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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES HELENA CARDOSO LIXA O CAOS QUE SUBMERGE ÁGUAS SILENCIOSAS LAÇOS POÉTICOS ENTRE A CIDADE E O ARTISTA DA CENA CAMPINAS 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

HELENA CARDOSO LIXA

O CAOS QUE SUBMERGE ÁGUAS SILENCIOSAS –

LAÇOS POÉTICOS ENTRE A CIDADE E O ARTISTA DA CENA

CAMPINAS

2017

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HELENA CARDOSO LIXA

O CAOS QUE SUBMERGE ÁGUAS SILENCIOSAS –

LAÇOS POÉTICOS ENTRE A CIDADE E O ARTISTA DA CENA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena na Área de Concentração Teatro, Dança e Performance

ORIENTADORA: SILVIA MARIA GERALDI

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA HELENA CARDOSO LIXA E ORIENTADA PELA

PROFA. DRA. SILVIA MARIA GERALDI.

CAMPINAS

2017

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

HELENA CARDOSO LIXA

ORIENTADORA: PROFA. DRA. SILVIA MARIA GERALDI

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. SILVIA MARIA GERALDI

2. PROF. DR. VINÍCIUS TORRES MACHADO

3. PROFA. DRA. ANA MARIA RODRIGUEZ COSTAS

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca

examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica da aluno(a).

DATA DA DEFESA: 25.07.2017

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AGRADECIMENTOS

Esta é uma jornada coletiva. Tenho a sorte de navegar por esses e outros rios

sempre muito bem acompanhada e plena de amor. As palavras dessa página

não comportam toda a gratidão que carrego comigo.

À professora doutora Silvia Maria Geraldi, minha orientadora, pelo cuidado com

que me amparou por todos os meandros do caminho.

À Mariana Muniz, pela generosidade com que se abriu a este projeto e pela

inspiradora trajetória.

Ao Victor Nóvoa, companheiro de vida e de criação, que me ilumina nas

tormentas e sempre abre caminhos belos e amplos para irmos juntos.

À Ana Vitória Bella, por estar junto sempre, na vida e na poesia.

A todos os parceiros de criação dos espetáculos da A Digna, da direção ao

transporte, da produção ao design. Só materializamos nossos desejos com a

força plena de nossas mãos dadas.

A todos os artistas que criaram Parangolés, Penetráveis e Nucleares na rua, pela

tradução em dança da genialidade de Hélio Oiticica.

À Vertente Design, que me ajuda a dar forma à travessia pelas páginas desse

diário.

Aos colegas do grupo de pesquisa Prática como pesquisa do Instituto de Artes

da UNICAMP, pelos momentos de partilha.

Às professoras doutoras Ana Terra e Ana Cristina Colla, pela leitura atenta que

me permitiu retraçar rotas no meio do desbravamento.

À minha família e amigos, pela força de seguir caminhando.

Aos tantos companheiros de resistência artística espalhados por São Paulo,

Brasil e mundo, sigamos juntos com a força do fazer coletivo nessas e outras

paragens.

À cidade de São Paulo, por ser esse caleidoscópio que me maravilha

diariamente.

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RESUMO

Utilizando-se de diários de bordo, entrevistas e memórias das artistas Mariana

Muniz e Helena Cardoso, a pesquisa refaz alguns caminhos da construção das

obras Trilogia Oiticica ("Parangolés", "Nucleares" e "Penetráveis") da Cia

Mariana Muniz de Teatro e Dança; e Entre Vãos, do coletivo teatral A Digna,

para identificar quais são as relações éticas e estéticas travadas com a cidade

de São Paulo, surgidas em ambos os processos. Por analisar trabalhos que se

relacionam diretamente com a capital paulistana, o foco da pesquisa é apontar

as proposições de reflexão e reestruturação surgidas em seu envolvimento

artístico com a cidade, em três âmbitos: na relação das criadoras com sua

própria produção; nos diálogos entre artistas e espectadores; e nas relações

cidade-cidadão estabelecidas tanto pelas artistas quanto pelo público.

PALAVRAS-CHAVE: artes da cena; corpo-cidade; artista-espectador; Trilogia

Oiticica; Entre Vãos

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ABSTRACT

Making use of journals, interviews and memories of two artists, Mariana Muniz

and Helena Cardoso, the research retraces the creative processes of the Oiticica

Trilogy (‘Parangolés’, ‘Nucleares’ e ‘Penetráveis’) by Mariana Muniz Theatre and

Dance Company and Entre Vãos, by A Digna Theatre Company, to identify the

ethical and aesthetic relations with the city of São Paulo proposed by both

productions. As these performances are strictly linked to the daily life of the city,

the focus of this research is to highlight the inquiries arisen in their artistic

involvement with São Paulo, in three scopes: in the relationship of both artists

with their own productions; in their dialogue with the audience; and in the city-

citizen relations established by artists and spectators.

KEYWORDS: performing arts; body-city; performer-audience; Oiticica Trilogy;

Entre Vãos

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SUMÁRIO

Introdução: Para ler antes de navegar..........................................................10

Capítulo 1: Rios submersos no caos.............................................................18

Dia 1: Adentrando São Paulo-terreno................................................18

Dia 2: Mananciais de resistência........................................................21

Dia 3: Apropriação da topografia........................................................23

Dia 4: Composição geoquímica das águas........................................26

Dia 5: Micropartículas.........................................................................28

Dia 6: Viagem ao centro – micromovimentos.....................................31

Dia 7: Ficções insulares – microcosmos............................................35

Dia 8: Entre-meios – microlabirintos urbanos....................................40

Capítulo 2: A Trilogia Oiticica........................................................................45

Dia 9: Carta geográfica.......................................................................45

Dia 10: Norte cartográfico - Panorama Hélio Oiticica.........................49

Dia 11: Mergulhos internos, ancorar (-se)..........................................49

Dia 12: Medo, barragem de microcosmos..........................................56

Dia 13: Campos de desconstrução.....................................................62

Capítulo 3: Entre Vãos..................................................................................69

Dia 14: Escavar concreto, jorrar vida.................................................69

Dia 15: Uma ponte entre o dentro e o fora.........................................78

Dia 16: Ilhas de memória....................................................................86

Dia 17: Labirintos (i)materiais.............................................................94

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Dia 18: Sobre convívio e vãos .......................................................100

Capítulo 4: Rede hidrográfica...................................................................106

Dia 19: A infiltração, o mofo, a rachadura......................................106

Dia 20: Tentativas de impermeabilização......................................113

Dia 21: Ruídos do silêncio aparente..............................................116

Referências..............................................................................................121

Apêndices................................................................................................124

Anexos.....................................................................................................128

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Introdução: Para ler antes de navegar

Estas páginas são um diário de bordo ficcional, fruto de meu fazer artístico,

observação e tentativa de compreensão de duas experiências artísticas que se

dispõem a dialogar com as idiossincrasias da cidade de São Paulo. Todo o

conteúdo destas páginas foi formulado em consonância com a criação de sua

forma, que não está presente nesta versão por exigências acadêmicas. Como

acredito que forma e conteúdo são indissociáveis tanto na obra de arte quanto

numa obra de reflexão sobre um fazer artístico, sugiro ao leitor que faça a leitura

no formato disponibilizado em meu site.1

De tantas obras cênicas produzidas em atrito com o cotidiano paulistano, escolhi

duas a partir de critérios subjetivos, os quais descrevo a seguir.

Trilogia Oiticica, conjunto de três espetáculos da Cia. Mariana Muniz de Teatro

e Dança (Parangolés, Penetráveis e Nucleares na rua)2, marca a carreira de

quatro décadas da atriz e bailarina Mariana Muniz como um momento de criação

coletiva (em contraste aos habituais solos da artista) e de experimentação com

o espaço urbano e o público passante. Parangolés (2008) foi inspirado nas obras

de Hélio Oiticica que levavam o mesmo nome, vestimentas (capas, estandartes,

bandeiras) que ganhavam vida a partir da movimentação do corpo dançante que

as vestiam. A criação de Penetráveis (2010) também parte da série de obras do

artista com o mesmo nome e explora a autonomia das formas constituintes do

espaço urbano, materializadas em objetos como tábuas de madeira e tijolos. Já

Nucleares na Rua (2011)3 dá enfoque às dinâmicas corporais pautadas pelo

samba em justaposição com as ruas da cidade como um espaço de criação de

novas maneiras de estar no mundo. Mariana sempre foi, para mim, referência de

um corpo cênico híbrido entre dança e teatro e oferecer minha reflexão

1 A versão defendida e aprovada encontra-se na íntegra em http://adigna.com/assets/o_caos_que_submerge_aguas_silenciosas.pdf 2 As fichas técnicas dos espetáculos da Trilogia Oiticica se encontram no apêndice. 3 Em 2009, a companhia criou o espetáculo Nucleares, concebido para ser apresentado em

espaços cênicos. O espetáculo foi revisitado em 2011 e passou a chamar-se Nucleares na Rua, sob a influência das experimentações da companhia no espaço urbano. Como a segunda versão está localizada no tempo depois da criação de Penetráveis, referencio este trabalho como o terceiro da Trilogia Oiticica apenas por uma questão cronológica.

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acadêmica sobre parte de sua obra dá-se aqui como um tributo à sua trajetória

artística.

Entre Vãos é uma experiência cênica de meu coletivo teatral, A Digna4, e uma

das obras de nossa Trilogia do Despejo5, resultado da nossa pesquisa

continuada sobre os efeitos da gentrificação na vida de cada cidadão e na cidade

de São Paulo como um todo. Trata-se de uma obra “pulverizada”, pois tem início

simultaneamente em três endereços de bairros centrais de São Paulo (Campos

Elíseos, Santa Cecília e Anhangabaú) e se encerra com um ato final que reúne

todos os espectadores e artistas envolvidos na Sé, marco zero da fundação da

cidade. O enfrentamento com o espaço urbano – tanto em âmbito privado quanto

público – proposto pela obra nos levou ao desenvolvimento de procedimentos

relacionais que nos ajudam a construir o acontecimento cênico com a

contribuição ativa do espectador e do espaço ocupado. A reflexão feita aqui é

essencial para a continuidade da elaboração de tais procedimentos, que já

possuem desdobramentos nas nossas ações artísticas subsequentes à criação

do espetáculo.

Eu escrevo um DIÁRIO de bordo.

Escrever um DIÁRIO a partir de registros de processos de criação é como me

encerrar numa câmara de espelhos, onde vemos o reflexo do reflexo do reflexo

do reflexo...

4 O núcleo artístico do coletivo é composto por Ana Vitória Bella, Victor Nóvoa e por mim. Entro

em detalhes sobre A Digna no Capítulo 3: Entre Vãos.

5 A Trilogia do Despejo é composta pelos espetáculos Condomínio Nova Era (2014), Entre Vãos

(2016) e uma terceira obra em atual fase de pesquisa, com estreia prevista para 2018. As fichas técnicas de cada espetáculo da trilogia se encontram no apêndice.

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Um diário de bordo volta atrás, como sugere o significado no latim, mas esta

volta é uma tradução e, por isso mesmo, uma recriação. No pensar com

detenção e mais de uma vez, há várias mudanças de direção na tentativa de

registrar as memórias e sensações de um processo vivido. Uma memória não é

seu registro, como também não é o pensamento gerado a partir de seu registro.

Mas a tentativa de repercutir-se, de transmitir-se é, sobretudo, um ato de

coragem; é impulsionar a roda da criação; é ampliar as possibilidades da criação

primeira; é compreender que gerar arte é uma espiral constante de busca,

achados, desencontros, sensações, conexões.

O desejo do presente DIÁRIO é a recriação dos processos de concepção de

ambas as obras, a partir de memórias e impressões pessoais minhas e de

Mariana Muniz. Todo o conteúdo aqui presente parte de diários de bordo,

entrevistas, críticas e matérias na imprensa, em composição com os imaginários

individuais e coletivo, conforme sugere Sylvie Fortin (2009) em suas reflexões

sobre etnografia e autoetnografia. Memória esta composta não simplesmente

Fig. 1 - Verbete do dicionário Priberam online.

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Fig.2 – Ancient courses. Mississipi river meander belt. Mapa de Harold Fisk, 1944.

por lembranças, mas também pela corporeidade de cada artista, suas sensações

e emoções sobre o que foi vivido.

O mapeamento de Trilogia Oiticica construiremos a partir do olhar de Mariana

Muniz, e o de Entre Vãos se dará pelas minhas reflexões e memórias pessoais.

Quando se mapeia um rio, pode-se considerar os períodos de cheia, de

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estiagem, as mudanças no relevo, todos os fatores que ocasionam alterações

em seu percurso ou volume, e nosso mapa ficaria próximo a este:

Apesar de me sentir atraída pela ideia de transformar este DIÁRIO em um

resultado estético próximo ao da imagem, intuo que me faltariam páginas para

descrever todos os meandros contemplados nele. Sugiro então que fiquemos

com apenas uma das vozes que compõem cada um dos trabalhos, não cabendo

aqui o esmiuçamento de impressões e memórias de outros tantos artistas

envolvidos nos dois projetos – nosso mapa final pode não resultar tão colorido,

mas não por isso será menos rico em detalhes. Há, contudo, a inserção de

olhares de espectadores em breves momentos, na tentativa de contemplar

ambos os lados da relação artista-espectador.

Este DIÁRIO foi inicialmente imaginado como o resultado de um cotejo entre dois

diários de bordo reais: um escrito por mim durante o processo de criação de

Entre Vãos e outro escrito por Mariana Muniz no ano de 2015, quando a convidei

para colaborar com esta pesquisa. O belo conteúdo da escrita de Mariana me

abriu diversos caminhos de escrita, que tornariam possíveis muitas pesquisas

em uma. O foco na relação entre artista e cidade, no entanto, fez necessária uma

reprogramação de rota. Como se tratava de um momento de recolhimento de

Mariana, de retomada de sua criação de solos após o período de criação coletiva

no espaço urbano, sua relação com a cidade pouco aparecia em seu caderno.

Foco reajustado, mantive seu caderno como uma preciosa referência, mas

ampliei as fontes de acesso a suas memórias de Trilogia Oiticica.

Convido você para uma jornada adentro deste DIÁRIO. Flexibilidade é mote para

o nosso navegar, pois nos embrenharemos no solo pantanoso da prática, região

amálgama entre o que é planejado pelo artista e imprevistos de toda a ordem. A

prática é, afinal, “um espaço de instabilidade que funciona como ponto de fuga

frente ao qual o sujeito se desconhece, fica em suspensão, se reinventa com a

possibilidade do imprevisto” (CORNAGO, 2015, p.106). Guardemos essas

palavras de Óscar Cornago em nosso corpo durante o trajeto de leitura. Ou

melhor, gravemos em nossos ouvidos: “Uma prática implica atravessar este

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espaço de instabilidade”. Que Cornago siga nos despertando para evitarmos o

risco de petrificar nossos achados como única verdade absoluta.

É justamente deste terreno de instabilidade que trata este DIÁRIO. São as

incertezas do processo que geram as questões que levam à ressignificação de

cada artista e sua obra. Em Trilogia Oiticica e Entre Vãos, vemos proposições

de relação direta com o espaço público que geram éticas de trabalho próprias,

assim como a aplicação prática dessas éticas possui resultados estéticos

particulares. Em nossa jornada, nos guiaremos pela seguinte pergunta:

Quais são as relações ético-estéticas entre artistas e cidade propostas

por essas duas obras e quais são seus desdobramentos?

São Paulo é o terreno onde se inscrevem Trilogia Oiticica e Entre Vãos. Talvez

possa o leitor reconhecer outras cidades nas imagens que saltam destas

páginas, já que muitas das características urbanas que afetam ambos os

trabalhos também compõem outras paisagens. A cidade aparece neste DIÁRIO

pela tradução de meu olhar subjetivo, que não pretende jamais tornar exclusivas

de São Paulo as singularidades aqui apresentadas. Que o retrato de nosso

terreno sirva de espelho para o leitor que queira enxergar-se nele, mesmo

habitando outras paragens.

A cidade de São Paulo está construída sobre uma extensa rede hídrica e

atualmente sufoca mais de trezentos rios soterrados sob o concreto. Muitas das

Fig. 3 - Verbete ficcional de autoria própria.

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nascentes não são sequer aproveitadas pela rede de abastecimento, mas

resistem em seus cursos subterrâneos, cavando a terra, alheios ao crescimento

e “desenvolvimento” da cidade. Por cima delas, várias camadas de concreto

sustentam vias expressas e arranha-céus, gerados e mantidos por sujeitos

movidos a desempenho e produção. São Paulo gera dinheiro e consumo sete

dias na semana, vinte e quatro horas por dia; sua produção se traduz sobretudo

em desigualdade: miséria e ostentação estampados em muros, grades, câmeras

de vigilância, cobertores na calçada, furtos, vitrines iluminadas, “nóias”,

prostituição, canteiros de obras, fome, carros importados, barracos. E o ritmo

impresso na alma paulistana faz seu povo correr determinado de ponto a ponto,

sem parada para a reflexão ou a contemplação. A pluralidade de São Paulo

contém belezas para além das que o dinheiro produz e pode comprar. A

diversidade de seus cidadãos, suas infinitas vozes, cores, cabelos, sons, gostos

e maneiras de viver fazem de São Paulo um caos de infinitas possiblidades. Há

que se pausar e respirar a beleza da heterogeneidade, apreciar cada um de seus

sotaques, abrir espaços de convívio entre os diferentes, abrir-se para o Outro.

Entre Vãos e Trilogia Oiticica aparecem aqui como dois leitos de rio subterrâneos

que insistem em correr sob a megalópole sem pausa e que oferecem territórios

de convívio: duas propostas cênicas que jogam com a relação direta com o

espectador, com a materialidade dos corpos e dos espaços, com a superposição

de signos, com a sugestão de relações extra cotidianas com o espaço público.

São tentativas de vazar o pensamento da alta produtividade, de desviar o olhar

fixo do passante e convidá-lo a uma outra relação com São Paulo, um outro

respirar, um pulsar em outro tempo-ritmo. São obras que vivem (para) (com) (na)

cidade.

Comecemos então nossa navegação nesses dois rios subterrâneos. Lembro que

os registros deste DIÁRIO podem variar em estilo, ritmo ou estrutura. As

mudanças se dão como variações no relevo por onde passam os rios; se

mudamos os instrumentos de navegação é apenas para aproveitarmos melhor

a viagem. Boias e salva-vidas serão oferecidos ao longo do caminho em forma

de imagens, notas ou janelas – nossos percursos escondem meandros que

valem ser visitados com a ajuda desses instrumentos. Recomendo, em especial,

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as paragens em sites e vídeos localizados ao longo do texto, pois ajudarão na

concretização de nossa paisagem.

Que comece nossa boa viagem!

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Capítulo 1: Rios submersos no caos

Dia 1: Adentrando São Paulo-terreno

Imagine (ou relembre).

Estar imerso nos formigueiros humanos da Ladeira Porto Geral num sábado de

manhã, ou da estação de metrô da Sé numa sexta-feira às 18 horas. Ou estar

estagnado dentro de um carro, partícula mínima da longa serpente de fogo que

se estende pela Marginal Pinheiros à noite em direção ao Morumbi.

Do que seu corpo é composto neste momento?

Ansiedade.

Cansaço. Desespero.

Hiperatividade cerebral, condicionada por um jogo eletrônico ou pela barra de

rolamento da timeline do Facebook.

O cálculo dos minutos para chegar em casa. Das contas para pagar. Do tempo

que resta até a aposentadoria. Dos meses até as próximas férias.

Você sucumbe ao cansaço e se deixa dissolver em meio à massa de corpos que

o rodeia. Sua consciência se desprende dali e sobe em direção às estrelas. Sobe

rápido, sobe alto, contempla dali os milhares de ações simultâneas que

compõem São Paulo. Tudo acontece ali. São Paulo, terra das oportunidades.

Terra das possibilidades, de todas as possibilidades. O caos, como na

cosmogonia grega:

Antes de serem criados o mar, a terra e o céu, todas as coisas apresentavam um aspecto que se dava o nome de Caos – uma informe e confusa massa, mero peso morto, no qual, contudo, jaziam latentes as sementes das coisas. A terra, o mar e o ar estavam todos misturados; assim, a terra não era sólida, o mar não era líquido e o ar não era transparente (BULFINCH, 2003, p.19).

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Você olha de cima e não consegue identificar tudo o que é tão familiar para você:

o caminho para casa, as pontes e viadutos, o cheiro do rio, o barulho de buzinas

e motores. Você tem diante de si uma massa informe.

Você entra em um estado de contemplação desse caos. A multiplicidade de

cores e formas contidas nele é bela e não parece “um mero peso morto”. Ao

contrário, inspira potência em vez do oco. Confusão. Confusão? Não é desordem

que temos aqui, mas um acúmulo de vida.

Definimos o caos menos pela sua desordem do que pela velocidade infinita com que se dissipa toda a forma que nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência nem referência, sem consequência (DELEUZE; GUATTARI apud NABAIS, 2010, p.320).

Seu olhar fixo sobre essa massa começa a reconhecer cores e traços dentro da

forma, embora fugidios: no momento em que você tenta identificar uma

determinada partícula como algo que lhe possa ser familiar, ela rapidamente

some do campo de visão... ou talvez tenha mudado de forma. Você se perde em

uma brincadeira de seguir as partículas e se encanta com a fugacidade delas. É

maravilhoso observar a liberdade aparente com que se movem e como se

modificam. Um passatempo, sem dúvida, melhor que Candy Crush6.

Um grito. Alguém perdido entre tantos – na Ladeira, na Marginal ou na Sé – faz

suas moléculas se reencontrarem e sua consciência voltar para a materialidade

de tantos corpos estagnados juntos ao seu. Antes de acionar novamente o

turbilhão de ideias que lhe acompanham no trajeto, você relembra a fluidez do

caos contemplado. Um pensamento relampeja: “Se eu sou uma daquelas

partículas, quantas possibilidades de trajetos e formas contenho em mim?

Quantas possibilidades essa cidade me oferece?”

O fluxo de pessoas começa a acelerar. A massa de corpos passa a se

movimentar com mais velocidade. Olho na bolsa, para ninguém levar; no

6 Candy Crush Saga é um popular jogo de raciocínio online que tem como desafio combinar

formatos de doces semelhantes com as suas respectivas cores.

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retrovisor, atenção às motos que cruzam entre os carros; transfere o peso do

seu corpo sobre a pessoa à frente, senão não entra no próximo trem.

“O que era mesmo que eu estava pensando? ”

E você volta ao celular, às preocupações, aos desejos.

De volta à materialidade do caos paulistano.

Quando pensamos o caos de uma grande cidade, podemos encará-lo como

sinônimo de desordem e crise; problemas como a violência, a degradação

ambiental e a insuficiência dos serviços públicos são frequentemente associados

à palavra caos e podem nos levar a uma perspectiva de condenação do espaço

urbano e de vitimização de seus cidadãos que padecem por viver em meio à

“barbárie” instaurada pela erosão das relações sociais. Considero essa

perspectiva perigosa, pois pode nos convencer de que devemos nos munir de

mecanismos para a proteção de cidadãos “civilizados” em detrimento aos

direitos de outros que não se encaixam em normas; mecanismos como a

violência policial do Estado ou de corporações privadas de segurança, para

garantir a “ordem” local e privada na cidade. Outras estratégias “civilizatórias”

também são reforçadas por esse pensamento, como nos lembra Jorge Luiz

Barbosa, doutor em geografia humana:

Contra o caos combinam-se o embelezamento estratégico, a engenharia privada de segurança e as tecnologias soft de controle – a exemplo da utilização de câmeras de vídeo para registrar e vigiar o movimento de ruas e praças. Aqueles reiteram em diferentes latitudes o padrão cultural californiano. Padrão que combina a limpeza física - incluindo os corpos estranhos e rebeldes - e a indiferença humana, cujo propósito maior não é outro além de figurar uma cidade “simulacro” em oposição ao “caótico”. Assim, a imago urbis que constrói o nosso senso comum é um apanágio para um velho novo “espírito urbanístico”, sempre empenhado na reencarnação do movimento seletivo da mercadoria, no reordenamento hegemônico da propriedade privada e do valor de troca na cidade (BARBOSA, 1999, p.62-63).

Se, em contrapartida, nos permitirmos uma abordagem mais em sintonia com

nosso vislumbre anterior, de que a cidade pode ser o Caos como nos primórdios

dos tempos para os gregos, ou um virtual que contém todas as possibilidades,

podemos compreender o caos paulistano como uma potência de fertilidade

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inerente à vida urbana. A imprevisibilidade e aleatoriedade imanentes no caos

elevam a turbulência da vida urbana à condição de “fonte inesgotável” da vida,

capaz de toda e qualquer mudança. São Paulo é constituída por uma miríade de

maneiras individuais de viver e de relacionar-se com os outros e o espaço ao

redor:

[...] práticas sócio-espaciais diferenciadas e antitéticas que, em última análise, exprimem a radicalidade do conflito entre a apropriação social e a propriedade privada. Duelos entre a transgressão e a dominação social. Rumos distintos colocados em causa sob a aparência do caos, porém escritos e vividos como forma e conteúdo do espaço geográfico (BARBOSA, 1999, p.67-68).

No caos de São Paulo coexistem os diferentes mecanismos de reafirmação do

capitalismo e as resistências ao processo de mudança imposto por ele ao espaço

e aos cidadãos. Acredito que os rios que navegamos aqui são tentativas de

resistência, não propriamente no sentido de negar quaisquer mudanças, mas de

questionar como estamos mudando e que rumo estamos tomando como

cidadãos.

Dia 2: Mananciais de resistência

Considero que nós, partículas formadoras de São Paulo, somos todos

impregnados dessas visões do que é esse caos que habitamos. Mesmo que nos

coloquemos contrários ao pensamento hegemônico que define que São Paulo

deva ser a quintessência da vida pós-moderna – a sociedade 24/7, dos self-

made men, sujeitos de desempenho e produção – acabamos por absorver parte

desse pensamento e deixar que nossas práticas diárias operem a partir de suas

premissas.

Para Byung-Chul Han (2015), filósofo contemporâneo, a sociedade pós-moderna

se encontra em processo pós-disciplinar, no qual agrega à sensação de dever

trabalhar (apreendida do modelo disciplinar de sociedade), um poder infinito que

torna seu desempenho mais rápido e mais produtivo. Não obedecemos mais a

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um outro que nos força a trabalhar, nossa própria responsabilidade e iniciativa

passam a substituir os mandatos e as proibições da sociedade disciplinar.

Somos nossos próprios agressores e também vítimas a um só tempo. A

dissolução de uma instância externa que nos oprime não nos leva à liberdade,

mas faz com que liberdade e coerção coincidam:

O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência (HAN, 2015, p.30).

A violência que nós, paulistanos, carregamos conosco se materializa nos

múltiplos estímulos, informações e impulsos que recebemos e geramos

constantemente e que compõem o caos urbano. O multitasking (multitarefa),

capacidade de manter a atenção em diversos focos ao mesmo tempo, nos é

vendido como uma habilidade avançada que devemos alcançar para “darmos

conta” de tudo o que nos afeta constantemente. Para Han (2015), no entanto,

trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa é típica de animais selvagens, que

são obrigados a dividir sua atenção entre devorar a presa, vigiar a prole e o

parceiro e proteger-se de um possível ataque de um predador. As evoluções

sociais e a mudança da estrutura de atenção na sociedade pós-moderna

aproximam cada vez mais os humanos da vida selvagem. A multitarefa nos torna

incapazes de um aprofundamento contemplativo, nos levando a um estado de

hiperatenção: atenção dispersa caracterizada por rápidas mudanças de foco

entre diversas atividades, fontes informativas e processos.

Estamos, Mariana Muniz e eu, imersas neste estilo de vida pós-moderno: ambas

se desdobram entre criar, vender, escrever projetos, ensaiar, organizar e

transportar material de cena, dar aulas em diversos endereços. No entanto,

nossas escolhas éticas e estéticas sugerem um mergulho contemplativo em

cada uma das inúmeras atividades, em busca de recursos para uma quebra com

o padrão da multitarefa em nossas rotinas de trabalho, na relação com os

espectadores e no conteúdo artístico das obras que produzimos. Trilogia Oiticica

e Entre Vãos são tentativas micropolíticas de mudança do pensamento

hegemônico geradas dentro do próprio macro sistema. Nos reconhecemos como

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partes da máquina contínua de produtividade e tentamos traçar, como artistas,

linhas de fuga que permitam novas relações entre os cidadãos paulistanos.

Dia 3: Apropriação da topografia

Mas vem junho e me apunhala

vem julho e me dilacera

setembro expõe meus despojos

pelos postes da cidade

(me recomponho mais tarde,

costuro as partes, mas os intestinos

nunca mais funcionarão direito)

trecho de Poema Sujo, de Ferreira Gullar (2012)

Há pouco espaço para a contemplação nessa rotina. O sorvedouro que nos

absorve nessas atividades nos proporciona o desenvolvimento de uma certa

flexibilidade e rapidez mental, o que não deixam de ser atributos positivos e que

podem levar a uma criação artística “propensa às divagações, a saltar de um

assunto para outro, a perder o fio do relato para reencontrá-lo ao fim de

inumeráveis circunlóquios” (CALVINO, 1990, p.61). Acontece que,

paradoxalmente, a divagação mora no tédio. Se não nos permitimos ao tédio,

perdemos os “dons do escutar espreitando” definidos por Walter Benjamin citado

por Han (2015, p.34), que considero aqui essenciais a um tipo de criação que é

fruto de reflexão aprofundada sobre a sociedade. Para o filósofo coreano, a

criação artística depende da capacidade de espantar-se frente ao ser-assim das

coisas, e o espanto só se dá no demorar-se em contemplação: “No estado

contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas

[...] Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de lá para

cá e não traz nada a se manifestar”, lembra Han (2015, p.37). O demorar-se no

ato de criação de algo que escape das regras de produção em série e imediata

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que nos controlam é característica de ambos os rios navegados nesse DIÁRIO.

Trilogia Oiticica e Entre Vãos são atos de artesania, são narrativas poéticas

impregnadas que se encarregam de trabalhar com mão, olhar e alma a matéria-

prima da experiência - a sua própria e a dos outros - transformando-a num

produto sólido e único, como sugere Walter Benjamin (1994) em sua obra O

Narrador.

Observamos, na contemporaneidade, a convivência de diversos fazeres

artísticos, muitos deles impulsionados, talvez, por outro motor que não seja o

estado contemplativo. No entanto, a necessidade do demorar-se diante das

coisas à espreita do espanto impregna os dois trajetos aqui percorridos, como

um contraponto ao turbilhão de atividades impostas pelo ritmo da cidade. E em

uma realidade pobre de interrupções e intermédios, pergunto: como podemos

nos manter em ação expressiva se somos algozes de nós mesmos, imersos um

estado de constante produção?

Entre Vãos e Trilogia Oiticica são, cada um à sua maneira, trabalhos gerados a

partir desse questionamento. Ambos decorrem do espanto das artistas diante

dos contrastes flagrados no caminhar pelas ruas da cidade. Sigamos a imagem

criada por Michel de Certeau em seu livro The practice of everyday life (1984,

p.93), que sugere que uma cidade grande é um texto urbano escrito pelas

interconexões entre os inúmeros caminhos percorridos por seus habitantes: São

Paulo é uma história de múltiplos desdobramentos, um grande poema sem autor

ou leitor definidos, composto de fragmentos de trajetórias e alterações de

espaços, que só pode ser lido com a apropriação de sua topografia pelo

caminhar. Caminhar como um espaço de enunciação da cidade.

Ao caminhar pela cidade, Mariana Muniz se questiona sobre as sensações e

impressões causadas pelos ritmos, texturas e cores das ruas e dos passantes,

pela pluralidade de afetos gerados pela vida da cidade:

A diferença entre os espaços e o que essa diferença provoca no corpo, o que ela gera no meu corpo. No nosso corpo, na verdade, porque o meu trabalho com a companhia é um trabalho coletivo. O pensamento de cada um e o modo como cada um deles reage me influencia e o meu modo influenciou eles. E o modo como as pessoas caminham, olham, isso também afeta (A DANÇA..., 2015).

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O caminhar em um estado de escuta para o espaço público foi ferramenta de

trabalho para os bailarinos criadores da Trilogia Oiticica: cada artista levava para

a sala de ensaio os afetos gerados em seu corpo a partir do diálogo com a

cidade; a experimentação das ações resultantes desses afetos, em atrito com os

outros corpos dançantes, originava ações e sequências coreográficas; outras

ações e sequências também eram conquistadas nos ensaios a partir das

vivências influenciadas pelas obras de Hélio Oiticica, como a relação dos corpos

com placas retangulares de madeira e tecidos vestidos como parangolés7. A

interação com o espaço público aparece nesses três trabalhos sequenciais da

companhia como motivação, – uma vez que Hélio Oiticica propunha a relação

direta do espectador com a obra e o espaço que ela ocupa – como instrumento

de pesquisa – como explicitado acima - e como resultado estético, pois suas

apresentações ocorreram em sua maioria em praças e parques públicos.

A pesquisa continuada do coletivo teatral A Digna se baseia na criação de

histórias que enfocam o que é considerado particularidade ou singularidade de

sujeitos quaisquer, para que se possa enxergar o todo da cidade, ao mesmo

tempo em que o todo se mostre em alta definição em cada um desses indivíduos.

Dentro desse contexto, Entre Vãos começou a ser criado da necessidade de

histórias individuais que se afetavam, mas que estivessem geograficamente

apartadas na cidade. Os deslocamentos a pé feitos pelo público são a tradução

poética de nossos olhares para os espaços públicos reais que rodeiam as

histórias ficcionais do espetáculo. Os afetos entre os universos individual e

coletivo se explicitam ao caminharmos pelas ruas do centro da cidade

embebidos das relações criadas no espaço privado de cada residência8.

Convidamos o público para um olhar para a cidade que seja reflexo do

personagem assistido, na tentativa de oferecer aos espectadores conexões

supra cotidianas com a materialidade de São Paulo. Em Entre Vãos, o caminhar

também se encontra como motivação, – pois é da nossa prática como pedestres

7 Os detalhes do processo de criação da Cia Mariana Muniz a partir das obras do artista

plástico Hélio Oiticica estão em Capítulo 2: A Trilogia Oiticica.

8 Os detalhes da mecânica do espetáculo Entre Vãos estão em Capítulo 3: Entre Vãos.

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que vem nosso espanto com as diferentes camadas de interação entre os

indivíduos - mas principalmente como resultado estético.

Decidimos percorrer os leitos de dois rios de resistência submersos nesse caos

paulistano. Ambos os trabalhos propõem a relação direta com o espaço público,

que gera éticas de trabalho próprias de cada coletivo, assim como a aplicação

prática dessas éticas possui resultados estéticos particulares. Para os próximos

dias, nossas câmeras e binóculos serão ajustados para esse foco (o das

relações ético-estéticas), para tentar descrever a composição de suas águas,

mapear seus cursos e detectar os pontos onde eles conseguem infiltrar o

vertiginoso concreto paulistano.

Quais são as relações ético-estéticas entre artistas e cidade propostas

por essas duas obras e quais são seus desdobramentos?

Dia 4: Composição geoquímica das águas

Começamos o dia com uma primeira exploração geral dos trajetos de cada rio,

para tentar entender a abrangência de cada leito e as peculiaridades de suas

formações.

Nosso terreno é repleto de rios subterrâneos como os que veremos aqui:

produções cênicas que são frutos de linhas de pesquisa mantidas por artistas

interessados em travar um diálogo aberto com a cidade de São Paulo. Muitas

dessas propostas são concretizadas por meio dos programas de incentivo à

produção cultural da prefeitura da cidade. Os números gerados por essa

iniciativa são expressivos: em apenas um deles, o Programa Municipal de

Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, até sua 24ª edição em 2014

haviam sido contemplados 372 projetos de 135 núcleos artísticos (GOMES;

MELLO, 2014, p.10). O crescimento desses números tem sido exponencial ao

longo dos quinze anos desta lei, já que sua criação incentivou a conquista de

outros programas, como o Fomento à Dança, o Fomento à Periferia e o Prêmio

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uma ética de relação com a cidade,

seus espaços e seus habitantes.

produções artísticas que fogem das determinações estéticas e

temáticas do mercado do entretenimento.

Zé Renato de Teatro9. Além desses programas do município, os coletivos

culturais paulistanos também podem se inscrever nos editais do Programa de

Ação Cultural (ProAC), mantidos pela Secretaria de Estado da Cultura10.

Os dois rios que aqui percorremos têm suas nascentes nesses editais públicos:

Entre Vãos foi contemplado pela 2ª edição do Prêmio Zé Renato e A Trilogia

Oiticica foi concebida graças às 2ª e 8ª edições do Fomento à Dança e um ProAC

de Produção de Espetáculo Inédito e Temporada de Dança.

A combinação dos fatores

PESQUISA CONTINUADA VERBA PÚBLICA

gera possibilidades para

As obras que observamos neste DIÁRIO se encaixam num fazer artístico que vai

na contramão do “progresso” e do capital: são frutos de uma pesquisa artística

continuada, motivada por uma necessidade de propor brechas de comunicação

com a sociedade através de um olhar artístico; são trabalhos que são custeados

por sistemas públicos de incentivo à cultura pois não se sustentariam como um

produto comercializável, que pudesse gerar uma renda que cobrisse seu

9 A realização e pagamento dos projetos contemplados pelos programas de incentivo à Cultura

da cidade de São Paulo estão ameaçados pelo atual congelamento de 43,5% da verba destinada à Secretaria Municipal de Cultura, decretado no primeiro mês da gestão João Dória. Até o início de junho de 2017, foram assinados os contratos dos projetos contemplados pela 30ª edição do Fomento ao Teatro e da 5ª edição do Prêmio Zé Renato de Teatro, mas ainda não foram lançadas as edições de ambos os editais previstos para o primeiro semestre de 2017. As decisões da comissão de seleção da 22ª edição do Fomento à Dança foram revogadas pelo Secretário de Cultura André Sturm e esta edição foi relançada em seguida, com seu conteúdo modificado, alterando características previstas na lei 14.071/05 que garantem a manutenção de pesquisas continuadas em dança contemporânea. Os trabalhadores da Cultura seguem mobilizados para o descongelamento total da verba e pela aplicação das leis tal qual foram conquistadas.

10 São aproximadamente 44 modalidades de ProAC, entre produção e circulação de espetáculos

inéditos ou não de teatro, dança e circo, produção de festivais, manutenção de lonas de circo e acervos museológicos, entre outros. A verba destinada aos editais do ProAC tem sido anualmente reduzida, diminuindo tanto o número de projetos contemplados em cada edital como o valor cedido a cada um dos projetos.

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investimento inicial de material e trabalho; tratam-se de obras para serem

fruídas, não consumidas. O aporte de verbas públicas possibilita que os coletivos

artísticos desenvolvam um fazer (uma ética) a partir da contemplação, da

experiência e da reflexão. O resultado estético de cada trabalho, antes de

responder às expectativas de um mercado consumidor, são consequências

desse modo de produção e muitas vezes – como é o caso das obras abordadas

– um convite feito ao público para experimentar suas próprias relações cotidianas

também pelo viés contemplativo e experiencial. Um desvio da atenção

condicionada pela multitarefa inerente aos paulistanos, que leve o espectador a

experienciar o espanto em seu cotidiano, traz em si a potência de transformar a

maneira como o indivíduo constrói suas relações na cidade, um olhar estético

que carrega o germe de novas éticas. Creio que esta seja a maior vocação

destes dois trabalhos.

Dia 5: Micropartículas

São Paulo:

Uma cidade de larga extensão territorial que exige longos deslocamentos de

seus cidadãos, que cresceu privilegiando o transporte motorizado individual

sem grandes métodos ou regulamentações.

2017:

Momento em que as relações são predominantemente “fantasmagóricas”,

virtuais. A pretensa interação oferecida por ferramentas como as mídias

sociais nos leva à ilusão de uma comunicação democrática entre pessoas

com diferentes ideologias, históricos e expectativas, mas em verdade gera

espaços de acúmulo da verborragia de opiniões precipitadas sobre todo o

tipo de acontecimento social e não nos convida à reflexão sobre o outro e a

matéria de que é feito.

