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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES JOANA PINTO WILDHAGEN CORPO, GESTO E MEDITAÇÃO: PRÁTICAS DE APERFEIÇOAMENTO NA FORMAÇÃO DO ARTISTA CÊNICO CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

JOANA PINTO WILDHAGEN

CORPO, GESTO E MEDITAÇÃO:

PRÁTICAS DE APERFEIÇOAMENTO

NA FORMAÇÃO DO ARTISTA CÊNICO

CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

JOANA PINTO WILDHAGEN

CORPO, GESTO E MEDITAÇÃO:

PRÁTICAS DE APERFEIÇOAMENTO NA FORMAÇÃO DO ARTISTA CÊNICO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena.

Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientadora: MARÍLIA VIEIRA SOARES.

Este exemplar corresponde à versão final de Tese defendida pela aluna Joana Pinto Wildhagen, e orientada pela Profa. Dra. Marília Vieira Soares.

CAMPINAS 2016

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RESUMO

Procuro nesta tese refletir acerca das possibilidades de inserção de algumas práticas

de autoaperfeiçoamento orientais na formação do artista da cena, fundamentando-

me, sobretudo, em uma experiência pessoal com o yoga e com a dança cênica

bharatanatyam. Mais precisamente, busco compreender se as qualidades relativas ao

gesto, ao corpo e à meditação podem ou não transformar os artistas da cena em suas

jornadas criativa e pessoal. Desse modo, propus laboratórios de criação organizados

tanto para grupos de artistas, quanto para praticantes de yoga, objetivando uma visão

investigativa e reflexiva diante da técnica, em uma trajetória que partiu do treinamento

como práxis para o treinamento como poiesis. Essa etapa foi registrada em áudios,

vídeos, fotografias, questionários, depoimentos e um diário de bordo, que serviram de

parâmetros às reflexões e às análises apresentadas nesta tese. A metodologia da

observação participante (VIANNA, 2007) foi utilizada como abordagem na condução

dos laboratórios, com o intuito de propiciar um território maleável para o levantamento

de questões e problematizações, auxiliando a rever estratégias de ação durante o

percurso. Os resultados permitiram contemplar o potencial de autoaperfeiçoamento

da técnica e da poética, em que não precisa haver, necessariamente, uma separação.

O suporte teórico sobre ética e estética é construído a partir de dois tratados sobre

dramaturgia (o Nāṭya Śāstra e o Abhinaya Darpana) e obras de Vatsyayan e

Srivastava. No campo das Artes da Cena, me apoio nos diálogos interculturais

promovidos por Bonfitto, Quilici, Plá, Fernandes e Soares, que têm colaborado para o

aprofundamento do legado deixado pelos artistas da cena europeus e norte-

americanos interessados nas práticas psicofísicas orientais.

Palavras-chave: Yoga; Dança; Índia; Formação.

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ABSTRACT

This thesis is a reflection on the possibilities to include certain self-improvement

practices into the pedagogy of scenic artists, primarily based on the experience with

the Shivam Yoga system and with scenic dance bharatanatyam. In particular, an

attempt is made to comprehend whether or not the qualities related to gesture, the

body and meditation are able to transform scenic artists during their creative and

personal journey. Therefore, creativity labs were proposed and organized for groups

of artists, as well as yoga practitioners, aiming at an investigative and reflexive view of

the technique, following a path that went from training as praxis to training as poiesis.

This phase was registered by means of audio, video, photography, questionnaires,

statements and a journal, which served as parameters for the reflections and the

analyses presented in this thesis. The methodology of participant observation

(VIANNA, 2007) was the approach used in the conduction of the labs, in order to

ensure a malleable territory to raise questions and problematizations, helping to review

strategies of action along the way. The results allowed us to contemplate the potential

of self-improvement of technique and poetics, in which there must not necessarily exist

a separation. The theoretical basis for ethics-aesthetics is constituted from two treaties

on dramaturgy (the Nāṭya Śāstra and the Abhinaya Darpana), as well as works by

Vatsyayan and Srivastava. In the field of Scenic Arts, this work was based on the

intercultural dialogues promoted by Bonfitto, Quilici, Plá, Fernandes and Soares, who

have contributed to further develop the legacy left by European and North-American

scenic artists interested in oriental psychophysical practices.

Keywords: Yoga; Dance; India; Training.

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SUMÁRIO

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES _____________________________________________________ xi

INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 14

FORMAÇÃO DO ARTISTA DA CENA À LUZ DA EXPERIÊNCIA INTERCULTURAL _______________ 14

CAPÍTULO 1 _______________________________________________________________ 29

DEFININDO CAMINHOS __________________________________________________________ 29

1.1 Um breve percurso pelo yoga e pela dança cênica bharatanatyam ____________________ 29

1.2 Uma rede de influências ______________________________________________________ 39

1.3 O percurso dos laboratórios de pesquisa _________________________________________ 42

CAPÍTULO 2 _______________________________________________________________ 46

YOGA E BHARATANATYAM: UM CAMPO DE CONFLUÊNCIAS ____________________________ 46

2.1 Senda do yoga: o caminho da meditação _________________________________________ 46

2.2 Bharatanatyam dharma: o caminho do gesto expressivo ____________________________ 51

2.2.1 Algumas considerações sobre o aspecto expressivo da dança _______________________________ 53

2.2.3 Adavus e o treinamento psicofísico ____________________________________________________ 60

CAPÍTULO 3 _______________________________________________________________ 64

PRÁTICAS DE AUTOAPERFEIÇOAMENTO NA CENA ____________________________________ 64

3.1 O olhar do observador e o cultivo da mente: concentrar e meditar ____________________ 65

3.2 Trabalho sobre os sentidos, técnicas de dissociação e as mínimas ações _______________ 68

3.3 Percepção do fluxo: o respirar _________________________________________________ 70

3.4 Gestos como portais para a comunicação ________________________________________ 72

3.5 O princípio da forma e suas reverberações no corpo que dança ______________________ 80

CAPÍTULO 4 _______________________________________________________________ 88

CORPO, GESTO E MEDITAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA ________________________ 88

4.1 Bharatanatyam na disciplina Artes Corporais do Oriente ____________________________ 89

4.1.1 Preparação e aquecimento ___________________________________________________________ 90

4.1.2 Introduzindo a técnica básica da bharatanatyam _________________________________________ 92

4.1.3 Foco em interpretação e os laboratórios de criação ______________________________________ 106

4.2 Práticas de autoaperfeiçoamento na disciplina Formas Espetaculares do Oriente _______ 118

4.2.1 Práticas de canto com vogais e ragas indianas __________________________________________ 125

4.2.2 Vivência de meditação com mudras __________________________________________________ 127

4.2.3 Trabalho com voz, gesto e ritmo _____________________________________________________ 130

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4.2.4 A caminhada da flor _______________________________________________________________ 132

4.3 Oficina Gesto e criação: Mudras como Recurso Expressivo _________________________ 135

4.3.1 Introduzindo os gestos por meio dos hasta mudras ______________________________________ 136

4.3.2 Gesto e jogo _____________________________________________________________________ 138

4.3.3 Gesto e meditação ________________________________________________________________ 139

4.3.4 Percepções gerais sobre a oficina ____________________________________________________ 143

4.4 Oficinas de Criação Coreográfica com Instrutores de Yoga em Formação ______________ 144

4.4.1 O trabalho criativo no módulo Coreografia ____________________________________________ 145

4.4.2 Percepções sobre as dinâmicas ______________________________________________________ 153

4.5 Vivências Energético-Criativas com Praticantes de Shivam Yoga _____________________ 158

4.5.1 Ancorando corpo e mente __________________________________________________________ 161

4.5.2 Vivência Respir/Ação _____________________________________________________________ 164

4.5.3 Vivência: Criando com o Corpo _____________________________________________________ 168

4.5.4 Reflexões a partir das vivências _____________________________________________________ 172

CAPÍTULO 5 ______________________________________________________________ 174

RELACIONANDO EXPERIÊNCIAS: DO TREINAMENTO COMO PRÁXIS AO TREINAMENTO COMO

POIESIS ______________________________________________________________________ 174

CAPÍTULO 6 ______________________________________________________________ 186

À GUISA DE CONCLUSÃO ________________________________________________________ 186

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________________ 193

ANEXOS ________________________________________________________________ 201

Anexo 1: Questionário __________________________________________________________ 201

Anexo 2: Termo de consentimento livre e esclarecido ________________________________ 204

Anexo 3: Termo de autorização para uso de imagem _________________________________ 205

Anexo 4: Vídeo dos laboratórios de prática _________________________________________ 206

GLOSSÁRIO ______________________________________________________________ 207

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Em sua luz eu aprendi a amar. Em sua beleza, a fazer poemas.

Você dança dentro do meu peito, onde ninguém o vê,

mas às vezes eu vejo, e tal visão se torna esta arte.

Rumi, Jalaluddin. Birdsong.

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AGRADECIMENTOS

Dentre os ensinamentos yogues está a visão de que somos um microcosmo

inserido em um grande macrocosmo, formando uma rede infinita de relações.

Portanto, ao rever a trajetória que me trouxe à realização deste trabalho, deparei-me

com uma série de situações e de pessoas que, conscientemente ou não, influenciaram

significativamente minha jornada. Neste curto espaço, agradeço humildemente à

minha família pelo apoio e incentivo constante aos estudos; à Marília Soares, pela

orientação e generosa acolhida no Grupo Pallavi; ao Programa de Pós-Graduação em

Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas, incluindo seus funcionários e

docentes, sobretudo os professores Cassiano Quilici e Mariana Andraus, que

participaram em minha banca de Qualificação, contribuindo com valiosas sugestões,

e coordenaram os estágios docentes que integram parte desta tese. Agradeço

também à Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes), pelo

financiamento aos meus estudos; às amigas do Grupo Pallavi: Paula Ibañez, pela

generosa revisão, contribuindo com opiniões sinceras a partir de sua ampla

experiência como artista da cena; Irani Cippiciani, que me inspirou com sua paixão

pelas danças indianas; Kamilla Mesquita, por ter compartilhado sua experiência com

processos de criação neste trabalho. Agradeço aos participantes dos laboratórios de

pesquisa, que gentilmente se dispuseram a vivenciar as práticas que propus,

contribuindo também com seus relatos. Ao mestre Arnaldo de Almeida e ao Sistema

Shivam Yoga, pelos ensinamentos na área do yoga que aqui encontram seus frutos.

À mestra Anupama Pillai pelas lições de dança bharatanatyam, que possibilitaram as

reflexões e a pesquisa prática para esta tese. À amiga e companheira de trabalho,

Alessandra Cunha por ter me convidado a ministrar oficinas no Núcleo Sattva, que

integraram parte dos laboratórios de pesquisa. Ao Ednaldo, pelo companheirismo,

acolhimento, paciência, afeto e amor, grande ponto de força nesses últimos quatro

anos.

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Apresentação de bharatanatyam com músicos ao vivo. Local: Teatro Vijñana Kala Vedi,

Índia, 2009. Foto: R. Valsara Co. .......................................................................................................... 33

Figura 2 - Aula de bharatanatyam com Soumya Bijukrishna. Local: Viñana Kala Vedi, Índia, 2009.

Fonte: acervo pessoal. .......................................................................................................................... 33

Figura 3 - Aula de percussão com Subhash Chengannur. Local: Mridanga Vidyapeedam, Índia, 2009.

Fonte: acervo pessoal. .......................................................................................................................... 33

Figuras 4, 5, 6, 7 e 8 - Etapas do treinamento expressivo de kathakali: exercício com os olhos,

exercício com gestos, olhos e sobrancelhas e aula de maquiagem a partir de um dos personagens

tradicionais. Local: Vijñana Kala Vedi , Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal. ....................................... 37

Figura 12 - Parte abstrada de uma peça shabdam, com marcação percussiva dos pés e uso de hasta

mudras. Local: Tatro Vijñana Kala Vedi, Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal. ..................................... 55

Figura 13 - Cena de uma peça ashtapadi, no qual uma mulher coloca pasta de sândalo no corpo do

amado. Trecho do espetáculo Diwali. Teatro Centro da Terra/SP, 2012. Foto: Kenny Rogers. .......... 55

Figuras 9, 10, 11 - alguns exemplos de hasta mudras e seus significados. Fonte: Sahai, 2003, p. 218

e 220. ..................................................................................................................................................... 58

Figura 14 - Desenho representando o aramandhi, uma posição de base fundamental dos adavus.

Fonte: Vatsyayan, 1997, p. 54. ............................................................................................................. 60

Figura 15 - Desenho representando um dos nata adavus. Detalhe para a expansão corporal a partir

do centro corporal. Fonte: Vatsyayan, 1997, p. 56. .............................................................................. 61

Figura 16 - Um exercício de rotacionar os olhos (alokita bheda) do Nāṭya Śāstra. Fonte:

Vaidyanathan, 1996. ............................................................................................................................. 69

Figuras 17 e 18 – Trabalho sobre os sentidos no yoga. Fonte: Frawley, 2013. ................................... 69

Figura 19 - Gesto do pássaro (garuda mudra). Trecho do espetáculo Maracá. Teatro Municipal Casa

da Ópera/MG, 2011. Foto: Lincon Zarbietti. .......................................................................................... 73

Figura 20 – Personagem Durga (aspecto heroico feminino). Teatro Vijñana Kala Vedi, Índia, 2009.

Fonte: acervo pessoal. .......................................................................................................................... 74

Figura 21 - Kapota Mudra: aquietamento, interiorização, favorece a meditação. ................................ 75

Figura 22 - Trimurti Mudra: captação e concentração de energia. ....................................................... 75

Figura 23 - Shiva Linga Mudra: força interna e disciplina. .................................................................... 75

Figura 24 - Swastika Mudra: proteção e força. ..................................................................................... 76

Figura 25 - Matsya Mudra: facilita um estado de interiorização e meditação. ...................................... 76

Figura 26 - Chakra Mudra: ativação e equilíbrio dos chakras. Local: Núcleo Sattva, Vitória/ES, 2015.

Fonte: acervo pessoal. .......................................................................................................................... 76

Figuras 27, 28 e 29 - Exercícios de percepção pelas mãos. Local: Sítio Sattva, 2015. Fonte: acervo

pessoal. ................................................................................................................................................. 78

Figura 30 - Sri Yantra. Rajastão, c1800. Fonte: Rawson, 1973. .......................................................... 80

Figura 31 - Posição inicial da bharatanatyam denominada sama. Fonte: Vatsyayan, 1997, p. 53. ..... 82

Figuras 32 e 33 - Dois asanas de yoga na preparação corporal. Local: Unicamp, Campinas, 2014.

Fonte: acervo pessoal. .......................................................................................................................... 90

Figura 34 - Aramandhi (ou aramandalam), posição mais utilizada na dança bharatanatyam. Fonte:

Centre for the Promotion of Tradicional Arts, s/d. ................................................................................. 92

Figura 35 - Treinando adavus a partir da posição básica aramandhi. Local: Unicamp, Campinas,

2014. Fonte: acervo pessoal. ................................................................................................................ 93

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Figuras 36, 37, 38, 39 e 40 - Fotos da sequência do adavu taha tajam tarita. Local: Unicamp,

Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal. .............................................................................................. 97

Figura 41 - Desenhos de alguns hasta mudras. Fonte: Centre for the Promotion of Tradicional Arts,

s/d. ......................................................................................................................................................... 99

Figura 42 - Drishti bhedas – exercitando o olhar. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo

pessoal. ............................................................................................................................................... 100

Figura 43 - Drishti bhedas – exercitando o olhar. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo

pessoal. ............................................................................................................................................... 100

Figuras 44, 45 e 46 - Alunos realizando a coreografia Pushpanjali. Local: Unicamp, Campinas, 2014.

Fonte: acervo pessoal. ........................................................................................................................ 104

Figuras 47 48, 49, 50, 51 e 52 - Alunos apresentando exercícios de interpretação. Local: Unicamp,

Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal. ............................................................................................ 108

Figura 53 - Profa. Kamilla Oliveira introduzindo o tema da aula para os alunos. ............................... 110

Figuras 54 e 55 - Alunos em processo de criação com imagens. Local: Unicamp, Campinas, 2014.

Fonte: acervo pessoal. ........................................................................................................................ 110

Figura 56 - Fotografias escolhidas por um dos participantes para criação poética. Fonte: acervo

pessoal, 2014. ..................................................................................................................................... 111

Figuras 57 e 58 - Participante em caminhar confiante e caminhar desiludido. .................................. 114

Figuras 59 e 60 - Interpretação de personagem, realizando gesto de negação. Local: Unicamp,

Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal. ............................................................................................ 115

Figura 61 - Notação de um dos adavus de bharatanatyam. Fonte: Centre for the Promotion of

Tradicional Arts, s/d. ............................................................................................................................ 115

Figura 62 - Sequência da cena Insônia, realizada pelo ator Rafael Quelle. Fonte: acervo pessoal. . 117

Figura 63 - Sequência de um chuzhippu. Fonte: acervo pessoal, 2014. ............................................ 122

Figuras 64 e 65 - Exercícios de cantos vocálicos com projeção das mãos. Local: Unicamp,

Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal. ............................................................................................ 126

Figuras 66, 67, 68 e 69 - Exploração e comunicação por meio das mãos após meditação com

mudras. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal................................................... 128

Figuras 70, 71, 72 e 73 - Etapas do exercício rítmico de Kathakali. .................................................. 131

Figuras 74, 75 e 76 - Professor e alunos acompanhando o exercício rítmico com cantos. Local:

Unicamp, Campinas. Fonte: acervo pessoal, 2014. ........................................................................... 131

Figura 77 - Nascimento da flor no exercício de butoh. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo

pessoal. ............................................................................................................................................... 133

Figuras 78 e 79 - Desenhos de dois mudras: mukula e alapadma. Fonte: Ramm-Bonwitt, 2015. .... 137

Figuras 80 e 81 - Estudo dos hasta mudras: desvendando significados. Local: Unicamp, Campinas,

2015. Fonte: acervo pessoal. .............................................................................................................. 137

Figura 82 - pataka mudra. Fonte: Ramm-Bonwitt, 2015. .................................................................... 140 Figura 83 - gesto para mostrar o céu e as nuvens. ..................................................................................... 140 Figura 84 - gesto na prática de meditação. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal.

............................................................................................................................................................................. 140 Figuras 85 e 86 - Exercício Palavra-Cor-Gesto. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo

pessoal. .............................................................................................................................................................. 140 Figura 87 - Exercício de livre exploração com as mãos após meditação dos gestos. Local: Unicamp,

Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal. ..................................................................................................... 141 Figuras 88 e 89 - Interagindo no exercício de improvisação com as mãos. Local: Unicamp, Campinas,

2015. Fonte: acervo pessoal. .......................................................................................................................... 141

Figura 90 – Aquecimento / respiração. ......................................................................................................... 148

Figura 91 – Aquecimento / caminhada. ......................................................................................................... 149

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Figura 92- Exercícios de Contato Improvisação: Peso e Estímulo-Resposta formando asanas. ........ 149

Figura 93 - Exercícios de Contato Improvisação: Peso e Estímulo-Resposta formando asanas. ....... 149 Figuras 94 – Laboratório de imagens em movimento. Local: Núcleo Sattva, Vitória/ES, 2015. Fonte:

acervo pessoal, 2015. ...................................................................................................................................... 150 Figura 95 - Da esq. para a dir.: Bhujangasana – posição da cobra, Matsyasana – posição do peixe,

............................................................................................................................................................................. 151 Figuras 96, 97 e 98 - Acima e a esquerda: Yogini com espada e escudo, representando força

feminina .............................................................................................................................................................. 154 Figura 99 - Anantasana: imagem de Vishnu em posição de eterno descanso. Fonte: indiamart.com,

2015. ................................................................................................................................................................... 156

Figuras 100, 101 e 102 - sala de prática e rio à frente da casa. Local: Sítio Sattva, ES, 2015. Fonte:

acervo pessoal. ................................................................................................................................................. 160

Figuras 103 e 104 - Vivência de respiração. Sintonização. ....................................................................... 166

Figura 105 - Vivência Respir/Ação. Sopro do deserto. ............................................................................... 166

Figura 106 - Exercício de respiração em duplas. Expansão torácica. ..................................................... 167 Figura 107 - Vivência Respir/Ação. Centramento. Local: Sítio Sattva, ES. Fonte: acervo pessoal,

2015. ................................................................................................................................................................... 167

Figuras 108, 109, 110 e 111 - Vivência de dança. Criação corporal a partir de pesquisa na natureza.

............................................................................................................................................................................. 169

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14

INTRODUÇÃO

FORMAÇÃO DO ARTISTA DA CENA À LUZ DA EXPERIÊNCIA

INTERCULTURAL

Esta tese apresenta uma reflexão derivada de uma abordagem prática a respeito

da introdução de algumas práticas de autoaperfeiçoamento1 orientais na formação de

artistas da cena. Especificamente, baseio-me nas experiências derivadas de

laboratórios dirigidos a grupos de dançarinos, atores e interessados no campo das

artes corporais, que se dispuseram a experienciar exercícios derivados da meditação

yogue e algumas matrizes estéticas das danças cênicas da tradição indiana,

sobretudo a bharatanatyam.

Reconhece-se, antes de mais nada, que os temas tratados nesta tese envolvem

um extremo grau de complexidade, por tratarem-se de saberes ancestrais

desenvolvidos em contextos, línguas e, portanto, a partir de matrizes culturais e

estéticas diversas da brasileira. Só o sistema do yoga ou das danças da tradição

cênica da Índia comporiam dois trabalhos distintos e, ainda assim, não seriam

suficientes para oferecer uma compreensão apropriada acerca desses campos de

saber. Contudo, o foco desta abordagem foi pedagógico2, ao buscar resgatar, na

própria experiência teórico-prática da pesquisadora com as práticas corporais da

tradição indiana, possíveis pontos de contato com o ensino de arte. Assim, a ideia de

autoaperfeiçoamento que o contato com esses elementos “orientais” propõe é

vislumbrada no âmbito da atividade criativa e no aspecto existencial, a fim de

aproximar a arte de uma ação ética e eficaz no mundo, por meio de qualidades como

generosidade, sentido de coletividade, dentre outras.

Uma pergunta que poder-se-ia fazer em relação ao recorte proposto seria: “mas

por que relacionar yoga e dança indiana?”. Primeiramente, na Índia, ambas são

1 Por autoaperfeiçoamento me refiro a práticas que envolvem um aprimoramento físico, psíquico e espiritual. 2 Referente à pedagogia do artista cênico, que se relaciona à reflexão e aos procedimentos relativos à própria prática do artista da cena (cf. KOUDELA, 2015).

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consideradas maneiras de integração com o sagrado e, de maneira prática, o yoga

compõe parte da preparação psicofísica do artista do dançarino da tradição, algo que,

como aponta Bhavani (2010) no artigo Bharatanatyam and Yoga:

O dançarino pode cultivar e desenvolver-se através do estudo de Yoga, para adquirir os traços de caráter necessários e aptidão física que a dança requer, tais como força, flexibilidade, resistência, consciência, concentração e coordenação, tanto da mente e do corpo, para citar um pouco. Estas características básicas são consideradas em detalhes, com uma avaliação comparativa entre cada asana e seu benefício inerente. É também de menção ressaltar que essas características são a base necessária para um dançarino usar corretamente todos os movimentos para transmitir e comunicar sutilezas3.

Em segundo lugar, ambas as práticas compõem parte da experiência artística,

profissional e pessoal da pesquisadora ao longo dos últimos 15 anos. Vislumbrei nelas

algumas condições para a construção de um trabalho educativo, formativo e criativo,

cuja aposta foi a de mobilizar o sujeito ao desenvolvimento de um conhecimento

interno capaz de ser veiculado ao campo de atuação cênica. Assim, semelhanças

foram buscadas na tríade: yoga, bharatanatyam e o trabalho do artista da cena,

possibilitando o encontro de uma série de questões relativas ao gesto, ao trabalho

sobre mínimas partituras corporais, à precisão e à concentração, ao respirar e ao fluir,

dentre outros aspectos que se tornaram o eixo de praticamente todas as oficinas

ministradas durante a pesquisa.

O yoga é um tipo de conhecimento composto por preceitos filosóficos ligados à

cultura hinduísta indiana, que abarca um conjunto de práticas meditativas

desenvolvidas há milênios, visando, basicamente, ao aprimoramento de si e à

ampliação da consciência. O aporte teórico para lidar com este assunto foi constituído

pelo tratado filosófico de Patañjali, intitulado Yoga Sutra, que contém diretrizes

conceituais e éticas. Já a parte prática foi absorvida do método Shivam Yoga (2016),

3 No original: “The dancer may cultivate and develop herself through the study of Yoga, to acquire the necessary character traits and physical aptness the dance calls for, such as strength, flexibility, endurance, awareness, concentration and coordination of both the mind and the body, to name a few. These basic characteristics are considered in detail, with a comparative assessment between each Asana and its inherent benefit. It is also of noteworthy mention that these characteristics are the necessary foundation for a dancer to properly use every movement to convey and communicate subtleties”.

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sistema fundado e dirigido pelo Prof. Ms. Arnaldo de Almeida4, sediado na cidade de

Ouro Preto/MG.5

Quando me refiro à meditação neste trabalho, faço referência à prática yogue

conhecida como dhyana, que consiste em exercícios desenvolvidos ao longo de

milênios na Índia, cuja função é, basicamente, liberar a mente6 das inquietações

cotidianas por meio de um redirecionamento de seus fluxos7. Essa escolha se justifica

tão somente pelos caminhos que me levaram a esse caminho, lembrando que a

meditação se desenvolveu em outras escolas filosóficas, tanto do Ocidente quanto do

Oriente (sufismo, budismo, zen, jainismo, dentre outras).

Já a bharatanatyam é uma forma artística originada no sul da Índia, derivada de

práticas ritualísticas dos templos e das manifestações populares da região de Tamil

Nadu, que se caracteriza por ser uma dança gestual simbólica, expressiva e ritmada,

contando com um vasto repertório cênico da tradição. Oriento-me pelo estilo

Kalakshetra, fundado na década de 1930 pela dançarina Rukmini Devi Arundale, que

aprendi sobretudo com a Profa. Ms. Anupama S. Pillai.8

Procuro incorporar este estudo à dimensão interna da atividade criativa,

agregando um aspecto meditativo, e outro perceptivo, que me levou a refletir sobre

formas de vinculação entre o corpo e a mente, embasadas em uma dimensão

semelhante a ideia de “cultivo” (ou shugyo), conforme aponta Yuasa a respeito da

aquisição de conhecimento pela via oriental,

4 Arnaldo de Almeida é instrutor de yoga, massoterapeuta e diretor do Sistema Shivam Yoga. É mestre em Administração (FNH), especialista em Cultura e Arte Barroca e bacharel em Letras (UFOP). É autor das obras Manual Prático de Yoga (Editora UFOP) e Shivam Yoga: Autoconhecimento e Despertar da Consciência (Editora Lemos). 5 O Sistema Shivam Yoga (2016) oferece cursos de formação e aperfeiçoamento nas áreas de yoga e terapia ayurveda, seguindo dois escopos filosóficos da Índia: Samkhya e Tantra. Suas primeiras atividades foram iniciadas em 1992, no Projeto Yoga na UFOP pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 6 Segundo as filosofias yogue, o corpo é constituído por vários outros “corpos”, que podem ser compreendidos como camadas ou instâncias, que variam conforme sua composição material: da mais densa (o corpo em sua fisicalidade) até as mais sutis (como as instâncias psíquicas e espirituais). Na filosofia Samkhya, por exemplo, a mente é composta por dois níveis: manas sharira e manas rupa sharira, sendo a primeira ligada à razão, ao raciocínio, às experiências em nível da consciência; e a segunda, aos processos de consciência mais profundos e à capacidade de discernimento (cf. ALMEIDA, 2007). 7 “Tatra pratyaikatânatâ dhyânam” ou “pensamento ininterrupto em um só pensamento é dhyana ou meditação” (PATAÑJALI apud IYENGAR, 2012, p. 179). 8 Anupama S. Pillai é dançarina, coreógrafa e professora de danças clássicas indianas. É mestre em bharatanatyam, seguindo o estilo Kalakshetra, tendo como Guru RLV Radhamani Kumar. Atualmente, reside em Dubai, onde dirige a escola Tarang Performing Arts Training Center (2016).

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[...] no oriente parte-se do pressuposto experiencial de que a modalidade mente-corpo muda através do treinamento da mente e do corpo por meio de cultivo (shugyo) ou de formação (Keiko). Só depois de assumir esse terreno experimental é que se pergunta qual é a relação mente-corpo. Ou seja, o problema mente-corpo não é simplesmente uma especulação teórica, mas é originalmente uma experiência prática vivida (taiken), envolvendo a reunião de todo o nosso corpo e mente. O teórico é apenas uma reflexão sobre essa experiência vivida (YUASA, 1987, p. 18).

Ao valorizar a experiência do conhecimento pela via experimental, Yuasa

observa que o Oriente9 vê dimensões semelhantes entre práticas meditativas, ou de

cultivo, e o treinamento artístico, ambas compondo partes de acesso à verdade.

Ao vislumbrar essa dimensão psicofísica10 na cena, este trabalho se situa nos

estudos relativos à pedagogia do artista cênico, que tem como uma de suas principais

características repensar o trabalho do intérprete por meio do diálogo intercultural,

sobretudo pela via do Oriente. Há um movimento nas Artes da Cena que se esboça

desde o século passado de valorização do artista cênico e de sua formação, frente às

suas inquietações e impulsos, que foi iniciado com os primeiros formadores de atores

e preceptores da dança moderna. O desenvolvimento desse campo da formação de

artistas da cena levou a um rico espectro de conceitos, de ideias e de práticas

elaboradas tanto a partir da influência oriental, quanto da exploração psicológica da

mente e da consciência, como observa Nair (2007).

Portanto, nos trabalhos de renomados formadores de atores ocidentais e de

artistas das danças moderna e pós-moderna é possível encontrar influências de

modelos de formação psicofísica, tais como os teatros kabuki e noh do Japão; as

danças cênicas kathakali e bharatanatyam do sul da Índia; as artes marciais como o

9 Faço, neste trabalho, uma ressalva no uso do termo “oriente”, considerando uma possível confusão com uma abordagem orientalista ou uma perspectiva mais abrangente. As correntes de estudos pós-coloniais norte-americanas e europeias têm dado preferência a terminologias como “estudos asiáticos”, “estudos sul-asiáticos”, em busca de especificar melhor geograficamente o objeto de estudos, ainda que todos esses termos sejam falhos para abranger culturas e especificidades dentro de países tão diferentes. Contudo, observei que no âmbito dos estudos em artes da cena no Brasil, há a recorrência tanto de “artes do oriente” quanto de “artes asiáticas”, o que justifica a presença de ambas denominações nesta tese. 10 Nesta tese, entendo o termo psicofísico na perspectiva de um tipo de treinamento que compreende o corpo em uma relação mais ampla, considerando seus aspectos físicos, psíquicos, energéticos e espirituais, orientando-me pelos conhecimentos e práticas meditativas do yoga e do treinamento em dança cênica indiana.

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judô, o karate e o t’ai chi ch’uan; a dança de Bali; os conceitos da medicina chinesa,

tais como o fluxo energético pelos meridianos; o Livro das Mutações e o I Ching; as

antigas esculturas indianas; a totalidade de yin e yang e a estética de base zen

(HODGE, 2000; WHEELER, 1984). Nessas linguagens, os artistas da cena ocidentais

encontraram uma longa tradição de treinamentos e práticas meditativas bastante

complexas e desenvolvidas, que auxiliaram a problematizar as práticas artísticas de

seus próprios contextos, como, por exemplo, a relação entre preparação e espetáculo.

Assim, inicia-se um deslocamento do eixo de preparação de intérpretes da cena de

uma função mais utilitária, à serviço de linguagens preexistentes, para o treinamento

como “um valor em si mesmo” (BONFITTO, 2009, p. 38).

Stanislavski foi um dos precursores desse movimento de reforma da prática

cênica, tendo sido o primeiro a usar o termo “psicofísico” para descrever o trabalho do

artista cênico focado tanto na psicologia quanto na fisicalidade (ZARRILLI, 2009). No

cerne de suas questões, estava a necessidade do ator realizar um trabalho sobre si

mesmo a partir de um estudo minucioso que contemplasse vários aspectos do sujeito,

tais como: corpo, voz, sentidos, emoções e consciência, na busca pela integração

entre “um universo interior e um exterior” (ICLE, 2006, p. 6). Como observa Carrer,

Mais importante que buscar em si uma memória pessoal para aproximar-se do texto e do personagem, o ator deveria encontrar, nas ações físicas, a integração com o psicológico, uma conexão entre fora e dentro, entre a materialidade apresentada e uma subjetividade a ser construída. (CARRER, 2014, p. 20).

Utilizando de empréstimo conceitos como prana – energia11 vital inalada na

respiração como criação de ritmo interno – e adaptando exercícios de yoga para

auxiliar o processo de conscientização na performance, Stanislavski vislumbrou

nessas práticas caminhos para a integração do corpo com a mente no trabalho cênico

(ZARRILLI, 2009).

11 Energia nesta tese é considerada uma força ou conjunto de forças em ação (SOARES, 2000). Seus aspectos são estudados a partir do conceito hindu de sopro vital, ou força presente no universo absorvida pelo ar na respiração, que segundo as filosofias yogue flui por complexos canais sutis (nadis) que percorrem o corpo (cf. ALMEIDA, 2007).

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Além dos pioneiros, Stanislavski, Vsevolod Meyerhold (1874-1940), Michael

Chekhov (1891-1955) e Jacques Coupeau (1879-1949), pode-se citar vários

encenadores, sobretudo da Europa, que desenvolveram esse trabalho formativo do

artista cênico no diálogo intercultural, a exemplo de: Antonin Artaud (1896-1948),

Bertolt Brecht (1898-1956), Jacques Lecoq (1921-1999), Jerzy Grotowski (1933-

1999), Peter Brook (1925-), Eugenio Barba (1936-) e Phillip Zarrilli (1947-).

Conforme observa Nair,

Todos eles têm influenciado muito o desenvolvimento do teatro ocidental, abordando questões relativas às dinâmicas da mente/corpo do ator, à relação ator-espectador e às dimensões espaciais e temporais relativas ao corpo e à experiência teatral. As investigações apresentadas por todos esses profissionais foram baseadas na compreensão e no treinamento dos elementos psicofísicos fundamentais envolvidos na arte do ator12 (NAIR, 2007, p. 120, tradução minha).

Já no desenvolvimento das danças moderna e pós-moderna, Wheeler (1984)

identifica apropriações desses conceitos e modelos práticos do Oriente em uma

perspectiva evolutiva, que teria partido de uma abordagem mais superficial (surface)

para uma mais essencial (essence). Nesse sentido, artistas como Loie Fuller (1862-

1928), Isadora Duncan (1877-1927) e Ruth St Dennis (1879-1968) partiram da cópia

de estilos de movimento, de música e de design cênico, até modos de apropriação

mais profundas, à medida em que os artistas começaram a mergulhar em conceitos e

qualidades de ação, tais como a consciência corporal e o potencial transformativo

humano.

A esse respeito, Quilici (2012a) ressalta que o interesse inicial por técnicas

teatrais específicas orientais se desloca para práticas e exercícios espirituais de

tradições diversas, que colocam em jogo modificações na qualidade dos estados

corporais, gerando experiências de vínculos comunicativos potentes com o público.

Em suas palavras:

12 No original: “All of them have remarkably influenced the development of Western theatre by addressing issues relating to the actor’s mind/body dynamics, the actor-spectator relationship and spatial and temporal dimensions relating to the body and theatrical experience. The investigations put forward by all of these practitioners were based on understanding and training the fundamental psychophysical elements involved in the actor’s art”.

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Talvez tal tendência, expresse, entre outras coisas, uma tentativa de se aprofundar estratégias de treinamento não tão identificadas com linguagens artísticas específicas, apostando, sobretudo, na ideia da transformação dos modos de percepção e de relação com o mundo, enquanto base de um processo criativo que se desdobra posteriormente em estratégias comunicativas e formas públicas de intervenção (QUILICI, 2012a, p. 18).

Essa mudança de paradigmas foi observada pelo autor na intensificação do

diálogo intercultural a partir de Grotowski, sobretudo quando este começa a centrar

seu trabalho sobre a criação de ações como processo de transformação pessoal,

levando o foco dos artistas cênicos às “técnicas de si”, definidas pelo autor por “[...]

procedimentos que visam promover mudanças substanciais nos modos de percepção

e de consciência, que, no trabalho de Grotowski formam o eixo das “ações”

performáticas” (QUILICI, 2012a, p. 17). Com isso, pode-se dizer que a emergência da

fusão de várias linguagens artísticas nas décadas de 1960-70 levou à

problematização cada vez maior da noção de espetáculo, derivada de uma

compreensão mais radical do sujeito, da arte e da existência.

Nesses tipos de questionamentos, é o artista com suas inquietações em busca

de seguir seus próprios instintos e preferências quem ocupa o centro da investigação

cênica. Conforme Bales (2008), o treinamento a partir desse período toma um caráter

mais aleatório e eclético, não sendo mais uma necessidade, passa a refletir mais de

perto o processo como ele é experienciado.

Já Beavers (2008) observa que uma das estratégias que os pós-modernos

utilizaram para escapar de uma vinculação tecnicista pautada pelo pensamento “osso-

músculo-corpo-mente” foi a desvinculação da performance com o palco, gerando

novas relações com o ambiente. Assim, a reintegração do corpo ao universo das

sensações e à conscientização do espaço cinético foi uma das contribuições desse

período em busca de inverter a relação com as formas pré-estabelecidas.

Como exemplo dessas tendências estão as formas não-representacionais

ligadas a conceitos holísticos, as terapias corporais, o Contato Improvisação, as

danças circulares de Deborah Hay (1941-), dentre técnicas específicas como a

inspiração-contração/expiração-relaxamento de Martha Graham (1894-1991). Bales

(2008) observa ainda, a partir desse período, estudos de teorias contemporâneas do

corpo e do movimento, tais como a Consciência pelo Movimento, Técnica Alexander,

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Fundamentos de Bartenieff, Body-Mind-Centering, que passaram a integrar parte de

trabalhos de importantes artistas do corpo, influenciando significativamente os

estudos acadêmicos.

No contexto atual, Beavers (2008) observa um movimento de integração entre

as várias tendências desenvolvidas ao longo do século passado, identificada em pelo

menos três grandes direções: a reintegração do Teatro e da Dança, especialmente na

esfera do treinamento; a investigação somática; e a improvisação no centro da

composição. A autora vislumbra nesses novos caminhos possibilidades de:

[t]reinamentos de artistas para além das fronteiras trabalhando em um meio emocional, psicofisicamente transformador, não só relacionados à manipulação de formas físicas e de energia cinestésica; treinando em técnicas experimentais com técnicas mindfulness/awareness em seu núcleo, permitindo uma mudança para uma visão somática; e articulando a isso uma relação mais sofisticada para o processo criativo que é acompanhado por uma estética mais inclusiva13 (BEAVERS, 2008, p. 132, tradução minha).

Trazendo a discussão para o contexto das artes da cena no Brasil, é possível

observar que até poucas décadas atrás, a influência intercultural e o trabalho

psicofísico eram filtrados pela via eurocêntrica e norte-americana. Por questões de

ordem socioeconômica, a facilitação do acesso aos países asiáticos tem possibilitado

a muitos artistas brasileiros uma formação direta e verticalizada nessas práticas de

autoaperfeiçoamento, o que vem permitindo um diálogo mais crítico com seus

predecessores ocidentais a partir de suas próprias vivências, gerando novos debates

e criações.

Dessa maneira, observa-se um crescente interesse, sobretudo nos estudos

acadêmicos brasileiros, em sistematizar diálogos de pesquisa pautados pela

interculturalidade, nela inclusa a linha do Oriente14, a exemplo de dezenas de

13 No original: “Training dancers across the board as working in an emotional, psychophysically transformational medium, not only related to manipulation of physical forms and kinesthetic energy; training in experiential techniques with mindfulness/awarenwaa techniques at their core allowing for a shift to somatic view; and articulating a more sophisticated relationship to creative process which is accompanied by a more inclusive aesthetic”. 14 Andraus (2014) apresenta um interessante levantamento das disciplinas e pesquisas desenvolvidas nos cursos superiores de dança e em algumas pós-graduações em artes cênicas no Brasil que abarcam a temática do Oriente e da arte marcial. Os dados por ela coletados demonstram que existe uma abertura para esse campo de estudos nos principais cursos de dança do país, mas as produções na

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disciplinas em cursos de graduação e pós-graduação, linhas e grupos de pesquisa

inscritos no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil (2016). Dentre essas

pesquisas, é possível perceber vias de interesse em torno de poéticas de criação e

desenvolvimento de treinamentos que se apoiam em elementos, tais como:

“meditação”, “atenção”, “yoga”, “artes marciais”, “modos de existência”, “treinamento

psicofísico”, “práticas contemplativas”, “práticas de plena atenção”, “perspectiva

transcultural”, “artes cênicas asiáticas”, “procedimentos metodológicos”,

“harmonização psicofísica”, dentre outros (DIRETÓRIO DOS GRUPOS DE

PESQUISA NO BRASIL, 2016). A respeito dessas atuais pesquisas, Quilici constata

que,

Certamente, estamos em melhores condições do que Stanislavski para investigar práticas tradicionais de treinamento que possam nos fornecer elementos importantes na investigação das relações corpo-mente, das qualidades dos estados de consciência e do desenvolvimento da atenção e da concentração. Se ainda existe na cultura contemporânea o clima mistificador dos “ocultismos”, como na Rússia do final do século XIX, é inegável também que o Ocidente hoje conta com um acesso muito maior a mestres qualificados, monges, escolas e centros monásticos das tradições contemplativas orientais. Observamos também, pelo menos no âmbito acadêmico, uma considerável produção crítica sobre os riscos dos “orientalismos”, enquanto ideologias que mascaram contextos e relações de poder envolvidas na disseminação de imagens estereotipadas de culturas asiáticas (QUILICI, 2012a, p. 17-18).

