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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA FORTALEZA CEARÁ 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

MESTRADO ACADÊMICO EM SOCIOLOGIA

SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO

PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS

NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA

FORTALEZA – CEARÁ

2017

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SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO

PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS

NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Sociais Aplicadas e Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia. Orientador: Prof. Dr. João Tadeu de

Andrade.

FORTALEZA – CEARÁ

2017

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SÁVIA MAIA COSTA CARDOSO

PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL: MÚLTIPLOS ASPECTOS

NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Sociais Aplicadas e Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de Concentração: Sociologia.

Aprovado em: 08 de maio de 2017

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. João Tadeu de Andrade pela sua amizade, dedicação e parceria de

sempre.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que me

possibilitou através da bolsa de estudos suporte para a realização desta pesquisa.

A todas as instituições ayahuasqueiras que tive oportunidade de conhecer: Santo

Daime, Barquinha, Caminho do Coração e ao Xamanismo onde tive lições e

aprendizados valiosos para a minha vida.

Aos professores do Mestrado em Sociologia que contribuíram para a minha

formação acadêmica.

A minha mãe Célia Maia que sempre me incentivou valorizando o estudo, a

sabedoria e o conhecimento.

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RESUMO

Esta dissertação visa investigar e analisar quais são os fundamentos que legitimam

o processo aberto junto ao IPHAN, solicitado por três principais religiões

ayahuasqueiras tradicionais, solicitando a patrimonialização da Ayahuasca como

bem cultural imaterial brasileiro. Além disso, este estudo pretende interpretar os

discursos dos órgãos oficiais envolvidos no processo, bem como de representantes

de comunidades ayahuasqueiras, a partir de entidades localizadas na região

metropolitana de Fortaleza. Esse trabalho visa antecipar-se à discussão desse tema

complexo e delicado, sobretudo por discutir a situação em que uma substância

psicoativa pode legitimar-se enquanto patrimônio cultural e quais os possíveis

impactos para a sociedade brasileira, em meio aos intensos debates sobre o uso de

substâncias psicoativas na atualidade.

Palavras-chave: Substância psicoativa. Patrimônio imaterial. Ayahuasca. Cultura.

Política pública.

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ABSTRACT

This dissertation aims at investigating and analyzing the foundations that legitimize

the open process with the IPHAN, requested by three main traditional Ayahuasca

religions, requesting the patrimonialization of Ayahuasca as a Brazilian intangible

cultural good. In addition, this study intends to interpret the speeches of the official

organs involved in the process, as well as representatives of Ayahuasca

communities, from entities located in the metropolitan region of Fortaleza. This work

aims to anticipate the discussion of this complex and delicate topic, especially for

discussing the situation in which a psychoactive substance can legitimize itself as a

cultural patrimony and what the possible impacts for the Brazilian society, amid the

intense debates about the use of Psychoactive substances today.

Keywords: Psychoactive substance. Intangible assets. Ayahuasca. Culture. Public

policy.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 -

Figura 2 -

Figura 3 -

Figura 4 -

Figura 5 -

Figura 6 –

Figura 7 -

Figura 8 -

Figura 9 -

Figura 10 -

Figura 11 -

Figura 12 -

Chá Ayahuasca...........................................................

Moléculas beta-carbolínicas presentes no cipó

Jagube.........................................................................

Folha Banisteropis caapi.............................................

Cipó Jagube................................................................

Cipó e folha em camadas alternadas prontos para

serem fervido..............................................................

Folha Psycotria Viridis...............................................

Molécula N, N – Dimetiltriptamina (DMT)...................

Mestre Irineu, fundador do Santo Daime..................

Padrinho Sebastião, fundador do CEFLURIS...........

Daniel Pereira de Matos, fundador da Barquinha.....

Mestre Gabriel, fundador da UDV.............................

Sri Prem Baba, fundador do Caminho do Coração...

32

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SUMÁRIO

1

1.1

2

2.1

2.2

3

3.1

3.2

3.3

3.4

3.5

4

4.1

4.2

4.3

4.4

4.5

5

5.1

5.2

5.3

6

INTRODUÇÃO.....................................................................................

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO.................................................

OBJETIVOS........................................................................................

GERAL.................................................................................................

ESPECÍFICOS....................................................................................

O QUE É AYAHUASCA....................................................................

ASPECTOS QUÍMICOS E FARMACOLÓGICOS DA AYAHUASCA.

ASPECTOS DE SAÚDE DO USO DO CHÁ AYAHUASCA...............

ASPECTOS ETNOBOTÂNICOS DO USO DO CHÁ AYAHUASCA...

ASPECTOS COSMOLÓGICOS DA BEBIDA AYAHUASCA..............

ASPECTOS LEGAIS DA BEBIDA AYAHUASCA...............................

PATRIMÔNIO CULTURAL................................................................

OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DE CULTURA......................................

O CONCEITO DE PATRIMÔNIO: ALGUNS APONTAMENTOS.......

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL.........................

PATRIMÔNIO CULTURAL: CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DE

IDENTIDADES....................................................................................

PATRIMÔNIO IMATERIAL, CULTURA E GLOBALIZAÇÃO..............

O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO

BRASIL...............................................................................................

AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE AYAHUASCA............................

AYAHUASCA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CULTURA

BRASILEIRA........................................................................................

O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA..........

CONCLUSÃO......................................................................................

REFERENCIAS...................................................................................

ANEXOS..............................................................................................

ANEXO A - CARTA DE SOLICITAÇÃO PARA O PROCESSO DE

RECONHECIMENTO DO USO DA AYAHUASCA EM RITUAIS

RELIGIOSOS COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CULTURA

BRASILEIRA.......................................................................................

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24

24

24

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65

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ANEXO B - QUADRO CRONOLÓGICO DOS PRINCIPAIS

ACONTECIMENTOS SOBRE A AYAHUASCA NO BRASIL............

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1 INTRODUÇÃO

Em 2006, o Conselho Nacional de Política6+s sobre Drogas (CONAD)

aprovou o parecer sobre a regulamentação do uso do chá Ayahuasca em rituais

religiosos no Brasil. Foi instaurado então, pelo CONAD, um Grupo Multidisciplinar de

Trabalho sobre a Ayahuasca (GMT) com profissionais de diversas áreas

(farmacologia, bioquímica, psicologia, antropologia) que realizaram pesquisas sobre

esta bebida, tendo como resultado a resolução de nº5 para levantamento e

acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca e de pesquisas sobre sua

aplicação terapêutica. No documento do GMT são instituídos parâmetros

deontológicos1 da Ayahuasca, regulamentando o seu uso em contexto religioso.

A Ayahuasca é um chá psicoativo, resultado da união do cipó

Banisteriopsis caapi, conhecido como Mariri ou Jagube, com as folhas do arbusto

Psychotria viridis, conhecido por Chacrona ou Rainha. O chá é identificado por

diversos termos: Daime, Hoasca, Caapi, Yagé, Rei Inca, Vegetal, mas o nome que

representa a bebida juridicamente é Ayahuasca. Esta palavra é de origem quéchua

e umas das possíveis traduções é ―Cipó das almas‖. O chá possui a substância N,N-

dimetiltriptamina (DMT) como princípio ativo que, quimicamente, é responsável pelas

experiências de expansão de consciência com diversos efeitos físicos.

Em maio de 2008, na Prefeitura de Rio Branco, Acre foi iniciado a

abertura do processo de reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos

como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira. Essa solicitação foi feita pelos

representantes dos três troncos fundadores2 das comunidades Ayahuasqueiras,

tradicionais e contemporâneas. Essa solicitação foi feita ao então Ministro da Cultura

do Governo Lula, Gilberto Gil, para a instauração do processo junto ao órgão federal

1 O objetivo do GMT da Ayahuasca é a instauração de parâmetros normativos para a utilização da

bebida de acordo com os princípios da Ética normativa, baseado na filosofia moral contemporânea.

2 As entidades envolvidas são: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo (CICLU Santo

Daime); Casa de Jesus Fonte de Luz (Barquinha) e Centro Espírita Beneficente União do Vegetal

(CDUDV).

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responsável para esse tipo de atuação, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico

Nacional (IPHAN).

O Patrimônio Cultural Imaterial, segundo o IPHAN (2007), é formado por

um conjunto de saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que

remetem à história, à memória e à identidade desse povo. É tudo aquilo que é

considerado valioso por um grupo social e que remete à afirmação de sua identidade

cultural, ou seja, suas referências e valores culturais. Existem os bens culturais

materiais, isto é, tangíveis, que são as paisagens naturais, objetos, edifícios, entre

outros e os bens culturais de natureza imaterial que estão relacionados às crenças,

práticas e habilidades inseridos no modus vivendi das pessoas. O patrimônio cultural

de uma sociedade é fruto de políticas públicas norteadas pelo Estado por meio de

leis, instituições públicas responsáveis, com a participação dos representantes que

solicitam o pedido de patrimonialização juntamente com a sociedade civil. Os valores

e significados atribuídos a determinado bem cultural devem ser pensados em

coletividade.

Com o objetivo de criar instrumentos adequados ao reconhecimento e à

preservação de bens culturais imateriais, que são de natureza processual e

dinâmica, tais como as ―formas de expressão‖, e ―os modos de criar, fazer,

viver‖, citados no Art. 216 da Constituição Federal de 1988, o IPHAN

coordenou os estudos que resultaram na edição do Decreto 3.551, de 04 de

agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza

Imaterial e cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial. Nesse mesmo

ano, o IPHAN também consolidou o Inventário Nacional de Referências

Culturais. (IPHAN, 2007, p.17).

O IPHAN abriu o respectivo processo de patrimonialização e em seguida

o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) que é um procedimento

desenvolvido a partir de métodos etnográficos que visa levantar dados, informações

e dar consistência aos pedidos de registro e salvaguarda de um bem imaterial. O

INRC é um instrumento que cataloga e registra determinado bem de natureza

imaterial. Este levantamento visa ―Inventariar‖ os bens culturais que remetem à

identidade cultural de um grupo social. Quando determinado bem cultural é

conhecido através do INRC ele será, em seguida, reconhecido através de outro

instrumento do IPHAN chamado Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.

Antes do Registro do Bem imaterial, o conselho consultivo do IPHAN, ligado a

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diferentes esferas de atuação, decidirá se a proposta é consistente e se deve ser

feito o registro.

O bem cultural imaterial, já devidamente registrado será inscrito em um

dos Livros de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que, atualmente está

divido em quatro categorias: Livro de Registros de Saberes – para a inscrição de

conhecimentos e modos de fazer das comunidades; Livro de Registros de

Celebrações – para rituais e festas, da religiosidade e de outras práticas da vida

social; Livros de Registro das Formas de Expressão – para manifestações literárias,

musicais, plásticas, cênicas, lúdicas; Livro de Registro dos Lugares – espaços como

mercados, feiras, praças e santuários, onde se reproduzem práticas culturais

(IPHAN, 2007).

Porém, o pedido do IPHAN para a realização do INRC da

Ayahuasca não conta apenas com o levantamento sobre as religiões

ayahuasqueiras que solicitaram o pedido, mas também é necessário levantar

levantar informações sobre a cosmologia dos povos indígenas que fazem uso do

mesmo chá e das comunidades urbanas mais recentes, categorizadas como neo-

ayahuasqueiras. Isto nos sugere que a realização do INRC da Ayahuasca é um

empreendimento amplo acerca dos rituais em que se faz o uso do chá. Essa

amplitude ocorre devido à diversidade cultural em torno da bebida levantando

questões do que se pretende inventariar afinal (SANTOS, 2010).

A proposta apresentada pelos técnicos do IPHAN dividiu o projeto em três

campos de pesquisa: campo dos originários, campo tradicional ou tradicionalista e

campo eclético ou neo-ayahuasqueiro. Nesse vasto leque em que a Ayahuasca está

presente, surgem as delimitações e dificuldades para a execução do INRC. É

necessária uma grande equipe de pesquisadores e de financiamento, além da

execução desse amplo projeto. No INRC, são feitas pesquisas etnográficas,

produção em audiovisual, registros fotográficos, pesquisas bibliográficas e

documentais (IPHAN, 2007).