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A combinação desses dois fatores resulta num espaço em que o exercício da

alteridade é prática cada vez menos comum. A densidade da população de uma

grande cidade cria a possibilidade de dispersão, de circulação e de acesso: o

coletivo urbano possibilita a experiência com a alteridade e, de certa maneira,

uma dessegregação: a imprevisibilidade do espaço coletivo permite uma

criatividade maior dos processos subjetivos. No entanto, uma cidade orientada

para o carro parece mais adequada aos modos de dominação predominantes no

capitalismo contemporâneo, como o controle “ao ar livre” possibilitado por uma

comunicação quase exclusivamente virtual: a substituição da interação física

com a cidade pelos fluxos de informação que correm pelas redes de informática,

como pagamentos por cartões de crédito, transmissões ao vivo, comunicação

online, entre outros. “Creio que a anticidade privatizada se impõe quando faltam

as condições para resistência a essa forma de dominação que caracteriza as

mais recentes mutações do capitalismo” (CAIAFA, 2007, p.20-23).

Os dois rios submersos que percorremos aqui são exemplos das inúmeras

formas de resistência “minúsculas e cotidianas” que brotam em contraponto aos

processos (pós) disciplinares que estruturam nossa cidade. Sem negar ou

ignorar as relações virtuais que ensurdecem os cidadãos, Trilogia Oiticica e Entre

Vãos são experiências artísticas presenciais: ao proporem ações diretas no

espaço urbano, essas obras tratam a cidade como um território híbrido onde não

há separação entre vida cotidiana e arte. O fazer artístico nesse contexto se

apresenta como uma forma de resistência à “sociedade do espetáculo”, como

sugere o crítico de arte Nicolas Bourriaud:

A função crítica e subversiva da arte contemporânea agora se cumpre na invenção de linhas de fuga individuais ou coletivas, nessas construções provisórias e nômades com que o artista modela e difunde situações perturbadoras. Por isso a atual febre dos espaços de convívio revisitados, cadinhos onde se elaboram modos heterogêneos de socialidade (BOURRIAUD, 2009, p.44).

Como agentes de seu tempo, é atuando nas pequenas relações entre artistas,

espectadores e espaço público que as duas obras tentam sensibilizar os

cidadãos para novas trocas com o organismo vivo da cidade. Como linhas de

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fuga dos ditames da sociedade do espetáculo11, sua proposição não se basta

na representação da sociedade, mas como dispositivo de contágio, que sugere

para os cidadãos a potência de criação de novas realidades urbanas.

Sua escala é do micro: ambos os trabalhos tentam trazer à tona as micropolíticas

que regem a cidade e sua relação com a arte. Segundo o crítico teatral argentino

Jorge Dubatti (2007), as artes cênicas instauram um campo de verdades

subjetivas que pode seguir dois caminhos: ratificar o status quo e reforçar os

parâmetros da macropolítica, repetindo os discursos institucionais; ou constituir

uma zona de construção de subjetividades micropolíticas, território alternativo e

oposto à macropolítica. Dubatti determina quatro categorias da formação de

subjetividade na micropolítica teatral, com possibilidades de combinações e

hibridizações entre elas: o primeiro seria um teatro que recria a macropolítica em

escala menor, um “teatro do conformismo”, que teria como exemplo espetáculos

do circuito comercial; outro seria um teatro que cria micropolíticas

compensatórias, não confrontativas, oásis momentâneo de relaxamento e

catarse, um lugar de quebra de rotina mas não de ruptura com a macropolítica;

um terceiro tipo seria um teatro como fundação de subjetividade alternativa

confrontativa, que desafia radicalmente a macropolítica a partir de um lugar de

oposição, resistência e transformação, que provê um lugar diferente do macro e

constante no tempo, que não aspira a converter-se em uma macropolítica

alternativa; por último, um teatro beligerante “contra” a macropolítica,

subjetividade de choque com forte articulação ideológica, de visão binária e

reestabelecimento de valores e modelos, que luta pela tomada de poder, como

o teatro militante de esquerda (DUBATTI, 2007, p.162-164).

Creio que podemos definir as duas obras observadas aqui como pertencentes à

terceira categoria sugerida: espetáculos que sugerem a seu público uma outra

maneira de viver e pensar, articulada como contrapoder; janelas que se abrem

para o diálogo de múltiplas formas de ver e viver a cidade, para além das regras

da macropolítica. Cria-se neles uma rede de relações entre artista, criação,

11 O termo “sociedade do espetáculo”, cunhado pelo filósofo francês Guy Debord, é uma crítica

às relações na sociedade contemporânea estabelecidas pelo mercado e mediatizadas por

imagens.

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cidade e espectadores: o encontro artístico como potência de transmutação de

todos os envolvidos.

Podemos dizer que Trilogia Oiticica e Entre Vãos propõem relações éticas e

estéticas em três âmbitos da micropolítica. Os micromovimentos lhes guiam

na relação com o próprio corpo, para que o artista encontre em si brechas para

outras maneiras de se relacionar com o outro; na troca fluida estabelecida entre

artista e espectador são criados os microcosmos; das possibilidades de relação

entre artistas, espectadores e os espaços (privados e públicos) da cidade

surgem os microlabirintos. Os próximos dias serão de mergulho nesses

microuniversos.

Dia 6: Viagem ao centro - micromovimentos

Um olhar para dentro de si. Comecemos o dia pelo corpo.

De acordo com a biomecânica, os movimentos podem ser divididos em dois

tipos: macromovimento é de um segmento do corpo no espaço; micromovimento

é de um osso em relação a outro tido como imóvel (SANTOS, 2002, p.61).

A imaginação atuando sobre o espaço entre ossos, dentre articulações,

relaxando microtensões internas que nos mantém em pé e em movimento, micro

tensões que fazem parte da constituição de nossa massa física como a estrutura

que vemos a olho nu. Esse escrutínio pessoal permite a descoberta de outras

maneiras de mover-se, ampliando a expressividade a partir da sensação. O olhar

para dentro traz à consciência sensações físicas de pequenas partes do todo e

são essas sensações que geram o movimento.

O jogo entre recolhimento e expansão no interior do corpo, necessário nos

micromovimentos, funciona como um espelho do macrocosmo, se lembrarmos

de que a dualidade expansão-recolhimento se dá em toda nossa estrutura física

antes mesmo de nos movimentarmos, como a troca de gases ocorre em todos

os tecidos do corpo. Como define Klauss Vianna, bailarino e coreógrafo, mestre

de Mariana Muniz:

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O ritmo do universo é composto de expansão e recolhimento. Somos, também, expansão e recolhimento. Temos todos um ritmo comum e universal, e cada artista, ator ou bailarino, precisa atuar respeitando esse ritmo. [...] Essa expansão e esse recolhimento têm harmonia e são capazes de criar um movimento-resposta dentro de mim (VIANNA, 2008, p.79).

A observação desse ritmo comum interno tem por intuito a definição de um mapa

do espaço interno do corpo do artista, uma topografia dos trajetos e lugares da

energia, uma “consciência inconsciente” que permite que os movimentos

corporais se tornem os mais livres e espontâneos possíveis (GIL, 2001, p.132).

O uso da imaginação na criação desse mapa interno faz com que imagens

construídas no consciente comprometam o corpo real: ao visualizar um

micromovimento, não é um corpo imaginário que se move daquela maneira, mas

sim o corpo real (embora virtual) que executa movimentos reais (embora

microscópicos), acompanhados de sensações de peso, tensões e outras

qualidades.

Ora, ter a consciência dos movimentos internos produz dois efeitos: a consciência amplia a escala do movimento, experimentando o bailarino a sua direção, a sua velocidade e a sua energia como se se tratassem de movimentos macroscópicos; e a própria consciência muda, deixando de se manter no exterior de seu objeto para o penetrar, o desposar, impregnar-se dele: a consciência torna-se consciência do corpo, os seus movimentos enquanto movimentos de consciência adquirem as características dos movimentos corporais. Em suma, o corpo preenche a consciência com a sua plasticidade e continuidade próprias. Forma-se assim uma espécie de “corpo da consciência”: a imanência da consciência do corpo emerge à superfície da consciência e constitui doravante seu elemento essencial (GIL, 2001, p.134).

O desafio, insistentemente repetido no cotidiano, de ampliar limites internos –

físicos e subjetivos – para potencializar a comunicação artística. A criação desse

“corpo da consciência” significa entrar no âmbito das pequenas percepções: dos

movimentos do corpo, dos movimentos afetivos, cinestésicos, pequenas

percepções de espaço e tempo (GIL, 2001, p.162). O artista em estado

contemplativo de seus próprios micromovimentos se permite espantar com o

próprio microcosmos, este pedaço de universo que somos; é viver, por inteiro, o

amálgama composto por estrutura física, a consciência que é feita dessa

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estrutura, os sentimentos motrizes desse corpo e as possibilidades de interação

com o redor... e deixar-se surpreender por ele.

Como Mariana Muniz escreve sobre seu processo de treinamento e criação:

Como se fizesse uma sorte de imersão em campos em que só o espaço das articulações, um jeito de posicionar a minha cabeça-occipital, atlas, axis, em relação ao meu peito-esterno e costelas e braços – úmero, rádio e cúbito, dariam acesso? Ou como se...

Como se minha textura fosse se transformando, mudando, na medida de minha atenção flutuante, submergindo no espaço interno de costelas, coluna e vértebras e... O ser nesse corpo sem privilégios, sem facilidades, sem nome?

Como dar voz a uma forma de materialidade, meu corpo, sem esforço para vir a ser?

Que histórias, trajetórias se desenrolam a cada instante que passa, passam?

Às vezes, muitas vezes, o quê? Impressão de vida dilatada, intensa, de mais poder em cada gesto.

Isso sim faz continuar, faz não desistir de ser, de atuar, de fazer contato, buscar contato com o público, público de qualidades diversas; mais ou menos consciente do que se trata, do que se passa na cena (MUNIZ, ANEXO I, p.6).

Os bailarinos da Companhia Mariana Muniz12 mantiveram ao longo de todo o

processo de criação e apresentação dos espetáculos da Trilogia Oiticica a

prática constante da busca pelos micromovimentos internos. Durante os ensaios,

havia um primeiro momento de chegada à sala de trabalho, onde realizavam

sequências de exercícios propostos por Muniz advindos de técnicas somáticas

como Eutonia, Klauss Vianna, Feldenkrais e outras, além de práticas advindas

das artes corporais orientais praticadas pela artista, como Lian Gong. Com a

atenção desperta por essa sequência é que os artistas seguiam para

experimentações em espaços públicos ou mesmo em sala de ensaio a partir de

imagens e escritos de Hélio Oititica. A pesquisa física dos micromovimentos, dos

deslizamentos entre ossos, é o disparador para a construção de uma consciência

12 De 2007 a 2015, fizeram parte da Cia. Mariana Muniz os bailarinos Aline Bonamim, Júlia Abs,

Bárbara Faustino, Danielli Mendes, Ronaldo Silva, Talita Souza, Thais Ushirobira, Amanda Correa, Gilberto Rodrigues, Viviane Fontes, Lau Francisco, Tatiana Saltini, Maurício Brugnolo, Alice Vasconcelos e o ator Rubens Caribé.

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do corpo que gera o macromovimento e estabelece relações com outros corpos

e com o espaço.

A passagem do espaço íntimo/privado para o espaço público/coletivo se faz

presente também em Entre Vãos, porém em outro âmbito: na narrativa da

experiência cênica. Os espectadores iniciam o espetáculo na relação íntima com

apenas uma das personagens, adentrando sua residência e suas questões mais

ordinárias; o diálogo entre personagem e espectadores dispara informações

sobre seu dia-a-dia, suas memórias, desejos e expectativas; aos poucos, o

espaço físico vai trazendo pistas do contexto social daquele indivíduo, até que a

visita de uma outra personagem deflagra uma situação limite daquela vida;

movidos por tal situação, espectadores e personagens saem pelas ruas da

cidade, onde construções, passantes, pichações e fios passam a compor um

cenário maior onde personagem e espectadores estão inseridos juntos. O

espetáculo se desenvolve ao longo de um trajeto feito a pé e em transporte

público e se encerra com um ato dentro de uma estação de metrô, momento

ápice da fusão entre íntimo e público, ficção e realidade.

Para que a jornada do privado ao público aconteça para os espectadores, o

elenco teve que buscar um estado de escuta permanente. Em um primeiro

momento, partiram de um olhar para dentro do próprio corpo que permitisse abrir

espaços internos para a troca com o que estivesse ao redor. A percepção ativa

de movimentos afetivos e cinestésicos do corpo, das pequenas percepções de

espaço e tempo, como sugeridas por José Gil (2001) é elemento essencial para

que a escuta se mantenha viva em cada espetáculo: acessadas essas

qualidades internas13, a atenção dos criadores de Entre Vãos esteve, a todo

momento, na criação e manutenção de um estado de porosidade, de troca, para

que o que viesse do ambiente (luzes, cheiros, sons, temperaturas) e dos

espectadores (palavras, ações, olhares) pudesse ser o disparador da narrativa

proposta pela dramaturgia. A observação sai do campo individual, do próprio

corpo, para o relacional, conforme veremos mais adiante.

13 As qualidades da escuta relacional desenvolvida em Entre Vãos estão descritas no Capítulo

3: Entre Vãos.

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Dia 7: Ficções insulares – microcosmos

Começamos o dia num gramado nebuloso, o sol ainda não havia raiado. Fomos

jogar futebol. Algumas partes estavam iluminadas por uma luz neon, mas outras

partes ficavam no escuro. Dependendo do lado para o qual jogávamos a bola,

dava uma sensação de que a gente podia se perder ali. Quando íamos atrás de

um chute que ia longe demais, as vozes iam ficando cada vez mais distantes e

nós, sem querer, adentrávamos a escuridão, passávamos a um outro território,

um lugar mais metafísico. Ainda pisamos o mesmo campo, mas outras coisas

podem acontecer naquele espaço escuro e nebuloso.

Essa é uma sensação que me acompanha desde sempre na produção, nos ensaios: se se trata do jogo que conheço, ou se é outro jogo, que se impõe. Se a pessoa é lançada a um outro lugar que pode ter consequências imprevistas para ela. [...] O teatro é uma paixão pela qual a pessoa é tomada, não se escolhe por vocação. Se atua por obrigação, por necessidade. É algo imposto. Mas a neblina também provoca fantasmas: os nossos próprios, os dos outros, os dos outros atores, os dos atores que já assistimos, os das peças de teatro que já vimos e nos comoveram, as situações teatrais que já presenciamos e outras que reconhecemos como teatrais. E sempre a impressão de que a neblina impede de olhar para trás [...] o teatro como um gramado nebuloso onde existem as passagens, a necessidade de que algo me permita reconhecer aquele que fui, aquelas coisas que já foram pensadas. Porque senão o passado pode ser tornar algo irreconhecível, estranho. Na verdade, é um elemento da condição humana tenta em alguns momentos produzir níveis de energia que permitam conectar mundos que de outra maneira nos seriam estranhos, desconexos. O teatro, a somatória das cenas que são ignoradas, que criam traços entre si, que são desconhecidas (BARTÍS apud DUBATTI, 2007, p.93, tradução livre).14

14 Esa es una sensación que me ha acompañado siempre en la producción, en los ensayos: si

se trata del juego que conozco, o si es otro juego, que se impone. Si uno es arrojado a otro lugar que puede tener consecuencias imprevistas para uno […] El teatro es una pasión por la que uno es tomado, uno lo elige por vocación. Se actúa por obligación, por necesidad. Se impone. Pero la niebla también convoca fantasmas y el teatro siempre está poblado de fantasmas: los propios, los ajenos, los de los actores, los de los actores que uno ha visto, los de las obras que uno ha visto y que lo han conmovido, las situaciones teatrales que uno ha visto y en las que ha reconocido el teatral. Y siempre la impresión de que la niebla impide ver para atrás […] el teatro como una cancha neblinosa donde existen los cruces, la necesidad de que algo me permita reconocer a aquel que fui, aquellas cosas que uno pensó. Porque si no a veces el pasado tiene algo de irreconocible, de ajeno. A lo mejor es un elemento de la condición humana que el teatro formula, porque el teatro intenta por momentos producir niveles de energía que permitan conectar

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Este gramado onírico plantado pelo diretor teatral Ricardo Bartís nos serve de

meta-terreno para reconhecermos o solo de nossos rios submersos. Estamos

falando de obras cênicas que, mesmo estando inseridas na vida cotidiana da

cidade, criam ao mesmo tempo um mundo à parte, com suas próprias regras.

Conexões e contrastes se intercambiam e, ao mesmo tempo, unem e separam

realidade e ficção teatral. O elemento fundante da cena é a corporeidade dos

intérpretes – corpos vivos que geram a poiesis com sua própria materialidade –

que ao mesmo tempo está inserida na realidade urbana e muitas vezes extrapola

as regras que compõem a vida “real”. Essa fricção entre cena e vida é nomeada

pelo crítico teatral Jorge Dubatti de deriva extracotidiana: a cada espetáculo, o

teatro cria um regime de alteridade com outras regras, diferentes do mundo

comum e dos saberes do regime de experiência da vida diária:

Acerta Sartre quando fala do ente artístico como “microcosmos”: mundo dentro do mundo, mundo paralelo ao mundo, cuja alteridade se percebe na instauração de regras próprias e pelo necessário contraste que imediatamente ergue diante da vida cotidiana. Exibe uma diferença fundante. A poiésis é um cosmos de leis íntimas, como descreve Borges […] Ou melhor, um “caosmos”, regido por leis somente em parte inteligíveis racionalmente. O mundo poético é extracotidiano e admite deslocamentos, correlações e conexões com a ordem do metafísico, o transcendente, o sagrado. (DUBATTI, 2007, p.92, tradução livre)15

A criação desse microcosmos, além de ser em si um mundo com suas próprias

regras, cumpre também uma função mediadora entre mundos: realidade e

ficção; o passado, o presente e o futuro de cada um deles; suas ligações com

outros mundos poéticos de teatralidade ou metafísicos. A cena cria uma malha

de conexões que permite a esses mundos conhecer-se e reunir-se. E é a

corporeidade do ator que materializa essa rede de vínculos.

mundos que de otra manera nos son ajenos, inconexos. El teatro, sumatoria de escenas que se ignoran, que se hacen señas entre sí, que se desconocen. 15 Acierta Sartre cuando hable del ente artístico como “microcosmos”, mundo dentro del mundo, mundo paralelo al mundo, cuya alteridad se percibe en la instauración de reglas propias y por el necesario contraste que inmediatamente yergue frente la vida cotidiana. Exhibe una diferencia fundante. La poíesis es un cosmos de íntimas leyes, como escribe Borges […] O mejor, un “caosmos”, regido por leyes solo en parte inteligibles racionalmente. El mundo poiético es extracotidiano, y admite desplazamientos, correlaciones y conexiones con el orden metafísico, lo transcendente, lo sagrado.

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Então voltamos ao corpo do intérprete: é a partir dele que se dão as relações

que buscamos observar aqui. A presença física conecta ator e espectador em

um primeiro plano material, mas as conexões estabelecidas entre eles são

possíveis pela dupla dimensão corpo físico e corpo poético, que convivem,

dialogam, se impõem um sobre o outro. As ações físicas do intérprete não

carregam apenas uma função expressiva, nem meramente comunicativa entre

ele e o espectador. Este corpo é “um ente em si, sem para quê nem porquê, e

vale por sua função ontológica: instauração de mundo” (DUBATTI, 2007, p.101,

tradução livre). Um corpo em movimento, produtor e receptor de ações variadas

em forma e conteúdo, em ritmos, velocidades e intensidades, em cores e cheiros,

composto por ações, intenções, sensações, impulsos e energias. O corpo da

consciência, de que eu falava antes, corpo como mapa de possibilidades, terreno

atravessado por forças que pode se potencializar e intensificar na relação com o

outro – ou perder sentido e enfraquecer. São os afetos que definem o que é esse

corpo que somos e sobre o qual trabalhamos. É a capacidade de, no encontro

com outro, transformar-se ao mesmo tempo em que age como transformador;

potência para gerar a diferença de si, do outro e do espaço que ocupam. “Um

corpo é sempre uma multidão de relações e, como tal, está permanentemente

deflagrando relações. Corpo em relação com corpo forma corpo. O entre-lugar

da presença é no nosso corpo o que não está em nós”, conforme sugere

Eleonora Fabião (2010, p.323).

Presença é o termo que costumamos usar para essa capacidade do artista de

manter-se em um fluxo de relações. É algo fluido, mutação contínua, que

acontece no contato com o espectador; é a dilatação do comportamento

cotidiano, fazendo com que o corpo do ator possa assumir atitudes imprevistas,

extracotidianas. Como nos sugere Eugenio Barba, a modelação e amplificação

dos micromovimentos formam um núcleo de potencialização da presença do

intérprete, para se transformar na base de suas técnicas extracotidianas.

(BARBA; SAVARESE, 2012, p. 18). A presença tem espessura de experiência,

pois é fruto da relação entre a técnica corporificada do ator e as múltiplas leituras

que o espectador faz daquele corpo e do encontro com ele, além daquilo que

está no corpo do intérprete, mas não pode ser compreendido racionalmente pelo

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espectador (algo que já se tornara experiência, como a aplicação de técnicas

corporais e o resultado de ensaios).

No teatro vivemos (o mundo cotidiano da vida imediata e o extra cotidiano da poíesis), nos percebemos vivendo, falamos, nos percebemos falando, mas também percebemos que há o não-percebido e o não-falado e que só podemos dar conta desta zona pela via negativa. Sentados na plateia, pensamos estremecidos: que acontecimento invisível e inaudível se torna possível deste encontro? Por que a historicidade desta poíesis acontece agora e não no passado ou no futuro? Que tramas internas de minha pessoa se tecem e destecem neste convívio sem que eu perceba seu tear? (DUBATTI, 2007, p.155-156, tradução livre)16

É o convívio entre artistas e espectadores que gera essa teia de experiência:

instaura-se uma relação de escuta de si, um “convívio consigo” que é apenas

possível a partir do convívio com outros: o encontro de outra pessoa comigo, eu

com outro ser humano, nossas companhias no devir e a multiplicação deste

vínculo de companhia na poíesis viva. A rede de experiência multidirecional

envolve, tanto para artistas como para espectadores, a observação do mundo

cotidiano, do trabalho do artista, do corpo poético, além dos processos de

apreensão do corpo poético, da vivência da zona de experiência (o trinômio

convívio-poiésis-espectação) e de si mesmo em estado de afetação (DUBATTI,

2007, p. 159).

O acontecimento cênico como experiência de alteridade. A troca viva entre

intérprete e espectador tem a função – nos dois casos aqui estudados – de

despertar ambos os lados do anestesiamento proposto pela macropolítica no

convívio urbano. Trilogia Oiticica e Entre Vãos são espetáculos-lembrança de

que não somos uma massa pasteurizada de iguais, mas um caldeirão de

diferentes e seus dissensos e conflitos. Não é à toa que ambos trazem à vida

personagens ditos marginalizados, ocultados. Os anônimos de Parangolés,

16 “En el teatro vivimos (el mundo cotidiano de la vida inmediata y el extracotidiano de la poíesis),

nos percibimos vivir, hablamos, nos percibimos hablar, pero también percibimos que hay no-percibido y no-hablado y que sólo podemos dar cuenta de esta zona por vía negativa. Sentados en la butaca pensamos estremecidos: ¿qué invisible e inaudible acontecimiento hace posible esta reunión?; ¿por qué la historicidad de esta poíesis es ahora y no en el pasado o en el futuro?; ¿qué tramas internas de mi persona se tejen y destejen en este convivio sin que yo perciba el tejido?”

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Fig.4 – Mariana Muniz em Penetráveis. Foto de Ede Hohne.

Penetráveis e Nucleares na rua são seres que parecem descolados da correria

das ruas, que estabelecem relações extra cotidianas com a paisagem urbana; a

Anjo de Corredor, a Balconista da loja de paletas mexicanas e o Livreiro,

personagens de Entre Vãos, são indivíduos já desprovidos de “utilidade”,

pessoas que não se encaixam nos padrões do mercado por escolaridade, idade,

habilidades e classe social. Todas essas personagens surgem das brechas de

uma cidade homogeneizada e cinza, são indivíduos que inventam suas próprias

maneiras de sobreviver e resistir, compondo bricolagens dos restos que para

eles sobram. Veremos mais adiante como estes microcosmos são instaurados e

percebidos por Mariana Muniz e por mim nos dois trabalhos e como o exercício

da alteridade se faz entre intérprete e espectador.

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Fig. 5 (da esq. para a dir.) – Laís Marques (Balconista), Helena Cardoso (Anjo de Corredor)

e Plínio Soares (Livreiro). Foto de Alécio Cesar.

Dia 8: Entre-meios – microlabirintos urbanos

Quando se pede em um grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados

de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

Trecho de O Narrador, de Walter Benjamin (1994).

Caminhada no centro de São Paulo.

As ruas dos Campos Elíseos, prédios de classe média intercalados com antigos

casarões quase abandonados. Alguns ambulantes nas esquinas, pedestres

cruzam os carros, movimento de porta de escola, de supermercado, de padaria.

Após poucas quadras, cruza a Avenida São João, por debaixo do Elevado João

Goulart (que até pouco tempo se chamava Costa e Silva). Fileiras de colchões e

cobertores sujos com restos humanos dentro. Alguns consomem drogas, outros

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veem o tempo passar. Mais carros, ônibus seguem em alta velocidade rentes à

ilha entre pistas, trabalhadores esperam em filas, entram na estação de metrô,

correm na esperança de viajar sentados. O grafite de braços abertos. O espelho

reflexo da cor sólida. Comércios pequenos parados no tempo: conserto de

relógios, conserto de móveis, brechós e lojas de antiguidades. Quem caminha

distraído sente logo que algo seu foi levado, um celular, uma carteira. Segue

desviando das motos que costuram entre carros, dos carrinhos de bebê, das

carroças de material reciclável. Os sons que compõem esse espaço não

reconhecem privacidades, invadem cada fresta do ser, qualquer tentativa de voz

some em meio à massa sonora, motores, buzinas, zumbidoseletrônicos,

sirenedeambulância, músicadalojade1e99, saidafrentedonamaria,

risadadomoradorderuaquetudoobservaepoucofala, respeitaaciclovia! Largo

Santa Cecília, vistas de ar bucólico de cidadezinha de interior borradas com mais

moradores de rua, prostitutas, restos da feira de sábado que nunca deixam o

asfalto, cheiro de incenso da igreja, óleo velho de fritar pastel, diesel queimado

dos ônibus. Tanta rua para correr e ele ali patinando numa esteira elétrica dentro

de paredes pretas e luz neon (ele olha pela janela, imaginando as ruas que teria

percorrido se tivesse rua para correr). Praça Roosevelt, chega da opressão do

Elevado sobre os ombros, olha de novo para o céu, atenta para os skates,

bicicletas e pombas em toda a direção. Antenas gêmeas, ar-condicionados

gêmeos, janelas gêmeas. Só a degradação é única. Risada de gente jovem, do

bêbado que mora na esquina, da velha louca que denuncia para a polícia o uso

público da praça TODASASNOITES. Teatros e bares intercalados, mais

pequenos comércios que sustentam sobre as cabeças arranha-céus de

escritórios velhos e malcuidados. As flores de Frida na camisa estampam a

beleza do cabelo afro. Aglomeração em um dos cantos da praça, faixas, cartazes

e instrumentos musicais, o povo nas ruas para mais uma manifestação, policiais

sobre cavalos do outro lado da rua, muita bomba pronta para a dispersão de logo

mais. O picho que não se lê.

Tudo isso é pouco, muito pouco do que se cruza nesse caminhar. A organização

em palavras das imagens que se formam na minha mente à medida que tento

recordar as impressões da caminhada não dá conta de tudo o que meu corpo

absorveu/absorve a cada dia. Como narrar a experiência do caminho?

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Novamente Michel de Certeau nos sussurra: “O que o mapa demarca, a história

atravessa. Em grego, narração é ‘diegesis’: ela determina um itinerário (ela

‘guia’) e atravessa (ela ‘transgride’) ” (CERTEAU, 1984, p.129, tradução livre).17

Nossas palavras nos guiam pela topografia de uma cidade composta por nossas

experiências. Em meio ao caos-imensidão de afetos, os vazios plenos me

perpassam.

Os modernistas Lygia Clark e Hélio Oiticica compartilhavam desse termo, vazio

pleno, espaços vagabundos cheios de descobertas e possibilidades, inventados

em errâncias pela cidade. Oiticica cruzava o Rio de Janeiro a pé e concebeu boa

parte de suas obras a partir dessas caminhadas, durante seus Delirium

Ambulatorium. Sobre isso, Paola Jacques explica:

Oiticica já conceitua a ideia do Delirium Ambulatorium principalmente como um “caminhar to and from sem linearidade → ambulatoriar: inventar “coisas para fazer durante a caminhada”. No texto do ano seguinte, ele se pergunta se o campo urbano se transformaria pelo Delirium Ambulatorium “naquilo que Lygia Clark chamaria de objeto relacional (será) ? , em todo caso, a cidade, em particular o Rio de Janeiro, aparece aí como um grande jogo, uma cidade playground a ser pensada pelo corpo-pé” (JACQUES, 2012, p.227).

Já Francesco Careri em seu livro Walkscapes também sugere uma “arquitetura

do vazio” como uma invenção advinda da errância. Ele situa seus vazios urbanos

nos anos 1960 nos Estados Unidos, quando urbanistas americanos constatam o

surgimento nas periferias de outras maneiras de viver que não as estabelecidas

nos centros urbanos, um caos que precisa ser curado como um câncer: “saturar

e suturar os vazios” com novas formas de ordem, criadas a partir das regras que

regem o centro (CARERI, 2003, p.177).

O caminhar como procedimento de criação e como convite ao espectador se dá

em Trilogia Oiticica e Entre Vãos também se dá entre vazios, embora as duas

obras tenham sido concebidas no centro de São Paulo e não em territórios às

margens das cidades, como é o caso dos exemplos estudados por Careri. A

região central da cidade é permeada por narrativas marginais: indivíduos,

17 “What the map cuts up, the story cuts across. In Greek, narration is called ‘diegesis’: it

establishes an itinerary (it ‘guides’) and it passes through (it ‘transgresses’)”.

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espaços e intervenções urbanas que fogem da lógica homogênea. O centro é

também composto por grafites, moradores de rua, ambulantes, cortiços, prédios

ocupados por movimentos de moradia popular. Os intérpretes de Trilogia Oiticica

se inspiram nos Delirium Ambulatorium do artista plástico para entrar em contato

com a população de rua e com caminhar dos passantes e suas quebras de ritmo

e direção. Entre Vãos se inspira em histórias individuais de moradores do centro

da cidade e escava os escombros das memórias do Edifício São Vito18 para

refletir sobre os efeitos da gentrificação sobre as vidas menos favorecidas da

cidade.

As obras criam microlabirintos virtuais, que potencializam a interligação entre os

vazios, os vãos da cidade. A ideia de labirinto também está presente em toda a

obra de Hélio Oiticica, desde os primeiros Metaesquemas (1957-1958) até os

últimos Penetráveis (1971-1980), projetados para parques públicos de grandes

cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo19. Oiticica, nas artes

plásticas, cria labirintos materiais; Entre Vãos e Trilogia Oiticica criam labirintos

semióticos, de subjetividades, ao criar imagens ficcionais em fricção com a

realidade das ruas da cidade. Acredito que a definição de Hélio Oiticica é

apropriada como elucidação dos três casos: a incorporação de um espaço real

em virtual, estético, inserido num tempo que também é estético.

Seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo, uma vivência estética, aproximando-se assim do mágico, tal seu caráter vital. O primeiro indício disso é o caráter de labirinto, que tende a organificar o espaço de uma maneira abstrata, esfacelando-o e dando-lhe um caráter novo, de tensão interna. O labirinto, porém, como labirinto, ainda é a ideia abstrata mais próxima da arquitetura estática no espaço. Seria uma arquitetura estática desenvolvendo-se até tornar-se espacial. Seria, portanto, a ponte para uma arquitetura espacial, ativa ou espaço-temporal (OITICICA apud JACQUES, 2001, p.68).

18 Popularmente conhecido como Treme-treme, o edifício foi construído em 1959 como uma

solução para a moradia popular no centro de São Paulo. Tinha 25 andares, cerca de 600 quitinetes além de térreo e sobreloja com unidades comerciais. O prédio foi deteriorado ao longo dos anos e, ao invés de revitalizar o prédio, a prefeitura de São Paulo opta pela sua demolição em 2010. (Fonte: http://www.adigna.com/sao-vito.html) 19 Apresento um panorama geral das principais obras de Hélio Oiticica na abertura do Capítulo 2: Trilogia Oiticica.

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Os labirintos materiais dos trabalhos Penetráveis e Núcleos de Hélio Oiticica

aparecem na Trilogia Oiticica de Mariana Muniz em uma escala micro: placas

retangulares de madeira, varas de bambu e tijolos são o suporte concreto para

os bailarinos criarem entre si caminhos, separações e conexões. A dança gerada

da relação dos corpos com esse material tenta recriar o caráter dinâmico, ativo,

proposto por Oiticica: madeira, tijolo e bambu propostos como extensão do corpo

do bailarino, capaz de construir pequenas estruturas penetráveis em espaços

públicos, compostas de um híbrido de humano e matéria-prima de construção

civil.

Já os microlabirintos de subjetivação de Entre Vãos são propostos pela

justaposição de três moradias reais espalhadas pela cidade, que remetem a

vivências (reais e ficcionais) passadas no Edifício São Vito - que também foi uma

moradia real, mas já não existe mais –, que por sua vez suscitam despejos

passados e presentes, materiais e simbólicos, vividos pelas personagens, pelos

espectadores e potencialmente pelos passantes e usuários do metrô com quem

os espectadores cruzam20. Cada espectador constrói seu labirinto particular de

impressões e conexões feitas na vivência híbrida entre a materialidade das

casas e ruas de São Paulo e as histórias reais e ficcionais colecionadas por todo

o percurso da experiência cênica.

Micromovimentos (as relações internas ao corpo do intérprete), microcosmos

(a relação estabelecida entre intérpretes e entre intérprete e espectador por meio

da presença cênica) e microlabirintos (relações físicas e subjetivas entre

intérprete, espectador e espaço) são universos que, ao mesmo tempo, se

contém e são independentes. Uma malha infinita de conexões une os três de

maneiras peculiares em cada um dos rios que exploraremos. Navegaremos, nos

próximos dias, os dois rios subterrâneos utilizando esses três elementos como

instrumentos de medida e parâmetro, para identificarmos as relações éticas e

estéticas que cada um estabelece com a cidade. Chegou a hora de descermos

as corredeiras.

20 Após acompanhar as histórias de despejo vividas pelas personagens, os espectadores seguem

em um percurso pela cidade acompanhados de um áudio-guia, que sugere que o público busque nos olhares dos passantes e dos usuários do metrô restos de despejos simbólicos e reais que aquelas pessoas possam ter vivido.

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Capítulo 2: A Trilogia Oiticica

Dia 9: Carta geográfica

Em terras onde nasce o rio Trilogia Oiticica, há riquezas que valem ser

inventariadas. A trajetória artística de Mariana Muniz coleciona encontros que,

de certa forma, resumem boa parte do histórico da dança de sua geração.

Anos 1960 e 1970, formação em danças clássicas que se inicia em Recife e se

completa no Rio de Janeiro, na então Escola de Danças Clássicas do Theatro

Municipal do Rio de Janeiro21. Balé clássico, dança espanhola, ritmoplastia, jazz,

história da dança, história da arte, didática, coreografia, o neoclássico de George

Balanchine e dança moderna. A multiplicidade artística se mantém como

característica de sua formação de base e se amalgama às diferentes paisagens

onde o corpo de Muniz imerge ao longo da vida: o solo argiloso de Caruaru, a

aridez de Itabaiana, a sinuosidade do Rio de Janeiro e a concretude de São

Paulo se integrarão, nos anos seguintes, à frieza de uma Paris de poucos olhares

amigos e uma Nova York incandescente.

Na mesma escola onde se formou, começa sua experiência como docente, ofício

que leva integrado à sua prática artística até os dias de hoje. Lá conhece Klauss

Vianna, que a convida a integrar o Teatro do Movimento de Klauss e Angel

Vianna22, Muniz absorve a disposição para vivenciar o movimento, o

pensamento sobre ele e o sentido de se fazer arte em diálogo constante com a

vida, além da constante busca de um autoconhecimento gerado nas

experimentações e na pesquisa artística. A proposição do casal de uma prática

pedagógica e cênica que deve ser vivenciada no corpo passa a se refletir dali

em diante no ethos de Mariana Muniz.

21 Atualmente nomeada Escola de Dança, Artes e Técnicas do Theatro Municipal Maria Olenewa,

que faz parte da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é a mais antiga escola de dança do país. Ao longo de sua existência, vem sendo responsável pela formação de importantes nomes brasileiros que atuam no balé como bailarinos, coreógrafos ou maîtres no Brasil e no exterior. 22 Klauss e Angel Vianna fundam o Grupo Teatro do Movimento em 1976 no Rio de Janeiro, com

o objetivo de diluir as fronteiras entre dança e teatro. Propõem a noção de bailarino pensante e atuante: aquele que, por meio de um processo de criação, escolha dizer com o corpo o que tem a transmitir.

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A década de 1970 se encerra com Muniz dançando no Grupo Coringa23, onde

fundamenta seu sentido pessoal de dança contemporânea na mistura de

linguagens e técnicas, a liberdade de exploração e de pesquisa de movimentos

e o caráter de contestação de algumas de suas criações. É a coreógrafa Graciela

Figueiroa quem a introduz ao Tai ji Quan - sistema tradicional chinês que integra

condicionamento físico, mental e artes marciais – a primeira das técnicas

orientais que integrarão o cabedal de práticas holísticas de Muniz. As técnicas

de Martha Graham e Merce Cunningham24, praticadas em aulas durante

temporada vivida em Nova York no ano de 1980, ampliam suas possibilidades

de repertório corporal didático e criativo. O mesmo acontece em viagem a Paris,

cinco anos depois, por ocasião de um estágio na companhia de Maguy Marin25,

um dos grandes nomes da dança contemporânea francesa.

A mudança para São Paulo vem por mais uma parceria com Klauss Vianna, que

a convidou para integrar o Grupo Experimental do Balé da Cidade de São Paulo,

do qual era então diretor. Na mesma época, passa a dar aulas de balé na Escola

de Dança Ruth Rachou e, na sequência, integra o elenco da peça teatral Nosso

Senhor da Lama, dirigida por Stéphane Dosse, que unia artistas da dança e do

teatro. Por influência de Dosse, Muniz passa a investir mais na prática teatral, o

que a leva a trabalhar com os diretores Antônio Abujamra, Roberto Lage, Naum

23 Grupo Coringa, criado por Graciela Figueroa em 1977 no Rio de Janeiro, era composto por bailarinos com formação diversificada, atores, mímicos, acrobatas, músicos e artistas de outras áreas. A partir de propostas interdisciplinares na arte, o grupo buscava maneiras de criar que pudessem ser a síntese entre arte e vida diária. 24 Martha Graham (1894 – 1991) foi uma das principais representantes da dança moderna nos

Estados Unidos no século XX. Sua pedagogia, baseada em princípios como contração e relaxamento, o ciclo respiratório e as espirais da coluna, formou dançarinos e professores atuantes em todo o mundo. Para conhecer mais: http://www.marthagraham.org/

Em parceria com o compositor John Cage, Merce Cunningham (1919-2009) esteve à frente da vanguarda norte-americana no século XX. Aluno e bailarino da companhia de Martha Graham, criou sua própria escola, método e companhia, onde propunha a dança como um movimento orgânico, em sintonia com o acaso, em oposição a um encadeamento lógico de movimentos, como era vista a coreografia até o início do século XX. Para conhecer mais: http://www.mercecunningham.org

25 Maguy Marin (1951) foi aluna e bailarina de Maurice Béjart na Escola Mudra e no Ballet du

XXe siècle, respectivamente. Influenciada por Pina Bausch, suas coreografias integram a chamada Nova Dança Francesa. Para conhecer mais: http://ramdamcda.org/bio/maguy-marin

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Alves de Souza, Jorge Takla e Ulysses Cruz26 nos anos seguintes. Um curto

estágio na companhia de Maguy Marin em Paris em 1985 faz Mariana Muniz

intuir que o ambiente competitivo entre bailarinos europeus não se justificaria em

sua trajetória pessoal. Ela passa então a participar de uma sequência de

espetáculos teatrais produzidos em São Paulo e apresentados em diversas

cidades brasileiras. Sua participação lhe rende prêmios como intérprete e

coreógrafa na quase totalidade desses espetáculos. Em 1989, Muniz estreia o

também premiado Paidiá, primeiro solo de criação própria, inspirado na tradição

pernambucana do maracatu e fundamentado na mescla entre dança

contemporânea e teatro. Este formato de espetáculo passa a ser recorrente em

sua carreira, sempre em parceria com outros criadores (figurinistas, músicos,

iluminadores) e criando uma composição própria entre coreografias autorais

combinadas com textos curtos de diversos autores que a inspiram.