Uma dessas vias a qual se vincula esta tese é o estudo do Grupo Pallavi/CNPq,

liderado pelas profas. Dras. Marília Soares e Mariana Andraus na Universidade

Estadual de Campinas, que contempla em suas linhas de pesquisa a investigação

sobre a expressividade e o gestual da dramaturgia de natya (danças/teatros indianos),

e o diálogo com as artes marciais orientais em suas possíveis relações com a cena.

Dentre os objetivos do grupo, pretende-se sistematizar um treinamento

contemporâneo para intérpretes, sobretudo a partir do estudo de obras cênicas

clássicas da Índia, o Nāṭya Śāstra (Tratado sobre Dramaturgia) de Bharata, e o

Abhinaya Darpana (O Espelho do Gesto) de Nandikesvara. Segundo Soares (2015),

área ainda são muito esparsas. Um estudo mais sistematizado que reúna os reflexos dessas influências no Brasil ainda necessita de investigação.

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tal interesse surgiu ao identificar nessa área uma defasagem ainda não solucionada.

Como explica a autora:

Este preâmbulo resume a experiência pessoal em treinamentos de dança quando era cobrada a colocar expressão no movimento, coisa para a qual não tinha sido treinada, observando também a dificuldade de outros dançarinos e dos mestres e coreógrafos. Assim, pretendemos analisar uma sistematização do gestual presente nas danças clássicas indianas, e sua função no treinamento do intérprete contemporâneo a partir de uma experiência pessoal e da aplicação desses princípios em diversas situações, levando em conta as dificuldades pessoais e relatos de experiência dos envolvidos, numa tentativa de solução para a crise artística contemporânea, levando em consideração a influência do oriente presente nas revoluções artísticas ocidentais (SOARES, 2015, p. 33).

Conforme Vatsyayan (1968), está na raiz das formas de autoaperfeiçoamento

hindus a ideia de que as técnicas atuam como a recriação de um estado de realização

do artista, que tem a ver com uma experiência mais próxima da divindade. Porém,

suas formas codificadas nem sempre são compreendidas como veículos de

aperfeiçoamento interno no Ocidente. Trazer essa dimensão da técnica como

aprimoramento de si foi uma questão importante nesta tese. De quais maneiras ela

sensibiliza o artista ou não para seu trabalho? Como transformar um elemento

codificado em ação criativa? E, sobretudo, como elaborar uma abordagem

pedagógica que “não separe o sujeito do objeto”, parafraseando o teatrólogo Plá

(2012, p. 3) em sua investigação sobre as relações entre meditação budista e teatro,

isto é, a técnica pode ser vista como possibilidade de conexão entre processos

internos e externos ao indivíduo, no sentido de construir uma dimensão ética e

estética?

Todas essas questões foram levantadas durante esse percurso, à medida em

que buscava desenvolver um olhar investigativo sobre as minúcias da técnica indiana.

O envolvimento com diferentes grupos levou a transformar o ensino da técnica para

outras possibilidades poéticas, o que me auxiliou, sobretudo, a transformar minha

própria visão das inúmeras relações expressivas entre a vida e a arte.

Assim, tomando as palavras de Quilici (2012a), uma questão que se coloca é

“[...] pensar treinamentos do ator/performer que não se apresentam apenas como um

aprendizado técnico/artístico, mas que buscam, sobretudo, uma problematização

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radical do sujeito”. Para mim, enveredar por essa aventura simbolizou um caminho

cheio de desvios, poucas certezas, mas sempre movida pelo desafio.

Nessa investigação de apropriação das formas asiáticas percebi duas vias de

pesquisa no Brasil: uma que se debruça sobre as minúcias da técnica e outra que

busca captar qualidades essenciais de determinado campo.

Como primeiro exemplo, o trabalho de Fernandes (2014) com a bharatanatyam

se volta para a integração de diversas tendências na área da dança, advindas de

estéticas aparentemente distantes, tais quais a dança cênica indiana e a dança

contemporânea, em busca de nelas encontrar princípios comuns, segundo a autora,

“num contexto inter-relacional e dinâmico” (FERNANDES, 2014, p. 167). Tais

princípios são encontrados por meio de um estudo atento a cada elemento técnico do

treinamento.

O seu estudo abriu perspectivas para encontrar paralelos com a dança-teatro

alemã, de tal forma a perceber que “[...] determinados princípios dinâmicos da cena

contemporânea foram de fato identificados há milênios e organizados em uma prática

meticulosa que ainda hoje é equivocadamente apartada dessa cena e interpretada de

maneira estranha e distante” (FERNANDES, 2014, p. 169). A autora fornece vários

exemplos de como a construção abstrata corporal e expressiva do rosto na dança-

teatro indiana corroboram os estudos do movimento de Laban/Bartenieff, em termos

de fluxo e de tempo, que, segundo Fernandes (2014), os dançarinos de

bharatanatyam aprenderam a separar, quando executam uma dança de ritmo rápido

e a expressão facial é de tranquilidade.

O aprimoramento corporal e expressivo que o dançarino precisa adquirir no

treino, seguindo a complexidade das talas (ritmos crescente e decrescente)

configuram uma situação de concentração e relaxamento, na qual nada deve se

exceder. “O movimento no momento exato é uma relação harmônica entre correr e

não-correr, estar pronto para atacar e estar esperando tranquilo sem objetivos, como

na Dinâmica Postural de Bartenieff” (FERNANDES, 2014, p. 323).

A autora encontra nessas atitudes corporais aparentemente antagônicas uma

correspondência entre a arte indiana e seu dimensionamento na vida cotidiana. Essa

conexão entre arte e vida, contudo, parece não acontecer de maneira espontânea,

como sugere Fernandes ao observar que é possível treinar esse estado psicofísico de

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tensão-relaxamento da bharatanatyam para o cotidiano. Assim, tanto a Análise de

Movimento de Laban quanto a bharatanatyam operariam numa relação de harmonia,

já que está nelas presente “este relacionamento entre interno-externo na vida e na

arte” (2014, p. 323).

Já pela via qualitativa, Plá (2012) investiga as relações entre a meditação budista

e o teatro, vendo neles um ponto de encontro com a formação do artista cênico.

Conforme ele observa, a técnica insere-se no âmbito da pré-expressividade, como um

momento antes da cena, no qual o artista trabalha sua presença cênica antes de

significar algo, observando em sua própria prática como a técnica e o treinamento em

meditação lhe ajudam a compreender a inseparabilidade entre o sujeito que pratica a

meditação e o objeto da meditação, já que o essencial seria a maneira como o sujeito

se coloca diante da própria ação. Nesse sentido, “Não se trata de treiná-lo para servir

de veículo da comunicação, mas sim propor-lhe a transformação, a mudança de

estados, permitindo dessa forma, o acesso a outras formas de ser” (PLÁ, 2012, p. 37).

Dessa maneira, o autor acredita que a meditação budista pode trazer ao ator o

desenvolvimento de uma capacidade de se transformar por meio de suas ações e

descobrir níveis de atuação mais sensíveis. Ao colocar o artista cênico e o corpo como

protagonistas do processo de formação, Plá atenta para os riscos de apropriações

utilitárias e mecanizadas da técnica e do treinamento que desconsidere uma formação

mais abrangente do sujeito, incluindo sua transformação.

[...] em um contexto que envolva atores em formação, esse tipo de abordagem pode levar a uma sobrevalorização dos procedimentos, orientando o estudante a uma visão utilitarista do treinamento, entendendo isto como a crença em um tipo de prática que é independente dos indivíduos. A técnica, nesse sentido, é vista enquanto modo de ação no mundo, que independe do modo como se está, ou se é, neste mundo [...]. O estudo envolvendo o teatro e a prática da meditação, no entanto, convida a uma visão sobre a técnica e o treinamento que parte da inseparabilidade entre sujeito e objeto, apontando para uma relação de interdependência, ou inter-ser como diria Tich Nah Han, entre a ação e o agente, na qual a eficácia de um procedimento depende, também, do modo como o artista se coloca diante de sua própria ação (PLÁ, 2012, p. 3).

Ambos os autores lançam um olhar atento à técnica e ao treinamento a partir

das formas psicofísicas asiáticas, porém percebo que a investigação sobre práticas

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meditativas permite uma aproximação maior com estados mentais mais sutis,

captando determinadas qualidades como o vazio, o silêncio, o olhar, além dos

aspectos mais subjetivos, alguns temas existenciais como a questão da morte, a

investigação de estados de transe instaurados em rituais etc. Enquanto a investigação

sobre as minúcias das formas artísticas asiáticas parece colocar em questão uma

condição mais alerta e propícia à criação, relações entre a fisicalidade e as alterações

psíquicas, como um espaço entre o tensionamento e o relaxamento, além de

apropriações criativas das formas técnicas.

Independentemente se os pesquisadores mencionados têm como ponto de

partida para suas reflexões a dança, o teatro, a performance ou as formas artísticas

da tradição asiática, acredito que eles tocam em pontos importantes, que dialogam

com esta tese: tradição e contemporaneidade, treinamento e formação como

potenciais transformadores arte-vida, relação entre procedimentos técnicos e o

potencial transformativo do intérprete.

Nesta tese, proponho uma abordagem que explora ambas as vias mencionadas,

contemplando tanto o caminho da meditação yogue, quanto do treinamento psicofísico

em bharatanatyam. No capítulo 1, passeio pela trajetória que me levou a buscar um

trabalho de autoaperfeiçoamento em meu cotidiano e a posterior busca em

estabelecer relações com a prática cênica, desencadeando na pesquisa acadêmica.

Dessa maneira, questões sobre meditação, yoga, o contato com a bharatanatyam, o

aprofundamento desses estudos na Índia e a importância da integração psicofísica no

treinamento estão relatados na primeira parte desse capítulo. Na sequência,

demonstro como o contato com o grupo de pesquisa Pallavi na Universidade Estadual

de Campinas, e a rede de influências ali geradas, proporcionaram o levantamento de

questões e reflexões profícuas para a tese. Na última parte do capítulo 1, apresento o

percurso pelos 5 laboratórios de pesquisa com artistas da cena em formação e com

praticantes de yoga, demonstrando como busquei integrar as experiências relatadas

anteriormente.

No capítulo 2, apresento alguns dos princípios técnicos e conceituais do yoga e

da bharatanatyam que nortearam este trabalho, centrando-me, principalmente, nos

propósitos do trabalho psicofísico, nas metodologias de treinamento sobre as mínimas

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partes, tais como exercícios de isolamento rítmico (com os pés, mãos, olhos,

sobrancelhas, pescoço etc.) e na composição de formas corporais.

No capítulo 3, reflito sobre uma possível aproximação entre os princípios

ressonantes que podem existir entre essas práticas e o trabalho do artista cênico

contemporâneo, agrupando-os em torno de eixos qualitativos, quais sejam: “o olhar

do observador e o cultivo da mente: concentrar e meditar”, “trabalho sobre os sentidos,

técnicas de dissociação e as mínimas ações”, “percepção do fluxo: o respirar”, “gestos

como portais para a comunicação” e “o princípio da forma e suas reverberações no

corpo que dança”. Todos esses eixos inter-relacionais foram desdobrados durante a

abordagem dos laboratórios.

O capítulo 4 é composto pela reunião do material levantado na pesquisa de

campo, a ver: áudios, vídeos, fotografias, questionários, depoimentos e um diário de

bordo, que serviram de parâmetros às reflexões, às análises e ao levantamento de

questões e problematizações. A metodologia da observação participante (VIANNA,

2007) foi utilizada como abordagem na condução dos laboratórios, com o intuito de

propiciar um território maleável, auxiliando a rever estratégias de ação durante o

percurso.

No capítulo 5, contrasto os grupos participantes dos laboratórios em termos de

suas similaridades e dissonâncias, dos resultados a que cada um chegou e o que

deles poderia extrair para a reflexão final. Aponto uma aproximação das diferentes

etapas deste trabalho com os dois tipos de treinamentos do artista cênico identificados

por Bonfitto (2009), isto é, como práxis e como poiesis, sendo o primeiro referente a

sistemas codificados e materiais com objetivos pré-fixados, e o segundo ligado à

emergência de materiais de criação na interação do sujeito com a prática.

As experiências dos laboratórios permitiram contemplar o potencial de

autoaperfeiçoamento da técnica e da poética, em que não precisa haver,

necessariamente, uma separação. Isto é, as transformações que ocorreram a cada

etapa deslocaram o foco do treinamento inicial como práxis, ligado às partituras

corporais da dança cênica indiana e do yoga, ao treinamento como poiesis, no qual

os participantes entraram em contato com formas de criar a partir da improvisação.

Essa mudança ocorrida nas abordagens dos laboratórios foi interpretada como um

reflexo das transformações de meu olhar sobre o objeto de estudo, do que de uma

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evolução observável nos participantes da pesquisa. Percepção essa que, ao fim, me

levou a refletir sobre a não separação entre ambos os tipos de treinamento.

No capítulo conclusivo, reúno os principais elementos traçados na trajetória

deste trabalho e reflito sobre os possíveis caminhos que os questionamentos e as

observações realizados podem levar, ressaltando que a pretensão deste trabalho não

foi apresentar uma nova metodologia para o trabalho do artista cênico. Buscou-se,

antes, oferecer um debate fundamentado em uma experiência intercultural, com o

intuito de contribuir para os estudos formativos na cena contemporânea.

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CAPÍTULO 1

DEFININDO CAMINHOS

1.1 Um breve percurso pelo yoga e pela dança cênica bharatanatyam

Meu interesse em enveredar pelos estudos do corpo-mente veio da infância,

quando permanecia sentada ou deitada por muitas horas em algum canto da casa ou

entre arbustos do jardim. Me lembro de ficar bem quieta, vendo e ouvindo as coisas

ao redor, prestando atenção em minha respiração, processo que às vezes me

transportava para um campo de sensações físicas, como se meu corpo fosse uma

massa informe, ora muito grande e pesada, ora leve e minúscula, num fluxo de

imagens que apareciam e desapareciam. Nessas experiências, tinha a consciência

de que estava na mesma posição, porém percebia meu corpo fluindo em conjunto

com aquelas sensações que, ao mesmo tempo, se materializavam em minha mente

como imagens. Apesar de não compreender o porquê daquelas sensações e

percepções, me lembro da curiosidade em nelas mergulhar, buscando prolongá-las

ao máximo.

Anos depois, quando comecei a praticar yoga, me flagrei revivendo episódios

semelhantes aos da infância, porém em outros níveis. Ao imergir nas filosofias

yogues15, compreendi que o estudo da mente e de seus processos se constitui em

uma vasta ciência, que envolve um estudo minucioso dos possíveis níveis de

percepção que podem ser alcançados, bem como os diversos obstáculos que

dificultam a meditação.

Ao contrário do que se poderia pensar, a meditação não tem a ver com a

anulação da mente, porque seu funcionamento coloca em jogo um fluxo ininterrupto.

Acredita-se na possibilidade de, contudo, acalmá-la. Os yogues também apontam

15 Me refiro aos estudos das tradicionais filosofias Samkhya e Tantra por meio do Sistema Shivam Yoga. A primeira lida com especulações acerca da formação do universo e do mundo fenomênico e o complexo conjunto de relações entre o micro e o macrocosmo. A segunda é uma ciência voltada às práticas cotidianas de purificação do corpo.

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uma diferença básica entre “concentração” (dharana) e “meditação” (dhyana),

enquanto a primeira consiste em fixar ou focar a mente em um objeto/pensamento de

contemplação, a segunda seria uma contemplação continuada, mais profunda

(BHASKARANANDA, 1996).

A prática de yoga – considerando a meditação como um sinônimo – constitui-se

em uma longa trajetória que vai muito além de metas contemporâneas como redução

de stress e promoção do bem-estar. Envolve uma ética comportamental, exercitada

no cotidiano das ações, dos pensamentos e dos impulsos vitais. Lida com exercícios

práticos de ativação e desobstrução energética, auxiliando em seu redirecionamento

pelo corpo.

A conhecida posição de lótus16 usada na meditação é uma dentre as várias

possibilidades desse exercício. Por meio dela aprendi a trabalhar a firmeza física

necessária para manter a coluna ereta e evitar, ao mesmo tempo, uma atitude

enrijecida dos músculos. Considerando a mente como um todo integrado ao físico,

ambas as qualidades, firmeza e flexibilidade, são possivelmente lapidadas e

integradas ao longo dos anos. Reaprendi a respirar e a direcionar o ritmo respiratório

quando desejo buscar um estado de tranquilidade ou a aumentar sua velocidade

quando a intenção é ativar o corpo/mente. Aprendi que a incursão nesses estudos é

o vivenciar diário de uma experiência investigativa.

Os anos de prática me deixaram um pouco mais à vontade para experimentar

alguns caminhos no yoga, como o trabalho sobre pontos específicos em meu corpo e

os efeitos das vibrações sonoras sobre os centros energéticos (chakras), meditar

observando algum ponto externo (como a chama de uma vela) e perceber um tipo de

identificação com o objeto (a chama, por exemplo). Um tipo de atenção que muitas

pessoas desenvolvem espontaneamente quando assistem a uma performance

artística, ouvem atentamente uma música ou qualquer outro elemento que permita

uma total absorção da mente. Contudo, quando isso acontece de maneira consciente,

aí se encontra um dos elementos transformadores da meditação, porque envolve a

observação de um caminho em potencial de integração corporal.

16 Padmasana ou posição de lótus é uma forma de se sentar com as pernas cruzadas portando os pés sobre as coxas opostas, tradicionalmente usada pelos yogues em meditações. Essa posição tem o objetivo de “neutralizar” a parte mais física, ou instintiva do indivíduo e impulsiona o fluxo energético (prana) para cima.

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Abraçando o yoga também como profissão, comecei a ministrar aulas e a aplicar

massagens da medicina ayurveda, um sistema que envolve profundo conhecimento

sobre o funcionamento do corpo humano e dos aspectos sutis da mente. Ao longo dos

anos em que vim ministrando essas aulas, tive alunos que apresentavam maior

facilidade para a visualização de cores e imagens nas práticas de meditação e de

relaxamento, e relatavam que as vocalizações de mantras sensibilizavam diferentes

pontos em seus corpos. Um deles, professor na Escola de Belas Artes da

Universidade Estadual de Minas Gerais, chegou a levar algumas dessas práticas para

a sala de aula, observando que geravam um ambiente no qual os alunos se percebiam

mais disponíveis ao trabalho criativo. Antes desses relatos, eu nunca havia pensado

em aplicar esses conhecimentos com uma abordagem artística, como, de fato, veio

ocorrer durante os anos da pesquisa para esta tese.

Experimentei o caminho da meditação no ensino de escrita criativa na época em

que lecionava disciplinas de Língua Portuguesa e Produção Textual em uma escola

da rede pública17. À princípio, alguns alunos se sentiam desconfortáveis com

propostas como permanecer em silêncio, prestando atenção na respiração, ou

trabalhar com a visualização de imagens mentais18. Com todos os percalços pelos

quais um professor passa em uma sala de aula com cerca de 40 alunos adolescentes,

posso dizer que essas experiências tiveram um resultado positivo em termos da

criação de um ambiente mais favorável à concentração. Contudo, na época não me

preocupei em lançar um olhar de pesquisadora para aquelas experiências.

Quando comecei a estudar o estilo bharatanatyam de dança cênica indiana19,

assisti a uma apresentação em minha cidade do grupo Raja Radha Reddy, artistas

indianos proficientes na dança-teatro kuchipudi. Me lembro de ter ficado fascinada

com a complexidade do gestual, semelhante aos mudras que praticava em exercícios

de meditação no yoga. Os artistas dançavam com suas mãos e também contavam

histórias por meio delas, porém sem o uso da voz. Os seus gestos eram uma extensão

17 Me refiro às unidades do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, no qual atuei como

professora temporária por 3 anos. 18 Sei que a meditação se constitui em um processo longo e diário, portanto poderia caracterizar esses exercícios mais como concentração e visualização mental. 19 Iniciei com aulas regulares e workshops com as professoras Kamalaksi Rupini, em Belo Horizonte, e Juliana Bonaldo Pinho, em Curitiba, que generosamente compartilharam seus conhecimentos na área.

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do olhar. Esse, aliás, é um ponto em comum entre várias formas cênicas tradicionais

da Índia, além da marcação percussiva com os pés e a sonoridade corporal por meio

de guizos atados ao corpo. Outro aspecto semelhante são as mínimas

movimentações da musculatura facial para expressar as histórias.

Alguns anos depois, tive a oportunidade de me aprofundar nos estudos de

bharatanatyam na Índia, onde vivi por 1 ano na instituição de artes Vijñana Kala Vedi20,

localizada em uma pequena cidade no estado de Kerala. Nessa escola, estudava

diariamente dança, canto e percussão (música carnática), importantes para a

expressão e o ritmo desenvolvidos nas formas cênicas da Índia.

Essa viagem oportunizou grandes aprendizados e o estreitamento de relações

com os mestres de dança e de música (todos eles, na figura 1). Vivenciar de perto o

cotidiano de Kerala, me auxiliou a compreender como essas artes são vivas no

cotidiano da população, sendo apresentadas em festividades dos templos, teatros e

competições anuais. Também percebi como existe uma sobrevalorização do

treinamento diário por parte dos artistas, que encaram a técnica como parte da própria

vida. A técnica é uma identidade, uma forma de viver.

Isso foi positivo na minha experiência artística na medida em que passei a ter

uma outra visão sobre o treinamento, compreendendo melhor seu caráter de

aprimoramento, ao invés de ver nele apenas um conjunto de aquisição de habilidades

específicas.

20 Vijñana Kala Vedi Cultural Centre foi uma instituição de artes, coordenada por Louba Schild, que funcionou entre os anos de 1976 e 2009. Seus objetivos eram: orientar artistas estrangeiros, pesquisadores e turistas com oportunidades para se familiarizar com a cultura e a arte da Índia, sobretudo de Kerala; preservar as artes e ofícios tradicionais de Kerala no seu contexto espiritual; promover a educação artística de jovens da região.

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Figura 1 - Apresentação de bharatanatyam com músicos ao vivo. Local: Teatro Vijñana Kala Vedi, Índia, 2009. Foto: R. Valsara Co.

Figura 2 - Aula de bharatanatyam com Soumya Bijukrishna. Local: Viñana Kala Vedi, Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal.

Figura 3 - Aula de percussão com Subhash Chengannur. Local: Mridanga Vidyapeedam, Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal.

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Nas aulas de música, mergulhava nas intrínsecas relações entre os diferentes

tipos de ritmo e a importância da poesia lírica para a dança encenada. Na dança, o

tambor marca o ritmo e acompanha a encenação, assim como o timbre da voz do

cantor evolui conforme a evolução da tensão dramática. Assim, todos os elementos

se integram na composição, não se tratando, portanto, de seguir o ritmo de uma

música ou de reproduzir passos decorados.

Enquanto o treino com o canto e o tambor me transportavam para um estado

mais fluido, como uma meditação, percebia um processo por vezes antagônico com o

treinamento da bharatanatyam. À medida em que se aproximava a data da partida,

ficava angustiada por não ter tido tempo de me aprofundar mais. Consequentemente,

comecei a desafiar a resistência de meu próprio corpo e acabei sofrendo com as

tensões geradas pela minha mente e pelo meu corpo, um processo semelhante ao

descrito por Zarrilli (2009) quando em sua primeira viagem à Índia para o aprendizado

da arte marcial kalarippayatt e do teatro kathakali.

Ao refletir sobre a divisão corpo/mente herdada de sua educação norte-

americana, masculina e competitiva, o autor caracteriza seu comportamento inicial

diante do treinamento como “agressivo”, levando-o a tentar forçar os exercícios em

seu corpo, gerando uma “tensão desnecessária” (ZARRILLI, 2009, p. 24). Somente

após anos de prática, pode perceber uma mudança na qualidade dos exercícios,

aprendendo a aquietar a mente e a manter-se focado. Em suas palavras: “Ao invés

de ser direcionado para um fim ou objetivo, meu corpo e mente estavam sendo

positivamente integrados e cultivados para o engajamento no que eu estava fazendo

no momento presente”21 (ZARRILLI, 2009, p. 24).

No meu caso, comecei a observar que as qualidades de desprendimento das

ações, da não agressão e da autoentrega22, tão explicitados nas práticas de yoga, não

se manifestavam espontaneamente no treinamento cênico. Acabei sofrendo uma

lesão que me levou a parar de treinar bharatanatyam por algum tempo, porém esse

período me ajudou a refletir sobre qual era o meu propósito como artista e por que era

21 No original: “Rather than being directed to an end or goal, my body and mind were being positively integrated and cultivated for engagement in what I was doing in the present moment”. 22 Essas são éticas comportamentais no campo de estudos do yoga, que serão melhor caracterizadas no próximo capítulo.

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tão difícil trazer para o treinamento semelhante tranquilidade que conseguia nas

práticas de yoga.

Aos poucos, fui abandonando a ideia de chegar a uma perfeição que talvez

nunca aconteça e a buscar na dança um aprimoramento, que muito mais tem a ver

com uma capacidade gradual de refinar a arte e a mim mesma nesse processo. Trazer

a meditação para o treinamento tornou-se para mim uma questão fundamental, a partir

da qual passei a levar maior consciência para meu corpo e a observar se minha mente

estava realmente presente na prática. Zarrilli caracteriza esse tipo de treinamento

como pré-performativo, pois

A preocupação inicial não é no fim – no desempenho per se – mas sim em tomar o artista o tempo necessário para trabalhar em si mesmo. O eu em que se trabalha não é o psicológico/comportamental mas o psicofísico – o eu experiencial/perceptivo auto-constituído no momento pela consciência sensorial, percepção e atenção para com o corpo-mente no ato de fazer e ser sensível ao ambiente23 (ZARRILLI, 2009, p. 29, tradução minha).

Contudo, não foram apenas essas dificuldades que enfrentei durante o

treinamento. As primeiras experiências com o estudo da expressão facial foram muito

frustrantes, primeiramente porque o trabalho exigido para o intérprete de

bharatanatyam passa pela capacidade de isolar a base corporal (quadril, pernas e

pés) da parte superior (face, mãos e tronco), portanto, vários temas do repertório

agregam a ação gestual e a expressão facial, enquanto os pés repercutem o ritmo

musical em padrões complexos e cadenciados. Percebia que minha expressão ficava

“chapada”, enquanto tentava lidar com a dificuldade em manter o ritmo. E não era

somente uma questão de falta de resistência ou de treino. Essa capacidade

simultânea de tensão e de relaxamento aparentemente ainda não haviam se integrado

qualitativamente em meu corpo.

Outra questão na encenação indiana é que o artista pode assumir vários papéis

em um curto período e precisa saber lidar com rápidas transições, portanto,

23 No original: “The initial concern is not on the end - on performance per se - but rather on having the actor take the necessary time to work on himself. The self on which one works is not the psychological/behavioral self but rather the psychophysical self – the experiential/perceiving self-constituted in the moment by sensory awareness, perception, and attentiveness to one's bodymind in the act of doing and as responsive to the environment”.

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simplesmente não dá tempo para sentir antes de expressar uma situação como essa.

Entendi após alguns anos que essa capacidade de observar sem se envolver não

significa uma desconexão, apenas um olhar mais amplo para a ação, tal qual o olhar

do meditador.

Durante o período de estudos na instituição Vijñana Kala Vedi, a mestra

Anupama Pillai, sugeriu que eu participasse de um curso intensivo com o professor

Kesavan Namboodiri, formado no renomado estilo kalamandalam, direcionado ao

estudo dos mudras e da expressão no kathakali24, para que eu pudesse liberar a

expressão facial já que estava sendo introduzida no repertório das danças

expressivas.

Nas aulas, Kesavan introduziu a posição de base a partir da qual partem os

exercícios rítmicos com os pés (semelhantes ao treinamento de adavus) para

fortalecimento e aterramento, além de práticas dos gestos com as mãos (hasta

mudras), dos exercícios de expressão (navarasas) e algumas práticas de movimento

do globo ocular em diferentes direções (kannu sadhakam), semelhantes ao

treinamento de bharatanatyam. Essa é uma parte que recebe especial atenção no

treinamento, pois os olhos são um veículo de expressão poderoso, demandando

muitos anos para o artista dominar a movimentação da musculatura ao redor dos

olhos, incluindo as sobrancelhas. No kathakali, a expressão facial envolve um estudo

detalhado dos movimentos musculares da face, enquanto na bharatanatyam a ênfase

da expressão recai primordialmente no nível dos olhos.

24 Kathakali é uma forma artística mais próxima do teatro, mas tem um treinamento semelhante ao da bharatanatyam. Tem origem na região sul indiana de Kerala e começa a ser popularizado no século XVII, quando peças baseadas nos épicos Mahabarata e Ramayana foram adaptadas pelo rei de Kottarakkara e interpretadas por sua trupe (cf. BOLLAND, 1980). Tais peças são encenadas por meio de diálogos compostos pelas mãos (mudras), expressão facial (abhinaya), intercaladas por danças solo, acompanhadas por instrumentos de percussão e canto. A marca mais notável no figurino é a maquiagem, minimamente elaborada ao molde de máscaras, que caracterizam os personagens, dependendo da cor predominante e dos traços que as compõem. As peças costumam durar cinco horas e geralmente são encenadas diante de templos no horário noturno.

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Figuras 4, 5, 6, 7 e 8 - Etapas do treinamento expressivo de kathakali: exercício com os olhos, exercício com gestos, olhos e sobrancelhas e aula de maquiagem a partir de um dos

personagens tradicionais. Local: Vijñana Kala Vedi , Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal.

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Apesar das aulas de kathakali terem me auxiliado a acender as expressões

faciais, percebia eu ainda buscava recuperar aquela emoção que impulsionara a

expressão, quando ensaiava os repertórios de bharatanatyam. Me vi diante do

seguinte impasse: essa expressividade dependia de um estado determinado no

momento de um espetáculo, ou eu teria que ensaiar muitas e muitas vezes as mesmas

coreografias para assimilar as sutilezas da expressão?

Hoje vejo que talvez seja um pouco de ambos. Sem a verticalização na técnica

a expressão pode ser construída a partir de parâmetros previamente construídos ao

longo da experiência no campo da cena. Entretanto, essa construção mais

“espontânea” pode não funcionar de acordo com o contexto de determinado

personagem. Ao mesmo tempo, é preciso que algo seja desencadeado internamente

para que a personagem ganhe vida por meio dos artifícios, uma experiência adquirida

por meio da técnica, mas mesmo essa constatação pode não valer para o trabalho do

artista cênico em geral, porque estou falando da perspectiva de determinado tipo de

arte, com suas próprias regras e codificações.

Todas essas vivências impulsionaram-se a pensar sobre a maneira como essas

matrizes estéticas e esse modus operandi de treinamento podem contribuir para uma

pedagogia da cena, para a formação do artista no Brasil.

No meu ponto de vista, há uma clara diferença entre o rigor que decido manter

dentro do treinamento em dança-teatro indiana e a prática de yoga e a possibilidade

de me apropriar desses conhecimentos – técnicos ou poéticos, ou talvez técnico-

poéticos? – para realizar minha própria alquimia criativa. Em ambos os casos, há

espaço para a ação criativa, porém, no segundo, talvez seja possível encontrar uma

abertura maior de diálogo para o contexto onde vivo, sem a imposição de regras.

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1.2 Uma rede de influências

As experiências relatadas neste breve percurso pelas práticas psicofísicas da

Índia oportunizaram questionamentos importantes para o início da pesquisa

empreendida para esta tese. Dentre esses questionamentos comecei a refletir sobre

as ferramentas e os modos de trabalho que pudessem promover um diálogo mais

próximo com o contexto do ensino brasileiro de arte, que não passasse pela mera

transposição descontextualizada dos elementos da cultura indiana. Durante os anos

em contato junto ao grupo Pallavi, coordenado pela Profa. Dra. Marília Soares na

Unicamp, encontrei uma rede colaborativa por parte dos colegas-pesquisadores das

artes asiáticas. Era unânime a busca pela possibilidade de conectar as compreensões

e práticas dos “corpos múltiplos” da Índia aos de nossa cultura25.

Antes de iniciar os laboratórios da pesquisa vivenciava um conflito metodológico.

Como transportar uma dimensão de autoaperfeiçoamento ao artista da cena em

formação a partir do yoga e da dança cênica bharatanatyam? Por um lado, havia em

jogo a questão de tempo para vivenciar esses conhecimentos e, por outro, o risco de

realizar uma apropriação puramente técnica, de maneira menos vertical.

Percebi inquietações semelhantes no trabalho de alguns colegas do Grupo

Pallavi ao me envolver em suas pesquisas individuais e coletivas. Nos laboratórios de

arte marcial kalarippayatt de Ibañez (2014) dirigido a alunos do curso de artes cênicas

da Unicamp, comecei a vivenciar em meu corpo, conflitos internos análogos aos que

emergem da prática de bharatanatyam e, de certa maneira, do yoga, isto é, a

necessidade de um constante estado de alerta e atenção e, sobretudo, de

autossuperação. A consciência de como esse contato com a arte marcial nos afetava

foi buscada por Ibañez em todos os participantes, que nos solicitava a escrever em

todas as aulas sobre essa experiência.

Algo que me intrigou nessas aulas, foi o impacto que a prática da luta gerou em

alguns alunos, que começaram a questionar qual era a validade daquela vivência em

25 Lembrando Strazzacappa (2012) em sua discussão sobre técnica e sua adaptação aos “corpos múltiplos” de uma

cultura. Segundo a autora: “Não se pode falar de um corpo (singular), mas de corpos (plural). Portanto, não há

uma técnica (singular), mas técnicas (plural)” (STRAZZACAPPA, 2012, p. 35).

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seus trabalhos como atores (cf. IBAÑEZ, 2014). Comecei a questionar qual é a

concepção de formação cênica que tanto os programas de formação superior quanto

os alunos estão buscando? Como romper as barreiras da visão utilitarista herdada de

nossa educação tecnicista a partir do diálogo intercultural em artes cênicas? Foram

estas e outras questões que nortearam os laboratórios.

Outra influência neste percurso foram as pesquisas da Profa. Dra. Marília Soares

com base no yoga e nas danças cênicas indianas na formação pedagógica e poética

do artista cênico. Ao ter contato com a Técnica Energética26, encontrei exercícios

corpóreo-energéticos fundamentados no sistema dos chakras (pontos em que circula

a energia vital), considerados “[...] fontes de qualidade expressiva do movimento”

(SOARES, 2000, p. 34). Nesse sentido, o forte desse trabalho é a aposta de que ao

atuar sobre os chakras ou pelos canais de energia distribuídos pelo corpo, seria “[...]

possível estabelecer a relação energética palco/plateia” (ZARRILLI, 2009, p. 34), por

meio de movimentos livres, vocalizações e respirações impulsionadores do

movimento criativo. Vi, nessa pesquisa, uma possibilidade de conectar a ativação

energética à ação expressiva, que procurei desenvolver sobretudo a partir do trabalho

entre meditação e gesto.

Já as disciplinas ministradas pela professora no Curso de Pós-Graduação em

Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas possibilitaram uma imersão no

treinamento e no universo dos mitos das danças cênicas indianas, despertando ideias

para uma poética da cena, posteriormente transformadas em exercícios cênicos que

deram origem ao espetáculo Dashavatar: Poéticas de Criação27, elaborado

coletivamente pelo Grupo Pallavi.

Ainda em busca de possíveis abordagens pedagógicas, deparei-me com a

pesquisa de Andraus (2014), publicada na obra Arte Marcial na Formação do Artista

26 Técnica Energética: Fundamentos Corporais de Expressão e Movimento Criativo, tese de doutoramento defendida por Soares, apresenta a sistematização teórica do Método Energético de Direção Teatral desenvolvido pelo Prof. Dr. Miroel Silveira, na ECA-USP, cuja proposta era a utilização dos chakras em um produto cênico (SOARES, 2000). 27 O espetáculo é resultado do projeto Dashavatar: Releitura e Construção de Espetáculo de Dança-Teatro baseado na Mitologia Indiana, premiado pelo Ministério da Cultura em 2014, sob coordenação de Marília Soares e realização do Grupo Pallavi. Nessa obra, elementos da mitologia afro-brasileira, indígena e hindu foram reelaborados em linguagem cênica. As apresentações tiveram uma única temporada e aconteceram entre os dias 15 a 22 de julho de 2014, no Centro Cultural Casarão, em Campinas/SP (CIA PALLAVI, 2016).

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da Cena, na qual encontrei uma linguagem orgânica, na qual técnica e poética se

encontram a partir da reflexão da autora sobre sua prática docente em arte marcial

gong-fu na formação de artistas da cena. O que me chamou atenção em seu trabalho

foi a maneira como os elementos da arte marcial, sobretudo os de contato na luta,

gradualmente se transformam em uma dança improvisada, na qual ambas as

linguagens formam uma amálgama, tal qual a linguagem do Contato Improvisação

criada por Steve Paxton a partir da arte marcial japonesa aikido (cf. NEDER, 2010).

Uma pesquisa que dialogou também diretamente com minhas inquietações, foi

a de Cippiciani (2015) a respeito do Abhinaya, a parte expressiva das danças da

tradição indiana. Em seu trabalho, os princípios da parte expressiva da dramaturgia

clássica indiana foram transformados em treinamento para a livre apropriação do

intéprete, o que me auxiliou a pensar sobre maneiras de desenvolver processos de

criação com artistas cênicos a partir dos hasta mudras, linguagem gestual das mãos.

Assim como essas influências me ajudaram a pensar sobre formas de ação nos

laboratórios, a própria experiência docente me ajudou a transformar meu olhar sobre

minha prática, o olhar para a técnica e para a poética da cena.

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1.3 O percurso dos laboratórios de pesquisa

A fase dos laboratórios permitiu que a questão de uma abordagem pedagógica

a partir do diálogo intercultural começasse a se transformar em possibilidades. Mas

como chegar a esse ponto a partir das práticas indianas e de uma ética/estética por

trás das mesmas? Como essas podem ser transpostas e reelaboradas, tanto no

universo pedagógico do artista da cena, quanto se constituem em possibilidades de

trabalho criativo com não artistas profissionais? Como se transformam em pontes de

diálogo com o fazer do artista da cena em formação?

Voltando à questão dos laboratórios, a primeira dificuldade com a qual me

deparei foi encontrar um grupo de participantes que estivesse disposto a enveredar

em uma proposta experimental. Com a oportunidade oferecida pela Universidade

Estadual de Campinas em atuar na docência do ensino superior por meio do Programa

de Estágio Docente (PED)28, consegui participar em uma disciplina oferecida

regularmente no curso de graduação em dança, Artes Corporais do Oriente I, sob a

supervisão da Profa. Dra. Mariana Andraus29.

Nessa primeira etapa, o treinamento introdutório em bharatanatyam foi colocado

à serviço dos estudantes do curso de dança. Procurei observar como a técnica seria

recebida pelos artistas em formação. Quais as linguagens e os procedimentos

presentes nessa forma artística seriam apropriadas por eles em seus trabalhos de

criação e se essas apropriações seriam mais sutis ou mais óbvias. Perceber um “[...]

estado alerta e predisposição e atenção diferente de outros treinos” (SOARES, 2015,

p. 39), tal qual Soares aponta em suas pesquisas sobre dança clássica indiana com

artistas da cena, foi uma das consequências dessa aplicação.

28 O Programa de Estágio Docente (PED) foi instituído pela Resolução GR-014/2007 na Universidade Estadual de Campinas, e funciona por meio de voluntariado e concessão de bolsas aos alunos de pós-graduação que tenham interesse em se aperfeiçoar na docência de nível superior (cf. Universidade Estadual de Campinas, 2014). 29 Mariana Andraus é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas e docente do curso de Graduação em Dança/Departamento de Artes Corporais (Unicamp). É autora das obras: Arte Marcial na Formação do Artista da Cena (ed. Paco) e Kungfu/Wushu: Luta e Arte (ed. Prismas).

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Compreendi que mais do que apresentar a técnica da bharatanatyam como

ferramenta, era importante vivenciá-la a partir de um olhar investigativo,

experimentando suas minúcias, estabelecendo novas relações temporais e espaciais

a que sua estrutura remete, bem como a busca de elos entre o que ela transforma

internamente no sujeito e externamente no cotidiano de ações. Acredito que isso foi

conquistado por alguns dos participantes, que aliaram suas intuições e percepções

sobre a técnica às suas próprias experimentações cênicas. Isso pode ser depreendido

tanto a partir de seus relatos sobre a disciplina, quanto em alguns dos trabalhos de

criação que eles apresentaram ao final do curso.

Ressalta-se que procedimentos referentes à prática da dança ocidental

contemporânea, tais como exercícios de Contato Improvisação, fizeram parte de todas

as oficinas, que ajudaram a fazer um elo a partir das matrizes estéticas propostas.

No semestre seguinte a esse primeiro laboratório, tive a oportunidade de realizar

outro estágio docente, na disciplina Formas Espetaculares do Oriente, oferecida no

Departamento de Artes Cênicas, que teve a supervisão do Prof. Dr. Cassiano Quilici30.