O pedido de patrimonialização da Ayahuasca levanta questões polêmicas

e controversas. Caso venha a ocorrer, representará uma grande conquista para as

comunidades ayahuasqueiras que ao longo do tempo foram bastante discriminadas

e marginalizadas por suas práticas religiosas. Mas, ao mesmo tempo, preservar este

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bem imaterial pode significar cristalizá-lo, como se houvesse apenas uma prática

religiosa legítima a ser reconhecida. No caso da Ayahuasca, as práticas religiosas e

terapêuticas são dinâmicas, sincréticas e às vezes contraditórias (LABATE, 2011).

Um grande passo para as entidades ayahuasqueiras, sem dúvida, foi a

regulamentação do uso do chá em contexto religioso feita pelo CONAD em 2006

(GMT – Ayahuasca), retirando as substâncias presentes na composição do chá da

lista de drogas ilícitas. Então, pela primeira vez as comunidades ayahuasqueiras que

sempre sofreram com o preconceito e perseguição pelos que não toleravam suas

práticas rituais, puderam legitimar-se enquanto manifestação religiosa brasileira a

ser protegida de acordo com o art. 2º, da Lei Federal 11.343/06 (2006) e do art.215,

§1º, da Constituição Federal. Já o pedido de patrimonialização é um passo maior

que exige estudos e planejamento e que leva em consideração todas as nuances

que envolvem esse tema tão complexo e delicado.

Os estudos em torno da Ayahuasca demonstram os impactos

estruturantes na vida daqueles que a utilizam em contexto religioso (MACRAE,

1992). Esse paradoxo nos mostra que a demonização das substâncias psicoativas

constitui uma visão estreita que necessita ser revisada, instituindo novos parâmetros

reflexivos, norteados por pesquisas farmacológicas, jurídicas e socioculturais

(MACRAE, 1992).

Além disso, o uso da Ayahuasca envolve complexas redes sociais onde

diversos grupos possuem relacionamentos diferentes com esta substância

enteógena3. Além da variedade sociocultural presente nessas comunidades, desde

os índios que bebem o chá em rituais no interior da floresta amazônica, até jovens

de classe média em contexto urbano, a relação com a Ayahuasca é variável em

cada grupo, que a trata e percebe diferentemente de acordo com sua doutrina ou

visão de mundo.

Tratar, contudo, da patrimonialização do uso da Ayahuasca em contexto

religioso é algo que nos remete a questões de natureza múltipla. A Ayahuasca é um

agente não humano associado a diferentes contextos culturais. Este líquido, de

acordo com a cultura na qual esteja inserido, ganha símbolos e significados

3 Enteógeno: palavra grega que significa ―Deus dentro‖. Utilizo essa palavra para me referir às

substâncias psicoativas que agem ampliando o estado de consciência do indivíduo.

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diferentes, que norteiam a visão de mundo e a identidade cultural de seus usuários.

Cada contexto cria sua “Ayahuasca” (SANTOS, 2010). Os componentes da bebida

são de origem natural e se fundem através da manipulação humana dando origem à

bebida. Os elementos naturais ao sofrerem interferência humana se mesclam dando

origem a um terceiro ―produto‖ que agora é natural e cultural ao mesmo tempo,

porém passível de mudança de acordo com a cosmologia na qual está incluído. Em

matéria de cultura podemos dizer que nada é simples, tudo tem sua complexidade

(BATISTA, 2010).

O pedido de patrimonialização da Ayahuasca reforça, sem dúvida, a

necessidade das comunidades ayahuasqueiras afirmarem suas identidades

culturais, para garantir os direitos religiosos e, por fim, a preservação do

conhecimento e da tradição que envolve a Ayahuasca em contexto religioso. O

pedido de patrimonialização da Ayahuasca em contexto religioso é, a nível

simbólico, a legitimação da religiosidade ayahuasqueira como um saber tradicional

inerente à cultura brasileira que agora busca ser visto e reconhecido para ser

consolidado como bem cultural imaterial brasileiro.

Constitui-se manifestação cultural indissociável da identidade das

populações tradicionais da Amazônia e de parte da população urbana do

País, cabend ao Estado não só garantir o pleno exercício desse direito à

manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de

acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o, ―caput‖, Lei 11.343/06 e

art. 215, caput e § 1º c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º da Constituição

Federal. (CONAD, 2006, p.12-13).

O IPHAN tem o apoio de outras instituições, públicas e privadas no

processo de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção do patrimônio

imaterial brasileiro, como o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI),

grupos locais, prefeituras, Organizações Não-Governamentais, Secretarias

estaduais e municipais, Ministério da Cultura, dentre outros. Surge daí

questionamentos sobre a natureza da Ayahuasca e em que Livro de Saber esse

possível patrimônio seria registrado. Qual o enquadramento da patrimonialização

dentro desse processo? Quais seriam os limites e impasses do próprio IPHAN que

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se depara com uma situação relativamente nova, e que levanta mais dúvidas sobre

o que pode ser considerado patrimônio, cultura e bem imaterial?

As discussões sobre a identidade nacional e as referências culturais que

formam o imaginário de nação nos fazem refletir sobre as relações de poder que

existem e as disputas que ocorrem no campo de patrimônio, para que determinadas

manifestações culturais ou religiosas sejam legitimadas.

(...) entendendo por tal relações de forças entre as posições sociais que

garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou

de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas

pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as

que têm por finalidade a definição da forma legitimada de poder.

(BOURDIEU, 2011, p. 28-29).

A política pública de Patrimônio cultural é moldada por relações de forças

que atuam através da dimensão simbólica do capital. Patrimônio seja material ou

imaterial é um território marcado por disputas sociais, econômicas, políticas e

culturais. Está em constante construção e reforma. O pedido de patrimonialização da

Ayahuasca é algo novo que não se enquadra em nenhuma categoria do IPHAN, até

agora, e que trás discussões sobre a maleabilidade e construção dessa política.

Em 2008 o governo do Peru declarou como patrimônio cultural da nação

os conhecimentos tradicionais e o uso da Ayahuasca por comunidades indígenas na

floresta amazônica peruana. Esse processo, além da visibilidade internacional que

trouxe ao uso religioso do chá Ayahuasca, influenciou aqui no Brasil as religiões

tradicionais ayahuasqueiras de modo que as mesmas, solicitaram no mesmo ano, o

pedido de patrimonialização do chá em contexto religioso. De acordo com o Instituto

Nacional de Cultura do Peru, o ritual da Ayahuasca está se estabelecendo como

centro da medicina tradicional, reconhecendo como um dos pilares da identidade

dos povos amazônicos.

De acordo com a ―Declaración Patrimonio Cultural de la nación a los

conocimientos y usos tradicionales del Ayahuasca practicados por

comunidades nativas amazónicas se resolve declarar patrimonio cultural de

la nación a los conocimientos y usos

tradicionales de Ayahuasca practicados por las comunidades nativas

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amazónicas, como garantía de continuidad cultural‖ (INSTITUTO

NACIONAL DE CULTURA, PERU, 2008).

Para NAKAZAWA (2015) é necessário proteger a prática [uso ritual da

Ayahuasca] para evitar o uso indevido e distorções, como o comércio irresponsável,

o consumo lúdico, o manejo por pessoas não habilitadas, o charlatanismo, a

exploração dos recursos naturais e o possível esgotamento e a apropriação do

conhecimento sagrado dos povos originários. A autora ressalta que:

Algunos curanderos se dan cuenta pronto de que pueden sacar beneficio

económico, sexual o de poder, y comercializan plantas sagradas y rituales a

un público ávido de ―comprar‖ salud, conocimiento y una espiritualidad

alejada de sus propias raíces culturales. Surgen en el ámbito urbano y para

atender la demanda de clientes foráneos, neo chamanes - ayahuasqueros,

auto referidos como ―convidadores‖ pues no conocen ni ejercen el rol de

curandero, pero que aprendieron externamente a realizar el ritual y lo

aplican, sin estar preparados para afrontar una eventual complicación. En

algunas comunidades, con intención de fomentar el desarrollo local

impulsando el turismo algunas autoridades organizan festividades o tours

con tomas de ayahuasca. En este contexto se presentan inevitablemente,

para esos ingenuos extranjeros, casos de abuso, de explotación, de

descompensación física o mental y hasta de decesos, algunos de ellos muy

mediatizados y reportados de manera escandalosa por la prensa

sensacionalista. (NAKAZAWA, 2015, p.4).

A autora também afirma que o uso ritual da Ayahuasca é o fundamento

da Medicina Tradicional Amazônica e em consequência base da identidade cultural

dos povos amazônicos. Em 1999 uma declaração da União Indígena de Curandeiros

de Ayahuasca, na Amazônia Colombiana, já apontava que "mesmo alguns dos

nossos irmãos indígenas não respeitam os valores do nosso remédio, e saem por aí

enganando pessoas, vendendo símbolos das nossas cidades"(UMIYAC,1999).

Na Colômbia em junho de 1999 ocorreu o UMIYAC Union de Medicos

Indigenas Yageceros de la Amazonia Colombiana no I Encontro dos Taitas, ocorrido

na cidade de Yurayaco que reuniu povos do território Ingano, curandeiros,

indígenas, xamãs. Durante o evento os grupos indígenas se manifestaram a respeito

da comercialização do Yagé (Ayahuasca) e outras plantas. A organização dos Taitas

manifestou preocupação com um ―novo tipo de turismo que estava sendo

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promovido‖ através de charlatanismo e do uso indevido de medicinas sagradas. A

Organização também exigiu a suspensão de uma patente concedida a Loren Miller.

Em carta emitida pela Organização dos Taitas em 1999:

Exigimos respeito aos nossos territórios, nossa medicina indígena e

curandeiros tradicionais ou a nossa Taitas. Pedimos ao mundo a reconhecer

o nosso medicamento que também é uma ciência, não da mesma maneira,

embora os ocidentais possam entendê-lo. Nós, o Taitas, somos curadores

reais e por muitos séculos temos contribuído para a saúde das nossas

aldeias. Além disso, a nossa medicina olha além do físico e busca o bem-

estar da mente, do coração e do espírito. Exigimos a suspensão imediata da

patente concedida a Loren Miller nos Estados Unidos. Para nós, a patente

representa um abuso e uma profanação da nossa planta sagrada.

Declaramos que o Yagé e outras plantas medicinais que usamos são

patrimônio e propriedade coletiva dos povos indígenas. É um uso em nome

da humanidade que deve ser realizado com a nossa participação e

queremos quaisquer outros benefícios derivado dos nossos direitos. Nós

pedimos o reconhecimento legal da nossa autonomia no cuidado com a

saúde dos nossos povos de acordo com nossas tradições e valores. Temos

que recuperar a posse dos nossos territórios e locais sagrados. A floresta é

para nós a fonte de nossos recursos.

Em 1980, Loren Miller, um dono de um laboratório farmacêutico

estadunidense, conseguiu as plantas que constituem a Ayahuasca com povos

indígenas de Cofan no Equador e ao chegar aos Estados Unidos patenteou as

plantas. Em 1996 a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica

(COICA), que representa mais de quatrocentros grupos indígenas, apresentou uma

solicitação de anulação da patente das plantas sagradas. O Escritório de Patentes e

Marcas dos Estados Unidos (PTO) em Washington anulou a patente alegando que a

Banisteropis caapi era nativa da floresta amazônica, já era conhecida e não

representava nenhuma ―descoberta‖. A patente foi reativada em 2001 e ficou em

vigor até o final em 2003. Os povos indígenas, na época, continuaram protestando

contra a patente. O representante do povo Ashaninka levantou essa discussão no

workshop internacional ―Cultivando a Diversidade‖ em maio de 2002 em Rio Branco,

Acre (Biodiversidade celebrada na amazônia – o compromisso de Rio Branco.

Disponível em:< http://www.amazonlink.org/gd/diversidade/19.html> Acesso em 09

de janeiro de 2017).

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Em 5 de setembro de 2006 o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal

do Alto Santo foi tombado por decretos do governador Jorge Viana e do prefeito

Raimundo Angelim como patrimônio histórico e cultural de Rio Branco e do Acre. A

solenidade foi realizada no Palácio de Rio Branco com a participação de Peregrina

Gomes Serra, viúva do Mestre Irineu e dignatária do CICLU Alto Santo.