O fim da década de 1980 marca o início da parceria entre Mariana Muniz e Maria

Lucia Lee, pesquisadora das artes do corpo chinesas. Técnicas como Tai Ji

Quan 108 Movimentos, Tai Ji Espada, Lian Gong em 18 Terapias e Qi Gong dos

Símbolos passaram a integrar as práticas corporais de Muniz. Nos anos 1990,

Muniz trabalha com os diretores Ilo Krugli, Ulysses Cruz, Samir Yazbek e Gabriel

Vilela27 e começa seu relacionamento na vida e na arte com o arquiteto e

fotógrafo Cláudio Gimenez, com quem passa a criar todos os trabalhos de

autoria própria. Muniz e Gimenez fundam a Cia. Mariana Muniz de Teatro e

Dança em 2007, que ocupa o Espaço Ghut, sua sede em parceria com Maria

Lucia Lee próxima à Avenida Paulista. Mariana e Cláudio passam pelo curso de

formação profissional em Eutonia28, terapia somática que expande o olhar

integrado entre corpo, mente e espírito que Muniz cultivava desde sua vivência

com Klauss e Angel Vianna. A pedagogia da Eutonia passa a permear não

26 Antônio Abujamra, Roberto Lage, Naum Alves de Souza e Jorge Takla são renomados

diretores teatrais. Para conhecer mais sobre suas carreiras individuais: http://enciclopedia.itaucultural.org.br

27 Ilo Krugli, diretor, fundador do Teatro Ventoforte. Samir Yazbek, dramaturgo e diretor teatral.

Gabriel Vilela, diretor teatral. Para conhecer mais sobre suas carreiras individuais: http://enciclopedia.itaucultural.org.br

28 Eutonia: abordagem de educação somática criada pela alemã Gerda Alexander. Promove a compilação da percepção e consciência corporal, propiciando flexibilidade tônica.

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somente as aulas ministradas pela artista, mas sobretudo a prática de

treinamento mantida com os bailarinos da companhia.

Mariana tem participação ativa na política cultural da cidade de São Paulo,

integrando o Movimento Mobilização Dança que, entre outras conquistas,

conseguiu a criação e aprovação da lei no. 14.071/2005, que institui o Programa

Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo. Espelhado na

criação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São

Paulo (lei no. 13.279/02), o programa compromete-se a destinar recursos para

pesquisa, produção, circulação e manutenção de companhias estabelecidas na

cidade há pelo menos três anos, trabalhando pela difusão, reflexão e formação

de novos públicos e criadores em dança contemporânea. Ao ser contemplada

pela segunda edição do Fomento à Dança em 2007, a Cia. Mariana Muniz inicia

sua pesquisa a partir da obra de Hélio Oiticica. Seu resultado artístico é a Trilogia

Oiticica, formada pelos espetáculos Parangolés (2008), Penetráveis (2010) e

Nucleares na Rua (2011). A influência de Oiticica marca a relação de Muniz com

o espaço urbano e a criação coletiva com outros intérpretes em suas obras

autorais.

Todos esses encontros se somam no corpo e na criação de Muniz. Os

espetáculos de sua autoria possuem um caráter pessoal e expõem a inter-

relação entre teatro, diferentes técnicas da dança e práticas somáticas, aliada

ao trabalho constante de pesquisa e observação de si e do mundo. Seu amplo

universo pessoal unido ao legado artístico de Hélio Oiticica torna o mapa que

seguimos aqui amplamente detalhado e ramificado. Um sobrevoo panorâmico

nas regiões inventadas pelo artista plástico se faz necessário para a

compreensão das proposições de Trilogia Oiticica.

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Dia 10: Norte cartográfico - Panorama Hélio Oiticica

Dia 11: Mergulhos internos, ancorar (-se)

Entre 2005 e 2008, Mariana Muniz fez parte do IV Curso de Formação em

Eutonia do Núcleo de Formação Profissional de Eutonia Berta Vishnivetz, em

São Paulo. O olhar para o espaço interior do próprio corpo, prática já enraizada

na rotina de treinamento e criação de Muniz desde sua convivência com Klauss

e Angel Vianna, agora ganhava os contornos dados pela metodologia

desenvolvida por Gerda Alexander, criadora da Eutonia.

Os fundamentos da Eutonia são refletidos em todo o processo de criação da

Trilogia Oiticica, sobretudo o chamado “estudo de movimento” proposto por

Alexander. Em linhas gerais, trata-se de um escrutínio da própria estrutura física,

através da experimentação de movimentos articulares e musculares que

integram todo o corpo, onde o artista coloca-se como sujeito ativo de si mesmo;

Fig. 6 – Infográfico sobre as obras de Hélio Oiticica que inspiraram Mariana Muniz. Criação própria

em parceria com Vertente Design.

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na sequência, a memória é ativada para a composição de frases de movimentos

que possibilitem a observação da relação entre espaço interior, espaço exterior

e espaço corporal do grupo. Seu intuito é a reelaboração contínua do corpo, um

processo de desconstrução e recriação de gestos, padrões e relações por meio

da ampliação da consciência de si (FARIA, 2010, p. 63-64) Mariana Muniz parte

de um olhar para os micromovimentos até sua ampliação à escala macro,

tornando impressões pessoais e proposições inter-relacionais fluidas entre si,

ora dialogando como causa e efeito, ora contrapondo-se, ora espelhando-se.

Esta ampliação de consciência dá ao praticante de Eutonia, segundo Berta

Vishnivetz, a capacidade de awareness: estar desperto para a percepção dos

estados internos (orgânicos, afetivos, intelectuais) e, ao mesmo tempo,

discriminar percepções externas e a interação contínua entre ambas

(VISHNIVETZ, 1995, p. 159). A esta qualidade de atenção daremos aqui o nome

de escuta. A escuta interna de Mariana Muniz – sua capacidade de observar

seus micromovimentos e seus desdobramentos na ampliação dos movimentos

pelo espaço – já servia de base e guia para suas criações solo e passou a ser a

instrução primordial para os trabalhos com a companhia desde 2007, quando

esta passou a ter mais integrantes. A escuta interna é conquistada com a

exploração do contato eutônico, um extenso trabalho de estimulação da pele e

de consciência do espaço interno e da direção dos ossos no espaço. Os

exercícios são praticados em contato com o próprio corpo, com o corpo do outro

e com os chamados objetos auxiliares, como varas de bambu, bolas e tecidos.

O uso de materiais para estímulo sensorial e perceptivo e para a conquista de

micro e macro movimentos foi a conexão direta encontrada por Muniz entre sua

prática artística e a obra de Hélio Oiticica. Por exemplo, a sensibilização corporal

com tecidos de diferentes texturas, cores e tamanhos - diretamente inspirada

nos Parangolés de Oiticica - teve como intuito a percepção da pele, do contorno

do próprio corpo, dos músculos e nervos e das qualidades de toque e tato. “Tudo

para entrar num estado de criação, onde se perde para se achar. Entrar num

estado onde tudo é matéria para revelar o potencial de tudo que você já

trabalhou” (MARIANA..., 2017). Ao longo da criação de Parangolés, Penetráveis

e Nucleares na rua, a companhia trabalhou o movimento gerado no corpo a partir

do contato com tecidos, tijolos, pedaços de plástico, varas de bambu e placas de

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madeira compensada, objetos que, ao mesmo tempo, refletiam os materiais

usados por Oiticica e remetiam diretamente ao cotidiano e à estrutura física da

cidade e seus habitantes. Muniz explica que o trabalho com esse material

[...] deixou em mim um lugar de conexão com o fazer artístico muito preenchido, muito pleno de possibilidades, de confiança no potencial do material com que se lida tematicamente. Qualquer material que você pega para trabalhar, se você mergulha nele e acredita no potencial dele, investigando o potencial dele, [ele se torna] uma matéria de fé, mas é uma matéria de fé de trabalho e pesquisa, não é fé cega. Eu percebi a potencialidade de qualquer material para te amplificar interiormente e te dar confiança na comunicação (MARIANA..., 2017).

As varas de bambu são comumente utilizadas na Eutonia como objetos

auxiliares na sensibilização óssea, para que o praticante tome consciência de

sua forma e estrutura física. A exploração desse material na coreografia

Parangolés traz para Muniz a imagem das vigas de sustentação das construções

de São Paulo: a conexão corpo-objeto traz para o espectador um reflexo possível

da arquitetura da cidade na estrutura do corpo humano e vice-versa. A relação

entre corpos, varas de bambu, tecidos e o asfalto são o mote central do

espetáculo. As batidas no chão com as varas de bambu, como estacas na

fundação de um prédio, o corpo que salta e cai em direção ao solo, o corpo

enraizado que samba; equilibrar-se precariamente na resistência do tecido que

envolve o corpo do outro, equilibrar-se sobre os bambus, carregar corpos inertes

sobre as varas, arrastá-los em atrito com o concreto; cair e levantar, o peso do

corpo sobre o solo, o som do bambu que risca o chão, riscos que delimitam

espaços invisíveis. Estruturas que se montam sobre o asfalto, para nele

colapsar.

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Já os retângulos de madeira - inspiração advinda dos Núcleos de Oiticica e

utilizados na coreografia Penetráveis – sugeriam a sensação de suspensão e de

relações simultaneamente multidirecionais e hiperdimensionais, sensação esta

traduzida em jogo de ritmos e cadências dos corpos com a ambientação sonora

de Ricardo Severo. As placas de madeira compensada foram trabalhadas como

uma extensão do corpo humano, como se o corpo pudesse ser suporte para o

objeto sem que perdesse sua potência de relação; ao contrário, fazendo com

que o objeto pudesse mostrar o corpo em outras possibilidades de

movimentação para além do cotidiano. Formas híbridas entre humano e

construção civil surgem na integração entre corpo e placa. O corpo-máquina do

hip-hop entra em convulsão e atrita com outros nos pequenos espaços

demarcados pelos objetos, se joga de cima dos tijolos, deslizando sobre as

paredes de madeira como quem se atira de um arranha-céu. Seres que dormem

nas ruas, cabeça no tijolo, sob a manta de ruídos urbanos. A personagem de

Mariana Muniz, uma mulher em condição de rua que tudo observa e comenta,

um ente em mantas velhas que tenta reger a correria cíclica dos outros

bailarinos, é uma alegoria de tantos e tantas que vivem nessa condição e

Fig. 7 – Parangolés da Cia Mariana Muniz de Dança e Teatro. Na foto: Danieli Mendes, Amanda

Correa, Gilberto Rodrigues, Bárbara Faustino e Viviane Fontes. Foto de Claudio Gimenez.

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rompem sua invisibilidade diária com risadas histéricas e frases soltas que

ecoam em meio aos passantes das ruas e soam tão proféticas quanto banais. 29

Muniz conta que elegeu esta personagem como um recurso cênico que desse a

ela liberdade improvisacional e a permitisse dirigir os bailarinos de dentro da

cena, para que a qualidade de relação com os objetos e a rua não se perdesse:

Porque eu sentia a grande dificuldade das pessoas de lidar com o material. E eu falava assim: mas é tão lindo isso! Como não estamos todos percebendo como é rica essa matéria, como a gente pode voar com essa matéria. E como a gente pode apresentar uma coisa que as pessoas digam: Nossa, esse é o princípio da arquitetura e é o princípio do que estrutura um corpo. Por mais geométrico que pareça, é sem pontas, é fluido. A dificuldade era tornar fluido. Foi muito difícil (MARIANA..., 2017).

Estive presente em oficinas e ensaios realizados pela companhia ao longo da

construção da Trilogia Oiticica. Entendo a dificuldade de entrega na relação com

objetos cortantes e perfurantes, – madeira que solta farpa, tijolo que quebra em

29 O registro oficial de Penetráveis, feito pela Cia Mariana Muniz, está disponibilizado em

https://www.youtube.com/watch?v=9jTcpscoqwE (último acesso em 08/06/2017).

Fig.8 – Penetráveis da Cia Mariana Muniz de Dança e Teatro. Na foto:

Mariana Muniz. Foto de Claudio Gimenez.

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pontas – e percebo que até mesmo a entrega do corpo ao bambu numa sessão

de Eutonia demanda um estado de escuta interna que nossa sociedade não

contempla com frequência e que pode ser difícil de alcançar mesmo por

bailarinos habituados a práticas somáticas. Contudo, enxergo a beleza da

fluência conquistada entre corpo e objeto e as amplas leituras que ela abre para

o espectador; vejo a necessidade de comunicação disso para o mundo, para o

espaço concreto paulistano. Creio que a ampliação da escuta interna é decisiva

nessa entrega (ou não) do corpo ao objeto, ao asfalto. Refletindo agora, em

2017, sobre a trilogia encerrada em 2015, Mariana Muniz conta que foram muitos

os momentos de forte crise de identidade de todos os envolvidos durante a

criação. Há uma procura constante pelo o que e como se quer expressar

artisticamente e a criação coletiva gera embates entre as buscas pessoais

envolvidas. Mas, para a artista, há um lugar interno (apesar de não definitivo) em

que se pode ancorar e esse espaço deve ser conquistado para que o bailarino

possa relacionar-se com o espaço urbano. A demanda energética da rua é muito

intensa e o artista deve entrar em diálogo com ela tendo seu corpo, mente e

espíritos conectados; para alcançar esse lugar de ancoragem é preciso muito

trabalho:

A relação com a rua é de uma potência imensa. Você some. Ou você some ou não acontece a relação. E ao mesmo tempo você tem que estar muito certo do que você quer. É uma contradição muito grande. Quanto mais alinhado você está com um propósito, mais você tem que sumir para que o propósito se dê. E a rua te revela isso muito intensamente. Porque aí você pode se perder, você tem um lugar, você tem uma conexão forte com aquilo que você quer comunicar, então você pode deixar ir para lá e para cá que você não vai perdê-la. Chegar nessa qualidade de conexão é difícil em você que propõe e que dirá nos outros que você está tentando fazer entender que isso tem que se dar (MARIANA..., 2017).

Este lugar de ancoragem é o corpo e a consciência que o bailarino tem dele. A

sensibilização com objetos auxiliares é a chave para a conquista desta conexão.

Em Trilogia Oiticica, a sensibilização da pele no contato com tecidos buscava a

ideia de contorno do próprio corpo, que desse aos bailarinos uma certeza de

seus limites físicos que nenhum espaço ou outro corpo pudesse destruir. A

conscientização do contorno do corpo, de sua estrutura interna dada pelos ossos

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e musculatura, do senso de percepção e toque dados pelos nervos, traz ao

bailarino um estado de conexão consigo próprio que garante que, ao perder-se

no espaço urbano, ele poderá encontrar-se expressivo de outras maneiras:

A conexão com esse estado é o que te garante que você vai se perder, mas você está se achando ao se perder, porque está nesse lugar criativo. Você inventa. Parece sem saída e você descobre um lugar para se conectar. Entrar nesse estado é maravilhoso, mas precisa trabalhar muito, é muito difícil, onde tudo é matéria para você revelar o potencial de tudo que você já trabalhou (MARIANA..., 2017).

Este estado de escuta interna é difícil de alcançar porque exige um trabalho

psicofísico, ético e poético de desconstrução de hábitos; trata-se de “uma forma

de conexão sensorial e perceptiva, uma via de expansão psicofísica sem

dispersão, uma forma de conhecimento” (FABIÃO, 2010, p.322). Podemos fazer

uma relação direta desse dialogismo entre escuta interna e do outro com os

conceitos de “cuidado de si” que aparecem em diferentes escolas da

Antiguidade, sobretudo no que se refere à escola socrático-platônica, onde o

Fig. 9 – Nucleares na rua, da Cia Mariana Muniz de Dança e Teatro. Na foto: Danieli Mendes,

Gilberto Rodrigues, Bárbara Faustino e Viviane Fontes. Foto de Claudio Gimenez.

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cuidado de si deveria ser tomado como condição básica para a relação do

indivíduo com a cidade e a política30. O que nos interessa aqui são as

articulações entre conhecimento, práticas e “técnicas de si”, onde divisões entre

ética e estética ou entre teoria e prática cairiam por terra, conforme nos sugere

Cassiano Sydow Quilici (2015). A maneira de criar de Mariana Muniz estaria em

consonância com o que o autor define por “arte da existência”, onde a expressão

artística se torna uma maneira de investigar a natureza do fazer e do agir

humanos e de revelar suas múltiplas potencialidades. Para além da conexão

entre arte e vida na incorporação de coreografias à paisagem urbana, as

relações ético-estéticas nos procedimentos de Mariana propõem a expansão da

percepção e da experimentação do cotidiano, “a arte como modo de criar e

cuidar das nossas formas de relação com o mundo e conosco mesmos”

(QUILICI, 2015, p.143). A impermanência da própria identidade flagrada ao abrir

a escuta para si amplifica-se na relação com o outro: surge o medo de perder-

se e do que se pode receber do outro.

Dia 12: Medo, barragem de microcosmos

Para que, afinal, se dança?

Dançamos para que os corações se unam.

Ah, é difícil, não é?

Em todo caso, é para isso que dançamos.

Kazuo Ohno, em Treino e(m) poema (2016)

A preparação do corpo para o encontro com o Outro. O olhar para dentro de si

que permite um estado de fluidez que é, ao mesmo tempo, perder-se, encontrar-

se, encontrar o outro e reinventar (a cena, a si próprio, o estar “com”). Na

desconstrução de identidades, são muitas as barreiras que nos paralisam,

algumas vindas de outros corpos dançantes, outras dos espectadores, outras

30 O filósofo Michel Foucault em seu escrito “Tecnologias de si” (1982) analisa os conceitos

desenvolvidos na sociedade ocidental do “cuidado de si”. Ficamos aqui com um pequeno recorte, mas vale a leitura para um aprofundamento no tema.

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tantas oferecidas pelo espaço. O outro bailarino vem com proposições que

interferem nas suas, que desestabilizam o que seu cérebro projetou de belo na

construção virtual do movimento no espaço, interrompe o fluxo de sua

musculatura para pontuar com sua própria energia o que extravasa de você; o

coreógrafo cola seu desejo à sua movimentação, sugere outros ritmos e texturas,

altera direções, recorta e cola a sua criação de acordo com a visão dele; o

espaço oferece cheiros, texturas, temperaturas muitas vezes inóspitas: chão

irregular, iluminação que cega, vento que entra pelo figurino, alterações

desestabilizadoras do construído em ensaio. “Dedico minha vida a compreender

meu próprio corpo e a ampliar meu repertório de uso... para vir o Outro e

desestabilizá-lo? ”, talvez se pergunte o bailarino. Esta é a condição contraditória

do criar: a criação é com o Outro e para o Outro. O corpo é instrumento para que

surjam os microcosmos: tempo-espaço de compartilhamento entre seres.

No contato entre corpos que dançam, o filósofo José Gil sugere que haja uma

“fusão” dupla: entre a consciência e o corpo, e entre dois corpos. Uma junção

que não determina uma perda de qualidades singulares dos corpos, já que cada

um só recebe ou emite energia “senão o que melhor lhe convém do outro (que

facilita e intensifica o fluxo da sua própria energia) ” (GIL, 2001, p.142).

Singularidades se mantém, mas perdas e ganhos são contabilizados nessa troca

de energias. Não basta a negociação – cedo aqui para colocar minha vontade

ali – mas os momentos de criação coletiva acontecem também (e principalmente,

a meu ver) no escuro das ideias, onde os inconscientes se encostam e deixam

brotar juntos algo que nem um nem outro intencionara. Outra vez, o perder-se

para se encontrar de outra forma: falo do encontro de corpos vibráteis, corpos

que habitam a oscilação entre ser e não ser, corpos inacabados, imperfeitos, em

constante mutação, permeáveis. “O corpo vibrátil é o corpo do “entrelaçamento””

(FABIÃO, 2010, p.322).

Permeabilidade requer coragem. É mais cômodo nos entrincheirarmos em

certezas construídas a partir de pequenos achados: sequências aprendidas e

repetidas, posturas que “garantem” certas leituras que o público “precisa” ter.

Amplio meu olhar interno e ganho consciência de alguns processos corporais e

neles me fio, fechando muitas vezes os olhos diante do outro que dança comigo

– não por desrespeitá-lo, mas por receio de perder as conquistas internas que

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tanto me custaram tempo e esforço. Jogar-se em um processo colaborativo com

parceiros de diferentes históricos e idades para criarmos no espaço urbano, é

nos equilibrarmos em uma falésia, sabendo que a queda é certa: o solo é

arenoso e escorre com o tempo; caímos juntos num terreno criado por nós, às

cegas, à medida que caímos.

Mariana Muniz reflete sobre o medo do Outro no processo de criação de Trilogia

Oiticica. Ela percebe hoje que a permeabilidade para o espaço urbano poderia

ter sido amplificada, que havia um potencial de criação na relação direta com os

espaços públicos por onde passaram que acabou dando lugar para coreografias

cada vez mais fechadas à medida em que eram repetidas.

Mesmo com todo o trabalho anterior de preparação e de relação com a temática, investigação, leituras e tudo, é mais complexo ficar aberto para o momento, dá muito medo. Então à medida que ele foi mudando, eu fui fechando mais, fui coreografando mais fechadamente [sic] – vai pra cá, vai pra lá, constrói aqui - independente do que o espaço está pedindo naquele momento. Porque o que acontecia quando fazia a experiência de soltar, é que esvaziava muito a intenção, a tensão espacial, o contato, ficava cada um mais na sua viagem, sem conexão. Então era muito inquietante, muito difícil de lidar com aquele vazio. A própria espacialidade da rua gera isso (MARIANA..., 2017).

E como proteger-se do medo paralisante frente ao outro? Como não tensionar

os músculos ao tocar no lixo largado no chão das ruas, ao deparar-se com o

olhar alterado de uma pessoa em condição de rua que sente seu espaço

invadido pela proposição artística? Muniz se recorda de um ensinamento chinês

que diz: quando estiver diante de muita gente, trabalhe o estar profundamente

sozinho; e quando estiver sozinho, trabalhe o estar profundamente envolvido,

conectado com tudo o que está ao redor. Seu recurso para momentos de

enfrentamento do medo é “trazer o coração para a barriga”:

Porque se o coração dispara e você fica sem controle (por causa do rim, do medo), seu gestual e sua maneira de estar em cena vão refletir uma profunda desconexão com aquilo que você quer comunicar, você vai ficar perturbado, confuso. E daí você vai transmitir só isso e não aquilo que você se propôs, estudou tanto, batalhou tanto. Para aquilo aparecer límpido, você tem que descansar em você, não deixar que a ansiedade do coração (a palpitação) e o medo te dominem. Tem que esconder isso, esconder no bom sentido, fazer a energia do coração

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descer lá para a barriga e se assentar onde você sabe o que é melhor para você, onde seu cérebro intuitivo está trabalhando (MARIANA..., 2017).

Lembro-me com isso de uma passagem do bailarino japonês Kazuo Ohno, em

que ele fala da necessidade de cultivar um olhar para dentro de si que nos faça

lembrar que nossa vida é a alma irmã do cosmos, para encontrarmos a voz

secreta do corpo que mitigue nossas dores:

Se vivermos assim, como alma gêmea do cosmos, aceitando isso, aqui dentro teremos uma força que completa a vida, com o estômago, o intestino, o intestino que produz sangue e ossos, que, ao passar pelos santuários do sangue, faz uma combination de forças com várias partes do corpo. Mas este mundo de hoje usa mais a cabeça. Ao se achar o tal, a ambição se infla, se passa a derrubar os outros, concordam? Quando menos se espera, é guerra. Eu também fui à guerra. Não é bom usar demais a cabeça. Para cuidar bem da vida... dentro da barriga, o intestino, o estômago, eles são o centro. Melhor cuidar bem deles, então (OHNO, 2016, p. 64).

E é justamente com uma citação de Kazuo Ohno que Muniz justifica a

necessidade do trabalho intenso sobre o próprio corpo para a superação do

medo do Outro, em que ele dizia que, de tanto pensar, ficava com a mente vazia.

Descrevo aqui as exatas palavras do mestre:

Eu penso, de manhã até a noite. Penso, repenso e, no fim, fico com a mente vazia. É por isso que falo para jogarem tudo fora e ficarem com a mente vazia – a mente vazia em meio a um amontoado de coisas inúteis, depois de pensar e pensar e pensar. No fundo da mente vazia, o que nos sustenta é o que pensamos, pensamos e repensamos – isso se cristaliza, acaba nela se transformando. O que se pensou torna-se a mente vazia. Esse é meu pensamento. Mas querer atingir a mente vazia partindo do nada é o mesmo que construir castelos no ar (OHNO, 2016, p.62).

Ao reler essa frase de Ohno, me lembrei de outras conversas que tive com

Mariana ao longo desta pesquisa, sobretudo de uma anotação em seu diário de

bordo datada de 28 de setembro de 2015. Após a finalização de uma oficina de

Eutonia que realizava, um dos participantes traz a palavra “vazio” como um

estágio que se atinge ao longo da prática somática, onde parece ser possível

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acessar todos os movimentos de uma improvisação; local em que se encontram

todos os movimentos “renovados, vivificados pelo olhar desde esse lugar

chamado VAZIO” (MUNIZ, ANEXO I, p. 23) Muniz encerra a sua escrita sentindo-

se identificada com a colocação, já que sente em si um espaço que define como

“fonte da juventude” que pode ser atingida depois de um tempo de prática, que

pode ser curto ou longo, a depender do dia e do ritmo de trabalho. Os vazios

plenos - espaços vagabundos, cheios de descobertas e possibilidades31 - que

Hélio Oiticica encontra vagando pelas ruas do Rio de Janeiro, Mariana Muniz

encontra dentro de si, na busca constante pela conexão entre o Eu e o Outro,

entre interno e externo, atravessando o espaço interno para transgredi-lo e

alcançar o que está dentro do outro.

O alcance desses vazios plenos dentro de si mesmo é fugaz, não se dá sempre

nem de qualquer maneira; o contato com o outro é essencial para que ele

aconteça, é nos microcosmos construídos entre o Eu e o Outro em que eles se

tornam possíveis. O Outro nos lembra de que o ambiente está em constante

mutação e nos obriga a buscar recursos para além de nossos costumes gestuais,

nos força a constantemente reconstruir um real flutuante. “É evidente que, na

ordem da percepção, só percebo o que é permitido por meu dispositivo sensorial,

com as lacunas ligadas à minha história e à minha ‘função simbólica’. É aí que o

diálogo com outra pessoa se torna interessante” (GODARD apud KUYPERS,

2010, p.7).

Criar é manter-se na busca pelos vazios plenos. Se durante o processo de

Trilogia Oiticica as coreografias eram mais controladas, menos livres à interação

com o corpo do outro e com o ambiente, foi esta longa jornada ao lado de outros

bailarinos que possibilitou um estado mais “à vontade” com esta busca pelo

vazio, experiência vivida por Mariana agora, em seu solo mais recente, Fados e

outros afins. Para ilustrar esta nova percepção, ela descreve (MARIANA...,2017)

a experiência das primeiras três apresentações da temporada, que se mostraram

completamente diferentes na relação com o público, apesar de serem o mesmo

espetáculo fechado. Ela compreende que a qualidade de relação com os

espectadores foi o que mudou de uma noite para outra. Sem haver julgamento

31 Ver Capítulo 1, Rios submersos no caos

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de valor entre uma e outra experiência, foi a relação com cada público que

variou. Os microcosmos criados em cada noite possibilitaram leituras

diferenciadas do material de trabalho. A artista diz sentir-se como um canal, estar

em estado de “projeto para”, como ela define. Um estado de vulnerabilidade,

onde diferentes atravessamentos ocorrem, “um nada onde tudo pode se passar”

(MARIANA...,2017), um extrapolamento de si mesmo. Olhando para a

experiência vivida com o coletivo nas ruas de São Paulo durante a Trilogia

Oiticica, Mariana entende que foi o contato com os bailarinos e com o espaço

urbano que a permitiu chegar agora neste estado de porosidade para a

construção de microcosmos:

A gente trabalha para isso, para ter essa percepção desse extrapolamento, dessas outras dimensões que a gente toca, onde o jogo se dá. E a rua é o extrapolamento desse extrapolamento. Por isso é muito difícil. Se na cena, quando você está mais conectado, você sente que você é uma coisa só para o outro – uma coisa, que eu digo, é um nada onde tudo pode se passar – na rua, você tem que ir radicalmente nisso, é muito radical isso. Eu sinto que na rua, com meus trabalhos, eu raramente cheguei nisso aí. Muito raro, tive vislumbres disso. Na hora que a gente fez a filmagem [do vídeo A dança no espaço urbano, em 2015] eu senti muito esse potencial. Engraçado, né? Depois de tudo feito e eu sozinha, sem o grupo... porque não pense que eu não senti falta (MARIANA...,2017).

A criação artística é, como a vida, um longo processo de transformação, um

acúmulo de investimento de tempo, dedicação e disciplina. É um constante fazer

e refazer, pesquisando, contemplando, planejando, tentando, falhando, intuindo,

discutindo, elaborando, esboçando, repetindo: um conjunto de ações

progressivas no momento presente. O recolhido e aprendido no passado passa

a fazer parte da modelagem do agora; o futuro está contido nas intenções do

que se concretiza, no prolongamento do verbo - ...........ndo. Obras de arte não

se encerram em si quando arte e vida são imbricados como neste caso. O que

se faz num ponto da linha do tempo, se repete mais adiante para se (re)visitar,

para (re)elaborar questionamentos, para (re)significar símbolos. Tudo só se

justifica no momento presente, por isso a busca pelo vazio pleno no encontro

com o Outro: em tempos de liquidez nas relações, é a concretude do encontro

que nos fará vislumbrar quem somos e o que podemos ser.

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Dia 13: Campos de desconstrução

Um teto desde onde eu meço minha distância.

Ângulos das paredes que sugerem traços para a direção do olhar e dos

movimentos.

Isolamento acústico de janelas (mesmo que parcial) que diminuem

interferências incontroláveis.

A proteção da sala de ensaio.

Então me lanço à rua. E olho para o céu.

O céu é um lugar que desconcerta na hora do movimento, sabe? Eu senti isso fortíssimo. Eu dizia: “Meu deus, onde eu estou? ” Quase como se dissesse assim: “E tudo o que foi feito, interessa para quê? Qual o sentido?”. O contato com o céu provocava um revertério no movimento todo que tinha sido feito. E a gente foi ajustando o material que tinha sido levantado com o desconcertamento que o espaço provocava (MARIANA...,2017).

A relação com o próprio corpo e entre corpos toma diferentes rumos quando

colocado em atrito com o espaço aberto, público. A perda das referências

direcionais é um dos primeiros impactos da rua sobre a criação das coreografias

de Trilogia Oiticica. Numa simples ação – repetir, sob o céu aberto, os

movimentos criados em sala de ensaio – os bailarinos alcançam pela primeira

vez um dos aspectos sugeridos pelo “pensamento ambulante” de Hélio Oiticica:

a não fixidez de ideias e corpos, suas direções e tempos. Em vez de serem

tomadas como algo prejudicial à formatação das coreografias, a perda de sentido

e as mudanças repentinas de direção passaram a ser um forte elemento de

composição de Parangolés, Penetráveis e Nucleares na rua. Oposição, equilíbrio

precário e desvio são ideias inerentes às práticas ambulatórias do artista plástico

e percebo que elas se materializam nas movimentações dos intérpretes da

companhia. A respeito das contradições e ambiguidades contidas nas obras de

Hélio Oiticica, Paola Jacques aponta a presença de

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um tipo de montagem caleidoscópica, cheia de superposições, não linear, com mudanças repentinas de direção, embriagante como a própria experiência de errar pela cidade. A forma de pensar e agir, tanto a tropicalista quanto a situacionista, é desviante, errante; não se trata, entretanto, de uma relação mimética, mas sim incorporada. Trata-se de uma incorporação do “exercício experimental da liberdade” de Mário Pedrosa, citado por Hélio Oiticica (JACQUES, 2012, p.228).

Percebo que a sensação da perda de direção tem efeitos diretos não apenas na

execução dos movimentos, mas na significação do próprio trabalho para os

artistas da companhia e da sua relação com os espectadores. Afinal, outra

segurança que a sala de espetáculos dá aos bailarinos é a certeza de que a

presença de outras pessoas ali, diante deles, é deliberada e com propósito

principal de entrar em contato com aquela criação artística. Em contraposição,

dançar em um espaço público é colocar sua obra em choque com muitos outros

acontecimentos da vida cotidiana, é deixar sua intenção artística rivalizar (ou

sobrepor-se, ou misturar-se) com premências das realidades de todos que

cruzam aquela rua ou praça: a fila do banco, o horário do almoço, os pombos, o

caminho para casa. Sob esta perspectiva, me arrisco a dizer que o “exercício

experimental da liberdade” mais contundente, neste caso, se dá para o

espectador da obra apresentada no espaço público: ao deparar-se com a

escolha entre continuar seu caminho usual, ou parar para se relacionar com um

espetáculo de dança, ou conversar com alguém que espera em uma fila, ou

perder-se nas opções de mercadorias das vitrines, ou ignorar todos os estímulos

e concentrar-se na tela azul de seu celular, entre tantas outras possibilidades.

Mariana Muniz fala da indefinição do olhar do público como algo fascinante e

desafiador:

Na rua, o olhar do outro é fugidio. Não dá para dizer: “Olha para mim, vê o que eu estou querendo te dizer! ” Você tem que fazer para o céu, para o espaço, não tem que ter esse desejo do olhar do outro sobre você. Você é mais uma pessoa num mundo de pessoas, que tem um corpo igual ao que todo mundo tem. Tem habilidades diferenciadas, mas isso não significa que você tem que ser olhado, que por ter essas habilidades alguém tem que olhar para você. Isso é difícil pra caramba. Quando você coloca num teatro, as pessoas vão para ver, mas talvez isso seja o mais potente para destruir sua ideia de identidade como artista, os olhares fugidios. Um prédio está te olhando, uma janela está te olhando, não é uma pessoa. Não é o olhar do outro diretamente, o outro é tudo o que está em torno. Por isso que a primeira vez em que

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fui para praça, eu olhei para o céu e me desconcertei totalmente. Não vou esquecer nunca essa sensação. Fiquei totalmente perdida no mundo. “Meu deus, e agora? ” Porque era o céu que estava olhando, né? Então essa disposição de não ficar dependendo do olhar do outro para fazer é um trabalho interno muito grande, muito profundo (MARIANA...,2017).

As expectativas que o artista possa ter a respeito da atenção do espectador não

são as únicas desconstruções necessárias, nesse caso. Apesar de vivermos

numa cidade onde não é incomum encontrar artistas se apresentando nas ruas,

vivemos numa sociedade que considera o envolvimento com as artes algo

permissível apenas para momentos fugazes de lazer e entretenimento; para

muitos, um artista em cena não pode ser considerado um trabalhador. A

realização de um espetáculo de dança em meio a um “dia útil” causa reações

negativas em muitos dos passantes a caminho do trabalho.

E ainda tem aquelas coisas, as reações, o que você escuta das pessoas, falando: “Queria eu estar fazendo isso! ”, “Vai trabalhar! ”. Como explicar que eu estou trabalhando, que isso é o nosso trabalho? Uma outra qualidade de trabalho, mas é trabalho (MARIANA...,2017).

A dificuldade no demorar-se diante das coisas, sobre a qual eu refletia no dia 3

desse DIÁRIO, atinge a todos nós; o cultivo de um estado contemplativo se faz

necessário não apenas por artistas, mas por todos os indivíduos, potenciais

espectadores de arte. O excesso de positividade que vivemos – não nos

movemos mais para alcançar um objetivo que nos é negado, mas pela infinita

gama de conquistas que nos é oferecida 24 horas por dia, 7 dias na semana –

nos causa um cansaço solitário, individualizante e isolador. Vivemos em

constante mudez e incapacidade de ver, um cansaço sinônimo de violência que

destrói os elementos permanentes que poderiam nos unir com o passar dos

anos, nosso senso de comunidade. Associada a isso, a avidez por eficiência

estreitamente ligada ao consumo de tecnologia anula o tempo que necessitamos

para nos familiarizar com algo e, em troca, nos causa uma sensação de

efemeridade e transitoriedade: nossas relações (com o outro, com o mundo) se

esgotam tão rapidamente quanto um celular ou um computador que,

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recentemente considerados de alta tecnologia, passam a ser considerados

obsoletos. Nesse contexto, é justificado o estranhamento causado pelo contato

repentino com uma obra de arte. “O que era considerado “conteúdo” é atropelado

por capacidades operacionais e de desempenho, as prioridades de hoje”

(CRARY, 2014, p.53). Não há espaço no cotidiano para a contemplação ou a

reflexão, e um grupo de bailarinos dançando em meio a tecidos coloridos e

placas de madeira em plena Praça Patriarca no centro de São Paulo numa tarde

de quarta-feira nos faz lembrar disso. O desdém por alguém que parece resistir

às demandas de produção e eficiência faz com que alguns dos passantes

enxerguem os artistas de Trilogia Oiticica como corpos marginais, rebeldes:

“Ah, se isso fosse bom, estava no teatro!”, “Se está fazendo na rua é porque não tem valor! Não é bom, por isso que está na rua !”. Essa noção que o sujeito tem que o espaço da rua não é um espaço como do teatro. O espaço da rua é só para trânsito e para o desajustado, o outsider, o marginal. É o espaço do marginal, então há um menosprezo mesmo. E a gente teve que aguentar isso, fazia parte da nossa pesquisa ver o que isso provocava no nosso movimento (MARIANA...,2017).

A presença dos artistas numa praça do centro de São Paulo é encarada, por

esses cidadãos, como um exemplo do caos que borra o “semblante de harmonia

do espaço público” (COSTAS apud BARBOSA, 1999), pois fogem à

homogeneização que se requer dos cidadãos ao funcionamento de uma cidade

eficiente e produtiva. Cidadãos que rechaçam o diferente antes mesmo de

observá-lo e refletir sobre ele, ao depararem-se com os artistas imediatamente

“compreendem” que o que fazem ali não está a serviço do mercado; portanto,

aquilo “não serve para nada”. Flavio Desgranges, sobre o papel do espectador

e sua reação a efeito do estranhamento buscado nas obras brechtianas, reflete:

A condição irreflexiva da consciência cotidiana agrava-se pela ausência de um projeto que conduza a sociedade a um desenvolvimento positivo. A perda de objetivos e parâmetros leva ao completo abandono da atitude crítica, que é substituída pelo jogo intelectual descompromissado, nos lançando ao encontro de um pragmatismo livre de ilusões reformistas, recusante de qualquer

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pensamento que não proponha aplicações práticas imediatas (DESGRANGES, 2015, p.167).

Desgranges complementa que é necessário negar o estranho que se tornou

normal e reacender a importância de imaginar e concretizar mudanças por meio

das artes cênicas, já que estas possuem um forte caráter de diálogo com a

sociedade e podem promover a oportunidade de reformular saídas.

Concordo que o lugar dos artistas nessa sociedade seja o caos, não como

sinônimo de desordem, mas como esta saída que sugere Desgranges. O caos

como ruptura das estruturas inertes, como livre-ação para viver o fugaz.

Contudo, o caos não é apenas uma forma imediata através da qual se constitui um certo “olhar’ sobre a cidade. O caos recebe também o status de conteúdo inerente à cidade, e que comprovaria, ao contrário da posição anteriormente descrita, a fertilidade e a dinâmica do sentido da vida na cidade. Se o caos é o mal, ele também pode ser o bem e, assim, assumir o papel de teoria explicativa e constituidora da falta de sentido da cidade (BARBOSA, 1999, p.65).

