sexus prevista nas Ordenações Filipinas, admitindo que tal contingente

desfrutasse das benesses e dos infortúnios que envolviam o cotidiano mercantil. Além

disso, e acerca do acesso da mulher comerciante aos bens dotais, chegamos até aqui

enfatizando o desmonte hierárquico que a novidade poderia causar no interior do

microcosmo familiar oitocentista. Em suma, e para desgosto de nossos publicistas,

paradigmas patriarcais vistos como inegociáveis estavam sendo colocados em xeque em

tal conjuntura. Ainda assim, faz-se imprescindível que enfatizemos uma observação ao

debate em curso: a condição para o início desta transformação social chamava-se

casamento. Isto posto, e embora comumente associado à temática da subjugação

feminina, ponderamos que o acordo matrimonial também poderia ser abordado em seus

significados de proteção jurídica e de inserção da mulher ao universo econômico. E, a

partir do cenário apresentado, ousamos afirmar que haveria um ponto de inflexão no

qual o tema do casamento poderia tocar nos aspectos de uma experiência feminina um

447

[Registro de escritura antenupcial]. ANRJ. Livro 1º - Tomo 15º (Código de Referência: BR NA, Rio -

Código do Fundo: 9 X - Notação do documento: IC³ 107, p.84). 448

[Registro de escritura antenupcial]. ANRJ. Livro 1º - Tomo 15º (Código de Referência: BR NA, Rio -

Código do Fundo: 9 X - Notação do documento: IC³ 107, p.378-379).

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pouco mais autônoma, ou, pelo menos, mais distanciada das tantas vulnerabilidades que

rondavam a vida das mulheres sós no século XIX.

Seguindo adiante, e ainda através d´O Globo, também podemos nos aproximar

de outras experiências femininas relacionadas ao mundo trabalho. Conforme dito, no

contexto de especificidades do Brasil de então, ou seja, numa sociedade ainda marcada

pela escravidão e por práticas sociais que perpetuavam os imobilismos de um modelo

estamental, a atividade laboral proletária, e, portanto, sem o respaldo marital ou sem a

benção da família patriarcal, era evidentemente reservada às mulheres de origem pobre

ou média que, solteiras e/ou alijadas de círculos sociais relevantes, tinham de garantir a

própria sobrevivência - daí o estigma em torno do assunto: lembremos da cena de uma

Guiomar indisfarçavelmente ruborizada ao cogitar a possibilidade humilhante da labuta.

Num momento inicial, apropriadamente representado pelos movimentos da personagem

machadiana, a função do magistério passava a ser admitida como uma atividade

recomendável às mulheres ―honestas‖ e socialmente desamparadas. Dessa maneira, no

texto abaixo, publicado no jornal em agosto de 1874, temos notícias do funcionamento

de um educandário na província da Bahia, inteiramente dedicado ao acolhimento e

instrução de crianças pobres e órfãs. Aberta a ambos os sexos, a instituição era festejada

por seu caráter filantrópico, e por formar meninos para o exercício das mais diversas

funções serviçais e, especialmente, por receber meninas que, ao tomarem contato com

os ensinamentos de uma educação formal profundamente arraigada nos valores morais

prescritos pela Igreja Católica, se tornariam aptas para as funções tidas por feminis.

Seguem alguns trechos:

ESTUDOS ADMINISTRATIVOS – As províncias do Império –

BAHIA – XVII – Não são só as Santas Casas de Misericórdia,

destinadas ao curativo dos enfermos, que tornam bem palpáveis os

sentimentos caridosos do povo baiano; existem outras instituições

onde a caridade não é menos brilhante em seu exercício, e não menos

honrosa no seu fim: queremos falar dos colégios destinados a dar

educação ao órfão desvalido.

A educação e o ensino são ministrados por irmãs de caridade.