A partir da abordagem desse professor de buscar um equilíbrio entre teoria e prática,

procuramos propor exercícios inspirados em práticas orientais diversas, com o

objetivo de propiciar uma visão mais abrangente do que significa a estética e a ética

nessas formas. Esse foi um momento especialmente instigante para mim, pois a

proposta do curso não se centrou em uma forma artística asiática específica, como

acontecera anteriormente.

Vi a necessidade de trabalhar elementos pontuais, mais simples e desenvolver

um diálogo maior com os alunos. O mais importante foi a forma como buscamos aliar

movimentos mínimos às práticas de livre exploração, de forma a despertar, nos

artistas, qualidades de ação pautadas pelo silêncio, pela concentração, pela expansão

da voz e do gesto, e pelo equilíbrio da respiração e da mente.

Para os termos da pesquisa, essa proposta me auxiliou a concentrar menos em

técnicas específicas e mais em qualidades evocadas pela meditação, e em partituras

corporais em busca de transportá-las à experiência de novas linguagens cênicas para

30 Cassiano Quilici é professor livre-docente do Instituto de Artes da Unicamp. Autor das obras: Antonin Artaud: Teatro e Ritual e O ator-performer: poéticas da transformação de si (ambas pela ed. Annablume).

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os alunos. As questões levantadas tanto pelos participantes quanto pelo professor

Cassiano agregaram um valor significativo para a abordagem do gesto e da meditação

na cena.

Comecei a me basear em dinâmicas que eu já trabalhava nas aulas de Shivam

Yoga, tais como a meditação com as mãos e com imagens, foco na concentração e

na respiração. Isso acabou se concretizando na oficina Gesto e Criação: mudras

indianas como recurso expressivo, realizada no Unicena – Festival Cênico da

Universidade Estadual de Campinas, na qual experimentei um elo maior entre a

técnica dos hasta mudra, gestual das mãos na arte cênica indiana, e com os yoga

mudras, gestual das mãos para fins de meditação.

Nessa experiência com atores em formação, percebi que o trabalho com o gesto

pode contemplar a prática dos mudras como ativadores do circuito fisiológico e

energético e levá-los a adotar uma atitude investigativa a partir de suas mãos,

propiciando um despertar para novas possibilidades de criação.

As duas últimas oficinas tiveram um caráter diferenciado em termos do público

participante, não tendo sido compostas por artistas da cena, e sim por praticantes do

estilo Shivam Yoga. Se até esse momento havia buscado um olhar investigativo a

partir das técnicas indianas, ressaltando a necessidade de identificar como os

participantes a percebiam em seus corpos e em que medida elas transformavam seu

cotidiano, com os praticantes de yoga esse olhar investigativo se voltou à promoção

de um outro tipo de escuta por meio de materiais31 recorrentes na pesquisa cênica

contemporânea, para que os participantes se libertassem de julgamentos sobre certo

e errado, de forma a compreender outras dinâmicas corporais além das habituais

asanas de yoga.

Identificar a relação entre um posicionamento corporal e os fluxos orgânicos em

ação, perceber como um modo de respirar pode proporcionar um estado de

tranquilidade ou não, já era uma prática cotidiana exercitada pela maioria; portanto

colocar esse “yoga em ação” foi um dos meus objetivos e acredito que o resultado

31 Nesta tese, entende-se por materiais quaisquer elementos éticos e estéticos que compõem a atividade criativa do artista cênico e “[...] que adquire[m] uma função no processo de construção da identidade do próprio objeto” (BONFITTO, 2009, p. 17).

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mais positivo foi o de relacionar a experiência criativa como potencial de

autoaperfeiçoamento, construída a partir de uma qualidade coletiva de trabalho.

No último laboratório, um grupo de praticantes de yoga se reuniu em torno de

vivências organizadas pela terapeuta Alessandra Cunha e por mim, em um sítio no

qual o contato direto com a natureza propiciou um outro tipo de dinâmica, momento

em que a essência de todo o material anteriormente trabalhado durante a pesquisa se

transformou em uma linguagem mais orgânica. Em decorrência, a meditação, o gesto,

a expressividade e as dimensões internas e externas da ação formaram um conjunto

que começou a tomar feição e autonomia.

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CAPÍTULO 2

YOGA E BHARATANATYAM: UM CAMPO DE CONFLUÊNCIAS

O percurso delineado no capítulo anterior capítulo antecipa uma série de

elementos que se encontram melhor desenvolvidos nas próximas páginas. Para

delinear as ideias sobre as quais me apoiei a partir da vivência com as práticas

psicofísicas indianas, procuro apresentar algumas de suas características em termos

de uma ética e uma estética, visando sempre um diálogo com o campo de atuação do

artista cênico.

2.1 Senda do yoga: o caminho da meditação

Yoga é um sistema de práticas psicofísicas, éticas e espirituais, voltadas ao

autoaperfeiçoamento, desenvolvido na Índia há pelo menos dois mil anos. Compõe

um dentre os seis grandes sistemas da filosofia indiana32.

As bases conceituais sobre as quais se fundamenta o yoga moderno se

encontram no tratado de Patañjali, Yoga Sutras33, obra que aponta oito grandes

caminhos a serem cultivados para dominar a meditação34. São eles: 1) yamas –

preceitos éticos universais divididos em “não violência”; “verdade”; “não prejudicar o

outro”; “vida simples” e “conhecimento espiritual”; 2) niyamas – princípios éticos para

consigo mesmo divididos em “limpeza do corpo e da mente”; “contentamento”;

“disciplina”; “estudo próprio” e “autoentrega”; 3) asana – práticas psicofísicas; 4)

32 Os seis sistemas da filosofia indiana conhecidos como darshanas são: Nyaya, Vaisheshika, Samkhya, Karma, Yoga, Mimansa e Vedanta. 33 O Yoga Sutra é composto por versos curtos (sutras), contendo 4 capítulos, dos quais: “O caminho da iluminação” (Samadhi Pada), “O caminho da prática” (Sadhana Pada), “O caminho dos poderes” (Vibhuti Pada), “O caminho da libertação (Kaivalya Pada). 34 Na obra de Patañjali, dominar a meditação é o mesmo que alcançar o yoga, conforme lembra Bhaskarananda (1996), isto é, chegar a um estado psicofísico de “plena libertação” (IYENGAR, 2012, p. 48).

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pranayama – trabalho sobre a respiração; 5) pratyahara – trabalho sobre os sentidos;

6) dharana – concentração mental; 7) dhyana – meditação; 8) samadhi – estado

máximo de supraconsciência (IYENGAR, 2012, p. 141-142).

Contudo, o que pode parecer a prescrição de um caminho “reto”, pode ser

entendido, conforme observa Cosmelli, no sentido de “[...] percorrer o caminho de sua

própria experiência” (COSMELLI, 1999, p. 21). As práticas de cultivo do yoga têm o

objetivo maior de conquistar o samadhi, um estado da consciência que foi descrito por

muitos yogues em graus distintos de qualidade e de alargamento da percepção de

tempo e espaço adquirido por meio da meditação profunda35.

Sua práxis se desenvolve basicamente a partir do sistema dos chakras (centros

reguladores de fluxos energéticos) e das nadis (canais que perpassam a coluna), com

o intuito de despertar uma força latente situada na base da coluna, denominada

kundalini, metaforicamente associada a uma serpente adormecida, que quando

acordada se eleva pela coluna até acima da cabeça, ampliando estados de

consciência. Esses aspectos tornam-se compreensíveis pela prática diária.

A concepção de corpo que o yoga – e as artes da tradição indiana em geral – traz advém de uma herança filosófica empírica, que o vê como uma força latente, um yantra (ou imagem ativa e receptiva), a partir do qual se pode obter um profundo conhecimento mais universal de si. Para tanto, esse corpo/yantra pode ser aperfeiçoado, aprimorado e fortalecido por meio de práticas purificatórias e energéticas (WILDHAGEN, 2014, p. 3).

De fato, até pouco mais de um século, essas práticas eram transmitidas

oralmente de mestre a discípulo em um sistema fechado. Atualmente, é possível

encontrar obras que detalham metodologias e procedimentos semelhantes aos

caminhos propostos nos Yoga Sutras, como por exemplo as publicações do yogue B.

K. S. Iyengar, um valioso estudo que coloca em jogo a atualidade desses

ensinamentos frente a vida contemporânea. Em termos de técnica, os exercícios

yogues sugeridos por Patañjali são muito vagos, tais como: “A posição deve ser firme

35 Sobre a experiência do samadhi, pode-se citar os relatos difundidos no Ocidente no século passado como os de Yogananda, por meio da obra Autobiography of a Yogue, e de Aurobindo, em Record of Yoga.

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e confortável” (IYENGAR, 2012, p. 157); “Tem-se domínio sobre a posição quando

nela se permanece meditando no infinito” (IYENGAR, 2012, p. 157).

Nair explica que, para além de técnicas, as práticas corporais, mentais e

respiratórias acabam por “levar a um estado de libertação [...] da ilusão cósmica,

através da compreensão onipresente do “princípio cinético” localizado no corpo”

(NAIR, 2007, p. 78). Esse princípio cinético corresponde na ciência yogue à

movimentação do prana, energia vital contida no ar que respiramos, que adquire

qualidades diferentes à medida em que circula pelo corpo (ALMEIDA, 2007). Em

síntese, é como se fôssemos capazes de levar um olhar interno a cada ponto – como

por exemplo, os chakras – e perceber as qualidades e potencialidades de ação a partir

dali.

Independentemente desses detalhamentos sobre técnicas específicas, acredito

que o mais importante seja o fortalecimento de uma conexão entre o que se faz e a

maneira como aquilo produz uma transformação gradual no sujeito, levando-o ao

aperfeiçoamento de si em consideração a toda uma coletividade da qual faz parte.

Há ainda nas práticas yogues a ideia de que seus exercícios são realizados

como um “sacrifício”, retirando a mente, os sentidos e a consciência dos objetos

externos, com o intuito de dominar os sentidos. Por exemplo, na obra Bhagavad

Gita36, o personagem Krishna menciona uma delas:

E há mesmo outros que estão inclinados ao processo de restrição da respiração para permanecer em transe, e praticam o cessar do movimento do alento que sai no alento que entra, e do alento que entra no alento que sai, e assim no final ficam em transe suspendendo toda a respiração. Alguns deles, restringindo o processo alimentar, oferecem o alento que sai em si mesmo como um sacrifício (VYASA, 1986, p. 199).

Yarrow (2001) observa que essa ideia de “sacrifício” pode ser compreendida

como uma atitude de abertura à possibilidade de habitar o momento, no qual todas as

possibilidades de vir a ser se encontram latentes. Me arrisco a dizer que essa

possibilidade de imergir no tempo presente é uma das questões fundamentais em

36 Obra religiosa escrita em sânscrito, que compõe parte do épico Mahābhārata (sec. IV a.C.), composta sob a forma de um diálogo entre um deus (Krishna) e um guerreiro (Arjuna), para quem são transmitidos ensinamentos para seu autoaperfeiçoamento.

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todas as práticas orientais que trabalham o sujeito a partir do foco psicofísico. Habitar

o instante exige uma total entrega de si ao inesperado. Yarrow, citando Antonio de

Nicolás, define esse “estado sacrificial” como:

“[...] uma prontidão para desistir de todas as estruturas e sistemas de pensamento e comportamento reconhecidos e confortavelmente habitados, estar preparado sempre e em qualquer momento para mudar de ideia rumo ao imediatismo do momento, no qual a consciência e o ser estão unidos” (YARROW, 2001, p. 117).

Estar imerso em um estado de entrega permite compreender também um dos

caminhos do yoga, que é o desenvolvimento da capacidade de se desprender dos

resultados das ações. No contexto contemporâneo, o desenvolvimento dessa

habilidade torna-se um grande desafio quando pensamos em termos de uma

sociedade que visa cada vez mais a produtividade e a agilidade dos acontecimentos.

Além da questão do desprendimento, o yoga trabalha com um princípio de

integração da mente, denominado samyama. Nos Yoga Sutras, Patañjali se refere a

essa prática como uma forma de integrar a inteligência, o ego e o princípio do eu (cf.

IYENGAR, 2012). Samyama pode ser compreendido e exercitado em todas as ações

quando se coloca concentração (dharana) de forma imergir em um estado de

meditação (dhyana) até passar para uma total absorção da mente (samadhi). Patañjali

explica da seguinte maneira como ocorre esse processo:

Fixar a consciência em um ponto ou região é concentração (dhāraṇā). Um fluxo constante e contínuo de atenção dirigida para o mesmo ponto ou região é meditação (dhyana). Quando o objeto de meditação absorve o praticante, aparecendo como o tema, a auto-consciência é perdida. Este é samadhi. Estes três juntos [dhāraṇā, dhyana e samadhi] constituem integração ou samyama. Do domínio de samyama vem a luz da consciência e do discernimento. Samyama pode ser aplicado em várias esferas para se obter a sua utilidade37 (IYENGAR, 2012, p. 178-182, tradução minha).

37 No original: “Fixing the consciousness on one point or region is concentration (dhāraṇā). / A steady, continuous

flow of attention directed towards the same point or region is meditation (dhyāna). / When the object of meditation

engulfs the meditator, appearing as the subject, self-awareness is lost. This is samādhi. / These three together

[dhāraṇā, dhyāna and samādhi] constitute integration or saṃyama. / From mastery of saṃyama comes the light

of awareness and insight. / Saṃyama may be applied in various spheres to derive its usefulness”.

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O samyama (concentração-meditação-supraconsciência) pode ser exercitado

em qualquer etapa, sendo o ideal, como mesmo sugere Patañjali, inseri-lo nas ações

cotidianas, claramente uma etapa mais difícil de se alcançar. Essa consciência,

contudo, não está vinculada somente ao yoga, mas em outros campos de saber. Há

vários relatos de artistas que afirmam perceber essa espécie de desidentificação entre

o que se é e o que se faz. Contudo, o que o autor dos Yoga Sutras menciona como

integração não é um estado de transe e de ausência, e sim um estado de ampliação

da consciência pela sua presentificação.

Com isso, pode-se dizer que o trabalho do yoga é fundamentalmente um trabalho

sobre o corpo em sua totalidade.

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2.2 Bharatanatyam dharma: o caminho do gesto expressivo

“É a ação, não o ator, o que é essencial para a arte dramática”

(COOMARASWAMY, 1987, p. 3, tradução minha).

Bharatanatyam38 é um estilo de dança cênica enraizada nos costumes e ritos

devocionais da Índia, originada no estado sul indiano Tamil Nadu. É também um

sistema composto pelo treinamento psicofísico imbuído de valor ético e estético, cuja

principal característica é a base técnica marcada pela precisão geométrica, pelo

complexo sistema rítmico e pela expressão facial e gestual das mãos, que compõem

a arte de contar histórias.

Tem como berço a arte de natya39, termo utilizado no tratado Nāṭya Śāstra

(Tratado sobre Dança/Teatro), para denominar a ação encenada ou dançada, que

caracteriza tanto as formas regionais e populares, denominadas desi, quanto as

formas clássicas, denominadas margi. Como observa Andrade (2007), sua formação

veio da assimilação da expressão folclórica local dentro da Grande Tradição40,

ganhando destaque com as devadasis, mulheres que integraram os ensinamentos

dos tratados artísticos às celebrações e ritos diários dos templos.

A arte incorporada aos rituais sagrados e ritos sociais teve um expressivo

desenvolvimento em Tamil Nadu, entre os séculos IX e X d.C, devido a um período

mais próspero da governança local, que passou a patrocinar dançarinos, mestres de

dança e músicos. Os ritos de performance que eles criaram se diferenciavam

38 O nome bharatanatyam remete a pelo menos três significados, sendo: 1º) Bharat = território da Índia, e natyam = drama (dança e teatro), ou seja, “dança da Índia”; 2º) Bharata = nome do suposto autor do antigo tratado Nāṭya Śāstra, cuja tradução seria “dança-teatro codificada por Bharata Muni” (cf. LOPEZ y ROYO, 2004); e 3º) nome que remete à junção de: bhavam (expressão/emoção), ragam (melodia), talam (ritmo ou batida) e natya (dança, teatro), que revela mais seu caráter interdisciplinar. 39 Segundo Shanmuganathan, natya ocorre: “Quando o artista desempenha o papel de um personagem e comunica o estado emocional do personagem, por meio de gestos e fala, apoiado pela música e acompanhado por movimentos apropriados” (2008, p. x, tradução minha). No original: “When the actor performs the role of a character and communicates the emotional states of the character through gestures and speech, supported by music and accompanied by appropriate movements”. 40 Grande tradição é um termo que se refere à ortodoxia “preservada e cultivada como medida de uma sociedade pelo grupo dominante” (ANDRADE, 2007). Se interliga à Pequena tradição (periferia cultural), sendo uma influenciada pela outra.

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conforme cada ocasião social. Como observa Kersenboom (2010), a classe dos

artistas (devadasis) cumpria três funções na sociedade medieval: pessoal,

especialmente durante os ritos de passagem; política, atendendo às demandas do rei;

e ritualística, em performances dos cultos dos templos (KERSENBOOM, 2010, p. 58).

Portanto, os temas das cortes giravam em torno da louvação à figura do rei, que

poderia ser representado como alguma deidade de caráter mais heroico. As festas

tradicionais contavam com performances mais acrobáticas, vigorosas e rítmicas. Já

nos cultos e ritos de passagem, a atuação corporal se dava por meio de uma

elaborada linguagem gestual e facial praticada, sobretudo, diante da deidade do

templo e simbolizava um tipo de “conversa íntima” marcada pela relação devocional.

A reminiscência dessas linguagens desenvolvidas nos templos foi reelaborada

no final do século XIX dando origem ao estilo denominado bharatanatyam, a partir da

revitalização41 dos elementos culturais milenares, associados ao movimento

nacionalista de afirmação da Índia como nação. Nessa época, um grupo de quatro

irmãos (conhecidos como o Quarteto Tanjore) organizaram a estrutura do treinamento

em torno da prática de movimentos básicos em uma série progressiva de passos,

denominados adavus, bem como recriaram repertórios cênicos a partir de pesquisas

em antigas composições poéticas advindas da cultura de corte da cidade de Thanjavur

(cf. KERSENBOOM, 2010).

Na década de 1930, Rukmini Devi Arundale, primeira mulher indiana não

descendente da linhagem das devadasis a estudar as danças de Tamil Nadu, começa

a difundir a bharatantayam a partir do estilo Kalakshetra42. A tradução de importantes

tratados sobre dramaturgia como o Nāṭya Śāstra, redescoberto pelos estudiosos do

Ocidente no século XVIII, o Abhinaya Darpa na, traduzido por Coomaraswamy no

século XX, dentre outros tratados locais caracterizam as bases conceituais da

bharatanatyam e dos demais estilos cênicos tradicionais, tais como o kathakali, odissi,

manipuri, kathak, kuchpudi, dentre outros.

41 Sobre o período histórico referente ao British Raj Rule, domínio britânico na Índia até a fase que ficou conhecida como “renascimento da dança” na Índia, conferir Nandy (2003). 42 A ênfase desse estilo é o treinamento minucioso da técnica dos adavus, valorizando as linhas retas, a precisão dos movimentos e a velocidade rítmica. O estilo gerou a Kalakshetra Foundation, uma instituição de educação artística fundada em 1936 por Rukmini Devi Arundale, e foi reconhecida pelo governo indiano como Instituto de Importância Nacional em 1993 (KALAKSHETRA FOUNDATION, 2016).

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2.2.1 Algumas considerações sobre o aspecto expressivo da dança

Conforme foi observado, alguns dos parâmetros conceituais e epistemológicos

da bharatanatyam foram delineados a partir do tratado sobre as artes cênicas

indianas: o Nāṭya Śāstra (sec. II a.C. ≅ II d.C) de Bharatamuni. É considerado um dos

textos mais antigos da humanidade que aborda a dança, o teatro e a música, e se

desenvolve por meio de um diálogo entre o seu autor (o sábio Bharata) e o deus

Brahma. Alguns de seus capítulos são dedicados à história mitológica do surgimento

da dança (capítulo I), seu desenvolvimento (capítulo IV) e sua descendência no plano

humano (capítulo XXXVI).

A narrativa começa com a criação da arte de natya, que foi solicitada

coletivamente pelos deuses à Brahma, com o objetivo de recuperar valores humanos

e universais, que andavam em decadência. Assim, foi concebido um saber visual e

sonoro, no qual todo tipo de audiência poderia se ver representada. Como uma

espécie de licença poética, Bharata redige os preceitos sobre os estilos dramáticos,

os vários tipos de dramaturgia, os princípios de palco, a maquiagem, as vestimentas,

os procedimentos de atuação e os rituais apropriados ao início e ao fim de um

espetáculo.

Nessa obra, os principais aspectos que compõem a arte de natya se baseiam na

performance criada por Shiva, considerado na Índia tanto o mestre meditador e criador

do yoga, quanto o mestre dançarino, que teria transformado os princípios conceituais

da dramaturgia concebida por Brahma em uma arte viva, repleta de giros, saltos,

acrobacias e ritmo. O ritmo de sua dança é atribuído ao próprio ritmo cosmológico das

formas, com suas transformações e ciclos.

No quarto capítulo, Tandava Nritya, Bharata narra a evolução da dança a partir

das contribuições da dança de Shiva e de sua esposa, a deusa Parvati. Esta apresenta

a dança Sukumāra Prayoga, considerada mais graciosa, sendo essa forma conhecida

por lāsya, o aspecto delicado; enquanto a dança vigorosa de Shiva é denominada

tan dava. Dessa fusão entre o masculino e o feminino se compõe a arte de natya.

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Aspectos esses que estão na estrutura do treinamento da bharatanatyam, nos quais

essas mesmas qualidades se expressam por meio de suas matrizes estéticas.

Em A handbook on Nāṭya Śāstra, Vedam (2007, p. 14-15) observa que a obra

de Bharata permite evidenciar que, a partir dessas qualidades das danças

(lāsya/tandava), a arte de natya pode ser dividida em três categorias: i) nritta, que

envolve ritmos percussivos, mas sem a expressão de um tema ou emoção; ii) nritya,

dança cênica que integra a marcação rítmica dada pelos pés e expressa as emoções,

dando ênfase aos gestos e à expressão facial; e iii) abhinaya, expressões faciais e

gestos para transmitir o significado das canções e da poesia. Na bharatanatyam,

tratam-se de peças focadas na expressão dos estados emocionais, sobretudo a partir

das sutilezas do olhar, conferindo mais profundidade em torno de um tema.

A maior parte dos temas encenados na bharatanatyam tem origem em obras da

literatura, em geral escritas sob a forma de versos poéticos. Segundo Jayakrishnan

(2011), tais repertórios são compostos por épicos da literatura purânica (como o

Rāmāyana e o Mahābhārata), de caráter mais filosófico e religioso; e de conteúdos

amorosos da literatura kavya (como o Rāsa Līla e a Gita Govinda), de caráter erótico-

devocional. Basicamente, existem as peças de abertura nritya, que associam a parte

abstrata à encenação poética em homenagem a alguma deidade, como os pushpanjali

(oferenda de flores), os thodayam (primeira canção) e os mallari (dança processional).

Há ainda as peças puramente nritta (abstratas), como o allaripu (desabrochar da flor)

e o jathiswaram (jogo entre sílabas e ritmo) e as peças de nritya mais complexas, em

que a interpretação expressiva é balanceada com a ação abstrata, como os shabdam

(palavra cantada), os keerthanams (cantar em louvor) e os varnam (peça de alto grau

de complexidade rítmica e interpretativa). As peças de abhinaya, com encenação de

personagens e seus estados emocionais, ocorrem nos padam (versos poéticos), de

caráter mais devocional, e as peças de conteúdo amoroso, como os javali

(personagem feminina à espera do amado) e os ashtapadi (poemas da Gita Govinda).

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Figura 9 - Parte abstrada de uma peça shabdam, com marcação percussiva dos pés e uso de hasta mudras. Local: Tatro Vijñana Kala Vedi, Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal.

Figura 10 - Cena de uma peça ashtapadi, no qual uma mulher coloca pasta de sândalo no corpo do amado. Trecho do espetáculo Diwali. Teatro Centro da Terra/SP, 2012. Foto: Kenny Rogers.

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Sem perder seu caráter devocional e ritualístico, muitos artistas que se dedicam

à dramaturgia de natya a vêem como um caminho de autoaperfeiçoamento. Como

menciona a dançarina indiana Maya Vinayan (1970-) em ocasião de sua vinda ao

Brasil no ano de 2015, a dança “[...] é uma faísca em meu coração. Eu não posso

dizer que sou uma dançarina, é um tipo de espiritualidade. Não é apenas mexer mãos,

não é só usar o corpo, não é assim. Você mostra o que está na sua mente através do

seu corpo” (VINAYAN, 2015).

Esse objetivo de mostrar os estados mentais por meio do corpo é uma das

características fundamentais para se compreender a estética e os fundamentos de

várias danças da tradição indiana, esmiuçada a partir da obra Nāṭya Śāstra, sobretudo

na teoria do rasa. Como bem expõe Malavoglia:

Um importante fato reportado no Nāṭya Śāstra é que palavras e ações não levam à verdade; nós não podemos depender delas para conhecer o verdadeiro caráter de um homem. Por isso, o significado de uma peça só é completamente entendido quando quem assiste compreende não apenas o que é dito e feito, mas também o processo mental que está por trás dos personagens. (MALAVOGLIA, 2014, p. 251).

A capacidade de apreender o “sabor” da performance, transformando-a em uma

experiência profunda e transformadora, denominada no Nāṭya Śāstra (cap. VI, tomo

I) de rasa, ocorre por meio do trabalho de refinamento do corpo/mente do artista e dos

aspectos psíquicos – as emoções humanas – sendo a performance esse espaço mais

elevado de consciência, no qual é possível ocorrer a comunicação.

Para Vatsyayan (1968, p. 6) a teoria do rasa constitui-se de dois aspectos: o

primeiro, como objetivo a ser alcançado pela evocação de uma experiência

transcendente; e o segundo, mais direto, seriam os sentimentos, os humores, os

estados permanentes e transitórios minimamente codificados, sobretudo em

Vedam (2008, p. 126) afirma que a tradução mais direta para esse termo seria

“suco, poção, sabor”, e tem como característica promover um despertar ou conduzir a

audiência a um sentimento estético específico. Percebe-se, portanto, que rasa

envolve um propósito que vai além do mero entretenimento, alcançando níveis mais

profundos da comunicação humana.

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Já o pesquisador de arte Coomaraswamy (1999, p. 68) esclarece que a

capacidade de sentir a beleza (“de saborear rasa”43) não pode ser adquirida pelo

estudo. Ela faz parte de uma atividade interna daquele que presencia um trabalho de

arte e que, portanto, completa a relação ideal entre artista e público. Nas palavras do

autor: “é neste sentido que a beleza é o que “fazemos para” uma obra de arte, em vez

de ser uma qualidade presente no objeto" (COOMARASWAMY, 1999, p. 6844). Ele

ainda compara a visão da beleza, espontânea por si só, à luz interna do amante

(bhakta). Assim, rasa pode ser encarada como uma experiência de elevação, pois,

conforme o autor, ver e sentir a beleza é uma forma de ver e sentir o próprio Deus

(COOMARASWAMY, 1999, p. 70).

Os elementos que constituem os estados de rasa são vibhava (causa da

emoção), anubhava (efeito da emoção) e sanchari ou vyabhichari bhava (emoções

subordinadas). A combinação desses elementos transforma os sthai bhava (emoções

primárias) em rasa. Há oito sthai bhavas, ou sentimentos descritos no Nāṭya Śāstra,

tendo sido acrescentado mais um posteriormente, na obra Abhinaya Darpana. São

eles śringara (amor erótico), vira (heroísmo), bibhatsa (nojo), raudra (raiva), hasya

(contentamento), bhayanaka (horror), karuna (compaixão), adbhuta

(maravilhamento), shanta (tranquilidade) (Nāṭya Śāstra, cap. VI, tomo I).

A obra Abhinaya Darpana de Nandikesvara, igualmente importante para o

estudo da arte de natya apresenta detalhadas descrições sobre técnicas e preceitos

artísticos, que auxiliam o estudioso a aprofundar no universo dos gestos.

Semelhante ao Nāṭya Śāstra, a obra também se inicia por meio de um diálogo

poético entre o autor Nandikeshvara e o deus Indra, o qual lhe solicita a transmissão

dos conhecimentos relativos à dança. Também conhecido como “O Espelho do

Gesto”, o texto centra-se basicamente nos princípios da ação corporal, angika

abhinaya, dividida em: movimentos do corpo (shareejas); movimentos do rosto

(mukhajas) e movimentos dos membros (shestas), porém a maior parte é dedicada à

descrição de gestos codificados das mãos (hasta mudras), listando-se os mais

variados tipos e usos, dos quais cito: expressar as deidades, os fenômenos da

43 “To taste rasa” (COOMARASWAMY, 1999, p. 68). 44 “it is in this sense that beauty is what we “do to” a work of art rather than a quality present in the object” (COOMARASWAMY, 1999, p. 70)

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natureza, os astros, as direções espaciais, os números, os componentes de uma

família, instrumentos e armas, bem como gestos mais abstratos para expressar

estados emocionais.

Figuras 11, 12, 13 - alguns exemplos de hasta mudras e seus significados. Fonte: Sahai, 2003, p. 218 e 220.

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É importante observar que esses códigos gestuais, descritos há tantos séculos,

não são realizados separadamente em relação à expressão facial e podem ser vistos

atualmente como parâmetros para os artistas das mais diversas manifestações de

dança na Índia. Contudo, é preciso observar que cada um, com sua própria

sensibilidade e maturidade, proporcionará modulações diferentes a partir de sua

expressão, como será discutido no capítulo 3.

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2.2.3 Adavus e o treinamento psicofísico

No treinamento de bharatanatyam, os princípios da ação corporal se

transformam em práticas de movimento mínimo, ou técnicas de isolamento, com o

intuito de dominar as minúcias que irão compor a expressividade corporal. São

divididos em angas (partes corporais) maiores, como cabeça, mãos, tórax, quadril,

laterais do corpo e pés; e subordinadas, como olhos, sobrancelhas, nariz, lábios,

bochechas e queixo.

A posição de base é denominada aramandhi e nela os princípios tan dava/lāsya,

referentes às qualidades de firmeza e de leveza, se manifestam por meio da relação

entre as partes inferior e superior do corpo.

Figura 14 - Desenho representando o aramandhi, uma posição de base fundamental dos adavus. Fonte: Vatsyayan, 1997, p. 54.

A técnica básica se desenvolve a partir dos adavus, combinações das unidades

de movimento, divididos em grupos, cujas dinâmicas partem sempre de um centro

corporal dentro de um campo circular (similar à cinesfera).

Fernandes define esses exercícios como cristais geométricos, “[...] organizados

em nível de complexidade durante o aprendizado, indo do eixo vertical ao horizontal,

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até complexos movimentos em diagonais, e em estágios mais avançados chegando

a associar dimensões, planos e diagonais em uma só combinação” (FERNANDES,

2009, p. 322). A repetição e o princípio da expansão e recolhimento dos movimentos

a partir do centro corporal são maneiras pelas quais eles possibilitam a

potencialização de ações, ao trabalhar fortemente o centro de energia vital, localizado

na região do umbigo, para impulsionar movimentos precisos.

Os adavus se desenvolvem em grupos, iniciando pelo fortalecimento da base

por meio das batidas dos pés no chão. As denominações geralmente correspondem

à movimentação dos pés em relação ao solo ou ao deslocamento do corpo no espaço.

Por exemplo, os tatta adavus consistem em se bater a sola dos pés alternadamente,

após vêm os nata adavus, grupo que introduzem batidas do calcanhar. Nesse grupo

é inserida a movimentação de braços, mãos, cabeça, olhos e pescoço, começando a

atribuir mais leveza à dança, mas ainda assim, a dinâmica de movimentação na

bharatanatyam é bastante controlada e precisa, não havendo muitos movimentos

circulares do tronco, como é possível observar em outros estilos orientais (as danças

mohiniyattam e odissi, por exemplo). Temas em que o corpo se expressa de maneira

nesse estilo aparecem apenas em repertórios puramente interpretativos, como os

ashtapadis (poemas de amor).

Figura 15 - Desenho representando um dos nata adavus. Detalhe para a expansão corporal a partir do centro corporal. Fonte: Vatsyayan, 1997, p. 56.

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Os adavus seguintes progridem por meio de movimentações laterais (mardita

adavu), pulos (kudittu mettu adavu), deslizar os pés no chão (sarukkal adavu) e

intrincados jogos entre ritmo e dissociação de movimentos corporais. A contagem no

treinamento é realizada por meio de pequenas sílabas, como “teiya tei” e “tei ha tei

hi”, de modo que cada grupo de adavus possa ser identificado também a partir de sua

sonoridade.

Em sua pesquisa inter-relacional sobre vários estilos de trabalho corporal,

Fernandes (2002) observa que os grupos de adavus evoluem de forma similar à lógica

de desenvolvimento mecânico de um bebê, em termos de sua organização corporal,

segundo o Princípio Bartenieff:

Em sua sabedoria milenar, o aprendizado dos exercícios de Bharatanatyam organiza-se na ordem crescente de complexidade neuro-muscular descrita por Bartenieff e presente também em seus Fundamentos. Também em termos de Forma ou Relacionamento (categoria de LMA [Análise Laban do Movimento]), o aprendizado de Bharatanatyam segue uma crescente complexidade, com sua maioria de exercícios básicos na Forma Direcional Linear e Arcada (criando linhas retas e curvas no espaço através da flexão/extensão e abdução/adução), e progredindo para a Forma Tridimensional (esculpindo o espaço tridimensional ao redor do corpo através da rotação das articulações) (FERNANDES, 2002, s/p).

Isso permite inferir que vários dos princípios modernos do movimento estão

presentes na bharatanatyam, podendo ser entendidos como um caminho de

aprendizado do corpo rico e expressivo.

Como foi observado no capítulo anterior, o treinamento dos adavus corresponde

aos anos iniciais de formação do artista e somente após esse aprimoramento é que

ele será introduzido no repertório dramatúrgico, interpretando papeis. Esse princípio

está refletido na evolução do treinamento das danças cênicas indianas em geral, como

bem observa Gomes (2005):

No início do aprendizado do ator oriental não existe aparentemente nenhuma preocupação com os aspectos internos do processo criativo. Esses anos são dedicados a tornar o corpo forte e flexível, pronto para a perfeição das formas e o domínio das convenções. Nesse período não é importante que o estudante compreenda as motivações de um determinado gesto ou atitude; é suficiente que ele procure reproduzi-lo o mais fielmente possível. Quando chegar o momento de encarnar uma personagem, seu comportamento físico não será deixado ao acaso ou à sua invenção: será determinado por uma

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estrutura já fixada pela tradição, tão precisa como a música ou o texto. Mas para evocar um determinado rasa não é suficiente repetir minuciosamente determinados movimentos e expressões. O ator deverá levar em conta as nuances de cada história e de cada cena e usar esta partitura de gestos e ações codificadas – que apesar da grande estilização estão enraizadas na vida quotidiana – como um ponto de partida. No seu trabalho criativo, ele se concentrará na maneira de executar a partitura, no jogo rítmico, nos pequenos detalhes de execução (GOMES, 2005, p. 43).

Veremos no capítulo a seguir como essa estrutura de treinamento tão enraizada

na cultura indiana pode oferecer possibilidades de imersão no trabalho psicofísico do

artista cênico ocidental, de forma a buscar em ambos paralelos técnicos e qualitativos.

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CAPÍTULO 3

PRÁTICAS DE AUTOAPERFEIÇOAMENTO NA CENA

Como pode ser visto, o yoga e as artes dramáticas na Índia são um tipo de

sadhana, ou exercício espiritual, que coloca em jogo o aprimoramento de si.

Compreendo essa capacidade como uma possibilidade de abertura ao desconhecido,

ao mundo do mistério que rompe com a seriedade cotidiana e que se manifesta muitas

vezes no jogo ficcional. Como sugere Srivastava (2004), com a elaboração de

sistemas distintos, cada um desses campos de atuação ajuda a transformar o

conhecimento do princípio em prática, isto é, não há teoria separada do fazer, pois

ética e estética são conhecimentos interligados nesse caso.

Como artista da cena me coloco diante desses saberes de maneira receptiva e

ao mesmo tempo questionadora. Percebo que essas práticas colocam o corpo como

veículo da experiência estética e sutil e me conduzem a um mecanismo de conexão

entre o estado interno e o mundo externo.

Mas o que os conceitos esboçados nos tópicos anteriores podem trazer em

termos de experiência ao artista da cena? Para mergulhar nessa questão, me valho

de algumas correspondências a partir das possíveis relações que encontro entre

essas práticas. As divisões que apresento podem ser entendidas como blocos

interrelacionais e foram norteadas pelas etapas de uma prática do método Shivam

Yoga e dos elementos que compõem o treinamento em bharatanatyam.

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3.1 O olhar do observador e o cultivo da mente: concentrar e meditar

Nas práticas de Shivam Yoga, a concentração e a meditação são momentos de

silenciar a mente, que começa pela respiração lenta e profunda, em busca de trazer

a consciência para o presente momento. Como um observador, o praticante se coloca

como se estivesse fora do processo mental, em busca de contemplar, sem

julgamentos, seus pensamentos, ideias e imagens.

Um paralelo com o trabalho do artista cênico pode ser feito a partir da

necessidade de concentração, que pode ser adquirida por meio desse silenciar da

mente que o possibilita habitar o presente. Mas o que isso significa em um cotidiano

estressante no qual muitas pessoas vivem hoje? Em que quase não há tempo para

escuta e que nos leva a tantos embates? É o que problematiza Goldschmidt (2014),

atriz que vem buscando relações entre o yoga e o teatro, quando observa:

[...] poderia dizer que o ator do mundo contemporâneo leva, mesmo não intencionalmente, o frenesi cotidiano para dentro da sala de prática. Tomando como verdade que o mundo atual tem um ritmo acelerado, alucinado, poderia dizer que esse sujeito chega tomado por essa pulsação e que precisaria, de alguma maneira, desvencilhar-se dessas informações cotidianas para poder adentrar no trabalho teatral, e para buscar conexões ainda mais sutis (GOLDSCHMIDT, 2014, p. 6).

Ao começar a pensar sobre questões da contemporaneidade, a respeito do ritmo

de vida e aproveitamento do tempo, a autora reconhece a falta de aparatos em seu

próprio habitat e encontra, no yoga, elementos para refletir sobre o vivenciar pausas

cotidianas.

O que me interessa nas práticas Yogis é a qualidade com que as mesmas são desenvolvidas. Há um silêncio nessas práticas, até mesmo na dos iniciantes. Há uma condução para isso, busca-se uma conexão com o “ser interior”, observação de si mesmo, pausas na agitação cotidiana para que o novo ocorra. É a postura do praticante quanto à prática que dita a intensidade da mesma (GOLDSCHMIDT, 2014, p. 4).

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Goldschmidt menciona uma questão que nos interessa, essencial tanto para

aquele que se dedica ao yoga quanto ao artista cênico na sala de trabalho, que,

independentemente de técnicas precisa se colocar em uma postura ou atitude

receptiva. Ação e recepção podem parecer conceitos opostos, mas complementares

nesse caso, pois coloca em jogo um estado de abertura que depende do sujeito. Entrar

em conexão consigo e com o que o rodeia faz parte de uma escolha. Assim, tanto o

yogue quanto o artista podem buscar a imersão em um estado mais amplo e

consciente de ação. Nesse sentido, concordo com a autora, quando esta observa que

o yoga na preparação cênica pode contribuir para instaurar um modo de ser e estar.

Outra questão que as etapas do concentrar e do meditar é em relação a uma

suspensão temporal por meio de um parcial distanciamento de ideias e pensamentos

e do que está ao redor que a postura do observador propicia. Goldschmidt caracteriza

esse aspecto como um espaço fronteiriço a partir do conceito de drashta.

Há certo distanciamento que se desenvolve com o tempo, o que o Yoga chama de drashta, ou melhor, o observador. Acredito que tal prática pode proporcionar um parar diante de si e do mundo e pode abrir portas que te levem para um espaço fronteiriço muito interessante para o fazer teatral. Minha proposta, então, é a de uma abordagem Yogui que possa chacoalhar padrões mentais na tentativa de nos colocarmos em um determinado estado, de estarmos inteiros para perceber nossos afetos mais sutis e não simplesmente a reprodução e execução de uma prática física (GOLDSCHMIDT, 2014, p. 4).

Além desses tipos de observação, há no yoga um tipo de cultivo da mente

denominado svadhyaya, traduzido como “estudo próprio”45 (cf. Martins, 2014),

mencionado por Patañjali como o segundo passo para o yoga, associado a uma

limpeza tanto do corpo quanto da mente. A esse respeito, Bhaskarananda (1996) faz

uma analogia interessante para refletirmos, entre a mente e a maneira como se limpa

uma pia suja; com pouca água a sujeira torna-se inicialmente maior e espessa, porém

45 Martins observa que um estudo comparativo a partir de dois textos da tradição védica anterior à Patañjali, demonstra que “[...] o svādhyāya é um estudo diário de textos sagrados, realizado pela manhã, para o desenvolvimento da própria pessoa – e não para qualquer outra finalidade. É uma obrigação, um sacrifício dedicado a Brahman. Pode ser acompanhado por rituais, mas sem nenhum objetivo a não ser cumprir o seu estudo próprio (MARTINS, 2014, p. 50). Correntemente, esse termo tem sido traduzido pelos praticantes de yoga como autoestudo, no sentido de se adquirir discernimento pela constante autoobservação.