A solicitação do tombamento foi feita por Madrinha Peregrina por carta

enviada ao governador do Acre e ao prefeito de Rio Branco. No documento ela

destaca:

[...] Desde então, a irmandade fundada pelo Mestre Irineu Serra manteve-

se no local respeitando e honrando os ensinamentos que ele nos legou.

Neste local estão construções importantes para o prosseguimento desta

tradição. Destaco dois conjuntos. O primeiro inclui a casa do Mestre,

transformada em Memorial da comunidade, a Sede de nossos trabalhos

espirituais, a casa do feitio e o poço aberto pelo próprio Mestre. Excluo

desse conjunto a minha residência e de dona Maria Laurinda, próximas ao

Memorial, mas destinadas ao uso particular e erguidas em tempos mais

recentes. No segundo conjunto, do outro lado da estrada, estão alinhadas

lado a lado: a escola municipal Irineu Serra, que é uma construção recente,

mas que originou-se da Escola Cruzeiro, funda pelo Mestre no início dos

anos 60, a capela com o túmulo do Mestre e de dois importantes discípulos,

o Conselheiro José das Neves e o Presidente Leôncio Gomes da Silva e,

finalmente, a casa de Leôncio Gomes, construída em modelo igual à casa

do Mestre e que ainda guarda as características da época em que foi

erguida. Todos esses bens localizam-se na Área de Proteção Ambiental

Raimundo Irineu Serra, criada no ano passado pela Prefeitura de Rio

Branco e têm, portanto, a atenção do poder público municipal. Acredito,

entretanto, que o tombamento pelo patrimônio municipal, estadual e federal,

dará maior segurança de que a obra do Mestre Irineu possa estar para

sempre protegida. Portanto, solicito à Prefeitura Municipal de Rio Branco, ao

Governo do Estado do Acre e ao governo da República do Brasil o

tombamento da área do Alto Santo como Patrimônio Histórico e Cultural de

nossa Cidade, nosso Estado e nosso País. (CARTA DE PEREGRINA

GOMES SERRA – PEDIDO DE TOMBAMENTO CICLU ALTO SANTO

2006).

A primeira área de proteção ambiental (APA) do Acre foi criada pelo

prefeito do Rio Branco Raimundo Angelim com o apoio da Câmara municipal, na vila

Irineu Serra em Rio Branco, como resultado da reinvindicação da comunidade do

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Santo Daime e dos dirigentes de quatro centros da Doutrina do Santo Daime. A APA

é uma unidade de conservação assim como os parques nacionais e reservas

biológicas. Nessa área está presente a Vila Irineu Serra existente há mais de 50

anos. A imensa área original foi doada na década de trinta pelo ex-governador e ex-

senador José Giomar dos Santos ao Mestre Irineu Serra que lá fundou o Centro de

Iluminação Cristã Luz Universal.

A Área de Preservação Ambiental Raimundo Irineu Serra (APARIS), com

pelo menos 1,2 mil hectares, formaria a maior área verde da bacia do igarapé São

Francisco, segundo Arthur Leite, secretário municipal de Meio Ambiente. O interesse

dos moradores da região é proteger e garantir as manifestações culturais originais

das populações tradicionais, integradas ao ecossistema nativo, notadamente o

plantio e o cultivo das espécies Banisteropis Caapi (cipó jagube) e Psychotria Viridis

(folha rainha), bem como proteger o uso religioso da bebida Ayahuasca.

Nenhum projeto de urbanização pode ser implantado numa APA sem

prévia autorização de sua unidade administradora. As áreas de florestas existentes

podem vir a ser consideradas Zonas de Conservação da Vida Silvestre, nelas não se

podendo realizar desmatamentos e nenhum tipo de exploração ou atividade que

implique alteração na fauna ou na flora. Essas iniciativas de preservação e

tombamento reforçam a necessidade das doutrinas ayahuasqueiras utilizarem

instrumentos do Estado para garantir os direitos religiosos e assegurar legitimidade e

proteção.

Em acréscimo foi aprovado em 2017 na Câmara Legislativa do Estado do

Pará um projeto de lei que reconhece o uso ritual do chá Ayahuasca como

Patrimônio cultural do Estado do Pará, sem dúvida uma decisão importante para o

governo do Estado e para as comunidades Ayahuasqueiras do norte do país. A

decisão recente foi divulgada em vídeo por um representante da União do Vegetal

em março de 2017 e não obtive mais detalhes a respeito da decisão até o

fechamento da pesquisa dessa dissertação. Finalmente, considero relevante citar a

expansão do uso religioso da Ayahuasca em diversos países da Europa e das

Américas, através da presença crescente de igrejas do Daime e de núcleos do

CEBUDV, o que traz desafios de regulamentação jurídica para os governos

estrangeiros.

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O objetivo desse estudo é analisar as relações sociais e culturais na qual

a Ayahuasca se insere no Brasil a fim de se compreender os múltiplos aspectos do

processo de patrimonialização da Ayahuasca. Examinando os discursos oficiais das

instituições governamentais, considerando os aspectos políticos sobre o processo.

Essa pesquisa visa contribuir para a área de políticas públicas culturais, já

que o processo de patrimonialização da Ayahuasca é um caso atípico por ser um

pedido complexo que envolve uma bebida psicoativa ameríndia usada em rituais

religiosos e que possui como característica a necessidade de reflexão sobre os

conceitos de cultura e patrimônio cultural. Além disso, o debate sobre a Ayahuasca é

necessário na contemporaneidade devido à problemática em torno da política de

drogas e como as substâncias psicoativas tem sido tratadas pela jurisdição brasileira

atualmente.

Essa dissertação contribui também para a linha de pesquisa na qual está

inserida (Cultura, Diferença e Desigualdade) do Mestrado Acadêmico em sociologia

(PPGS), sobretudo por fazer parte desse debate sobre tensões sociais e os

processos de diferenciação social na atualidade, que tem como objetivo examinar de

forma crítica as novas configurações de classe na sociedade contemporânea. Na

graduação em Ciências sociais, eu já vinha pesquisando o uso da Ayahuasca em

contexto religioso. Fiz pesquisas sobre a Barquinha e sua cosmologia, que envolve o

espiritismo kardecista e a umbanda; o Santo Daime e sua influência cristã; e outras

instituições neo-ayahuasqueiras, como a Arca da Montanha Azul. Esses estudos me

levaram à realização da monografia sobre o Caminho do Coração, uma instituição

neo-ayahuasqueira no Ceará, que tem como base o uso ritualístico e sacramental da

Ayahuasca. Este projeto faz parte também das minhas pesquisas realizadas no

Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnicidade (GEPE), acompanhada por meu

orientador Prof. Dr. João Tadeu de Andrade que realiza pesquisas sobre o uso de

substâncias psicoativas, terapias, medicina popular e indígena. A continuação da

minha pesquisa sobre a Ayahuasca se deve também ao incentivo da bolsa de

pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES), parceria essa que foi de relevante importância para o desenvolvimento

deste projeto.

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Ao longo das minhas pesquisas, pude constatar que os debates em torno da

Ayahuasca ainda são muito recentes no ambiente acadêmico, sobretudo em torno

das questões da patrimonialização do seu uso. Há poucos estudos disponíveis a

respeito dessa questão e do INRC da Ayahuasca. Sem dúvida é uma discussão

recente, carente de estudos na área (LABATE, 2011) e essa pesquisa pretende

contribuir para o entendimento dos aspectos em torno do processo da

patrimonialização da Ayahuasca. A Ayahuasca tem sido procurada por pessoas com

os mais variados tipos de interesse, tornando-se mais conhecida nos últimos vinte

anos (LABATE, 2011). Outras substâncias psicoativas vêm sendo usadas ao longo

da história da humanidade para diversos fins, desde a busca pelo prazer até ao

êxtase religioso (MACRAE, 2010).

Nesta pesquisa, levanto questionamentos a respeito de como as instituições

de governo podem aperfeiçoar as políticas públicas em torno das substâncias

psicoativas. A política criminalista de combate às drogas têm se mostrado

ineficiente, e os estudos em torno da Ayahuasca demonstram os impactos

estruturantes na vida daqueles que a utilizam em contexto religioso (MACRAE,

1992). Esse paradoxo nos mostra que a demonização das substâncias psicoativas

constitui uma visão estreita que necessita ser revisada, instituindo novos parâmetros

reflexivos, norteados por pesquisas farmacológicas, jurídicas e socioculturais

(MACRAE, 1992). Esse estudo envolve antropologia da religião, xamanismo, cultura

e conceitos da sociologia, como ainda a análise das leis sobre política pública de

patrimônio imaterial e Ayahuasca também.

1.1 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

1Pesquisa documental: Identificação, coleta e análise de material documental e

bibliográfico sobre políticas públicas: Desde a Portaria n.02/1985 – Divisão de

Medicamentos (Dimed);Resolução n. 04/1985 – Conselho Federal de Entorpecentes

(CONFEN); Resolução n.06/1986 – Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN);

Relatório Final do Grupo de Trabalho 1987 – Conselho Federal de Entorpecentes

(CONFEN); Parecer do Dr. Domingos Bernardo de Sá – 02/06/1992 – Conselho

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Federal de Entorpecentes (CONFEN); Resolução n.26 – 31/12/2002 – Conselho

Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD);

Parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico – 17/08/2004 – Conselho

Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD); Resolução n.05 – 04/11/2004 –

Conselho Nacional de Política sobre Drogas (CONAD); Relatório Final – Grupo

Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca – 23/11/2006 – Conselho Nacional de

Políticas sobre Drogas (CONAD); Resolução n.01 – 25-01-2010 – Conselho

Nacional de Política sobre Drogas (CONAD);

Pedido de Tombamento da Ayahuasca, 2008 por parte das doutrinas tradicionais

ayahuasqueiras ao ministro da cultura Gilberto Gil em 2008; Acesso ao portal do

IPHAN para a pesquisa sobre a legislação de patrimônio cultural. O Decreto n°3.551,

de 4 de agosto de 2000 do IPHAN. Entrevista por correio eletrônico com Deyvesson

Gusmão, Coordenador-Geral de Identificação e Registro – CGIR Do Departamento

de Patrimônio Imaterial (DPI) do IPHAN; Acesso a Carta da Madrinha Peregrina

solicitando o Tombamento do CICLU de Alto Santo (Santo Daime) no site da

Doutrina do Santo Daime (<http://www.santodaime.org/site-

antigo/doutrina/oquee.htm>); Cartas de Alex Polari (representante do CEFLURIS) se

posicionando a respeito do pedido de patrimonialização da Ayahuasca via site <

http://www.bialabate.net/>.

Principais pesquisadores da Ayahuasca das áreas químicas, biológicas e médicas:

Volodymyr Samoylenko, Rick Strassman, Paul Mckenna, Wiki Chubby Checkey,

Luiz Aranha Correa de Lago, Robert Gable, Steffen Warren.

Pesquisa envolvendo principais autores na área de cultura, identidade, globalização

e patrimônio cultural: Roque de Barros Laraia, Aline Sapiezinskas Krás Borges

Canani, Silvia Helena Zanirato, Néstor Garcia Canclini, Stuart Hall, Anthony Giddens,

Zygmunt Bauman, Cláude Lévi- Strauss, José Luís dos Santos, Armand Matterlart;

2. Entidades de estudo: Sites do IPHAN; UNESCO; Documentos do DIMED e

CONAD, Pesquisa feita acessando os sites das respectivas religiões

ayahuasqueiras: Doutrinas do Santo Daime, Barquinha, União do Vegetal, Caminho

do Coração e a tribo indígena Kaxinawá (tive acesso sobre a cosmologia da tribo

Kaxinawá no site da autora Beatriz Labate [<www.bialabate.net>]), além dos estudos

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dos pesquisadores ayahuasqueiros, bem como livros de Edward Macrae, Guiado

pela lua (sobre a doutrina do Santo Daime); Beatriz Labate, A Reinvenção do Uso da

Ayahuasca nos centros urbanos (pesquisei sobre o Santo Daime, Barquinha, UDV e

o Caminho do Coração); Wladimir Sena de Araújo, Navegando Sobre as Ondas do

Daime (Sobre a Barquinha);

3. Fases da pesquisa: 1. Estudo das fontes documentais e bibliográficas de janeiro a

julho de 2016; 2.Acesso ao site do IPHAN, das doutrinas ayahuasqueiras e dos

órgãos públicos CONAD, DIMED e documentos da UNESCO presentes no site do

IPHAN de março a novembro de 2016; 3. Analise documental das leis e do processo

de patrimonialização da Ayahuasca de julho a dezembro de 2016; 4. Apresentação

de resumo do projeto dessa pesquisa no II AyaConference realizado no Rio Branco,

Acre em outubro de 2016 pelo orientador Prof. Dr. João Tadeu de Andrade onde foi

feito o primeiro contato com o coordenador do IPHAN, Sr. Deyvesson Gusmão.