[...] Do que fica exposto resulta, [...] que a capital da Bahia apresenta

um colégio, onde 100 meninos recebem educação literária aprendem

ofício que muito útil lhes é na vida futura; e que 543 meninas

encontram meio de educação moral e civil, que enchendo os seus

corações de sentimentos de amor pelo bem, revela a seus espíritos a

verdade, habilitando-as assim a se tornarem boas mães de família,

habilitando muitas a seguirem o magistério, e a serem muito bem

acolhidas para o mesmo fim por famílias no interior da província.

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[...] A mendicidade tem sua razão de ser, que a melhor instituição não

pode corrigir nem impedir; o homem surpreendido pela doença no

meio do trabalho que lhe dá o pão da vida para si e sua família; a

mulher ainda mais infeliz, porque a esfera de sua atividade é muito

mais limitada – ficarão sem abrigo, sem roupa e sem pão, se a

caridade pública não se pode negar a esse dever, o mais apanágio do

coração humano; mas cumpre não confundir nessa classe ferida, por

assim dizer, pela sorte, o homem ou a mulher que cheios de vida, de

saúde e de forças aborrecem o trabalho, achando meio fácil para

existência na especulação da esmola – e muito menos o menino

desvalido, a quem desde tenra idade se inocula no coração o mais fatal

dos sentimentos – aborrecer o trabalho.449

Embora o texto reproduzido ofereça apenas uma amostra sobre a educação

feminina em tal contexto, optamos por destacá-lo pelo recorte escolhido: a formação de

jovens órfãs e pobres. Vale ponderar que, à época, mesmo entre as meninas que

contavam com o respaldo familiar, o acesso à educação formal estava longe de

apresentar-se como uma oportunidade democrática. De acordo com Heleieth Saffioti450

,

até a primeira metade do século XIX, eram raríssimas as instituições destinadas ao

ensino feminino; posteriormente, por volta de 1860, especialmente nos centros urbanos,

seria possível notar-se alguma inclusão feminina no que concerne ao ensino primário,

todavia, somente a partir do período republicano observaríamos uma mudança

realmente efetiva na equiparação entre os alunos e alunas que adentravam ao ambiente

escolar.451

Contudo, e retomando o texto retirado d´O Globo, a condição especial das

órfãs inspirava certa comoção social, daí o consenso favorável em relação ao

acolhimento de tais jovens que, incutidas da moral cristã, poderiam se tornar boas

esposas, mães exemplares, ou, no mínimo, preceptoras confiáveis às famílias ricas.

Enfim, deve-se notar que, longe de sugerir o magistério como um caminho para a

independência feminina452

, em tal retórica, notamos, na verdade, a edificação do

matrimônio e a recomendação do trabalho como recurso secundário.

449

(Autor desconhecido). ESTUDOS ADMINISTRATIVOS: ―As províncias do Império: Bahia‖. O

Globo, Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1874, p.1-2, nº 15. 450

SAFFIOTI. Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Rio de

Janeiro: Vozes, (2ª edição), 1976. 451

Destaca-se ainda que, por muitos anos, o acesso feminino manteve-se limitado ao período primário,

haja vista que o nível secundário era restrito ao acesso masculino - vide o exemplo do tradicional Colégio

Pedro II que, somente em 1907, teria entre seus formandos duas jovens alunas. 452

Muito embora possamos identificar no magistério os princípios de uma experiência social mais

autônoma para a mulher, especialmente no que se refere à presença feminina nos espaços públicos,

paradoxalmente, também podemos revelar no mesmo ofício um meio de continuidade do controle e da

repressão ao gênero. Conforme elucidado por Jane Soares de Almeida: ―O acesso à educação e a

possibilidade aberta às mulheres de exercerem uma profissão, representada pelo ensino de crianças de

tenra idade, revelaram-se como espaços para a continuidade da opressão de gênero. À medida que a

educação das mulheres possibilitou conservar nos lares, nas escolas e na sociedade, a hegemonia

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E, reforçando tal argumento, podemos trazer a lume outras evidências presentes

no jornal que nos levam a crer nessa perspectiva que conjugava mulheres

órfãs/desamparadas ao exercício do magistério. Por exemplo, há uma professora

anunciante que sempre se fazia presente nas páginas do periódico, D. Barbara Rufina da