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com um fluxo de água contínuo, toda a sujeira se esvai pelo cano. Assim também

seria a mente meditativa.

Percebo ressonâncias desse constante autoestudo para a prática do artista

cênico. Sendo tanto um pesquisador, quanto um intérprete, ele acessa um tipo de

conhecimento adquirido pela autoinvestigação, transforma aquilo que ainda não tem

consciência – uma ideia de personagem, uma inspiração – em ações corporais.

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3.2 Trabalho sobre os sentidos, técnicas de dissociação e as mínimas ações

Os exercícios de visualização e o trabalho sobre os sentidos no yoga têm o

propósito de criar uma harmonização do praticante consigo mesmo, com os presentes

e com o ambiente. Um deles é denominado pratyahara, que consiste em obstruir

lábios, narinas, olhos e ouvidos com os dedos das mãos durante a retenção do ar com

os pulmões cheios na respiração. Outro é o shambhavi mudra, que consiste em

direcionar o olhar fixamente para um ponto entre as sobrancelhas. Esses recursos

auxiliam a redirecionar os sentidos, semelhante aos caminhos propostos na

concentração e na meditação, isto é, dilatar maneiras de apreender as formas

externas, desenvolvendo relações diferentes entre o espaço interno e o externo.

Tais recursos sensoriais e psíquicos podem auxiliar no trabalho artístico, quando

mapeamos o espaço de trabalho, reconhecendo suas fissuras, momento de abertura

e escuta, de percepção das informações que o ambiente nos traz. Momento de

descobertas, do modo como nos colocamos e nos relacionamos com aquele

ambiente. O espaço de trabalho é também instável, assim como nós, que nem sempre

estamos com a mesma disposição.

Ao abrir a escuta para as informações internas e externas do momento, posso

encontrar um espaço para o treinamento, quando trabalho sobre partituras corporais,

como as que propõe a técnica da bharatanatyam sobre as mínimas ações (bhedas),

que auxiliam a dissociar movimentos dos membros do corpo. O propósito é ampliar

os recursos expressivos, promovendo a capacidade de entrar e sair rapidamente em

estados emocionais, treinamento frequentemente realizado na bharatanatyam.

Nas peças nritya, por exemplo, intercala-se uma encenação dançada de maneira

abstrata a uma parte narrativa, que permitem ao artista “zerar” a expressão anterior e

partir para uma etapa da história completamente diferente daquele tempo/espaço

anterior. Nesse tipo de composição, o que está em jogo é a capacidade do artista em

sugerir ou evocar um estado, sendo que a audiência também é convidada ao desafio

de “completar” a poética da encenação. Por isso, a maneira de se apresentar uma

peça na bharatanatyam é muitas vezes descontínua, sem evolução cronológica

narrativa.

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Figura 16 - Um exercício de rotacionar os olhos (alokita bheda) do Nāṭya Śāstra. Fonte: Vaidyanathan, 1996.

Figuras 17 e 18 – Trabalho sobre os sentidos no yoga. Fonte: Frawley, 2013.

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3.3 Percepção do fluxo: o respirar

Entendo o respirar como uma forma de conectar a consciência ao momento

presente, quando quaisquer pensamentos sobre o antes e o depois ficam em

suspenso. A respeito da relação entre o respirar e o trabalho do artista cênico, Plá

intui uma relação semelhante, afirmando que “[...] a observação da respiração é o elo

que une a consciência ao corpo” (PLÁ, 2006, p. 40). Ela presentifica a mente no corpo

ao trazer a ação para fluxo ininterrupto da vida.

Ao estudar a respiração no âmbito da performance, Nair (2007) observa que se

o corpo tem grande relevância nas artes cênicas, a respiração é o veículo que

potencializa o trabalho do corpo. Especulações a respeito do funcionamento da

respiração estão presentes no pensamento filosófico ocidental desde a tradição grega,

como em Aristóteles que argumentava que a alma e as emoções estariam interligadas

com a dinâmica respiratória (cf. NAIR, 2007). Em outras tradições orientais como a

chinesa, a respiração é trabalhada a partir do conceito de ch'i, o ar vital que sustenta

a energia no corpo, apresentando práticas para observar e conduzir esse fluxo.

Na Índia a palavra que traduz a energia vital na respiração é prana. Por sua vez,

ele apresenta várias qualidades conforme seu percurso pelo sistema fisiológico

humano, demonstrando a relação inseparável entre matéria e energia. Essas

qualidades variam desde o momento em que o prana entra no corpo pela respiração,

passando pela eliminação de resíduos celulares, até à qualidade de se produzir um

som pelas cordas vocais, que varia da energia consciente para se produzir a fala, até

as projeções das correntes geradas pela vontade canalizada na meditação

(ALMEIDA, 2007).

O yoga propõe várias práticas relacionadas com a alteração do fluxo respiratório

para movimentar o prana, denominadas pranayamas. Alguns princípios básicos

nesses exercícios são as retenções, ou kumbakas, que consistem em parar a

respiração com os pulmões cheios ou vazios; além da contagem mental da passagem

de ar nas inspirações e nas expirações; a respiração por narinas alternadas; a

alteração do dinamismo da respiração em termos de lentidão ou rapidez; coordenação

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entre o movimento do abdômen e do tórax e a expansão/recolhimento pulmonar e,

por último, observar a relação da respiração com os estados emocionais e mentais.

Outro pressuposto yogue é que a energia vital dos chakras quando obstruídas

ou mal aproveitadas podem levar a distúrbios fisiológicos e psíquicos. Nesse sentido,

o trabalho consciente sobre a respiração ajuda a conduzir a energia concentrada em

maior grau num ponto para outro mais desvitalizado. À medida em que se trabalha a

respiração com esse foco, pode-se observar uma integração de todo o corpo que

naturalmente começa a realizar esse processo. É como se nos chakras residisse a

memória do corpo, com sua correspondente vibração sonora. Então, ao iniciar o

movimento pela ativação de cada um deles, despertam-se qualidades que ressoam

de maneiras diferentes.

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3.4 Gestos como portais para a comunicação

No percurso investigativo desta tese, o gesto se tornou uma via de interesse,

sobretudo a partir da relevância das mãos na abordagem dos mudras no yoga e dos

hasta mudras na bharatanatyam. Apesar do gesto não se restringir à movimentação

e posicionamentos de mãos, neste estudo elas ocupam um lugar importante, por ver

nelas inúmeras possibilidades de criação e de portas para reflexão.

Há uma série de conexões nervosas que terminam nas mãos e nos pés e se

conectam com diversas partes do corpo, por isso o gesto pode ser o resultado de algo

que se formula a partir de dentro para fora e não apenas uma conformação periférica

do corpo. Contudo, para que se torne uma ação, não basta apenas reproduzir uma

codificação. Nesse sentido, o entendimento dos mudras na Índia ajuda a compreender

esse sentido mais profundo buscado.

Mudra é uma palavra que pode ser traduzida por “selo” (RAMM-BONWITT, 2015)

e se relaciona tanto às imagens (esculpidas ou pintadas) da iconografia hindu, nas

quais se observa, por vezes, relações com a gestualidade corporal da dança cênica

indiana, quanto a recursos do ritual yogue. Conforme Saraswati (1996), no ritual

yogue, os mudras são uma combinação de movimentos físicos sutis que alteram o

humor, a atitude e a percepção, auxiliando a aprofundar a consciência e a

concentração de fluxo de energia.

Essa estilização das mãos chegou a tal refinamento, que levou a sua proliferação

também no campo das danças cênicas, caracterizando-se pelo seu amplo espectro

de possibilidades comunicativas, demonstrando que as mãos não são apenas um

apoio da fala, mas uma linguagem particular.

Nas obras Nāṭya Śāstra e Abhinaya Darpana a palavra gesto é utilizada dentro

do escopo da ação corporal dramática que tem por fim evocar o sabor, a experiência

estética (rasa) na audiência. No primeiro caso, a expressão pode ser realizada por

meio de gestos (angika abhinaya), que podem ser realizados com os membros

superiores (pescoço, cabeça, olhos etc.), com as mãos (hastabhinaya) e membros

inferiores (pés, quadril etc.). Entendido dessa maneira, pode-se dizer que o gesto na

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arte de natya adquire sentido mais amplo do que movimentos das mãos: trata-se da

arte de expressar-se com todo o corpo, de maneira consciente e potente, ganhando

um caráter estético e comunicativo.

Os gestos são divididos em nritta hasta, usados nos adavus e carregam mais um

sentido estético do que um significado específico, e há os nritya hasta, assim

classificados por comporem um vasto alfabeto cênico à serviço das composições

poética e narrativa.

A dança cênica ainda classifica dois tipos de gestos manuais presentes

igualmente na performance: lokadharmi e natyadharmi. O primeiro tipo é composto

por gestos extraídos do uso cotidiano, que se aprendem por imitação, por isso eles

não exigem muita elaboração, pois são fornecidos pela própria cultura. O Nāṭya Śāstra

sugere que que esse tipo é a resposta direta às emoções (bhavas). Já natyadharmi

diz respeito aos gestos estilizados, lapidados e não correspondem à primeira vista à

relação direta com o objeto representado.

Figura 19 - Gesto do pássaro (garuda mudra). Trecho do espetáculo Maracá. Teatro Municipal Casa da Ópera/MG, 2011. Foto: Lincon Zarbietti.

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O hasta mudra na dança encenada também remete às figuras esculpidas nos

templos hindus, conforme ilustra a figura abaixo, a partir da representação da deusa

Durga, representando a expressão heroica (vira rasa). Detalhe para a mão esquerda

que realiza o gesto trishula (tridente), arma da deusa; e a mão direita, o gesto

kathakamuka, que, nesse caso, representa a figura feminina.

Figura 20 – Personagem Durga (aspecto heroico feminino). Teatro Vijñana Kala Vedi, Índia, 2009. Fonte: acervo pessoal.

Já no Shivam Yoga, os mudras são realizados com as mãos e os braços e, por

vezes, com outras partes do corpo, com o intuito de alcançar determinados estados

psíquicos. É um tipo de meditação, na qual a realização de cada gesto é uma busca

de desenvolvimento da intuição, da sensibilidade, transportando o praticante para

diferentes qualidades perceptivas.

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Figura 21 - Kapota Mudra: aquietamento, interiorização, favorece a meditação.

Figura 22 - Trimurti Mudra: captação e concentração de energia.

Figura 23 - Shiva Linga Mudra: força interna e disciplina.

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Figura 24 - Swastika Mudra: proteção e força.

Figura 25 - Matsya Mudra: facilita um estado de interiorização e meditação.

Figura 26 - Chakra Mudra: ativação e equilíbrio dos chakras. Local: Núcleo Sattva, Vitória/ES, 2015.

Fonte: acervo pessoal.

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O gesto vivenciado cotidianamente na dança indiana e nas práticas de yoga se

tornaram para mim, ao longo dos anos, veículos de potencial ativação psicofísica.

Percebo a conexão entre minhas mãos, o fluxo que passa de uma mão a outra quando

uno as palmas, observo que minhas mãos dialogam comigo quando as disponho

diante do rosto no gesto da concha (kapota mudra) como se me dissessem um

segredo. Mas o que acontece nesse espaço entre o ativar e o transmitir?

Quando me transporto para o trabalho cênico, os gestos podem se desenvolver

a partir de uma investigação do próprio corpo, que auxilie à comunicação por meio de

ações mais eficazes, de manifestar a força expressiva por meio da consciência

presente. Em minhas práticas individuais comecei a trabalhar a partir dos estímulos

perceptivos que os mudras despertam por meio das mãos como uma maneira de

improvisação e percebi que eles poderiam ter uma aplicação pedagógica interessante

em termos de experimentação e experiência prática em diálogo com a cena. A

improvisação, nesse caso, pode ser entendida como “[...] a experimentação dos

impulsos advindos dos chakras, traduzidos em movimentação corporal” (SOARES,

2000, p. 61).

Explorando as relações entre a maneira como os mudras são praticados no

Shivam Yoga e no treinamento de bharatanatyam, percebo duas funções distintas: no

primeiro, os gestos trabalham como veículos ativadores de estados de consciência, e

no segundo os gestos funcionam mais como sugestão poética. A semelhança entre

ambos estaria não só na forma, mas no sentido de colocar em jogo um tipo de

comunicação ritualizada. No primeiro caso, esse comunicar simboliza um modo do

praticante estabelecer um contato consigo mesmo, de maneira meditativa e

contemplativa, por meio de formas geométricas compostas pelas mãos.

Já na bharatanatyam, e me arrisco a afirmar que ocorra o mesmo nas outras

formas cênicas da Índia que se orientam pelos antigos tratados dramatúrgicos, os

gestuais das mãos são um tipo de comunicação veiculada de dentro para fora. Nessa

composição entre o gesto internalizado pela meditação e a expressão do gesto que

revela um estado estético percebo a construção e o fortalecimento da ponte

expressiva.

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Figuras 27, 28 e 29 - Exercícios de percepção pelas mãos. Local: Sítio Sattva, 2015. Fonte: acervo pessoal.

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Durante a trajetória da pesquisa, passei a acreditar que tanto o artista que

trabalha a partir de uma técnica codificada quanto aquele que não se vincula a

nenhum tipo de treinamento específico se deparam com o mesmo problema em

relação ao gesto: torná-lo potente e não mera repetição ou invenção sem presença.

Como bem dizia o mestre Klauss Vianna, “Não posso inventar, fabricar

movimentos a partir do nada porque tudo tem um sentido muito profundo, tudo tem

uma razão maior. Não podemos ficar longe desse circuito energético que é a relação

entre microcosmo e macrocosmo” (VIANNA, 2005, p. 64). Sua preocupação é voltada

à maneira como o artista percebe e expressa esses movimentos (ou gestos), capazes

de criar uma dança que “[...] começa no preenchimento dos processos internos”

(VIANNA, 2005, p. 86). Portanto, o gesto precisa de tempo para crescer, ser

decomposto, estudado para que se torne consciente e isso ocorre, como ressalta

Vianna, no treino do artista, pois “[...] na repetição, o gesto amadurece” (ZARRILLI,

2009, p. 73).

No processo de liberação do gesto criativo, desenvolver a consciência do

potencial das mãos, perceber as tensões articulares, descobrir as sensações que

cada movimento lhe traz, e, sobretudo, a possibilidade da internalização,

transformação e comunicação por meio delas pode ser um campo prazeroso e

desafiador ao artista da cena.

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3.5 O princípio da forma e suas reverberações no corpo que dança

Um princípio em comum entre o yoga e a bharatanatyam é o conceito do yantra,

no que diz respeito a um entendimento do corpo e de suas práticas. Para entender

melhor essa associação, Rawson (1973) explica que o yantra é um mecanismo de

ação exercitado na práxis da filosofia tantra, que buscou métodos redutivos e efeitos

óticos em sua arte, como forma de refinar abstrações da mente. Suas formas

geométricas concentram energias abstratas e são representadas por diagramas em

pinturas, esculturas e arquiteturas dos templos por toda a região da Índia. Acredita-se

que a exposição a esses instrumentos altere padrões de comportamentos, que

auxiliam no processo de conexão do indivíduo com forças cósmicas mais sutis,

semelhante à realização dos mudras.

Figura 30 - Sri Yantra46. Rajastão, c1800. Fonte: Rawson, 1973.

46 O Sri Yantra (do sânscrito sri = mestre; e yantra = instrumento, diagrama místico, amuleto) é um símbolo tântrico do infinito processo de criação. Os triângulos encadeados que contornam o ponto central (o bindu), onde se concentra o conteúdo imanifesto, denotam a união dos princípios feminino e masculino, gerando o princípio da não-dualidade. Os círculos de flores são a lótus, símbolo da perfeição, e o quadrado simboliza o conteúdo manifesto.

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Sua função é proporcionar a sutilização de formas “grosseiras” de energia.

Segundo essa visão, o artista realiza um trabalho semelhante ao depurar as emoções

e transformá-las em expressão. O próprio Grotowski absorveu esse conceito do yantra

como um paralelo para desenvolver seu trabalho vocal com atores, apostando em um

tipo de instrumentalização capaz de conferir uma qualidade refinada mais próxima das

leis da natureza (cf. SCHECHNER, 1977, p. 330). Conforme explica Plá, o

interessante no uso desses instrumentos é que eles agem de maneira vertical sobre

o sujeito e dependem de sua relação com ele, e não do “[...] simples domínio de uma

habilidade” (PLÁ, 2012, p. 30), portanto não se espera que a exposição a eles tenha

resultados imediatos, de uma maneira racional e manipulável, importando antes o

caminho que se trilha.

No yoga, o yantra é o veículo por meio do qual o praticante busca o equilíbrio

entre forças físicas e psíquicas (MOOKERJEE, KHANNA, 1977). Já nas danças

cênicas indianas, ele é o veículo tanto da atividade interna quanto da estética. Como

sugere o estudo de Vatsyayan (1997), ao demonstrar que a referência corporal na arte

de natya parte da conformação do corpo inscrito no espaço esférico, sugerindo um

centro de onde é despertado o fluxo interno, do qual toda movimentação parte e

retorna, contribuindo para seu fortalecimento e concentração de energia.

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Figura 31 - Posição inicial da bharatanatyam denominada sama. Fonte: Vatsyayan, 1997, p. 53.

Portanto, o exercício do yantra se manifesta nessas práticas ao se realizar uma

determinada posição corporal, um determinado gesto com as mãos, as formas

traçadas pelo movimento do olhar projetando imagens para a audiência ou a ação de

meditar sobre um objeto com o propósito de absorver a mente e ampliar a consciência.

A esse respeito, Srivastava completa:

[...] o yantra, assim, embora seja aparentemente um projeto gráfico é de fato uma forma / representação visual do mundo visual, bem como as suas energias que atuam em vários níveis de consciência: tanto abstratas, quanto físicas, ambas tanto dentro do indivíduo, bem como no "mundo invisível" dentro do mundo físico que conhecemos47 (SRIVASTAVA, 2004, p. 57, tradução minha).

De tal modo, ao considerar o próprio corpo um yantra, capaz de concentrar e

veicular forças postas em tensão e movimento, o artista realiza um trabalho alquímico

de transformar as coisas. Conforme explica Fernandes,

47 No original: “[…] the yantra, thus, though apparently a graphic design is in fact a visual form / representation of the visual world as well as its energies which are operative at various levels of consciousness: abstract as well as physical, both within the individual as well as the "invisible world" within the physical world that we know”.

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Essas relações geométricas de crescimento e conexão são exercícios de profunda integração com as leis harmônicas do universo, conectando célula e cosmos, tangível e intangível. Por isso a chamada geometria sagrada estrutura não apenas a dança clássica indiana, mas também os frisos de templos que ajudaram em sua reconstrução e, de fato, toda a estética e filosofia védicas, como os talas (ritmos da música indiana), os yantras (desenhos realizados nas calçadas das casas) e arquiteturas de templos antigos (FERNANDES, 2014, p. 177).

Quando transpomos essa visão do yantra aos asanas do yoga e aos adavus da

bharatanatyam, é possível observar como suas formas ativam qualidades corporais e

psíquicas por meio de dinâmicas potentes. Por exemplo, os primeiros trabalham com

a noção de permanência e de desenvolvimento de profunda atenção, ativação de

fluxos internos e aquisição de equilíbrio psicofísico. Já os últimos, desenvolvem um

tipo de atenção mais alerta, por meio do jogo rítmico e sonoro. Como observa Soares

(2015) a esse respeito:

O yoga tem como função a melhoria do desempenho dos órgãos internos e a manutenção de espaços articulares através da respiração, ou seja, a saúde; portanto, o importante é a permanência nas posturas. Já na dança a busca é por melhor desempenho físico do intérprete; assim, as posturas tornam-se movimentos que são executados em três ou quatro ritmos diferentes: lento, médio, rápido e muito rápido (SOARES, 2015, p. 37).

Além disso, uma analogia entre esses exercícios e a ativação da energia corporal

pode ser percebida, por exemplo, quando se produz batidas ritmadas dos pés sobre

o chão nos adavus promovendo uma forte ativação dos pés, pernas e, principalmente,

da base da coluna (região correspondente ao chakra mooladhara, centro de energia

de base trabalhado no yoga [cf. GOSWAMI, 1980]). Almeida explica que esse chakra

é o primeiro a promover uma transformação no ser humano, quando ele [...] passa a

ter um impulso para o despertar de sua consciência espiritual” (ALMEIDA, 2007, p.

61). Compreende-se seu funcionamento como um alicerce que serve de base para a

ampliação dessa consciência e, na dança, da criação de uma base necessária para

que se possa fluir, como foi mencionado anteriormente. Essa seria uma possível

relação entre uma fisicalidade e a consciência que se situa além de uma sensação

local. Assim, o despertar da consciência pode ser compreendido como um processo

análogo ao trabalho do intérprete da cena em seu caminho do conhecimento artesão.

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Além dessa questão da forma, há um outro fator importante, que são as

repetições nessas práticas e entender o que elas representam no trabalho do artista

cênico. Interessa-me observar os efeitos que se produzem por meio da forma e da

repetição no contexto psicofísico. Lembrando mais uma vez Zarrilli sobre o

treinamento psicofísico, há duas diferenças de repetições, aquela que pode se tornar

“esvaziada e habitual”, que ele compara com a desatenção, quando se faz um

exercício enquanto se assiste à televisão, por exemplo. E o segundo tipo, no qual se

treina sob “formas corporificadas”, na qual o artista se compromete por inteiro num

“processo contínuo de auto definição” (ZARRILLI, 2009, p. 30).

Em O Ator-Compositor, Bonfitto parte de sua experiência com o teatro japonês

kabuki, forma artística pautada no aperfeiçoamento de formas denominadas kata48, o

autor observa que aquilo que pensava ser o treinamento de “formas prontas”:

[...] não eram somente composições lineares ou espaciais como as figuras de uma superfície ou como sólidos no espaço. [...] Após algum tempo comecei a reconhecer a existência de certos elementos, e a diferenciá-los internamente, além de constatar a presença de algumas constantes que se repetiam (BONFITTO, 2011, p. 90, grifo do autor).

Pela prática dos kata, pode perceber elementos constantes e diferenciáveis,

formando um “esqueleto estrutural”, que funciona como um nível de ações

reproduzíveis visualmente, compreendidos como “movimentos”; e um nível

denominado “qualidade de energia”, compreendido como a maneira de se realizar

uma ação.

Essa interpretação de Bonfitto ajuda sobremaneira a explicar a técnica indiana

das formas. Em minha prática percebo essas diferentes qualidades ao realizar uma

posição de yoga ou ao praticar um adavu. A forma por si só é realizável por meio de

um movimento ou a permanência em uma posição, mas a qualidade de ação é cada

um quem atribui. Essa distinção me auxiliou a perceber a ponte entre a ação cênica e

a ação meditativa, no sentido de que ambas podem ter a mesma qualidade, como a

interpretação que coloco em um gesto ou o grau de entrega de que me disponho

quando realizo uma prática meditativa.

48 Os kata são, basicamente, “[...] poses e gestos que auxiliam os atores a apresentar sua melhor

aparência em qualquer cena em particular” (KYOKO, 2002 apud BONFITTO; ANDRAUS, 2014).

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Ademais, para Bonfitto (2011), esses movimentos que se aprendem por meio do

“vazio”, entendendo-o basicamente como o espaço de criação do intérprete, seriam o

que compõe a relação mestre/discípulo já que simboliza a experiência do fazer. Nesse

sentido, o aprendiz adquire uma experiência “destilada”, um ensino que insinua mais

do que determina algo pronto. Ao desmistificar uma pré-concepção comum a respeito

das formas cênicas asiáticas, isto é, a de que suas técnicas limitam a originalidade e

a liberdade do artista, o autor consegue demonstrar como a forma pode promover o

potencial criativo.

Para mim, ao invés de ver nas práticas indianas a reprodução de fórmulas

prontas, suas formas codificadas me transportam para uma lógica de ação em que as

sutilezas do fluxo me colocam em contato com aspectos profundos, tal qual o yantra

em ação.

Assim, Vatsyayan oferece uma explicação que me parece elucidativa sobre a

atuação do mecanismo da forma para o artista cênico indiano, para o qual:

[...] a “forma perfeita” é o modelo de sua visão interior para que ele então procure conferir expressão através de formas visuais ou auditivas. O criador da arte é, portanto, um praticante de yoga em que são eliminadas as influências que distraem de triviais, emoções transitórias e particularidades externalizadas. A mente produz ou desenha (ākṛti) esta forma. A própria palavra evoca a karu, palavra védica que significa fabricante, artesão, ou cantor de hinos. [...] Ele é tanto experimentador quanto vidente destacado. Em suma, ele também gosta de se ver, ouvir, sentir, mas, acima de tudo, reflete e, através do calor de seu tapas (meditações), cria várias formas apenas para evocar o informe e o além da forma49 (VATSYAYAN, 1997, p 41, grifos do original, tradução da autora).

Com essa passagem, a autora permite depreender que o artista, como o

meditador, cria imagens – mentais e físicas – geradas pelas suas práticas, evocando

sentidos profundos pelas formas. As imagens se tornam um meio, não um fim. O

49 No original: “Reality assumes a different meaning and the ‘perfect form’ is the model of his inner vision to which he then seeks to give expression through visual or aural forms. The creator of art thus is a practitioner of yoga wherein are eliminated the distracting influences of trivial, transitory emotions and externalized particularities. The mind produces or draws (ākrti) this form. The word itself recalls the Vedic word kāru which stands for maker, artisan, or singer of hymns. […] He is both experiencer and detached seer. In short, he too like his Vedic counterpart sees, hears, feels, but above all reflects, and through the heat of his tapas (meditations) creates multiple forms only to evoke the formless and that beyond form”.

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mecanismo da forma-imagem consiste em concebê-la, apreendê-la pelos sentidos

para externalizá-la de maneira potente.

É essa ideia que prevalece nos asanas de yoga e nos adavus da dança clássica

indiana. Ambos preservam as noções de permanência, repetição e aperfeiçoamento

que desencadeará, possivelmente, em um processo de internalização/externalização

do que essas forças representam. Sem pensar que tudo isso é algo místico e

intangível, basta perceber o efeito que essas práticas produzem em seus praticantes.

Além disso, nas vivências que tive na Índia observei a insistência dos mestres

com seus alunos em retomar os primeiros passos, as primeiras lições. Percebi que

repetir os ensinamentos iniciais é também uma atitude de humildade diante do campo

de saber, uma maneira de reconhecer que a realidade é formada por muitos prismas,

sendo impossível ter um conhecimento “total” sobre as coisas. Por isso, se está

sempre aprendendo.

Conforme Yogananda (1946), “a repetição de uma ação cria um padrão mental,

formando vias elétricas sutis no cérebro, algo como os sulcos de um disco. Sua vida

segue os sulcos que você mesmo criou no cérebro”. Nesse sentido, o repetir leva ao

direcionamento da ação, que para ser inteira não precisa separar corpo, mente e

vontade. Segundo um dos tratados filosóficos sobre o qual se baseia o yoga,

O que for a profundeza do teu ser, assim será teu desejo. O que for o teu desejo, assim será tua vontade. O que for a tua vontade, assim serão teus atos. O que forem teus atos, assim será teu destino (BRIHADARANYAKA UPANISHAD, IV, 4.5).

Semelhante ideia se encontra nos versos do Abhinaya Darpana tratado sobre o

gestual cênico indiano.

Aonde vão os olhos, seguem as mãos Aonde vão as mãos, lá está a intenção Aonde está a intenção, se encontra o sabor da experiência estética50 (COOMARASWAMY, 1987, v.37, tradução minha).

50 No original: “Where go the hands, goes the gaze; where goes the gaze, poses the mind; where there

is mind, settle down the sentiments; where the sentiments rule sovereign, rasa arises”.

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É todo um direcionamento da ação que parte de uma vontade profunda, que se

torna consciência impulsionando essa vontade, que então conduz o mover. Sobre

esse trabalho de ativação, fluxo e conservação sobre os pontos de energia vital é

possível evocar a memória ou sabedoria corporal. São essas possibilidades

sinalizadas a partir do yoga e das danças cênicas indianas que me auxiliam a pensar

o trabalho cênico como um exercício cotidiano de auto-observação, de ativação de

estados e potências e de direcionamento da ação.

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CAPÍTULO 4

CORPO, GESTO E MEDITAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA

Neste capítulo, apresento uma discussão a partir das vivências com os

laboratórios do trabalho de campo, buscando entremear prática, conceito e reflexão.

Essa fase da pesquisa foi realizada durante os anos 2014 e 2015 e dividiu-se em 5

diferentes etapas. Os grupos que participaram de cada uma dividiram-se basicamente

em dois públicos: estudantes de graduação do Instituto de Artes da Universidade

Estadual de Campinas e praticantes de yoga do Núcleo Sattva de Shivam Yoga,

localizado em Vitória/ES. Ao todo foram cinco laboratórios distribuídos em duas

disciplinas de estágio docente na Universidade Estadual de Campinas, uma oficina

sobre gesto e criação cênica, outra sobre criação coreográfica e a última sob a forma

de vivências na natureza com um grupo de praticantes de yoga.

Em busca de uma metodologia que dialogasse com o processo pedagógico

vivenciado, me deparei com a metodologia da observação participante, que, segundo

Vianna, se trata de “[...] uma atividade que simultaneamente combina análise

documental, entrevistas com respondentes e informantes, participação direta,

observação e introspecção [...]” (VIANNA, 2007, p. 51). Assim, o “[...] pesquisador

mergulha no campo, observa segundo a perspectiva de um membro integrante da

ação e também influencia o que observa graças à sua participação” (ZARRILLI, 2009,

p. 51). Para elaborar as discussões que se seguem, me vali dos recursos dessa

metodologia, que não restringe as possibilidades do pesquisador, o que me permitiu

agregar anotações pessoais registradas em Diário de Bordo, trechos de vídeos e

registros fotográficos das aulas, excertos de entrevistas e questionários respondidos

pelos participantes (vide modelo no Anexo 1), contendo perguntas relativas às

impressões, sensações e opiniões pessoais sobre a disciplina. Ressalto que, para

preservar o sigilo dos participantes, adotou-se a sigla “P”, seguida de um número para

diferenciar os discursos51.

51 O processo de coleta e análise de dados seguiu os critérios estabelecidos pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que trata das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Em função dessa resolução, o sigilo dos participantes foi mantido, bem

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4.1 Bharatanatyam na disciplina Artes Corporais do Oriente

Por meio da repetição reforçamos e redesenhamos a imagem exercitada. E aquilo passa a integrar parte de você como a pirâmide da meditação, como uma casa que me habita. A carrego para onde quer que eu vá (Diário de Bordo, 9 dez. 2015).

O estágio na disciplina Artes Corporais do Oriente, sob a supervisão da Profa.

Dra. Mariana Andraus, proporcionou um campo inicial para experimentar as questões

que me acompanhavam até o momento. A base desse estágio foi propiciar a

introdução ao treinamento em dança bharatanatyam. Minha expectativa era a de que

as vivências com os elementos básicos do treinamento pudessem auxiliar os artistas

da cena a desenvolver uma visão mais integrada do movimento, percebendo as

qualidades aparentemente opostas que a técnica mobiliza no corpo.

Para avaliar essa proposta, além das observações e registros da disciplina, os

participantes desenvolveram cenas curtas em laboratórios de criação, conduzidos

como parte dos encaminhamentos didáticos da disciplina, nos quais se buscou

agregar a experiência com a técnica da bharatanatyam a outros recursos de

investigação poética, como frases poéticas e figuras, valorizando a expressividade

individual de cada um.

A turma contou com um total 11 alunos, em sua maioria, estudantes de

graduação em dança e alguns de artes cênicas, todos alunos regulares na

Universidade Estadual de Campinas. A carga horária total em sala de aula foi de 30

horas, divididas em 4 meses de estudos. Para a pesquisa, era importante que os

participantes compreendessem que a vivência daquele semestre não teria a função

de promover um aprimoramento em bharatanatyam, mas que seria fundamental

buscar um olhar investigativo para a técnica, a partir da qual eles poderiam levantar

questões e desenvolver percepções.

como os objetivos e condições da pesquisa lhes foram previamente informados. Assim, eles foram solicitados a ler e a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo 2) e o Termo de Autorização de Uso de Imagem (Anexo 3).

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4.1.1 Preparação e aquecimento

Na primeira parte das aulas, eram realizadas sequências de alongamentos e

aquecimentos para a preparação psicofísica. Todos os exercícios buscaram explorar

a conscientização de sua execução e de seus efeitos sensório-motores, semelhante

às abordagens mais contemporâneas da dança, como a Educação Somática.

Figuras 32 e 33 - Dois asanas de yoga na preparação corporal. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte:

acervo pessoal.

Gosto de começar algumas práticas em roda, pois percebo que nessa disposição

todos têm a possibilidade de se reconhecer como iguais. Nessa etapa, atentava para

o respirar de maneira mais profunda e lenta. Acordar as células por meio desse fluxo.

Acordar o corpo por meio do toque, massageando as cadeias musculares, liberando

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as tensões. Alguns alongamentos e caminhadas também faziam parte desse ritual

matinal.

Percebia que essa preparação era fundamental para abrir a escuta não só de si,

como para o grupo. Segundo um dos participantes, a etapa inicial das aulas foi:

[...] um espaço interessante de preparo do corpo onde nós podíamos além de trabalhar, conversar, trocar informações e experiências, pois várias pessoas tinham contatos diferentes com a cultura oriental. Aprendemos técnicas de aquecimento e treinamento típicas orientais o que foi muito interessante (P6, Questionário, 2014).

Realizávamos também o namaskaram, uma espécie de saudação à Mãe Terra

(Bhoomidevi), na qual os dançarinos batem os pés sobre o solo e o tocam com as

pontas dos dedos das mãos, levando-as aos olhos. O namaskaram está presente em

todas as formas clássicas de natya (dança-teatro indiana) e confere a elas um caráter

ritualístico. Essa etapa se compara ao que Soares (2000) denomina “instalação”, de

acordo como o Método Energético de Miroel Silveira, que consiste em um momento

de transição, funcionando na psique como um acordo entre os presentes de que a

partir dali está se adentrando em um espaço que exige concentração e atenção, onde,

conforme Soares sugere, “[...] gera uma energia coletiva (campo magnético), e um

estado de concentração que está anterior ao pensamento, que é um fator importante

para tornar-se criativo: estar receptivo” (SOARES, 2000, p. 40). Isso é interessante

porque é uma maneira de imergir no processo simbólico e de reverenciar a própria

prática.

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4.1.2 Introduzindo a técnica básica da bharatanatyam

Iniciamos com uma das posições básicas de bharatanatyam, o aramandhi, que

tem estrutura semelhante ao plié do ballet clássico. As coxas devem ser rotacionadas

para fora, de forma que os calcanhares permaneçam próximos ou unidos e os dedos

dos pés voltam-se para as laterais, os joelhos são flexionados e acompanham a

referência dos dedos dos pés, o quadril deve ficar o mais baixo possível, sem que se

retire os calcanhares do chão, como ilustra a figura abaixo:

Figura 34 - Aramandhi (ou aramandalam), posição mais utilizada na dança bharatanatyam. Fonte: Centre

for the Promotion of Tradicional Arts, s/d.

Como observado no capítulo anterior esse exercício trabalha duas energias

importantes para o trabalho do intérprete: feminina e masculina, ou o que o tratado de

artes cênicas Nāṭya Śāstra define como aspectos lāsya e tandava, qualidades

relativas à suavidade e à vigorosidade da interpretação. No aramandhi está contida a

essência para esse equilíbrio, a partir da relação entre firmeza (a parte inferior do

corpo) e leveza (parte superior).

Passamos para a primeira série de exercícios, os tatta adavus, nos quais as

solas dos pés repercutem o solo em jogos alternados de velocidades crescentes e

decrescentes, buscando-se manter a estabilidade das coxas e do tronco. Aqui está

presente essa qualidade tan dava e isso demonstra que o início do treinamento busca

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enraizar a base e só depois o elemento lāsya é introduzido por meio das sutilezas do

gesto, do olhar e da expressão facial.

As batidas ritmadas produzem uma sonoridade que auxiliam o intérprete a

encontrar um equilíbrio na força que deve imprimir, evitando danos aos joelhos tanto

ao bater de maneira demasiadamente suave ou forte, exigindo grande capacidade de

sustentação e de equilíbrio. Ao mesmo tempo, pode reverberar como um elemento

meditativo, pelo ritmo contínuo semelhante à meditação, gerando um fluxo ininterrupto

da mente.

Esse é o momento do acordar e nas primeiras aulas era visível a alteração da

atenção que essa série provocava nos alunos. Para o dançarino habituado à

suspensão da gravidade do ballet ou às diferentes mobilidades de tensão e

relaxamento da dança contemporânea, receber o impacto desses primeiros exercícios

costuma soar de maneira ambivalente: ou ele ama ou odeia a sensação de bater a

sola de cada pé alternada, mantendo a bacia, o tronco e a cabeça estáveis e os braços

elevados na altura dos ombros, como mostra a figura seguinte.

Figura 35 - Treinando adavus a partir da posição básica aramandhi. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

No início procurei intercalar esses exercícios com caminhadas pela sala,

momento no qual estimulava-os a expressar suas percepções sobre os exercícios,

como registrado no Diário de Bordo: “P10 disse que seus pés ganharam mais espaço

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após os tatta adavus. P1 relatou sentir as suas pernas tremerem de um jeito muito

bom e P4 disse ter percebido maior centramento no eixo da coluna” (Diário de Bordo,

14 mar. 2014). Eles também se expressavam com frases como: “Meus pés estão

formigando”, “Sinto que meus pés têm mais contato com o chão”, “Me sinto mais

acordado”. Esses relatos me levaram a refletir sobre a importância de manter uma

conexão entre os exercícios e a consciência que começa a se desenvolver a partir

deles.

Aos poucos, adavus mais complexos foram introduzidos, a partir dos quais

começamos a buscar um equilíbrio entre diferentes qualidades de movimentos, com

a introdução dos gestos de mãos (hastas) e diferentes direcionamentos dos braços

no espaço cinesférico. Assim, esperava que a leveza da parte superior do tronco

(qualidade lāsya) pudesse se manifestar, mas percebo que essa qualidade exige mais

tempo de familiaridade com a técnica, justamente para acrescentar uma interpretação

pessoal ao movimento. O que em parte ocorreu à medida em que os alunos evoluíam

não só tecnicamente, mas em termos de disposição, sem demonstrar expressão de

frustração diante da dificuldade ou de confusão como nos primeiros dias.

À medida em que vivenciavam os adavus, pedia para que percebessem seu eixo

de equilíbrio e as tensões e acomodações corporais necessárias, o fluxo respiratório

e o foco do olhar que auxilia a manter a concentração. Esse foi um momento

importante na pesquisa sobre a técnica, pois a necessidade de conduzir o olhar para

várias direções, sempre o retornando ao ponto referencial à frente (denominado no

Nāṭya Śāstra [cap. 10, v. 103] de samaṃ, como um olhar de “descanso” ou olhar para

o horizonte), levou os alunos a descobrirem outras possibilidades de apoio e de

percepção espacial.

Como foi visto no capítulo anterior, a referência corporal do centro, de onde os

movimentos partem e para onde retornam, remetem a uma estrutura circular, que

conformam um mecanismo de circulação, transformação e concentração de forças (cf.

VATSYAYAN, 1997). Esse retorno ao centro é como um momento de recolhimento,

no qual se recupera a força para dali se partir para movimentos precisos. Em tal lógica

de ação, a energia jamais é perdida, sendo gerada no centro corporal e fortalecida na

repetição dessa expansão e recolhimento.

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Ao se desenvolver em um eixo vertical, a bharatanatyam abriu possibilidades de

ampliação espacial a partir de cada parte do corpo, e menos a partir de um

deslocamento visível de um ponto a outro. Conforme bem descreveu um dos alunos,

“Apesar de ficar a maior parte da aula em um mesmo espaço, a impressão que eu

tinha era a de que aconteciam muitas coisas em mim, partes do corpo que nunca

havia mexido” (P2, Questionário, 2014).

Notei que alguns estudantes de artes cênicas valorizavam pequenos detalhes

dos exercícios, seja em uma maneira de realizar um gesto com as mãos ou de

movimentar os olhos, levando-os a querer repetir cada detalhe separadamente da

construção global do adavu. Como a atitude de alguém que acaba de descobrir algo

novo, havia um clima de curiosidade e a vontade de estudar aquele material. A partir

de algumas das criações cênicas apresentadas ao final do curso compreendi que esse

olhar para a técnica os ajudou a ressignificar as sutilezas do treinamento, como será

exposto mais adiante.

Já outros estudantes, sobretudo do curso de dança, apresentavam maior

facilidade em captar o conjunto dos adavus pelo fluxo e eles pareciam incorporar

naturalmente a técnica, porém perdiam o interesse em repetições e detalhes e

ansiavam por novos exercícios. Comparando o aprendizado que os artistas de

bharatanatyam adquirem desde a infância, pode-se dizer que se trata de um

desenvolvimento bastante minucioso, pois aprendem um adavu primeiramente pela

marcação dos pés em diferentes velocidades, depois realizam separadamente os

movimentos de mãos, braços e olhos para, então, integrar todo o conjunto. O tempo

e o domínio do detalhe talvez sejam o que lhes abra para novas e infinitas

possibilidades expressivas. Esse entendimento da repetição leva à compreensão da

descoberta de novas possibilidades, como foi discutido no capítulo anterior a respeito

da relação desse aspecto para o treinamento psicofísico.