5.Qualificação do projeto de pesquisa em novembro de 2016. 6. Entrevista com o Sr.

Deyvesson Gusmão em dezembro de 2016.

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2 OBJETIVOS

2.1 GERAL

Analisar o contexto social, cultural e político no qual a Ayahuasca se insere no Brasil

a fim de se compreender os múltiplos aspectos que envolvem seu processo de

patrimonialização.

2.2 ESPECÍFICOS

Investigar os aspectos biológicos, cosmológicos, sociais e legais da

Ayahuasca no Brasil;

Desenvolver uma análise da política pública de patrimônio cultural no Brasil;

Analisar o processo de patrimonialização da Ayahuasca;

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3 O QUE É AYAHUASCA?

Neste capítulo destacaremos alguns aspectos necessários para a

compreensão do que é Ayahuasca. Abordaremos os aspectos químicos e

farmacológicos, compreendendo como essa bebida psicoativa age no organismo

humano, avaliando os aspectos de saúde, os benefícios e os impactos que esta

bebida causa ao corpo e mente humana. Além dos aspectos etnobotânicos das

plantas presentes na fórmula Ayahuasca, iremos conhecer um pouco mais das

doutrinas ayahuasqueiras tradicionais e neo-ayahuasqueira e indígena, tratando do

consumo da Ayahuasca na atualidade. Por fim, faremos um esboço sobre os

aspectos legais da bebida Ayahuasca, servindo de base para a nossa avaliação do

processo de patrimonialização do chá e das políticas públicas de patrimônio cultural

no Brasil.

3.1 ASPECTOS QUÍMICOS E FARMACOLÓGICOS DA AYAHUASCA

A bebida enteógena4 conhecida como Ayahuasca, Hoasca, Caapi, Yagé,

Daime, Vegetal entre uma variedade de nomenclaturas é de origem quéchua5,

possui um passado milenar onde sacerdotes e realezas do império Inca utilizavam a

bebida em seus rituais xamânicos, estando até hoje, presente nas cosmologias de

diversas tribos indígenas da floresta amazônica (Kaxinawá, Yawanawá, Jaminawá,

Marubo, Katukina entre outras) e em religiões no Brasil e no mundo (Barquinha,

Santo Daime, União do Vegetal, Arca da Montanha Azul, Umbandaime, Caminho do

Guerreiro, Caminho do Coração entre outros). A origem da bebida é um enigma, não

se sabe como ela foi criada em meio à vastidão selvagem da flora amazonense. Um

verdadeiro mistério da floresta, onde alguém obteve a revelação de misturar as

4 Enteógeno: palavra grega que significa ―Deus dentro‖. Utilizo essa palavra para me referir às

substâncias psicoativas que agem ampliando o estado de consciência do individuo com vínculo com o

sagrado.

5 A língua quéchua é uma importante família de línguas indígenas da América do Sul falada por

diversos grupos étnicos da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Andes.

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plantas primordiais da fórmula alquímica que garante a magia visionária da poção

indígena Ayahuasca.

O chá latino-americano possui aspecto viscoso de coloração marrom-

escuro, de cheiro forte e sabor amargo. É composto pelo cipó Banisteropis Caapi da

família Malphigeáceas, conhecido como Mariri ou Jagube e a folha do arbusto

Psycotria Viridis da família das Rubiáceas, conhecida como Chacrona ou Rainha. O

cipó e a folha são fervidos em camadas alternadas com água até o ponto certo para

o apuro do elixir. O nome que representa a bebida juridicamente é Ayahuasca que

em quéchua significa ―vinho dos mortos‖ ou ―cipó das almas‖.

A bebida psicotrópica possui a substância N,N- dimetiltriptamina (DMT),

como principal princípio ativo responsável pelas experiências de expansão da

consciência. Os efeitos da DMT, por via oral aparecem de 30 á 45 minutos,

aproximadamente, e podem durar até quatro horas. Os efeitos visionários aparecem

de forma mais intensa cerca de 60 á 120 minutos após a ingestão do chá. A

concentração desse alcaloide no chá ayahuasca varia de 0,1% a 0,66% de peso

seco (MCKENNA et al., 1984; MCKENNA, 2004). O cipó Banisteropis caapi contém

alcaloides pertencentes ao grupo das beta-carbolinas: tetrahidrohamina (THH),

harmalina e harmina que são potentes inibidores temporários da isoenzima

monoaminoxidase (MAO) intestinal e hepática. As concentrações de beta-carbolinas

encontradas no B. caapi variam de 0,05% a 1,95% de peso seco (MCKENNA et al,

1984 e MCKENNA, 2004). Algumas beta-carbolinas, por serem inibidoras da MAO,

podem causar a denominada síndrome serotoninérgica, que é uma das patologias

mais graves associadas ao excesso de serotonina na fenda sináptica6 (GABLE,

2007). Porém, para obter uma dose letal de beta-carbolinas seria necessário uma

concentração vinte vezes maior do que é encontrado normalmente em doses

servidas em sessões de religiões tradicionais ayahuasqueiras. (MCKENNA et al,

1998).

As folhas da espécie Psycotria viridis produzem o alcaloide indólico N,N –

dimetiltriptamina (DMT), substância de estrutura molecular semelhante ao

neurotransmissor serotonina. Além dessa molécula, a folha da chacrona possui

6 Fenda sináptica: espaços ativos de contato entre uma terminação nervosa e

outros neurônios, células musculares ou células glandulares.

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traços da substância N-metiltriptamina e metil-tetrahidroharmina, todas atuantes no

Sistema Nervoso Central (SNC) (MCKENNA et al, 1998). A molécula DMT também

é produzida naturalmente pelo organismo humano e já foi encontrada em mamíferos

e muitas espécies de vegetais. O aminoácido L-triptofano é responsável pela fonte

de produção direta de serotonina e DMT no nosso organismo (SALIM, 1987). A DMT

e alguns alcaloides beta-carbolínicos são produzidos pela glândula pineal e estão

presentes no sangue, urina e fluido cérebro-espinhal. Há hipóteses científicas de

que as moléculas beta-carbolínicas e a DMT estejam relacionadas aos ciclos

regulatórios do sono e estados de ondas mentais mais profundos do cérebro

humano, podendo ser responsáveis pela formação de imagens nos sonhos

(FISHBACH, 1992).

A mistura sinérgica tem o poder de atuar na mente humana como potente

ampliador da consciência. Os estados visionários produzidos através das

propriedades farmacológicas e químicas da bebida só são possíveis através da

associação das duas plantas. Isso acontece devido aos alcaloides harmina, THH e

harmalina presentes no cipó B. caapi inibirem temporariamente os efeitos da

isoenzima monoaminoxidase (MAO-A e MAO-B) contidos no trato gastrointestinal,

evitando a oxidação da molécula DMT, permitindo sua assimilação e absorção pelo

organismo (OLLIVER et al, 1997). A ação associada dessas substâncias eleva os

níveis de noradrenalina, serotonina e dopamina na fenda sináptica. (CALLAWAY et

al,1999; MCKENNA et al, 1998). A DMT e as beta-carbolinas presentes no chá

permitem que as propriedades psicoativas se manifestem proporcionando um

aumento das concentrações de serotonina e inibindo a desaminação intestinal da

DMT, possibilitando a chegada desta ao cérebro. Os neurônios serotoninérgicos

cerebrais estão envolvidos em diversas funções como sono, humor, regulação da

temperatura, percepção da dor e regulação da pressão arterial, em quadros

patológicos podem estar envolvidos com depressão, ansiedade e enxaqueca.

(KATZUNG, 1998).

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3.2 ASPECTOS DE SAÚDE DO USO DO CHÁ AYAHUASCA

A fórmula do chá fornece potentes estados visionários, capazes de alterar

as funções cerebrais, atuando no complexo imaginário-mental do individuo. No

entanto, considerar o chá apenas como alucinógeno traz uma compreensão limitada

do assunto. O termo alucinógeno foi durante muito tempo usado para demonizar os

efeitos das substâncias enteógenas, associando-as à loucura:

Alucinar significa errar, enganar-se, privar da razão, do entendimento,

desvairar, aloucar. Tal palavra não permite comentar com imparcialidade os

beatíficos e transcendentes estados de comunhão com as divindades que,

segundo a crença de muitos povos, determinados indivíduos podem

alcançar mediante a ingestão de certos psicoativos. (MACRAE, 1992, p.13)

Ao abordar os efeitos das substâncias psicoativas, sobretudo da

Ayahuasca, é necessário levarmos em conta, além dos efeitos químicos a relação

entre o usuário e o meio social ao qual ele está inserido. A experiência que o

individuo terá com determinada substância psicoativa dependerá do seu nível de

estruturação social e familiar, o contexto da experiência e a vulnerabilidade física e

emocional, ou seja:

O set, estado psicológico do individuo no momento do uso da substância,

incluindo-se ai a estrutura de sua personalidade e expectativas a respeito

dos efeitos da substancia. O setting, meio físico, social e cultural onde

ocorre o uso da substancia. (MACRAE, 1992, p.17)

Muitos estudos em torno da Ayahuasca têm mostrado os impactos

estruturantes e edificadores na vida daqueles que fazem seu uso associado às

doutrinas ayahuasqueiras (LABATE, 2010). As variáveis incluídas no setting, como

as crenças, atitudes, expectativas e valores serão fundamentais para a estruturação

da experiência com o enteógeno. O controle das variáveis incluídas no set e setting

podem ser elementos determinantes tanto para o controle de crises que possam se

manifestar, como também para o resgate de valores humanos e sociais como a

amizade, a união, o amor e a justiça.

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Além dos efeitos visuais que a bebida proporciona, o chá possui atuação

no sistema nervoso límbico do SNC, o principal centro cerebral de nossas emoções,

possuindo entre outras funções, ação terapêutica e antidepressiva (CALLAWAY, et

al, 1999). Estudos recentes realizados pela USP apontam para um possível

tratamento contra o mal de Parkinson pelo uso do chá Ayahuasca. Antioxidantes

inibidores da MAO, presentes na bebida, podem atuar fornecendo proteção contra a

neurodegeneração, tendo importante papel no tratamento da doença (SCHWARZ et

al., 2003; SAMOYLENKO et al., 2010). Há um crescente interesse na aplicação

médica do chá Ayahuasca, devido as suas propriedades antioxidantes,

antimutagênicas e antigenotóxicas (MOURA et al, 2007).

Os efeitos psíquicos mais comuns, associados ao efeito da bebida são

alteração na percepção da passagem do tempo, alterações visuais, luzes cintilantes,

visões com seres divinos e míticos, demônios e anjos, sinestesia, insights, visões

sobre situações passadas, expressões emocionais variadas, entre outros

(CHECKLEY et al., 1980). Os principais efeitos físicos relacionados ao uso do chá

podem ser sumarizados em náuseas, vômitos, diarreia, leve aumento da pressão

arterial, midríase (dilatação da pupila), incoordenação motora, sudorese e tremores

(MCKENNA et al., 1998; CALLAWAY et al.,1999). Evidências farmacológicas

sugerem que o ato de vomitar e a diarreia intensa ocorrem como resultado da

inibição da MAO-A pelos alcaloides beta-carbolinas. Entretanto, a tolerância física

aos indesejáveis efeitos pode ser desenvolvida com o uso regular do chá.

(CALLAWAY, 2005). Os alcaloides do chá ainda possuem ação profilática,

combatendo infecções gastrointestinais causadas por parasitários helmínticos,

protozoários causadores da malária, leishmaniose, doença de Chagas,

toxoplasmose e tripanossomíases (CALLAWAY, 2005).