Silva Gomes dos Santos Pereira. De início, os seus anúncios traziam uma breve

apresentação pessoal seguida da oferta de seus préstimos; porém, a partir de outubro de

1874, a conhecida mestra dos leitores d´O Globo passou a incluir na sua descrição a

condição ímpar da orfandade. Enfim, sugerimos que, ao acrescentar tal status, a

professora estivesse em busca de expor os aspectos de uma condição social

inegavelmente marcada pelo estigma da vulnerabilidade, além de tornar pública uma

filiação que pudesse associá-la a uma figura confiável, uma ―moça de família‖ aceitável

no espaço doméstico de seus possíveis contratantes:

O Globo, Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1874, p.04, nº 21.

masculina, se instaurou um paradoxo: detentores do poder econômico e político, os homens apropriaram-

se do controle educacional e passaram a ditar as regras e limites da instrução feminina e controlar seu

ingresso nas profissões que poderiam desempenhar. No ensino secundário elaboraram leis e decretos,

criaram escolas e liceus, compuseram seus currículos e programas, escreveram a maioria dos livros

didáticos e manuais escolares, habilitaram-se para a cátedra das disciplinas consideradas nobres e

segregaram as professoras a espaços femininos como Economia Doméstica, Música, Puericultura,

Culinária, Etiqueta e similares. As mulheres se encarregaram das salas de aula e do cuidado com crianças

pequenas, mantendo-se a mesma ordem vigente no arcabouço social e familiar; disciplinada pelos

homens, a educação das mulheres continuou um prolongamento da educação familiar, com o respaldo e bênção da Igreja Católica.‖ (ALMEIDA, Jane Soares de. ―Professoras virtuosas; mães educadas: retratos

de mulheres nos tempos da república brasileira (séculos XIX/XX).‖ Revista HISTEDBR On-line,

Campinas-SP, nº 42, p. 143-156, jun./2011 - ISSN: 1676-2584, p. 151).

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O Globo, Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1874, p.04, nº 82.

Vasculhando-se ainda o caderno de anúncios d´O Globo, também iremos nos

deparar com outras tantas referências que revelam um cotidiano de individualidades

femininas a se autogovernar: mulheres solteiras à procura de companheiras para dividir

os custos de um teto; parteiras disponibilizando-se para cuidar da saúde de outras

mulheres453

; famílias abastadas em busca de criadas estrangeiras; anunciantes que

espreitavam costureiras habilidosas por entre as leitoras do jornal:

O Globo, Rio de Janeiro, 09 de agosto de 1874, p.03, nº 05.

453

No século XIX, o parto e os cuidados para com a saúde da mulher, pertenciam a um universo

estritamente feminino. Assim, as parteiras, ou as mulheres que cuidavam de outras mulheres, eram

classificadas como ―leigas‖, ―examinadas‖ ou ―diplomadas‖. As ―leigas‖ eram as mais comuns, e

geralmente oriundas de setores mais populares; as ―examinadas‖ se referiam às parteiras que haviam sido

aprovadas na avaliação da Fisicatura-mor, e encontravam-se aptas perante o poder público para prestar

atendimento; e, a partir de 1832, teríamos as ―diplomadas‖, ou seja, aquelas que passaram a frequentar o

curso de obstetrícia na Faculdade de Medicina da Bahia ou do Rio de Janeiro. Cf.: BARBOSA, Giselle

Machado. ―Considerações preliminares sobre as parteiras legalizadas pela Fisicatura-Mor a partir dos

registros de confirmação de licenças (1808-1828).‖ Anais do XVI Encontro Regional de História da

Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas., (ISBN 978-85-65957-03-8), 2014, p.1-10. Ver, também:

MARTINS, Ana Paula Vosne. A medicina da mulher: Visões do corpo feminino na constituição da

obstetrícia e da ginecologia no século XIX. Tese (Doutorado em História) – IFCH/UNICAMP. Campinas,

2000.

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211

O Globo, Rio de Janeiro, 09 de agosto de 1874, p.04, nº 05.

O Globo, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1874, p.04, nº 81.

O Globo, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1874, p.04, nº 18.