Contudo, no contexto de uma disciplina direcionada a artistas da cena em

formação, é preciso considerar que as experiências prévias com o corpo são muito

diversas, advindas, muitas vezes, de uma tendência atual para o treinamento eclético,

no qual as mais variadas técnicas corporais servem para ampliar o repertório e o

currículo artístico (cf. MONTEN, 2015). Ao mesmo tempo em que essa formação

oferece materiais e dispositivos interessantes ao trabalho cênico, pode levar a uma

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abordagem mais utilitarista da técnica, à emergência por fórmulas prontas, à

dificuldade em amadurecer uma pesquisa, de “dar tempo ao tempo”, comprometendo

o processo de formação. Esse, aliás, não é um tema que se restringe somente ao

âmbito das artes da cena, sendo uma consequência da própria educação tecnicista,

que valoriza mais a quantidade do que a qualidade, deixando de saborear a aquisição

do conhecimento desinteressado.

Nesse sentido, a abordagem de ensino das tradições corporais da Índia me

ensina o caminho reverso, a trilhar rumos sem garantia de um resultado promissor, a

(re)aprender o caminho da frustração, fazer o “passo a passo” e, quem sabe,

descobrir, na simplicidade de um pequeno gesto, a profundidade em elementos

aparentemente simples. Como a busca pela flor sougandhikam, em uma peça de

kathakali que passei para os alunos assistirem, na qual o artista, interpretando a

esposa do herói Bhima, passa cerca de vinte minutos da encenação explicando por

meio de gestos com as mãos e expressão facial/corporal por que aquela flor era tão

especial e mágica52.

Aí a repetição ganha outra razão de ser, a dramaturgia é muito simples, gira em

torno da importância de uma flor, mas poderíamos nos perguntar: por que repetir

tantas vezes uma ação se o significado já está dado? Se já compreendi que a

personagem deseja que o marido busque mais flores como aquela? Mas é preciso

compreender que o caminho para buscar a flor (desejo – reconexão com o sagrado)

é muito árduo, que o personagem atravessará dias e noites para tal realização, que

sequer se sabe ser possível, que possivelmente enfrentará mil obstáculos. Porém é

aquela flor sougandhika, perecível e bela, necessária para a satisfação plena do casal.

Uso esse exemplo aplicado à encenação para fazer uma ponte com a questão do

treinamento entre a repetição e a novidade.

52 Kalyana Sougandhikam é uma peça escrita por Kottayat Tampuran (1646-1716) e que originalmente tinha a duração de 3 dias (MENON, 1997, p. 18).

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Figuras 36, 37, 38, 39 e 40 - Fotos da sequência do adavu taha tajam tarita. Local: Unicamp, Campinas,

2014. Fonte: acervo pessoal.

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Diante desse impasse, resolvi dividir a turma em dois grupos, oferecendo a cada

momento uma possibilidade de estudo, revezando tanto a técnica de dissociação dos

movimentos quanto a captação dos adavus pelo fluxo. Isso mudou a dinâmica de

algumas aulas, pois tive mais tempo para auxiliar as dificuldades e ficar mais acessível

às particularidades de cada um, além de ter propiciado a vivência de diferentes

dinâmicas, possibilitando um olhar mais investigativo para a técnica.

Mais para o fim do curso, um grupo costumava observar o outro para perceber

tanto a técnica enquanto prática individual, quanto realizada pelos outros. Um exemplo

dessa abordagem foi durante o exercício “taha tajam tarita”, considerado o mais difícil

de ser executado pelos alunos, dada a sua complexidade de dissociação rítmica entre

diferentes partes do corpo.

Apesar das dificuldades, gostei de apresentar esse exercício para a turma, pois

ele exige um poder de decisão rápida, não há espaço para raciocinar muito: “onde vai

minha mão agora?”, “quando devo bater o pé ao chão?”, “para onde devo olhar?”. Ao

mesmo tempo, eu batia a tala (recurso de repercutir um bastão em um bloco de

madeira para marcar o ritmo), o que deixa o exercício mais hipnótico, restando o

desafio de nele entrar e sair e retornar ao som da marcação. Observei que mergulhar

nessa dimensão conflitiva provocou vários tipos de reações. Há quem simplesmente

desistia de usar as mãos e acompanhava só a marcação dos pés, há quem usava

todo o corpo mesmo descompassadamente, mas era unânime a atenção gerada na

sala, como se não houvesse tempo para se pensar em outra coisa.

Outra prática que desenvolvia nas aulas eram os exercícios de isolamento, que

consistem em trabalhos de fortalecimento e desenvolvimento de fluidez na exploração

de diversas possibilidades de movimento corporal. Como exemplo exercitávamos

alguns gestos de mãos, os hasta mudras, e buscávamos brincar com as relações entre

suas formas e possíveis significados. O intuito foi despertar para os aspectos

interpretativos na encenação da bharatanatyam, que integra o treinamento psicofísico

à dramaturgia.

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Figura 41 - Desenhos de alguns hasta mudras. Fonte: Centre for the Promotion of Tradicional Arts, s/d.

As dinâmicas com os gestos são, em geral, um ponto motivador no aprendizado

das danças indianas, pois se constituem em uma linguagem muito particular e sutil. A

composição de uma dança gestual, que consiste em realizar um movimento após o

outro, foi difícil para os participantes, pois eles perceberam que seria preciso adquirir

coordenação e fortalecimento das mãos e dos dedos para tornar essas passagens

mais fluidas.

Além dessa dificuldade, percebi que oferecer sentidos prévios emprestados da

tradição cênica indiana pode limitar a exploração individual das mãos, pois os

participantes acabam limitando a criatividade. Apesar de se constituírem em uma

linguagem riquíssima, os hasta mudras quando apropriados sem um estudo mais

profundo podem se tornar um recurso meramente estético. Essa experiência me levou

a conduzir a abordagem dos gestos de outras maneiras nos laboratórios posteriores,

como será apresentado nos próximos tópicos.

Na última parte das aulas, quando já estavam cansados, eu costumava passar

os exercícios de isolamento facial, a exemplo do trabalho com os olhos, conforme

mostram as fotografias abaixo. Na primeira, seguramos as pálpebras de cima e de

baixo e circulamos lentamente todo globo ocular nos sentidos horário e anti-horário.

Na segunda foto, o dedo indicador serve de referência para direcionar movimentações

nas diversas direções.

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Figura 42 - Drishti bhedas – exercitando o olhar. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

Figura 43 - Drishti bhedas – exercitando o olhar. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

Nas aulas, falávamos sobre a importante função do olhar como apoio espacial.

Essa ideia se encontra em Vianna (2005), que observa uma relação análoga entre os

pés e os olhos, dizendo que os primeiros sustentam o corpo sobre o chão, e os últimos

sustentam o corpo no espaço. Explorávamos isso intercalando esses exercícios com

caminhadas, quando eles puderam então comparar os efeitos em seus corpos. O

trabalho de exploração facial gerava certa comoção entre os participantes ao

descobrir novas possibilidades expressivas do rosto. Em resposta à pergunta feita no

questionário: “Quais foram suas impressões e sensações sobre os exercícios de

isolamento?”, destaquei as seguintes respostas:

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[...] os exercícios que mais me auxiliaram foram os exercícios de isolamento, pois com eles passei a ter uma consciência que não tinha antes de certos músculos. E esses exercícios me acrescentaram uma expressão facial melhor em danças de todos os tipos de técnica, tanto extracurriculares quanto acadêmicas (P8, Questionário, 2014).

[...] ativar a musculatura e acordar a percepção da cabeça. Acordar e ampliar a percepção de partes do corpo muito expressivas e que, às vezes, não percebia (P5, Questionário, 2014). [...] perceber uma musculatura interna que eu desconhecia, uma musculatura atrás do olho, e, como qualquer musculatura que você não usa constantemente, quando começa a ser trabalhada, a fadiga é enorme. Mas o resultado é impressionante, o olho fica claramente mais vivo e presente (P7, Questionário, 2014). Ao realizar os exercícios de isolamento do olho e das sobrancelhas pude perceber o quão precária é a exploração dos mesmos na dança ocidental (P9, Questionário, 2014). No fim dos exercícios de isolamento senti que consegui melhorar a minha expressão facial, por ficar mais consciente dessa musculatura. Nas outras danças que pratico, a expressão facial é importante, mas não tanto quanto a corporal, então se foca muito no trabalho de corpo e não se fala tanto sobre o rosto, por isso os exercícios de isolamento foram interessantes, pois entrei em contato com algo que sempre julguei ser importante, mas nunca tive orientações para um bom trabalho facial (P8, Questionário, 2014).

Pelos depoimentos, é possível perceber que esse treinamento pode oferecer

parâmetros para a expressividade com potencial enriquecedor na formação dos

artistas cênicos. Acordar o olhar, conscientizar sobre partes do corpo antes

desconhecidas são passos iniciais para que ocorra uma absorção entre técnica e

poética. Além dessas considerações sobre o olhar e a expressividade do rosto, os

alunos também perceberam como um trabalho de dissociação torna mais potente a

expressão corporal na construção de um organismo de ações coerente.

Eles me auxiliaram para que eu pudesse pensar por partes, deixando mais orgânicos cada detalhe de movimento, assim ficando mais fácil de juntar todas as partes e executar todos como um só, globalizados, sincronizados (P3, Questionário, 2014). Foram desesperadores, desafiadores, intrigantes e muito interessantes. Como já falei, perante esses me senti uma tola. Eu entendia e até executava separadamente as movimentações, mas quando era necessário juntá-las e ainda assim mantê-las dissociadas, isoladas, era o caos. Demorei um pouco até desenvolver minimamente a coordenação motora e a consciência corporal e rítmica necessária para a execução desses exercícios, mas foi ótimo. Sinto que desenvolvi aspectos do meu corpo que até então tinham sido

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pouco incentivados, principalmente a expressão da face e das mãos (P10, Questionário, 2014).

É compreensível que nos relatos prevaleça a sensação física de incômodo e de

ativação muscular já que os primeiros contatos com uma técnica tende a se dar mais

pela sua fisicalidade. Por vezes, alguns dos alunos conseguem fazer uma relação com

a presença e a vivacidade do olhar (como em P7), ou da ponte entre esses exercícios

com outras práticas (como em P8). Mas, como avaliar se houve uma real conexão

entre o treinamento oferecido naquele semestre a uma qualidade mais refinada de

autoaperfeiçoamento?

Um exemplo dessa abordagem pode ser identificado em um dos depoimentos

dos participantes, para o qual as técnicas de base trabalhadas nos adavus ganharam

uma dimensão inusitada:

Esse treinamento permitiu que eu percebesse esse quesito em todas as minhas práticas corporais artísticas. Desde então percebi, por exemplo, que no meu trabalho com Hamlet, nas Artes Cênicas, a fraqueza que eu desejava alcançar para a personagem estava muito mais em um apoio físico pouco estável (pois este reverbera pelo corpo e molda toda a estrutura física) do que nas imagens que povoam a minha imaginação no momento. (Estas são importantes também, mas sem um apoio físico elas não se concretizam) (P7, Questionário, 2014).

Nesse relato, o participante demonstra uma percepção refinada de um recurso

técnico (construção de base na bharatanatyam) transposto para uma possível

qualidade da personagem, ao invés de se apoiar somente na imaginação do que seja

alguém fraco. Esse é um problema apontado desde Stanislavski, conforme observa

Zarrilli a respeito da diferença entre a construção de uma ação baseada em objetivos

e motivações e um processo de incorporação (embodiment) a partir do qual um

personagem emerge na cena. Em suas palavras, “Quando um ator tem um objetivo

ou motivação ‘em mente’, ele torna-se altamente autoconsciente como ele pensa

sobre o objetivo, em detrimento de um processo psicofísico de incorporação e morada

do objetivo-em-ação”53 (ZARRILLI, 2009, p.18, grifos do autor). Esse processo requer

53 No original: “When an actor takes an objective or motivation “in mind” he becomes highly self-conscious as he thinks about the objective rather than engaging in a psychophysical process of embodiment and inhabitation of the objective-in-action”.

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uma mudança na própria maneira de perceber o corpo em ação, como um todo

integrado.

Nesse sentido, é possível compreender a diferença relatada pelo aluno entre

“imagens que povoam a minha imaginação”, da sensação de fraqueza como “apoio

físico pouco estável”, demonstrando a importância da relação imagem-ação e o

abismo existente entre uma e outra. A integração de ambos os aspectos pode auxiliar

muito o artista cênico, pois o imaginar é também uma ação ainda não materializada.

Dedicamos uma etapa do curso ao estudo de uma pequena composição cênica

do repertório da bharatanatyam, chamada Pushpanjali, que carrega o sentido de

ofertar flores na abertura de espetáculos. O intérprete entra no espaço destinado à

performance portando flores nas mãos, percorre-o seguindo o ritmo do tambor,

desenhando um grande círculo completo e depois gira em torno de si. Caminha em

diversas direções, simbolicamente saudando os deuses hindus que regem cada

direção espacial e terminam a primeira parte oferecendo as flores ao centro do palco

ou diante da imagem de Shiva, considerado o criador da dança.

Na sequência, diferentes adavus são dançados de maneira vigorosa, que

significam que o intérprete está dedicando aquela dança aos deuses e aos

espectadores. Ao final dessa peça, interpreta-se um pequeno poema por meio da

expressão facial e dos mudras, seguindo uma marcação rítmica com os pés. A

estrutura dos versos é bem simples e a interpretação por meio dos gestos

correspondem a cada palavra do poema.

Ao trabalhar essa dinâmica, tive como objetivo propiciar uma vivência corporal,

na qual os recursos da parte abstrata (nritta) e da parte expressiva (abhinaya) são

incorporados de maneira ritualizada pelos artistas cênicos de bharatanatyam.

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Figuras 44, 45 e 46 - Alunos realizando a coreografia Pushpanjali. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

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Nesse estudo coreográfico, observei que as técnicas de isolamento e os adavus

ganharam um novo sentido para eles, orquestrando-as em um trabalho de

organicidade corporal, no sentido de tomar vida e presença, conforme explica Barba

a respeito desse termo. “Tanto no teatro como na dança, o termo orgânico é usado

como sinônimo de ‘vivo’ ou ‘crível’. Quem o introduziu na língua do trabalho teatral do

século XX foi Stanislavski” (BARBA, 2012, p. 206). Já Burnier (2009, p. 53) explica

que “A organicidade referente à organização interna de uma ação, ou à interação entre

as ações, não tem nada que ver com o ‘natural’, mas com a impressão de naturalidade

que a coerência da organização interna de um determinado sistema gera”. Nesse

sentido, o treinamento requerido para a dança a bharatanatyam pode ser visto por

eles como um exemplo de aquisição de um complexo sistema em que todas as partes

se encaixam.

Apesar de parecer pra mim que os movimentos do braço eram isolados da perna e vice-versa, percebia que havia uma só expressão envolvendo os quatros membros e por consequência o corpo todo (P5, Questionário, 2014).

[...] a fluência da coreografia me estimulava a continuá-la, como uma onda que te arrasta mesmo quando você não “entra” corretamente nela (P7, Questionário, 2014).

A coreografia, conforme relata outro aluno, “[...] ajudou a compreender o

significado da dança indiana, que não é apenas contar uma história através de gestos,

mas os mitos têm um significado e a dança tem toda uma parte ritual (como a entrega

das flores no início)” (P8, Questionário, 2014).

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4.1.3 Foco em interpretação e os laboratórios de criação

A partir da metade do curso, iniciamos os laboratórios de criação que tiveram

como mote um exercício de interpretação com frases sorteadas em sala. Essas frases

consistiam em um trecho motivador para a encenação, tal como: “Ouça ... lá fora, já é

dia! O que vamos fazer?” ou “Penso em você quando vejo nuvens escuras”. Tal

exercício foi inspirado no estudo de Cippiciani (2015), sobretudo em um de seus

workshops sobre a técnica do abhinaya voltada para o treinamento de intérpretes54.

Solicitei aos participantes a elaboração de suas próprias interpretações,

ampliando ou sublimando o texto de base. Esse foi um pontapé inicial para estimular

os trabalhos de apropriação cênica e nossa preocupação – da Profa. Mariana Andraus

e minha – era a de que eles se sentissem livres para usar suas próprias experiências

corporais, sensoriais e intuitivas. A questão que me orientou nessa etapa foi se as

partituras corporais trabalhadas durante a disciplina teriam contribuído – ou não – para

um outro modo de criação cênica que não se restringisse apenas a uma imitação das

formas da bharatanatyam.

Para que isso se tornasse uma possibilidade, procuramos orientar os

participantes em suas investigações individuais55, apresentando os fragmentos

elaborados em cada aula, de tal forma que toda a turma pudesse expressar suas

sugestões e refletisse sobre que tipo de questões um processo criativo coloca em

jogo. Essa maneira de trabalhar em conjunto foi muito bem recebida por eles, pois

eles haviam expressado no início do curso que tinham receio quando solicitados a

elaborar partituras cênicas a partir de um conceito, porém sem nenhum parâmetro

técnico. Esse pensamento confirma a hipótese de que a técnica indiana na formação

de dançarinos e atores realmente pode contribuir para um direcionamento criativo.

54 No curso, a pesquisadora sorteou trechos de frases narrativas extraídas de textos poéticos da dança cênica indiana e pediu que nós tentássemos expressá-las por meio de gestos e expressão facial. Também sugeriu que as interpretássemos de maneira mais óbvia e de maneira mais abstrata, isto é, buscando relações que extrapolassem o sentido direto das frases. 55 Alguns desses exercícios encontram-se no vídeo anexado a esta tese.

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Figuras 47 48, 49, 50, 51 e 52 - Alunos apresentando exercícios de interpretação. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

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Ao longo dos laboratórios, percebemos que a maior parte da turma buscou se

apropriar do gestual da expressão facial de maneira mais imitativa. Percebi que seria

importante repetir os exercícios poéticos em busca de explorar outros recursos mais

sutis registrados durante as vivências naquela disciplina. Para desafiá-los a se

arriscarem mais formamos duplas que deveriam integrar suas elaborações anteriores,

conforme sugestão da Profa. Mariana Andraus. Buscamos despertar a criatividade

dos parceiros, pois eles teriam que agregar novos significados a partir da união de

duas frases diferentes, com a possibilidade de reinventar uma dramaturgia.

O mais interessante nesses primeiros laboratórios com as frases foi trazer para

o corpo um tipo de interpretação que talvez não fosse aparecer espontaneamente,

sobretudo nos trabalhos dos alunos do curso de dança, que buscaram integrar nas

cenas situações nas quais tanto o rosto quanto as mãos participariam da criação.

Em busca de instigar outras possibilidades expressivas durante as pesquisas

criativas, convidei a Profa. Kamilla Mesquita, pesquisadora do Gurpo Pallavi, que

investiga interfaces entre as linguagens artísticas da escultura e da dança, utilizando

princípios da técnica Klauss Vianna no processo de criação56. Por termos trabalhado

com frases corporais geométricas a partir de qualidades como precisão, ritmo, fluxo e

peso, intuí que seria interessante desenvolver essa abordagem com as imagens,

como proposta poética de continuidade ao trabalho com as frases.

O trabalho foi realizado a partir de imagens levadas pelos participantes, que

consistiam em fotografias, pinturas, esculturas e objetos que sugerissem movimentos

corporais e, que porventura, tivessem algum tipo de relação com os exercícios

anteriores. A proposta se baseou na observação e assimilação das figuras por meio

de posturas estáticas, intercaladas gradualmente a partir de passagens dinâmicas,

lentas ou mais rápidas.

56 Kamilla Mesquita Oliveira é doutoranda em Artes da Cena, coreógrafa e intérprete, com experiência em dança

contemporânea, dança do ventre e técnica Klauss Vianna. Conferir o trabalho em Oliveira (2012).

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Figura 53 - Profa. Kamilla Oliveira introduzindo o tema da aula para os alunos. Figuras 54 e 55 - Alunos em processo de criação com imagens. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte:

acervo pessoal.

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Entre a permanência e o fluxo, a professora instigava uma dramaturgia das

formas em movimento. A ideia é que as figuras impressas na memória corporal dos

participantes ganhassem vida entre uma e outra, dando forma a um conjunto

coreográfico e maleável. O desafio era gerar estruturas em movimento a partir de suas

próprias referências internas, do esforço e precisão necessários para imprimir as

imagens.

O trabalho que a Kamilla propôs se desenvolveu melhor do que eu imaginei. Foi uma aula bem diferente, na qual eles puderam trabalhar de maneira mais introspectiva, agregando valor e profundidade ao que já vinham treinado e elaborado nas aulas anteriores. O trabalho com as imagens auxilia a criar dinâmicas, passagens e permanências ao que se quer expressar (Diário de Bordo, 23 mai. 2014).

Esse momento da disciplina se constituiu em um veículo muito interessante para

que os participantes fizessem uma ponte entre o treinamento de bharatanatyam e

suas criações.

À princípio, esperávamos que os alunos fossem construir um elo entre as frases

sorteadas e as imagens, porém, na prática, poucos foram o que fizeram esse

percurso. Como exemplo, escolhi o trabalho de um dos participantes que levou as

seguintes fotografias para relacionar com a sua frase:

Frase: “Não vejo a hora dele chegar... Será que ele ainda se lembra de mim?”

Figura 56 - Fotografias escolhidas por um dos participantes para criação poética. Fonte: acervo pessoal, 2014.

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No trabalho final, esse participante manteve as mesmas características de seus

exercícios com as frases e soube aproveitar o que cada laboratório de criação pode

lhe proporcionar. As imagens das garotas sozinhas, em diferentes situações: a

espera, a contemplação e observar uma flor, estavam todas incorporadas em sua

cena, seja na qualidade de um gestual, no qual suas mãos e dedos ganharam vida,

algo que certamente veio das aulas com mudras.

Os relatos derivados dos processos criativos foram, em geral, positivos. O

depoimento de P10, por exemplo, me fez pensar sobre a importância de ousar

experimentar conceitos aparentemente em desuso sob o ponto de vista de um novo

olhar. Segundo esse aluno,

[...] a possibilidade de contar uma história linear pela Dança, com começo, meio e fim, foi algo bastante utilizado no ocidente em tempos passados, mas que atualmente, na dança contemporânea, foi caindo em desuso. Porém, a dança indiana me mostrou que pode ser uma escolha ainda possível, ainda interessante, ainda potente. Lembrou-me que contar uma história linear não necessariamente implica em cair no óbvio, no brega, no infantil, ou no anacrônico. Para o trabalho final desse semestre, eu e meu parceiro escolhemos o desafio de contar uma história linear e foi extremamente prazeroso, proveitoso e instigante. Aprendi muito (P10, Questionário, 2014).

Às vezes quando contemplo o percurso histórico das artes da cena, tenho a

impressão de que há um caráter evolutivo nos procedimentos e materiais cênicos, a

partir dos quais cada artista vai superando seus mestres. É como se tivéssemos que

ser sempre originais enquanto artistas, inovadores em nossos procedimentos, porém

muitas vezes estudamos conceitos e sistemas artísticos de nossos antecessores em

termos mais teóricos do que práticos, o que demonstra uma grande deficiência na

área das artes da cena: a preservação e a transmissão desses ensinamentos. Por

isso, ao ter contato com esse intrincado manancial das artes asiáticas, tenho refletido

sobre possibilidades de fortalecer o campo artístico a partir de seus laços, e não

somente de suas rupturas.

Voltando às observações dos participantes sobre o trabalho criativo a partir da

bharatanatyam, em termos de dificuldades enfrentadas, os depoimentos realçam

justamente a tentativa de não deixar o trabalho tão literal. Penso que essa dificuldade

poderia ter sido amenizada se tivéssemos tido mais tempo para observar uns aos

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outros, tecer críticas e indicar caminhos. Ainda assim os alunos afirmam que foi um

aprendizado importante em termos de desafio.

A maior dificuldade que tive, sem dúvida, foi colocar a expressão na coreografia, porque para que eu realmente coloque uma emoção no que estou realizando preciso acreditar verdadeiramente naquilo, e como estou com vários outros processos artísticos em andamento, não consegui me entregar por inteiro para esse processo e não consegui me sentir verdadeira realizando a coreografia, e consequentemente a dificuldade maior foi colocar minha expressão nela, que as vezes parecia muito forçada (P4, Questionário, 2014).

O que o depoimento de P4 revela com os termos “acreditar verdadeiramente”

e “me entregar por inteiro” revelam um conflito do artista em geral, que pode se apoiar

em demasia em suas emoções e depender de um “verdadeiro” propósito. Isso me

remete à estética de bhava e rasa na cena indiana, em que o treinamento proporciona

ao intérprete o refinamento das emoções (bhavas) para aprimorar a experiência

estética (rasa), sendo que ele não constrói um personagem sem parâmetros, pois eles

já estão estabelecidos pela cultura. Assim, quando pensamos em termos de

interpretação sem esses parâmetros dados, é realmente um grande desafio, pois o

artista pode sentir que depende muito mais de sua intuição, que nem sempre responde

quando se deseja.

Outro trabalho interessante foi a cena Esse estranho espaço entre nós,

realizado por uma das duplas, cujo tema gira em torno de insistentes aproximações

de um personagem e a recusa do outro. A criação se baseou na investigação do

gestual e no trabalho com as imagens, que auxiliou a encontrar, segundo o aluno, “[...]

um ritmo e um comportamento para o personagem” (P5, Questionário, 2014).

Essas qualidades de ritmo e comportamento a que ele se refere tem a ver com

a maneira de caminhar e com a postura corporal do personagem. Quando a

caminhada era ritmada e vigorosa mostrava confiança e persistência de que

alcançaria o objetivo almejado e lembrava o som dos pés batendo vigorosamente ao

solo nos adavus. Já ao final da cena, quando ele está destituído de esperança, a força

desse sentimento é expressa pelo contraste da caminhada anterior, que passa a ser

silenciosa e o tronco, curvado para frente.

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Figuras 57 e 58 - Participante em caminhar confiante e caminhar desiludido.

Outro exemplo de apropriação do treinamento foi a personagem construída por

P2, extraída de um trecho-refrão da cena, na qual se recusa a aceitar a oferta do outro

personagem. A construção corporal, nesse caso, remete a um adavu, que no

treinamento de bharatanatyam não tem um significado objetivo. Conforme relata sobre

o processo:

[...] procurei utilizar dos conceitos que consegui absorver e que mais me impressionaram, como a ‘fala’ através das mãos, alguns adavus e principalmente a ideia de uma dança relativamente estática, em que a evolução no espaço não é recurso utilizado todo o tempo, diferente das danças que eu já conhecia (P2, Questionário, 2014).

A aplicação conceitual do adavu foi uma intuição bem-sucedida por parte da

dupla, ao transformar a técnica em linguagem poética. Isso não quer dizer que os

adavus não sejam carregados de ação e expressividade, mas me refiro à eficácia que

o transporte sígnico promoveu em termos de criação.

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Figuras 59 e 60 - Interpretação de personagem, realizando gesto de negação. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

Figura 61 - Notação de um dos adavus de bharatanatyam. Fonte: Centre for the Promotion of Tradicional Arts, s/d.

Já na cena Insônia, um dos participantes criou uma cena em vídeo, tendo como

argumento o trecho: “Meus olhos que antes brilhavam como as estrelas agora estão

sem luz”. Para construir sua cena ele se apropriou do sentimento de maravilhamento

(adbuta rasa) trabalhado na técnica expressiva e o associou, de maneira sutil, aos

exercícios com os olhos (drishti bhedas). Essa apropriação, para quem assiste ao

vídeo, não evidencia que exista tal influência no trabalho do artista, porém é clara a

absorção desses elementos em sua cena.

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O participante ampliou o trecho sorteado, transformando-o em uma narrativa

poética, o qual compõe a construção cênica, narrada em off durante o vídeo.

Durmo irrequieto e vivo num sonhar irrequieto de quem dorme irrequieto, metade é sonhar. Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias. Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua. Não há na rua certa um número de porta que me deram. Os meus olhos que antes brilhavam como as estrelas, agora estão sem luz...

Mas não é só o cadáver. Essa pessoa horrível que não é ninguém. Esse desconhecido que aparece pela ausência da pessoa que conhecemos. Não é só o cadáver. Esse abismo cavado entre vermos e entendermos. Não é só o cadáver que dói na alma com medo, que põe um silêncio no fundo do coração. As coisas usuais de quem morreu também perturbam a alma, mas com mais ternura no medo.

Quem pode ver sem saudade a mesa onde sentava um amigo. A caneta com que escrevia. Quem pode ver sem uma angústia própria o casaco de um mendigo morto, onde ele metia as mãos para aquecê-las. Os brinquedos horrivelmente arrumados de uma criança morta. Tudo isso me pesa de repente no entendimento do universo. E uma saudade do tamanho da morte me apavora a alma (P7, Composição poética do aluno, 2014).

A visualidade do texto é potencializada pelo jogo de sombras e penumbra do

pequeno escritório onde o personagem-poeta vive as angústias das imagens

povoadas em livros, memórias e em seus escritos. O aluno explica que para essa

cena se baseou tanto no trecho poético, quanto no trabalho de criação por imagens.

Também é perceptível pelo seu desenvolvimento nas aulas, a exploração da

possibilidade expressiva do olhar e a presença da clareza comunicativa que eles

trazem.

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Figura 62 - Sequência da cena Insônia, realizada pelo ator Rafael Quelle. Fonte: acervo pessoal.

Acredito que a discussão deste tópico ilustre bem o aproveitamento que os

alunos tiveram na disciplina Artes Corporais do Oriente. Analisando todo o material do

curso, concluí que o trabalho expressivo-corporal da bharatanatyam em um contexto

de criação pode se concretizar nessa ponte entre imagens internas e externas que o

processo psicofísico propicia.

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4.2 Práticas de autoaperfeiçoamento na disciplina Formas Espetaculares do Oriente

Como seguimento à pesquisa, tive outra possibilidade de atuar junto ao

Programa de Estágio Docente da Universidade Estadual de Campinas, na disciplina

Formas Espetaculares do Oriente do curso de graduação em artes cênicas. As aulas

aconteceram durante o segundo semestre de 2014 sob a supervisão do Prof. Dr.

Cassiano Quilici. Novamente, a ementa da disciplina abrangia o tema das artes

asiáticas57 e foi uma boa oportunidade para rever conceitos e ampliar possibilidades

de experimentar propostas com a técnica indiana para um outro público de artistas em

formação. Na preparação da disciplina, Quilici sugeriu que as aulas tivessem uma

parte conceitual e uma parte dedicada a exercícios adaptados das tradições asiáticas.

A abordagem partiu das apropriações das formas artísticas asiáticas por dois artistas

da cena ocidentais no início do século XX: Antonin Artaud com o Teatro de Bali e

Bertold Brecth com a Ópera Chinesa. Em um segundo momento do curso, o foco foi

o estudo do teatro japonês noh e do teatro indiano kathakali.

Busquei dar continuidade à proposta investigativa com as minúcias da técnica

indiana, a partir de uma consciência meditativa, pois buscava um processo mais

efetivo de internalização – do gesto, do olhar, do respirar – que explorara no primeiro

laboratório de maneira mais tímida. Vivenciar, pela repetição e pela permanência, um

estado físico e mental, aprendendo a controlar as emoções e as sensações que

emergiam, registrando internamente cada etapa do processo foi um dos propósitos

nesse segundo laboratório.

Em termos gerais, o conjunto de práticas que propusemos nessa disciplina visou

apresentar possibilidades de ações minuciosas, silenciosas, pautadas pela percepção

de si, na respiração e na concentração da mente e das emoções.

As práticas buscaram, ainda, veicular a expressão, por meio de exercícios

rítmicos, nos quais os alunos deveriam trabalhar sobre um repertório de movimentos

isolados – batidas ritmadas dos pés sobre o chão, executar gestos com as mãos,

57 Conforme o catálogo do curso de artes cênicas, a ementa da disciplina Formas Espetaculares do Oriente propõe um “estudo das formas espetaculares orientais, nos diversos processos de composição cênica: das manifestações tradicionais às contemporâneas” (DAC, 2009).

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acompanhar os gestos com o olhar – elementos aparentemente simples, mas

complexos quando realizados tanto separadamente quanto em conjunto. E, no

entanto, são movimentações sutis, que exigem precisão e atenção. Apesar de eu não

dominar a técnica do kathakali, procurei aproveitar as poucas lições que tive com o

professor Kesavan Namboodiri, durante minha estadia na escola Vijñana Kala Vedi,

na Índia, me valendo também de princípios em comum com o treinamento de

bharatanatyam.

Percebi, desde as primeiras aulas, que se tratava de uma turma muito diferente

daquela do semestre anterior, eram mais alunos e eles gostavam de colocar suas

opiniões sobre o material das aulas. Eram também mais agitados. Esse

comportamento contribuiu para que o foco em práticas meditativas se tornasse uma

experiência instigante para eles. A turma contou com um total 26 alunos, a maior parte,

estudantes de artes cênicas. A carga horária total em sala de aula foi de 30 horas,

divididas em 4 meses de estudos.

Já na primeira aula, o professor questionou o conceito de “espetáculo” conforme

propõe o próprio título da disciplina Formas Espetaculares do Oriente. Segundo esse

pensamento, espetáculo pode levar ao entendimento de que se tratam de teatros

feitos para exibição pública ou de que o treinamento é adequado para cada

apresentação. Desconstruir esse pensamento foi o fio condutor de todas as aulas que

se seguiram, por meio da discussão dos textos e das práticas que procuramos

apresentar.

No início, foi difícil para a maioria compreender que o treinamento nem sempre

está vinculado à preparação de uma peça, mas aos poucos essa noção foi se tornando

mais clara à medida em que fomos adentrando em uma outra maneira de

compreender o fazer artístico. O que foi possível tanto a partir das práticas quanto das

discussões sobre a relação artista-obra-público nas formas artísticas como o kathakali

e o noh.

Na etapa das práticas, por exemplo, percebi que os alunos começaram a

identificar a relação entre trabalhar um exercício que exige tempo e escuta com a

dificuldade em manter a atenção, o foco e tornar o corpo mais vivo, elementos básicos

nesses exercícios.

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Nas discussões que se seguiram em sala, comentei sobre qual os possíveis

significados de espetáculo nas artes dramáticas da tradição indiana. Esclareci que

existem formas derivadas dos templos que se mesclaram às populares, ou folclóricas,

e que atualmente é possível assistir a apresentações de vários desses estilos em

grandes teatros, em festivais dos templos, em competições de estudantes. Contudo,

chamei a atenção para um aspecto singular em meio à reformulação pelas quais essas

práticas passaram: me lembrei das apresentações de kathakali na região de Kerala

às quais pude assistir. Em especial uma delas, na qual nosso professor, Kesavan

Namboodiri, participara.

A apresentação ocorreu diante de um templo durante quase 5 horas, e não

houve praticamente plateia alguma! Recordo-me de ter ficado com pena pela ausência

de público. Qual foi a minha surpresa, na manhã seguinte, quando fui à classe desse

professor e o vi afirmar em tom de satisfação: “foi um show maravilhoso! o que você

achou?” Comecei a compreender que definitivamente ele estava certo.

Seu grupo dançara em homenagem à deidade do templo, a noite estava bonita,

eles se sentiram bem interpretando os papeis que vinham treinando a maior parte de

suas vidas e, além de tudo, os astros estavam a favor! Sim, porque eles se recusam

a fazer apresentações caso esteja previsto algum eclipse ou outro aspecto que seja

considerado desfavorável no dia. Questões que, para aqueles que perderam laços

comunitários cotidianos, talvez não façam muito sentido, mas que dizem muito sobre

os atores de kathakali e sua relação com a arte. Relatos como esse despertaram

bastante interesse dos alunos ao longo da disciplina e eles demonstraram ter pouco

ou quase nenhum conhecimento do tipo de arte sobre o qual estávamos falando,

devido a uma série de perguntas que emergiram a partir da primeira aula.

Em relação à parte conceitual, um dos pontos-chave foi levar os alunos a

repensar suas práticas como artistas cênicos por meio dos ensinamentos que as

formas teatrais asiáticas podem proporcionar. Por exemplo, a partir de um tipo de

relação muito próxima entre a práxis artística e um sentido moral, ético e de realização

interna do indivíduo, como foi comentado nos capítulos anteriores.

Um exemplo de discussão semelhante ocorreu em uma aula sobre a arte e a

experiência da beleza a partir de um texto de Coomaraswamy (1979), segundo o qual

sentir e experienciar o belo é adentrar em um tipo de estado perceptivo mais sutil,

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como resultado do trabalho de depuração de emoções, sentimentos e pensamentos

realizado pelo intérprete e que pode ser vivido na interação obra, artista e público.

Esse tipo de experiência estética, denominada no Nāṭya Śāstra de rasa, é possível de

ser conseguida por meio de uma educação dos sentidos. Compartilho minhas

observações sobre esse dia, quando falávamos sobre o trabalho de interpretação dos

atores de kathakali:

Não sei se os alunos compreenderam muito bem, uma das dúvidas foi se o ator vive o papel que interpreta, mas na verdade a questão é pensar que o teatro tem um sentido pragmático, educativo, estético e espiritual. Portanto, os papeis foram codificados e transmitidos por meio do estudo dos gestos, das expressões, dos passos. Não tem a ver com o indivíduo, e sim com o coletivo (Diário de Bordo, 2 de out. 2014).

Tentei mostrar na prática que realizamos naquele dia a importância do

treinamento para o trabalho sobre de si e o refinamento da arte. Até aí não haveria

diferença entre o trabalho dos artistas da cena em geral. A questão é como as

propostas de treinamento orientais fazem isso e com que propósito. No caso da

interpretação de um papel, o ator de kathakali não mergulha nas emoções de um

personagem, sua relação é mais poética e sugestiva. Ele sugere que exista uma flor

em suas mãos por meio do olhar, da expressão facial, das mãos que carregam algo

precioso, mas a imagem da flor é o espectador quem constrói, quem faz a ponte e cria

sentidos, por isso é escasso o caráter denotativo em uma encenação que tenha o

Nāṭya Śāstra como norte.

Uma maneira de vivenciar como um artista cênico de kathakali prepara-se para

o papel foi por meio de alguns exercícios que treinamos, os chuzhippu. São definidos

por Menon (1997, p. 11) como “[u]m tema coreográfico que envolve movimentos

rotatórios das mãos, enquanto se mostra alguns mudras, e do tronco...58. Da cintura

para baixo deve-se manter pés e pernas na posição de base e o tronco se move

circularmente enquanto uma das mãos acompanha o tronco, fazendo mudras.59

58 No original: “A choreographic motif involving rotatory movements of the hands when showing some mudras

and of the trunk when dancing…” 59 Alguns desses exercícios de aquecimento estão no vídeo que acompanha esta tese.

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Figura 63 - Sequência de um chuzhippu. Fonte: acervo pessoal, 2014.

Ao mesmo tempo em que se apresenta como um aquecimento, o chuzhippu é

como uma semente que concentra os princípios da técnica com movimentos circulares

do tronco, dos olhos, movimentos das sobrancelhas, no sentido de desenvolver um

tipo de precisão, além da conquista de base da parte inferior do corpo. A lógica desse

exercício é trazer ao corpo a firmeza e a flexibilidade necessárias para a

expressividade, nada deve exceder ou ser mostrado a menos.

Uma interessante observação feita por um dos alunos sobre os exercícios de

movimentação dos olhos ajuda a pensar sobre possíveis relações entre técnica e

aperfeiçoamento:

Esse exercício me deixou muito agoniada. Quando o exercício era mais lento minha ansiedade era tanta que parei diversas vezes o exercício no meio. Tentei repetir em casa me filmando, e a sensação foi a mesma... meu coração acelerava e o foco era desviado. Mas apesar desses sentimentos ruins percebi que ele é muito bom para um controle dos meus sentimentos. É através do olhar que acredito que expressamos muitas coisas inconscientes, e ter um domínio sobre isso é enfrentar alguns monstros que habitam nosso íntimo, há para mim nesse treinamento essa espécie de vulnerabilidade e exposição que tento fugir (P1, Questionário, 2014).

Esse pequeno relato demonstra que o aluno possui uma boa capacidade de

persistir frente à dificuldade que se apresentou nesse exercício, relacionando-o mais

às sensações psicofísicas que ele desperta. Entendo que estar vulnerável, nesse

caso, significa assistir à emergência de “sentimentos ruins” em si mesmo, e não estar

exposto diante de outros. Pelo contrário, diante do outro, seja este o público ou sujeito

das relações cotidianas, costumamos vestir máscaras adequadas a cada ocasião,

mas quando se está consigo mesmo o desvelar dessas máscaras pode ser

assustador. Segundo esse ponto de vista, faz sentido aquilo que o professor procurou

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ressaltar durante a disciplina, o fato de que esses treinamentos orientais colocam em

questão uma ética artística que podem auxiliar à reflexão sobre o que significa SER

ARTISTA e o que esse fazer implica no contexto onde se vive.

Em nenhum momento disse aos alunos o que cada exercício poderia despertar,

para que eles mesmos pudessem ter sua vivência pessoal sem se deixar influenciar

pelas minhas percepções.