Essa falta de sentido - a imprevisibilidade que é marca emblemática de um

grande centro urbano - é justamente o que fundamenta a presença de “corpos

estranhos” como os da Trilogia Oiticica pelos espaços públicos de São Paulo.

Vejo as apresentações dos três espetáculos pelas praças e calçadas da cidade

como um convite à movimentação do próprio cansaço, alçando-o da letargia ao

“cansaço translúcido”, onde há o acesso à atenção às “formas longas e lentas

que escapam à hiperatenção curta e rápida (HAN, 2015, p.74). Os espetáculos

que compõem a trilogia montam labirintos poéticos onde o sujeito possa retomar

o estado de contemplação, onde sua alma possa se perder para reencontra-se

outra.

Mariana Muniz traz a presença de pequenos labirintos concretos nos três

trabalhos: os bailarinos organizam e desconstroem, utilizando os objetos de

cena, estruturas que sugerem caminhos e interrupções para seus movimentos,

idas e vindas em busca de uma fuga ou saída. Mas para além dos labirintos

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materiais, a estrutura dramatúrgica dos espetáculos sugere microlabirintos

imagéticos e sensoriais, uma colagem de pequenas proposições coreográficas

que combinam elementos aparentemente opostos: o silêncio e o estrondo de

sons metálicos, a liberdade dos corpos e a constrição do espaço construído,

saltos para o alto interrompidos por quem está enraizado no chão, a convulsão

e a placidez. Podemos ver um paralelo direto entre a intenção artística em

Trilogia Oiticica e os penetráveis construídos pelo artista plástico que a inspirou.

Para além de uma proposição imagética, os penetráveis de Hélio Oiticica

ofereciam dois espaços distintos com dois níveis de interpretação

correspondentes. Tomemos como exemplo o penetrável Tropicália, de 1969: se

seu exterior pudesse sugerir, a olhos mais desatentos e apressados, a

representação superficial de uma paisagem típica de uma favela carioca, seu

interior proporcionava a vivência de diferentes elementos táteis e visuais:

diferentes texturas, estampas e cores combinadas com os estímulos sonoros do

televisor no meio do labirinto, convidando o espectador ao percurso e à

experiência da colagem de significados e sensações sugeridas pelo ambiente.

Tudo somado, havia em Tropicália a vontade de propor, em contraposição à “avalanche informativa e imagética” que a sociedade moderna impunha desde fora, um retorno a experiências basilares de vida, uma estratégia para descondicionar-se de um contexto social alienante (ANJOS, 2012, p.28).

O mesmo é sugerido pelas três coreografias de Mariana Muniz: pode o

espectador escolher encará-las como corpos estranhos que desordenam a

cidade ou permitir-se vivenciar uma relação extra cotidiana na mesma paisagem

urbana que a envolve diariamente. Se não exige sua implicação física no

espetáculo – pois não há momentos em que o público é convidado a dançar de

fato – Trilogia Oiticica convoca os espectadores ao jogo sensível numa

atmosfera quase onírica, onde os mesmos elementos urbanos de todos os dias

– prédios, carros, buzinas, poluição – se mesclam a composições entre corpos

que se encontram em outra relação espaço-temporal. As frases pontuais ditas

pelos intérpretes ora espelham o cansaço do cidadão (“É incrível como este

corpo me limita! ”, grita uma das intérpretes em Nucleares na Rua, enquanto tem

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todo o seu corpo perpassado por fortes tremores e chicoteios), ora trazem frases

comumente usadas em nossa sociedade de produtividade (“Começo e recomeço

parece que nunca terminam. Ser o desafio de mim mesmo”, outra intérprete

emite de um megafone, no mesmo espetáculo), ora incitam diretamente o

espectador a romper com o cotidiano (“Dentro da minha cabeça procuro modos

de existir diferentes ”, diz a personagem de Mariana Muniz, a andarilha louca de

Penetráveis). Nada em Trilogia Oiticica chega em linha reta ao espectador, cabe

a ele jogar-se na experiência e criar caminhos e saídas possíveis dos

microlabirintos sensoriais propostos por Mariana Muniz.

Fig. 10 – Penetráveis, da Cia Mariana Muniz de Dança e Teatro. Na foto: Lau Vicente, Gilberto

Rodrigues, Bárbara Faustino e Talita Souza. Foto de Claudio Gimenez.

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Capítulo 3: Entre Vãos

Dia 14: Escavar concreto, jorrar vida

De certa maneira, este DIÁRIO vem sendo escrito desde 2010.

Escrito na pele, na alma e na linha da vida.

Num desses encontros em que a vida entorta seu caminho só para fazê-lo

acontecer, duas amigas – eu atriz, ela bailarina – tentamos descobrir juntas

nossa maneira de fazer arte. Íamos para uma sala de ensaio – paredes brancas,

janelas lá no alto, chão de tábua de madeira crua – e ali nos aquecíamos,

(re)contorcíamos nossos corpos, suávamos. De que matéria é feita e com que

propósito teima essa ideia de se colocar em relação a um público (quem é ele)?

Sobre o que “falaremos”?

Tentando romper a casca-corpo, chegamos (?) à poesia. Abre-se para nós um

pequeno texto que espelharia um caminho que hoje desemboca aqui.

Do desencontro

“Às vezes é no desencontro

que as almas se revelam

quando se ferem se lanham

com palavras lágrimas e insultos

e só lhes resta o assombro

Bem que gostaríamos

fosse ameno doce ou luminoso

o encontro mas é no desencontro

que às vezes as almas se revelam

quando ásperas ou agressivas

se tocam no mais fundo

e perplexas se contemplam como se contempla

o intransponível abismo.

Affonso Romano de Sant'anna (2005)

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Binômios extraídos dos registros dessa época:

corpo e voz;

corpo e objeto;

dança e teatro;

poesia e cotidiano;

espaços público e cênico.

(hoje sei da ineficácia da linearidade traçada entre polos, mas ali nos serviu de

alicerce)

Fig. 11: Desencontro, de A Digna. Na foto, Ana Vitória Bella e Helena Cardoso. Foto de Julian Marques.

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Foram essas palavras que nos levaram primeiramente à praça da Sé, depois a

outras praças.

Desencontro, nossa estreia como A Digna Companhia de Teatro e Dança.32

Duas figuras traçam seus caminhos de ações repetitivas, foco nos objetos

pessoais, seus olhares não escapam deles. As figuras cruzam a praça, vêm de

pontos opostos. Se misturam entre passantes, pregadores do evangelho,

policiais, ambulantes e famílias em situação de rua. As fachadas gris das ruas

laterais à praça e a oponência da catedral, em oposição ao céu azul de inverno.

Ali, no Marco Zero da cidade, nasce o embrião dessa necessidade de enfoque

em tudo e todos que formam(os) São Paulo. Tentativa de reinventar esse grande

amor formado de pequenos ódios por ser/estar (n)essa cidade com todas as

suas idiossincrasias. Essa tem sido a nossa divisa.

No ano seguinte, passamos a ser três: ela, a bailarina-atriz, Ana Vitória Bella;

ele, o ator-dramaturgo, Victor Nóvoa; e eu. A chegada de Victor foi fundamental

para que os contornos dessa pesquisa fossem cavados mais a fundo. Seus

textos escancaram a beleza e a crueldade das relações humanas e rompem

paredes entre ficção e realidade, poesia e concreto.

Depois de Quase-Memória e Bolo de Lobo (ambos de 2012), fomos

contemplados com dois editais que permitiram que nosso mergulho na cidade

começasse a ganhar profundidade: Denise desenha nas paredes (2014)33,

inspirado na obra e posição política do artista britânico Banksy, propunha ao

público infantil o desenvolvimento de um olhar artístico para a cidade que

pudesse transformar manchas e buracos dos muros em arte; Condomínio Nova

32 O nome do grupo foi reduzido para A Digna ao longo dos anos, por manter relações de criação coletiva e horizontal com seus parceiros, não cabendo mais a nomenclatura de companhia, o que sugeriria uma relação mais estanque entre núcleo central e colaboradores convidados.

33 Denise desenha nas paredes foi contemplado pelo edital do 18º Festival Cultura Inglesa. O

festival é produzido pela iniciativa privada (Fundação Cultura Inglesa), mas possui caráter público ao fomentar anualmente a produção de obras de diversas linguagens artísticas e oferecer acesso gratuito a todas elas. Para saber mais do espetáculo: http://adigna.com/denise-desenha-nas-paredes.html

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Era (2014)34 marca o começo da nossa Trilogia do Despejo, que teve

continuidade em Entre Vãos, espetáculo de que trato aqui.

Condomínio Nova Era se baseia na experiência pessoal de Victor Nóvoa, quando

viveu por oito meses num quarto de uma pensão homônima na Rua Apa, no

bairro de Campos Elíseos. Seus personagens ficcionais incorporam fragmentos

de histórias vividas pelos moradores da pensão real, que sofreram constantes

ameaças de despejo até enfrentarem uma última reintegração de posse em 2016

e a demolição consequente do prédio. As entrevistas e visitas que fizemos ao

edifício real (realizadas em 2013 e 2014) nos trouxeram dados essenciais para

a compreensão de muitos dos efeitos diretos da especulação imobiliária na vida

de moradores de inúmeros prédios como aquele na região central da cidade. A

maioria dos moradores são migrantes de outras regiões do país, que vieram para

São Paulo na esperança de uma vida mais digna e que tiveram seus sonhos

apedrejados pela competitividade e desigualdade impostas pela rotina

paulistana.

Essas histórias nos interessam por pertencerem a uma parcela importante da

roda capitalista de São Paulo, a “classe baixa”, mão-de-obra barata que derrama

diariamente um suor exangue para manter o mínimo de humanidade: um teto

sob a cabeça, um pouco de comida e rudimentos de relacionamentos. São

pessoas que aparecem nas estatísticas como uma grande massa acinzentada,

sem nomes próprios, sem desejos individuais. No espetáculo Condomínio Nova

Era, entrar em seus quartos de pensão é nos descolarmos do lugar comum

construído pela grande mídia sobre essa parcela da população, para

reconhecermos partes de nós naquelas intimidades: nenhum grande

empreendimento imobiliário pode ser maior que cada uma das vidas humanas

aniquiladas ali.

34 Espetáculo contemplado pelo ProAc 11/2013, para produção de espetáculo inédito e

temporada de teatro. Para ficha técnica e demais detalhes sobre o espetáculo: http://adigna.com/condominio-nova-era.html

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Assim como na geometria fractal, que postula que uma imagem em três

dimensões de qualquer objeto contém todas as informações dele – o todo

contém as partes e as partes contêm o todo35 – tentamos, nos trabalhos da A

Digna, fazer nossas pequenas histórias espelharem o caos inadjetivável que

compõe São Paulo; que elas consigam mostrar o que há de menor, de mais

insignificante, considerado particularidade ou singularidade de sujeitos

quaisquer, para podermos enxergar o todo; que o todo se mostre em alta

definição em cada uma dessas partes.

O jogo entre pequenas partículas e o todo da cidade guia a criação de toda a

Trilogia do Despejo, com ênfase nas transformações ocorridas na cidade por

consequência da especulação imobiliária em suas diversas facetas. Se em

Condomínio Nova Era o foco estava sobre os moradores de uma pensão em vias

de ser desocupada, em Entre Vãos (2016) o eixo central é a continuação das

vidas despejadas do Edifício São Vito, prédio que abrigava milhares de pessoas

35 A Geometria Fractal é comumente associada à Teoria do Caos e por esse motivo a utilizo como metáfora aqui. Para mais informações sobre esta relação, sugiro a leitura de GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. 4ª edição. São Paulo: Editora Campus, 1991.

Fig. 12: Condomínio Nova Era, de A Digna. Na foto, Helena Cardoso. Foto de Alécio Cezar.

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na região do Parque Dom Pedro e que tinha como propósito a moradia no centro

para trabalhadores da região. Em 2010, a prefeitura da cidade decidiu demolir o

prédio ao invés de revitalizá-lo, mesmo sendo sua destruição mais custosa para

os cofres públicos do que sua reforma. Nosso questionamento central em Entre

Vãos é: Como despejos (concretos e simbólicos) sofridos individualmente têm

impacto no todo da cidade?

A partir de histórias de paulistanos diversos, criamos três personagens que

resumem em si muitas “características de despejo”: uma jovem semianalfabeta

que está grávida e vive nos fundos da pequena loja onde trabalha, que acaba de

falir; um senhor, dono de um sebo dentro de um prédio ocupado por um

movimento de moradia que será demolido para dar lugar a um arranha-céu de

apartamentos e escritórios; uma mulher em processo de demência, presa em

suas lembranças, que está prestes a ser levada do apartamento onde mora “de

favor” para uma clínica. Os três são apresentados ao público por suas funções,

profissões em (vias de) extinção: a Balconista da loja de paletas mexicanas, o

Livreiro e a Anjo de Corredor36. Os despejos aparecem em muitos níveis: nossa

sociedade expele pessoas que não possam ser produtivas, seja por um processo

de envelhecimento ou doença, seja pela falta de uma habilidade ou por oferecer

produtos e serviços que não sejam altamente lucrativos. Nos três casos, são

decisões de terceiros que afetam diretamente a continuidade dessas vidas,

decisões estas motivadas por fatores econômicos e sociais inerentes à nossa

realidade. Os três são forçados a sair das casas onde habitam, mas é também

seu lugar no mundo que está desaparecendo, impelido pelo poder do “progresso”

e da produtividade. Esta força do capital aparece alegorizada pela personagem

Walkyria Ferraz e é sua visita a cada uma das casas que dispara o processo

final de mudança nas três vidas.

36 Anjo de Corredor era uma função existente dentro do Edifício São Vito. Durante o processo de

debilitação da estrutura do prédio, eram habituais os cortes de energia nas áreas comuns, forçando os moradores a subir os 27 andares do prédio pelas escadas. Roubos e estupros passaram a ocorrer, sobretudo à noite, nos corredores. Os Anjos de Corredor eram moradores que, em troca de uma quantia em dinheiro, faziam a escolta de seus vizinhos até seus apartamentos.

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Com o propósito de oferecer aos espectadores uma experiência análoga à rede

de informações que compõe a cidade de São Paulo, o espetáculo é

“pulverizado”: ele acontece simultaneamente em três endereços de bairros

cortados pela linha vermelha do metrô (Campos Elíseos, Santa Cecília e

Anhangabaú). Escolhemos localizar as histórias ao longo deste trecho por ele

cruzar regiões que sofrem diretamente os efeitos da gentrificação, mas que

mantém idiossincrasias que garantem variados repertórios de uso da cidade. O

espectador começa em um desses três endereços, percorre um trecho a pé pelo

bairro, pega o metrô, reunindo-se a todos os outros espectadores na estação Sé

para o ato final, comum às três histórias. A ideia de rede de informações é

completada pelo uso da tecnologia em todo o espetáculo: o uso de celulares,

Skype, WhatsApp e mídias sociais aparece tanto nas histórias quanto na

operacionalização de Entre Vãos, que depende da intercomunicação entre

cenas para garantir a sincronia entre as partes do espetáculo e dar ao público o

sentido de integração com o todo da cidade. É nosso intuito oferecer uma gama

de informações materiais (no contato com o elenco, com os espaços e com o

texto), imateriais (o áudio guia ouvido individualmente durante a caminhada, a

navegação no site antes do espetáculo) e virtuais (as possíveis narrativas

Fig. 13: Entre Vãos, de A Digna. Na foto (deitados), Laís Marques, Helena Cardoso e Plínio Soares. Foto de Alécio Cezar.

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pessoais de cada passante, fomentadas pelas questões lançadas ao longo do

espetáculo e criadas por cada espectador) para que cada pessoa do público

construa, individualmente, entrelaçamentos subjetivos entre eles, quebrando

barreiras entre real e ficcional para formar um novo olhar para a cidade e as

relações que a compõem.

Explico tudo isso na primeira pessoa do plural, porque são pensamentos que

movem nosso coletivo de criação como um todo. Mas a mim, como criadora e

intérprete dessa história, o que toca usar como recursos para materializar essas

vidas? Como fazer jorrar essas vidas?

No início da trajetória de A Digna, eu carregava a crença de que meu corpo

deveria estar preparado para a cena por meio de um treinamento físico que

reinventasse meus movimentos e ações, que expandisse minha potência

expressiva. Mantive a regularidade de um treinamento nos primeiros dois anos

de trabalho, até que as possibilidades de materializar nossas ideias em

espetáculos começaram a ganhar volume. E quanto mais aumentava nossa rede

de parcerias, quantos mais ângulos nosso olhar sobre a cidade ganhava, menos

eu conseguia me isolar da miríade de afazeres e me concentrar somente no

corpo. Eu, que acreditava que a fluidez da presença cênica só se alcançava após

o esvaziamento dos lugares comuns do meu corpo e do escoamento da tirania

dos pensamentos tagarelas que povoam minha mente, me ressenti da

inconstância do treinamento premida pela vida em São Paulo.

São Paulo de inúmeros estímulos sonoros e visuais, de poluições de toda ordem,

de pequenas e grandes violências, de trânsito de pessoas e de veículos; São

Paulo do poder aquisitivo, do perder a vida para ganhar a vida para gastar, gastar

e gastar dinheiro, energia e esperança; São Paulo, hipertexto de

maravilhamentos e indignações. Quando mais eu percebia seus afetos em mim,

maior era minha necessidade de me esvaziar; quanto maior o esforço para me

fechar em uma sala de ensaio e silenciar, mais irresistível era perder-me no caos

efervescente de São Paulo. E é justamente essa contradição que me traz aqui,

diante de você, leitor. Este DIÁRIO é uma tentativa de reunir minhas partículas

em meio ao caos paulistano.

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Falo de minha realidade em São Paulo. Descrevo esta realidade apenas porque

é a que minha experiência conhece. Nela, me vejo desdobrada em várias para

me manter produzindo um trabalho artístico que considero significativo e

pagando as contas de uma vida simples, mas ainda confortável: sou atriz,

produtora, professora de teatro, professora de inglês, faço tradução e revisão. O

dia é dividido em compartimentos espremidos sem muito tempo para refeições

e traslados entre endereços. Os deslocamentos entre espaços – não apenas

entre lugares37 – e a demanda de energia das relações que estabeleço com cada

trabalho, ao mesmo tempo me consomem e me movem à criação artística.

Levando em consideração toda a entrega que aplico em cada uma das inúmeras

atividades que assumo, me questiono sobre as relações entre a sensação de

caos que vivemos na cidade e o estado de criação na minha rotina. Cogito se o

trajeto entre cada compromisso poderia servir como um momento de

“despressurização” que se faz necessária para a sequente imersão total em um

outro universo distinto. Tome como exemplo um curto espaço de tempo entre

uma aula de teatro em inglês para pré-adolescentes e um ensaio de um

espetáculo teatral em processo colaborativo sobre os efeitos da gentrificação na

cidade: cada universo exige linguagens, posturas, pensamentos e ações

diferenciados. Como entrar em estado de criação no segundo espaço, estar

aberta às trocas com o Outro38, se há tanto em mim já consumido pelo espaço

que deixei há pouco? A imensidão de estímulos que atravesso na cidade durante

o deslocamento não ameniza a sensação de soterramento: faróis piscando,

buzinas tocando, pessoas se empurrando pelas calçadas, a pressa traduzida em

falta de paciência e a cegueira diante de todos os outros que ocupam a mesma

cidade. Sinto que quando tento “zerar” a atenção para me dedicar ao próximo

compromisso, sou tomada por uma avalanche de pequenas exigências vindas

de ambos os trabalhos, como se o peso da responsabilidade pela realização de

ambas recaísse apenas sobre os meus ombros. Me sinto esgotada e cansada

pelo “excesso de positividade” de que explica Byung-Chul Han. “O excesso da

37 Utilizo aqui a diferenciação de Michel de Certeau entre as duas palavras: enquanto “lugar” define uma localização geográfica, um ponto fixo, “espaço” se refere às combinações entre variáveis móveis (direção, velocidade e tempo). Em outras palavras, o espaço seria o lugar vivido, experimentado (CERTEAU, 1984). 38 Outro – assim, com maiúscula – reúne, em uma mesma palavra, todas as pessoas e os espaços com que nos relacionamos.

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elevação do desempenho leva a um infarto da alma” (HAN, 2015, p.71). Um

cansaço violento, um olhar que desfigura o outro e só enxerga a si próprio imerso

na miríade de afazeres.

Atravesso ruas e multidões, chego ao espaço de criação. O eu tomado por o-

que-ainda-há-para-se-produzir aos poucos se deixa incorporar pelo espaço

estabelecido pelo coletivo. Arte é abismo, nenhum de nós sabe ao certo o que

virá, como vai se materializar nossa criação. Ali as presilhas do eu se afrouxam

e abre-se um entre onde o peso do eu desloca-se para o mundo:

O entre é um espaço de amizade como in-diferença, onde “ninguém ou nada ‘domina’ ou sequer tem o ‘predomínio’. [...] É um ‘cansaço que confia no mundo’ [...] Ele ‘abre’ o eu, torna-o ‘permeável’ para o mundo. Restabelece a ‘dualidade’ que foi totalmente destruída no cansaço solitário. A gente vê e é vista. A gente toca e é tocada (HAN, 2015, p.72).

Nesse “entre”, me pego vivendo o “cansaço translúcido”, uma capacidade

especial que inspira e faz “surgir o espírito”, ainda seguindo as palavras de Han.

Da velocidade do caos urbano, passo à percepção de “formas longas e lentas”

e a economia da eficiência e da aceleração já não importa. É na in-diferença que

a identidade borra suas margens e tudo se torna mais permeável. No “entre”,

encontro o Outro para gerarmos uma nova maneira de sermos juntos.

Dia 15: Uma ponte entre o dentro e o fora

Faz poucos dias, enquanto conversava com os espectadores de Entre Vãos ao

final de uma das apresentações, alguém me disse: “Essa ideia do dramaturgo

de misturar realidade e ficção, traçando um caminho entre a vida íntima da

personagem e o espaço público e usando a Sé como cenário do ato final é genial”

Ao que respondi: “Mas isso não é uma solução apresentada pelo dramaturgo,

somente. Isso já estava no primeiro projeto do espetáculo, escrito em 2014 e

também aparece em outros espetáculos dirigidos por Luiz Fernando Marques (o

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Lubi, nosso diretor). Usar a Sé foi uma solução para um problema burocrático. E

a experiência da caminhada não aconteceria dessa forma sem uma condução

precisa da trilha sonora criada por Carlos Zimbher...”

E segui enumerando a longa lista de “responsáveis” por cada detalhe que faz da

experiência o que ela é. De fato, não há um só nome na nossa ficha técnica que

seja “O” responsável por esta ou aquela solução ou escolha estética. Entre Vãos

é uma feliz junção de saberes e invenções de dezenas de artistas que

materializaram um desejo que tínhamos na A Digna, desde 2014, de construir

um espetáculo pulverizado.

Os procedimentos aplicados na construção do espetáculo também são uma

junção de saberes e invenções. Muito do que será descrito aqui não apenas se

assemelha como espelha e se inspira em exercícios e experimentos aplicados

por outros artistas em outros processos. Traçar a genealogia de cada parte do

processo nos faria descer por um redemoinho de informações que nos levaria a

outras paragens. Para aproveitarmos a paisagem do curso do leito de Entre

Vãos, proponho a você, leitor, os sabores da experiência vivida por mim, como

atriz criadora desse processo.

Desde a sensibilização corporal do elenco à construção de cada cena, um dos

pontos centrais do projeto é a relação com os espaços onde cada história

acontece. Porém, antes de nos entregarmos à relação com as “moradias” das

personagens, fomos nós - elenco, direção e dramaturgo39 - para uma sala de

ensaio “neutra”, que não seria uma das locações de Entre Vãos, para criar

códigos comuns que aparecessem para o público ao seguir cada uma das

personagens.

O jogo entre espaços interno e externo – que aparece na estrutura geral do

espetáculo, que propõe tanto a vivência do íntimo da casa da personagem como

a efervescência das ruas e do metrô da cidade – também aparece espelhado na

39 Apesar de estarem descritos aqui os procedimentos de construção de personagem e de cena,

ressalto a presença de Victor Nóvoa como dramaturgo em boa parte dos encontros desse período de preparação. As nove versões do texto, escritas ao longo do processo de construção do espetáculo, estiveram embebidas dessa experiência e, por esse motivo, as palavras usadas em cena se moldam confortavelmente à relação corpo-espaço materializada pelos atores e pelas locações. Acredito que a incorporação do texto por mim, como atriz, se deu de forma orgânica, em parte, pelo fato do texto ter sido desenvolvido dessa maneira.

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construção dos corpos das personagens. Nosso objetivo era a construção de um

universo interno da personagem bastante plural, que pairasse sobre o momento

do encontro entre ator e espectadores. Algo análogo aos movimentos da vida:

carregamos conosco toda nossa bagagem histórica, cultural, emocional e

intelectual em todos os encontros e situações que vivemos e é a partir delas que

reagimos, sentimos, tomamos decisões. Como estamos propondo um

ENCONTRO entre ator e espectador, é crucial que o ator não se atenha a

demonstrar sua personagem realizando um certo número de palavras e ações

ensaiadas; ao contrário, é a subjetividade de cada espectador que escolherá

quais olhares, palavras ou ações comporão a história que se descortina para ele.

A criação deste universo interno se assemelha à ideia de ator invisível

desenvolvida por Yoshi Oida (2007), que afirma que o árduo treinamento do ator

não tem por objetivo exibir habilidades desenvolvidas para o público, mas

permitir ao ator atingir a capacidade de “sumir em cena”, deixando que o público

siga as imagens indicadas por ele em vez de admirar seus dotes artísticos.

Podemos dizer que nossa criação em Entre Vãos se vale de alguns recursos

naturalistas, por resultar em personagens que possuem os registros de

movimento e fala cotidianos; no entanto, concordo com Vsévolod Meyerhold

(2012) quando afirma que os atores do teatro naturalista exprimem figuras

acabadas e definidas, sem levar em consideração que o espectador também

pode (e deve) interpretar aquilo que não será mostrado ou dito. Meyerhold afirma

que o teatro naturalista rompe com a capacidade do espectador de completar o

desenho e sonhar, essenciais para a experiência estética. E cita Schopenhauer

para afirmar que

Despertar a fantasia “é a condição imprescindível da ação estética e, por conseguinte, lei fundamental das Belas-Artes. Daí segue que a obra de arte não deve dar tudo às nossas sensações, mas apenas o tanto quanto for necessário para direcionar a fantasia no caminho certo, deixando a ela a palavra final” (MEYERHOLD, 2012, p. 45-46).

Em Entre Vãos, a corporeidade dos atores é um dos principais elementos de

transformação do ambiente numa aura propícia à fantasia de que fala o mestre

russo. Estão, em um mesmo ambiente, espectadores e atores, numa fluência de

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diálogo muito próxima a de qualquer encontro social, como uma visita à casa de

um conhecido. A movimentação das personagens, seu ritmo de fala e seus

silêncios, as ações realizadas em conjunto entre plateia e personagem, para

além do conteúdo de sua fala (composta pelo texto previamente escrito e partes

livremente improvisadas), são os canais de corporificação desse universo interno

da personagem.

As anotações da imagem acima citam dois polos, definidos pela direção do

espetáculo como extremos entre os quais cada personagem transita em sua

trama pessoal. No caso de minha personagem, a Anjo de Corredor, a construção

se deu entre a lembrança e o esquecimento, por se tratar de uma pessoa em

Fig. 14: Diário de bordo de Helena Cardoso para o processo de criação de Entre Vãos. Foto de autoria própria.

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processo de demência. O trânsito entre os polos, os inúmeros caminhos que

podem ser desenhados entre eles, é minha matéria da experimentação neste

processo; experimentação que não se resumiu ao período de ensaios, já que a

interação dos espectadores – suas reações, questionamentos, posturas -, se

apresenta diferente a cada sessão. Utilizo as ferramentas construídas –

posturas, olhares, tempos, sotaque, texto decorado, ações com muitos dos

objetos da casa – raramente em uma mesma sequência e nunca com a total

certeza de seu efeito sob o público. O universo interno da personagem nada

mais é que um largo conjunto de micromovimentos reais e virtuais, em

consonância com a ideia de “corpo da consciência” do filósofo José Gil (2001)40:

as pequenas percepções de espaço e tempo, e de movimentos afetivos e

cinestésicos do corpo.

Para que este universo continue se expandindo a cada apresentação, devo

manter viva a qualidade mais essencial para esse espetáculo: a escuta

relacional, um estado de abertura genuína à contribuição do espectador.

Alcançada esta qualidade de escuta, passa a ser possível que a história seja

contada a partir do encontro entre espectadores e personagens, e não pela

execução de uma sequência lógica de convenções teatrais. Quando, na

anotação da figura, me pergunto sobre a relação com um “espaço que não está

em função das minhas ações”, me refiro justamente a este estado em que muitas

coisas não podem ser previstas pela concepção do espetáculo, justamente pelo

grau de relação direta entre espectador e personagem. Para além de colecionar

diferentes tônus, olhares, movimentações e emoções, devo estar pronta para

que a reação dada aos espectadores caiba dentro daquele universo pessoal,

para que o pacto de “realidade inventada” construído entre nós não seja

quebrado.

O foco do treinamento da escuta relacional proposto pelos diretores Luiz

Fernando Marques e Paulo Arcuri - advindo de experiências anteriores dos dois

artistas – está na conquista de um estado de porosidade que permita que os

micromovimentos da personagem apareçam a partir da relação entre atores,

entre ator e espaço e entre ator e público. O treinamento consistiu na execução

40 Ver Dia 6: Viagem ao centro - micromovimentos

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de jogos teatrais que proporcionassem a improvisação de cenas a partir de um

tema comum e a aplicação de dispositivos pessoais e relacionais. Os dispositivos

podem ser descritos como características de cada jogador, que devem aparecer

a partir da relação entre eles, sem que situações sejam forçadas para

demonstrá-las. Os jogos possuíam diferentes formatos, mas ofereço aqui um

exemplo de dinâmica-base de todos; neste caso, com três jogadores:

Tema (comum a todos os jogadores): CONSTRUÇÃO

Jogador A:

- Dispositivo pessoal: Sou reacionário.

- Dispositivo relacional: Fazer o jogador B me contar um segredo.

Jogador B:

- Dispositivo pessoal: Sou indeciso.

- Dispositivo relacional: Sempre concordo com o jogador C.

Jogador C:

- Dispositivo pessoal: Sou libertário.

- Dispositivo relacional: Tomar o jogador A pelo B.

Um jogador desconhece os dispositivos dos outros. Estabelece-se o tempo limite

de trinta minutos para que a cena aconteça. A proposta central do uso do tema

e dos dispositivos é permitir que a escuta relacional aconteça; que a interação

seja fluida entre os jogadores e o espaço que ocupam. É comum que os atores

entrem nessa dinâmica como em outros jogos de improviso, onde os

participantes propõem constantemente ações e situações, além de aceitar todas

as iniciativas dos outros. Esta estratégia não costuma funcionar nesse tipo de

jogo, pois a proposição constante acaba se impondo como uma “tagarelice” – e

nosso objetivo é a escuta, não a fala. Deve-se reagir, não agir. Um feixe de luz,

um som vindo pela janela, o barulho da respiração do outro, a cor da roupa do

outro jogador... detalhes como esses passam a ser percebidos ao deixarmos a

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proposição constante de lado. E é desses detalhes que a relação começa a se

estabelecer.

O tema pode surgir nem tanto como o assunto da cena, mas como o espírito

dela; as diferentes facetas da palavra-tema podem surgir em momentos

diferentes da improvisação. Construção, o tema sugerido em nosso exemplo,

pode aparecer em ações (Ex.: o empilhamento das bolsas que estão na sala de

ensaio), em ideias (Ex.: construir uma relação a dois), em citações (Ex.: cantar

a música Construção de Chico Buarque). Sejam quais forem as ideias, elas

devem surgir a partir do encontro entre aquelas pessoas naquele determinado

tempo e espaço; o foco está na materialidade do encontro, não numa ideia de

personagem ou de situação gerada antes dos três começarem, de fato, a se

relacionar em jogo.

Quanto aos dispositivos, eles devem ser tratados como características que se

deixam mostrar a partir das situações criadas na improvisação. Novamente, a

comparação com a vida cotidiana nos cabe bem: uma pessoa reacionária não

demonstra suas preferências políticas a todo o momento; são comentários,

olhares, pequenos gestos que surgem em relação a outras pessoas que

demonstram sua tendência contrária à liberdade de pensamento ou ação dos

outros. Estando o jogador aberto à escuta dos outros e do espaço, também

outras características aparecerão a partir dos vínculos criados entre os três na

dinâmica, fazendo surgir um sujeito complexo, cheio de desejos, medos e

contradições – como somos todos os humanos. Para que os dispositivos

relacionais apareçam, deve-se estar atento ao possível desencadeamento de

ações que levem os envolvidos a chegarem à realização das atividades

propostas. Pode-se até “plantar” um assunto que propicie reações que permitam

que, no decorrer da cena, o dispositivo “brote”. Entrar no jogo determinado à

realização do dispositivo é a tendência que convém evitar, pois tratá-lo como um

objetivo a ser cumprido é correr o risco de se tornar obsessivo na cena,

impedindo que outras associações e imagens surjam entre os jogadores; ou seja,

impossibilitar a escuta. Ao invés, pode-se “encaçapar” - perceber que o

dispositivo se encaixa num certo contexto alcançado – numa conversa ou ação

gerada pelo encontro.

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O estado que se quer alcançar ao entrar em jogo é o de porosidade ativa: estou

aberto a receber o que vem do outro e do encontro com ele, do espaço que

ocupamos e de todos os estímulos que essa situação reúne; dentro do meu

estado de alerta, eu “trabalho” internamente, observando momentos em que os

dispositivos possam aparecer. Em suma, é abrir-me para a relação com o Outro,

ao mesmo tempo em que construo uma ponte para que as características que

carrego em meu interior possam se exteriorizar.

Esta ponte entre os mundos interior e exterior é o elemento chave do estar em

cena em Entre Vãos. Num momento futuro, espetáculo pronto, tudo o que

exteriorizo no encontro com o público são micromovimentos. Estamos muito

próximos, personagem e espectadores, reunidos numa sala de estar,

conversando. Os olhares, gestos e movimentos são pequenos e cotidianos, a

Fig. 15: Diário de bordo de Helena Cardoso para o processo de criação de Entre Vãos. Foto de autoria própria.

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voz não é projetada como de cima de um palco. Toda a experimentação do

período de ensaios se materializa nessas pequenas sutilezas que surgem para

construir, diante dos olhos da plateia, a personagem e sua própria realidade. Os

micromovimentos que contam essa história não são apenas físicos, como diria

Steve Paxton: “O movimento é uma superfície física cobrindo tempos inteiros de

vida e experiências totalmente incognoscíveis” (PAXTON apud GIL, 2001,

p.142). O movimento real se prolonga em movimentos virtuais, construindo um

universo de significados concebíveis. Ao longo da cena, a personagem conta

para o público pequenos casos que aconteceram em sua vida. Os movimentos

virtuais que se desenvolvem em minha consciência à medida que eu conto essas

histórias, de alguma maneira, se tornam reais para os espectadores, como

extensões possíveis dos pequenos olhares e gestos executados no espaço. O

movimento imaginado coletivamente tem a potência de transformar-se em

realidade para todos que participam de sua construção. Sobre esta construção

coletiva entre elementos ficcionais e reais, trataremos no dia que está por vir.

Dia 16: Ilhas de memória

E assim seguem os dias de construção do espetáculo.

A prática dos dispositivos se intercala com leituras do texto dramatúrgico, que

vai ganhando versões diferentes a cada encontro. Os jogos aumentam em

complexidade e inserem elementos característicos das personagens e das

situações que se desenham no texto e nas intenções da direção. Passamos da

sala de ensaio “neutra” para os espaços de cena: um salão no andar térreo do

antigo Hotel Cambridge, hoje uma ocupação de moradia popular, no

Anhangabaú; uma loja na Rua Frederico Abranches, na Santa Cecília, onde

funciona uma escola de preparação de atores para a TV; a sala de um sobrado

construído nos anos 1930 nos Campos Elíseos41. As histórias começam a

41 Durante os ensaios de janeiro a março de 2016, a locação da história Anjo de Corredor foi, na

realidade, uma casa de vila na Barra Funda. Faltando vinte dias para a estreia, as proprietárias da casa romperam o contrato e nos “mudamos” para a casa nos Campos Elíseos. Em estilo art deco, a casa tinha pisos em motivos geométricos e janelas longilíneas de vitrais coloridos, além

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ganhar uma outra camada de significação: o espaço. É crucial agora que eu

mantenha minha escuta aberta para deixar que essas paredes, essa luz, esses

móveis, tudo que há de material no ambiente passe a contar essa história

comigo.

Agora, cada ator passa a ensaiar a sua cena na “moradia” de sua personagem

e o conforto do estar em jogo com os colegas quase se desfaz. Para cada uma

das personagens, a cena que acontece dentro de sua casa se divide em três

momentos bastante distintos: um primeiro de recepção e acomodação do

público, onde se estabelece uma relação de intimidade entre personagem e

espectadores; um segundo, com a entrada de Walkyria Ferraz (interpretada por

Ana Vitória Bella), único trecho de interação entre dois atores; e um terceiro,

ainda de troca com a plateia, mas num tom mais distanciado, advindo do choque

que a interferência de Walkyria Ferraz causa na personagem e na plateia. Estar

em estado de escuta relacional se estabelece, portanto, de formas distintas em

cada etapa da cena: (1) na recepção do público, o jogo de “plantar” situações e

assuntos para que a dramaturgia “brote” é muito próximo à dinâmica dos jogos

do treinamento; (2) no embate com Walkyria Ferraz, apesar de ser uma cena

bastante marcada e cronometrada, a porosidade para os movimentos da outra

atriz e dos espectadores é necessária para que a quebra se estabeleça para o

público e se construa a virada necessária à história; (3) no terceiro momento, a

escuta se abre para os próximos atos do espetáculo, pois prepara o público para

o percurso a pé e de metrô, que deve acontecer em sincronia com as

caminhadas dos outros grupos de personagem e espectadores, sem que a

maquinaria de todo o espetáculo se descortine e, principalmente, sem perder o

vínculo estabelecido entre ator e público.

Considero a primeira etapa da cena como o momento de maior porosidade, em

que a plateia se aclimata à realidade da personagem e, para tal, estabeleço um

diálogo aberto com cada espectador. À medida que a conversa se desenrola, eu

“planto” alguns assuntos que façam com que os próprios espectadores tragam,

em suas falas, pretextos para que partes do texto dramatúrgico apareçam. Para

garantir a impressão de que chegamos àquele assunto acidentalmente, dividi o

de decoração de pesados móveis em madeira sólida, o que nos ajudou a construir um ambiente “parado no tempo”, ideal para a história.

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Fig. 16: Texto dramatúrgico de Entre Vãos, versão de novembro de 2015.

Foto de autoria própria.

texto escrito para esse momento em dispositivos, que por sua vez foram

organizados em três fichas. Separei os trechos de texto como peças de um

quebra-cabeça que será montado de maneiras diversas, a depender da

interação com os espectadores de cada apresentação.

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Fig. 16 e 17: Fichas com ilhas de memória para a personagem Anjo de Corredor. Fotos de autoria própria.

Todo o texto da figura 15, além de estudado e decorado, foi dividido em trechos

(ilhas de memória), que aparecem nas fichas das figuras 16 e 17.

Cada ficha sugere um grupo de ilhas de memória que pode aparecer num dado

momento da conversa com os espectadores.