Quanto ao mecanismo de atuação farmacológica das substâncias

psicoativas, no geral, ainda são desconhecidas. Segundo Warren (2004) nenhuma

droga seja medicamentosa ou recreativa é completamente eficiente quanto à

especificidade da ação farmacológica. São necessários mais estudos que

aprofundem a compreensão daquilo que assimilamos como estado alterado de

consciência (CARLINI, 2003). O maior risco quanto ao uso de substâncias

psicoativas está no fato delas serem metabolizadas e excretadas lentamente pelo

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organismo humano (SALIM, 1987). Entretanto, as predisposições genéticas à

psicose ou doenças mentais que podem estar em estágio inicial ainda sem

apresentar sintomas prévios podem vir à tona, desencadeando surtos psicóticos

para quem fizer uso desse chá (LIPINSK, et al., 1974). Por tal fator, não é

recomendado a ingestão da bebida para aqueles que fazem uso de ansiolíticos e

antidepressivos, necessitando de acompanhamento e recomendação médica, bem

como a suspensão da medicação para fazer uso da Ayahuasca.

Embora sejam necessárias altas doses do chá para se criar um ambiente

de risco para quem consome a bebida, autores como Checkey (1980) e Gable

(2006) defendem que o aumento na dose poderia levar, em muitos casos, a efeitos

colaterais diversos como graves arritmias cardíacas levando cardiopatas ao risco de

enfarto. O acompanhamento médico, bem como a anamnese são indispensáveis

para determinar se a pessoa está apta para o consumo da bebida.

Segundo Mckenna (1984) e Warren (2010), os alcaloides harmina e

harmalina presentes no cipó Jagube em doses elevadas apresentam grande risco de

intoxicação, porém em baixas doses, são excelentes tranquilizantes, sedativos e

antioxidantes. Para Callaway (2005) há estudos que sugerem a não dependência

física nem psicológica da bebida Ayahuasca. O autor também sugere que as beta-

carbolinas presentes numa dose comum do chá nas cerimônias religiosas estariam

muito abaixo do limiar de uma dose com efeitos psicotrópicos e tóxicos.

Há evidências que o chá Ayahuasca forneça benefícios associados às

atividades terapêuticas (STUCKEY et al, 2005). Em longo prazo, a bebida demonstra

efeitos benéficos para usuários dedicados como perda de interesse pelo álcool,

tabaco, cocaína e outras substâncias (GABLE, 2007). A Ayahuasca tem sido usada

no tratamento da dependência ao álcool e a outras drogas (MCKENNA, 2004).

Segundo Callaway (1999) em estudos onde foram observados usuários que fazem

uso do chá por muito tempo verificou-se que não há evidencias de prejuízos nas

atividades mentais. Funções cognitivas, fluência verbal, habilidade matemática,

motivação e bem-estar emocional mantiveram-se preservados. Usuários com idade

aproximadamente de 80 anos, que fazem uso do chá desde a adolescência

permaneceram com acuidade mental e vigor físico preservados. Além disso, o uso

em longo prazo do chá Ayahuasca resulta na modulação da serotonina, os

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transportadores 5-HT, que são receptores para o neurotransmissor serotonina, são

significativamente elevados no usuário do chá. Existe especulação no meio científico

que a infusão poderia reverter déficits de serotonina e assim controlar doenças

neurológicas, promovendo mudanças positivas no comportamento (MCKENNA,

2004).

À medida que os estudos científicos em torno do chá Ayahuasca avançam

é perceptível observar no campo da medicina as suas diversas atuações benéficas

para o organismo humano. O campo da ciência moderna tem revelado que os

benefícios desse chá vão para além do campo da espiritualidade, tornando-o um

agente com potencial de tratamento de doenças físicas, mentais e emocionais.

Agora no próximo item iremos investigar os aspectos etnobotânicos do chá

Ayahuasca.

3.3 ASPECTOS ETNOBOTÂNICOS DO CHÁ AYAHUASCA

Desde civilizações muito antigas relata-se o uso de plantas psicoativas

em rituais com o objetivo de promover contato com o mundo espiritual para

orientação e cura de enfermidades. As plantas também são usadas pelos seres

humanos para técnicas de êxtase há pelo menos 50 mil anos (LABATE, 2003). Com

a conquista da América, vários costumes indígenas associados ao uso de plantas de

forma ritualística foram demonizados, sofrendo forte perseguição da Igreja Católica,

com tentativa de extermínio dessas práticas e costumes (CARNEIRO, 2002).

Dentre as ―plantas mestras‖, a Ayahuasca se destaca como uma bebida

psicoativa largamente usada por tribos indígenas da bacia amazônica. Luna (1986)

cita 72 tribos que fazem o uso ritual da bebida além de 42 denominações diferentes.

Evidências arqueológicas relatam o uso da bebida a pelo menos 2000 a.C

(MCKENNA, 1998).

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Figura 1 - Chá Ayahuasca

Fonte: Google Imagens, 2016

A espécie vegetal presente na fórmula Ayahuasca, a liana da família

Malphigueaceae Banisteropis Caapi também conhecida como Jagube, Mariri, Cabi,

Caupurí e Uni possui ocorrência em toda floresta amazônica (Brasil, Peru, Equador,

Colômbia e Bolívia). No Brasil a família Malphigueaceae é composta por 38 gêneros

com 300 espécies aproximadamente, encontradas nas bordas das matas por todo o

país (SOUZA & LORENZI, 2005). Os princípios ativos encontrados na casca do cipó

são beta-carbolínicos: harmina, harmalina e tetrahidroharmina. Callaway (2005)

realizou estudos em que se verificou as cascas secas das duas variedades de B.

caapi, constatando que a variedade Tucunacá, conhecido como ourinho e arara

usada pelo CEFLURIS, possui menos beta-carbolinas do que a variedade Caupuri

usada pela UDV.

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Figura 2 - Moléculas beta-carbolínicas presentes no cipó Jagube

Fonte: Google Imagens, 2016

Figura 3 - Folha Banisteropis caapi

Fonte: Google Imagens, 2016

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Figura 4 - Cipó Jagube

Fonte: Google Imagens, 2016

Figura 5 - Cipó e folha em camadas alternadas prontos para serem fervido

Fonte: Google Imagens, 2016

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A folha do arbusto da família Rubiaceae Psycotria Viridis, componente do

chá conhecida como Rainha, Chacrona e Kawá, possui ocorrência em toda a floresta

amazônica (Brasil, Peru, Equador, Colômbia e Bolívia). No Brasil, a família

Rubiaceae possui 130 gêneros e 1500 espécies distribuídas por todo o bioma do

país, sendo que o gênero Psycotria é comumente encontrado em florestas úmidas

(SOUZA & LORENZI, 2005).

Figura 6 - Folha Psycotria Viridis

Fonte: Google Imagens, 2016

O princípio ativo DMT responsável pelas ―mirações‖ que a bebida

propicia, encontra-se nas folhas da Rainha e a concentração varia de acordo com a

colheita. Picos mais altos da substância foram encontrados em folha colhidas no

anoitecer e madrugada. Já o mais baixo nível da substância foi encontrado em

folhas colhidas ao meio-dia (CALLAWAY, 1999). Segundo Strassman & Qualls

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(1994) a Ayahuasca, assim como DMT em ingestão intravenosa, causam o aumento

de alguns hormônios como corticotropina, prolactina, cortisol e hormônio do

crescimento, sendo que os níveis normais desses hormônios voltam ao normal cerca

de 6 horas após a ingestão do chá, portanto o uso do chá não acarretaria em riscos

de toxicidade para o organismo humano.

Figura 7 - Molécula N, N – Dimetiltriptamina (DMT)

Fonte: Google Imagens, 2016

Na tribo dos Kaxinawá na floresta amazônica, por exemplo, o cipó Jagube

pode ser substituído em menor escala, por outras espécies como B. longialata, B.

lútea, B. martiniana e B. muricata (ARANHA, et al 1991). Já a folha do arbusto

Psycotria Viridis pode ser substituída por: P. naikawa, P pishikawá, P psicotrefolia,

P. retifolia .No caso das plantas adicionadas ao preparo do chá, existem 97 espécies

de 39 famílias diferentes e que são divididas em três categorias, segundo Ott (1994):

Plantas com propriedades anti-reumáticas: Achornea castaneifolia, Brunfelsia

grandiflora, Mansoa allicea, etc; Estimulantes: Illex guayusa e Paulinia yoca contém

cafeína; Erythoxylum coca var. ipadú que contém cocaína, etc; Enteógenas:

Nicotiana; Brugmansia; Brunfelsia; Psycotria Viridis. Apesar da grande variedade de

plantas que podem ser adicionadas ao chá, as que prevalecem e são

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regulamentadas pelo Conselho Nacional de Drogas (CONAD) são a Psycotria Viridis

e a Banisteropis caapi.

3.4 ASPECTOS COSMOLÓGICOS DA BEBIDA AYAHUASCA

As culturas ameríndias já conhecem e fazer uso do chá Ayahuasca há

milênios. As tradicionais religiões ayahuasqueiras originárias do Acre são o resultado

da miscigenação entre as culturas indígenas da floresta amazônica e as religiões

católica, espírita e umbandista. Cerca de 70 tribos indígenas que já foram

catalogadas fazem uso do chá Ayahuasca na floresta amazônica (LABATE, 2006).

Falarei sobre a cosmologia da tribo Kaxinawá que apresenta um mito originário com

a bebida para exemplificar a infinidade de cosmologias das diversas tribos que

fazem uso da bebida sagrada. Devido à imensa quantidade e complexidade de

representações e cosmologias em torno da Ayahuasca tratarei apenas da tribo

Kaxinawá embora haja uma infinita rede de significados, mitos e analogias diferentes

em cada tribo indígena que compõe um universo peculiar, uma cosmogonia própria

em sua visão de mundo.

Os Kaxinawá e a Lenda da Jibóia Branca do nixi pae (Ayahuasca)

Também conhecidos como caxinauás, são uma etnia sul-americana, que

habitam as fronteiras do Peru, aos pés dos Andes até a fronteira do Brasil, no estado

do Acre na região do Alto Juruá e Purus. É a mais numerosa população indígena do

Acre com cerca de 7.535 indivíduos (Censo 2010). O mito fundador dos Kaxinawá

explica a origem do cipó Jagube usado no preparo da bebida Ayahuasca.

De acordo com Leopardo Sales Yawa Bane Huni Kuin, índio da tribo

Kaxinawá, em sua apresentação na mesa redonda ―Os usos da ayahuasca:

aspectos religiosos, antropológicos e científicos, no Evento Sexto Movimento pela

Vida, em Palmas, 2005, ele descrevera o mito de sua aldeia Kaxinawá:

Conta-se que o guerreiro foi procurar caça. Ele estava caçando e acabou

encontrando um encantado, a Mãe da Jibóia Branca, que morava no lago

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grande. (Explico: a jibóia morava nesse lago e se transformava em mulher,

ia para a terra e depois voltava para o lago). E a partir desse encontro,

nesse momento, o guerreiro se apaixonou. Pediu ela em casamento e ela

aceitou. O guerreiro e a Jibóia tiveram uma vida muito boa, conhecimento e

aprendizado no mundo espiritual da Jibóia Branca. Nesse lago grande, na

comunidade da Jibóia Branca, viviam muitos encantados. Todos eles

conheciam o segredo da planta do poder que é a ayahuasca, o cipó. O cipó

para nós é nixi pae; a folha se chama kawa. O guerreiro aprendeu com a

Jibóia Branca todos os ensinamentos do canto, do mantra – nós chamamos

―miração da Jibóia Encantada‖ –; aprendeu como se preparar para chamar

os encantados, todas as criações de Deus, que nós chamamos Kushipa.

São uns cantos na nossa língua, a nossa língua se chama Ratxa Kuin.

Cantamos o Huni Meka, que é o nosso canto, nosso mantra, da Jibóia.

Nosso pajé, nosso professor, nosso mestre, e o nosso Kushipa, que é o

nosso Deus, nos ensinou. Foi assim que o povo Huni Kuin recebeu estes

conhecimentos.

Recebemos o presente de curar nossas comunidades, parentes, de orientar

os ensinamentos, recebemos através da ayahuasca a sabedoria, todos os

conhecimentos que vêm da ayahuasca, a cultura ayahuasqueira do cipó.