Outra ênfase trabalhada nas práticas foi a dos exercícios de ativação da cabeça

por meio dos pranayamas de yoga. São elas: o zumbido da abelha e pratyahara

(tapando olhos e ouvidos) com mantralização do Om. Em ambos, mantêm-se os lábios

unidos, sendo que no primeiro, a sonoridade é de um “z” constante e, no segundo, de

um “o” fechado. Relato a seguir o que uma das alunas expressou após realizar essas

práticas.

P5 veio me dizer como esses exercícios têm sido importantes para ela, pois estão ampliando seu olhar e despertando a percepção de que as coisas se expandiram, como eles colocam em movimento musculaturas na cabeça que nem imaginava e que provavelmente ativam regiões no cérebro, reverberando em toda caixa craniana, pois sai mais acordada das aulas (Diário de Bordo, 16 out. 2014).

Essas práticas não vislumbraram guiar trabalhos cênicos, mas, por vezes,

observa-se que seus benefícios se estendem para aspectos que vão além da cena,

como a exposição do participante acima revela.

O trabalho com os gestos também recebeu considerável ênfase durante a

disciplina, já que se trata de um dos aspectos singulares nas artes asiáticas e pouco

conhecidos na prática dos artistas cênicos ocidentais. Procuramos trabalhar a

expressão do gesto de diferentes maneiras: pelo exercício de vocalização com auxílio

das mãos, para controlar a amplitude desejada do som; pela caminhada da flor do

butoh, na qual a flor vai sendo construída pelas mãos durante uma caminhada lenta;

pela meditação com mudras, na quais os gestos são veículos para comunicação

interna; pelo jogo da improvisação, explorando o espaço pelo trabalho de ativação das

mãos.

Uma das questões mais interessantes nessa parceria com o professor é que os

exercícios que ele passava para trabalhar o gesto expressivo não eram totalmente

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estruturados como os que eu propunha. Percebemos que no primeiro caso havia o

elemento inesperado a emergir, já no segundo tipo, os exercícios disparavam

percepções mais concretas sobre um modo de agir e a rede de percepções que eles

veiculavam.

Na sequência, comento brevemente sobre os procedimentos e as observações

minhas e dos alunos em relação a alguns desses exercícios.

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4.2.1 Práticas de canto com vogais e ragas indianas

Os exercícios de canto foram ministrados pelo professor Cassiano e consistiam

basicamente na vocalização de vogais ou de notas musicais referentes às ragas

indianas, buscando controlar a emissão sonora por meio de movimentos espontâneos

das mãos e dos braços.

Assim, quando se desejava projetar um som para alguém que estivesse mais

distante, a tendência era que os braços e as mãos ficassem mais estendidos. Se, pelo

contrário, a intenção fosse concentrar o som em um só ponto, em geral o gesto era

mais redondo e contraído, como no exemplo das figuras 63 e 64, nas quais uma aluna

apresenta a projeção do som e, a outra, a concentração.

A associação entre a projeção sonora e a força projetada pelas mãos pode se

constituir como uma partitura corporal preparatória para a expressão do artista cênico,

ao atribuir vida às mãos. Esse exercício, quando repetido várias vezes, pode conduzir

a dinâmicas de improvisação, nas quais as mãos passariam se expressar de maneira

mais orgânica com a voz.

Nesses exercícios, percebi uma evolução ao longo do semestre, conforme os

relatos a seguir:

Na parte de canto, os alunos pareciam tímidos, apesar de estarem acostumados a usar a voz. O corpo permanecia rígido enquanto vocalizavam as notas e, mesmo usando as mãos para ressoar a vogal, observei que o gesto era contido. Talvez eles estejam preocupados mais em acertar o tom do que com a repercussão da voz. Esse método é interessante porque é como se a energia vocal não se disperssasse, fosse recolhida e ampliada na mesma lógica das formas yantras da prática de yoga ou da bharatanatyam (Diário de Bordo, 11 set. 2014).

Hoje Cassiano começou com vocalizações e introduziu cantos simples. Percebi que, diferente das primeiras aulas, nos soltamos mais, tanto a voz quanto o corpo. Ele também procurou instigar respostas corporais ao som de nossa voz e isso ajudou (Diário de Bordo, 20 nov. 2014).

Essa foi a última aula de prática e foi incrível como os alunos se entregaram na parte de canto. Estão cantando mais alto e alguns fecharam os olhos ao mover as mãos, como se a vibração sonora não viesse apenas das cordas vocais, mas de uma parte mais profunda de seus corpos (Diário de Bordo, 27 nov. 2014).

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O primeiro relato refere-se ao primeiro dia em que realizamos a atividade de

canto e os demais aos últimos encontros que tivemos. Nesses exercícios, a lógica de

captação, concentração, dispersão e recolhimento de energia ampliou as

possibilidades expressivas e acabou se tornando uma prática recorrente, sem que

houvesse uma intenção prévia ao conjugarmos as práticas que cada um se propôs a

ministrar. É o que acabou ocorrendo na meditação com mudras.

Figuras 64 e 65 - Exercícios de cantos vocálicos com projeção das mãos. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

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4.2.2 Vivência de meditação com mudras

Nessa vivência, adaptei uma das práticas da escola Shivam Yoga, que é uma

meditação por meio da concentração profunda em determinados gestos de mãos.

Como observado no capítulo 2, quando pratico essa meditação com mudras percebo

vibrações por vezes mais sutis, ou mais densas em vários pontos relativos aos

chakras, centros energéticos no yoga, e, consequentemente, a ampliação de um

campo (como a cinesfera) ao meu redor.

Para melhor compreensão de como funciona esse exercício com mudras,

descrevi abaixo as etapas da vivência que elaborei, extraída de meu Diário de Bordo,

ressaltando que não tenho como objetivo apresentar uma espécie de “manual da

prática”.

Nessa atividade, os alunos foram convidados a despertar a consciência da potência latente em suas mãos por meio da combinação de práticas com as mudras, emprestadas do Shivam Yoga, e de um trabalho de livre exploração no espaço da sala. O trabalho se estruturou em quatro eixos (aquecimento, sequência de mudras, etapa criativa e conversa) descritos a seguir: a) aquecimento com ativação energética das palmas das mãos por meio da fricção; ativação de determinados pontos do corpo por meio da movimentação provocada pela respiração; percepção da respiração posicionado as palmas das mãos sobre as costelas (nas partes alta, média e baixa), sentindo sua movimentação pelo fluxo respiratório. b) sequência com mudras – adaptação da técnica de meditação desenvolvida por Almeida (2007) do método Shivam Yoga. Nessa prática, os alunos permanecem sentados numa posição confortável de pernas cruzadas, mantendo os ísquios bem apoiados no chão e a coluna ereta. Realiza-se uma sequência de variados mudras, em diferentes níveis corporais. Os alunos recebem comandos como: “observe esse gesto. Perceba o fluxo que ele forma entre uma mão e outra. A que ele lhe remete? Como o percebe?” Dessa maneira, eles podem interiorizar cada gesto por meio das sensações e conscientização de diferentes estados por eles evocados. Nesta etapa, ainda nenhum conceito expressivo é desenvolvido. c) etapa criativa que se divide em: i) o gesto vazio, a descoberta das mãos, explorando as sensações articulares e as possibilidades de movimentos, bem como sua relação com o espaço e as diferentes sensações de superfícies tocadas; ii) o gesto potente, intenção comunicativa, imaginando situações, direcionando-o a alguém, o gesto que se desdobra em movimentos em todo o corpo, todo o corpo se comunica no gesto. Nesta etapa, podem-se sugerir os seguintes comandos: “experimentem permanecer em um só gesto”, “agora troquem de gesto”, “agora busquem ligar o gesto anterior ao gesto novo” (Diário de Bordo, Planejamento da disciplina, 2014).

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Figuras 66, 67, 68 e 69 - Exploração e comunicação por meio das mãos após meditação com

mudras. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

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Na prática de Shivam Yoga, algumas observações são atribuídas em relação

aos gestos e a seus efeitos psíquicos. Contudo, como relatei na etapa b), nenhum

conceito foi anteriormente dado aos alunos sobre os gestos, pois importava mais

evitar a racionalização sobre o que estavam realizando, conduzindo-os às suas

próprias investigações internas.

Meditar com as mãos me trouxeram uma percepção maior desses membros que temos, além de me proporcionarem uma conexão maior com um outro mundo, ou seja, senti-me mais ligada com o exercício proposto e isso permitiu que eu conseguisse atingir muito do objetivo do exercício em questão. Sentir o ambiente de trabalho, sentir as pessoas que estão com a gente, isso tudo passa muito despercebido em nosso dia a dia, porém, depois desse exercício, percebi o quão importante é estarmos conectados com os colegas e com o espaço de trabalho, a energia em mim, instaura muito melhor e me traz uma disposição maior, um estado melhor (P3, Questionário, 2014). Sinto grande sensibilidade “energética” nas minhas mãos, então essa meditação é muito física para mim. Percebo o ar de forma bastante concreta. Eu gosto de perceber meu corpo apoiado e em contato com o ar, costumo exercitar essa sensibilidade quase semanalmente (P5, Questionário, 2014).

Ambos os relatos revelam sensações de ligação energética, algo que P5

relacionou a uma fisicalidade, ao sentir, ao tatear o ar. Já P3 relaciona o exercício ao

aumento da capacidade de se conectar. P5 – dentre outros participantes – mostrou-

se extremamente tocado ao final do exercício. Relatou que percebeu uma energia nas

mãos que o seguiu por toda a vivência a partir da meditação. Ele declarou que sentiu

vontade de se conectar com os colegas, como se tivesse “olhos nas mãos”.

Como forma de abrirem-se para uma escuta pelas mãos, esse exercício teve a

função de incitar questões e despertar a sensibilidade, de leva-los a um caminho

possivelmente ainda não explorado.

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4.2.3 Trabalho com voz, gesto e ritmo

Ao longo do semestre, procuramos agregar as experiências das aulas anteriores

em busca de experimentar novos caminhos. Exemplo disso foi o trabalho com voz,

gesto e ritmo, a partir do qual reunimos o exercício de vocalização das notas musicais

a um adavu de kathakali, que, semelhante treino de bharatanatyam, consistia em

produzir ritmos com os pés sobre o chão seguindo a percussão de um bastão que eu

utilizava junto ao canto dos colegas. Simultaneamente às batidas dos pés, eles

deveriam dissociar o movimento das mãos, realizando gestos diferentes. Os olhos

acompanhavam essas variações das mãos.

Eram muitas ações para realizar em um mesmo eixo, exigindo plena atenção a

várias partes do corpo, a respiração, a escuta do outro que cantava. Ao mesmo tempo,

aqueles que cantavam participavam atentamente do exercício, mobilizando as

emoções de quem se movimentava ao produzirem um som ora mais alto, ora mais

baixo, ora mais grave, ora mais agudo. Nesse jogo que se estabeleceu entre os

participantes que coordenavam e assistiam, e os que dançavam, percebi um tipo de

entrosamento interessante, no qual todos tinham um papel importante.

Esse é um exemplo de como, já mais para o final do curso, começamos a

elaborar propostas baseadas nos elementos do treinamento oriental, porém de uma

maneira mais livre e criativa. Estávamos experimentando novas possibilidades e isso

foi desafiador.

Curiosamente, um dos alunos fez a seguinte observação em relação aos

exercícios de kathakali: [...] é muito interessante ver o estado de atenção que se

reverbera no corpo como um todo” (P2, Questionário, 2014). Nesse exercício, a

relação entre a forma e o fluxo energético, como foi exposto no capítulo 2 sobre a

lógica dos movimentos corporais na dança indiana como um yantra, encontra sua

semente manifestada nesse “estado de atenção que se reverbera no corpo como um

todo”.

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Figuras 70, 71, 72 e 73 - Etapas do exercício rítmico de Kathakali.

Figuras 74, 75 e 76 - Professor e alunos acompanhando o exercício rítmico com cantos. Local: Unicamp,

Campinas. Fonte: acervo pessoal, 2014.

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4.2.4 A caminhada da flor

Em uma das aulas, uma das alunas propôs um exercício derivado do teatro

japonês butoh. Nesse exercício, os alunos caminhavam lentamente e imaginavam

como seria sua flor pessoal, comparada à parte de sua essência que pode emergir

em um gesto de mãos. A flor ainda não é conhecida, mas pode ser imaginada.

Uma das reflexões a que essa prática nos levou foi se havia uma qualidade mais

sutil reverberada nos gestos dos alunos, mas concluímos que talvez fosse necessário

repetir algumas vezes a dinâmica para que pudéssemos perceber algo diferente.

Começamos a pensar também sobre como um recurso técnico pode proporcionar um

terreno a partir do qual se pode manifestar o gesto expressivo.

Primeiramente, penso que a imaginação pode ajudar na expressão de algo que

ainda não se tem conhecimento, ao mesmo tempo, como foi visto no tópico anterior,

às vezes um recurso técnico pode auxiliar a concretizar uma imagem que estava

impregnada apenas na mente (lembrando a relação entre a firmeza exigida na técnica

da bharatantyam e a fraqueza percebida fisicamente pelo aluno, que pode, assim,

atribuir uma fisicalidade à sua personagem).

Em segundo lugar, há a questão da repetição que, no caso do exercício da

caminhada da flor, poderia levar tanto ao aperfeiçoamento do gesto, quanto à perda

da espontaneidade do movimento. Mas, se considerarmos o gesto uma ação

particularizada, seria possível falar em um gesto espontâneo?

Como tem sido ressaltado no percurso desta tese, a repetição tal qual é realizada

nas práticas psicofísicas (como o yoga e as danças cênicas indianas) pode fortalecer

um circuito interno de energia importante à vitalidade do sujeito. Quando se pensa em

termos da prática cênica, poderia esse treinamento psicofísico nos permitir perceber

a emergência de um movimento potencialmente expressivo (algo similar acontece

quando observamos uma pessoa com longa experiência cênica e nos emocionamos

com apenas um sutil movimento)?

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Figura 77 - Nascimento da flor no exercício de butoh. Local: Unicamp, Campinas, 2014. Fonte: acervo pessoal.

Acredito que nesse jogo entre imaginação, movimento e ação muito pode

acontecer. Quando se parte de algo que ainda não se sabe onde vai levar lidamos

com o elemento inesperado e pode simbolizar uma descoberta ou mesmo se revelar

como uma frustração ao percebemos um grande espaço entre a possível flor que

imaginamos e aquela que nosso corpo foi capaz de traduzir.

O professor também chamou a atenção para as condições necessárias ao

surgimento da flor. Primeiramente, há a questão da imagem mental, da sensação que

ela desperta e o desenvolvimento de uma atenção para que se materialize. Em

segundo lugar, há uma relação que se pode criar a partir da oposição entre a imagem

da leveza que a flor pode sugerir e sua força oposta de aterramento, de enraizamento

para que possa se elevar. Então há a questão do peso e do apoio para que alguma

coisa possa aparecer. A flor seria um acontecimento.

Relação semelhante se encontra na técnica indiana do aramandhi, mencionada

no tópico anterior, que trabalha duas qualidades aparentemente opostas, traduzidas

nos conceitos masculino/feminino ou tan dava e lāsya. Sendo a base corporal aquela

que aterra o corpo do artista, consequentemente elevando a parte superior, que se

torna mais livre.

Essas duas associações novamente podem auxiliar a pensar sobre

possibilidades de se criar uma dramaturgia a partir de parâmetros mais poéticos ou

mais técnicos, em uma estrutura muito simples, como o acontecimento da flor.

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Segundo Quilici, os exercícios da técnica indiana que trabalhamos, poderiam agregar

elementos expressivos a essa forma (flor) que estava surgindo, tais como: precisão,

ritmo, respiração, olhar...

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4.3 Oficina Gesto e criação: Mudras como Recurso Expressivo

À convite de alguns alunos que participaram dos laboratórios de pesquisa na

disciplina Formas Espetaculares do Oriente, elaborei uma proposta de oficina para o

Unicena – Festival de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas60, que

pudesse dar sequência à pesquisa. A oficina intitulada Gesto e Criação: mudras

indianas como recurso expressivo, realizada no dia 30 de abril de 2015, teve como

tema o gestual das mãos como recurso para desenvolver a expressividade. Percebi

que a arte de contar histórias e de se expressar por meio dos gestos com as mãos foi

um dos elementos pelos quais os estudantes de dança e de artes cênicas mais

despertaram interesse nos semestres anteriores.

Portanto, procurei dar ênfase e continuidade nas relações entre gesto,

meditação e expressão, integrando uma abordagem livre de alguns mudras estudados

na dança bharatanatyam e do yoga. Assim, introduzi os hasta mudras por meio de

vivências lúdicas, jogos que propiciassem a livre experimentação, despertando a

consciência dos participantes para o uso das mãos e sua importância na ampliação

do repertório cênico.

Ao todo foram 7 participantes, todos eles atores em formação na Universidade

Estadual de Campinas. O curso começou com uma conversa, na qual cada um teve

a oportunidade de expressar o que entendia por “gesto”. De forma geral, eles disseram

se tratar de algo codificado, que serve para indicar, para comunicar uma intenção. Um

dos participantes, porém, acrescentou que entende o gesto como “atitude de fazer

algo”, num sentido mais metafórico. Durante a vivência busquei instigar as possíveis

associações entre as mãos, a intenção expressiva e as referências corporais a partir

dos quais o gesto pode ser criado.

60 O festival Unicena é organizado anualmente pelos alunos do curso de graduação em artes cênicas da Unicamp, temporada na qual professores, artistas e estudantes de pós-graduação são convidados a propor palestras, oficinas, demonstrações cênicas e espetáculos. As atividades são gratuitas e abertas ao público. A página do evento com fotos, comentários e divulgação encontra-se disponível em: https://www.facebook.com/unicenicas.

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4.3.1 Introduzindo os gestos por meio dos hasta mudras

Essa diferença ficou mais clara quando realizamos os hasta mudras. Usei

exemplos da dança bharatanatyam para fazermos essa dinâmica. Foi interessante,

pois eles tentavam atribuir significados ao mesmo tempo em que realizavam os

gestos. “Reparei que suas mãos tremiam muito e parecia faltar energia suficiente para

executá-los. P2 disse se surpreender com a falta de domínio das mãos. Percebi o

quanto eles se sentiram desafiados com os exercícios” (Diário de Bordo, 30 abr. 2015).

Alguns gestos pareciam carregar um sentido mais direto, outros já eram mais

enigmáticos, mas mostrei a eles que diferentes maneiras de se realizar o mesmo gesto

podem produzir sentidos distintos.

Acredito que um dos benefícios mais relevantes nessa prática tão introdutória

sobre os hastas mudras tenha sido o de levar os participantes à conscientização de

suas mãos, de observar suas inúmeras possibilidades criativas e, ainda, perceber as

mãos como extensão do corpo, sendo o gesto, portanto, a reverberação desse corpo

que se expressa. Para trabalhar inicialmente esse mecanismo de construção interna

do gesto, falei sobre a relação entre a referência corporal e o gesto na construção de

sentido.

Como exemplo, utilizei dois gestos do teatro indiano, mukula e alapadma, que

em um sentido direto significam “broto de flor” e “flor aberta” e juntos simbolizam o ato

de algo que se abre. Se realizo essa ação diante do ventre, posso me referir a um

filho, tal qual sugere o contexto da arte indiana. Se faço o mesmo diante do tórax a

conexão com a afetividade parece ser mais óbvia. Diante dos lábios, sugere ação de

falar algo. Acima da cabeça remete, provavelmente, ao ato de ter uma ideia.

Esses exemplos pareceram bem instigantes a eles, porque se dispuseram a

fazer uma investigação inicial entre as mãos e os níveis corporais, experimentando

posicioná-las em diferentes níveis corporais e pensando a respeito das associações

sobre as quais falávamos.

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Figuras 78 e 79 - Desenhos de dois mudras: mukula e alapadma. Fonte: Ramm-Bonwitt, 2015.

Figuras 80 e 81 - Estudo dos hasta mudras: desvendando significados. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal.

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4.3.2 Gesto e jogo

Seguindo essa linha de trabalho com a imaginação, sugeri um jogo baseado na

relação que o Nāṭya Śāstra estabelece entre as cores e os estados emocionais

representados na cena (denominados bhavas61). Sem me ater a essas

correspondências exatas, elaborei uma caixa com duas aberturas, dentro das quais

coloquei papéis com nomes de emoções de um lado e, do outro, palavras que

correspondiam a diferentes cores.

Coloquei-a no centro da roda e pedi que cada participante sorteasse um papel

de ambas as aberturas. Ao caminharem pelo espaço da sala, solicitei que refletissem

sobre a emoção e a cor selecionadas e buscassem, aos poucos, aliar os dois para

formar um gesto. Perguntei a eles “como concentrar essa ação em apenas um

gesto?”, “o que você tem vontade de fazer para expressar essa ação?”, “de qual ou

quais partes de seu corpo parte essa emoção e essa cor?”.

Identificar o ponto no corpo a partir do qual sentimos as coisas é um processo

de autoconhecimento que pode auxiliar o intérprete a encontrar um caminho para o

que deseja expressar. Após essa experimentação, cada um mostrou o que havia

criado e tentávamos descobrir quais eram a emoção e a cor correspondentes. Depois

tentávamos observar o percurso realizado por cada um para se chegar aquele gesto,

qual(is) parte(s) de seus corpos ajudara a completar o sentido desejado permitindo

brotar a expressão correspondente.

No exercício proposto, percebi que nenhum deles recorreu aos hasta mudras

que acabáramos de realizar, mas a referência corporal de onde parte o gesto estava

presente, a exemplo de uma das participantes que sorteou as palavras “nojo” e

“amarelo”. As suas mãos partiram do abdômen para a frente em um ato de repelir

alguma coisa, enquanto contraía o centro do corpo para dentro.

61 São identificados 8 estados emocionais pelo Nāṭya Śāstra. São eles: sringara (amor), veera (atitude heroica), raudra (ira), bhibhatsa (nojo), hasya (comicidade), adbhuta (extasiamento), karuna (apatia), bhayanaka (temor).

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4.3.3 Gesto e meditação

A etapa que se seguiu na oficina foi a do exercício de meditação com mudras, o

qual eu já havia realizado na disciplina Formas Espetaculares do Oriente. Após a

meditação, os participantes exploraram o espaço da sala a partir das sensações

despertadas, trabalhando as mãos como antenas, ora dançando com o colega, ora

experimentando diferentes níveis espaciais, como o chão, ou sentados ou de pé.

Uma das diferenças que percebi quando trabalhamos os gestos como

meditação, o efeito que se produz nos sujeitos e no próprio ambiente de estudos é

muito diferente de exercitar os hasta mudras da dança indiana, pois, no primeiro caso,

as mãos são veículos de contemplação, de escuta para algo que toca intimamente.

No segundo caso, os gestos codificados ainda ficavam no nível superficial, ainda não

havia o estabelecimento de uma conexão interna com os sujeitos. Na verdade, estava

buscando construir isso a partir do contato inicial com os hasta mudras. Ambos os

gestos, tanto no yoga quanto na dança indiana, são codificados, os participantes não

construíram eles previamente, mas a vida que eles ganham em contextos diferentes

gera diferentes percepções.

Por exemplo, o gesto pataka foi usado tanto no exemplo que apresentei sobre o

teatro indiano quanto na meditação, contudo eles puderam observar por meio da

prática como é diferente a intenção de mostrar algo (no caso, o céu e as estrelas) e a

de movimentar as mãos para um trabalho de conexão entre um estado interno e o que

se externaliza por meio do gesto.

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Figura 82 - pataka mudra. Fonte: Ramm-Bonwitt, 2015.

Figura 83 - gesto para mostrar o céu e as nuvens. Fonte: Upasanaarts, 2014.

Figura 84 - gesto na prática de meditação. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal.

Figuras 85 e 86 - Exercício Palavra-Cor-Gesto. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal.

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Figura 87 - Exercício de livre exploração com as mãos após meditação dos gestos. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal.

Figuras 88 e 89 - Interagindo no exercício de improvisação com as mãos. Local: Unicamp, Campinas, 2015. Fonte: acervo pessoal.

Ao longo dessa parte de livre exploração das mãos solicitei-lhes que retomassem

o exercício Palavra-Cor-Gesto e procurassem aprimorar o que haviam criado, que

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buscassem novas sensações para atribuir novos sentidos, concentrando cada vez

mais a força em suas mãos.

Ao final, novamente cada um apresentou os resultados para o grupo e falamos

sobre essa experiência, se havíamos percebido alguma diferença significativa entre a

primeira e a segunda etapa do exercício, tanto para aquele que criou o gesto quanto

para aqueles que assistiram. Transcrevo uma parte da conversa final, para ilustrar

algumas dessas observações e reflexões derivadas desse trabalho:

Participante 1: Eu não sei, mas eu tive uma necessidade muito grande de ficar ligando pelas minhas mãos, assim, a terra a algo em cima... não sei, ficava o tempo todo guiando pela minha mão o que tava em cima e tava em baixo. [O participante explica movendo as mãos como um gesto de colher e conduzir algo, movimentos que ficaram fortes para ele]. Participante 2: Eu também me conectei muito com o chão. Eu acho que o preto me levou para baixo. [O participante se refere à cor que havia sorteado, a cor preta]. Pesquisadora: Mas isso aí você diz depois do exercício dos gestos [da meditação] ou depois do exercício da caixa? Participante 1: Depois que a gente fez os gestos, eu não sei, tocar o chão foi algo que... Pesquisadora: ...despertou alguma coisa... Participante 1: É. Participante 3: rolou uma coisa muito contraditória comigo, o meu era apatia amarela. Para mim a apatia é uma coisa muito negra, que mistura muito em si [as mãos dele se movem circularmente em direção a si mesmo, na altura do peito] e a amarela, sei lá, é o sol que engloba tudo, então eu fiquei nessa, meu gesto ficou assim [o braço se estende horizontalmente num eixo circular] e assim [o dorso da mão bate forte na palma da outra, como se dissesse: “não estou nem aí”]. Pesquisadora: Faz ele [o gesto] em silêncio. Participante 3: [faz seu gesto em silêncio]. Pesquisadora: às vezes uma coisa que a gente faz e repete ela várias vezes, funciona muito, fica muito potente. Você vai repetindo e repetindo e acaba criando uma tensão. Participante 4: Eu senti que foi muito bom, uma sensação muito boa assim nos braços. Participante 5: Nossa, quando você começou pelos gestos as mãos estavam tremendo muito. [todos concordam] Participante 2: Muito diferente de qualquer coisa que eu já tinha feito. Às vezes eu acho que quando a gente tá atuando, a gente coloca muito mais braço, perna e às vezes a mão só acompanha, mas tem toda uma dinâmica que pode ser interessante se você fizer alguma coisa assim [movimentando os braços dando maior ênfase nas mãos] ou alguma coisa assim [demonstra novamente outro movimento], sei lá que nem a D. fez, sabe? É muito interessante (Registro de vídeo, 2015).

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4.3.4 Percepções gerais sobre a oficina

Percebi que ao longo da oficina o grupo conseguiu despertar a consciência do

potencial que as mãos têm e descobriram um caminho para inserir esse material no

trabalho cênico. Isso foi revelado pela atitude corporal, pela maneira como procuraram

elaborar os exercícios e, na conversa final em roda, na qual eles expressaram ter

percebido mais vivacidade nessa parte do corpo.

Um dos participantes afirmou que nunca havia feito nada parecido e outro

declarou que o trabalho de refinamento de um gesto o auxiliou a resolver a expressão

corporal do personagem que estava criando para uma peça teatral. Ele afirma que já

havia pensado e pesquisado várias possibilidades, mas que a ação concentrada no

gesto por ele criado e trabalhado lhe trouxera a incorporação de uma atitude.

Agora eu tô desenvolvendo um trabalho e esse trabalho que a gente fez vai me ajudar muito. Eu escolhi um velhinho numa feira, ele tem uma coisa com a mão que eu tava com muita dificuldade, agora eu tô... achei até interessante, a mão dele sempre tá dobrada, dobrada assim... [movimentando enfaticamente os dedos das mãos] nunca havia movimentado minha mão assim como hoje. Me deu muita ideia (Participante 3, Registro de vídeo, 2015).

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4.4 Oficinas de Criação Coreográfica com Instrutores de Yoga em Formação

Até este ponto, o caminho percorrido pelos laboratórios mostrou algumas

possíveis maneiras para despertar estados internos criativos por meio da investigação

de partituras corporais – como o gesto – a partir da meditação. Nesta etapa dos

laboratórios, os detalhamentos da técnica tomaram outro rumo, devido ao público com

o qual trabalhei. Refiro-me mais especificamente ao trabalho de criação coreográfica

que venho desenvolvendo no curso de formação de instrutores da escola Shivam

Yoga. Apresento algumas reflexões derivadas da oficina que ocorreu nos dias 22 e 23

de agosto de 2015, no Núcleo Sattva62, em Vitória/ES, com um grupo de 10 pessoas.

A cada ano, os alunos que frequentam esse curso devem apresentar uma

coreografia composta por asanas e mudras, constituindo-se em um dos requisitos

para sua formação. As oficinas que ofereço têm o objetivo de incitar elementos para

o desenvolvimento de ações criativas.

Além desse tópico de coreografias, a formação em Shivam Yoga inclui

disciplinas que enfocam estudos filosóficos e técnicos do yoga. Dessa forma, os

alunos passam por uma forte reeducação corporal e psíquica, que envolve uma fase

de autossuperação, na qual se busca o desenvolvimento consciente de si mesmo

frente às próprias escolhas, propondo outras maneiras de ver a vida, as ações

cotidianas, levando o sujeito a refletir sobre qualidade do estar no mundo. Contudo,

esse processo não é mensurável, tampouco se manifesta da mesma forma para cada

um.

62 O Núcleo Sattva localiza-se à rua da Grécia, 142B, bairro Barro Vermelho em Vitória/ES. Fundado em 2000, esse núcleo é filiado ao Sistema Shivam Yoga, sob direção da terapeuta Alessandra Cunha, local onde são oferecidos aulas e cursos na área de yoga, conduzidos em parte pelo mentor desse sistema, Arnaldo de Almeida. Desde 2009, venho ministrando, nessa escola, oficinas de dança bharatanatyam e de criação coreográfica e, mais recentemente, os terapeutas Alessandra Cunha, Flávio Damasceno e eu realizamos vivências integrativas no Sítio Sattva, com foco em ações criativas. Alguns desses trabalhos geraram as reflexões que apresento neste e no próximo tópico.

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4.4.1 O trabalho criativo no módulo Coreografia

Nas oficinas do módulo de Coreografia é importante pensar em como auxiliar os

praticantes a se abrirem ao fluxo quando se pretende criar a partir de códigos

corporais preestabelecidos, tais quais os asanas. Como eles podem articular essa

linguagem conhecida em uma fala por meio dos gestos e do corpo? É claro que não

se trata de formar dançarinos no curso, ou de oferecer uma fórmula mágica do que se

deve ou não fazer, mas a aposta é a de ao menos levar o sujeito a se permitir, de fato,

experimentar uma linguagem expressiva e criativa. Ao apresentarmos aos futuros

instrutores a ideia de vincular a construção de asanas a uma dança, rapidamente se

instaura uma atmosfera de insegurança, um “não sei dançar”, ou a argumentação de

que “não tenho domínio suficiente do corpo ou dos asanas para fazer isso”. A maior

parte deles nunca teve um contato mais aprofundado com a linguagem da dança,

porém procuro explicar que essa é uma possibilidade de se apropriar criativamente

dos conhecimentos adquiridos durante o curso e de se expressar por meio da

linguagem de seu próprio corpo.

Portanto, trabalho com eles princípios básicos do movimento, tais como fluxo e

peso, soltura das articulações e, sobretudo, práticas de improvisação. Estas, abordo

na preparação corporal e na construção de repertórios coreográficos. Em Como fazer

Arte a partir do Corpo?, Fernandes elucida que no campo da dança é importante

deixar de ser “um corpo” para ser quem se é, pois aquilo que se dança vira parte da

“memória do que somos” (FERNANDES, 2006, p. 3), e não o que se pensa que se

deve fazer com o corpo. Segundo a artista, “A liberdade do corpo reside exatamente

na sua habilidade de articular sua linguagem, ao invés de justificar sua inabilidade de

registro” (ZARRILLI, 2009, p. 3).

Integrar os ensinamentos do yoga de autopercepção, integração consigo, com

os outros e com o mundo pelo fluxo dançado é uma possibilidade de dar um salto

além da “zona de conforto” que a repetição de determinados modos de fazer pode nos

levar, pois, corroborando o pensamento de Fernandes,

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Movimento corporal implica simultaneamente em presença e ausência, acontecimento e desaparecimento, inclui em si sua própria negação. Diferente de várias poses (“presenças”) coladas numa sequência, movimento pode ser compreendido como performance ou algo que só existe no decorrer do tempo, mas não como constantes “evaporações”, e sim como uma re-escrita invertida no tempo (ZARRILLI, 2009, p. 1).

Ademais, a prática dos asanas é fundamentada na concepção do yantra, como

foi discutido no capítulo anterior, que busca nos posicionamentos corporais ativar

mecanismos fisiológicos, vitais e energéticos capazes de impulsionar fluxos internos.

Portanto, se é possível perceber esse fluxo interno e externo, como pode-se expandi-

lo em um continuum fluido e dançado? Para evitar a ideia de “poses coladas numa

sequência” também me valho desse propósito que está na base do asana.

Procuramos discutir nas oficinas o que o asana representa para os estudantes

em formação, o que o mudra representa? O que as coreografias revelam em seu

caminhar ao longo do curso? Isso significa que observamos um caminho dse

formação, levando-os a refletir sobre sua própria evolução durante o curso e como

isso se expressa nele como um todo? Todos esses questionamentos são colocados

aos futuros instrutores, sobretudo na conversa inicial. Isso os ajuda a desenvolver uma

reflexão e um questionamento sobre sua prática e o motivo de querer se tornar um

instrutor.

Começo com uma pesquisa corporal de exploração que se inicia no chão e

termina com um aquecimento articular, no qual se leva a consciência à respiração,

posicionando as mãos sobre a ossatura do globo ocular, o tórax e o abdômen,

acordando o corpo. Realizo uma dinâmica de apoios por meio da percepção das

articulações, o que os deixa rapidamente exauridos. A turma percebeu que

movimentos aparentemente simples como deitar, sentar e levantar, aos quais eles

estavam tão habituados, exigia criatividade e um dinamismo diferente.

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Observando-os vi que não sabiam como se comportar diante da execução de movimentos indefinidos. [...] Eles estão habituados a trabalhar o corpo seguindo determinados procedimentos, mas raramente devem ter se disposto a se apropriar dos aprendizados para transformá-los em alguma coisa. [...] Dei bastante ênfase na conscientização das articulações. Eles estão habituados a essa linguagem de “levar a consciência” a algum ponto específico não só do corpo, mas de outros aspectos como emoções e a mente, mas não a se deixar levar pelos movimentos (Diário de Bordo, 22 ago. 2015).

Foi interessante trabalhar com pessoas que estão habituadas a realizar um

exercício psicofísico, porque havia uma atitude perante as práticas propostas de

conscientização interna do movimento. Por outro lado, deixar-se fluir pelo movimento

não era tão fácil para a maioria.

Realizamos exercícios de Contato Improvisação, começando pelo apoio e pela

condução do movimento por meio do estímulo-resposta. Deixei que eles explorassem

de maneira bem livre as sensações de movimento que o corpo do outro trazia,

experimentando o peso e o contato, alternando entre um ser o guia e o outro ser

guiado, até que eles buscassem trabalhar em conjunto. Inicialmente a improvisação

foi trabalhada como um jogo para auxiliar os praticantes a perder a resistência ao

toque e a ficar mais desinibidos. Aos poucos buscamos desenvolver uma linguagem

coreográfica, que ia nascendo desse processo de abertura ao fluxo e à atividade

criativa. Além disso, conforme observaram os alunos da oficina, foi uma oportunidade

para experimentar possibilidades novas com o corpo e de construir uma relação mais

próxima com o grupo.

Em duplas, o contato parecia tranquilo para alguns e desconfortável para outros. P8 é mais cerebral, racionaliza e tem dificuldade para experimentar. P3 já é mais espontâneo e parece se sentir à vontade no jogo de guiar e ser guiado. Descobri que ele é capoeirista e isso talvez justifique essa percepção que tive (Diário de Bordo, 22 ago. 2015).

Nessa mesma conversa entre as duplas, construímos e desconstruímos formas

de asanas, sendo o guia aquele que indicava de qual parte do corpo deveria partir o

movimento. Mais uma vez, o estímulo-resposta pelo toque gerou um ambiente no qual

o grupo passou visivelmente a se mover com mais liberdade. Os asanas combinados

com as passagens que deveriam fazer exigiram uma atitude de prontidão e de

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flexibilidade. Isso não quer dizer que eles tenham conseguido se perceber mais soltos,

pelo contrário, alguns relataram ter “dificuldade em sair dos condicionamentos

corporais” (P1, Questionário, 2015). E houve quem assinalasse esse como o ponto

mais importante da oficina: “A dinâmica de relaxar e deixar fluir naturalmente o

processo de formação e interligação dos asanas” (P4, Questionário, 2015). Contudo,

a dificuldade encontrada nos exercícios iniciais ajudou-os a identificar um possível

caminho para seus trabalhos criativos. Portanto, quando partiram para a construção

das coreografias, levaram ao menos essa intenção.

A partir daí, tentamos buscar uma conexão entre uma e outra forma e, para tanto,

propus um exercício semelhante ao estudo de imagens corporais ministrado pela

professora Kamilla Oliveira, no primeiro laboratório de minha pesquisa. O trabalho

com as imagens foi bastante intenso e inusitado para eles, porque, pela primeira vez,

entraram em contato com caminhos muito diferentes do trabalho corporal, dando vida

às formas, algumas das quais descontextualizadas de suas práticas correntes, já que

algumas das imagens que levei para eles escolherem apresentavam figuras

andróginas, esculturas de corpos em movimento, algumas relacionadas à mitologia

hindu, artistas da dança, além de fotografias de asanas.

Figura 90 – Aquecimento / respiração.

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Figura 91 – Aquecimento / caminhada.

Figura 92- Exercícios de Contato Improvisação: Peso e Estímulo-Resposta formando asanas.

Figura 93 - Exercícios de Contato Improvisação: Peso e Estímulo-Resposta formando asanas.

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Figuras 94 – Laboratório de imagens em movimento. Local: Núcleo Sattva, Vitória/ES, 2015. Fonte: acervo pessoal, 2015.

Pretendi oferecer um material que despertasse um potencial simbólico em torno

da relação corpo/yoga/movimento. Esse trabalho corporal se desenvolveu tanto no

sentido de flexibilizar as formas/imagens quanto na busca de transformá-las a partir

do fluxo. Assim, as passagens entre uma e outra começaram a ser construídas ora de

maneira mais lenta, ora de maneira mais rápida. Uma das diferenças que percebi entre

o desenvolvimento dessa abordagem com os alunos dos cursos de dança e de artes

cênicas em comparação aos praticantes de yoga, foi em relação a questões mais

técnicas como a precisão, o direcionamento corporal e o fluxo, que os primeiros

demonstraram maior facilidade, porque têm maior intimidade com a linguagem de

elaboração cênica.

Contudo, em termos de concentração e nível de entrega ao exercício,

surpreendentemente, não vi distinções, o que posso interpretar como uma proposta

bem-sucedida, na qual houve um mergulho bonito de se ver, e não apenas uma

reprodução vazia das imagens. É claro que para alguns houve uma certa dificuldade

em criar alternativas de passagem entre uma e outra figuras, porém busquei encorajá-

los a arriscar caminhos inusitados e a direcionar a energia do corpo para os pontos

de foco em cada forma.

Também discutimos os símbolos que os asanas representam tanto em sua

referência com a cultura indiana, quanto em relação ao que o praticante percebe em

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si, estimulando-os, por exemplo, a pesquisar corporalmente o que sentem e

visualizam ao realizar determinada posição corporal, aliando ou não ao seu significado

de origem. Esse significado que o antecede só terá sentido ao praticante se houver

uma conexão interna que reverbere uma ação equânime. Do contrário, o resultado

apresentará apenas uma interpretação vazia. Não seria esse o valor do mito?

A simbologia que o mito carrega poderia fazer reverberar um movimento interno

do artista cênico? Essa é uma investigação bastante recorrente em trabalhos artísticos

tanto modernos quanto contemporâneos, pois os mitos têm um caráter universal.

Apesar de não ter sido o foco da pesquisa desta tese, nas oficinas de Coreografia

costumo levar imagens e trechos da mitologia hindu para instigar as pesquisas

criativas dos futuros instrutores de Shivam Yoga. São várias as analogias entre a

forma dos asanas e os animais, como demonstram os desenhos da figura seguinte.

Nessa oficina não trabalhei especificamente o gesto como fiz nos demais

laboratórios, porque percebi que, para aprofundar em pequenos detalhes do

movimento, os participantes precisariam ter previamente um corpo cênico disponível.

Mais precisamente, quero dizer que, no caso dos alunos de yoga que nunca haviam

passado por um processo investigativo do corpo na esfera cênica, era mais difícil fazer

Figura 95 - Da esq. para a dir.: Bhujangasana – posição da cobra, Matsyasana – posição do

peixe, Bakasana – posição da garça. Fonte: Accolay.net, 2016.

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emergir essa dimensão representativa, ficcional e imaginativa. O que pude perceber

pela atitude da maioria é que o asana quando transformado em coreografia tem um

sentido mais palpável, no sentido de exibir uma habilidade quase acrobática. Ele não

é vazio de sentido, pois representa sim um desafio, consequência de um processo de

autossuperação, como foi mencionado anteriormente. Ainda que esteticamente

algumas de suas execuções sejam espetaculares por conter um alto grau de

habilidade corpóreo-técnica, percebo a ausência de um corpo expressivo, um corpo

poético-narrativo que permita depreender uma dramaturgia em suas sequências.