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No caso específico da minha personagem, a Anjo de Corredor, é importante que

algumas informações apareçam depois de um tempo de conversa, para que o

público, ao mesmo tempo em que se ambienta em uma casa dos anos 1980,

não se esqueça que está em 2017, o que o faz perceber que há algo de errado

com a personagem. Também é essencial que eu retorne a alguns assuntos e

repita informações dadas anteriormente, característica comum da demência da

qual a personagem sofre e que os espectadores percebem aos poucos. Ao longo

da conversa, vou propondo ações (ofereço groselha e água para o público, peço

que as pessoas escolham qual disco tocar na vitrola, montamos uma árvore de

Natal juntos, entre outras) que propiciam que eu “encaçape” meus dispositivos e

que a dramaturgia vá se construindo em conjunto com os espectadores. As

fichas foram montadas de maneira a mostrar os trechos da dramaturgia numa

possível sequência que garanta a surpresa crescente dos espectadores; no

entanto, elas devem funcionar apenas como um guia para que eu não me

esqueça de introduzir nenhuma informação essencial à compreensão da história.

As reações dos espectadores são o fator que determina a ordem real em que

cada peça do quebra-cabeça é apresentada.

Cada um dos títulos que compõem as fichas representam um pedaço do texto

que revela parte da história e da personalidade da Anjo de Corredor. Ao ver as

fichas, Victor Nóvoa compreendeu que a dramaturgia estava ali dividida em ilhas

de memória, termo que passou a usar desde então na criação de seus novos

textos dramatúrgicos. As ilhas de memória são, portanto, informações que a

personagem carrega consigo e que “brotam” à medida que a conversa com o

público se desenrola. Deixo de lado a compreensão de um texto dramatúrgico

como algo a ser interpretado em uma sequência lógica que garanta a

compreensão das palavras e das ações nele contidas. A curva dramática da

cena passa a ser dada pela materialidade do encontro, não mais pela sequência

de ideias sugeridas pelo autor do texto.

Nesta cena, todas as ilhas de memória devem ser apresentadas e encaixadas,

respeitando-se a reação do público, num espaço de trinta minutos; após esse

tempo, a personagem Walkyria Ferraz entra e instaura o segundo momento da

cena. Esta personagem visita os três endereços onde acontece o espetáculo;

sua “invasão” nas residências é determinante para a continuação de cada cena

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e deve ser efetuada em um determinado período de tempo para garantir a

sincronia geral do espetáculo. Esse tempo deve ser rigorosamente respeitado:

caso Walkyria Ferraz se atrase em sua cena na casa da Anjo de Corredor, ela

atrasará também sua intervenção nas outras duas histórias, o que compromete

o sincronismo necessário ao último ato, onde os quatro personagens e os três

grupos de espectadores se encontram. Atuar em Entre Vãos é lidar

constantemente com a tensão entre flexibilidade e rigor: a relação construída

com cada público é única e afeta diretamente a composição da história; a

maleabilidade exigida por essa característica, no entanto, não pode

comprometer a simultaneidade que define o todo do espetáculo. O controle entre

os dois extremos está nas mãos dos atores, que devem fazer isso sem colocar

em risco o ritmo da cena, sem perder o vínculo construído com o público, nem

revelar o mecanismo geral em que está envolvido. Por esses motivos, o estado

de atenção e porosidade da escuta relacional é, para mim, o elemento chave

para a interpretação neste espetáculo.

À medida que as ilhas de memória vão aparecendo, construímos juntos, eu e o

grupo de espectadores, nosso microcosmos. Todos os detalhes da residência

nos conta de uma realidade possível em 1984: na televisão, passam notícias

sobre as passeatas das Diretas Já; os retratos da família mostram roupas,

penteados e objetos usados naquela época; as mantas que cobrem os sofás e

os quadros nas paredes compõem com o aparelho de som 3 em 1, os discos em

vinil, o telefone de disco e a secretária eletrônica, um conjunto de objetos que

atestam a data. A personagem anfitriã serve groselha e água e faz comentários

sobre a vizinhança, o que propõe que aquele encontro está acontecendo em um

apartamento do extinto Edifício São Vito, na região do Glicério. A presença de

um cordão de luzinhas coloridas que perpassa as paredes se justifica no

momento em que a Anjo de Corredor sugere a todos a montagem de uma árvore

de Natal com enfeites variados. O caminhar mancando, a repetição na fala, as

costas encurvadas sugerem que a personagem tem uma idade avançada. Esses

elementos ficcionais criam uma camada extra à realidade compartilhada com

todos: estamos em abril ou maio de 2016 numa casa nos Campos Elíseos e a

atriz não passa dos quarenta anos. Não se trata de ignorar o que a materialidade

do espaço e da atriz nos diz quanto à realidade, mas de criar uma fricção entre

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o real e o ficcional. A impressão que pode o público ter de que é necessário

“fingir” que estamos numa festa de Natal dos anos 1980 pelo simples fato de que

estamos em uma peça de teatro é quebrada com a entrada da outra

personagem. A invasão de Walkyria Ferraz reestrutura nosso microcosmos: o

público não está “fingindo” porque é um espetáculo teatral, mas porque é

cúmplice de um universo de fantasia que é fruto da demência da Anjo de

Corredor. Walkyria não olha diretamente para a plateia porque não a enxerga;

aquelas pessoas fazem parte de uma reconstrução de memória da Anjo de

Corredor, de um acontecimento passado traumático que desencadeou sua

doença, como nos conta o crítico Sérgio Zlotnik:

Walkyria Ferraz aparece na metade da peça como um choque de realidade, arrancando a plateia do conforto de uma visita vespertina. A violência do impacto dessa chegada afeta o espetáculo de maneiras diferentes: se, por um lado, obriga Anjo do Corredor a despertar de seu crônico devaneio, de outro, mergulha os espectadores – sem que eles se deem conta – no grau máximo de hipnose, num momento altamente catártico, de que só o bom teatro é capaz de produzir. Enquanto Anjo começa a duvidar de sua ficção; a plateia desprevenida, a partir daí, acredita piamente na peça. Credulidade! Sobretudo porque, ali, não há distância: estamos in loco, enfiados no conflito, sem saída, no fogo cruzado de paixões. Somos queimados por esse fogo, apelo de humanidade. Noutro sentido, o espectador paga um preço por seu voyeurismo. Perto demais da cena, é atingido em cheio pelo trauma. Eis a catarse, ficção cara a Freud da pré-psicanálise. E cara ao Teatro de priscas eras; eficaz ainda hoje – mesmo no teatro experimental, alternativo e “pobre” (tão rico!) – conforme nos revela essa empreitada de A Digna e Cafofo. (ZLOTNIK, 2016, s/p)

O “despertar de seu devaneio”, descrito por Zlotnik, trata-se da construção de

mais uma camada de realidade inventada: quando Anjo de Corredor é filmada

por sua sobrinha Walkyria Ferraz com um tablet, o que vemos na tela é o seu

“verdadeiro” rosto de setenta anos, uma senhora que tem incontinência urinária

e que passa seus dias dentro daquela casa repetindo ações que remontam ao

Natal de 1984. A tentativa desesperada de Walkyria em trazer Anjo de Corredor,

sua tia, à lucidez leva a um embate entre as duas que culmina com a morte de

Walkyria. Em seguida, Anjo de Corredor vê sua imagem no tablet deixado pela

sobrinha em cima do móvel, e a história ganha mais uma camada de ficção: o

choque do perceber-se velha a faz lúcida o suficiente para conseguir descrever

todo o acontecimento traumático. Ao caminhar pela casa, Anjo de Corredor vê o

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corpo de Walkyria, o que revela mais uma camada de consciência trazida à cena:

um estado onde a suspeita de ser a responsável pela morte se mistura com a

confusão de não lembrar quem é a mulher ensanguentada e a vergonha de se

perceber em frente a seus convidados com suas roupas molhadas de urina e

toda a casa bagunçada. Este último estado prepara para a mais uma

transformação profunda no microcosmos criado, pois o desloca para fora das

paredes da casa. Personagem e público passam a caminhar juntos pelo bairro

em busca de reminiscências de suas memórias em meio à realidade das ruas de

São Paulo.

Fig. 18: Entre Vãos de A Digna. Em primeiro plano, Anjo de Corredor (Helena Cardoso, à esq.) e Walkyria Ferraz (Ana Vitória Bella, à dir.). Foto de Alécio Cezar.

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O caminhar cambaleante entre ficção e realidade e entre tempos passado,

presente e futuro é característica comum a muitas obras contemporâneas, como

nos lembra Nicolas Bourriaud, que

utilizam o tempo como material. A forma predomina sobre a coisa, os

fluxos, sobre as categorias: a produção de gestos prevalece sobre a

produção das coisas materiais. Hoje, os espectadores são levados a

entrar em “módulos temporais catalisadores”, em vez de contemplar

objetos imanentes fechados em seu mundo de referências. O artista

chega a se apresentar como um universo de subjetivação em

andamento, como um manequim de sua própria subjetividade: ele se

torna o campo de experiências privilegiadas e o princípio sintético de

sua obra numa evolução prefigurada por toda a história da

modernidade (BOURRIAUD, 2009, p.145).

Trata-se, portanto, de uma obra que tem como essência o ciclo construção-

desconstrução-reconstrução coletivo de um microcosmos flutuante; um

espetáculo que se propõe como exercício de olhar, bem como reflexo entre seres

humanos e entre cidadãos e cidade. A partir do olhar do outro, me revelo humana

para tentar espelhar a humanidade nele; e, juntos, olhamos ao redor,

contemplamos tantos outros e outras que formam a cidade conosco e buscamos

em seus olhares os reflexos de cada um de nós.

se o meu corpo se oferece à partida à vista de outrem, é porque o sei capaz de olhar – porque o meu olhar olhando-o olha o seu olhar. É o olhar que provoca a reflexão do visível: é preciso que o meu olhar se reflita no olhar do outro para que eu me veja nele e para que, ao mesmo tempo, nele veja um olhar outro (GIL apud RABELO, 2014, p.135).

Dia 17: Labirintos (i)materiais

Michel de Certeau (1984) diz que as histórias nos ensinam sobre o cotidiano de

uma comunidade; elas nos mostram fragmentos do dia-a-dia, metáforas do

cotidiano. Nossa intenção em Entre Vãos é propor que suas histórias, enquanto

metáforas de vivências paulistanas, extravasem a fábula contada dentro da

estrutura dramatúrgica e possibilite outras camadas de significação que cruzem

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informações dadas pelo texto dito pelos personagens (que mescla dados reais e

ficcionais) com fatos vividos pelos espectadores, além de conjecturas que o

público possa fazer sobre os passantes nas ruas e no metrô. Levamos o

espectador para um passeio labiríntico, como relata o crítico teatral Welington

Andrade:

O resto da experiência se dá pela natureza errática da iniciativa por parte do espectador (no caso da história do Anjo de Corredor, em esperar pela personagem em um sacolão de Campos Elísios; em entrar com ela em um apartamento que parece vazio, mas localizado em um edifício habitado; em acompanhar sua trajetória envolvente, mas lacunar; em emocionar-se com sua história – destaque-se a atuação de Helena Cardoso, marcada por comovente comedimento -; em acompanhar a atriz pelas ruas até uma estação de metrô, em cujo percurso nos sentimos um pouco atores também, sendo olhados por cidadãos surpreendidos por aquele deslocamento em grupo, às voltas com seus afazeres habituais; em adentrar um vagão de trem rumo ao imponderável…) (ANDRADE, 2017, s/p).

Ao ganhar as ruas, nosso microcosmos é invadido pelas informações que vêm

da cidade, informações factuais (como pessoas em situação de rua, moradores

do bairro passeando com seus cachorros, saída de escola onde mães encontram

filhos) e inventadas, que têm seu nascimento incentivado por nosso áudio guia.

Toda a atividade relacional estimulada na primeira parte do espetáculo se contrai

ao plano pessoal, ao pedirmos que o público coloque seus fones de ouvido, que

receberam ao chegarem para a experiência cênica. Seguimos ainda conectados

pelo olhar e pela vivência que construímos juntos, mas sem trocarmos mais

palavras. Importante ressaltar que o grupo que acompanha até agora a

personagem Anjo de Corredor se limita a quinze pessoas por sessão. Acredito

que a qualidade da cumplicidade construída entre personagem e público seria

outra se o número espectadores fosse maior a cada sessão.

Quando convido o público a ir comigo para as ruas dos Campos Elíseos, vamos

em busca de resquícios da história vivida dentro da casa, agora refletidos na

realidade: crianças que correm pelas ruas são o filho assassinado; o comércio

local são as lojas abandonadas no andar térreo do extinto Edifício São Vito, que

a personagem descreve em suas memórias; senhoras que caminham com

dificuldade são reflexo da própria personagem no fim de sua vida. Vai sendo

erguido um labirinto de referências e conexões que cada espectador faz

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individualmente, envolto pela “manta” sonora (a trilha composta por Carlos

Zimbher) que amarra os acontecimentos da vida íntima da personagem com os

estímulos da rua. Como intérprete, conduzo sutilmente o olhar do grupo que me

segue para pontos e acontecimentos no espaço urbano, onde encontro

conexões com a personagem. Faço isso, contudo, com a compreensão de que

meu olhar é apenas uma sugestão de narratividade, mas que a colagem final

que estrutura os microlabirintos criados por cada espectador é individual e

intransferível.

Isso se dá até a plataforma do metrô, onde a personagem se suicida. A partir de

lá, o grupo segue dentro do vagão, deixando para trás a estação com os restos

mortais da personagem. Levam, no entanto, a memória de sua voz, que passa

a oferecer, como parte do áudio-guia, questionamentos intercalados com a

música. Sugestões como “Olha para as mulheres do metrô, para os olhos de

uma delas. Que despejos estão presentes nos gestos dessa pessoa? ”, “Busca

nos olhos dela o meu filho que perdi”, “E como será a história dela? ”, “E você,

quantos despejos sofreu? ”. O público segue tecendo relações entre si, a

personagem e os passantes até chegar à Sé, onde desembarca para um último

caminhar que conduz seu olhar para o vão circular que une os três andares da

estação. Do andar mais alto, os espectadores contemplam os quatro

personagens que aparecem no andar mais abaixo, em meio aos demais usuários

do metrô, que passam quase sempre apressados e despercebidos de que

compõem um cenário para quem se debruça sobre o parapeito do terceiro andar.

A derradeira despedida das memórias de todas as personagens se dá em meio

a tantos corpos que se esbarram rumo a qualquer lugar.

Ainda com relação à potência do espetáculo para a construção de

microlabirintos imagéticos e conceituais, Welington Andrade ressalta:

Dada sua natureza tão especial, Entre Vãos constitui uma experiência teatral que não somente envolve o espectador nas malhas de uma dramaticidade sutil e delicada, diluída a ponto de se converter em pura performance, como também o convida a refletir sobre o papel que a arte pode desempenhar na vida social mais ampla, fazendo-o perceber a complexidade das formas individuais e coletivas que subjazem a ela. O espetáculo investe, por meio da “partilha do sensível” de que fala o filósofo franco-argelino Jacques Rancière, na crítica ao poder de desestabilização social empreendido imoralmente pelo projeto

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Fig. 19: Público de Entre Vãos no terceiro andar da estação Sé. Foto de Alécio Cezar.

neoliberal, que, dia após a dia, transforma as cidades em não-lugares forjados pelos signos da desfaçatez e da desumanidade. Daí a importância que a dramaturgia assume no recorte dos tempos e dos espaços e na proposição de um desafio que leva os quinze espectadores presentes a cada uma das histórias apresentadas a verem também o que é invisível, a perceberem igualmente o que é imperceptível no cotidiano urbano (ANDRADE, 2017, s/p).

Os microlabirintos individuais, para além da camada imagética e conceitual que

os forma, possuem ao menos duas outras camadas, concretas. A primeira é o

próprio percurso feito pelo grupo, que começa antes mesmo da data escolhida

para assistir a Entre Vãos: o espectador entra no site do espetáculo, se informa

sobre cada história e compra o ingresso; recebe um e-mail com endereço e

horário do encontro, onde será recebido por um técnico da produção; chegando

lá, recebe um celular e algumas instruções; é levado para a residência da

personagem, onde vive a intimidade dela; conduzido pela personagem, cruza o

bairro a pé; pega o metrô até a Sé, onde termina sua jornada. A segunda camada

é a característica labiríntica da estrutura macro do espetáculo, ao desenhar

sobre o mapa de São Paulo três caminhos concomitantes que se entrelaçam no

marco zero da cidade. Ambas as camadas foram criadas com o intuito de

proporcionar ao espectador um espectro de signos que possam ser superpostos

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às leituras feitas por ele de sua vivência concreta de Entre Vãos, permitindo ao

público que inicie a construção da teatralidade do espetáculo antes mesmo do

encontro com o ator.

Os aspectos labirínticos de Entre Vãos revelam um fazer (uma ética) e uma visão

artística (uma estética) imbricadas a partir da premência em construir novas

relações de alteridade para que seja vislumbrada a possibilidade de

desestabilização social de que fala Andrade (2017). Ou ainda, na reflexão de

Paola Jacques sobre a errância urbana,

Essas narrativas errantes são narrativas menores, são micronarrativas diante das grandes narrativas modernas; elas enfatizam as questões da experiência, do corpo e da alteridade na cidade e, assim, reafirmam a enorme potência da vida coletiva, uma complexidade e multiplicidade de sentidos que confronta qualquer “pensamento único” ou consensual, como o promovido hoje por imagens midiáticas luminosas e espetaculares das cidades (JACQUES, 2012, p.20-21)

Não apenas o conteúdo do espetáculo aborda algumas possíveis consequências

da gentrificação do centro da cidade, como a própria caminhada partilhada com

o público trata-se de uma deambulação pelos diferentes cenários desse centro

em transformação. Não foram raros os relatos de espectadores que se diziam

impactados com a experiência de perceber outros detalhes de ruas das quais se

consideram íntimos, por serem moradores do centro; ou emocionados com a

reconexão com boas memórias de um centro que já não cruzam, por possuírem

um cotidiano que evita as ruas “perigosas” do centro; ou ainda impressionados

por “descobrirem” a própria cidade, simplesmente porque percursos a pé não

fazem parte de seu dia-a-dia. Não se trata, portanto, de um convite ao

questionamento sobre nossos usos da cidade apenas no nível racional; Entre

Vãos pretende chamar seus espectadores à vivência de uma cidade repleta de

mazelas de difícil solução, mas que é feita sobretudo de material humano e, por

isso, sempre moldável e passível de transformações.

Graças à Lei Municipal de Fomento ao Teatro, Entre Vãos pode realizar sua

segunda temporada em 2017, com 24 apresentações. A respeito do impacto da

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experiência de Entre Vãos sobre alguns de nossos espectadores, deixo que eles

mesmos se coloquem aqui, brevemente.

“Em várias cenas, eu quis ajudar a personagem em gestos corriqueiros de sua rotina. Me segurei. Minha empatia foi total. Entrei totalmente na história dela, na vida dela. E o mais legal é que, depois, andando com a personagem pelas ruas, eu via várias mulheres da vida real que poderiam perfeitamente ser ela, a Anjo da ficção. Você ganha um fone de ouvido e caminha ouvindo uma trilha específica. Tudo funciona muito bem, é tocante! Parabéns a todos de A Digna Companhia. Se você gosta de teatro como eu gosto, não fique de fora desse ENTRE VÃOS. Uma experiência inesquecível, não apenas por ser teatro itinerante (pois isso muita gente já fez - e fez bem), mas porque a dramaturgia é nota mil - e porque é TEATRO, assim, com todas as letras maiúsculas.” Dib Carneiro Neto

“Talvez, a vida que nos move seja a vida que nos mata. Ou ainda, a cidade que nos move também nos mata. Ao passearmos por nossa existência, criamos nossas próprias mobilizações mas também somos mobilizados pelo que nos circunda, por uma cidade em constante movimento; um movimento que muitas vezes segrega e exclui.” Amilton de Azevedo

“O que, afinal de contas, virá nos socorrer nessa babel desenfreada? Uma história que parte do micro para atingir o macro, que fala do São Vito, mas de todos nós, que nos pergunta como será possível viver em uma cidade com os processos de hierarquizacão entre pessoas, coisas, concreto e carne, como se tivéssemos aceitado mastigar um punhado daquelas pedrinhas que ficam no chão depois que o asfalto seca. ” Vana Medeiros42

42 Todas as falas foram retiradas de relatos em redes sociais. Para ler os comentários na íntegra:

Amilton de Azevedo: https://www.facebook.com/ruinaacesa/posts/1831359750524154:0 Vana Medeiros: https://www.facebook.com/vana.medeiros/posts/10211584211715377 Dib Caneiro Neto: https://www.facebook.com/dib.carneiro/posts/10213136785435309 Luane Araújo: https://www.facebook.com/adigna.sp/photos/a.359887147429287.87789.359492440802091/1316791375072188/?type=3&theater

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Dia 18: Sobre convívio e vãos

A vivência de Entre Vãos, repetida em tantas sessões por nós, criadores da A

Digna, coloca em questionamento também as convicções que carregamos

conosco, enquanto artistas moradores de São Paulo, sobre o que é esta cidade

e como a queremos para nós; nos ajuda a arriscar passos em direção a uma

possível desconstrução do pensamento neoliberal, que impõe que o “caos”

urbano deve ser superado pela “civilidade” garantida por muros, corporações de

segurança e suas câmeras de vigilância, e a truculência de uma força policial

que serve a propósitos higienistas de políticos e empresários. São estas as

questões centrais que nos movem para criar toda a Trilogia do Despejo e que

compartilhamos com nossos cocriadores e espectadores. Em Entre Vãos,

tentamos reverberar estas questões na corporeidade dos atores

(micromovimentos), na construção de nossa dramaturgia convivial

Fig. 21: Postagem de Luane Araújo na rede social Facebook.

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(microcosmos), e na relação ator-espectador-cidade (microlabirintos). As

mesmas questões nos levaram a tentar atritos entre treinamento e cena (ao levar

os dispositivos improvisacionais como auxílio à construção da dramaturgia com

os espectadores), ficção e realidade (ao sugerir, por exemplo, que a realidade

das ruas pudesse ser uma extensão da ficção vivida na casa da personagem) e

forma e conteúdo (ao oferecer aos espectadores a vivência do despejo das

personagens para tratar dos efeitos da gentrificação nas vidas pessoais dos

cidadãos paulistanos).

Entre Condomínio Nova Era e Entre Vãos, pudemos refinar esse

questionamento e apenas agora, após duas temporadas do último espetáculo e

dando sequência à nossa pesquisa com o projeto 3 ATOS por SP – sobre o qual

falarei mais à frente -, nós, o coletivo teatral A Digna, conseguimos vislumbrar o

devir de procedimentos próprios para a criação em convívio (tentativas de

outras formas de relação com cocriadores, com espectadores e com a cidade).

O conceito de ilhas de memória, forjado durante a criação de Entre Vãos, ainda

está sendo elaborado, tanto do ponto de vista da dramaturgia - tomando

desdobramentos na pesquisa de Victor Nóvoa -, quanto do ponto de vista do

ator, em minha pesquisa pessoal. Sinto que em nossas próximas criações ainda

há muito a explorar na troca com os espectadores, pois as interferências do

público em Entre Vãos ainda são limitadas a um determinado momento do

espetáculo e dependem da disposição do ator condutor de cada história em abrir

os poros da cena para a cocriação do público, o que não necessariamente

acontece em toda apresentação. Lembro novamente que este DIÁRIO é um

registro pessoal de uma criação coletiva e todo este relato está prenhe de

desejos e intenções artísticas minhas, mas que não necessariamente refletem

as ações e pensamentos de outros artistas que conosco desenvolveram este

trabalho.

O mesmo posso afirmar sobre a relação com a cidade. Alguns espectadores nos

relataram o desejo de maior interação com a vida pulsante das ruas do centro

de São Paulo, já que nossa condução coloca, intencionalmente, tanto

personagens quanto espectadores numa condição (de certa forma) passiva

frente aos acontecimentos no percurso feito entre ruas e trens até a estação da

Sé. Outros ainda sentiram, no mesmo trecho, a desnecessidade da inclusão de

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comandos diretos ao espectador no áudio-guia, as sugestões como “Olha para

as mulheres do metrô, para os olhos de uma delas”, que citei anteriormente. Para

esses espectadores, a superposição entre ficção e realidade já estava dada na

simples observação dos passantes, tornando tais comandos excessivos. As

intenções artísticas descritas aqui se mantêm no rol de desejos da A Digna e

continuam instigando nossas pesquisas coletivas e pessoais, nos impulsionando

para outras descobertas e feitos futuros. Entre Vãos tem seu lugar de destaque

dentro dessa caminhada e, apesar de continuar sendo moldado a cada

apresentação - como todo espetáculo - mantém sua estrutura geral,

desenvolvida entre 2015 e 2016. A essência da criação coletiva de Entre Vãos

se conserva viva e pulsante, embora surjam versões alternativas como a que

apresentamos em I ATO pela LUZ, conjunto de ações organizadas pela A Digna

no dia 11 de junho de 2017 com o propósito de reunir cidadãos interessados em

pensar os caminhos da gentrificação da região da Luz.

Organizamos o evento após ações da prefeitura e do governo do Estado

realizadas entre maio e junho deste ano, contra os dependentes químicos que

vivem nas ruas do centro de São Paulo, que incluiu ataques com bombas sobre

corpos humanos para que um quarteirão fosse evacuado para a construção de

um novo conjunto de prédios comerciais e residenciais voltados ao consumo da

classe média.43 Ao contrário do que afirmam os informes institucionais, a região

não precisa de uma revitalização, pois já possui vida, a vida de moradores e

comerciantes que está sendo esfacelada pela especulação imobiliária. Além do

confronto físico brutal com os dependentes químicos da chamada Cracolândia,

as ações proporcionaram despejos de dezenas de pessoas e a consequente

demolição de imóveis antes protegidos pelo patrimônio público.

Sendo este o objeto de nossa pesquisa artística, realizamos o I ATO pela LUZ,

que culminou com uma apresentação especial de Entre Vãos, reunindo

43 Em maio de 2017, a gestão do prefeito João Dória, em parceria com o Governador do Estado

Geraldo Alckmin, tomou uma série de medidas para retirar os dependentes químicos das ruas da chamada Cracolândia, um quadrilátero localizado no bairro da Luz. Ações com cavalaria, força física e uso de bombas levaram os dependentes a fugirem apressados para as outras ruas do centro da cidade, onde continuam sem condições de moradia, alimentação e segurança. Para saber mais, convido o leitor a conhecer a problematização da questão feita pelo urbanista João Sette Whitaker: http://cidadesparaquem.org/blog/2017/5/24/o-que-h-por-trs-da-ao-higienista-na-cracolndia

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Fig. 22: Detalhe da cena final de Entre vãos em I Ato pela Luz. Na foto, Helena Cardoso. Foto de Flávio Barollo.

excepcionalmente quarenta espectadores em uma única cena, a do Livreiro –

escolhemos esta história por ser a que trata mais diretamente da especulação

imobiliária – que contou com uma inserção de um trecho da cena de Anjo de

Corredor. No lugar da caminhada até a estação Anhangabaú (para onde o

Livreiro comumente guia seus espectadores), todos caminharam pelo Vale do

Anhangabaú até a estação de metrô São Bento e lá pegaram o trem até a

estação Luz. Na saída do metrô, a personagem Walkyria Ferraz aparece

caminhando pelas ruas da Luz à frente do público, conversando com policiais,

inspecionando terrenos, fazendo ligações telefônicas, numa alusão direta aos

planos de reconstrução da região. O espetáculo terminou num terreno vazio em

uma encruzilhada de ruas tomadas por casas antigas em mau estado de

conservação, que possivelmente serão demolidas na “revitalização” do bairro.

Nossos personagens desfalecem nas ruas da Luz em frente a este casario que

cairá em questão de pouco tempo.

Dentro da programação, também realizamos a última edição da ação “Isso não

é uma aula”, uma série de conversas públicas sobre que tipo de cidade

queremos para nós. Para cada evento convidamos uma pessoa como mediadora

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da conversa-piquenique, sempre aberta a todos os interessados e passantes;

nesta ocasião tivemos conosco Carla Caffé, urbanista, diretora de arte e

professora de arquitetura. Este “Isso não é uma aula” aconteceu no gramado do

Teatro de Contêiner, uma iniciativa da Cia Mungunzá de Teatro em ocupar um

terreno público na região da Luz com a construção de um teatro e uma área de

aberta ao uso de todos os moradores da região, que conta com uma horta

coletiva, sessões de cinema ao ar livre e brinquedos para crianças, entre outras

atividades de convívio. A Cia Mungunzá, além de ceder o espaço e também

participar da conversa de “Isso não é uma aula”, participou do evento com dois

de seus espetáculos, apresentados em seu teatro, Poema suspenso para uma

cidade em queda e Era uma era.

O evento também contou com o marco oficial da criação do Quintal do Contêiner,

uma iniciativa do coletivo Plataforma 2 em ocupar o terreno onde aconteceu a

cena final de Entre Vãos naquela tarde. Seu intuito é inaugurar mais um espaço

de convívio aberto em que possam acontecer festas de rua, manifestações

culturais populares, entre outros eventos voltados para (e mantidos pela)

comunidade.

Acredito que I ATO pela LUZ tenha sensibilizado os participantes para o sentido

de responsabilidade sobre a coisa pública, algo que acredito que devemos

(re)construir para nós enquanto sociedade. Penso que a movimentação coletiva

do pensamento sobre as questões que queremos mudar na cidade é essencial

para que possamos compreender empiricamente a pluralidade que constitui São

Paulo e enxergá-la como algo que deve ser respeitado. Ações como essas

convidam ao convívio, à contemplação ativa e coletiva de quem somos e o que

queremos nos tornar juntos.

O formato de Entre Vãos escolhido para o evento abriu mão da pulverização do

espetáculo pela cidade para a concentração da atenção dos participantes para

uma ação específica de especulação imobiliária. São formas diferentes de

apresentar o mesmo espetáculo que servem a interesses ligeiramente distintos.

A fragmentação do espetáculo em histórias isoladas com um foco em uma

experiência ou tema particular nos abre possibilidades para adaptações que

exploraremos num futuro breve.

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Com a segunda temporada de Entre Vãos (além de todas as outras ações

contidas em 3 ATOS por SP) e I ATO pela LUZ, seguimos tentando abrir outros

vãos de convívio possíveis. Aprendizado, adaptação e trabalhos contínuos.

Fig. 23: Cartaz de divulgação de I ATO pela LUZ. Arte de Flávio Barollo.

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Capítulo 4: Rede hidrográfica

Dia 19: A infiltração, o mofo, a rachadura

Dois rios, Trilogia Oiticica e Entre Vãos.

Que rastros seus leitos silenciosos deixam no concreto que os soterra? O que

aponto aqui são justamente rastros, as reflexões que permitem que ambas as

artistas sigam em suas pesquisas pessoais, nos anos futuros à criação dessas

obras.

A concepção dos dois trabalhos inicia-se por um olhar para dentro de si, que se

escrutina para (re)estabelecer conexões com o Outro, numa prática de expansão

da escuta interna, ou seja, de atenção aos micromovimentos com o auxílio de

estímulos externos: os chamados objetos auxiliares, usados como figurinos e

objetos de cena, no caso da Trilogia Oiticica e a dramaturgia textual reorganizada

como ilhas de memória, na construção de Entre Vãos.

Mariana Muniz (2017) reflete sobre a dificuldade de manter-se em investigação

na relação com os objetos de cena dos espetáculos da Trilogia Oiticica. Objetos

cortantes, pesados, pontiagudos, como placas de madeira, tijolos e varas de

bambu. Para “que o objeto mostrasse o corpo em outras possibilidades de

movimentação, de brilho interno” (MARIANA..., 2017), como intencionava a

artista durante a concepção de Trilogia Oiticica, era necessária a expansão dos

limites corporais pessoais de cada bailarino, ou seja, a exploração de fronteiras

pessoais criadas nas relações com a dor e o cansaço, por exemplo. A

potencialidade do material foi aproveitada dentro das condições de cada artista

envolvido, mesmo que não tenha correspondido às expectativas nutridas por

Mariana para o uso daqueles objetos em cena. Ficam, para os trabalhos futuros,

a compreensão da divisa entre as questões de foro íntimo e as intenções

artísticas e a interconexão entre expectativas pessoais e o que é possível de ser

construído em conjunto por um determinado coletivo.

Sobre o desenvolvimento e a aplicação das ilhas de memória como ponte entre

o universo interno do ator-personagem e o estado cênico, considero ainda

rústicos meus achados. A proposição de dispositivos improvisacionais da

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direção de Entre Vãos no momento dos ensaios me despertou para uma maneira

de construir um estado cênico em constante diálogo com o espaço, com os

parceiros de cena e com a dramaturgia textual, algo que tenho mantido em

experimentação, desde então, em outras ocasiões, como nos encontros do

grupo de pesquisa “Prática como pesquisa”, do Instituto de Artes da Unicamp e

na oficina “Atores Diários”, que ministrei na SP Escola de Teatro em fevereiro de

2017, ação que fez parte de nosso projeto 3 ATOS por SP, contemplado pela Lei

de Fomento ao Teatro. Nesses encontros, pude criar os jogos de improviso e

seus dispositivos e perceber os efeitos da aplicação deles na interação entre os

participantes. Também pude experimentar os dispositivos na relação direta com

a cidade, já que os artistas inscritos em “Atores Diários” os vivenciaram em livres

improvisações nas praças Dom José Gaspar, República e Rotary, todas no

centro de São Paulo. Pedi a todos que registrassem as trocas estabelecidas com

as praças em diários de bordo individuais, que foram compartilhados com todos

os participantes da oficina, o que gerou programas performativos desenvolvidos

e executados nas mesmas praças, na conclusão do curso. Além disso, o retorno

à cena na segunda temporada de Entre Vãos em um novo endereço – em 2017,

a história da Anjo de Corredor foi encenada em um apartamento de um pequeno

prédio nos Campos Elíseos, vizinho à casa utilizada na primeira temporada – fez

expandir meu escopo de micromovimentos para a personagem, dada a

estrutura do apartamento, os novos móveis incorporados à cena e à maior

proximidade do grupo de espectadores – que manteve-se em quinze pessoas,

mas passou a ser acomodado em uma sala menor.

Voltar com o espetáculo um ano depois da primeira temporada, após ter

desenvolvido parte desta pesquisa e deste DIÁRIO, me possibilitou conquistar

novas qualidades de presença cênica e de relação com os espectadores. O

universo interno da personagem – um conjunto de micromovimentos reais e

virtuais –, ao ser compartilhado com os espectadores, se expande

continuamente quando coloco em prática a escuta relacional, um estado de

abertura às reações dos espectadores que alimentam o conjunto de ações,

tônus, olhares e emoções pré-determinados por mim no período de ensaios.

Confirmo na prática o que Jorge Dubatti (2016) afirma sobre o artista da cena:

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ao colocar-se em jogo com todas as variantes de estímulos que podem vir de

três vetores – a dramaturgia textual, o espaço e os espectadores -, o artista

funda um território poético próprio, que se manifesta no acontecimento de atuação, não na grafia do discurso de direção nem no texto do autor. [...] Esse território funciona como uma biopolítica, como espaço de fundação de subjetividade alternativa, de habitabilidade, de liberdade e militância micropolítica, de produção de sentido, e gera um conflito com a densidade da vida cotidiana organizada macropoliticamente a partir de outras regras e outros valores. É um acontecimento ontológico (DUBATTI, 2016, p.179).

A continuidade da construção da cena com a colaboração do público abre o

exercício atoral para o imponderável, que vem de um Outro totalmente

desconhecido. A elaboração de um pacto comum, nosso microcosmos, pede

aos dois lados envolvidos (atriz e espectadores) que exercitemos a alteridade,

num jogo de tensões entre ambos os polos, onde o ceder e o colocar-se estão

nas atitudes de ambos: em determinado momento, eu compreendo que a

maneira de interagir de um certo espectador é questionando a veracidade de

cada fato colocado em cena, então abro espaço para suas colocações e as

incluo em minha narrativa; em outro momento, os espectadores percebem que

a ação sugere uma convenção teatral mais pragmática e reagem passivamente

(quando, por exemplo, os espectadores não intervêm na morte que acontece no

cômodo ao lado de onde se encontram). O exercício de alteridade que encontro

como artista ao abrir-me ao imponderável que vem do outro-espectador também

tem abrangência ética e estética: a ficção é construída a partir da relação real

com o outro (definindo, assim, uma estética) e o lidar com tudo o que o outro me

oferece me mantém em constante elaboração de mim mesma, como atriz e como

ser humano (na elaboração de uma ética).

Pensando a construção de um microcosmos com os parceiros de cena e com

o público nos espetáculos da Trilogia Oiticica, algo que fez-se marcante para

mim nas conversas com Mariana Muniz durante a escrita deste DIÁRIO foram

os dois lados da expansão da consciência de si a partir do contato com os objetos

auxiliares: se o uso dos objetos auxilia na percepção do contorno do próprio

corpo para compreender os limites entre o Eu e o Outro, colateralmente pode

ressaltar o medo do outro-desconhecido (medo este condicionado pelos ideais

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neoliberais que guiam todos nós em certo nível). Quando isso acontece, uma

escolha ética deve ser feita pelo artista: superar o medo aprendido para enxergar

a si e ao Outro de outra maneira, ou simplesmente sucumbir ao medo. Em termos

práticos, esta decisão não é tomada entre polos distintos e opostos; muitas

vezes, a compreensão desse estado de medo se encontra em uma região

nebulosa entre os dois extremos, onde o artista reconhece seu desejo de

superar-se, mas consegue fazê-lo apenas em parte, em breves momentos, até

certos limites. Essas limitações podem transparecer ao outro (o colega de

criação, o espectador) como uma desistência do tentar superar-se. Com relação

a isso, tomo por essencial a lembrança constante de que todos somos artesãos

de nós mesmos: desejamos nos superar para que a arte alcance novos

patamares de comunicação; nos impomos objetivos artísticos em níveis que

ainda não alcançamos para que, assim, possamos nos superar como humanos.

O desenvolvimento de uma ética de trabalho para um coletivo de criação passa

pela compreensão de que todos – Eu e o Outro - estamos em processo de

superação, que cada pessoa possui seu rol particular de questões resolvidas e

outras ainda por desenvolver.

Apesar de haver a consciência de Mariana de que a vontade de interação direta

com a cidade e seus passantes não tenha sido plenamente realizada em Trilogia

Oiticica, identifico como consequência dessa reflexão o engajamento de Mariana

Muniz na busca pelos “vazios plenos” propostos por Hélio Oiticica – encontrados

mesmo que fugazmente – na conexão com o Outro, na percepção dos

microcosmos criados com os espectadores. No momento atual, em 2017, nas

apresentações de seu solo Fados e outros afins, são os atritos com a reação não

esperada do público que a auxiliam na construção de um real flutuante. Os

momentos de vazio pleno proporcionam uma espécie de portal de percepção

não apenas para a artista, mas também para seu público. Nesses breves

momentos, tanto artista quanto espectador podem alcançar um estado de

contemplação de sua vida por meio da obra de arte: pelas frestas da simbologia

presente na obra, o indivíduo enxerga-se por um prisma não-convencional, pleno

de potência de mudança. Não é a arte como puro entretenimento ou como

catarse para depuração dos males cotidianos; é a obra como espelho atemporal

que reflete miríades de outros presentes e futuros possíveis.

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Vislumbrando outras possíveis maneiras de ser através da cena, o indivíduo não

apenas pode cogitar novas posturas pessoais, como pode se permitir repensar

suas relações com tudo e todos ao seu redor. Ao proporem microlabirintos

concretos, imagéticos e conceituais, as obras de Trilogia Oiticica e Entre Vãos

convidam a um diálogo com a cidade que tem a potência de questioná-la em

diferentes âmbitos. Ao apresentar Nucleares na Rua (terceiro trabalho da trilogia)

em meio à Avenida Paulista, por exemplo, Mariana Muniz e os bailarinos da

companhia passam a prover um contraponto aos usos da cidade comumente

estabelecidos ali: a qualidade de movimento entre corpos, os ritmos e as cores

da coreografia entram em atrito com os trabalhadores que passam apressados

durante seu expediente. Nem sempre o estranhamento causado nos passantes

é assimilado por vias poéticas: o contraste entre obra de arte e a realidade de

trabalho de quem passa pode ser compreendido como uma agressão aos que

estão “simplesmente cumprindo seu dever numa quarta-feira à tarde” e “não

podem se dar ao luxo” de dançar em meio à Paulista naquele horário. Surgem

diante disso as questões: a que espaço relegamos a experiência estética em

nosso cotidiano? Trata-se de um luxo ser um artista? Ou seria um luxo entrar em

relação com uma obra de arte? Além disso, ataques verbais com frases como

“Se fosse bom, não estava na rua! ”, transparecem pistas do que o sujeito espera

encontrar no espaço público e o que pensa que “merece” estar dentro de áreas

privadas. Quais são, portanto, nossas expectativas de uso do espaço público no

cotidiano? Se o que encontramos nas ruas é algo necessariamente ruim, onde

depositamos as coisas boas da cidade? Apenas espaços privados são capazes

de gerar experiências poéticas?