A partir destes recortes, podemos sugerir a diversidade do público que consumia

o periódico. Dessa maneira, advertimos que, a ideia de um Globo restrito aos grandes

proprietários e ―sabichões de economês‖, muito provavelmente, era ilusão de uma

equipe editorial pouco hábil em compreender os (des)caminhos semióticos que

envolvem o aparato jornalístico. E, retomando-se a presença das trabalhadoras

anunciantes e anunciadas propriamente ditas, deve-se ressaltar a predominância de um

contingente feminino que, ao que tudo indica, encontrava-se inserido no contexto de

uma economia pobre e/ou mediana, restrita aos setores compreendidos como feminis

(magistério, obstetrícia, moda), e distanciado da realidade capitalizada das mulheres

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casadas comerciantes citadas anteriormente. Assim, podemos concluir que havia meios

de a mulher autoafirmar-se a partir de esforços individuais, entretanto, e a despeito do

ideário moderno/liberal associado à época, a instituição do casamento, para além de

―resguardo moral‖, também poderia significar o limite entre as experiências da

―sobrevivência‖ ou da ―ascensão social‖. Em outras palavras, casadoiras ou

―passarinhas livres e cantantes454

‖, às mulheres que desejavam construir uma trajetória

social ascendente, o matrimônio ainda se constituía numa prática relevante, quiçá

primeva.

E, do nosso ponto de vista, este seria o grande conflito da protagonista do

folhetim A mão e a luva: a rejeição, ou, o não conformismo com uma experiência de

vida mediana, acrescido de um desejo urgente por ascensão social. No livro Machado

de Assis: a pirâmide e o trapézio (1974), Raymundo Faoro, tratando das personagens de

origem pobre que habitam os tantos romances do bruxo, terminaria por concluir que,

aos homens desamparados restava apenas a esfera do favor, ou o cabedal do

funcionalismo público; porém, a sorte das mulheres seria sensivelmente pior e, lançando

mão das particularidades que envolvem a trajetória de Guiomar, o crítico diria: ―se não

lhes cai do céu a madrinha opulenta, nem as requesta o noivo rico, aguarda-as o

casamento, na melhor das hipóteses, com o bacharel sem futuro.‖455

Por fim, Faoro

concluiria: ―Sociedade fechada para os homens, sociedade murada para as mulheres

ambiciosas, com poucas vias para escolher o destino, no fundo do qual a miséria

espreita.‖.456

Refletindo sobre as palavras do crítico, podemos sugerir que, o muro, enquanto

presença simbólica no romance-folhetim A mão e a luva457

, denotaria, à primeira vista,

454

Considerando sempre o conteúdo e os efeitos de polifonia inerentes ao jornal, citamos aqui um breve

conto de Teophilo Gautier publicado no Globo em setembro de 1874. Intitulado ―O ninho dos rouxinóis‖.

A breve narrativa contava o cotidiano de duas passarinhas primas que, orgulhosamente solteiras,

desfrutavam de uma vida aprazível e tranquila: ―[...] A vida delas corria-lhes nessas doces e poéticas

ocupações de moça, conservavam-se na sombra e longe dos olhares do mundo, e, no entanto, o mundo

ocupava-se com elas.‖ Dessa forma, e talvez num chiste à tipificação das personagens femininas

românticas, o narrador advertia que, a dupla bela e cantante não tinha o menor interesse em quaisquer

ofertas de casamento, aliás, tal possibilidade lhes gerava sentimentos de desagrado e aversão: ―[...]

Apresentavam-se duques e príncipes para pedirem-nas em casamento; o imperador de Trebizonda e o

sultão do Egito mandaram embaixadores [...]; as duas primas não se aborreciam de ser solteiras, e não

quiseram ouvir falar em casamento. Talvez houvessem percebido, por secreto instinto, que a sua missão

na terra eram serem moças e cantar, e que degradar-se-iam fazendo outra coisa.‖ (GAUTIER, Teophilo.