A questão nessas oficinas girava em torno de “como trazer uma dimensão

dramatúrgica para os asanas”? Seria pelo mito? Por um tema que os tocasse, como

um poema escrito por algum deles, uma música específica, uma memória de

experiência que os levara a buscar o yoga como prática e como profissão? Costumo

eleger alguns desses elementos a cada vez que participo dos módulos de Coreografia

do curso de formação, em busca de testar e indicar recursos que possam tocá-los a

uma criação mais cênica. Por criação cênica, entendo uma sequência que tenha uma

dramaturgia, uma determinada precisão, a presença do olhar, elementos que

demonstrem um corpo mais vivo.

Em um dos cursos de criação coreográfica que ministrei como parte dessa

formação de instrutores de Shivam Yoga, procurei trabalhar com alguns símbolos e

mitos em torno da filosofia e cultura do yoga. Realizamos um retiro na Serra do

Caparaó/ES, onde buscamos trazer a partir do contato com a natureza o que

simbolizava a prática do yoga para cada um dos participantes e o que os inspirava a

se mover, potencializando a força dos asanas, dos mudras como uma meditação,

transformando-se em sequências que significativamente ganharam uma dramaturgia

por meio do trabalho psicofísico. Já nas oficinas que integraram a pesquisa desta tese,

as improvisações criaram mais um ambiente disponível à criação e ajudaram alguns

a assimilar uma linguagem poética.

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4.4.2 Percepções sobre as dinâmicas

No debate ao final da dinâmica das imagens, dois participantes apresentaram

um relato muito significativo para avaliar o trabalho, pois ambos as relacionaram com

alguns momentos e aspectos de suas vidas, os quais destaco a seguir porque neles

é possível perceber a criação de uma dramaturgia.

Eu já parti pra um tema, assim, aquelas imagens representavam a minha vida, então, em algum momento, eu usei uma espada sim... aí a espada tava aqui e a mão fechada, eu tava fechada, eu tava indo pra uma luta, uma coisa assim. Mas depois, a próxima, eu poderia doar mais e olhar para o céu e agradecer... Depois a outra eu já tava dançando e tocando veena [instrumento musical], porque era uma festa. Depois da luta, eu pude dançar! E nisso vieram os agradecimentos e tal. Rolou uma história, rolou um tema, rolou minha vida, me identifiquei. Gente, essas três caíram para mim, né, direitinho e eu já me transformei nessas imagens! Sobrou a minha história, exatamente na sequência direitinho e uma passagem para a outra perfeita, né. E exatamente num momento da minha vida que eu quero tirar a rigidez, a espada eu não preciso usar mais, usei demais, foi importante, mas agora eu não preciso, não mais (P10, Registro de vídeo de oficina, 22 ago. 2015).

A prática criativa proposta possibilitou que esse participante se conectasse

afetivamente com as imagens por meio de uma identificação com sua trajetória

pessoal, tendo se colocado diante do exercício a partir de uma perspectiva de quem

está habituado a realizar trabalhos de autoaperfeiçoamento, devido ao seu longo

contato de mais de 25 anos com yoga, ayurveda e meditação. Seu relato permite

depreender que esse trabalho vai além do artístico, podendo transformar o sujeito,

sem que se constitua em uma arte com fins terapêuticos.

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Figuras 96, 97 e 98 - Acima e a esquerda: Yogini com espada e escudo, representando força feminina Acima e a direita: Raja Navasana: posição do barco no yoga

Abaixo ao centro: Veenodhara: escultura de Shiva tocando uma veena. Fonte: Weston; Tandon, 2012.

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Tal questão pode ser associada com as reflexões de Quilici acerca das práticas

envolvidas no “cuidado de si” e suas possíveis relações com o trabalho do artista ao

observar que

[...] a dimensão estética desse processo aparece na proposição de se tomar a própria vida como “obra de arte” a ser consumada, para que ela se manifeste no seu pleno brilho. A natureza do “trabalho” que o sujeito faz sobre si é artística, implicando o rigor de uma ação vigorosa e hábil sobre o “material” (no caso, o próprio artista), para que possa se manifestar a “luminosidade” do que é verdadeiro (dimensão do conhecimento), e a “nobreza” (dimensão ética), latente no ser humano (QUILICI, 2012b, p. 4-5).

Ao se dispor a realizar os exercícios de criação propostos com a mesma visão

de aprimoramento que busca em suas práticas de yoga, esse participante lida com

uma dimensão ética e estética semelhante à exposta por Quilici, “tomar a própria vida

como ‘obra de arte’ a ser consumada”. Para mim, o mais interessante é a naturalidade

com a qual esse participante faz essa transposição arte-vida.

No contexto desses participantes, a construção do ficcional pode ser uma via

contrária ao turbilhão cotidiano; em outras palavras, os praticantes buscam no yoga

um gesto de desnudamento (um despir-se). Entendo esse investimento no universo

simbólico como uma ponte interessante para o alargamento do real, no qual não

haveria essa dicotomia e os sujeitos poderiam, assim, “brincar” com a vida. Contudo,

não se trata de igualar ambas as experiências: a do artista e a do sujeito que medita.

Considerando as devidas diferenças de propósitos e campos de ação, é possível,

contudo, contemplá-las em suas possibilidades de transformação profunda dos

sujeitos (cf. PLÁ, 2012; QUILICI, 2012b).

Semelhante identificação entre o exercício criativo proposto e a própria vida foi

feita por um outro participante que observou que a etapa mais significativa da oficina

foi a decisão na escolha das imagens. De acordo com suas palavras: “Eu me

identifiquei, primeiro caída, adormecida [figura 100], levantando, tendo força e... mais

serena, tranquila no final” (P5, Registro de vídeo, 22 ago. 2015).

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Figura 99 - Anantasana: imagem de Vishnu em posição de eterno descanso. Fonte: indiamart.com, 2015.

A relação que esse participante elabora entre as figuras e seu percurso tinha a

ver com as dificuldades pessoais que vinha enfrentando, por isso a menção ao estado

de adormecimento que atribui ao passado (relacionado à figura acima), a passagem

para a segunda imagem, que simboliza a luta para se reerguer, e a terceira, o

momento presente, representado pela figura de uma pessoa meditando.

Esses dois exemplos apresentados permitem depreender que ao invés de criar

personagens e representar papeis distantes de suas realidades pessoais, os

praticantes de yoga tiveram mais facilidade de vislumbrar um trabalho corporal criativo

ao serem cativados pelo lado afetivo e existencial. As imagens, portanto, funcionaram

como um disparador interno possibilitando a veiculação expressiva por meio do corpo

pela ficcionalização da própria experiência de vida.

Além desses aspectos, a oficina propiciou, segundo relatos dos próprios

participantes: “[...] o entrosamento da turma e a superação da dificuldade de permitir

a imaginação fluir” (P1, Questionário, 2015); “O despertar da criatividade durante as

dinâmicas” (P2, Questionário, 2015); “A integração com os demais” (P3,

Questionário, 2015); “O trabalho coletivo, onde se explora a troca com o outro,

buscando ampliar o conhecimento e a sensibilidade” (P8, Questionário, 2015, grifos

meus). Destaco essas palavras porque tive a mesma impressão após esse

laboratório: o despertar para uma qualidade do fazer artístico, e menos para uma

questão técnica, já que o “como fazer” estava pré-configurado. Ou seja, as

coreografias que eles deveriam elaborar já tinham uma estrutura, compostas de

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asanas e mudras, porém o impulso gerador da atividade criativa ainda não era claro

para eles.

Segundo a professora do curso, que também participou das atividades:

As vivências promoveram uma integração no grupo, possibilitando uma expressão livre e uma maior confiança na montagem das coreografias. Eles ficaram bastante motivados, muito diferente dos outros anos, onde sempre deixavam para o final, devido as muitas dificuldades de se perceberem capazes. E vejo que dentro do curso as vivências trouxeram uma leveza para dar continuidade com mais alegria (P10, Questionário, 2015).

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4.5 Vivências Energético-Criativas com Praticantes de Shivam Yoga

“Nós entendemos uns aos outros ao tocar o mesmo elo em ambos” (PRAKASHA, 2009, p. 44).

O último laboratório de pesquisa desta tese ocorreu sob a forma de vivências no

Sítio Sattva, localizado em Alfredo Chaves/ES. A ideia surgiu a convite da terapeuta

Alessandra Cunha como continuidade às dinâmicas criativas ministradas para o grupo

de estudantes de yoga. Estava interessada em experimentar um trabalho cênico fora

do ambiente urbano e da sala de aula e o sítio me pareceu a oportunidade ideal. Esse

local, ainda em processo de construção, foi idealizado para a promoção de encontros

temáticos, abertos a propostas relacionadas às artes, ao yoga, à construção

ecológica, à meditação etc.

Busquei aproveitar essa oportunidade para reelaborar alguns dos pontos

relevantes levantados pelos participantes da oficina anterior, como a promoção de um

trabalho psicofísico voltado ao exercício da criatividade, da imaginação, da

coletividade e da sensibilidade. Para isso, nos baseamos em atividades mais lúdicas,

mesclando elementos do yoga, dinâmicas de movimento corporal (contato,

improvisação, soltura das articulações etc.), criação de cenas curtas por meio de

gestos com as mãos e expressão facial, reunindo características anteriormente

desenvolvidas nos laboratórios.

Até esse ponto da pesquisa, eu havia proposto práticas que inicialmente tiveram

um caráter maior de detalhamento técnico, com a dança bharatanatyam, que foram

aos poucos se transformando em proposições de materiais com maior liberdade de

pesquisa, porém sempre buscando instigar um olhar investigativo, perceptivo e

transformativo a partir de qualidades meditativas sobre o corpo e o gesto. Contudo,

essa última proposta de laboratório foi um pouco diferente dos outros, já que o próprio

título das vivências poderia dar margem a algo alternativo demais, ou de um caráter

mais terapêutico do que artístico, que poderia destoar da pesquisa para esta tese.

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Contudo, aprendi durante a pesquisa que é preciso correr riscos, pois cada

laboratório teve tanto uma proposta quanto um público diferenciado do outro e não

adiantava querer controlar os resultados, já que desde o início a importância foi dada

para o caminho de aprendizado que aquelas experiências poderiam oportunizar em

relação a procedimentos e formas de abordar os conhecimentos sobre dança indiana

e yoga.

Foi nesse sentido que decidi ver nestas vivências um desafio e uma possibilidade

para novas experimentações. Assim, nos dias 28 e 29 de novembro de 2015, um

grupo de 16 pessoas ligadas ao núcleo de yoga da terapeuta Alessandra Cunha se

reuniu em torno de atividades meditativas e criativas, centradas em yoga; respir/ação

(pranayamas em movimento); criando com o corpo; criação coletiva na natureza; roda

de conversa sobre as experiências.

Estávamos em um local que nos colocava em contato direto com a natureza,

sem interferência de recursos tecnológicos. O espaço de trabalho é uma pequena

casa-oca, de formato circular. Eu desejava explorar ao máximo aquela sala magnífica.

Em meu Diário de Bordo registrei algumas percepções prévias ao trabalho que ali

seria realizado.

O ambiente é calmo e o rio logo à frente da casa produz um som forte como se estivesse chovendo o tempo todo. O tempo que ontem estava tenebroso hoje se abriu o que torna favorável ao desenvolvimento dos trabalhos de exploração lá fora (Diário de Bordo, 28 nov. 2015).

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Figuras 100, 101 e 102 - sala de prática e rio à frente da casa. Local: Sítio Sattva, ES, 2015. Fonte: acervo pessoal.

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4.5.1 Ancorando corpo e mente

A primeira etapa que trabalhamos foi uma aula de yoga para a qual nos

dispusemos circularmente, trabalhando cada etapa com o foco não só em si mesmo,

como em geral se realiza em uma prática como essa, mas na presença de uma

coletividade. “Foi visível a ampliação da visão e da integração quando saímos de uma

prática costumeiramente individual para uma forma mais coletiva de agir. Tocamos

nos pés uns dos outros fazendo asanas e seguramos nossas mãos” (Diário de Bordo,

28 nov, 2015). Quando me refiro à ampliação da visão, quero dizer que o fato de nos

preocuparmos com o outro criou um estado de presença, desinibição e

cooperatividade durante a aula. Características essas que se estenderam ao longo

das outras atividades.

Na maior parte das vivências, procuramos trabalhar o toque, na perspectiva de

um contato que poderia ser tanto físico, quanto sutil ou metafórico, como um

sentimento que me toca a partir do outro, ou ideias e conceitos, que ao fim se

constituem como aquilo que nos conecta uns aos outros. Nas palavras de Prakasha

(2009, p. 14), “O toque conecta consciência e sensibilidade. O toque é o que cria e

sustenta as relações, que nos permite sentir a presença do outro [...] é uma parte de

meu mundo que toca a outra”. Contudo, reaprender como se conectar com o outro de

maneira desinteressada talvez seja o mais difícil. Foi esse sentido do toque que

procuramos instigar nos participantes, e em nós, de forma a estabelecer um elo mais

profundo que possibilitasse um tipo de estar não pautado pela individualidade a que

tantos de nós somos acometidos no cotidiano.

Estávamos integrados naquele círculo, porém havia um clima de dispersão no

início, nem todos permaneceram na prática até o final. Havia as crianças pequenas

que chamavam por seus pais e esse foi um desafio, já que a ideia não era separar as

pessoas, mas integrá-las. Percebi que a presença das crianças, ao invés perturbar

um determinado estado interno, nos estimulava a justamente buscar essa conexão

com o que estava ali fora ao nosso redor. Alessandra e eu estávamos buscando um

estado de disponibilidade, de abertura e entrega. Contudo, não foi fácil chegar a esse

ponto.

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Para lidar com essa dificuldade inicial, buscamos ancorar a presença de todos a

partir de uma prática de meditação. Nessa vivência, meditamos em silêncio,

procurando apenas ouvir o ambiente. Após a atividade, refletimos sobre a importância

do exercício de meditar e a importância da escuta. Os incômodos físicos e os

pensamentos intermitentes foram os aspectos que os participantes mais relacionaram

à dificuldade do silenciar a mente, ainda que as condições externas estivessem

propícias para tanto. A relação entre o estado interno e o externo que tanto gostaria

de ver se manifestar nas pessoas, é por vezes um processo difícil ser conquistado.

Os burburinhos da mente, a tendência tão registrada em nosso cotidiano de projetar

os pensamentos para o futuro, ou o movimento contrário, de se ater ao que já

passou... como caminhos repetitivamente trilhados que dependem de um

redirecionamento para mudar.

Ainda que tenha sido difícil chegar a uma escuta mais profunda no início, foi

possível perceber um estado de maior abertura à escuta do grupo. A terapeuta

Alessandra Cunha fez uma explicação sobre o trabalho da meditação a partir das

dúvidas e dos comentários que surgiram, utilizando uma série de analogias que nos

ajudaram a refletir sobre a importância de persistir.

Entre um espaço de um pensamento e outro tem um vazio... aí tá a meditação, tá esse espaço da mente, essa amplitude de uma mente mais lúcida, né. Então, não é brigar com o pensamento, não. Fazer estabilizar a energia que as coisas vão repousando, acalmando. Fazendo uma analogia com um lago, um rio, quando a água tá muito mexida você não vê o fundo do lago, quando a água se acalma você consegue ver o fundo do lago, você consegue ver o que tem no fundo, cada elemento, as areias, os peixinhos, as plantas e tal. Quando a água tá barrenta, assim, a chuva vem, o vento vem, você não vê, porque tem uma turbulência ali. Então, tudo é essa energia, estabilizar essa energia, repousar essa mente, acalmar, repousar esse corpo que dói, que mexe. Repousar nessa dor também, né. Respirar nessa dor. Sem brigar com a dor. É tudo um estado de acolhimento, de aceitação de tudo que se apresenta (Registro de vídeo, Laboratório 5, 28 nov. 2015).

Essa possibilidade de ancorar a mente e limpar o turbilhão de pensamentos que

trazíamos da cidade foi um dos pontos de partida das vivências, já que estávamos ali

disponíveis somente para aquele trabalho. Entendemos que a meditação, no sentido

que Patañjali ensina nos Yoga Sutras, pode começar com um momento de pausa,

seja ela física, vital ou psíquica, mas que um de seus grandes desafios é estendê-la

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para outros momentos da vida, e não só um estar sentado meditando. Envolve uma

opção de estar totalmente presente e absorto no que se está fazendo, o que pode se

constituir como uma relação boa para a criação, quando o artista/praticante aprende

a lidar com os momentos de pausa e as potências desses instantes, buscando imergir

em um estado mais amplo e consciente de ação, como foi observado no capítulo 2.

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4.5.2 Vivência Respir/Ação

Aos poucos fomos conquistando esse espaço interno e disponível com a

interação que foi se estabelecendo entre nós e o local. Dando sequência às atividades,

iniciamos a parte da tarde com as vivências de respir/ação. Escrevo dessa maneira,

pois a intenção era que os participantes percebessem relações entre o movimento e

o respirar, entre o fluxo do prana, a energia vital, e a movimentação corporal a partir

dos impulsos vitais, experimentar entrar em contato com o fluxo energético pelo

movimento.

Começamos com exercícios que buscassem nos sintonizar como um grupo e

que promovessem a ativação psicofísica. De mãos dadas em roda, fizemos

respirações profundas, realizamos uma breve massagem nas costas uns dos outros,

repercutindo as palmas das mãos, estimulando os pulmões. Inspiramos e expiramos

gritando a vogal “A” para o centro da roda, o que ajudou a acordar o corpo.

Partimos para uma parte mais exploratória, investigando as possíveis relações

entre a respiração e o movimento. Trabalhamos a capacidade sensorial das mãos,

com um exercício adaptado do Shivam Yoga chamado Vaiyu Nidra, o Sopro do

Deserto, no qual as expirações ocorrem pela boca, simulando o som do vento. Os

praticantes procuravam se movimentar a partir do estímulo das mãos, tocando o ar,

conectando com a fluidez do espaço.

Quando me refiro a exercícios de movimento, quero dizer que se tratam de

movimentos que partem de uma percepção interna daquele que se move. São

maneiras até mesmo de instigar caminhos para a ação, para o gesto, contudo ali não

se tratava de construir partituras corporais. Percebi que não haveria tempo para isso.

Os participantes não tinham essa relação com a ação criativa por meio do corpo,

tal qual ocorreu na oficina de criação coreográfica com os estudantes de yoga. Alguns

ficaram extremamente acanhados quando começamos a movimentar os braços e as

mãos, chegando a contrair o corpo em uma atitude de autocontrole. Contudo, procurei

ao máximo contornar esse olhar autocrítico, estimulando-os nesse início a não se

compararem com os demais. Expliquei que o movimento não precisava ser amplo,

poderia ocorrer apenas se houvesse necessidade.

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Expandimos o exercício do lado de fora do salão, diante do rio e também diante

dos colegas, “respirando o outro” pelas mãos. Nesse momento, a expressão de

desconfiança desapareceu de seus rostos e percebi que sair da sala ajudou bastante

a liberar os resquícios de dúvidas.

Buscamos, ainda, trabalhar diferentes qualidades que partiu dessa fluidez para

um exercício de aterramento, que consiste em auxiliar a descida do fluxo energético

pela coluna até o chão por meio da respiração e estimular que ele suba pela parte

frontal do corpo, pode-se fazer movimentos com as mãos como se estivessem

direcionando esses caminhos. O exercício consiste em centrar corpo e mente,

permitindo que se projete possíveis cargas de tensões acumuladas na coluna para o

chão. Para mim, esse exercício me reconecta rapidamente com o momento presente,

sobretudo quando minha percepção está mais centrada na mente, sobrecarregando

a cabeça.

Esperava que os participantes fizessem relações relativas à veiculação

energética, contudo, poucos foram o que conseguiram abstrair de uma execução

mecânica. Um garoto e seu pai relataram ter percebido “uma coisa formigando” na

garganta, quando tentava olhar para um ponto entre as sobrancelhas, que não era

boa nem ruim. Já o pai percebeu um grande calor subindo pelo seu abdômen.

Essa percepção de calor que eu também compartilhava é entendido, no yoga,

como resultado da ativação dos órgãos e fluxos internos. Foi interessante observar

nos laboratórios para alunos do curso de artes cênicas, que vários deles relataram

essa espécie de formigamento no corpo e nas mãos, como se estivessem

direcionando e sentindo o ar por meio do corpo. Me pergunto como teria sido essa

experiência no sítio com esses alunos.

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Figuras 103 e 104 - Vivência de respiração. Sintonização.

Figura 105 - Vivência Respir/Ação. Sopro do deserto.

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Figura 106 - Exercício de respiração em duplas. Expansão torácica.

Figura 107 - Vivência Respir/Ação. Centramento. Local: Sítio Sattva, ES. Fonte: acervo pessoal, 2015.

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4.5.3 Vivência: Criando com o Corpo

Compreendo que o trabalho de sensibilização corporal exige a “remoção” de muitas camadas de tensão, de uma espécie de amnésia dos sentidos e da mente. Como uma antena que precisa ser reposicionada para captar um determinado sinal. Mas não é só isso, há que amadurecer esse trabalho em si (Diário de Bordo, 28 nov. 2015).

Com o corpo já bastante sintonizado e sensibilizado a um nível de escuta tanto

interna quanto externa (claro, isso é o que supus a partir de minhas impressões),

iniciamos uma vivência voltada a estimular o potencial expressivo e criativo do corpo.

Parti de referências corporais, como a relação dos pés descalços sob o chão,

experimentando deslocar o peso para diferentes apoios. Caminhamos pelo espaço da

sala, realizando diferentes dinâmicas, ressaltando a importância do olhar como apoio

espacial, olhar uns para os outros, diferenciar os direcionamentos do caminhar a partir

de velocidades ora mais rápidas, ora mais lentas, vetorializando as direções (para

frente, para trás e para as laterais), atribuindo propósitos de ação (atravessar a sala

pulando, correr ao redor da sala, caminhar vagarosamente até alguém etc.).

Articulamos todo o corpo, começando pelo movimento mínimo até a expansão total,

em busca de trazer à consciência, todas as partes responsáveis pela mobilização do

corpo. A seguir, realizamos exercícios de Contato Improvisação, experimentando o

peso e o toque, auxiliando no estabelecimento de uma relação mais lúdica e

cooperativa.

Com a energia corporal bastante ativada, propus uma atividade de exploração

no lado de fora da sala, na qual cada um, em silêncio, deveria observar a paisagem e

interagir com as coisas. Alguns foram até o rio, outros foram caminhar, buscar

elementos no caminho... A princípio, eles não compreenderam a relevância daquilo,

mas pedi que o fizessem com uma atitude de abertura.

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Figuras 108, 109, 110 e 111 - Vivência de dança. Criação corporal a partir de pesquisa na natureza.

Local: Sítio Sattva, ES. Fonte: acervo pessoal, 2015.

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Ao retornarem, dividi-os em duplas nas quais cada um deveria contar para o

outro o que havia vivenciado do lado de fora. O pedido os deixou constrangidos num

primeiro momento e me pediram para demonstrar como eu faria. Disse que poderiam

usar qualquer recurso, como as mãos, o toque, a expressão facial, o olhar,

movimentos corporais etc. Ao contarem suas histórias, o próximo passo seria ensiná-

las ao outro e juntos deveriam criar uma só narrativa, de forma que aquilo se tornasse

uma dança encenada.

As fotografias ilustram que os recursos mais recorrentes na construção dessas

pequenas cenas foram as mãos e o contato visual. Do real para o interpretativo, eles

puderam vivenciar, por meio da prática, a semente de um possível processo de

elaboração criativa. Com isso, eles demonstraram ser capazes de criar, ainda que não

tivessem confiança do que estavam fazendo.

Alguns participantes recorreram não só às gesticulações para simular objetos,

mas expressaram estados emocionais por meio das mãos e buscaram por meio do

contato com a dupla, criar um diálogo corporal. Nesse caso, a dupla que utilizou esse

recurso foi bastante criativa e foram capazes de criar por meio da interação ao invés

de um copiar o que o outro havia feito na hora de apresentar para o grupo.

Expliquei ao final que a proposta ali apresentada de dança era a de despertar

uma sensibilidade semelhante a que o artista busca desenvolver quando se coloca

em um processo de criação. Quantas histórias surgiram quando eles foram lá fora

captar informações e quantos elementos tão ricos eles levaram para a sala de prática

quando permitiram se tornar observadores/espectadores de suas ações e das coisas

ao seu redor.

É interessante como esse trabalho de investigação a partir da observação e da

ressignificação dos elementos apreendidos pelos sentidos pode iluminar propostas

que podem tocar o indivíduo e leva-lo a perceber que ele também é alguém capaz de

criar e que seu corpo, ainda que não tenha sido treinado em alguma técnica artística,

pode se expressar artisticamente.

Se na dança indiana são contadas histórias não relativas a uma subjetividade,

na dança contemporânea, como a dança-teatro, pode-se contar algo mais pessoal ou

abstrato. Quis trabalhar com temas e mostrar a eles que tudo pode se transformar em

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material criativo. Ainda que não tivéssemos tempo para lapidar os gestos criados, a

expressão facial e corporal, ficou a semente plantada na memória de cada um.

Na roda final, P5 mencionou o fato de “trabalhar o corpo, as articulações, liberar,

se sentir ridícula e liberar isso” como elemento que mais o tocou nas vivências; já P7

disse ter percebido que podia dançar com as mãos, assim como com seu corpo. Ele

se lembrou da apresentação que eu havia feito na semana anterior de dança

bharatanatyam e compreendeu a proposta de como é contar uma história com seu

corpo.

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4.5.4 Reflexões a partir das vivências

Ao final das vivências, fizemos uma roda de conversa, na qual cada um pode ter

um momento para expor suas percepções. Um dos participantes relatou, emocionado,

que o exercício que mais o tocou nas vivências foi o de procurar perceber o outro sem

o toque físico, e sim pela percepção das mãos como antenas, pois no cotidiano não

estava acostumado a conhecer o outro sem a formalidade da fala e que, portanto, ali

ele teve uma intuição de que há outras possibilidades de nos sintonizarmos por meio

de outros recursos sensoriais/corporais. Abrir a escuta para perceber quem está a sua

frente o ajudou a perceber uma conexão mais íntima consigo mesmo e com os

demais, conforme revelou P8 (Depoimento, 2015).

Outro participante observou, demonstrando surpresa, que antes das vivências

ele imaginou que se sentiria um estranho em meio a pessoas que ele supôs estarem

mais habituadas a realizar retiros. Entretanto, lá ele percebeu que vários outros

também tinham o mesmo receio, o que o levou a avaliar, conforme suas palavras, que

formamos “[...] um grupo heterogêneo por fora, mas homogêneo nas ações” (P5,

Depoimento, 2015).

Outro componente do grupo (P7) mencionou que sua maior preocupação antes

das vivências era a possibilidade de que ali falaríamos sobre religião ou que

tentaríamos enquadrar as pessoas em algum tipo de pensamento religioso, porém

percebeu que a proposta de reconexão com o campo do sagrado que propusemos

não envolvia nenhuma crença específica, senão no fato de nos abrirmos para escutar

os colegas, o espaço e, sobretudo, a nós mesmos. Já P11 revelou que estudara dança

na adolescência e as atividades realizadas acordaram esse lado esquecido, devido

ao turbilhão das obrigações cotidianas, mas naqueles momentos percebeu que era

capaz de criar e isso lhe emocionara bastante ao realizar que trabalhar a importância

da arte na vida.

Não esperávamos que as propostas fossem levar os participantes a estabelecer

uma comparação entre a vida e a superficialidade das relações cotidianas, ou mesmo

que um senso de coletividade tão forte entre os participantes fosse possível. Esperava

focalizar um trabalho de pesquisa corporal mais pautado pela percepção energética,

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porém percebi a importância de vivenciar elementos mais pontuais e mais simples,

que igualmente exigem escuta e sensibilização.

Esse, portanto, foi o último laboratório realizado durante a pesquisa de campo e

se diferenciou dos demais, sobretudo, pelo ambiente de trabalho.

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CAPÍTULO 5

RELACIONANDO EXPERIÊNCIAS: DO TREINAMENTO COMO PRÁXIS AO

TREINAMENTO COMO POIESIS

Revendo o percurso dos laboratórios, procuro neste capítulo refletir sobre

algumas questões que podem auxiliar a tornar mais coerente esse trajeto. Olhar para

um material por vezes tão eclético e contrastar seus dados simbolizou um desafio. Por

um lado, haviam os discursos dos diferentes participantes registrados nos

questionários e nos vídeos. Por outro, meu diário de bordo cheio de observações e

questões levantadas, que mostravam as mudanças de encaminhamentos durante o

processo, minhas impressões que ratificavam ou contrastavam com as dos

participantes.

Percebi que não poderia me basear apenas nas criações cênicas elaboradas por

eles, já que nem todos os laboratórios tiveram essa proposta. Igualmente, não se

tratava de analisar somente os efeitos da técnica e do treinamento de bharatanatyam

e no yoga com artistas cênicos, pois meu foco abrangeu também um público de não

artistas, que tiveram um contato com princípios básicos do movimento e de jogos de

improvisação, isto é, conceitos trabalhados usualmente pelos artistas da cena.

Durante o primeiro laboratório, encontrei na metodologia da observação

participante (VIANNA, 2007) um respaldo para me orientar na pesquisa de campo.

Nesse tipo de análise, o pesquisador é um observador que se envolve diretamente

com o campo de ação, influenciando o que observa devido a sua participação. Além

disso, essa técnica exploratória não restringe os materiais de coleta e permite a

observação não apenas de comportamentos, mas as atitudes, opiniões, e de

sentimentos expressos pelos participantes, elementos essenciais para refletir sobre

possíveis mudanças de direcionamento do planejamento inicial.

Ao fazer uma avaliação desse material, constatei que o grande elo que unia os

laboratórios era a trajetória percorrida e as transformações, sobretudo, de minha

visão a respeito do treinamento na formação do artista cênico. Como cada grupo

participante teve um contato com a pesquisa relativamente pequeno (no máximo 5

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meses), foi mais difícil identificar o desenvolvimento de questões mais profundas do

ponto de vista deles.

Partindo da questão que orientou a pesquisa: pode um trabalho de

autoaperfeiçoamento auxiliar na formação do artista da cena a partir dos princípios

técnico-poéticos do yoga e da dança cênica bharatanatyam? Pode-se dizer que

absorvi procedimentos e qualidades relativas a essas práticas. Portanto, ao avaliar a

experiência produzida em cada laboratório – tanto a que pude observar em relação

aos participantes, quanto a que se produzia em mim mesma – comecei a vislumbrar

outra possibilidade que não remetesse a um valor maior ou menor entre o que estou

chamando de procedimentos e de qualidades.

Para desenvolver melhor essa questão me apoio nos dois vieses de treinamento

que Bonfitto (2009) identifica no trabalho do artista cênico, a partir de seu estudo sobre

a obra do diretor Peter Brook (1925-). Ao analisar os conceitos desenvolvidos por

Aristóteles sobre práxis e poiesis, Bonfitto constata:

Práxis e poiesis são conceitos que remetem a atividades humanas, a modos de atuação. Contudo, enquanto práxis (do grego prattein, fazer) está associado com praticar ações, poiesis (do grego poiein, fabricar) está relacionado com a atividade de construir ações. Dentre as implicações geradas por tais diferenças, é importante ressaltar que práxis envolve, a partir de seus pressupostos, ações intencionais, ações que são um meio para um fim. Diferentemente, poiesis remete a ‘ações não intencionais’, a ações através das quais algo é gerado e passa assim a existir. Poiesis envolveria, portanto, antes de mais nada, a ação de “trazer algo à tona”. Nesse sentido, é possível perceber uma significativa diferença entre práxis e poiesis. Apesar dos dois conceitos estarem relacionados a atividades humanas, no primeiro caso objetivos são estabelecidos a priori. Em outras palavras, no desenvolvimento de ações enquanto práxis os objetivos são guiados pelos seus fins. Já o desenvolvimento de ações como poiesis não envolve uma busca determinada por uma finalidade preestabelecida; sua função emerge do processo de seu fazer. Sendo assim, enquanto ações produzidas como práxis podem ser vistas como parte de uma estrutura ou sistema, ações produzidas como poiesis são percebidas através de suas qualidades específicas, cada vez que elas se manifestam (BONFITTO, 2009, 37).

Esses conceitos, segundo o autor, podem ser associados ao treinamento do

artista cênico, caracterizando-os por “treinamento como práxis” e “treinamento como

poiesis”. O primeiro tipo envolve a “[...] aplicação de práticas extraídas de sistemas de

atuação e suas recombinações à invenção de práticas designadas especificamente

para cada tipo de produção. [...] diferentes procedimentos seriam predeterminados e

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seus objetivos seriam estabelecidos de diversos modos: ele seria um meio que serviria

a uma finalidade” (BONFITTO, 2009, p. 38).

Nesse conceito de treinamento se enquadram, por exemplo, os sistemas de

treinamento psicofísicos do Oriente, tais como as artes marciais (kalarippayatt, gong-

fu, judô), as danças cênicas (bharatanatyam, kathakali, odissi), algumas formas

teatrais (kabuki e noh), dentre outros. Todos eles, como foi visto neste trabalho, são

sistemas codificados que influenciaram a trajetória das práticas formativas cênicas no

século passado.

Já no treinamento como poiesis,

[...] o objetivo mais importante seria aquele de criar as condições para que os materiais emerjam, para que eles possam vir à tona, os quais podem ser ulteriormente desenvolvidos pelos atores. Dessa maneira, procedimentos e atividades colocados em prática nesse caso não seriam necessariamente predeterminados ou elaborados antecipadamente (BONFITTO, 2009, p. 38).

Ainda segundo a análise de Bonfitto (2009), em ambos os tipos de treinamentos

é possível verificar a produção de processos psicofísicos; porém, no primeiro, isso se

dá pela repetição de partituras corporais e vocais específicas, enquanto, no segundo,

emergem na produção dos processos criativos.

Percebo algumas semelhanças no percurso dos laboratórios desta tese com as

definições apresentadas por Bonfitto, pois os procedimentos dos quais me vali se

basearam inicialmente em um sistema de ações pré-determinadas, que aos poucos

se descolaram de seus fundamentos básicos até ganharem um caráter pautado pela

qualidade absorvida dos elementos nos quais me inspirei. Contudo, se considerarmos

que o treinamento como práxis se relaciona a praticar ações e o treinamento como

poiesis, a construção de ações, será que o treinamento a partir de formas/partituras

codificadas não permitiria que elementos novos e surpreendentes emerjam na cena?

Haveria uma separação tão precisa assim entre esses tipos de treinamento sobre os

quais Bonfitto disserta?

No meu percurso observei que as matrizes da pesquisa (yoga/bharatanatyam)

levaram a um lugar de conexão interna. Nos primeiros laboratórios, parti de uma

abordagem semelhante ao treinamento como práxis, no qual a repetição de

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determinadas partituras levou a uma poiesis pela emergência de elementos criativos

nas etapas de criação. Já nos últimos laboratórios, o que prevaleceu foi o treinamento

como poiesis, porém havia um tipo de metodologia absorvida da meditação, de uma

forma de levar a consciência aos materiais que foram elaborados pelos participantes.

De maneira mais detalhada, nos primeiros laboratórios, com estudantes de

graduação dos cursos de dança e de artes cênicas da Universidade Estadual de

Campinas, propus um olhar investigativo para a técnica, treinando partituras corporais,

quer sejam referentes à estrutura da bharatanatyam, quer sejam por meio de práticas

de meditação. Esse estudo não tinha o intuito de aperfeiçoamento nesses sistemas,

mas incitar questões a partir de suas estéticas, de absorver formas de atenção,

concentração, precisão e de transpor as especulações dos participantes a pequenas

cenas, que começaram a ser desenvolvidas em laboratórios de criação.

Observando o desenvolvimento deles, bem como avaliando seus depoimentos,

o que ficou mais evidente foi uma consciência sobre o caráter expressivo das técnicas

de isolamento como um treinamento que lhes faltava na formação artística. Sobretudo

os estudantes do curso de dança sinalizaram que a possibilidade de se expressar por

meio das mãos e da face foi um dos maiores desafios que o laboratório lhes propiciou.

Tais percepções mostram que o contato com a técnica da bharatanatyam pode

auxiliar o artista cênico em sua formação expressiva, mas também poética e criativa,

revelada em seus trabalhos cênicos, porém um estudo mais aprofundado de seus

pormenores talvez seja necessário para que apropriações mais verticalizadas possam

ser produzidas.

Os elementos da técnica não precisam aparecer de maneira óbvia na cena, mas

ainda assim podem interferir na qualidade da ação, fato este exemplificado a partir do

trabalho final de um dos participantes do primeiro laboratório, que apresentou um

vídeo no qual o olhar foi o elemento essencial extraído do treinamento que tivemos.

Em termos da recepção a respeito da técnica e do treinamento a partir de

partituras mínimas corporais (mãos, olhos, ritmo dos pés etc.), os artistas cênicos dos

dois primeiros laboratórios observaram, principalmente, a não separação entre

habilidades motoras e expressivas, sendo este um dos pontos de maior dificuldade,

já que exige um alto grau de atenção, de foco, o silenciar da mente, considerado maior

até do que uma falta de condicionamento físico. As dificuldades foram percebidas pela

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maioria como pontos importantes a serem desenvolvidos em seu cotidiano. Por

exemplo, a dificuldade de concentração em alguns exercícios mostrou como é baixo

o nível de atenção, atribuída ao ritmo de vida e forma de se comportar diante da

prática, ou seja, puderam perceber a diferença entre realizar algo com um propósito,

uma meta, ainda que simples, do que agir sem um propósito.

No segundo laboratório, aconteceu uma experiência interessante que auxilia a

pensar nessa conexão buscada entre práxis e poiesis. Oferecemos aos alunos tanto

um material codificado (exercícios rítmicos do kathakali), quanto um material sugestivo

(caminhada da flor), cuja forma não estava pronta, devendo ser criada por eles. A

possível conexão entre ambos estaria no fato do primeiro tipo oferecer parâmetros

para o desdobramento do segundo, porque propicia um tipo de atenção direcionada,

um olhar apurado, uma possibilidade de trabalho com as mãos, capazes de gerar uma

força e uma energia internas favoráveis à elaboração do material não estruturado.

Como exemplo, retomo a discussão do exercício da caminhada da flor, no Laboratório

2, na qual um dos participantes, dialogando com o professor da disciplina, disse:

P4: Eu achei interessante o estado de consciência que esse caminhar te leva... de uma forma... por a gente se conectar com o espaço e ao mesmo tempo não perder o seu corpo e não perder o espaço que você tá, o chão que você tá pisando, ou o lugar pra onde você tá olhando. Não fica um caminhar... sem ter um porquê.

Professor: Tem uma situação...

P4: Exato!

Professor: Você tem que ter uma dramaturgia. Tem esse chão, onde tem um monte de gente lá. Tem uma coisa que nasce do centro. Tem um acontecimento.

P4: Essa flor me remeteu à vida. Então era essa vida nascendo, em contraposição a esse chão de mortos, essa contraposição do pesado com um florescer (Registro de vídeo, Laboratório 2, 2014).

Apesar de não termos tido a oportunidade de repetir esses exercícios mais vezes

para verificar essa relação entre o treinamento codificado e não codificado, pode ser

vista aí uma possibilidade de se trabalhar uma determinada base para a emergência

de elementos novos, que nesse caso, era a flor.

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Outra questão que se colocou, nesse sentido de desenvolver a percepção pelas

oposições e tensões geradas pelo treinamento estruturado, foi o fato do trabalho

mecânico ter ajudado os participantes a pensar não mecanicamente, já que os

transportava para um estado de atenção constante, seja por gerar um ritmo interno

por meio da repetição; fato este observado em vários exemplos nos dois primeiros

laboratórios.

Um elemento interessante que surgiu também nos primeiros laboratórios, foi a

mudança de percepção do uso do espaço e o redimensionamento temporal a partir

do trabalho sobre as partituras mínimas, que atuaram como yantras, ativando e

reativando pontos e caminhos de ação. Alguns participantes observaram que apesar

de ocuparmos o mesmo espaço durante as aulas, tinham a impressão de que muitas

coisas aconteciam em seu corpo, como se estivessem explorando tantas

possibilidades jamais imaginadas. Essa constatação demonstra uma ampliação da

percepção corporal e um outro tipo de relação espacial. Então essa abordagem

psicofísica que as danças cênicas indianas e o yoga desenvolveram ao longo dos

tempos pode ser compreendida não como limitação do movimento, conforme esses

exemplos.

Há na investigação da técnica e do treinamento indiano uma espécie de

descoberta possível de gerar tensões e um impulso à atividade criativa. Como coloca

Plá: “O corpo do artista cênico é um corpo no qual a vontade se manifesta como

impulso criador, que se coloca numa disposição dinâmica em função de uma demanda

concreta ou imaginária, a condição espetacular surgindo da suave tensão entre

impulso e manifestação” (PLÁ, 2009, 39).

Os depoimentos selecionados abaixo ilustram algumas percepções sobre a

técnica e o treinamento vivenciados nesses primeiros laboratórios, que auxiliam a

realçar a qualidade do trabalho psicofísico na perspectiva intercultural.