Coloco as perguntas em primeira pessoa do plural, sem distinção entre artistas

e espectadores, porque percebo que alguns desses conceitos estão arraigados

em todos nós, sem distinção. O crítico Kil Abreu (2014), ao ressaltar a grande

contribuição social das sedes de coletivos artísticos paulistanos como espaços

de fomento do pensamento e da discussão da vida através da arte (mesmo

sendo inviáveis financeiramente) enxerga um fantasma do pensamento

mercantilista na fala dos próprios artistas que lutam contra essa ideologia:

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O diabo é que esse argumento é uma fala ainda envergonhada para muitos de nós. Uma formação ideologizada nos fez acreditar que isso não é coisa que se diga. Que a criação artística é luxo, é supérfluo, é adereço diante de outras urgências do mundo. Se for para criar poesia que o seja preferencialmente de formas rentáveis e autossustentáveis, nos diz o tempo. É por causa desse arco amplíssimo que garante em todos os níveis e cada vez mais que os artefatos culturais sejam tomados como mercadorias entre outras que não há nada, por exemplo, no âmbito do direito, que ampare essa necessidade vital que é a da existência das sedes (ABREU, 2014, p. 16).

Mais adiante em seu artigo, Abreu cita o filósofo italiano Nuccio Ordine para

definir que os coletivos artísticos paulistanos se caracterizam por sua “inutilidade

paradoxalmente útil justo porque inútil” (ORDINE apud ABREU, 2014, p.16) por

sua resistência aos conceitos do que seria rentável e útil em nossas vidas, ideias

que vêm minando, segundo o filósofo, relações sociais e afetos íntimos. Entendo

que trabalhos como os da Trilogia Oiticica nos trazem um ponto de respiração,

onde possamos ventilar nossas éticas e recriar nossas relações estéticas

justamente por encaixarem-se nesse rótulo de “inútil” dado por alguns

passantes; um inútil útil - essencial, eu diria – para encontrarmos, juntos, novos

caminhos de sociabilidade.

Já a experiência estética em Entre Vãos se dá forçosamente no enfrentamento

do público com tudo o que o espaço urbano tem a oferecer: pessoas de todas

as estaturas e cores de pele, com diferentes sotaques e de distintas classes

sociais, cruzando ruas a pé, em carros importados ou ônibus lotados,

empurrando carroças de madeira ou carrinhos de bebê, em bicicletas ou motos;

pequenos comerciantes, moradores de ocupações, donos de apartamentos

espaçosos, muitos trabalhadores de passagem, alguns turistas, muita gente em

situação de rua. O espectador, ao abrir-se a toda essa diversidade, vindo de um

encontro íntimo com uma vida (a da personagem) em vias de extinguir-se, que

não produz mais nada para o mundo – como a de uma senhora que não opina

mais sobre o mundo de hoje, a Anjo de Corredor; a de uma analfabeta grávida

sem trabalho ou moradia, a Balconista; ou a de um morador de uma ocupação

que dedicou toda a vida a livros velhos, o Livreiro – recebe a chance de abrir-se

às pequenezas de cada ser com quem cruza em seu caminho. Pode, talvez,

deixar-se maravilhar com as idiossincrasias que forma cada indivíduo e

enxergar-se nelas, seja por aproximação ou contraste; é a possibilidade de ver,

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na finitude do outro, a sua própria. Um exercício do descolar preconceitos e

rótulos do olhar para o Outro para que enxerguemos a massa heterogênea que

compõe a cidade como algo potente de beleza, se nos dispomos a usar a

alteridade como cola de ligamento das nossas relações.

A heterogeneidade está nas pessoas que vivem em São Paulo, nos usos que

elas fazem da cidade, nas cores, formas e alturas das construções, nos

caminhos das ruas, ora retos ora angulosos, na natureza que teima em romper

o concreto, com pássaros e árvores que convivem com os bolos de fios e o

barulho de motores, com capivaras que nadam no grosso leito poluído do rio

Pinheiros. Em contraponto a ela, a mentalidade uniformizadora do ideal de

cidade limpa e funcional vive em cada um de nós, criando ruídos que muitas

vezes nos impede de criar maneiras de conviver com o diferente e nos leva a

atitudes desesperadas. Exemplo disso é o apoio de muitos cidadãos à truculenta

ação da prefeitura de desmanche da chamada Cracolândia à qual me referi

anteriormente.

A pacificação do espaço público, através da fabricação de falsos consensos, busca esconder as tensões que são inerentes a esses espaços e, assim, procura esterilizar a própria esfera pública, o que, evidentemente, esterilizaria qualquer experiência e, em particular, a experiência da alteridade nas cidades.

É assim, nessas circunstâncias, que adquire ainda maior relevância a valorização da alteridade urbana, do Outro urbano que resiste à pacificação e desafia a construção desses pseudoconsensos publicitários (JACQUES, 2012, p.14-15).

Tenho consciência de que uma única experiência cênica não é suficiente para a

total dissolução do ideal massacrante de produção e consumo, mas creio que a

partilha do sensível, proposta por nós (A Digna, Cia Mariana Muniz de teatro e

dança, nossos parceiros de criação e todos os artistas que produzem arte nas

mesmas condições e com as mesmas intenções de quebra com o padrão

hegemônico) é geradora de pequenas, mas importantes, mudanças íntimas, que

podem reverberar nas ações entre cidadãos em pequena e larga escala.

Resistências pequenas e cotidianas que propomos e vivemos, seja no resultado

estético de nossos trabalhos, seja na forma como nos relacionamos com os

espectadores e com parceiros de criação, seja na insistência em depurarmos

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nosso olhar para o ato da contemplação, seja na dedicação ao modo artesanal

com que tratamos nosso ofício, seja na luta pela manutenção das políticas

públicas que protegem a arte e a cultura, seja na persistência em tratar a cidade

como espaço de convivência e compartilhamento.

Dia 20: Tentativas de impermeabilização

Rios como Trilogia Oiticica e Entre Vãos estão sofrendo tentativas diretas de

impermeabilização por parte do poder público, em nome do fortalecimento do

mercado e sua produtividade e lucratividade.

A escolha que fizemos – descrita ao longo deste DIÁRIO - por nos

reconhecermos como imersos em uma existência voltada à produção

desenfreada, ao mesmo tempo em que nos mantermos insistentemente

resistentes a ela, onde sucumbimos ao cansaço translúcido que nos permite

enxergar a nós mesmos no Outro e encontrarmos juntos novas formas de

conviver, segue permanentemente ameaçada. Não é algo novo que artistas se

coloquem na contramão do rumo tomado pela macropolítica e esta atitude

perdurará enquanto houver artistas no mundo. Contudo, é importante ressaltar

que as obras retratadas aqui são frutos de um modo de produção das artes da

cena desenvolvido peculiarmente na cidade de São Paulo, que existe em

decorrência da luta da classe artística pela escritura e aplicação de leis que

protegem o modo colaborativo de pesquisa e desenvolvimento de obras

artísticas. Falo, em especial, das leis de Fomento ao Teatro e Fomento à Dança

para a cidade de São Paulo (leis municipais nº 13.279/02 e 14.071/05,

respectivamente), do Prêmio Zé Renato de Teatro (lei municipal nº

15.951/2014)44 e, em parte, da reverberação do Programa de Ação Cultural

(ProAC), de abrangência estadual, (lei estadual nº 12.268/2006) nos coletivos

teatrais da cidade.

44 Fonte: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/fomentos

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Vivemos a contradição de depender de verba pública que garanta que nosso

modo de produção fuja às regras macropolíticas. A extinção ou não execução

das leis já conquistadas relegariam as produções artísticas às leis do livre-

mercado, o que aniquilaria o desejo de uma produção “lenta”, com base na

contemplação, isenta de preocupações mercadológicas. Se nós, artistas,

passarmos a contar simplesmente com a equação entre oferta, procura e livre

concorrência, o cerne da produção deixará de ser a partilha do sensível e se

tornará, necessariamente, artifícios que atraiam o maior número de

espectadores pagantes. Não pretendo aqui fazer uma crítica aos produtores de

espetáculos que oferecem obras de entretenimento – crowd pleasers, peças que

reúnem números e efeitos que seguramente agradam ao público - apenas

localizo as obras da Trilogia Oiticica e Entre Vãos como espetáculos que não se

encaixariam às leis do mercado.

A luta não está apenas em manter a subsistência dos artistas envolvidos nas leis

e programas do município, mas principalmente em garantir à população esses

espaços de respiração oferecidos por espetáculos como Trilogia Oiticica e Entre

Vãos. Obras que encontram, nas brechas da cidade, oportunidades de criar

diferentes “formas do encontrar”, como nos lembra Kil Abreu (2014) em espaços

como galpões, praças, vilas, prédios abandonados e pequenos teatros

construídos e mantidos à contrapelo do capital. Todos esses trabalhos formam

uma complexa rede que envolve procedimentos artísticos “em circunstância”. E o que são essas circunstâncias senão o próprio lugar em que a apresentação acontece, o que se tem a dizer e a mostrar e, eventualmente, o que se tem a ouvir? É o trânsito delicado entre essas coisas que fez e faz vivas (mais que “bom teatro”, mais que bons resultados formais) as experiências destes coletivos. Em geral, uma arte do encontro que não é genérica e, a depender de cada grupo, tem contextos e pontos de chegada próprios (ABREU, 2014, p.17).

Políticas públicas que possibilitam diferentes aproximações com diferentes

parcelas da população, como a heterogeneidade de São Paulo exige. O diálogo

de cada coletivo com cada espaço, aberto à população local e suas

idiossincrasias, permite a construção de uma vivência crítica e estética da

cidade. Para além da formação de plateia como um mecanismo de inserção das

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artes cênicas como um hábito de consumo de seus cidadãos, o que o poder

público faz ao manter – e, quem sabe um dia, expandir – tais leis e programas é

fomentar uma provocação dialógica com as comunidades que formam São

Paulo.

O caráter pedagógico do teatro de espetáculo, dessa maneira, deixaria de ter valor formador para ter valor performático. O conceito de performance, aqui aplicado, não tem o sentido atribuído ao melhoramento da capacidade competitiva, de gerar lucros, a valor de mercado, mas, sim à capacidade de desferir golpes, produzir elaborações estéticas próprias, inesperadas. A ideia de formar espectadores, que pressupõe um patamar a ser atingido, seria substituído pela ideia de processo, de provocação dialógica. Um teatro interessado tanto na capacidade performática do espectador, de reagir aos lances propostos, de desferir golpes surpreendentes, quanto na performance da própria atividade artística, em sua capacidade provocativa, de formular novos alcances, novos jogos de linguagem (DESGRANGES, 2015, p.163).

Graças à Lei de Fomento ao Teatro, Entre Vãos pode realizar sua segunda

temporada em 2017, com 24 apresentações (no mesmo momento em que se dá

o embate com a Secretaria de Cultura aqui descrito), como parte do projeto 3

ATOS por SP, contemplado pela 29ª Edição do Fomento ao Teatro, em que A

Digna se aprofunda na pesquisa sobre as transformações que a cidade sofreu

com o processo de gentrificação ao longo dos anos, algo que modificou a

paisagem de muitos bairros e transformou espaços de convívio em corredores

de passagem ou palcos de relações comerciais, além de ocasionar muitas

demolições e desapropriações para abrir espaço para novos empreendimentos.

Todas as ações do projeto se propõem a oferecer à população momentos de

reflexão crítica e experiência estética, onde se possa, como dito por Flávio

Desgranges, contar com golpes surpreendentes por parte dos espectadores e

provocar novos alcances estéticos para os artistas envolvidos. As atividades

acontecem nas cinco regiões da cidade (Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro),

sempre em espaços públicos e com a participação ativa dos espectadores. 3

ATOS por SP envolve dezenas de artistas em diferentes processos colaborativos

em formato de espetáculo, intervenções urbanas, debates abertos ao público e

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oficinas.45 Essas ações combinadas culminarão com a criação do último

espetáculo da Trilogia do Despejo, que desejamos realizar em 2018.

Em 2017, Mariana Muniz também segue criando com o apoio da 20ª edição do

Fomento à Dança. A criação do solo Fados e Outros Afins e a realização de

oficinas contam com o envolvimento de mais de uma dezena de artistas, entre

cocriadores e aprendizes. O projeto dá continuidade à sua pesquisa sobre as

relações entre o pensamento e corpo-gesto em dança e teatro, além de

investigar os limites das conexões entre questões coreográficas, dramatúrgicas,

visuais e performáticas.

E assim seguimos as duas, de mãos dadas com nossos parceiros de criação,

cavando novos leitos afluentes das corredeiras anteriores, em equilíbrio precário,

sob ameaças de um governo que parece preferir secar as nascentes em vez de

aceitar as infiltrações e rachaduras que nossos rios provocam no concreto fosco.

As dezenas de artistas envolvidas em nossos dois projetos se multiplicam pelo

número de outros projetos contemplados agora e em edições anteriores dos

programas e leis. Enfrentamos tormentas, mas somos milhares.

Dia 21: Ruídos do silêncio aparente

Aos ocupados com as questões macropolíticas, talvez pareça ínfimo o alcance

de cada iniciativa dos coletivos artísticos paulistanos. São ações em escala

micro, inseridas em pequenas parcelas da cidade, raramente atingindo uma

centena de espectadores por sessão; para quem se relaciona com a cidade em

números e planilhas, isso pode parecer nada. Mas caminho por diversos pontos

de São Paulo e vejo o movimento, ouço os ruídos das rachaduras que se abrem

a cada relação construída com o espectador, cada experiência estética,

artesania lenta e cuidadosa, não apenas pelos artistas da Trilogia Oiticica e de

Entre Vãos, mas pelos tantos coletivos espalhados pela cidade.

45 Para mais informações sobre o projeto 3 ATOS por SP: http://adigna.com/3-atos-por-sao-

paulo.html

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Grupo XIX, Cia Mungunzá, Mundana Companhia, Grupo Esparrama, Cia Livre,

Cia. Balagan, A Próxima Companhia, Folias d’Arte, Cia do Feijão, Cia do Tijolo,

Plataforma 2, Cia Pessoal do Faroeste, Coletivo Negro, Humbalada, Trupe Sinhá

Zózima, Coletivo Estopô Balaio, Mundu Rodá, Núcleo Pavanelli, Os Satyros, Cia.

Teatral As Graças, Tablado de Arruar, Cia Antropofágica, Teatro da Vertigem,

Pombas Urbanas, Dolores Boca Aberta Mecatrônica, Teatro do Incêndio, Cia

Artehúmus, II Trupe de Choque, Engenho Teatral, Cia Paideia de Teatro, Cia

Estável de Teatro, Companhia de Teatro Heliópolis, Teatro da Revista, Kiwi Cia

de Teatro, Capulanas, Vagalum Tum Tum, Cia. Os Filhos de Olorum, Grupo

Refinaria Teatral, As Meninas do Conto, Academia de Palhaços, Núcleo

Macabea, Giramundo, Redimunho, Sobrevento, Cia Elevador de Teatro

Panorâmico, Club Noir, Teatro Oficina, Teatro Kunyn, Cia Teatro Documentário,

Coletivo de Galochas, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Parlapatões, C.T.I

Cia Teatro da Investigação, Os Crespos, Cia Ocamorana, Núcleo Experimental,

Teatro Ventoforte, Grupo Pandora de Teatro, Cia do Miolo, Os Fofos Encenam,

Teatro da Travessia, Fraternal Cia de Artes e Malas-Artes, Brava Companhia,

Cemitério de Automóveis, J.Garcia & Cia, Cia. Linhas Aéreas, Cia Corpos

Nômades, Cia. Sansacroma, Caleidos Cia de Danças, Cia Fragmentos da

Dança, Taanteatro, Cia Borelli de Dança, ...Avoa! Núcleo Artístico, Núcleo

OMSTRAB, Balangandança Cia, Cia Damas em Trânsito, Silvia Geraldi Cia de

Dança, Núcleo Juanita, Grupo Lagartixa na Janela, Núcleo Cinematográfico de

Dança, Grupo Zumb.boys, Cia Brasílica, Cia Treme Terra, Coletivo Cartográfico,

Cia Oito Nova Dança, Cia Mariana Muniz de Teatro e Dança, A Digna.

Para citar alguns.

Sei que ainda faltam nomes nessa lista.

O imbricamento entre gestão pública e empresarial que tem se acirrado

ultimamente na política mundial aponta, em São Paulo, para um esmorecimento

de políticas públicas que contemplem formas de produção que fujam às leis do

mercado. Atitudes autoritárias como a brusca mudança no texto do edital

referente à Lei do Fomento à Dança, que descaracteriza seu princípio de

incentivo à “pesquisa, produção, circulação e manutenção de companhias

estabelecidas na cidade há pelo menos três anos, trabalhando pela difusão,

reflexão e formação de novos públicos e criadores em dança contemporânea”

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(SÃO PAULO, 2017, s/p). Após revogar o primeiro edital lançado no ano de 2017

e anular sua comissão julgadora, o Secretário de Cultura André Sturm publicou,

em março deste ano, um novo edital com um texto que determina a supressão

da competência da comissão julgadora em analisar os orçamentos

apresentados, além de determinar que 60% do pagamento seja executado

somente após a conclusão do projeto, entre outras mudanças. Esta última

determinação desconstrói o nome próprio da lei, já que obriga os coletivos a

buscarem outras formas de financiamento, em vez de aplicar a lei para fomentar

propostas com “dificuldade de sustentação econômica do projeto no mercado”

(lei 14.071/05, art. 15, VII).46

Outra atitude da atual prefeitura que indica sua pouca vontade em colaborar com

incentivos à Cultura é o congelamento de 43,5% da verba destinada à pasta de

Cultura para o ano de 2017, verba esta que totaliza menos de 1% do orçamento

anual geral do município. Os 56,5% restantes somam um valor suficiente apenas

para a manutenção dos aparelhos administrativos da Secretaria de Cultura e não

contemplariam as parcelas dos projetos que já estão em andamento do Fomento

à Dança, do Fomento ao Teatro, do Prêmio Zé Renato e de outros editais como

Redes e Ruas, Fomento à Periferia (que teria sua primeira edição contemplada

no início de 2017), editais para projetos de Circo, Música e Cinema, entre outros.

Todos os outros programas e espaços culturais sob a tutela da secretaria

também foram duramente ameaçados e modificados, como o Programa

Vocacional, o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), a Escola Municipal de

Iniciação Artística (EMIA), as Casas de Cultura, as bibliotecas municipais, para

citar apenas algumas das fontes de acesso à cultura e à formação artística

espalhadas pela cidade. Formou-se, em contraposição às decisões tomadas

pela Secretaria sem a participação da classe artística, a Frente Única da Cultura,

que tem articulado atos em protesto pela manutenção de todos os programas e

leis culturais e pelo descongelamento da verba. São muitas as tentativas de

diálogo com o secretário e são poucas as conquistas – até maio de 2017, apenas

o pagamento de parte dos projetos já contemplados havia sido garantido -,

46 Sugiro a leitura da análise feita por Elaine Calux na Folha de São Paulo em 02 de maio de

2017: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1880232-novo-edital-desrespeita-e-fere-principios-da-lei-de-fomento.shtml?cmpid=compfb

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apesar das declarações públicas do secretário e do prefeito aos veículos

principais da mídia de que praticam uma política de escuta e diálogo.

Todos esses artistas seguem seus cursos contra a corrente do mercado,

trazendo proposições à cidade de novas relações humanas, usando a cidade

como mote, seja como tema de suas pesquisas artísticas, seja tentando manter

abertas as portas de seus espaços para a população (e muitas vezes

enfrentando despejos e recomeçando do zero na luta contra a especulação

imobiliária), seja transformando memórias de moradores em narrativas poéticas,

seja oferecendo atividades que extrapolam o teatro e a dança para tentar suprir,

com as próprias mãos, a carência de equipamentos culturais em suas

comunidades, seja ocupando espaços ociosos e os transformando em centros

culturais, seja em atividades de formação, seja assimilando a vida do entorno e

a transformando em narrativa. Artistas que criam em relação direta com a cidade

e que permanecem às margens do esquema mercantil, desinteressados no

entretenimento puro, apartados do sistema de criação artística feita sob a

Fig. 23: 2º Ato contra o descongelamento, da Frente Única de Cultura. Foto de autoria própria.

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encomenda de grandes empresas e interesses mercadológicos. Cada um

desses grupos de artistas constrói novos territórios, inunda terrenos com sua

arte, infiltra mentes e corações e, lentamente, abre vãos para que uma outra

cidade, cada vez mais apropriada de sua pluralidade, possa se firmar acima dos

macro(des)mandos daqueles que tentam manter São Paulo cruel e fria, para que

poucos continuem no controle de muitos, governando para seu deleite e lucro

pessoais.

Os rios seguem seu curso. Sempre.

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REFERÊNCIAS

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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo:

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VISHNIVETZ, Berta. Eutonia: educação do corpo para o ser. São Paulo:

Summus, 1995.

ZLOTNIK, Sérgio. Teatro, cidade, memória. Portal da SP Escola de Teatro,

2016. Disponível em

http://www.spescoladeteatro.org.br/noticias/ver.php?id=5254

Bibliografia complementar

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2003.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto editora, 1997.

FOUCAULT, Michel. Tecnologias de si. São Paulo: verve - revistado Núcleo de

Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências

Sociais da PUC-SP, número 6, 1676-9090, 2004, p. 321-360.

GULLAR, Ferreira. Poema sujo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Vestígios. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

SANTOS, Angela. A biomecânica da coordenação motora. São Paulo:

Summus, 2002.

Referências audiovisuais

A DANÇA no espaço urbano - Cia. Mariana Muniz de Teatro e Dança. Projeto

Laços Virtuais da Dança. Direção: Osmar Zampieri. Produção: Natália

Gresenberg e Talita Bretas. Curadoria e entrevista: Ana Terra, 2015. Disponível

em https://www.youtube.com/watch?v=COv6UTq1Nws

MARIANA Muniz: entrevista. Produção de Helena Cardoso, 2017. Disponível em

https://www.youtube.com/playlist?list=PL88IEfxasAa17lLQmAblQxw00pybUO--

o

Referências em meio eletrônico

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http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/fomentos Acesso: 21 junho

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A DIGNA. Coletivo teatral. Site oficial. Disponível em http://www.adigna.com/

Acesso: 21 junho 2017.

TRAJETÓRIAS. Mariana Muniz. Site do Museu da Dança. Disponível em

http://museudadanca.com.br/mariana-muniz Acesso: 21 junho 2017.

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APÊNDICES

Fichas técnicas dos espetáculos da Companhia Mariana Muniz de teatro e dança citados:

Parangolés (estreia em 2008)

Concepção e Direção: Mariana Muniz

Assistente de Direção: Cláudio Gimenez

Intérpretes: Barbara Faustino, Danielli Mendes, Mariana Muniz, Ronaldo Silva, Thalita Souza e Thais Ushirobira

Iluminação: Ricardo Bueno

Música: Celso Nascimento e Ricardo Severo

Figurino: Tânia Marcondes

Professores convidados: Acácio Ribeiro, Carlos Avelino de Arruda Camargo, Toninho Macedo e Valéria Cano Bravi

Produção Executiva: José Renato F.de Almeida

Penetráveis (estreia em 2010)

Concepção e Direção: Mariana Muniz

Assistente de Direção: Cláudio Gimenez

Intérpretes: Amanda Correa, Bárbara Faustino, Danielli Mendes, Gilberto Rodrigues, Mariana Muniz e Viviane Fontes

Iluminação: Ricardo Bueno

Música Composta: Ricardo Severo e LoopB

Figurino: Tânia Marcondes

Produção Executiva: Cria da Casa Art Productions (Cybelle Young e Priscila Wille)

Nucleares na rua (estreia em 2011)

Concepção e direção coreográfica: Mariana Muniz

Assistência, Cenografia e Fotografias: Cláudio Gimenez

Criadores-intérpretes: Amanda Correa, Bárbara Faustino, Danielli Mendes, Gilberto Rodrigues e Viviane Fontes

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Textos (off): Hélio Oiticica

Voz: Mariana Muniz

Estagiárias: Luzia Bugno, Marina Salomon e Tatiana Saltini

Música Original: Ricardo Severo

Figurinos: Tânia Marcondes

Iluminação: Ricardo Bueno

Produção: Cria da Casa Art Productions (Cybelle Young e Priscila Wille)

Fados e outros afins (estreia em 2017)

Direção geral, criadora-intérprete e orientadora do Grupo de Estudos: Mariana Muniz

Direção Artística: Maria Thaís

Assistente de Direção, Cenografia e Fotos: Cláudio Gimenez

Coordenação pedagógica do Grupo de Estudos: Cynthia Domenico

Dramaturgia: Murilo de Paula e Carlos Avelino de Arruda Camargo

Trilha sonora: Divanir Gattamorta

Figurinista: Chris Aizner

Desenho de luz: Aline Santini

Cenografia: Julio Dojcsar e Rogério Santos

Operação som: Luciano Renan

Registro em vídeo/webserie: Marcos Yoshi

Assessoria de Imprensa: Fabio Camara

Designer: Fabio Borges

Coordenação de Produção: Natália Gresenberg e Talita Bretas – Ação Cênica Produções Artísticas

Assistente de Produção: Rafael Petri

Aprendizes: Ana Mesquita, Barbara da Silva Borges, Camille de Oliveira Nascimento, Fernando Castanho de Almeida Pernambuco, Gabriela Lorrayne Araujo Santos, Giovanna Santos Guadanholi, Gustavo Fataki Silva Oliveira, Juliana Celentano Rocha, Livia Baena dos Santos, Luciano Renan Santos Antunes e Nicholas Belem Leite

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Fichas técnicas dos espetáculos da A Digna citados:

Desencontro (estreia em 2010)

Concepção e Interpretação: Ana Vitória Bella e Helena Cardoso

Apoio técnico: Dresler Aguilera

Filmagem: Ligia Slywitch e Fred Siviero

Fotos: Julián Marques

Denise desenha nas paredes (estreia em 2014)

Direção: Vinícius Torres Machado

Dramaturgia: Victor Nóvoa

Elenco: Ana Vitória Bella, Eduardo Mossri e Helena Cardoso

Cenário e Figurino: Eliseu Weide

Assistente de cenário e figurino: Giulia Fontes

Criação de luz: Lui Seixas

Animação: Gustavo Torres Machado, com ilustrações de Eliseu Weide

Trilha sonora original: Pablo Mendoza

Produção: Victor Nóvoa

Condomínio Nova Era (estreia em 2014)

Direção: Rogério Tarifa

Dramaturgia: Victor Nóvoa

Elenco: Adilson Azevedo, Carlos Zimbher, Eduardo Mossri, Flavio Barollo,

Helena Cardoso, Jonathan Silva, Jussara Bracco, Karen Menatti, Rogério Tarifa,

Victor Nóvoa

Cenografia e Figurinos: Ana Rita Bueno

Desenho de Luz: Marisa Bentivegna

Trilha sonora: Carlos Zimbher e Jonathan Silva

Instalação audiovisual: Flavio Barollo

Produção: Helena Cardoso

Assistência de Produção: Ana Vitória Bella

Fotos: Alécio Cezar

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Filmagem: Bruta Flor

Programação visual: Vertente Design

Concepção: A Digna

Entre Vãos (estreia em 2016)

Direção: Luiz Fernando Marques

Diretor assistente: Paulo Arcuri

Dramaturgia: Victor Nóvoa

Elenco: Ana Vitória Bella, Helena Cardoso, Laís Marques e Plinio Soares

Videografismo e Tecnologias: Um Cafofo (André Grynwask e Priscila Argoud)

Cenografia e iluminação: Marisa Bentivegna

Assistente de cenografia e iluminação: Amanda Vieira

Trilha sonora: Carlos Zimbher

Figurinos: Eliseu Weide

Cinegrafista e Edição de vídeo: Bruno Araújo

Atrizes convidadas (vídeo Anjo de Corredor): Therezinha Nogueira (2016) e

Maria Flora Gonçalves (2017)

Equipe de Apoio: Catarina Milani, Rodrigo Bertucci e Arce Correia (2016);

Anderson Vieira, Rodrigo Bertucci, Tatiana Vinhais e Vivian Petri (2017)

Fotos: Alécio Cezar

Filmagem: Bruta Flor

Programação visual: Vertente Design

Produção: Ariane Cuminale (2016) e Catarina Milani (2017)

Concepção: A Digna e Um Cafofo

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ANEXOS

ANEXO I

Diário de Bordo Agosto de preparação para estreia de “A Máquina Tchekhov” e os solos

“D’Existir” e “2 Mundos”

4/8/2015

Que bom ter aula de Eutonia, hoje à noite.

O trabalho sobre a coluna vertebral me coloca no eixo.

Mesmo com todo barulho de trabalho da furadeira no andar de cima, consigo

entrar num espaço de calma e segurança.

A diferença de sensações entre a toalha e o bambu como objetos auxiliares me faz muito bem. Quando me levanto do chão, quando fico de pé, sinto os meus pés estão mais descansados e isso me alivia a pressão da estreia, o medo de me sentir fraca nos momentos mais intensos de movimentação. Preciso estar bem com o meu pé esquerdo. Tenho sofrido de uma fascite

constante, fruto, segundo a Dra. Lin, acupunturista com quem me trato, de uma

sorte de fraqueza da energia dos rins.

Amanhã, tenho meu ultimo ensaio antes da reestreia de D’Existir.

A Bárbara Dasb, que é mestranda em Portugal, vai me acompanhar nesse

ensaio e, depois de amanhã, me apresento, na galeria Olido, na abertura da IX

Mostra do Fomento à Dança. Pauleira de encontro com criadores, artistas e

políticos.

18/8/2015

A sensação do bambu ao longo de minha coluna vertebral, do lado direito, me

acorda para o momento presente: hora de perceber a relação com o lado

esquerdo.

Voltei ao Rio de Janeiro!

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Estou na escola de danças do teatro municipal. Passo de um lado a outro, da

escola para o teatro. Atravesso a passarela para assistir Nureyev no ensaio de

mais uma obra de Balanchine.

A Eutonia tem o poder de me colocar no presente de um modo bem especial e muito diferenciado de qualquer outra técnica de educação somática; me faz visitar o passado, me deitar na memória como se fosse possível me reler e descobrir coisas sobre mim, ocultas até então. Isso acontece quase sempre, a cada novo encontro com o chão, deitada ou de

pé, os objetos auxiliares e os colegas de turma.

Os bambus, em particular, têm uma força que se revela a cada contato com

sua espessura, seus nós e textura e são um convite à sensação dos meus

ossos.

Amanhã, 19/08/2015, tem 2 Mundos, no CRD ( Centro de Referência da

Dança) e abertura da exposição Trajetória(s) com fotos de todo meu percurso

no teatro e na dança.

20/08/2015

Hoje é quinta-feira. Depois de uma longa viagem, tarde adentro, chegamos ao

Centro Cultural de Tiradentes. Dia chuvoso que prenuncia pouca frequência

para de noite.

Imagens de Cláudio Gimenez de meu aquecimento no Centro de

Formação Cidade Tiradentes. Experimentando associar o trabalho de voz com

as posições de controle da Eutonia.

25/8/2015

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Mais uma terça-feira de encontros comigo mesma.

De manhã, aula no Grupo de Estudos do TAPA, com Clara Carvalho e, à

noite, aula de Eutonia com Cláudio Gimenez.

Com o grupo de estudos, afino minha escuta; especialmente, a escuta

das vozes, dos sons dos colegas quando mergulham nas palavras e ideias de

Anton Tchecov. É um trabalho difícil, que exige muita dedicação e humildade

para mim. Aprender a escutar e falar apenas quando absolutamente

necessário, só pra não explodir; essa é a tarefa que me coloquei ao começar a

frequentar esse grupo de estudos teatrais. A cada semana, em quase dois

anos de aulas, sinto que apuro minha percepção para os lugares de onde meu

som vem. É algo técnico e profundamente subjetivo; a questão de relação do

corpo com a voz em contato com as frases de Tchekhov. Neste momento

estamos mergulhados em A Gaivota.

Uma nova etapa, nova era, outros mundos, outro mundo, mesmo.

Termino mais uma aula de Eutonia. O professor, Cláudio Gimenez,

focalizou a região da cintura escapular (clavículas, escápulas).

Hoje, trabalhamos com o bambu entre a coluna vertebral e cada uma

das escápulas, mas fizemos movimentos ou micromovimentos de senso

percepção para aguçar a diferenciação da origem dos movimentos, a partir das

escápulas ou da cabeça, e também, a diferenciação entre o movimento de

inclinar ou girar a cabeça. Às vezes tenho a impressão de que só esse tipo de

contato, a delicadeza na condução dos movimentos, podem me salvar de ser

engolida, engolfada pelo fazer, fazer, fazer. Me salva do estar pronto a

qualquer custo. Me permite um mergulho na escuridão luminosa do não ter que

fazer, senão olhar para dentro, sem compromisso com o mostrar; apenas

sentir, fazer contato com as sensações e deixar minha imaginação livre para

habitar os espaços que se abrem a cada toque ou olhar com direção e

precisão.

Para essa semana tenho a retomada de A Máquina Tchekhov, no fim

de semana.

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Estou lendo Como parar de atuar, de Harold Guskin. Um renomado

preparador de atores compartilha sua revolucionária abordagem de

interpretação para teatro, cinema e TV.

29/8/2015

Dia de teatro à noite.

A mudança para um novo espaço de trabalho me fez começar muito cedo a

preparação para essa sessão. Encher o caminhão com todos os objetos de

criação de 16 anos de prêmios e apresentações por muitos CEU´S e praças e

parques e ruas e teatros de São Paulo não foi um exercício dos mais fáceis.

Além de todo potencial emocional envolvido nos deslocamentos...

Tive tempo para rever todas as falas dos quatro personagens que

experimento a cada noite de apresentação.

Quando cheguei ao teatro tive um tempo razoável- uma meia-hora- para

me dedicar a rever meu corpo naquele espaço... Um porão de 13 x 6 mts,

aproximadamente, que se enche de fumaça e luzes, quinze minutos antes de

começarmos a função. Tempo para me deitar no chão e deixar que meu corpo

vá aos poucos se desligando do azafama do trabalho do dia. Para conversar

com os colegas sobre a nossa política cultural, que nos obriga a encontros de

duas vezes por semana, para dividir com o público o fruto de um ano de

trabalho conjunto, nas oficinas do grupo TAPA. Mas nada nos faz esmorecer e,

o aquecimento que nos envolve integralmente, faz com que agradeçamos a

oportunidade do encontro.

30/8/2015

Hoje, finalizamos os preparativos para a entrada no novo espaço de trabalho.

Fechar todas as caixas de papelão, limpar aos banheiros e ligar o aparelho de

som. Emoção, grande emoção ouvir o primeiro som gravado pelas caixas

ligadas. Aquecimento das engrenagens da alma para abrir os espaços para a

sessão da noite.

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Sessão difícil d’A Máquina, pois meu leque, até o momento,

indispensável na ultima cena, não se sabe como, sumiu. Resolvo entrar apenas

com as minhas mãos e foi muito bom, bom a ponto de acharem que deveria ser

sem o leque. Que ironia!

Toda vez que faço a cena de Arkadina e Trepliev, tenho a impressão de

que algo novo vai me acontecer, e tem haver com o modo como me preparo

para entrar em cena. Caminho muito lentamente com uma saia de muitas

camadas de tule... isso me inspira...me sinto muito viva com os poucos

movimentos que realizo durante a caminhada...minha imaginação se ativa.

01/09/2015

Setembro de preparação e começo de oficina de Estudos de Movimento e

Eutonia e continuidade da peça “A Máquina Tchekhov” e reestreia dos solos

“D’Existir” e “2 Mundos”

Achei esse texto nos meus escritos, desabafos, e resolvi colocar nesse diário.

Que corpo é esse?

Instado a se mover de maneiras pré-determinadas e/ou indeterminadas o meu

corpo é posto à prova a cada sessão de treinamento, de adestramento para

melhorar a qualidade de sua percepção sensorial, sua propriocepção e

coordenação motora.

Me pergunto o por quê e recebo resposta imediata, pronta: para que

você possa expressar com mais qualidade as nuances dos pensamentos e

sentimentos que a cena ou as cenas lhe exigirem. Ótimo, eu me digo. Assim

serei merecedora do respeito, da admiração e do apoio cultural para continuar

criando e atuando cenicamente. Mas, uma voz interna me diz para desconfiar

da eficiência e do bom desempenho. Quem sabe a historia do gato velho que

venceu o rato, que nenhum outro gato conseguia paralisar, se relaciona com

isso? À percepção, à liberdade com a qual nenhuma técnica ou capacidade de

mobilizar a energia interna pode se equiparar?

Pois é, me vejo nesse momento, duvidando das habilidades e

apreciando minha capacidade de conexão com as articulações de meu corpo;

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ombros, bacia, cintura escapular e pélvica; coluna e cabeça e pelve... E, me

pergunto, a serviço do que, de quem, para quê, para quem? Dentro de mim o

desejo de servir? Desejo de comunicação de mundos que só o contato com o

meu corpo, em determinadas circunstâncias, pode trazer à tona? Como se

fizesse uma sorte de imersão em campos em que só o espaço das

articulações, um jeito de posicionar a minha cabeça-occipital, atlas, axis, em

relação ao meu peito-esterno e costelas e braços – úmero, rádio e cúbito,

dariam acesso? Ou como se...

Como se minha textura fosse se transformando, mudando, na medida de

minha atenção flutuante, submergindo no espaço interno de costelas, coluna e

vertebras e...O ser nesse corpo sem privilégios sem facilidades sem nome?

Como dar voz a uma forma de materialidade, meu corpo, sem esforço

para vir a ser?

Que histórias, trajetórias se desenrolam a cada instante que passa,

passam?

Às vezes, muitas vezes, o que? Impressão de vida dilatada, intensa, de

mais poder em cada gesto.

Isso sim faz continuar, faz não desistir de ser, de atuar, de fazer contato,

buscar contato com o público, publico de qualidades diversas; mais ou menos

consciente do que se trata, do que se passa na cena.

Ainda uma vez, experimentar o caos da criação, sem fronteiras entre

linguagens, sem rotulações. Na rua, no palco, no saguão, na sala de aula.

Com música, sem musica, não importa. O que interessa? O desejo do

ser dilatado, expandido e livre? O campo aberto de forças em confronto, em

relação com os afetos que movem. Ondas de intenção em travessias,

murmúrios e diálogos silenciosos.

9/09/2015

Anotações esparsas/

Fatias de vida/Portugal

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Canções. Letras. Palavras. Como elas tocam o meu corpo e como elas me são

corpo.

Aonde me carregam/ aonde me fazem porto.

“O esforço é grande e o homem é pequeno

...

A alma é divina e a obra é imperfeita

Esse padrão sinala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita

O por fazer é só com Deus.

...

E a cruz ao alto diz que o que me há na alma

E faz a febre em mim de navegar

Só encontrará de Deus na eterna calma

O porto sempre por achar.”

De Fernando Pessoa

Ideias para um “Estudo sobre outras luzes”.

Enquanto experimentava, surgiu esse conceito de Estudo como

possibilidade de descoberta e abertura de novos espaços em minhas

engrenagens, meu aparato navegador.

Desde o chão, na tentativa de discriminar, de diferenciar sensações, as

percepções afloram e me guiam na direção de um estado interno de

disponibilidade para saborear novos estados e espaços internos.

Escrevo/lembro-me Hélio Oiticica: Experimentar o experimental.

Oficinas de Estudo de Movimento: roteiro de ações práticas para trabalhar

em cinco encontros, dentro do projeto Trajetória(s). Cinco encontros para eu

me trabalhar. Para cada um deles faço experimentos que me servem de

treinamento, preparação para a retomada da criação ou recriações.