Passou um tempo, e o guerreiro voltou no mesmo lugar que ele havia

encontrado com a Jibóia Branca na primeira vez no encantamento. Ele

voltou lá porque ele já tinha visto, naquela miração que ele gritou, que ela

tinha uma missão a cumprir. Então aí guerreiro encontrou o filho da Jibóia

Branca, o filho dele, que estava lá procurando o pai. O último filho dele, o

filho pequeno, a Jibóia pequena, veio e mordeu a ponta do dedo do

guerreiro, mas não tinha força suficiente para comer o pai, engolir. Então o a

Jibóia pequena chamou um irmão para ajudar. Veio um irmão e tentou

morder a ponta do dedo do pé e também não conseguiu engolir. Chamaram

então o outro irmão, e o outro irmão veio e também não conseguiu engolir.

Chamaram a mãe, que era a Jibóia grande, guerreira. A Jibóia veio,

conseguiu engolir os dois pés do guerreiro, foi engolindo o pé para cima na

cintura, na barriga, aí ele começou a agir, começou a gritar, pediu socorro

para a comunidade. Começou a gritar bem alto na floresta, ―rei rei rei!‖.

O pessoal da comunidade Huni Kuin onde o guerreiro morava, escutou e

veio ver o que estava acontecendo. O guerreiro estava na metade, a mulher

dele estava engolindo ele, mas ainda estava vivo, gritando. Aí, os guerreiros

da comunidade mataram a Jibóia, conseguiram bater na cabeça e

conseguiram matar a Jibóia. Tiraram o guerreiro vivo da boca da Jibóia. Só

que o guerreiro estava todo quebrado, mordido de cobra, com as juntas

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todas quebradas. O guerreiro pediu para os parentes dele levarem a Jibóia

também. Aí os discípulos do guerreiro levaram ele para a comunidade, e

enterraram ele e a Jibóia um do lado do outro, como o guerreiro pediu. Não

enterraram tudo junto porque ele explicou que ele ia se transformar em cipó

– ia nascer um cipó da sepultura aonde ele foi sepultado – e a Jibóia ia se

transformar em folha, kawa, a Rainha da Floresta.

Esperados três meses nasceram o cipó e a folha do jeito que ele falou. O

guerreiro também tinha falado que era para eles tirarem o cipó com muito

respeito. Antes de tirar o cipó e folha, pedir licença à natureza, pedir licença

ao cipó e à folha. O guerreiro também ensinou mais uma coisa sagrada, os

ensinamentos do mantra através da miração, o canto que foi dado. Aí como

era encantado, o cipó cresceu rapidinho, deu dessa grossura [mostra com

as mãos]. A comunidade mais antiga, dos índios mais velhos, foram lá,

pediram licença, fizeram uma oração, fizeram uma cerimônia em volta

desse cipó e da folha, tiraram e fizeram o cozimento do jeito que o guerreiro

falou, na panela de barro, colocaram folha, cipó e água. O fogo tinha que

ser feito com uma árvore especial que tem na floresta, que é yapa karu, a

madeira que a gente queima para fazer o preparamento do cipó.Toda a

comunidade foi convidada para participar dessa cerimônia de ayahuasca. A

partir desse momento, tomaram o cipó, e começaram a ter mirações na

primeira dose, na segunda dose, na terceira dose… e começaram a receber

todos os mantras que o guerreiro tinha falado. Através dessa miração eles

conseguiram captar todos os cantos Huni Meká, os mantras do cipó, e todas

as sabedorias da natureza, a ciência, o mistério, os conhecimentos da

guardiã da Jibóia, receberam essa missão. (LABATE, 2006)

Para as doutrinas ayahuasqueiras o chá é um ser divino que se encantou

na forma de bebida e ao ser ingerido poderia dar muito ensinamentos, para quem

tiver o merecimento, através da miração. É um professor que, para quem seguir

seus ensinos, encontrará seu próprio mestre interior. O ―ser divino da floresta‖

presente no chá teria o poder de promover uma ―limpeza‖ no corpo, mente e espírito

de forma gradual, purificando a alma, trazendo a tona emoções mal resolvidas e

doenças para serem expurgadas (LABATE, 2002).

Os ayahuasqueiros também compreendem que a bebida é o resultado da

união do princípio masculino encontrado no cipó Jagube e do princípio feminino

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encontrado na folha Chacrona. A união dos dois princípios traz equilíbrio e

harmonia, dando suporte ao progresso espiritual pela nova consciência adquirida

através do contato que a bebida proporciona ao próprio self do individuo (LABATE,

2002).

O fenômeno do ciclo da borracha proporcionou intensa migração de

nordestinos à região Norte do país, que sonhavam com uma vida melhor através da

extração do látex, chamado na época de ―o ouro branco da floresta amazônica‖. O

contato entre nordestinos, negros e os índios e caboclos amazonenses permitiu que

um forte sincretismo religioso florescesse na floresta amazônica. O sincretismo entre

o cristianismo popular, o folclore caboclo amazonense, as religiões de matriz

africana e as práticas xamânicas surgiram, repaginando o cristianismo popular

trazendo elementos xamânicos e esotéricos, produzindo as chamadas doutrinas

tradicionais ayahuasqueiras conhecidas como Barquinha, Santo Daime e União do

Vegetal. Agora vamos conhecer um pouco mais sobre as três doutrinas tradicionais

ayahuasqueiras e suas visões cosmogônicas.

A Doutrina do Santo Daime

O Santo Daime é uma doutrina religiosa originária do seio da floresta

amazônica, fundada por Raimundo Irineu Serra. Ao sair de sua terra natal,

Maranhão, em 1912 para se tornar seringueiro na região do Acre, ele entra em

contato com povos indígenas nas fronteiras da selva amazônica entre Brasil e Peru,

recebendo sua iniciação sacramental com a bebida Ayahuasca. A partir desse

momento, Irineu passa a ser instruído por seres espirituais que aparecem em suas

mirações que lhe pedem para fazer uma criteriosa dieta à base de macaxeira

insossa durante oito dias, mantendo-se isolado na floresta. No último dia de sua

austeridade ele tem uma visão mariana, de um ser superior que se apresenta como

Clara que lhe entrega a missão espiritual de fundar a doutrina do Santo Daime. Esta

mítica personagem, Mestre Irineu a chama de ―Deusa Universal‖ ou a Rainha da

Floresta, intitulada também por Nossa Senhora da Conceição.

Mestre Irineu batiza a bebida e passa a chamá-la de Santo Daime, que

vem da rogativa dai-me amor, dai-me a luz, dai-me a cura. Já ficando conhecido na

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região pelas histórias de cura e de graças alcançadas por aqueles que se

aproximavam dele e da misteriosa bebida, Mestre Irineu ganha de um político local

um lote de terra em um bairro rural no Rio Branco, dando início aos trabalhos

públicos em 26 de maio de 1930. É aberto oficialmente o Centro de Iluminação

Cristã Luz Universal (CICLU) de Alto Santo.

Figura 8 - Mestre Irineu, fundador do Santo Daime

Fonte: Google Imagens, 2016

Após essa experiência, Mestre Irineu une a bebida milenar ao contexto

cultural e simbólico cristão, utilizando sabedorias transcendentais da cultura africana,

indígena e branca. Ele sofre grande perseguição por parte da polícia local devido a

grande presença da população negra em seus cultos Daimistas. A elite da época

ficou temerária devido ao aglomerado de afrodescendentes em um culto religioso

desconhecido pela elite branca. De 1935 a 1940, Mestre Irineu desenvolveu a

Doutrina, conforme instruções recebidas do astral, canalizando hinos que seriam

cantados no ritual, durante suas experiências com o Daime.

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A comunidade Alto Santo abrigava cerca de quarenta famílias que viviam

em sistema de mutirão, vivendo do que plantavam, sendo autossustentáveis. Mestre

Irineu recebia a todos e prestava assistência a quem estivesse doente, necessitado

de conselhos ou de amparo espiritual. Mestre Irineu faleceu em 1971, deixando

como legado a comunidade Alto Santo e a Doutrina do Santo Daime, além de

dezenas de hinos canalizados por ele como forma de transmissão de mensagens

espirituais que atuavam concomitante a força da bebida Ayahuasca nos trabalhos da

doutrina do Santo Daime.

Após a morte do fundador do Santo Daime, a doutrina se divide em duas

vertentes denominadas ―Alto Santo‖. Um é comandado até hoje pela viúva do Mestre

Irineu, Senhora Peregrina Gomes Serra, que possui uma única igreja no Acre e não

admite a expansão da Doutrina pelo mundo. O outro grupo ficou sob o comando de

Francisco Fernandez Filho, que foi sucedido alguns anos depois por Luiz Mendes,

atualmente possuindo algumas filiais na região Norte do país (LABATE, 2002).

A criação do CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente Luz Universal

Raimundo Irineu Serra) está ligada ao Padrinho Sebastião Mota de Melo.

Seringueiro amazonense, ele mudou-se para o Rio Branco no Acre em 1965 onde

obteve contato com Ayahuasca através do próprio Mestre Irineu quando estava a

procura de curar uma grave enfermidade Em 1974, após o falecimento de Raimundo

Irineu Serra, Mota funda o CEFLURIS em uma região conhecida como Colônia

Cinco Mil, na cidade do Rio Branco, Acre (LABATE, 2004; GOULART, 2004).

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Figura 9 - Padrinho Sebastião, fundador do CEFLURIS

Fonte: Google Imagens, 2016

A partir da década de 80, Padrinho Sebastião organiza o CEFLURIS em

forma de comunidade, resolvendo se mudar em 1983 para o seringal do Rio do Ouro

no Amazonas, à beira do Igarapé do Mapiá também no Amazonas, localizado na

Floresta Nacional do Purus. Conhecida como Céu do Mapiá, sede da Doutrina,

possui como atual dirigente Padrinho Alfredo Gregório de Melo, filho de Padrinho

Sebastião e seu sucessor, desde o falecimento do pai em 1990 (LABATE, 2004;

GOULART, 2004).

Tanto no Alto Santo como no CEFLURIS é adorada a figura do Mestre

Irineu, sendo que na segunda vertente também louva-se o Padrinho Sebastião. Os

rituais desses grupos caracterizam-se pelo canto coletivo de hinos, considerados

canalizados do astral, possuem traços da influência indígena e da Filosofia do

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Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento7, do cristianismo popular com a

sagrada família (Jesus, Maria José), os santos católicos, além das figuras míticas da

cultura afrobrasileira e cabocla amazonense, bem como seres da natureza como o

Sol, a Lua, as estrelas.

A Doutrina do Santo Daime possui duas fardas (a branca que se veste em

festejos e trabalhos de hinário com mais de cem hinos e a farda azul usada nos

demais trabalhos de concentração e cura), seus participantes preservam a ordem e

a disciplina nos rituais (LABATE, 2004). Atualmente a Doutrina do Santo Daime está

espalhada pelo Brasil e pelo mundo tendo filiais não só em várias capitais e demais

cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Alto Paraíso, etc

e em outros países como Itália, Espanha, Alemanha, França, Inglaterra, República

Tcheca, Holanda, Suécia, Dinamarca, Irlanda, Portugal, Suíça, País de Gales,

Bélgica, Estados Unidos, Japão, Chile, Argentina, Uruguai e Bolívia.

A Barquinha

Esta doutrina ayahuasqueira foi fundada por Daniel Pereira de Matos,

maranhense, que em 1940 migrou para a cidade de Rio Branco no Acre a serviço da

Marinha como 2° sargento. Ao pedir baixa do exército, vai trabalhar como barbeiro,

levando uma vida boêmia no bairro do Papôco. Daniel cantava músicas sobre

paixões e a mulher amada, deleitando-se em noites festeiras.

7 O Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento foi a primeira Ordem Esotérica do país fundada

em 1909. possui os seguintes Propósitos: Promover o despertar das energias criativas latentes no

pensamento de cada associado, de acordo com as leis das vibrações invisíveis; Fazer com que essas

energias convirjam no sentido de assegurar o bem estar físico, moral e social dos seus membros,

mantendo-lhes a saúde do corpo e do espírito; Vibrar na medida de suas forças para que a harmonia,

o amor, a verdade e a justiça se efetivem cada vez mais entre os homens. Disponível em:

<http://cecpensamento.com.br/quem-somos/>.