―O ninho dos rouxinóis.‖ O Globo, Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1874, p.01, nº 39). 455

FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1974, p.317. 456

FAORO, Raymundo. Ibidem, p. 320. 457

Referimo-nos, mais uma vez, ao quinto capítulo do folhetim, que nos brinda com a infância de

Guiomar, narrando, especialmente, o episódio no qual a pequena espreitava a vizinhança abastada através

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o significado de barreira (in)transponível, ou de marco a separar ricos e pobres numa

sociedade estamental, escravocrata e em vias de modernização; no entanto, a presença

deste ―muro simbólico‖ também poderia remeter à ideia de zona limítrofe, ou de ―ponto

de contato‖ entre experiências sociais que, a partir da lógica voraz do capital, seriam

opostas e complementares entre si (haja vista que a pobreza/exploração de uns seria a

condição para a riqueza de outros). Dito isso, sugerimos que, o obstáculo era suscetível

a perscrutações, a partir das quais podia-se vislumbrar, desejar e, quem sabe, transpor a

fronteira entre os dois universos. Ainda assim, há de se advertir: muralha que era e é, a

construção permaneceria indestrutivelmente soerguida. O perfil feminino criado por

Machado de Assis, sem dúvidas, foi agraciado com a madrinha benfeitora que lhe caíra

dos céus, todavia, e a partir de tal condição, Guiomar também engendrou para impor a

sua indesejável presença entre os endinheirados que lhe seduziam.

De maneira análoga, também concluímos que Guiomar não confrontaria a

instituição do casamento, e desfrutaria do ―papel de mulher casada‖ de bom grado,

todavia, a personagem saberia se utilizar do enlace matrimonial para colocar em

movimento um projeto de vida ideado por ela, no qual o encargo das gratidões não fosse

compreendido como regra do jogo. Por isso, afirmamos que, nas entrelinhas da narrativa

folhetinesca, havia a denúncia do engodo que envolvia o ideário liberal no cenário

brasileiro oitocentista; em específico, em relação à condição feminina, caracterizada por

uma experiência de segregação social dotada de especificidades. Diante disso, a

protagonista machadiana, guiada por um instinto de ambição essencial à sua própria

existência/resistência, saberia se adequar e também subverter as lógicas do

patriarcalismo, cavando, assim, brechas oportunas por entre a densa muralha.

da fenda de um muro divisor; acessando em seu âmago, o sentimento da cobiça que passaria a

caracterizá-la. (Cf.: ASSIS, Machado de. ―Meninice‖ (capítulo V). A mão e a luva. O Globo, Rio de

Janeiro, 01 de outubro de 1874, p.1).

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Considerações finais

Percorrido tão longo caminho por entre romances, jornais, documentos

históricos e uma vasta bibliografia, torna-se possível sugerirmos a mais previsível das

constatações: os ―ciclos da ambição‖, aos quais nos referimos no título da tese, fazem-se

mais amplos do que éramos capazes de prever, e dizem respeito não somente à obra de

Machado de Assis, - conforme recomendava Lúcia Miguel Pereira - mas envolvem um

vasto debate que remete à obra primeva de José de Alencar, bem como aos embates

estéticos, políticos e sociais colhidos nas tantas páginas da imprensa oitocentista que

trouxemos à tona neste trabalho, e que foram analisadas em seus múltiplos sentidos

discursivos que, por sua vez, revelaram os tantos ―rastros‖458

de uma historicidade

indubitavelmente impregnada à urdidura de Sonhos d´ouro e A mão e a luva.

Há continuidades entre as narrativas? Muitas. Na verdade, acreditamos que há

um intertexto alencariano rondando o folhetim de Machado, e sugerindo uma meditação

crítica sobre a temática da (i)mobilidade social num contexto transitório de fim de

século. Há rupturas? Várias. Em específico se refletirmos sobre a representação da

condição feminina à época; no que concerne aos processos de apropriação da estética

romântica/folhetinesca; e acerca de particularidades no estabelecimento de uma relação

de proximidade e, no limite, de provocação, a um público imerso numa ―cultura

literária‖ de viés romanesco.