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Espaço para deslizar o corpo pelo chão, para sentir o prazer de entrar

em contato com os impulsos, com a ativação da imaginação. A delicadeza do

olhar interno mobilizando cantos, quinas articulares de uma coluna que se

torce, vertebral.

PELE, PÉS, Cinturas Pélvica e Escapular e Coluna Vertebral.

Amplos espaços para investigações temáticas. Trabalho sobre a escuta

musical. Das palavras no corpo; como se afetam mutuamente.

E, ontem, meu sacro era o cruzamento de muitas estradas que me

levam a Caruaru, minha terra natal. O toque das mãos sob a bacia me afetou

profundamente. O inesperado da entrega que se faz carne e imagem e me faz

sentir que vale a pena estar viva.

Ensaios para morrer.

Daqui a uma semana a retomada de D’Existir que se alternará com 2

Mundos, no espaço do teatro Viga, sala Piscina. Dois trabalhos solos sobre

temas que convergem para a questão da aceitação do diferente, do excluído,

do esquecido, do mal visto. Os mundos do surdo e do velho.

De uma conversa com Valmir Santos, a percepção de um lugar para

pensar sobre o que me mobiliza, me faz ir em direção a certas temáticas, a

escolhas de, e, no movimento.

11/9/2015

Dia seguinte ao meu aniversário de poucas comemorações. Preciso rever

Jorge Luis Borges. Li um post com uma citação de O Deserto e fiquei com

saudades desse intelecto tão articulado, azeitado.

Ontem, aproveitei para refinar meu plano de aulas para o curso que

começa nesta segunda-feira.

Não paro de pensar em como dar continuidade ao projeto que estou

vivendo, o Trajetória(s).

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A nossa política cultural é tão absurda que me vejo em meio a um

processo, e já, na inquietude do que virá na sequencia. De que modo posso

desdobrar o que está acontecendo agora? Talvez sempre tenha sido assim?

Mas, nunca como agora, me recordo de sentir essa urgência de saber de

antemão aonde poderei levar as iniciativas, ousadas iniciativas, desse novo

projeto.

Do meu planejamento para as aulas de Estudo de Movimento e Eutonia:

A pele e o tato e contato consciente; falar de outra relação com o tempo;

um tempo mais lento, de observação através da paragem, do pausar o corpo e

tudo que vem à tona. Um exercício de delicadeza que aguça a percepção de

estar num corpo que é prisão e também liberdade para ganhar muita amplidão.

Novidade para mim, o chamar atenção para o tato que pode ser vivenciado

afetivamente.

Contatos: radiante ( desenvolvimento da consciência de nossa própria radiação

– expansão dos limites do corpo, além da pele) e linear ou prolongamento (

prolongar a direção dos ossos no espaço)

Lembrar que o contato é a base para realizar o movimento eutônico.

Pés e pernas – relação com a consciência dos ossos.

Comandos para aguçar a percepção do tamanho dos ossos, suas formas e

direções no espaço em relação com as posições do corpo.

Cintura pélvica e cabeça – “repousser”

Conexões com a força da gravidade e relação com o peso da bacia e da

cabeça. Bom momento para trazer a ideia de espaço interno, da

tridimensionalidade do corpo, do seu volume. Estimular a percepção do

conteúdo dessa região; ossos, tecidos moles, articulações e órgãos.

Cintura Escapular – posições de controle

Trabalhar sobre a passividade; o não fazer consciente, a inibição da atividade

motora de forma consciente, o sentir para depois fazer.

Trabalhar contato com bambus nas mãos.

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Coluna vertebral- movimento eutônico ( movimentos em que utilizamos

os princípios da Eutonia)

Estado de “presença contínua” A respiração se adaptando à dinâmica de cada

movimento ou sequência de movimentos.

Tipos de movimento eutônico:

1. Estiramento Vital;

2. Movimentos ativos: desenhos no espaço, membro voador ( perna

voadora),rolar e ou rotar, movimento consequente, movimento no

espaço total com outras pessoas, empurrar/ puxar;

3. Movimentos passivos – força da gravidade consciente;

4. Estudos de Movimento – Construindo sequências de movimentos

sobre um tema dado. Fazer sínteses pessoais de todas as

possibilidades que fomos capaz de descobrir com o trabalho do dia.

5. Posições de controle – um teste para a condição das articulações.

Lembrar que o contato é a base para realizar o movimento eutônico.

Chove em Sampa! Que maravilha! Uma benção.

14/9/2015

Sábado, antes de ontem, choveu muito dentro de mim. Não sei o porquê, mas

fiquei profundamente emocionada pelo fato de estar aqui, nesse corpo.

Fui trabalhar ainda sob o efeito da tensão emocional e o resultado foi

que, em dado momento de uma das cenas, fui transportada não sei para onde,

para o nada? para o vazio? E, demorei um tempo, que talvez tenha sido de

30s, para retornar. Ora, 30segundos são uma eternidade de silencio, numa

cena que dura 13 ou 14 minutos! Mas, nada que não tivesse um bom final, pois

estava tão profundamente aderida ao sentido que... deu certo. Penso agora,

que, felizmente não era um diálogo, e sim um monólogo. Ou, talvez seja o

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contrário? Teria sido mais fácil se eu tivesse um interlocutor para me dar um

clique de retorno?

Enfim, passou o ”golpe de presença” alteradíssima.

Para compensar esse movimento interior tão intenso, no domingo,

13/9/2015, tivemos uma plateia de jovens estudantes de teatro, e o ar era tão

leve... As palavras, os movimentos não encontravam qualquer resistência.

Tanto era assim que me pareceu que tanto fazia o que estava sendo

comunicado. Poderíamos ter feito um teatro musical, uma comedia de

costumes, ou outra apresentação qualquer. Pareciam mortos! ! ! E eram tão

jovens: dezessete ou dezoito anos, em sua maioria! Chocante!

Hoje, agradeço o destino pelo novo espaço de trabalho. Ele é silencioso,

um convite à concentração! E está tão perto do caos da Avenida Paulista! E

Hoje, comecei a oficina de Estudos de Movimento e Eutonia. Recebi uma

turma com atenção total ao tema de trabalho desse primeiro de cinco

encontros- a pele. Aproveitei para fazer investigações sobre a relação entre a

música do fado e os movimentos nascidos do contato consciente com a pele.

Este tema de trabalho tem me raptado quase todos os dias em que me detenho

para experimentações criativas.

A relação das palavras com o corpo aberto para a criação e vivência de

caminhos desconhecidos. O deixar-se surpreender e emocionar-se pela

eloquência do ritmo que acompanha as palavras do fado, que ora falam da

saudade de um canto no ser, ora do mar que espera o olhar que divisa um

novo porto a encontrar, por exemplo. Aprendizado de força imensa de

mobilização para os sentidos.

15/09/2015

Dia de fazer a retomada de D’Existir para estreia no teatro Viga, na semana

que vem.

Como é bom ter a chance de rever um trabalho e poder descobrir coisas

novas no contato com as ideias e os movimentos e sentimentos envolvidos

nele! Colocar a mente em sintonia com os motivos que me levaram a escolher

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um texto de Beckett e a memória viva, de braços com o meu pai me dizendo

que anda tão trôpego que aprece que dança... Isso é difícil, muito cruel

...divino, tudo ao mesmo tempo!

É terça-feira, dia de aula de Eutonia com o Cláudio. Momento de fazer

contato intimo e consciente com o que fica na pele, e por debaixo dela. Amo os

bambus como objetos auxiliares para refinar o contato... O tempo delicado e

sutil que o trabalho sob a sua orientação me induzem a vivenciar. Minha

memória foi visitar... fiz uma viagem interior que me levou a um comando, uma

voz que me dizia: “adora a rosa”. E, no final do trabalho, lembrei-me do Nome

da Rosa.

Para esses momentos que ativam a imaginação e me colocam aqui, hoje,

agora, é que existo e insisto em continuar, em não desistir.

Conversamos bastante sobre as imagens visuais, sonoras e olfativas

que as sensações de contato com o corpo liberam na corrente do corpo.

Quanto os pensamentos que veem desse contato são ou não diversos dos que

advém de uma pura elucubração mental sobre assuntos que surgem no

momento me que experimentamos o tempo e o espaço para o mergulho nesse

mundo de sensações e senso-percepção.

Meus pés e o terreno árido, seco do nordeste, da minha terra natal.

16/09/2015

Ah! A dimensão narrativa dos fatos!

Vamos a eles.

Esse espaço tem silêncio. Que dádiva!

Estou aqui, estive aqui ontem e experimentei sentir minha pele com toques de

bambu.

Um privilégio.

No processo de encontro com as palavras através das canções, me

permito demorar em cada faixa o quanto a minha disposição suporta. Ouço

muitas e muitas vezes cada uma das canções que me ativam, que me colocam

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em contato com certa alegria de procurar: de me procurar, de me sentir e achar

diferente de mim mesma, me reconhecendo outramente.

Tomei um tempo para rever 2 Mundos. Consegui chegar até a metade

do caminho.

Me detive nos verbos: levantar,voar,transformar,brincar...Tantos

movimentos ,signos de corpo inteiro, desde a ideia das mãos...Socorro!

Criar, nascer, sofrer, trabalhar, encontrar, mostrar.

“Palavras imagens silenciosas

Corpos falam

Sinais imagens silentes

Corpos falam”

(fazer o percurso em espiral- em idas e vindas)

“Uma palavra tem cara de palavra

Como um palhaço tem cara de palhaço

A minha mãe tem cara de minha mãe

A minha Irma tem cara de minha irmã

Posso reconhecer a cara de uma palavra

Mas, depois desenha-la no espaço.”

Aonde meus impulsos me levarão?

Agora, só termino, talvez, amanhã de tarde.

Na hora do almoço, um pouco mais tarde para não ficar enlouquecida

com a espera para fazer ou pedir um prato... Aproveito para me situar no tempo

quando me detive na retomada de 2 Mundos.

A sensação de que todos os movimentos que às vezes parecem ousados e

grandes, como fazer uma minitemporada com dois solos, é um

micromovimento, talvez um microestiramento, do ponto de vista da

comunicação, nesse mundo hipermidiático.

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Explico os conceitos de micromovimento e microestiramentos na

Eutonia, com as anotações pessoais do trabalho de finalização do curso sobre

Teoria da Eutonia.

Dentro do conceito de micromovimentos incluirei os microestiramentos e

os deslizamentos ósseos, os quais inauguram outra dimensão de relação com

os espaços internos das articulações. Esse tipo de movimentação demanda

uma renovação do olhar interior para a articulação entre os diferentes tecidos

dos espaços ósseos e é uma verdadeira viagem interior. Proporciona o

redimensionamento das relações temporais no espaço.

Estático ou em movimento, o trabalho com os micromovimentos,

estiramentos e deslizamentos ósseos, requerem um mergulho da atenção nos

espaços articulares, com a sutileza do invisível a olho nu, mas, deixam rastros

bem visíveis a olho nu.

Segundo a definição dos estudiosos de biomecânica, em especial, da

biomecânica da coordenação motora, o macro movimento é de um segmento

no espaço, enquanto o micromovimento é de um osso em relação ao outro

considerado imóvel.

Na Eutonia, as considerações sobre os micromovimentos são bem mais

complexas, pois se diferenciam os micromovimento em deslizamentos ósseos

e microestiramento.

Para estabelecer as diferenças entre as diferentes instâncias do

micromovimento, farei um breve relato de uma aula de Eutonia sobre o tema.

A partir do comando para afastarmos o tecido da pele de todo corpo, - o

que pode provocar uma sensação muito agradável de refrescamento- realiza-

se micromovimentos no espaço interno da cintura escapular, nos braços e nas

mãos.

Procede-se, então, às etapas consideradas necessárias para a realização

de um microestiramento ao concentrarmos nossa atenção nas articulações a

serem trabalhadas - ulna, rádio e úmero, tomando consciência dos ossos, de

sua estrutura, forma e do espaço entre eles, de acordo com a nossa posição

deitada, em decúbito dorsal. Direciona-se o rádio para o punho e a ulna na

direção do úmero. Os ossos se micro movimentaram em sentidos opostos.

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De acordo com Berta Vishnivetz (Eutonia. pág. 63), "o microestiramento é

um trabalho extremamente sutil, em que os ossos de uma articulação são

ligeiramente separados um do outro. Para a realização de um

microestiramento é fundamental relaxar os tecidos em torno de cada osso e

deixar que deslizem em direções opostas o que amplia o espaço ao redor de

cada um”.

Os micromovimentos são movimentos que necessitam da intencionalidade

para serem executados. São, portanto, movimentos voluntários.

Pressupõem uma decisão sobre o segmento a ser mobilizado e o modo de

mobilização e, também, uma relação entre a musculatura agonista e

antagonista, o que faz com se ative, de forma coordenada, as unidades

motoras.

De acordo com nossa reflexão sobre o tema, no microestiramento está

pressuposto o deslizamento ósseo e a consequente promoção de abertura

articular.

Ao realizarmos um micromovimento temos uma liberdade de intenção com

respeito ao direcionamento ósseo.

Condição necessária para que se realize um micromovimento e um

microestiramento é "a consciência do volume do corpo, da estrutura e direção

dos ossos e dos espaços interarticulares”.

(Vishnivetz, Berta, idem, pág. 63).

Continuando o meu relato de impressões subjetivas... Tudo que se

refere diretamente à competição, movimentos que se referem diretamente à

ela, ostensiva ou não, capturam o olhar. O que ver naqueles movimentos

aonde ela não é o motor? Movimentos que falam de encontros e desencontros,

de desafios internos para vencer dificuldades que mobilizam todo potencial

criativo de uma pessoa ou grupo de pessoas? Quando o corpo se propõe a

comunicar sensações de outra natureza, de delicadeza e com delicadeza, por

exemplo? Ou de violência com suavidade? Quando se apoia em palavras, num

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jogo de imagens, onde a sintaxe subverte a fala convencional e propõe uma

visão de si, da personagem, como se fosse outro, não ela mesma?

Fado

s.m. Fadário, destino, sorte.

Vaticínio, oráculo, profecia.

Canção popular portuguesa, dolente e triste; música e dança que acompanham

essa canção.

S.m.pl. Forças misteriosas que se supõe dirigirem o destino: os fados não

quiseram nossa felicidade.

E, na Wikipédia...

A palavra fado vem do latim fatum, ou seja, "destino", é a mesma

palavra que deu origem às palavras fada, fadario, e "correr o fado"

Outra origem é do escandinavo "fata", que significa vestir, compor, que teria

dado origem, segundo outra teoria, no francês antigo ao termo "fatiste" que

significa poeta.

O fadista canta o sofrimento, a saudade de tempos passados, a saudade

de um amor perdido, a tragédia, a desgraça, a sina e o destino, a dor, amor e

ciúme, a noite, as sombras, os amores, a cidade, as misérias da vida, critica a

sociedade… Em contraste com o conteúdo melancólico, o compasso do fado

transmite um humor animador e possivelmente este contraste contribui à

fascinação do fado.

Vontade de “Fados e Afins”

Comecei a leitura de A Elegância do Ouriço de Muriel Barbery. Presente de

Ana Vitória Bella.

17/09/2015

Nosso segundo encontro de trabalho com o grupo selecionado de atores e

dançarinos aconteceu. Minhas antenas estavam sintonizadas com algumas

dificuldades que teria que enfrentar para me fazer entender. Dar motivos

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suficientes para acordar a vontade e a necessidade de fazer contato com sua

estrutura óssea, não é fácil, mas, às vezes, é muito mais difícil! Felizmente,

estava preparada pelo desejo genuíno de não esmorecer, e, com vontade de

me divertir e aprender com as descobertas e insights de cada um. Foi uma

viagem muito prazerosa.

Desse encontro surgiram algumas anotações:

1. A(s) dificuldade(s) de perceber no corpo as diferenças entre uma

história que se conta para o outro, sobre si mesmo, que é fruto de

uma vivência pessoal e uma historia que é do outro, vivida pelo outro.

2. O que é fazer para si mesmo, contando para o outro, e fazer para o

outro, nessas mesmas circunstâncias?

De tarde tive uma conversa com a Helena Cardoso para falarmos sobre

o andamento destas anotações, o conteúdo e a forma, enfim, o sentido delas.

Algumas observações do nosso diálogo:

Relação entre VAZIO – silêncio // CAOS- ruído;

Treinamento e constância// caos e poesia;

Registros dia a dia; diferenças entre relato e relatório;

Trabalhos de pesquisa em arte - linguagem e diferenças com

trabalhos de pesquisa em ciência.

“Por que a vida me faz de gato e sapato? Pra lá, pra cá, e, Puff! Diante da tela,

assistindo a um filme sobre identidades alteradas; pessoas que ressurgem do

“nada”, das calamidades da segunda guerra: sobrevivências milagrosas,

MILAGROSAS! O que é isso? O milagre? Destino que joga cartas com a

morte? Destino = eu e morte= eu?”

Passou...

18/09/2015

Mais uma vez - MERDA!- choro internamente o não reconhecimento do

trabalho feito à duras penas. Nenhuma menção à estreia de D’Existir, que vai

acontecer na próxima quarta-feira.

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- Sigamos viagem, me digo. MERDA!

Fiz um ótimo ensaio de D’Existir!

Comecei achando que não ia conseguir seguir até o fim e, no final, foi

excelente, me senti renovada e achando que a cada vez que retomo esse

trabalho ele é outro e poderia se desdobrar em muitos outros!

Fiz o ensaio e fui acompanhada pelos fados!

19/09/2015

Aproveito para responder ao mini roteiro para artistas colaboradores.

1- Minha rotina de treinamento pessoal

Com que frequência o treinamento é realizado?

Treino, nesse momento, quase todos os dias, incluindo sábados e

domingo, porque mudei para um local de trabalho que me permite esse luxo.

Tenho essa rotina desde que mudamos, há três semanas.

Desenvolvi essa rotina porque estou em meio a um projeto que está me

exigindo dedicação integral – Trajetória(s), que trata de meus percursos em

dança e teatro. Tenho entrevista com os colaboradores que escreverão artigos

sobre esse percurso e outros com quem terei encontros ao vivo, além da

estreia e temporada de duas remontagens, dois solos que me exigem o

máximo de esforço físico e concentração. Não bastasse isso, estou no elenco

de “A Máquina Tchekhov”, aos sábados e domingos, até 25/10. Agradeço

imensamente o destino que está me proporcionando essa oportunidade de

trabalhar com intensidade. Faz grande contraste, vai bem à contramão do que

está acontecendo com nosso país.

Realizo a rotina de treinamento sozinha, em geral. Às vezes o Cláudio,

meu parceiro de vida e trabalho, fica num canto, fazendo seu treinamento

chinês, e coloca uma ou outra questão sobre o que estou ouvindo. Me olha de

rabão de olho.

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As minhas experimentações de treinamento duram em média, uns

quarenta, cinquenta minutos... às vezes ,um pouco mais. Depende muito do

estado de meu corpo e necessidades do dia.

Não tenho uma sequencia fixa de movimentos. Fico na escuta do que o

meu corpo precisa nesse dia. Muitas vezes, como nesse momento, aproveito

para experimentar o tema da aula que vou dar, no próximo encontro com o

grupo. Trabalho sobre a cintura pélvica e a relação com a cabeça.

2- Um pequeno diário de impressões subjetivas

Antes, durante e após cada sessão, que acontecimentos afetaram direta ou

indiretamente sua rotina de treinamento?

Há um pedido de anotação da hora do acontecimento registrado. Não sei se

poderia fazer isto com o que já foi anotado, mas vou tentar, de agora em

diante, prestar atenção nessa questão do tempo, na divisão em horas, minutos

e segundos, também.

21/09/2015

Acabo de reler alguns trechos do livro de Bergson sobre o riso.

Ontem, durante a sessão de A Máquina Tchekhov, numa cena muito

dramática da Liuba, de O Jardim das Cerejeiras, eu quase tive um acesso de

riso, no final. Riso e choro se interpenetraram.

Deu-se que, na as ultimas palavras do texto que questiona nossas

crenças no milagre, alguém da plateia, que imagino seja um sujeito, que desde

os primeiros momentos de uma cena mais reflexiva, a terceira de dez, no total,

havia olhado insistentemente o relógio, mas não teve coragem de sair, nesse

momento final, deu um bom e sonoro bocejo. Não me contive e o choro se

transformou em riso e foi uma descoberta para mim, a leveza que o drama

pode revelar. Os colegas se divertiram e a plateia acompanhou com

credulidade a alternância, ou concomitância dos estados emocionais.

Afinal, não sei se conseguirei entrar novamente nesse estado de graça,

nessa alteração tão contraditória e reveladora. Mas, não importa, interessa que

vivi intensamente a sutileza dessa interpenetração.

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“O riso não advém da estética pura, dado que tem por fim (inconsciente

e mesmo imoralmente em muitos casos) um objetivo útil de aprimoramento

geral. Resta, no entanto, alguma coisa de estético, pois o cômico surge no

momento preciso no qual a sociedade e a pessoa, isentas da preocupação com

a sua conservação, começam a tratar-se como obras de arte. Em resumo, se

traçarmos um círculo em torno das ações e intenções que comprometem a vida

individual ou social e que se castigam a si mesmas por suas consequências

naturais, restará ainda do lado de fora desse terreno de emoção e luta, numa

zona neutra na qual o homem se apresenta simplesmente como espetáculo ao

homem, certa rigidez do corpo, do espírito e do caráter, que a sociedade

quereria ainda eliminar para obter dos seus membros a maior elasticidade e a

mais alta sociabilidade possíveis. Essa rigidez é o cômico, e a correção dela é

o riso”. (Henri Bergson. O Riso).

26/09/2015

Tenho a impressão de que se passou muito tempo, desde a última vez que me

voltei para essas anotações.

Hoje é sábado, meio-dia, o último sábado do mês de setembro. Chove!

E foi uma semana de estreias!

Quarta-feira com D’Existir e quinta-feira com 2 Mundos, no espaço

Viga. Dificuldades de toda sorte, tanto do ponto de vista técnico- do material

para iluminação ao equipamento de som, em bom funcionamento no modo

estéreo-, até a questão importantíssima e dificílima de fazer o público chegar

para assistir. Não tivemos assessoria de imprensa para esta etapa do projeto e,

claro, tudo ficou um pouco mais difícil do que já era o esperado.

Tive que me adaptar ao cenário de outra peça, que, felizmente, utilizava

o espaço todo em branco, o que nos favoreceu muito em ambas os trabalhos.

Descubro que o Oriente é um lugar em mim, que me leva para a morte

das expectativas, em relação a ter, ou não, ressonância no mundo da mídia.

Explico-me melhor: meus treinamentos em arte oriental- tai chi e chi kungs, os

mais diversos- me habilitam a encontrar conforto e desprendimento interior

para entrar em ação na cena, independente do número de pessoas que

estejam comigo, do outro lado da margem. Foi muito boa a experiência de

fazer 2 Mundos, por exemplo, para apenas duas pessoas, que foram até lá, na

quinta-feira, sem esquecer da quarta-feira com D’Existir para sete pessoas.

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A cada movimento a forte intenção de escutar, com muita delicadeza, as

pessoas que chegaram até lá. Parece que a minha responsabilidade fica

aumentada por esse feito de apenas alguns ouvintes/espectadores estarem

presentes.

Fiz um esforço de divulgação, além da mídia do facebook, e enviei

material para Helena Katz, que se prontificou a divulgar para suas listas

pessoais e prometeu nos assistir, na próxima quarta-feira.

Terça-feira passada me emocionou a apresentação de uma cena de A

Gaivota, no grupo de estudos do Tapa. Um ator jovem resolveu fazer a Macha

e se debruçou muito nos movimentos internos dessa personagem tão difícil,

por ser tão depressiva, tão perdedora, como, aliás, quase todas as

personagens tchkovianas, e conseguiu, com poucos movimentos externos,

atingir lugares muito verdadeiros e próprios no seu embate com ela. Já valeu a

minha manhã!

Nesse mesmo dia, à noite, tive aula de Eutonia. Fizemos um trabalho de

sensibilização da pele com as mãos e uma bolinha de ping-pong. Nãos ei como

explicar, mas voltei par aminha infância, o sol, o mar, a praia de boa viagem.

Hoje é sábado de retomada de A Máquina Tchekhov. Tenho que

repassar os textos das quatro personagens que faço.

Vou chegar um pouco antes para ensaiar com um colega, uma cena de

A Gaivota, para apresentação no grupo de estudos. Cena de Arkadina com

Trigorin, quando ela tenta reconquistar o amante.

Quase ia me esquecendo de citar um trecho do livro A Elegância do

Ouriço de Muriel Barbery, que me tocou muito, ontem; aquela sorte de alegria

pela descoberta do outro, que se torna sua, pelo fato de estar impressa e muito

bem contextualizada. Você desconfiava dela, e, de repente, viu tomar ares de

possível verdade.

“... por que é que dói tanto quando o movimento não é sincronizado?

Não é muito difícil adivinhar: todas essas coisas que passam que deixamos de ter por

um triz e que são perdidas para a eternidade... Todas essas palavras que deveríamos

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ter dito, esses gestos que debatíamos ter feito, esses kairos fulgurantes que um dia

surgiram, que não soubemos aproveitar e se afundaram para sempre no nada... "

02/10/2015

Outubro de finalização de temporadas e projetos.

Acabamos A Máquina Tchekhov e a temporada de seis apresentações dos

solos D’Existir e 2 Mundos.

Fechamos as contas do projeto do ProAC para criação de D’Existir.

São 17h, e, finalmente consigo uma brecha de tempo para voltar a estas

anotações.

A segunda semana dos solos foi muito marcante do ponto de vista da

qualidade de relação com o público, pequeno, mas muito especial.

Tive que me adaptar a um novo cenário: de branco total passamos a preto

retinto. Difícil incorporação apesar de termos feito, desde o início, tudo preto no

preto, no caso de D’Existir e verde no preto, no caso de 2 Mundos.

Enfim, fui agraciada com um público que, dentre outras pessoas, contou

com a Denise Weinberg e alguns arquitetos/artistas e colegas de elenco da

peça tchekhoviana. Que delicia de envolvimento com os temas que eram

“devorados” por uma plateia ávida de saber e de reconhecer.

Não tenho como não me sentir agradecida por esses momentos vividos,

na quarta, dia 30/09/2015, e quinta-feira, 01/10/2015, desta semana, final de

setembro e começo de outubro.

Fiz todos os aquecimentos para as apresentações ao som dos fados, na voz de

Dulce Pontes. Uma inspiração!

Trabalhei intensamente no domingo, dia 27/09/2015, das 10 às

13h30m, preparando a ultima aula do curso de Estudos de Movimento e

Eutonia (coluna vertebral) e improvisando com os fados, mergulhada numa

capa de chuva amarela, resquício de experimentos que não chegaram a ser

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comunicados cenicamente. Não gostei muito de meus achados, mas senti que

foi importante experimentar algumas imagens que só o contato com essa capa

permite.

A novidade maior desta semana fica por conta de eu ter começado a ler

Tennessee Williams para leitura de texto no TAPA. Comecei a ler “Auto da

Fé”, uma das peças curtas, traduzidas pelo grupo, ontem de amanhã, quinta-

feira, 01/10/2015.

Segunda-feira, dia 28/09/2015, finalizamos o curso de Estudos de

Movimento e Eutonia. Trabalhei sobre a coluna vertebral e tive alguns insights

sobre a estrutura de ligação global do tronco e o sistema nervoso. Fizemos

exercícios de sensibilização com as bolinhas de tênis, onde um tocava o outro

para dar a conhecer essa linda estrutura, de tão difícil acesso.

Em algum ponto de nossa conversa final para troca de impressões do

percurso desse dia de trabalho, alguém falou sobre o vazio, sobre o vazio

como um lugar que se atinge, e de onde é possível ver todos os movimentos

de uma improvisação sobre um tema, ou mesmo sem tema deliberado, os de

onde é possível ver os movimentos renovados, vivificados pelo olhar desde

esse lugar, chamado VAZIO.

Concordei com a colocação porque sinto em mim que esse lugar existe

e que é uma sorte de “fonte da juventude” e que eu atinjo depois de um tempo,

que pode ser curto ou longo, dependendo muito do dia, das pressões e do

ritmo do dia de trabalho.

Terça-feira, dia 29/09/2015, de manhã, no grupo de estudos de Clara

Carvalho, eu apresentei um trecho de cena da Arkadina, no terceiro ato: um

momento de muita deliberação da personagem para reter o amante que está

enamorado, vaidosamente enamorado de Nina - uma candidata ao teatro, e a

paixão declarada do filho de Arkadina. A sensação de apresentar pela primeira

vez uma cena tem um gosto muito próprio. É quase como uma estreia; um

contato que desvirgina, e abre o espaço interior para escuta de muitas

possibilidades, direcionadas pelo instante de cada frase vivida, emitida, falada

e escutada.

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À noite, tive aula de Eutonia. Trabalhamos, graças aos deuses da

eterna e terrena criação do corpo a cada instante, a cintura escapular.

Senti a profunda conexão entre a cintura escapular e a pélvica. Um

pequeno movimento de giro da cabeça para quaisquer dos lados, influencia,

move a bacia, tanto que, no momento de improvisar livremente sobre as

sensações geradas pelo trabalho, percebi o quanto é real que o olhar, e mais

especificamente, o movimento da cabeça é o motor do caminhar, para frente

ou para trás.

Foi perfeito porque, no dia seguinte, dia de D’Existir, meus braços

estavam absolutamente articuláveis, moldáveis e expressivos, segundo a

plateia, com que conversei depois da apresentação.

03/10/2015

Morreu Brian Friel! Autor de O Fantástico Reparador de Feridas, peça que fiz

de 2009 a 2013. Maravilhoso texto de um autor, considerado o Tchekhov

irlandês.

Sobre o vazio, esse que abre portas e janelas para o desconhecido e de

onde podemos voltar ou permanecer ativos e criativos, mesmo por segundos,

pensei que talvez ele seja mais facilmente atingível quando estamos num lugar

mais tranquilo, onde tem menos ruídos de fora. Digo isto porque já tive

percepções muito intensas ao trabalhar na rua, em meio ao barulho terrível dos

carros e aviões, buzinas e vozes alteradas. Mas, depois que mudamos para o

novo espaço, muito mais silencioso, minha concentração mudou, se

aprofundou, e tenho impulsos constantes de agradecer ao espaço em si, pela

oportunidade de fazer contato comigo, dentro dele.

8/10/2015

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São 14h35min de uma quinta-feira, ultima semana de apresentações dos solos,

e, viajando retrospectivamente, seguem-se impressões das apresentações de

A Máquina Tchekhov, nesse primeiro final de semana do ultimo mês da

temporada. Agora, que adentramos o final de nossa curta temporada, o público

e os críticos começam a dar visíveis sinais de se importarem com um trabalho

sobre um dos mais sensíveis e inovadores dramaturgos do século XIX. Longe,

nem tanto. Quando penso que a maior parte de nossa população sequer sente

que tem um corpo... e, em meados do século XX, a Eutonia já havia surgido

como disciplina para educação do corpo, visando a arte e a saúde...Bom...que

maravilha que um romeno, no século XXI, teve a coragem, a ousadia de se

debruçar tão inteiramente nesse humanista radical, e com tanta propriedade.

As apresentações foram cheias de uma intensidade que até então não

havíamos experimentado. A escuta mais atenta do público colaborou

imensamente para esse efeito amplificador. Uma delícia de fazer, um esforço

muito maior de todo mundo, para dar conta de chegar aos ouvidos treinados e

experientes de uma plateia super seleta, mas um esforço que valeu a pena.

Dia 6/10/2015, terça de tarde, resolvi mexer na minha linha do tempo

par ao projeto Trajetória(s). Suei muito para entrar em contato com os trabalhos

e as pessoas com quem trabalhei e fazer uma seleção para o lançamento da

exposição virtual que se avizinha. Será feita no MIS, no dia 14/11,sábado,

depois de uma apresentação de D’Existir.

Quando terminei a linha do tempo, fiz algumas improvisações sobre os fados e

tive alguns insights para a escrita de um novo projeto. Vou colocar uma

imagem nesse diário. Essa visão me atingiu no final das experimentações com

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movimentos muito pequenos, quase

micromovimentos.

Nesta terça-feira à noite, como sempre, teve aula de Eutonia. Trabalho sobre

a coluna cervical e a relação com a cintura escapular- músculo

esternocleidomastoideo em ação consciente. Em algum momento do trabalho,

com auxilio de um bambu sob as escápulas, senti que meu coração poderia se

abrir para ações que não imaginava fossem possíveis - como convidar um

desafeto para estar junto comigo num projeto de ação cênica. Gostei de sentir

que, pelo menos, naquele momento, isso foi atitude pensada, isso me

atravessou e afetou.

Ontem, dia 7/10/2015, terminei com saudades a leitura de A Elegância

do Ouriço, e tive o imenso prazer de fazer D’Existir para uma plateia

seletíssima de alunos da EAD e professores convidados por Silvana Garcia.

Agradeço cada frase de Beckett que ficou mais clara e significativa nessa noite.

Minha voz entrou em graves tonalidades como nunca antes, sem medo de

errar, de não fazer sentido.

Tenho feito meus aquecimentos sob o comando sonoro de fados por

Dulce Pontes.

Hoje, quinta-feira, 8/10/2015, tem 2 Mundos, ultima sessão dessa

minitemporada, no Viga espaço cênico.

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9/10/2015

Dia seguinte ao final da minitemporada de solos, no Viga.

2 Mundos para uma plateia especial, onde Karen Müller, mestra de Eutonia,

Janot , Sergio Sálvia Coelho e alunos do grupo de estudos do Tapa e da

oficina de Estudos de Movimentos formavam um todo atento a cada gesto ou

palavra.

Ao final da apresentação, conversamos informalmente. Foi um momento

muito instigante pela qualidade das apreciações e questões levantadas. Dentre

elas, a situação do meu corpo como suporte de imagens projetadas sobre uma

saia branca, pano de fundo do verde que fica do lado de fora.

Foto: Cláudio Gimenez

Quando estou nessa situação de suporte das imagens, meu corpo se rebela de

muitas maneiras. Pensei em escrever sobre isso porque é muito particular o

que sinto surgir no meu corpo. Depois de muito me mover ficar parada de

cabeça para baixo se torna um imenso desafio. Meus pensamentos disparam,

ou seja, na minha cabeça muitas vozes se fazem ouvir, e sinto um impulso

muito forte de sair do lugar. Sou obrigada a deixar fluir uma quantidade de

energia explosiva, sem sair do meu lugar, sem arredar um pé; imobilidade

absoluta. Escuto o som de minha respiração e experimento a ansiedade de me

mexer como se fosse um martírio compensador. Desde os ensaios percebi a

necessidade de, dentro da dramaturgia que se foi desenhando, na medida das

improvisações, ter esse tempo de parada para que o público pudesse ver de

outro lugar o processo de falar por sinais, sem tradução.

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11/10/2015

É domingo, antes do feriado de Nossa Sra. Aparecida.

Imagens de meu aquecimento na ultima sessão de 2 Mundos, no Viga.Na

escuta dos fados e “aprimorando” minhas tentativas de conexão entre voz e

movimentos durante o aquecimento. Ao som de fados para manter viva a

alegria de estar “em processo”.

13/10/2015

15h 20minh. Dia de grupo de estudos no TAPA com Clara Carvalho. Manhã

intensa, pois apresentei uma cena de Arkadina com Trigorin. Desta vez, a cena

completa. É sempre um desafio imenso apresentar uma cena nesse grupo. A

dedicação e atenção de todos são de tal grandeza, que sinto muita

responsabilidade, cada vez.

Estou com saudades de meus encontros comigo mesma para saborear

com todo corpo – o fado.

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15/10/2015

Grupo de estudos do Tapa com Brian Penido Ross. Leitura de Tennessee

Williams. Li o papel de uma médium – Mãe Duclos, em xxx

Delícia de experiência com direito, por acaso, a um encontro com Eduardo

Tolentino de Araújo, que falou sobre sua visão do autor. No fim de tudo, fui

convidada para participar do elenco de “Casamento Branco”, de Tadeusz

Rozewicz, para concorrer a edital.

Acabo de reler A Mandrágora. Eduardo me acenou com a substituição

de Maria Do Carmo, no papel de Sóstrata, mãe de Lucrécia. Leve e

suavemente excitante a questão das estratégias de Ligúrio para conseguir

satisfação dos desejos sensuais do amigo Calímaco. Me diverti bastante com

essa leitura. Vamos ver se, de fato, vou fazer a substituição.

21/10/2015

Dia inteiro de trabalho sobre o projeto Trajetória(s). Dia de pesquisa de dados

e conversas sobre acertos na linha do tempo da exposição virtual.

Dia inteiro para escolher fotos representativas de cada trabalho realizado e que

constam dessa exposição, num total de 57 escolhidos.

Grande vilão da correria - Mãe Coragem- direção de Sérgio Ferrara,

com Maria Alice Vergueiro. Ufa! Achei algumas imagens da estreia no Festival

de Curitiba, às 22h. Começamos o trabalho de garimpagem às 10 da manha!

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Por isso coloco aqui uma das imagens de Cláudio Gimenez. Aind

fotoFoto FE

E Ainda resta pesquisar imagens de Alma de Todos os Tempos, direção de

Gabriel Villela.

Ontem, terça-feira, 20/10/2105, eu tive muitos insights sobre a minha

afetividade na relação com a companhia Mariana Muniz. Trabalhamos sobre as

costelas, a caixa torácica, com auxilio das mãos.

23/10/2015

Sexta-feira, ainda manhã, 11h23m. Mal refeita da leitura de TEATRO de David

Mamet, finalizo a leitura de Casamento Branco, de Tadeus Rözewics. Um

delírio sobre questões da libido, com ares de passagem de século XIX para XX.

Espero que seja feita uma leitura conjunta e que se converse muito sobre a

ideia de uma montagem para esse texto tão poético, delirante e inquietante,

para “mal dizer o mínimo”.

Sobre o livro do David Mamet, escreverei minhas impressões em outro

momento.

Estamos terminando a nossa LINHA DO TEMPO para o site do Museu

da Dança, do projeto Trajetórias(S). Sugeri que se utilize uma foto minha

sorrindo ao invés de uma foto com cara sofrida. Exemplo do desenho para toda

a linha:

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ideia é que ao clicar qualquer uma das indicações de texto, se abra uma janela

com os dados ( materias de jornais, fotos e outras inforamções) do

evento(espetáculo ou pessoa).

Esta é a última semana, o último final de semana de A Máquina

Tchekhov! Emocionante a ideia de terminar uma temporada de três meses. Eu

não me lembrava mais com era ficar em cartaz por tanto tempo seguido! Muito

dificil lidar com as marés do público, especialmente, no segundo mês...E

também, o fato de ser somente duas vezes por semana...Cada retorno é como

um novo começo, uma pequena estreia.

Meio dia!

28/10/2015

12:57h. Dia de gravação dos depoimentos para o projeto Trajetória(s). Dia de

muito suor e lágrimas, de lágrimas, sobretudo. Muito árdua a tarefa de falar

sobre mim mesma durante duas horas. Ouvindo retrospectivamente, chego a

achar muito ruim, mas confio na capacidade da equipe de criação e gravação

para tornar o depoimento minimamente razoável. Minha dificuldade de encarar

o lado sério e comprometido de um discurso, que precisa ser forjado para atrair

o outro para minha história, me causou alguns problemas. Percebo quando o

que falo não interessa a quem está fazendo a gravação, por mais que eles

entendam e acompanhem o assunto. Essa noção me afeta negativamente.

Tenho vontade de morrer e não posso porque o depoimento tem que ser feito.

Ainda bem que ele já foi feito!

Dia 23/10/2015, das 14:30 às 19h., tive um encontro muito especial com

Berta Vishnivetz. Workshop sobre eixos do corpo, através e um estudo

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minucioso da articulação dos joelhos e seus três eixos, dentro de uma

perspectiva da física clássica..

Uma vivência inesquecível, cheia de sutilezas para observação e recordação

no caso de um trabalho de experimentação noutro contexto.

Começamos com a sensibilização da pele, com um bambu, em toda lateral e

de um lado do corpo e depois do outro, antes de um inventário para sensação

do corpo naquele momento com atenção aos pontos de apoio, em decúbito

dorsal.