[Os exercícios] me auxiliaram na medida em que eu pude abrir uma percepção e escuta maior do ambiente de trabalho, dos meus amigos, como do meu corpo num todo. Analisava sempre meus membros, minha respiração e meu estado de espírito nas outras aulas, fazendo conexões completamente perceptíveis e cabíveis com as outras aulas (P3, Laboratório 2, 2014). [...] parece que é muita coisa para pensar ao mesmo tempo e a mente/corpo não vai dar conta de tanta informação, mas em momentos que todas as informações se encontram, que todas as partes do corpo se integram, dá para

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ver que é possível, e então dá um animo de continuar treinando e tentando, porque exige muito treino (P3, Laboratório 1, 2014).

As práticas orientais são muito centradas e concentradas a meu ver. Elas acalmaram os ânimos e ajudaram a controlar a minha ansiedade com relação às outras disciplinas – especialmente as práticas! (P5, Laboratório 2, 2014). O contato com a técnica da dança Bharata Natyam foi extremamente importante principalmente por ter sido apresentada a mim como uma técnica que não separa a aquisição de habilidades motoras da aquisição de habilidades expressivas, um ideal frequentemente esquecido no ensino de técnicas de dança pelos quais passei (P10, Laboratório 1, 2014).

No começo percebia que eu me dispersava com frequência, que não conseguia me concentrar e nem deixar que os exercícios fluíssem sobre mim. Com o tempo, minha concentração foi aumentando e por isso conseguia ter um contato muito maior com os exercícios propostos, como também sentia algo dentro de mim que não sei explicar, mas era uma sensação muito boa (P3, Laboratório 2, 2014). A parte expressiva parece mais interessante, pois usar a expressão facial de forma mais elaborada, como a dança indiana apresenta, pode enriquecer um trabalho artístico corporal imensamente, e é uma parte muito esquecida nas danças tradicionais ocidentais, faz muita falta na formação do bailarino contemporâneo. Outra parte pouco explorada é a expressividade das mãos, onde a dança indiana trás um grande repertorio com os mudras, o que também acho um elemento muito interessante para apropriação criativa (P3, Laboratório 1, 2014).

Foi muito interessante o processo de assimilação de uma linguagem codificada [...], pois o fluxo entre os movimentos ajuda bastante a impedir que o raciocínio discursivo interfira na execução da técnica que se aprende (P1, Laboratório 1, 2014).

Acredito que vivenciar "na pele" os movimentos ajudou muito a entender as dificuldades enfrentadas por quem aprende essa técnica e a paciência, dedicação e preparação que seus dançarinos precisam ter para aperfeiçoar sua técnica. Além de ter despertado meu interesse por saber mais sobre os gestuais e seus significados (P1, Laboratório 1, 2014).

[...] os exercícios desenvolvidos me mostraram novas possibilidades de processo criativo, e exigiram que eu trabalhasse com a coordenação motora de algumas partes do corpo que eu não tinha o costume de trabalhar, como os Mudras trabalham as mãos. Além disso, os exercícios me levaram a identificar que meu nível de atenção era baixo, até mesmo copiando movimentos eu não me mostrava atenta a detalhes que agora sei que não podem ser esquecidos, novamente pode ser usado o exemplo das mãos (P2, Laboratório 2, 2014).

[...] me deixou mais atenta para partes do corpo que não exploro na dança comumente, como toda a possibilidade de expressão fácil (sobrancelhas, olhos, boca, bochecha etc) e as mãos. O que mais percebi que auxiliou no cotidiano mesmo, foi na questão do olhar, comecei a prestar mais atenção nisso, deixando o olhar mais aberto, usando e explorando mais as

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extremidades dos olhos, o que ajudou na visão periférica também (P3, Laboratório 1, 2014).

Todas essas observações em torno dos elementos técnico-expressivos da

bharatantayam e de outras práticas orientais propostas durantes os cursos são

apenas alguns exemplos do que um trabalho investigativo sobre o treinamento

psicofísico pode propiciar ao artista cênico.

Ao longo dos laboratórios a técnica sistemática da bharatanatyam deu lugar à

assimilação de ritmos, do gesto, do olhar e do respirar a partir de exercícios de

meditação. Houve um interesse em propiciar uma maneira de ensinar “homeopática”,

que não visava conquistar uma técnica específica, mas transformar os elementos

teórico-práticos em questionamentos. Quando comecei a considerar outras formas de

desenvolver uma dimensão interna do movimento, tomei como foco o trabalho com as

mãos, aliado aos hasta mudras e também com a meditação yogue.

A conscientização das mãos na construção do gesto expressivo despertou a

percepção das mesmas como antenas, observada tanto por alguns dos artistas em

formação, quanto pelos praticantes de yoga, que participaram das Vivências

Energético-Criativas. Observei que os gestos como meditação produzem um tipo de

atitude nos alunos mais concentrada e uma dinâmica do próprio espaço de trabalho

transformadora, como se nos abríssemos para uma escuta e uma presença maior.

No laboratório Gesto e Criação: mudras indianas como recurso expressivo, o

estudo inicial dos hasta mudras provocou percepções de ordem física, dos seus

efeitos visuais, assim como a relação entre o gesto e a comunicação corporal. Ao

trabalhar o gesto das mãos na meditação e propor a partir desse exercício um ciclo

de improvisações, constatei que a meditação aliada a um tipo de exercício técnico-

expressivo pode auxiliar no estabelecimento de um contato interno mais sutil,

condição interessante ao trabalho do artista cênico. Essa investigação auxiliou um dos

participantes a elaborar como seriam as mãos de um personagem idôneo que ele

estava criando para outra disciplina. Isso foi identificado por ele como uma descoberta

simbólica importante na relação que procurava estabelecer com sua criação.

Ainda sobre as mãos e seu potencial criativo e comunicativo, as falas dos

participantes nos diversos laboratórios revelaram novas percepções sobre o trabalho

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do gesto. Como um dos participantes das Vivências Energético-Criativas, que

associou o exercício de conectar com o outro sem o toque físico a uma possibilidade

de se comunicar de maneira mais intuitiva. Quando apliquei exercício semelhante nos

laboratórios com estudantes de artes cênicas, houve uma comoção análoga em

relação à atitude das mãos, porém percebi que eles tinham dificuldade em interagir

com o outro sem sair de uma atitude interpretativa, como se tivessem a necessidade

de representar um personagem ou uma situação. Essa postura diante do material

trabalhado foi uma das maiores diferenças entre os grupos de artistas e de não

artistas.

Ao trabalhar com essa abordagem meditativa, o caráter de autoaperfeiçoamento

emergiu de forma mais sutil, veiculado às sensações e à improvisação, à

impermanência das formas. Ao mesmo tempo, percebi que o trabalho nesse campo

mais sutil a que me refiro poderia levar os participantes a ficar apenas no campo das

sensações, de seus efeitos psíquicos e menos na materialização de um trabalho

cênico com uma proposta que não reduza o sujeito a si mesmo, correndo o risco de

perder-se em um universo extremamente subjetivo. Talvez aqui resida um dos

grandes desafios em se trabalhar com a meditação na cena.

A abordagem da meditação com as mãos se mostrou interessante, mas ainda

de maneira pouco profunda por uma questão de tempo nos laboratórios. Mais do que

realizar movimentos, as mãos revelaram na pesquisa um potencial comunicativo pelo

toque, pela percepção da presença do outro, do espaço de trabalho, de um modo de

expressão singular não necessariamente vinculado à fala.

Nos dois últimos laboratórios direcionados aos praticantes de yoga, tanto os

materiais que levei (figuras corporais), quanto os que foram elaborados por eles (a

partir da observação de elementos da natureza) serviram para o desenvolvimento de

pequenas cenas coreográficas. Nesse sentido, observo semelhanças ao que Bonfitto

define por treinamento como poiesis, já que não trabalhamos com partituras definidas.

Retomando esse autor:

Eles [práxis e poiesis] representam dois modos de conceber e colocar em prática o treinamento do ator. O contraste mais importante a ser considerado nesse caso é aquele entre treinamento estruturado (treinamento como práxis) e treinamento não estruturado (treinamento como poiesis) (BONFITTO, 2009, p. 39).

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Analisando essa questão a partir da maneira como os participantes se

relacionaram com os processos criativos, percebi que os dois últimos grupos

apresentaram mais dificuldade em transformar os materiais e as dinâmicas propostas

em material fabulativo. Na oficina Criação Coreográfica, quando desafiados a criar a

partir da improvisação com figuras, a maioria se preocupou com a execução mecânica

dos asanas e se atrapalharam com os movimentos de transição entre uma forma e

outra. Além disso, os alunos ficavam inseguros pois não tinham experiência com

exposição em público. Alguns dos asanas são de grande dificuldade de execução e,

apesar de a maioria conseguir realizá-los bem durante as suas práticas individuais,

ao se colocarem em situação cênica, perdiam facilmente o equilíbrio ou o conseguiam

mediante o tensionamento da expressão facial e da rigidez do centro corporal.

O fato de terem tido contato com métodos próprios das artes da cena e de terem

se apropriado dos conteúdos aprendidos durante o curso para a criação foi

aproveitado, senão de uma maneira esteticamente visível, mas em termos de se

permitirem dançar, de construir um ambiente propício à criação ao se integrarem como

um grupo. Conforme registrei em meu Diário de Bordo sobre essa experiência: “[...]

algo do efeito provocado pelas vivências de ontem permaneceu. Sinto que não

absorveram uma forma de criar, mas um impulso e um ambiente em que existe a

vontade de fazer” (Diário de Bordo, 23 ago. 2015).

A experiência que busquei levar para eles foi a de mostrar que a construção do

trabalho criativo para as coreografias de yoga costuma se dar por meio da cópia. Nas

coreografias criadas o mais difícil foi criar um corpo cênico, com uma energia potente

e uma dramaturgia. Portanto, foquei nesses dois aspectos, por meio do trabalho com

a improvisação. Acho que isso foi conquistado parcialmente. Nesses casos, os

participantes partiram de referências pessoais nas atividades lúdicas de criação, de

sua trajetória simbolizada pela escolha das imagens e interiorizada na atividade

cênica. A imaginação na construção de um trabalho cênico para eles parece funcionar

quando vinculada à realidade de suas vidas, e não em algo distanciado deles.

Na disciplina Artes Corporais do Oriente, correspondente ao primeiro laboratório,

a improvisação também foi um recurso utilizado em alguns exercícios de criação,

como o trabalho com as figuras corporais. Ficou clara a diferença entre eles e os

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praticantes de yoga, sobretudo em relação à precisão dos movimentos e uma certa

segurança, ou reconhecimento daquele trabalho como parte do jogo cênico. Contudo,

percebi que os artistas cênicos trabalham de maneira mais introspectiva, como se não

houvessem outras pessoas na sala. Já os grupos de praticantes de yoga mantinham

a atenção no outro, buscando um auxílio, um apoio. O toque propiciado pelos

exercícios de improvisação ajudou-os a romper com julgamentos do que é certo ou

errado, abrindo a possibilidade do participante se ver em relação ao outro. Analisando

os resultados, percebi que esse trabalho ajudou como conceito de desconstrução de

condicionamentos corporais sobre o que é dança e como se deve dançar, sobre as

potencialidades entre o corpo e a atividade criativa.

A respeito do jogo cênico mencionado acima como capacidade de entrar na

fabulação ou na esfera imaginativa, entendo como um reconhecimento de um local no

qual todo esse potencial despertado pode frutificar de uma maneira igualmente

instigante, que pode levar a compreender outras esferas da realidade, auxiliando a

ampliar a consciência. Por isso, o trabalho psicofísico na esfera do jogo cênico pode

ser interessante tanto ao artista quanto ao leigo. Se para o artista cênico é um pouco

mais fácil entender esse universo, para os praticantes de yoga foi preciso oferecer

condições para que isso acontecesse.

Observei ao fim do laboratório das Vivências Energético-Criativas que houve

uma compreensão do jogo ficcional como parte importante da desmecanização do

cotidiano, de levar o sujeito a um outro lugar, ao inesperado, onde residem

possibilidades de agir e de ser diferentes. Nesse ponto, acredito que a força deste

trabalho com os praticantes de yoga foi a de mostrar-lhes que a arte, a imaginação, a

esfera do ficcional são manifestações do real e do humano, significativas para a vida,

que podem ser recuperadas.

Já com os estudantes de dança e de artes cênicas percebi que foi mais difícil

sair do campo simbólico. Os atores tendiam a pensar em personagens e os dançarinos

buscavam um movimento verdadeiro, que validasse sua elaboração criativa.

Quanto a isso observo dificuldades opostas entre os grupos. Aqueles que não

tinham experiência com a atividade cênica, tiveram maior disponibilidade em entrar

no jogo e permitir que materiais aparecessem, em descobrir o corpo do outro, como

uma brincadeira, porém, quando incitados a transpor os elementos descobertos para

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a cena, sentiam vergonha ou não compreendiam como realizar a proposta. Já os

artistas da cena em formação entravam no jogo com um corpo pré-concebido,

apresentando dificuldades em se desvencilhar de questões intrínsecas ao fazer cênico

(personagens, dramaturgia, situações etc.).

Essas questões me levam a refletir sobre a dificuldade em lidar com o

treinamento como poiesis, semelhante ao jogo livre da criança, pelo fato de que às

vezes estamos tão imersos num campo de saber, que não percebemos o quanto

realmente somos capazes de observar nossas ações por um outro prisma. Até mesmo

para poder atuar de modo mais consciente e buscar desenvolver ações imbuídas de

força e presença.

Entendo que o caminho do treinamento como poiesis oferece ao artista a

possibilidade de assumir a construção de procedimentos e ações, uma vez que ele se

relaciona com a “exploração de princípios” (BONFITTO, 2009, p. 39). Há maior

liberdade em lidar com os materiais de criação, mas por vezes faltam parâmetros que

auxiliem o artista a sair de escolhas recorrentes ou mais cômodas.

O treinamento como práxis pode permitir sair desse lugar cômodo, mas em

contraposição pode levar à reprodução de seus procedimentos, ao invés de libertar

deles. Contudo, ao contrário de ver nessas duas vertentes de treinamento uma

polaridade, é possível ver a emergência de materiais a partir de elementos

estruturados, tudo vai depender do olhar investigativo lançado, ou de como esses

elementos tocam o sujeito internamente.

Não obstante, essas são apenas possibilidades e não há como mensurar os

efeitos que um tipo de meditação ou de prática psicofísica irão reverberar no sujeito.

A partir do percurso experienciado nesta tese, aprendi a ver que o mais importante

para mim, como proponente dos laboratórios, é buscar instigar nos participantes um

modo de se relacionar com o treinamento psicofísico, mas cabe somente ao sujeito

decidir como se colocar em relação ao proposto.

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CAPÍTULO 6

À GUISA DE CONCLUSÃO

Esta tese teve como base aliar alguns princípios de práticas de

autoaperfeiçoamento orientais formação do artista da cena, partindo de minha

trajetória com a prática de Shivam Yoga e o treinamento em bharatanatyam. Neste

trabalho propus um olhar para a técnica como recurso expressivo, que auxilia a ter

parâmetros poéticos a partir de uma experiência psicofísica.

Para dialogar conceitualmente com os sistemas de treinamento propostos, me

apoiei em três tratados da antiguidade indiana: os Yoga Sutras de Patañjali, o

Nāṭya Śāstra de Bharata e o Abhinaya Darpana de Nandikeshvara.

O primeiro lida com temas relativos às práticas de autoaperfeiçoamento yogue,

como a concentração e a meditação, os princípios éticos, as práticas psicofísicas

como a respiração e as conformações corporais (asanas), especulando sobre seus

possíveis efeitos e os processos de sutilização da mente.

Já os dois últimos citados, lidam com os preceitos dramatúrgicos que regem a

arte de natya, termo que designa formas dançadas e encenadas, que tem uma de

suas maiores características o estudo do alfabeto gestual realizado, sobretudo, com

as mãos. Sem esmiuçar os códigos desses tratados, busquei neles um norte para

desenvolver os laboratórios de pesquisa.

Os demais aportes teóricos sobre ética-estética indiana em autores como

Srivastava (2004), Vatsyayan (1997, 1968), dentre outros, a partir dos quais procurei

especular sobre possíveis relações entre corpo, técnica indiana e yantra. Observou-

se que o yantra é uma ferramenta yogue usada como veículo de meditação, por meio

da vivência de seus conceitos geométricos visualmente e corporalmente,

considerando, nesse caso, o próprio corpo como um grande instrumento de

transformação, no qual é possível veicular experiências psicofísicas e sutis.

Busquei relações semelhantes na técnica da bharatanatyam, mostrando que sua

práxis se constitui na relação dos princípios geométricos como ponte entre os estados

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internos e os estados externos, características essas que me levaram a buscar

relações com o treinamento do artista cênico, verificando suas possíveis

potencialidades. Também ressaltei que esse tipo de investigação remete às

experiências de renomados artistas da cena, cujos pressupostos foram lançados

desde Stanislavski, no que diz respeito ao “trabalho do artista sobre si” por meio de

um treinamento psicofísico, posteriormente desenvolvido e aprimorado por outros

encenadores, a exemplo do diretor e ator Phillip Zarrilli (1947-).

Observei a importância para os estudos da cena no Brasil de pesquisas que

partem da verticalização nas práticas de autoaperfeiçoamento asiáticas a partir de um

olhar fora do eixo eurocêntrico, por fornecerem contribuições que dialogam tanto

diretamente com essas práxis, quanto realizam uma releitura crítica das absorções

realizadas pelos seus antecessores. Avaliar os diversos trabalhos que vem sendo

produzidos pelos grupos e linhas de pesquisa acadêmicas no país que buscam esse

tipo diálogo ainda é um trabalho a ser desenvolvido.

Tracei, em linhas breves, as principais características que envolvem o yoga e a

bharatanatyam colocando em questão minha própria experiência com o treinamento

avaliando a mudança de ponto de vista em relação ao treinamento como imitação,

desprovido de reflexão, e treinamento capaz de integrar o corpo como um todo.

Constatei que o yoga pode levar o sujeito a estabelecer uma forte comunicação interna

por se constituir em um caminho de autoaperfeiçoamento. Já a bharatanatyam atua

como uma prática que me auxilia a potencializar e a mobilizar o corpo cênico a

estabelecer um tipo de comunicação externalizável por meio de recursos expressivos

pouco trabalhados pelo artista cênico ocidental.

O caminho experimental ao longo da docência realizada para a pesquisa auxiliou

a identificar qualidades relativas ao trabalho psicofísico em comum tanto na técnica

da bharatanatyam, quanto no yoga: o cultivo do corpo e da mente por meio da

concentração e da meditação, o respirar e a veiculação da energia (entendida como

prana), os princípios entre forma, repetição e circuito energético como maneiras de

renovação da energia vital, dissociação e associação dos elementos corporais,

incluindo o gesto das mãos, como um minucioso trabalho que pode ser visto como

recurso expressivo e de harmonização do corpo. Todas atuam de alguma maneira em

conjunto, mas podem ser compreendidas em suas características isoladas.

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Ao trilhar o caminho do treinamento psicofísico, a questão da técnica foi um

aspecto com o qual me deparei e que levou à questão: seriam realmente o treinamento

e a técnica uma necessidade para o trabalho do artista cênico? É preciso considerar

em qualquer pesquisa a relatividade de certos preceitos, pois, nesse caso, nem

sempre o artista precisa se valer de um determinado recurso técnico ou a imersão em

formas de treinamento para sua formação. Ainda assim, não considero a técnica

indispensável, porém penso que ela faz parte da história cênica e não deveria ser

considerada um aprisionamento. Às vezes uma opção que se propõe como libertadora

pode se tornar limitante ao artista sem que ele perceba, por isso, um olhar atento e

refinado faz-se necessário.

O treinamento estruturado proposto no primeiro laboratório levou ao

questionamento do valor do aprendizado de técnicas e a tendência ao ecletismo, isto

é, agregar elementos diversos e díspares na formação do artista da cena (MONTEN,

2015).

Ao responderem à pergunta: “O que você entende por técnica e qual a função

da mesma para o seu trabalho artístico?”, a maioria dos participantes apostou no

ecletismo como parte fundamental em sua formação artística. eles expressaram que

o aprendizado de muitas técnicas proporciona um corpo múltiplo e disponível para a

criação capaz de “[...] ampliar minha capacidade corporal de realizar diferentes

movimentos” (P10, Laboratório 1, 2014), de “[...] trabalhar meu corpo para que ele

fique apto a fazer quaisquer movimentos que eu quiser” (P9, Laboratório 1, 2014).

A técnica também é vista como “[...] mais uma possibilidade que serve para

enriquecer o trabalho [...] sendo possível usar de mais de uma técnica ou de nenhuma

para criar e comunicar artisticamente, assim a técnica para meu trabalho artístico é

um caminho, uma ferramenta” (P3, Laboratório 1, 2014). Nesse sentido, ela é

percebida como um meio para se construir um vocabulário corporal “[...] que, quanto

mais trabalhado, maior o universo possível de expressão” (P5, Laboratório 1, 2014).

Essa aposta na versatilidade proporcionada pela técnica é discutida e

problematizada por Monten (2015), dançarino pesquisador de dança-teatro, que

investiga estratégias de aproveitamento de técnicas corporais, sinalizando que a

exigência em ser altamente proficiente em diferentes técnicas constitui-se em um

grande desafio ao artista da cena contemporâneo. O maior problema que o autor

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ressalta no aprendizado de muitas técnicas corporais estaria mais nas respostas

instintivas do corpo em movimento, o que exigiria uma espécie de prontidão nem

sempre possível de ser adquirida.

Para lidar com esse tipo de situação, Monten (2015) sugere que o ecletismo,

como internalização de diferentes qualidades técnicas sem a pretensão da excelência

delas, possa ser um caminho de resistência à disciplina de formas fechadas. No

entanto, o próprio autor observa que esse posicionamento pode ser meramente

ilusório, ficando mais no nível do discurso acadêmico do que da prática.

Essas são discussões pertinentes quando se pensa em proporcionar ao

estudante práticas psicofísicas como as propostas neste trabalho. Apesar do discurso

em voga sobre a versatilidade, se não ocorrer um mergulho em dimensões

“psicofísicas transformadoras”, como coloca Beavers (2008), dificilmente será

possível sair da visão da técnica pela técnica. O foco para a consciência de si, como

propus neste trabalho, pode ser um caminho possível de ser realizado em qualquer

atividade, sendo ela artística ou não.

Todo esse debate em torno da técnica incorporada ao treinamento eclético

auxilia a pensar no trabalho realizado nesta tese, à medida em que experimentar os

caminhos de uma técnica específica, tanto no treinamento quanto no ensino aplicado

às práticas artísticas, podem configurar maneiras possíveis de repensar relações

entre arte e vida, permitindo ao sujeito se posicionar ativamente no presente.

Quando lidamos com esse contexto de ideias em torno das Artes da Cena,

sobretudo no meio acadêmico, ainda é possível constatar essas relações dicotômicas

entre o velho e o novo, entre formas codificadas e não codificadas, que às vezes

impedem de estabelecer um diálogo mais profundo que poderia beneficiar a área de

estudos.

Como foi visto ao longo desta tese, ao investigar a estética de práticas como o

yoga e as artes de natya, compreendeu-se que essas formas estruturadas trabalham

com princípios que consideram o sujeito como um todo.

Ao mesmo tempo, é sempre possível que o treinamento codificado recaia a uma

instrumentalização vazia, mas isso depende do olhar e da postura do praticante em

relação ao seu fazer. Não se trata igualmente de transpor estruturas de pensamento,

de comportamento e do treinamento indiano para o contexto brasileiro. Acredito que

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qualquer prática proposta deve suscitar uma reflexão e é o que busquei levar aos

participantes dos laboratórios.

A investigação feita nos laboratórios mostrou que a técnica pode inspirar uma

poética de ação pela incursão em suas minúcias, investigando como ela sensibiliza o

sujeito, a ponto de leva-lo a encontrar correspondências com a própria vida, a

perceber as relações entre imaginação e o trabalho psicofísico na criação. São essas

mínimas ações presentes nas artes cênicas indianas as mais difíceis de desenvolver

– e isso ficou mais claro a partir dos laboratórios de pesquisa desta tese.

Trabalhar o elemento mínimo gera muita ansiedade, porque requer um tipo de

habilidade mecânica e de atenção que não deixa espaço para a mente divagar. Esses

elementos quando orquestrados em um conjunto maior ajudaram os participantes a

perceber um conjunto orgânico, promovendo uma maior integração psicofísica ao sair

da mecanicidade dos exercícios e partir para a ampliação da percepção de seus

corpos.

Ao contemplar os dois tipos de treinamento na perspectiva de Bonfitto (2009),

como práxis e poiesis, constatei que essa separação não precisa ser tão definida, pois

os materiais trabalhados no treinamento estruturado permitiram a emergência de

materiais e despertaram uma conexão interna nos sujeitos. Os dois tipos de exigem

um mergulho no processo criativo, pois no primeiro caso, envolve uma incursão pelos

paradigmas corporais e conceituais.

O treinamento como práxis pode levar a um caminho de autossuperação,

ajudando o artista cênico a lidar com um excesso de ecletismo a seu dispor,

orientando-o a um olhar profundo para si, assim como pode não ajudá-lo em

absolutamente nada! E quanto a isso, vejo ainda a validade deste trabalho, porque se

investigo algo que toca o indivíduo, quer dizer que o resultado jamais poderá ser igual

para todos, aí reside também a riqueza do trabalho criativo, em possibilitar a

heterogeneidade de vozes e nenhuma obrigatoriedade de procedimentos.

Já o treinamento como poiesis possibilitou uma liberação do corpo e da mente,

a afastar o sujeito das atitudes e comportamentos mecanizados socialmente e

cotidianamente, trazendo-o para um campo fértil de possibilidades, defrontando-o

como ser criativo. Nesse ponto, a técnica indiana não se encontra presente apenas

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na forma, mas na maneira de propor as práticas, uma abordagem que leva em

consideração a expressão psicofísica.

Quando comecei a pesquisar as possíveis relações entre o yoga e as artes da

cena, eu tinha a impressão de que, enquanto no primeiro encontrava um equilíbrio e

uma força a partir dos asanas ou em uma maneira como a minha mente se

comportava, no palco e no treinamento às vezes não percebia o mesmo equilíbrio, a

mesma precisão, porque a cena tem uma dinâmica diferente, o trabalho corporal

envolve pulos, giros, paradas, queda e recuperação, expressividade e comunicação

com o público.

Partindo do yoga para a cena, eu me perguntava como a meditação poderia

ajudar a transportar qualidades cênicas? Não era só uma questão de imersão no fazer,

percebi que tinha a ver com um treino integrado do corpo com a mente.

A partir dos laboratórios com praticantes de yoga, percebi que os princípios de

preparação das artes da cena ajudavam a despertar um ambiente diferenciado para

o trabalho criativo. Busquei as dinâmicas do movimento, dos jogos de improvisação e

de interpretação, em busca de uma interação entre os participantes. Nas artes da

cena, essas dinâmicas possibilitam recuperar a esfera brincante da criança. E ao fazer

isso com os praticantes de yoga, percebi que houve uma leveza, gerando um campo

de integração que tanto se busca no yoga. As pessoas tinham prazer em estar ali

presentes. Havia uma atenção, uma necessidade de precisão, de manter o foco

porque havia o outro envolvido.

As práticas os mobilizaram a usar ativamente o olhar do observador treinado na

meditação para fora de si mesmos. Essa contemplação do que está fora foi capaz de

gerar um impulso interno para que eles criassem, expresso por meio de um asana, de

um gesto, de algo muito simples, como a linguagem gestual para interpretar a

experiência vivenciada.

Ao tatear esses dois campos, percebi que minha busca não era uma via de mão

única, ou seja, como a cena se beneficia das práticas de autoaperfeiçoamento? Mas

era uma via de mão dupla, algo que se beneficia mutuamente. E ao fazer isso comecei

a trazer uma dimensão interpretativa na prática dos asanas. Produzimos imagens com

nosso corpo, como yantras, imagens que estão reverberando não só dentro de nós,

mas reverberam no espaço. E esse campo é tanto possível na ação do yogue quanto

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no do artista da cena. Trabalhar com grupos dentro e fora da universidade, com e sem

formação artística, possibilitou ampliar a discussão, contrastando diferentes

perspectivas sobre o treinamento, demonstrando que este trabalho não se restringe

ao campo de atuação das artes da cena, ao abranger valores de autoaperfeiçoamento

universais.

Para mim a questão mais importante deste trabalho foi levar os sujeitos a se

confrontar consigo mesmo, com a maneira como está habituado a fazer alguma coisa,

sua percepção sobre isso e agregar a sua experiência, não técnicas, mas escolhas.

A técnica quando imbuída de valor para o sujeito permite um nível de abertura no qual

passa a ser possível experienciar o treinamento psicofísico.

Por fim, uma outra reflexão que esta tese permitiu realizar foi a relação do artista

da cena com o seu fazer, avaliando como a aproximação com a técnica e o

treinamento vindos de tradições orientais permitem conduzir um modo de olhar para

a arte e a vida de maneira potente e transformadora.

Semelhante à longa caminhada que a imersão nessas práticas exige, percebo

que a pesquisa não se encerrou após os laboratórios, pois as reflexões após essas

experiências apontaram para a necessidade de amadurecer cada vez mais esse

trabalho, assim como levou ao encontro de uma rede de pesquisadores/artistas

cênicos que cultivam interesses semelhantes a partir do treinamento psicofísico e da

perspectiva intercultural, em busca de repensar ações na contemporaneidade e

transformar os sujeitos frente a arte e a vida. Esse caminho se mostra promissor, à

medida em que se percebe a abertura para o tecer de uma longa jornada de diálogos,

reflexões e ações, disponíveis à abertura e a contribuições.

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201

ANEXOS

Anexo 1: Questionário

Questionário

Este questionário tem o objetivo de coletar as percepções e opiniões dos alunos da

disciplina AD724 – Artes Corporais do Oriente I, acerca das atividades vivenciadas na

mesma, para o desenvolvimento da pesquisa que ora desenvolvo. Caso venha a

utilizar trechos de seu depoimento no texto de tese, sua identidade será preservada

mediante o uso de nomes fictícios. As suas respostas serão valiosas para o

desenvolvimento desta pesquisa.

1. Nome: ________________________________________________________

2. Idade: _________

3. Curso ao qual está vinculado e ano de ingresso:

____________________________

4. Já havia algum conhecimento a respeito das artes indianas?

Sim ( ) Não ( )

5. Que tipo de informações e/ou impressões tinha antes das nossas aulas?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

6. Pratica dança ou outra atividade corporal? Sim ( ) Não ( )

Há quanto tempo? ____________________________

7. Diante do aprendizado de uma técnica corporal nova como você se sente?

(Confortável, desconfortável, curioso, não sabe...). Por quê?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

8. O que você entende por técnica e qual a função da mesma para o seu trabalho

artístico?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

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202

9. Durante nossos primeiros encontros, as aulas dividiram-se em três etapas:

primeiramente realizou-se um trabalho de alongamento e aquecimento;

posteriormente foram apresentados exercícios denominados adavus, que tinham

ênfase na batida dos pés sobre o chão e no uso coordenado dos gestuais das mãos

(mudras); por último, vivenciou-se exercícios de isolamento, isto é, de percepção e

domínio dos movimentos dos olhos, das sobrancelhas, da cabeça, do pescoço etc.

A – Quais foram suas impressões e sensações da 1ª parte de aula (alongamento e

aquecimento)?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

B- Quais foram suas impressões e sensações sobre os exercícios básicos da dança

indiana, os adavus? (Fácil, difícil, interessante, desinteressante... Como você se

sentiu executando a proposta?)

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

C- Quais foram suas impressões e sensações sobre os exercícios de isolamento?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

10. Em nossas aulas também aprendemos uma coreografia composta por passos

básicos (adavus) e parte expressiva (abhinaya), que exigiu o exercício do isolamento

rítmico (uso de diferentes batidas dos pés enquanto se realizava a expressão facial e

o uso do gestual das mãos – os mudras).

A- Descreva suas impressões, sensações e principais desafios durante o aprendizado

da coreografia. (Facilidade, desânimo, as explicações foram vagas, empolgação...)

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

B- Em que medida a coreografia lhe auxiliou a compreender melhor o universo da

dança indiana?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

11. Os exercícios desenvolvidos durante as aulas lhe auxiliaram nas suas outras

atividades (extracurriculares ou acadêmicas)?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

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203

12. Quais dentre os elementos trabalhados nas aulas (textos, adavus, mudras,

imagens, mitos, parte expressiva etc.) lhe parecem mais interessantes em termos de

apropriação criativa? Por quê?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

13. Na Índia, assim como em outras culturas de tradição oral, as danças são

consideradas sagradas, devido a sua relação com os rituais e festejos de celebração

da vida, dos ciclos da natureza, da morte e do nascimento, dos mitos seculares. Em

sua opinião, qual a relevância de se estudar essas danças no contexto da

universidade? Em que medida elas acrescentam ou não elementos essenciais a sua

formação artística?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

14. Para o trabalho criativo que você elaborou como conclusão do curso, quais

aspectos da aula mais contribuíram para essa realização? Quais tipos de dificuldades

você enfrentou?

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

15. Por favor, deixe alguma sugestão que possa contribuir para a melhoria do

aprendizado que você teve a partir de nossas aulas. (Críticas, opiniões, impressões

são todas bem-vindas nesse momento!)

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

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Anexo 2: Termo de consentimento livre e esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado(a) a participar como voluntário(a) em uma pesquisa. Leia atentamente as informações que se seguem. Após ser esclarecido(a) sobre as informações, e no caso de você aceitar fazer parte deste estudo, assine, ao final, as duas vias deste documento. Uma delas é sua e a outra é da pesquisadora responsável. NOME DA PESQUISA: Corpo, Gesto e Meditação: práticas de autoaperfeiçoamento na formação do artista da cena PESQUISADORA RESPONSÁVEL: Joana Pinto Wildhagen CONTATO: [email protected] AGÊNCIA DE FOMENTO: CAPES OBJETIVO: Desenvolver uma reflexão crítica e criativa sobre os mecanismos de apropriação da dança contemporânea por meio do diálogo com as artes da tradição indiana no contexto do ensino-aprendizagem brasileiro. PROCEDIMENTOS DO ESTUDO: Se concordar em participar da pesquisa, você participará de aulas ministradas pela pesquisadora, incluindo exercícios técnicos da dança bharatanatyam, que poderão ser oportunamente registrados em mídia fotográfica ou videográfica. É possível que alguma dessas mídias venham a ser utilizadas na tese e em futuras publicações relacionadas à pesquisa da autora. Ciente disso, você assinará o termo específico para autorização do uso de imagem. Depoimentos poderão ser colhidos e citados na tese, assegurando-se a confidencialidade dos participantes. CONFIDENCIALIDADE DA PESQUISA: Sua privacidade será assegurada mediante o uso de siglas fictícias nos casos de citação de depoimentos na tese. No caso de uso consentido de imagem, o participante assinará termo específico concordando com tal uso. Somente serão divulgados dados diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa. Afirmo que aceitei participar por minha própria vontade, sem receber qualquer incentivo financeiro ou ter qualquer ônus e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa. Fui informado(a) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo. Atesto recebimento de uma cópia assinada deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Campinas, ___/___/_______ Assinatura do Participante: ________________________________________________ Assinatura do Pesquisador Responsável: ____________________________________

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Anexo 3: Termo de autorização para uso de imagem

TERMO DE AUTORIZAÇÃO PARA USO DE IMAGEM

Pela presente, eu, __________________________________________________, inscrito(a) no CPF nº ________________________, residente à rua/avenida_________________________________________________, autorizo a utilização de minhas imagens (fotografia e vídeo) na tese de doutorado Integrando Corpo, Gesto e Meditação: práticas de autoaperfeiçoamento na formação do artista da cena, e na possível publicação da mesma em livro, desenvolvida pela pesquisadora Joana Pinto Wildhagen, sob a orientação da Profa. Dra. Marília Vieira Soares, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas.

Data e Local: ____________________________

___________________________

Assinatura

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Anexo 4: Vídeo dos laboratórios de prática

Vídeo contendo uma compilação dos cinco laboratórios que integraram a

pesquisa de campo desta tese.

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GLOSSÁRIO

abhinaya: aspecto expressivo na dança e no teatro hindu.

Abhinaya Darpana: obra clássica que lida com o gestual da arte de natya.

adavus: combinação de unidades estruturais em algumas danças da Índia. O termo

provavelmente vem da língua tâmil, aidavu, que significa “combinação” (cf. KOTHARI,

2001).

allaripu: tema coreográfico introdutório da bharatanatyam.

anga: etapas de uma prática ou divisão feita na dança para o estudo das 7 grandes

partes do corpo (cabeça, mãos, pescoço, tórax, abdômen, quadril, pernas).

aramandhi: posição de base da dança na qual os joelhos ficam semi-flexionados.

asana: exercício psicofísico; posição corporal para conservar o corpo saudável e

liberar a mente para a meditação.

ashtapadi: tema coreográfico amoroso da bharatanatyam.

Ayurveda: medicina milenar indiana.

bhava ou bhavam: disposição emocional.

bharathanatyam: dança indiana originada em Tamil Nadu.

bindu: ponto-limite além do qual nada, matéria ou energia, pode ser contraído ou

condensado.

chakra: roda, centro nervoso-energético localizado em diferentes partes do corpo que

regula o prana (energia vital) e carrega diferentes qualidades de memória

antepassada.

chuzhippu: movimentação circular do tronco e das mãos nas danças cênicas indianas

kathakali e mohiniyattam.

darshanas: as seis correntes filosóficas hindus. São elas: Nyaya, Vaisheshika,

Samkhya, Karma, Yoga, Mimansa e Vedanta.

devadasis: dançarinas e servas dos templos.

dharana: concentração.

dharma: conduta espiritual; há pelo menos 3 sentidos de acordo com o hinduísmo:

estado da natureza como ela é; leis que regem a natureza; conduta correta individual

e coletiva.

dhyana: meditação.

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drishti bhedas: exercícios de movimentação do globo ocular conforme o Nāṭya Śāstra.

Gita Govinda: obra poética indiana, atribuída ao poeta Jayadeva Goswami, no século

XII, que narra o eterno amor entre a humana Radha e a deidade Krishna.

hastas: gestual das mãos estilizados.

jathiswaram: tema coreográfico com jogo de sílabas e passos da bharatanatyam.

javali: tema coreográfico amoroso da bharatanatyam.

kata: célula da linguagem do teatro japonês kabuki.

kannu sadhakam: movimento do globo ocular em diferentes direções no treino de

kathakali.

kavya: estilo literário hindu do século XVII adotado por poetas da corte.

keerthanams: tema coreográfico devocional da bharatanatyam.

kriyas: práticas purificatórias.

kundalini: literalmente significa “enrolada como uma cobra”; é a energia que transita

entre os chakras na concepção dos tantras.

Kuchipudi: dança indiana originada em Andhra Pradesh.

mooladhara: centro de energia situado próximo à base da coluna e aos órgãos

genitais.

Mahābhārata: obra épica sânscrita, atribuída ao poeta Vyasa.

mallari: tema coreográfico introdutório da bharatanatyam.

natya: formas artísticas compostas por dança, teatro, ritmo e canto na Índia.

Nāṭya Śāstra: tratado clássico de artes da cena indiana, atribuído a Bharata.

navarasa: nove expressões dos estados emocionais nas danças cênicas indianas.

niyamas: princípios de autopurificação pela disciplina.

nritta: dança abstrata.

nritya: dança abstrata e interpretada.

odissi: dança indiana originada em Orissa.

padam: tema coreográfico interpretativo da bharatanatyam.

pranayama: trabalho sobre a respiração.

pratyahara: emancipação da mente pelos sentidos e de objetos exteriores.

Purânica (literatura): obras religiosas hindus escritas para serem memorizadas.

pushpanjali: tema coreográfico introdutório da bharatanatyam.

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raga ou ragam: sistema de modos musicais da música clássica indiana.

Rāmāyana: obra épica sânscrita (ou itihāsas) atribuída ao poeta Valkimi, que narra a

vida da deidade Rāmā.

rasa: estética do belo na arte clássica indiana; do sânscrito fluidos orgânicos.

Rāsa Līla: história tradicional indiana que compõe o último capítulo do Bhāgavata

Pūrana (uma das escrituras sagradas hindus) cuja trama gira em torno do amor

devocional das gōpis (vaqueiras) pela deidade Krishna, celebrado em uma dança

circular região rural de Vrindāvana, na Índia.

sadhana: exercício espiritual.

samadhi: estado máximo de supraconsciência alcançado através da meditação

profunda.

Samkhya: corrente filosófica hindu que especula sobre a origem do universo e da vida.

samyama: integração das três práticas de autoaperfeiçoamento descritas por

Patañjali, nos Yoga Sutras. São elas: concentração, meditação e iluminação da

consciência.

shabdam: tema coreográfico devocional da bharatanatyam.

tala ou talam: conceito rítmico na música e na dança da tradição indiana.

tantras: ensinamentos de práticas místicas.

tapas: fogo espiritual, meditação.

thodayam: tema coreográfico introdutório da bharatanatyam.

upanishad: discussão sobre os vedas.

varnam: tema coreográfico complexo da bharatanatyam.

vedas: conjunto de quatro obras, compostas em sânscrito.

yamas: princípios morais a serem cultivados.

yantra: diagrama místico.

yoga: ciência que lida com a integração do ser consigo mesmo, com a natureza e com

o cosmos.

yogue: aquele que pratica yoga.