Por fim, e retomando a questão da ambição que nos trouxe até aqui, lançamos

mão de alguns conceitos retirados do livro A negociação da intimidade459

, de Viviana

A. Zelizer, para traçar as últimas linhas deste trabalho. De acordo com a estudiosa,

haveria meios distintos de se compreender a conjugação entre atividade monetária (ou

os usos do dinheiro) e relações íntimas. Num primeiro momento, Zelizer adverte que,

para alguns autores apegados ao argumento moral, dinheiro e intimidade seriam

compreendidos como esferas separadas, áreas hostis entre si que, uma vez em contato,

resultariam numa contaminação ética ou numa ―desordem‖ de potencial irreversível aos

envolvidos. Seguinte adiante no debate, e refutando o imaginário de que o mundo

estaria acentuadamente dividido em esferas separas de ―racionalidade x sentimento‖, a

458

Cf.: GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e fictício. (Tradução: Rosa Freire

d´Aguiar e Eduardo Brandão). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 459

ZELIZER, Viviana A. A negociação da intimidade. (Tradução: Daniela Barbosa Henriques).

Petrópolis-RJ: Vozes, 2011.

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estudiosa terminaria por cunhar o conceito de ―vidas conexas‖460

, admitindo a

possibilidade de que a atividade econômica penetraria na criação, definição e

sustentação dos laços íntimos. Noutras palavras, e livrando-se da pecha da corrupção

moral, Zelizer defenderia a hipótese de que o dinheiro coabitaria com a intimidade

através de uma relação de mutualidade, inclusive. Segue um trecho:

Será difícil de entender a coexistência entre economia e intimidade se

você achar que o próprio interesse econômico determina todas as

relações sociais, se imaginar que o mundo está acentuadamente

dividido em esferas separadas de racionalidade e sentimento, ou se

você supuser que a intimidade é uma planta delicada que somente

consegue sobreviver numa estufa bem vedada.461

Em Sonhos d´ouro identificamos um conflito quase que inconciliável entre as

esferas da intimidade e do dinheiro que, forçadas ao convívio, confluíram para a

anulação da altivez e da voluntariedade de Guida, ao mesmo em que impuseram um

processo de peregrinação moral ao personagem Ricardo. A solução para o embate

estaria numa equalização providencialmente romântica entre os envolvidos que,

arrebatados pelo sentimentalismo, terminam por desfrutar de uma relação na qual os

incômodos da disparidade social e do abismo econômico seriam arrefecidos, ou, talvez,

dissimulados pelas promessas de amores aprazíveis. Por outro lado, pensamos que em A

mão e a luva observarmos um novo registro sobre a mesma questão, sendo que a

intimidade e o dinheiro (ou o desejo por ascensão social), seriam conjugados no interior

de uma mesma relação, sem que isso pudesse representar necessariamente uma falha

moral na construção do perfil de Guiomar, em específico. Assim, vale ponderar que

Machado não disfarçou, ou buscou colocar ―panos quentes‖ no tino ambicioso de sua

protagonista, enfrentando, inclusive, uma recepção pouco acolhedora ao romance. Isto

posto, sugerimos que seria no processo de assimilação e introjeção crítica dos valores de

uma ―cultura liberal‖ relacionada à modernidade em processo e verbalizada nas páginas

da imprensa, que encontraríamos os principais pontos de inflexão e de ressignificação

mimética entre as narrativas de José de Alencar e Machado de Assis.

460

―[...] a análise de vidas conexas mostra que, num amplo espectro de relações íntimas, na provisão de

cuidados pessoais e nas complexidades da vida familiar, as pessoas gerenciam a mistura da atividade

econômica com a intimidade através da criação, execução e renegociação de uma extensa diferenciação

entre os laços sociais, seus limites e combinação apropriada com os meios comerciais e transações de

produção, consumo e distribuição.‖ Idem, p.43. 461

Idem, p.13.

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ANEXOS:

O Globo, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1874, p.1, nº 53.

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O Globo, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1874, p.2, nº 53.

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O Globo, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1874, p.3, nº 53.

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231

O Globo, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1874, p.4, nº 53.