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Figura 10 - Daniel Pereira de Matos, fundador da Barquinha

Fonte: Google Imagens, 2016

Em 1928 casa-se com Maria do Nascimento Viegas e com ela tem quatro

filhos. Em 1936 já não suportando o alcoolismo e a vida boêmia de Daniel, sua

mulher parte com os filhos para o Maranhão.

Com graves problemas no fígado devido ao excesso de álcool, recebe

uma visita de seu conterrâneo e amigo em sua barbearia. Era Raimundo Irineu Serra

que o convidara para fazer um tratamento espiritual através da bebida sagrada, o

Daime. Após iniciado o tratamento e já com alguma melhoria, em pouco tempo

Daniel retorna para sua vida boêmia. Outra vez doente, volta a fazer o tratamento

com Mestre Irineu na doutrina do Alto Santo, onde frequentou por um ano (SENA

ARAÚJO, 1999; COSTA, 2008).

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Outra vez doente, foi chamado por Irineu para um novo tratamento no Alto

Santo. Depois de tratado e iniciado nos trabalhos do Mestre, Daniel passou

a seguir a Doutrina fundada pelo amigo. Lá ajudou a musicar os primeiros

hinos. Após acompanhar o amigo que havia lhe socorrido anteriormente

ajudando-o a repor sua estabilidade física e espiritual. (SENA ARAUJO,p.35

1999)

Em um dado momento, Daniel resolve beber o daime sozinho e tem uma

visão onde dois anjos desciam do céu, com um livro azul contendo a missão

espiritual, na qual ele deveria fundar uma doutrina cristã com base na caridade. Esta

revelação já havia sido feita anteriormente quando, embriagado, adormecera as

margens de um igarapé onde teve um sonho com os anjos e o livro azul. Daniel

resolve seguir seu destino para fundar uma linha de trabalho própria. Com o apoio

do Mestre Irineu que lhe dera bastante Daime para iniciar seus próprios trabalhos,

segue para a zona rural do Rio Branco, dando início aos trabalhos da Barquinha

(ARAÚJO NETO apud SENA ARAÚJO, 1995).

No seringal de Santa Cecília, no bairro de Vila Ivonete, Daniel instala-se

numa casinha de madeira, coberta por palha, iniciando os seus trabalhos de

atendimento que ele designou como ―Obras de Caridade‖. Seu trabalho durou doze

anos, falecendo em 1958. Atualmente existem filiais da Barquinha no Acre, no

estado do Rio de Janeiro, Brasília e uma filial em Fortaleza (CE). Esta é a vertente

considerada mais eclética, dos três grupos, por ter maior influência da umbanda, da

cultura nordestina e amazônica. Nos rituais há incorporação de seres espirituais do

astral, da terra e do mar, cantando-se salmos e pontos, rezando orações cristãs. A

Barquinha é a missão deixada por Daniel Pereira de Matos e seus adeptos são

considerados ―marinheiros do mar sagrado‖ (SENA ARAÚJO, 1999; LABATE, 2004).

A União do Vegetal (UDV)

A União do Vegetal (UDV), foi fundada por José Gabriel da Costa, baiano,

que migrou para o Norte do país para trabalhar na extração da seringa. Durante a

Segunda Guerra Mundial (1943), o governo brasileiro, visando aumentar a extração

do látex das seringueiras nativas na Floresta Amazônica, recrutou um exército de

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―soldados da borracha‖ e deu opção aos jovens nordestinos de irem para a

Amazônia, trabalhar nos seringais amazonenses. Em 1944, sem ter oportunidade de

despedir-se, José Gabriel escreve uma carta para sua família e embarca em um

navio para Belém (PA), com destino a Porto Velho, então Capital do Território

Federal do Guaporé, hoje Estado de Rondônia.

Em 1959 teve seu primeiro contato com a Ayahuasca através de alguns

de seus amigos seringueiros aonde ela bebe pela primeira a bebida das mãos de

Chico Lourenço. Em 1961, Mestre Gabriel cria o Centro Espírita Beneficiente União

do Vegetal, falecendo em 1971A instituição conta hoje, com cerca de 200 unidades,

em todos os estados do Brasil, Peru, em alguns países da Europa, América do Norte

e Oceania. A sede da UDV localiza-se em Brasília (LABATE, 2004; GOULART,

2004).

Figura 11 - Mestre Gabriel, fundador da UDV

Fonte: Google Imagens, 2016

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A UDV nasce nos seringais da Amazônia, na fronteira entre Brasil e

Bolívia, segundo a doutrina Mestre Gabriel reconheceu sua missão desde a primeira

vez em que bebeu o chá. Ainda em 1959 ele passa a distribuir Ayahuasca

batizando-a de Vegetal. Em 64, ele viaja com a família para Porto Velho para

consolidar as atividades da sociedade criada. Posteriormente foi feito um registro no

Jornal Alto Madeira da Associação Beneficiente União do Vegetal, intitulando um

artigo ―Convicções do Mestre‖, uma defesa pública dos principios da UDV,

Atualmente a UDV conta com filiais em todas as capitais brasileiras, além de possuir

um departamento médico-científico (DEMEC) que realiza pesquisas sobre a bebida

em parceria com instituições brasileiras e do exterior (LABATE, 2004; GOULART,

2004).

A partir da década de 1980, a União do Vegetal vem buscando o diálogo

com autoridades, de forma a normatizar o uso do chá Ayahuasca pelos seus

associados no contexto religioso. Através de pesquisas médico-científicas,

realizadas por universidades do Brasil e do exterior e o estudo de uma comissão

multidisciplinar de trabalho do Governo Federal (GT da Ayahuasca de 2010)

resultaram na Resolução do CONAD, que assegurou o uso do chá pelas religiões

ayahuasqueiras, estabelecendo as normas para sua utilização.

Nos rituais cantam-se as ―Chamadas‖, cânticos deixados por Mestre

Gabriel, para chamar as forças da natureza. O conhecimento é passado oralmente e

a palavra tem um significado especial para o grupo (LABATE, 2004). Durante os

efeitos do chá, chamado pelos discipulos da UDV de ―borracheira‖, é feito o e estudo

dos ensinamentos espirituais e da doutrina de Mestre Gabriel.

A doutrina da União do Vegetal é fundamentada na existência do espírito,

que evolui ao longo de sucessivas reencarnações. Mestre Gabriel, com

seus ensinos, fez seu reconhecimento a Jesus como o Salvador da

humanidade, ―o verdadeiro Homem, o filho de Deus‖. A UDV transmite de

forma oral e traz, em essência, os mesmos ensinos de Jesus. Orientando

para a evolução espiritual, a União do Vegetal ensina a respeito da

reencarnação. O espírito tem como missão evoluir para chegar até Deus e

as religiões existem para mostrar o caminho da retidão. ―O caminho de

Deus é limpo‖, disse o Mestre. Para orientar a caminhada espiritual, o

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conjunto doutrinário da UDV é formado por ensinos, chamadas (cânticos),

histórias e explicações, ligadas a Jesus e a outros reconhecidos pelo Mestre

Gabriel como destacamentos de Deus, que vieram ao mundo em

cumprimento de missão, como por exemplo os personagens bíblicos Adão,

Jó, Noé, Santa Ana, João Batista, Cosme e Damião. Também menciona as

entidades Iansã e Janaína, entre outras. Durante as sessões da UDV, a

partir das perguntas dos discípulos, os mestres trazem os ensinos, as

palavras e os exemplos de Jesus na forma simples como foram explicados

por Mestre Gabriel. São dadas orientações que conduzem o associado ao

aprimoramento das suas virtudes morais e intelectuais. (UDV, 2017)

A UDV em sua doutrina incentiva a busca da evolução espiritual através

de sua doutrina de orientação e aconselhamento para a prática do bem

,aprimorando os principios éticos e morais usando a sagrada bebida como veículo

para os ensinamentos doutrinários. Os caianinhos como são chamados os discípulos

do Mestre Gabriel compreendem que o caminho da doutrina é o da retidão e boa

conduta. Era comum ao mestre usar situações do cotidiano, sobretudo da irmandade

para trazer ensinos. Muitos dos ensinamentos estimula os preceitos de união e

fraternidade e valorização da família valorizando a presença dos adolescentes no

sentido de contribuir na formação de valores e do carater dos jovens.

As doutrinas neo-ayahuasqueiras

O Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal são as três principais

doutrinas ayahuasqueiras surgidas na região Norte do país. Porém, nas últimas

décadas ouve um crescimento das denominadas doutrinas neo-ayahuasqueiras, que

são religiões que surgem num contexto urbano, com acentuado sincretismo

religiosos, trazendo influências das doutrinas ayahuasqueiras tradicionais, do

Oriente (budismo, cultura védica), bem como recursos terapêuticos são incorporados

em rituais com a Ayahuasca (Pathwork, renascimento, constelações, meditação).

Na minha monografia, pude realizar uma etnografia no Núcleo São José, um centro

neo-ayahuasqueiro filial do Caminho do Coração, localizado no Eusébio, região

metropolitana de Fortaleza, Ceará. Falaremos um pouco sobre a cosmologia dessa

instituição pelo fato dela possuir muitos aspectos das religiões neo-ayahuasqueiras

e representa bem as novas doutrinas que nascem em contexto urbano.

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O Caminho do Coração

Janderson Fernandes de Oliveira, atualmente conhecido como Sri Prem

Baba, nasceu no bairro da Aclimação em São Paulo, no ano de 1965. Formou-se em

psicologia e teatro, fez cursos sobre Yoga, terapias holísticas, frequentando várias

religiões como budismo, umbanda, espiritismo, candomblé além de escolas

esotéricas como a Gnose e a Rosa Cruz.

Figura 12 - Sri Prem Baba, fundador do Caminho do Coração

Fonte: Google Imagens, 2016

Janderson conhece o chá na década de 90 e passa a frequentar uma

igreja do Santo Daime chamada Flor das Águas, na época, única sede daimista na

cidade de São Paulo. Ele chega a se fardar no Santo Daime e em um trabalho de

finados ele tem uma visão com Mestre Irineu revelando que ele deveria abrir seu

próprio trabalho de cura. Alguns anos se passaram, até que angustiado por sua

busca espiritual vai à Índia aonde vem a conhecer o seu mestre espiritual que

aparecia para ele em seus sonhos, Sri Hans Raj Maharaji Ji.

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Maharaji o inicia na sabedoria védica através da transmissão espiritual de

Guru para discípulo, chamado pelos iogues de parampara. Segundo Janderson, em

2002, durante um festival hindu chamado Mahashivaratri ele entra em estado de

samadhi, alcançando a Iluminação. A partir desse momento, Prem Baba começa a

desenvolver a centelha do Caminho do Coração que possui como influências

principais a Doutrina do Santo Daime, a psicologia (o método de autoconhecimento

chamado Pathwork) e a cultura védica. No Caminho do Coração, segundo seus

princípios, o caminho para a Iluminação pode ser trilhado através do Daime

associado ao método de autoconhecimento desenvolvido por Prem Baba

(CARDOSO, 2015).

A cosmologia do Caminho do Coração está presente nos hinários

canalizados por Prem Baba e que são tocados nos rituais do Núcleo São José.

Onde estão presentes seres da Umbanda como Oxum, Exú, Oxalá, seres da falange

oriental como Ganesha e Shiva, além de referências a doutrina do Santo Daime

como Mestre Irineu, Rainha da Floresta, Beija-Flor (considerado potência de cura no

Santo Daime) e ao catolicismo com a presença de São Miguel e referências à

Virgem Mãe e à sagrada família. O Caminho do Coração compreende a Escola da

Floresta como a união da umbanda, do folclore caboclo amazonense e do Santo

Daime e a Escola do Oriente como a união dos conhecimentos orientais tais como a

cultura védica e o budismo. Essas escolas possuem conhecimento milenar, e

mesmo que sejam distantes em tempo e espaço, mas possuem ensinamentos que

se complementam e que são usados como um guia na busca do autoconhecimento

e autorrealização.