Utilizamos uma toalha de banho enrolada para sensibilizar a coluna vertebral,

ante de adentrarmos na apalpação dos joelhos, um de cada vez para em

seguida experimentarmos mover os joelhos dentro dos eixos X-X’,Y –Y’ e Z-Z’

(plano sagital – balanço frente e trás/ plano transverso- rotação para dentro e

para fora/ plano frontal – lado-lado).

Caminhada, no final, para ativar a percepção das sensações de articulação dos

joelhos, depois de movê-los nos três eixos.

Domingo, dia 25/10/2015, terminamos a temporada de A Máquina Tchekhov,

finalmente, depois de três meses. Muito bom terminar bem, com casa lotada e

a equipe entusiasmada pela possível continuidade do projeto. Os dois últimos

espetáculos foram muito bons. No sábado, a Flora Gimenez, minha enteada,

foi assistir e ficou muito contente. Uma grande prova para mim, pois ela é

médica e a peça é sobre um médico, Anton Tchekhov, que escrevia contos e

peças de teatro. Devo muito ao Tchekhov, por sua humanidade e por me fazer

escutar verdades sobre a natureza humana que acreditava impossíveis de

serem ditas com tamanha elegância e humanidade. Aprendi muitíssimo nessa

temporada. O contato com Brian Penido e sua escuta refinada e bem

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humorada, a direção precisa de Clara Carvalho e Denise Weinberg, a emoção

do contato com o olhar de Chris Aizner, a luz de Wagner Pinto,...enfim, um

trabalho de muitas qualidades. Quase insuperável em toda minha carreira de

artista em teatro. Que bons ventos nos encaminhem para outros portos e uma

segunda temporada seja viável!

Ontem, 27/10/2015, foi dia de Eutonia com Cláudio Gimenez.

Trabalhamos sobre a cintura escapular, mas relacionando-a com as costelas e

à coluna como um todo. Comecei num processo de irritação com as dores que

fui encontrando pelo caminho, até o momento em que entrei num estado tão

alterado de consciência que tive a impressão de que poderia ficar a vida inteira,

ou até o final da vida, com ela, a bolinha de tênis – nosso objeto auxiliar-,

circulando pelos meus tecidos do tronco. Quando afinal deitamos no chão para

trabalhar com uma bola mais macia e grande - uma bola amarela-, viajei para

minha casa de infância em Recife e tive várias percepções de mim nos

espaços da casa, nos quartos, na sala, no quintal e na sala de jantar. Meu ser

tem imenso prazer em viajar no tempo e experimentar as sensações de

acolhimento da memória. Na Eutonia, os processos de integração da memória

afetiva são poderosos e deixam marcas indeléveis no corpo, porque nascem de

um contato sutil e consciente com ele.

22:26h.Terminamos a gravação de todos os depoimentos agendados no

espaço Ghut. Fica faltando o de Helena Katz, que será gravado em seu sítio,

ainda nesta semana.

Não vejo a hora de trabalhar coma saia de tule que emprestei de A

Máquina Tchekhov, uma criação de Chris Aizner. Amanhã, vou tentar

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acariciar as muitas camadas de tule e deixar que meu imaginário seja ativado

pelas sensações de contato. Essa saia já tem muita história no seu corpo.

30/10/2015

Sonhei com três irmãs que atravessavam uma ponte.

1. Eu, prestes a cair no mar, agindo como uma sonambula, no meio da

travessia, sou resgatada por minha irmã, Flávia.

Estamos numa ponte que não tem resguardo, e é de toda em madeira

escura. Lembra uma ponte do arquiteto Calatrava; é belíssima, mas sem

qualquer segurança.

2. Seguimos caminhando pela ponte até que minha irmã mais nova,

Carmen, resolve tocar piano e começa a vomitar, e também é salva por

Flávia, de uma queda, ao escorregar pela lateral esquerda da ponte.

3. Finalmente, levanto a voz e exijo que nós três nos deitemos no chão, de

costas, sobre a ponte. Vamos rastejando com as costas pelo chão,

avançando pela ponte até que chegamos do outro lado. Do outro lado,

que aparece na mesma direção e onde começamos a atravessar a

ponte, o chão é todo de madeira clara; parece que estamos à beira de

um imenso salão de festas; um salão luxuoso. No momento em que

ponho meus pés no chão, Carmen começa a vomitar novamente. Flávia

chama a sua atenção, num tom de condenação.

4. Estamos salvas. Eu acordo.

5. Resta ainda a memória de me agarrar a um poste de metal e com sua

ajuda ficar de pé; a sensação de segurar-me e sentir confiança no apoio.

31/10/2015

Primeiro sábado, em três meses, que não me preparo para ir ao teatro fazer A

Máquina Tchekhov.

Vou assistir ao Teatro Municipal para ver o Balé da Cidade, razão de minha

vinda para São Paulo, há muito atrás. Saio da noite de espetáculos com a

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sensação de que o trabalho é tão técnico que pouco deixa entrever da

humanidade que poderia habitar aqueles corpos tão bem treinados. Chegavam,

às vezes, a ter movimentos acrobáticos, com tonalidades circenses, nos jogos

de encaixes de duplas, e mais duplas, em filas e linhas intermináveis e quase

nunca diagonais.

O público delira na medida em que o jogo acrobático se intensifica, e aprecia

ainda mais quando o humor, um ingrediente picante, é uma válvula de escape

para mascarar a falta de sentido, que não o apoio total na estrutura musical. E,

diga-se de passagem, um humor, na maior parte dos quadros – sempre regidos

pela música-, um humor de qualidade inferior, que surge por motivos

absolutamente banais e corriqueiros.

Mas, gostei de ter assistido. Todos aqueles corpos treinados na disciplina

ferrenha do balé clássico e da dança moderna... Um banho de vitalidade e

disposição. Um espírito de profunda entrega à admiração de um público ávido

por se esquecer de que estão num corpo e que têm sentimentos e capacidade

de pensar.

Comemorei com gosto meu primeiro fim de semana fora de cena, depois

de participar de um trabalho de muita qualidade. Viva o teatro!

Novembro de preparação da Ocupação Trajetória(s) Mariana Muniz, que vai

acontecer de 11 à 14/11, no MISSP (Museu da Imagem e do Som), de São

Paulo.

2/11/2015

Dia de Finados.

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Estou em dívida comigo mesma. Me prometi escrever sobre minhas

impressões de leitura de Teatro de David Mamet e ainda não o fiz. Talvez

amanhã.

Hoje, estou mergulhada na leitura de Por Que Hécuba de Matéi Visniec.

Vou assitir Urinal do Núcleo Experimental de Teatro.

05/11/2015

Hoje é quinta-feira, e são 10 da manhã, em São Paulo, com tempo muito

nublado. Continuo de onde parei a minha narrativa de bordo e pretendo seguir

indo para trás e para frente, ao sabor da minha memória.

Adorei o musical – Urinal! O autor tira um sarro do estilo musical,

entrando em cheio na linguagem, com canções e letras excelentes. Um

sucesso de público, dentre outras razões, porque diz respeito a uma questão

que nos afeta de perto, no Brasil: a questão hídrica e a gestão dos problemas

públicos relacionados a ela. Meus amigos arrasam. O elenco está tão

comprometido com a história, que... É muito tocante, me fez rir muito de nossa

desgraça. Um país com uma das maiores bacias hídricas do planeta, morrendo

de sede. A falta de água, no nosso caso, também diz respeito à ignorância e à

avidez, que seca os recursos naturais.

Ontem, 04/11/2015, quarta-feira, quase morri com um mal-estar

provocado por antibióticos para curar uma leve infecção urinária. Ontem,

também, dei uma entrevista para o Atílio Bari, repórter do programa Em Cartaz,

na TV Aberta do canal 09 da NET e 186 da Vivo. Gostei de fazer esse

encontro. O Atílio tem um humor muito peculiar e muito bom gosto na escolha

das imagens que foram veiculadas durante a entrevista. Enfim, saí contente

com o trabalho ao lado dele. E, ainda ontem, assisti aos vídeos de

apresentação e depoimento para o MUD- Museu da Dança. Me emocionei com

a qualidade da edição de Osmar Zampieri. Esses vídeos farão parte da

exposição virtual – Trajetória(s), cujo lançamento será feito no dia 14/11/2015,

no MISSP (Museu da Imagem e do Som de São Paulo).

Dia 03/11/2015, foi dia Eutonia, e trabalhamos sobre a região do

abdômen, com apoio de toalha e bambu. Como consequência de minhas

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visitações ao passado, para a exposição virtual, durante essa aula, eu fui até a

Faculdade de Dança da Anhembi-Morumbi e lembrei alguns momentos com

minhas turmas de Técnicas de Dança. Terminamos em profundo estado

meditativo e com uma conversa de alto nível sobre as sensações geradas pelo

trabalho sobre a região.

06/11/2015

17h43m. Sexta-feira. Passei toda tarde a assistir filmes sobre Stela Adler e

Marlon Brando, em casa. Parece até um aquecimento para ver A Tempestade

de Gabriel ViIella.

Comecei a ler outro livro de Muriel Barberry. A Vida dos Elfos.

16/11/2015, segunda-feira. É meio-dia, e só agora consigo abrir este diário de

bordo. Semanas muito intensas de preparação para a finalização do projeto

Trajetória(s). Uma corrida na direção dos textos e do roteiro, para que tudo

corra bem. Estou sentindo meu corpo levemente dolorido por causa da

apresentação de D’Existir e a maratona do lançamento da exposição virtual.

Hoje, soubemos que ganhei o Prêmio da Cooperativa de Dança- Denilto

Gomes 2015, pela Difusão da Dança. Penso, cá com meus botões, que o

prêmio deveria ser dado à iniciativa do MUD – Museu da Dança. Tentaremos

corrigir isso no dia da premiação.

No dia 08/11/2015 – Vivemos um domingo de invencionices, ou experimentos

sobre os fados. Eu e Cláudio fomos ao espaço Ghut para recordar os

treinamentos do Lian Gong em 18 Terapias e o Tai Ji Quan 24 movimentos,

tudo com o pesnamento de incorporar as ideias que serão discutidas coma

Maria Lúcia Lee. Nós passamos toda manhã, envolvidos numa atmosfera de

recordação e experimentação. Aproveitamos para fazer uma filmagem caseira

de um dos experimentos. Pela primeira vez, coloquei a saia de tules! Criação

de Chris Aizner para A Máquina Tchekhov. Que maravilha!

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Esse movimento me encantou. Esse

mergulho que me fez árvore com cinco raízes; pés, mãos e cabelos.

Dia 09/11/2015, segunda-feira, fomos, eu e Talita Bretas, fazer uma visita ao

MIS ( Museu da Imagem e do Som), para ver as condições dos locais que

iremos ocupar.

Comecei a ler Ítalo Calvino. Seis Propostas para o Próximo Milênio. A

questão da leveza que o trabalho com a saia despertou, me fez chegar até ele.

Tive um sonho muito estranho com o Rubens Caribé. Sonhei que nos

encontrávamos no 14º andar de um prédio e que ele me dizia que não estava

muito bem porque tinha vontade de comer um sofá! Bizarro! Mais bizarro ainda

era que sua boca se transformava durante a conversa em duas fileiras de

dentes enormes e muito brancos. Não imagino seu significado, mas não me

pareceu muito bom, devido à agressividade dos dentes.

E, dia 10/11/2015 Terça-feira foi dia de vivência de Eutonia e preparação para

a Ocupação Trajetória(s), no MIS.

Na Eutonia, trabalhamos com as posições de controle. Começamos com a pele

e sensibilização com bambu e seguimos para a vivência das posições de

controle.

11/11/2015, quarta-feira.

Dia do primeiro encontro, no MIS, com Maria Lúcia Lee. Conversa inspiradora e

que contou com uma plateia muito especial; Valmir Santos, Bárbara Dasb,

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Maurício Brugnolo, Claudemir Lara, dentre outros. Tudo foi gravado por Osmar

Zampieri e estará disponível, dentro em breve, no site do MUD (Museu da

Dança). Universidade Anhembi-Morumbi.

Parte de nosso roteiro para esse encontro:

Encontro no Teatro Ventoforte – Ilo Krugli – 1989 -1993 Aulas de dança

contemporânea logo após o treinamento. Antecedentes: Graciela

Figueroa e Grupo Coringa- Tai Ji como parte do aquecimento, 1977-80 e

Mestre Liu, 1988– Antunes Filho e minha coluna vertebral – após a

temporada de Lago 21 recebi convite do diretor para entrar em processo

de composição do espetáculo Paraiso Zona Norte, quando me machuquei

durante os ensaios e recorri ao tratamento com acupuntura e chás do

Mestre Liu. Manhãs de treinamento de Lian Gong Em 18 Terapias.

Simplicidade e profundidade da ação no corpo. Novidade em São Paulo.

Tai Ji Quan 108 Movimentos – os nomes dos movimentos (conteúdos

poéticos) Como uma dança, mas exigente do ponto de vista da atenção ao

aspecto energético. Tai Ji Espada Trabalho sobre a continuidade nos

movimentos e a relação com o objeto. A energia chegando até o fim do

objeto e indo além dele para tingir o corpo do outro – o oponente

invisível. Qi gong dos Símbolos (Trabalho de relação entre os movimentos

e as imagens) Harmonizar céu e terra/ Harmonizar madeira e metal/

Abrir o céu e dançar com o arco-íris/Separar as nuvens no céu/Nadar no meio do lago/Remar no meio do lago/Colher a flor de lótus/Unicórnio contempla a lua/Moça trabalhando no tear/Mãos de nuvens/Girar a moenda e empurrar/Abraçar o mar e contemplar o céu/Empurrar as ondas do mar/Pombo estende as asas/Ganso selvagem bate as asas.

Editora Abril – criação da via 5 Trabalho de supervisão na aplicação das

práticas terapêuticas nos atendentes do “call center”.

Viagem à China no ano 2000 para aperfeiçoamento técnico no Lian Gong e para prender o Tai Ji Quan 24 movimentos.

Movimento Inicial/Acariciando a crina do cavalo selvagem/Garça

branca abre as asas/Esfregando o joelho/Tocando Alaúde/Andando

para trás e repelindo o macaco/Acariciando cauda do pássaro à

esquerda/Acariciando a cauda do pássaro à direita/Primeira

chicotada/Mãos que se movem como nuvens

Segunda chicotada/Acariciando o pescoço do cavalo/Estirando o

calcanhar do pé direito/Soco com ambas as mãos/Estirando o

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calcanhar do pé direito/Serpente que rasteja e galo dourado numa

perna – esquerda/Serpente que rasteja e galo dourado numa perna

– direita/Lançadeira/Agulha no fundo do mar/Leque/Venerável

ancião cerrando as portas/Desvio e soco/Cruzando as

mãos/Finalização

Do ponto de vista técnico

Aprender a importância de manter um íntimo contato com a sensação do

peso do corpo em movimento; a questão do “enraizamento”.

1. A relação com o “tempo lento” na execução dos movimentos.

2. O relaxamento (palavra tão cara ao Klauss Vianna) para

percepção da estrutura óssea e para ter a sensação de

enraizamento do corpo.

3. Suavidade aliada à firmeza na execução dos movimentos.

4. Filosofia do yin e yang – leis de interação das forças

5. Consciência /simplicidade e relação do trabalho com movimento

para manutenção da saúde.

Perguntas para Lucia Lee

Sobre seu atual envolvimento com a tradução do Tao Te Ching.

Sobre as relações que pode fazer entre o trabalho da Eutonia e o

pensamento oriental sobre o trabalho corporal para entrar em

contato com as terapias e artes marciais. Lucia participa das aulas

de Eutonia ministradas por Cláudio Gimenez no espaço Ghut.

Pensamento que me ocorreu ao final desse movimento para elencar os

assuntos de nossa conversa, no MIS: A minha chegada em São Paulo

também representou o contato com o conhecimento do lado oriental do

planeta. Uma abertura para o entendimento e vivência da Influência

japonesa e chinesa na cultura brasileira e paulistana.

12/11/2015, quinta-feira. No segundo encontro, no MIS, com Valmir Santos. A

presença de Sônia Sobral foi muito importante para alavancar as discussões a

partir de nossas falas.

Parte de nosso roteiro:

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Encontro através de Maria Lúcia Lee, em entrevista sobre o Lian Gong

em 18 Terapias. Jaime Kuk e o grupo Pombas Urbanas; olhar interessado

nas questões relativas ao relacionamento entre corpo e voz e a questão

espiritual e a construção da cena. Relação entre vida e arte.

Encontros através da Imprensa; matérias e entrevistas.

Divulgação de trabalhos que transitam entre a dança e o teatro. “Túfuns”

no Festival de Curitiba – no FRINGE. Lembrar a particularidade de

apresentação num cabeleireiro apaixonado por teatro e que transformou

parte do salão em uma casa de espetáculos. Época de articulista e crítico

na Folha de São Paulo. Divulgações dos trabalhos na Revista Bravo.

Encontro em 2009 com “O Fantástico Reparador de Feridas”

Mediação de discussões no Festival Internacional de Porto Alegre.

Lembrar sua observação sobre o ritmo do espetáculo nesse momento.

D’Existir e Beckett no Top Teatro

A relação entre o modo de construção e o teatro físico.

Falar sobre a minha leitura e impressões de Teatro de David Mamet.

Movimentos internos, interesses na construção da cena nos últimos

trabalhos: “D’Existir” e “A Máquina Tchekhov”.

Escolhas dos temas e qualidade de trabalho com atriz e bailarina. Leituras

e procedimentos teatrais para construção da dramaturgia e dos

personagens.

Trabalhar com O Grupo TAPA.

Relação coma concretude da palavra.

Questões para Valmir (Momento Atual)

Sobre a escritura do livro sobre o grupo TAPA

Sobre sua visão de espectador de A Máquina Tchekhov e D’Existir.

Texto que talvez gostasse de ler, pois me ocorreu durante a elaboração

deste roteiro, enquanto lia “A Mulher-Alvo e sues DEZ Amantes”, de

Matéi Visniec (1956): O ANIMAL QUE PARECE PERFEITAMENTE UM

HOMEM:

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Bem, então, o problema é que, há um certo tempo, entre os humanos, a

memória do tipo sapato tem desparecido. A memória tipo sapato é a boa

e velha memória de antigamente, é a memória da continuidade, é o

mundo contado por um sapato, se o senhor quiser. Bem, o problema,

como lhe dizia , é qua a boa e velha e sólida memória cotidiana, do tipo

sapato, essa memória do andar, do sofrer, do sofrimento do andar, se o

senhor quiser, está cada vez mais sendo substituída por uma memória

tipo guarda-chuva. Quer dizer, por uma memória pontual, por uma

memória furada, por uma memória capciosa, em resumo, por uma

memória do tipo guarda-chuva. Antes, o mundo era contado pelos

sapatos. Hoje, cada vez mais, são os guarda-chuvas que os substituem.

Ora, o que poderia um guarda-chuva contar do mundo? É por isso que lhe

faço a pergunta. O senhor é mais sapato ou mais guarda-chuva?

E também, ou, mais coerente com os temas levantados, em Teatro de

David Mamet (1947): “O mistério do teatro é o tempo: como usar o

tempo, como explorar a percepção humana do tempo e sua ordenação

em causas e efeitos. Rejeitar esse fardo intolerável, nossa especialidade

como seres humanos, é o objetivo do místico religioso, do iogue, do

amante e do viciado em drogas: habitar um mundo onde não haja o

tempo, a fim de alcançar o não ser.

13/11/2015, sexta-feira. Entrevista na TV UOL - programa Colunas e Notas.

Fomos anunciados no Guia da Folha.

No MIS, sem Angel Vianna, que mandou mensagem de impossibilidade de

viajar por causa de uma infecção na bexiga, faço um depoimento para o projeto

Trajetória(s) sobre minha conexão com Klauss Vianna. Na plateia, amigos

importantes na cena contemporânea como Renta Xavier e Denise Namura.

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12 de novembro, quinta-feira: explosões matam ao menos 41 pessoas em

Beirute; 13 de novembro, sexta-feira: explosões e tiros provocam a morte

de no mínimo 129 pessoas em Paris.

Fiquei muito triste com os acontecimentos em Paris. Totalmente desconsolada

e sem saber o que pensar sobre a violência extrema que nos ameaça. Por

quê? Pergunto eu como Hécuba de Matéi Visniec. Por quê?

14/11/2015, sábado de dedicação total à apresentação de D’Existir e

lançamento da exposição virtual, Trajetória(s), no MIS.

Imagem de Cláudio Gimenez.

Dia 18/11/2015

Visitei o Ap 43 de Nara Sakarê. Um espaço, um apartamento pra treino de

construção de personagem para cinema. Muito interessante a ideia, a ousadia

de fazer de seu apartamento um lugar de trabalho, aberto a investigações

pessoais na busca de um espaço na tela de cinema ou TV. O dia inteiro

dedicado a assistir os trabalhos dos atores mais enfronhados no processo.

Talvez no ano que vem em fevereiro, passe a fazer parte desse grupo de

trabalho.

Na quinta, 19/11/2015, estive às voltas com uma vontade gigante de não fazer

e, em algum momento, do final da tarde, lembrei que havia combinado uma

entrevista com um grupo de jovens alunos de uma faculdade de publicidade do

interior de São Paulo, para falar sobre a minha carreira. Corri!

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Passei o dia todo, envolvida com a escrita dos Estudos para Fados e Afins.

Hoje é dia 25/11/2015, quarta-feira, 10h30min, dia seguinte da aula de Eutonia

em que trabalhamos as pernas com bolinha de tênis, dentro de um pé de meia.

E ficou a certeza, agora cada vez mais profunda, de uma questão obvia, mas

muitas vezes nada sensível, de que tudo aquilo que fazemos afeta muito

diretamente a nossa percepção do corpo: tamanho, texturas, alcance no

espaço magnético da aura. Esse ponto do espaço magnético, da aura, foi a

vivência mais impressionante. Na aula anterior tive a impressão, a sensação de

ser gigante; na loucura das elucubrações, aventei até a hipótese de que os

gigantes existiram. Ocorre que tive uma vivência muito forte da expansão de

meus contornos. Mas, nesta aula de ontem, o que senti me tocou justamente

pelo efeito contrário, pela percepção de meu tamanho justo, às vezes, até

menor? Do que deveria ser? Então, lembrei que na terça-feira passada havia

feito aula com o grupo da Clara, no Tapa, e a vivência com os alunos tinha sido

muito forte. Donde, deduzi que aquela sensação de gigantismo devia ser

também, um reflexo do trabalho que havia feito de manhã, quando recebi muita

energia dos alunos e meu corpo armazenou um grande montante de atenção.

Bobagem? Não sei.

Contente com as ressonâncias do trabalho de ocupação no MIS, com o vídeo

que me enviaram ontem, documentando o nosso projeto e o Dança no MIS,

com curadoria de Natália Mallo.

29/12/2015

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Ontem, sábado, dia 27/11/2105, morreu Lola Tolentino, às 16:30min. Hoje vou

ao velório, no cemitério do Araçá. Uma grande perda para todas as pessoas do

teatro. Eu gostava de sua presença por causa de seu encantamento com as

palavras, os enredos, os atores; era contagiante. Uma figura ímpar. Em paz,

Lola!

Tenho feito aquecimentos a partir da lembrança de meus treinamentos no

yoga. Há três dias que me entretenho por hora, hora e meia de mergulho nas

posturas do yoga. Hoje é domingo e, na quinta-feira, fiz umas improvisações

com musicas de um novo CD que adquiri na livraria cultura: Fernando Pessoa:

O Fado e a Alma Portuguesa. Também comprei um livro sobre o fado no Brasil.

Já voltei do velório. Difícil mas fundamental esse reencontro com Eduardo, um

Eduardo emocionado, aberto ao abraço e às palavras de carinho. Não aguentei

ficar mais que meia hora. As conversas, os ares contritos de alguns e as idas e

vidas de tantas pessoas em tão curto espaço de tempo... Fui!

Descubro o texto sobre os fados e a alma portuguesa. Alegria emocionada por

tanta beleza e lucidez. Vou continuar a escrita de meu texto/projeto dos

Estudos para fados e afins.

30/11/2015

Ontem fomos assistir ao solo de Célia Gouveia e ao ultimo trabalho da Cia

Corpos Nômades, do João Andreazzi.

Fiquei muito comovida pelo trabalho da Célia. Um depoimento pessoal que

parte do questionamento do sentido de se fazer arte, na forma de depoimento,

nos dias de hoje. Que fala sobre a crise da representação, que interage com o

público através da distribuição de um fio de aço, flexível o suficiente para que

cada espectador desenhe a sua linha e passe para o vizinho, para que ele o

molde a sua maneira, que mantém o diálogo com o público através das

memórias de professores que deixaram marcas em sua formação de

coreografa e bailarina, e que, com esse enredo, vai tecendo uma coreografia

feita de passos da memória e criação de movimentos que nos fazem refletir e

sentir as vozes de seu corpo. A questão fundamental se dilui ao longo da peça,

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mas continua reverberando depois de seu pequeno grand finale, e essa

questão é: “ o que é dança para você?”.

Eu adorei me sentir conduzida a pensar e vivenciar a historia da dança

moderna e pós-moderna nos movimentos ritmados, entrecortados e pulsantes

da Célia Gouveia. Um privilégio.

Dezembro de finalizações de processos – vivências de Eutonia, grupo de

estudos do Tapa, escrita e experimentações para os Estudos para Fados e

Afins.

2/12/2015 dia seguinte à aula de Eutonia, quando trabalhamos a cintura

escapular e a cabeça com o auxilio de bambus. Em algum momento do

processo a impressão de “fazer as pazes com o passado”. Lembrei-me das

aulas com a companhia em que Cláudio pilotava as vivências, no final da tarde.

Simplesmente, sem considerações, senti que a memória fazia parte de algo

vivido e que não envolvia considerações da natureza de julgamentos ou

recriminações ou mesmo pesar por não mais serem possíveis.

Na aula do grupo d estudos do Tapa, ontem de manhã, fiquei muito tocada por

apresentações de alguns colegas. Triste por falas do Tchekhov que me tocam

muito profundamente na alma e dei muitas risadas com atores que sequer

resvalam no sentido das personagens, mas tem uma vida interior muito

potente.

Tive um sonho muito esquisito. Estava escalada para substituir alguém em

uma peça, da qual não fazia ideia. Aceitei o convite e prontamente me coloquei

disponível e fiz o que estava previsto, mesmo sem saber muito bem do que se

tratava. Sei que cantei e me diverti numa peça que tinha o Fagundes entre

seus personagens e que fazia muito sucesso, porque me lembro da plateia

aplaudindo entusiasticamente. Ocorre que no dia seguinte também teria peça e

eu não sabia. Eu e Cláudio resolvemos fazer um passeio pela cidade e

perdemos a hora de chegada ao teatro. A corrida para chegar é que foi a coisa

mais angustiante. Percorremos muitas ruas, ladeiras, passamos por chuva- era

um labirinto-, até que enfim encontramos, numa casa em que entramos por

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acaso, uma pessoa que resolveu nos guiar pela cidade. Parecia Salvador, pois

ouvindo uma risada me disse: “Salvador é uma cidade aonde ainda existe

alegria”. E o sonho termina quando acordo a caminho do teatro, onde

deveríamos chegar até 08h30min.

E, hoje, dia 4/12/2015, sexta-feira, começo o dia, são 09h15min, com um

sonho em que me via constrangida diante de apresentações de solos de dança

que não tinham o menor valor artístico. Apresentações propostas pelo meu

amigo Rubens Caribé -, agora, no sonho, coreógrafo-, para que eu fizesse uma

apreciação de seu potencial e valor como arte. Difícil tarefa, diante da mostra

de tanta falta de talento. Lembro-me de que as apresentações eram feitas na

beira do mar e tinham como cenário a escuridão do oceano.

Esta tem sido uma semana de acompanhar eventos os mais diversos, desde o

cinema- Três lembranças de minha juventude, na quarta-feira, dia do jogo final

entre Santos e Palmeiras-- até a música, ontem, quinta-feira, – bate-papo entre

Arrigo Barnabé e Carlos Careqa até a dança – Vanessa Macedo, que irei ver

hoje, e a ultima parte da trilogia sobre Antonin Artaud com o pessoal da Maura

Baiochi, que iremos ver no domingo.

Esta é a primeira vez de que me recordo, no mês de dezembro, com tempo

para ver apresentações, para experimentos em sala, para conversar e

escrever, e pensar sobre a vida e a arte.

Comecei a ler um livro de Edgar Morin, PARA ONDE VAI O MUNDO?

Inquietantes reflexões sobre a nossa época e o sentido de pensar, levando em

conta as contradições do pensamento. ”O pensamento deve ser “dialógico”,

capaz de deixar fluir os contrários, que se complementam e combatem”.

Segundo François L’Yvonnet , que faz o prefácio do livro, Edgar Morin propõe

“Uma fraternidade que é muito mais do que uma solidariedade: ela é a

chave do próximo milênio para a implementação de uma verdadeira

política de civilização”.

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Interdependência passado/presente/futuro é o titulo do primeiro capitulo que

já me colocou noutro estado de atenção e conhecimento para o movimento

desse trio regente de nossas relações com a vida e o sentido de história.

08/12/2015 e acabo de voltar do grupo de estudos do Tapa. Uma grande

dificuldade de me sentir à l’aise. Não tenho vontade de participar das

apresentações das cenas de A Gaivota de Tchekhov e, ao mesmo tempo, me

sinto desconfortável por não me envolver na ação. Situação desagradável na

qual parece que me coloco disponível para sofrer. Estou com a minha

resistência a quase zero. Me coço como uma condenada.

Acabo de saber por whatsapp que nossa temporada no CCSP foi cancelada.

MERDA! Um desastre a programação. Todo mundo querendo a mesma coisa

ao mesmo tempo. Não há espaço para todos! Dançamos!

Ainda bem que no final do dia tenho vivência de Eutonia para me equilibrar as

energias.

Ontem fiz um depoimento sobre minha relação com Dona Maria Duschenes.

Foi muito bom por em prática minha revisão dos princípios do Laban para

melhor falar sobre o que aprendi com a artista- educadora especial que foi

Dona Maria.

À noite fomos assistir ao filme “Em três Atos” de Lúcia Murat. Que experiência

difícil! Não fosse pela linda presença de Angel Vianna, não teria aguentado até

o fim. Atores e bailarinos impecáveis, locações, luz e enquadramentos

belíssimos e, no entanto... O tom lamurioso que se vai instalando à medida

que as ações progridem desencorajou os mais entusiastas, como eu e Cláudio.

Talvez tenha colocado muita expectativa? Não sei.

Angel trai o discurso “oficial” a todo o momento. Sua presença é uma luz em

movimento.

14/12/2015 – segunda-feira de tarde.

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Hoje tive o prazer de receber a Akemi, acupunturista, que me fez uma

massagem nos pés.

Semana muito intensa de atividades. Na quarta-feira passada, dia seguinte do

filme com Angel, passei muito mal. Vi estrelas, realmente. Fiquei quieta, de

repouso. A Lúcia Lee veio em meu socorro e conversamos um pouco sobre as

impressões do filme Em três Atos, que não me saia da cabeça. Cancelei o

encontro que teria com Bárbara Dasb. Aproveitei para estudar sobre o Fado. Vi

alguns filmes e fiquei inspirada para continuar a escrever o projeto.

Quinta, dia 10/12/2015, foi dia de receber premiação por Difusão da Dança,

prêmio Denilto Gomes, no Centro de Referência da Dança. Emoção pelos

encontros com Raul Rachou, Jussara Müller e tantos outros colegas de metiê.

Foram muitas horas de “trabalho”. Fiquei exausta como se tivesse feito uma

apresentação com muito movimento. O Cláudio disse que eu falei muito bem

ao receber o prêmio. Talvez a tensão tenha me exigido muito. Começou tudo

com grande atraso e ficamos de pé por pelo menos uma hora e meia, antes de

adentrarmos a sala onde seria a cerimônia.

Comecei a ler Clarice Lispector, Aprendendo a Viver. Que maravilha! São suas

crônicas para jornal, reunidas. Uma lufada de sensibilidade. Um vento fresco

no espírito.

Na sexta-feira estudei um pouco mais sobre os fados e arrisquei alguns

experimentos com meu corpo.

À noite, fomos ao teatro Viga assistir dança, na Galeria Olido. Vimos o trabalho

“Simple Ficction”; uma peça de dança, dirigida por um jovem chileno, muito

talentoso.

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Sábado tivemos o WS com Lúcia, no espaço Ghut. Muito bom rever os

conhecimentos sobre o pensamento chinês e a relação com a criação dos

meridianos no corpo. Ficamos em casa e assistimos SOLIDÃO de um cineasta

russo: Sukorov.

Ontem, domingo, depois de um passeio pela Av. Paulista, aberta ao publico,

fizemos afazeres domésticos: supermercado e almoço. À noite assistimos a um

filme com Frank Sinatra: Sob o domínio do Mal (um tanto terrível a história de

soldados vindos da guerra da Coreia em estado psíquico deplorável).

Não paro de ter imagens referentes ao trabalho sobre fados. Preciso melhorar

minha condição física para começar a colocar meu corpo em estado de jogo.

Tenho vontade de desenhar algumas dessas imagens.

Dia 16/12/2015

Manhã de quarta-feira, 10:44. Acabo de matar um inseto contra a vidraça da

janela do quarto. Uma violência. Fazer o quê? Tantos insetos nocivos, tantas

zikas! Mas eu estou feliz apesar de todas as pragas.

Ontem senti muita alegria no caminho para o grupo de estudos do Tapa.

Era o último dia no grupo, e eu me sentia muito leve porque não tinha a

responsabilidade de apresentar cenas de A Gaivota. Demorei muito a tomar a

decisão e ainda assim me sentia desconfortável, e, só ontem, senti a emoção

de me lembrar dos caminhos na terra de meu avô- Itabaiana- no trajeto para o

galpão. Tive uma visão/sensação de quando eu andava sem rumo pelos lados

da estação de trem e dos armazéns. Quase chorei. Me controlei.

Difícil percurso/oficio esse da arte. A apresentação das cenas foi muito

custosa por força das repetições que nem sempre significavam ganho de visão

sobre as mesmas. Elas se repetiam dentro de um clima de nervoso que

igualava as intenções dos atores, por mais decididos que estivessem a não se

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deixar afundar na platitude geral. Aprendi muito sobre a cena ao me deparar

com as dificuldades que observei em cada um deles. A questão do lastro

interior para adentrar o universo Tchekoviano, levantada por Denise Weinberg,

deu conta para mim de uma explicação para o fracasso das sucessões de

cenas sem âncora no verbo. Não é que as palavras têm que ser ditas

claramente e com algum entendimento do sentido delas. Precisa mais, muito

mais para que a comunicação aconteça, para que se comungue o sentido ou

os sentidos que o autor imaginou tocar e alcançar com suas personagens.

Dois autores – um bem sucedido e outro fracassado, que duelam por suas

ideias; duas atrizes- uma famosa e outra estreante e que se revela mal

sucedida na carreira, no decorrer da peça e que também medem suas forças

pelo amor do autor famoso; dois velhos – um médico e o irmão da atriz famosa-

e duas mulheres amarguradas – uma mãe a uma filha, apaixonadas por

homens com quem não se casam. Uma relação incestuosa entre mão e filho

que se encaminha para o suicídio do filho/autor frustrado- na escrita e no amor.

Muito difícil de não se transformar num novelão barato. Para que isso não

aconteça, cada um dos personagens tem que viver plenamente a verdade de

sua condição, sem sentimentos forjados e livres dos desejos de aparecer e ser

reconhecido por suas atuações como atores. Enfim, exige um mergulho muito

desimpedido de segundas intenções. Uma compreensão justa dos valores da

época em que foi escrita e das condições de sua estreia e desenrolar na

história do teatro russo. A comunicação foi falha, mas muito proveitosa.

Discutimos francamente todas as impressões da plateia. Senti pela Clara

Carvalho ter que responder pela dificuldade dos atores de tocar no cerne das

personagens. Mas, fora isso, sai contente como plateia, pois assisti a um

esforço genuíno de busca de todos os envolvidos.

Conversei com Eduardo Tolentino que resolveu marcar uma leitura da peça

polonesa, no começo de Janeiro de 2016. Já é um começo!

De tarde, li mais uma peça de Matei Visniéc: Três Noites com Madox.

Peça inquietante. Absurda. Provocativa. Como é que tantas pessoas passam a

noite com a mesma pessoa, cada uma separadamente, e depois, ao ir ao

encontro dessa pessoa, elas se veem a si mesmas reunidas a conversar, e, a

pessoa misteriosa que gerou toda intriga não esta presente? Universos

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paralelos? As pessoas estão em muitos lugares, ao mesmo tempo, mais do

que imaginam? Estamos todos nessa mesma condição e não percebemos?

Por que a ubiquidade da personagem que não se revela acorda a curiosidade

de todos e a percepção de si mesmos em outra dimensão, à distância? É isso

mesmo o que acontece ou aconteceu?

E, á noite, foi dia de Eutonia ! Trabalhamos o corpo num movimento de

fora para dentro e de dentro para fora, com bambus grossos e longos, e

bambus pequenos e médios. Um banho de sensibilidade, antes da pizza

compartilhada pelo ultimo dia de aula de vivências inesquecíveis, em 2015.

17/12/2015

Quinta-feira, 13:30, quinta de um acordar com mais vitalidade do que ontem.

Assistimos ao filme Chico, um documentário sobra vida do genial Chico

Buarque de Holanda. Me emocionei muitas vezes. A nossa história, o Brasil,

cantado por versos e músicas para lavar a alma.

E, daqui a pouco, o Kali Phosphoricum, 30ch, vai me salvar a deficiência de

energia! Preciso de mais corpo em ação na chegada ao fim de ano!

Comprei um sapato azul que vai me servir para experimentar com a saia

dos fados! Não veja a hora de me por em situação de ensaio.

Preciso de um golpe de sorte além dos que esse ano já me proporcionou.

Necessito de algum indício de que no ano que vem não vou precisar parar tudo

quando terminar o contrato com o edital do Fomento, em fevereiro ou março de

2016. O país está em derrocada econômica a todo vapor. O presidente da

câmara, o Cunha, só vai ser julgado em fevereiro do ano que vem. Socorro!

São todos tão safados. Corruptos! Dá vontade de pular 2016 e ir para 2017 já

com tudo resolvido.

Vou para o estúdio trabalhar um pouco ou vou continuar a minha leitura de

Dostoyevski-trip. Decidirei.

Hoje à noite vamos assistir o colega Hélio Cícero, que, para nossa surpresa,

acaba de ser indicado ao prêmio Shell de melhor ator.

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23/12/2015

Que maravilha! Agora, sim começo a sentir que o ano se renova. São 9:00 da

manhã de uma quarta-feira, pré-natal. Depois de todas as catástrofes, sinto

que uma onda de bons eventos se aproxima. As derrocadas culturais e

ecológicas do país em depressão são o prenúncio de algo de bom no horizonte

de eventos.

Ontem filmei com meu amigo cineasta Ricky Mastro, no cemitério da

Consolação. Eu era a morte e perguntava: “Por que os homens acreditam em

milagres? Por que fomos feitos assim? Por quê? Por quê?”. Eu adorei

mergulhar naquele silêncio com a minha saia de Fados e experimentar um

mergulho sem peias nas alamedas repletas de imagens de transfigurações

pelo encontro com o fim. Eu me fartei de arriscar! De aprender a olhar através

da câmera e deixar que a atmosfera do cemitério me guiasse.

Fiz uma pesquisa muito rica sobre o butoh (intuitivamente fui para essa lugar) e

assisti de novo Estamira, o documentário sobre a catadora de lixo, que tinha

surtos psicóticos e dizia coisas de arrepiar

.Imagem que recebi de presente, ontem à noite.

Agora, mesmo com uma labirintite que me avisa de um stress

inaugurado, estou feliz pela concretização de muitos movimentos positivos, na

contramão total de tudo que está ao meu redor, tanto na política como na

cultura e na gestão ambiental do meu país.

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Hoje, vou assistir o documentário sobre Amália Rodrigues.

Que no ano de 2016 eu tenha energia suficiente, e na dose justa, para

experimentar um mergulho de qualidade nos Estudos para Fados e Afins.

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ANEXO II

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