Além disso, o Caminho do Coração inova em seus rituais. Além de usar

os hinários como parte do ritual, são utilizados áudios com palestras do Prem Baba,

em que ele também utiliza o método Pathwork como ferramenta para transmissão do

seu conhecimento psicológico. Ele compreende que através da expansão de

consciência que o Daime propicia aliado aos ensinos do Pathwork é possível a

pessoa investigar padrões de comportamento que sabotam a felicidade e a

realização pessoal, a cura de traumas psicológicos da infância e a transformação de

hábitos e crenças negativos em positivos, trazendo uma nova forma de viver.

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Segundo Labate (2004), Janderson construiu a cosmologia do Caminho

do Coração nos moldes New Age, que não é uma religião, mas um tipo de

religiosidade difusa, um movimento que faz parte de uma rede urbana entre centros

holísticos. Prem Baba, atualmente expandiu seu movimento criando Awaken Love

(Despertar do Amor) em que incentiva a prática do silêncio e de valores humanos

para a criação de uma nova realidade social (CARDOSO, 2015).

A diversificação do uso da Ayahuasca na atualidade

Neo-ayahuasqueiros formam assim uma interseção entre as redes que

compõem o universo da Nova Era e as suas matrizes, de um lado, e as

religiões ayahuasqueiras ―tradicionais‖, de outro. Tal posição gera uma

configuração sui generis, rica em simbolismos e práticas (LABATE, 2004,

p.88).

Beatriz Labate (2004) também compreende que essas redes extrapolam a

realidade local e fala em uma rede ayahuasqueira global, que é uma característica

da sociedade moderna, onde há uma desterritorialização da cultura. Ao passo que o

consumo da Ayahuasca, no contexto urbano, contemporâneo e neo-ayahuasqueiro

apresenta, no geral, uma tendência imediatista e de consumo da natureza,

redefinindo concepções contemporâneas de religiosidade.

A doutrina, a fé, o sentido de religião é que estabelece limites e regras, dá

noção de certo e errado e confere sentido. A ruptura dessas regras e a

criação de novos formatos ritualísticos podem ser feitas. Têm sido feitas, mas

dentro da lógica interna que mantém o encanto, o mistério, a fé, para não

destruir justamente aquele elemento imaterial que transforma, agrega valor

simbólico e significado onde muito veem apenas mistura química

(FACUNDES, 2011, p. 262).

Nesse sentido Labate (2004) aponta para uma diversificação do uso do

chá Ayahuasca no contexto urbano na atualidade. Através de pesquisas juntos a

determinados grupos que fazem uso do chá na atualidade, ela cita como exemplos

dessa reinvenção da Ayahuasca, grupos que fazem uso do chá em jam sessions8

(no caso o grupo Céu dos Alpes) e em oficinas de teatro (grupo Porta do Sol em São

8 São tocadas músicas em um repertório improvisado.

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Paulo). Além de grupos terapêuticos que tratam moradores de rua e dependentes

químicos (Associação Beneficiente Luz de Salomão [ABLUSA]).

A diversificação representa uma reinvenção continua nas formas de

utilização do chá. Porém essa diversificação na experiência com a Ayahuasca, pode

acarretar na desagregação do chá de um contexto simbólico-ritualístico. Há aqueles

que buscam de forma imediatista a experiência, através da extração química dos

alcaloides da bebida (DMT, harmina e harmalina) produzindo um psicoativo idêntico

a ayahuasca quimicamente.

Mas será só um psicoativo, incapaz de gerar uma doutrina, um corpo de

ensinamentos e princípios sólidos, que proporcionem uma visão de mundo

consistente e capaz de agregar, de integrar e estimular o homem a viver com

seus semelhantes de modo melhor (FACUNDES, 2011, p. 262).

É necessário o cuidado ao tratar das matrizes culturais associadas ao chá

que nos tempos atuais foram e estão sendo distorcidas de seu conteúdo imaterial,

transformada em simples fármaco. A necessidade de proteção, de estudos e a

preservação do sagrado são os desafios desse século. O chá já possui uma

expansão avançada pelo mundo, mas é necessário preservar a lentidão de

aprendizados que envolve o homem e o meio social, aspectos históricos e morais

que são necessários para o desenvolvimento das próprias doutrinas. A formação de

valores é necessária para que se evite a criação de fast religion, Ayahuasca de

massa e ofertas de DMT, que tornem a experiência pobre de significado, vazia de

sentido, desconectando o individuo de sua realidade (FACUNDES, 2011).

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3.5 ASPECTOS LEGAIS DA BEBIDA AYAHUASCA

Desde tempos pré-colombianos o chá Ayahuasca está presente em rituais

de sociedades autóctones. Além dos grupos indígenas, as três principais tradições

ayahuasqueiras brasileiras Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal fazem uso

da bebida desde os anos 1930, 1945 e 1960 respectivamente. Com o advento de

religiões neo-ayahuasqueiras, em centros urbanos, que possui elementos tanto das

doutrinas tradicionais, como de outras religiões e a participação de culturas

ameríndias que fazem o uso ritualístico do chá, têm-se levantado cada vez mais

questões sobre dificuldades concernentes às políticas públicas sobre drogas e

religião no Brasil. Embora questões relativas ao uso e legislação do chá Ayahuasca

não estejam plenamente claras pela jurisdição brasileira veremos a seguir quais os

impasses e os avanços referentes ao tratamento jurídico brasileiro dado ao uso do

chá.

O principio ativo DMT do chá Ayahuasca é controlado no Brasil pela

Portaria SVS/MS 344/1998 do Conselho Nacional de Drogas9 (CONAD) e,

internacionalmente, pela Convenção das Nações Unidas desde 1971. A legislação

brasileira não especifica quais substâncias são proibidas, deixando a cargo do setor

executivo do Governo Federal. As substâncias são classificadas pela Agência

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desde 1999, quando ainda era

denominada como Divisão Nacional de Medicamentos (DIMED).

Em 1985 o DIMED classificou o cipó Banisteropis caapi como planta

proibida, através da Portaria n°2 de 1985. O Conselho Nacional de Entorpecentes,

órgão antecessor ao CONAD, propôs um Grupo de Trabalho (GT) da Ayahuasca

para aprofundar o tema e em 1986 ela foi temporariamente retirada da lista de

plantas proibidas. Após reuniões, o GT da Ayahuasca recomendou a suspensão

definitiva da proibição da B.caapi, autorizando seu uso religioso através do Relatório

Final do GT da Ayahuasca de 1987. Porém, o GT nunca cogitou a exclusão da

molécula DMT que permanece proibida no Brasil (LABATE, 2012). Os debates em

9 O CONAD é o órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD)

e suas decisões ―deverão ser cumpridas pelos órgãos e entidades da Administração Pública

integrantes do Sistema‖ (arts. 3o, I, 4o, 4o, II e 7o, do Decreto no 3.696, de 21/12/2000).

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torno da Ayahuasca prosseguiram e com a Resolução n°26 de 2002 do CONAD

ficou proibida tanto a exportação da bebida, como o consumo para indivíduos

menores de 18 anos. Na Resolução n°26, de 31 de dezembro de 2002 do Conselho

Nacional Antidrogas (CONAD), ficou definido a deliberação de normas de controle

social referente ao chá Ayahuasca com as seguintes atribuições:

- considerando que o uso ritualístico do ―chá ayahuasca‖ constitui-se em

manifestação cultural e religiosa regional de há muito reconhecida pela

sociedade brasileira;

- considerando que os responsáveis pelas diversas confissões religiosas

usuárias do ―chá ayahuasca‖ estão cientes da proibição de sua

comercialização, bem como das ervas que o compõem, em razão de seu

alcance estritamente religioso;

- considerando que as confissões religiosas conhecem sobre a proibição da

exportação do ―chá ayahuasca‖ ou do cipó Jagube/Mariri – Banisteriopsis

caapi, e da folha Rainha/Chacrona – Psychotria viridis, haja vista o seu uso

exclusivamente ritualístico, peculiar a uma manifestação cultural regional

brasileira, e mais as restrições decorrentes da legislação brasileira e de

Acordos Internacionais assinados pelo Brasil;

- considerando que os responsáveis pelos rituais religiosos são, também,

responsáveis pela não administração do ―chá ayahuasca‖ aos menores de

dezoito anos e às pessoas portadoras de deficiência mental;

- considerando a importância de que os usuários praticantes restrinjam o

uso do ―chá ayahuasca‖ exclusivamente aos rituais religiosos, realizados no

interior dos templos das seitas;

- considerando a necessidade de que as entidades religiosas exerçam,

como atividade de controle próprio e de sua particular responsabilidade,

sujeita às restrições da legislação vigente, a atenção sobre o cultivo, a

colheita e o transporte do cipó Jagube ou Mariri – Banisteriopsis caapi e da

folha Rainha ou Chacrona – Psychotria viridis; (CONAD, 2002, p.1)

Em 2004, foi criado o Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT da

Ayahuasca) que tinha por finalidade estabelecer parâmetros deontológicos para o

uso da Ayahuasca em contexto religioso. Tais parâmetros estabeleciam regras

relativas ao transporte da Ayahuasca e os grupos deveriam plantar as espécies

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garantindo a sustentabilidade ecológica. Além disso, os grupos ayahuasqueiros

deveriam constituir-se como entidades legais registradas junto ao CONAD.

Em 2006 o GMT entregou o Relatório Final e que, posteriormente, foi

incluído na Resolução n°1, de 25 de janeiro de 2010. O Grupo Multidisciplinar de

Trabalho, instituído pela Resolução nº. 5 do CONAD, em 2004, para levantamento e

acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca, bem como para a pesquisa de

sua utilização terapêutica, em caráter experimental, foi oficialmente instalado pelo

Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República

e Presidente do Conselho Nacional Antidrogas, Jorge Armando Félix, em 2006, e

teve como objetivo final a elaboração do documento que traduzisse a deontologia do

uso da Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado.

Nos termos da referida Resolução, o GMT foi composto por

seis estudiosos, indicados pelo CONAD, nas áreas que atenderam, dentre outros, os

seguintes aspectos: antropológico (representado pelo Dr. Edward John Baptista das

Neves MacRae), farmacológico/bioquímico (Dr. Isac Germano Karniol), social [Drª

Roberta Salazar Uchoa], psiquiátrico [Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho] e jurídico

[Drª Ester Kosovski] e seis membros, convidados pelo CONAD, representantes dos

grupos religiosos que fazem uso da Ayahuasca.

Com isso, foi instaurado um conjunto de regras, normas, princípios éticos

a serem seguidos e a proibição da comercialização, do turismo, da publicidade e do

uso do chá associado a outros tipos de substâncias ilícitas. Com a Resolução de

2010, a preparação, o armazenamento e o consumo do chá ficaram permitidos para

o uso restrito em rituais religiosos. A Resolução também incentivou as pesquisas

cientificas sobre os potenciais terapêuticos do uso da Ayahuasca.

Assim como os EUA, o Brasil é signatário da Convenção das Nações

Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas (CPS) de 1971, que relaciona a molécula

DMT como substância de controle nível I:

De acordo com a CPS (Art. 32[4]), os países signatários podem isentar do

controle ―plantas que crescem espontaneamente e contém substâncias

psicotrópicas, incluídas no Nível I e que são tradicionalmente usadas por

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grupos pequenos e claramente demarcadas, em ritos mágicos ou religiosos.‖

Alguns poucos países recorreram a essa provisão – Bangladesh (não

especificado), Canada (peiote), México (não especificado), Peru (San Pedro e

ayahuasca), e os EUA (peiote) – mas o Brasil não estava entre eles (CPS,

Declarations & Reservations) (LABATE, p.7, 2012).

Quando a Convenção das Nações Unidas entrou em vigor em 1976, os

grupos religiosos ayahuasqueiros no Brasil encontravam-se isolados na floresta

amazônica e não havia preocupação nacional relativa a esses grupos. O interesse

por tais religiões começa a se expandir pelo Brasil a partir da década de 1980 com a

exposição na mídia brasileira das doutrinas ayahuasqueiras. Com o advento da

Constituição Federal de 1988 destacou-se os princípios de liberdade religiosa e de

proteção do Estado às manifestações culturais, populares indígenas e afro-

brasileiras, respaldando as manifestações religiosas tradicionais amazonenses.

[...] quando uma prática pouco conhecida e geograficamente circunscrita à

região norte do Brasil insere-se em novas dinâmicas, adquirindo um novo

status e visibilidade crescente, sobretudo a partir do posicionamento de novos

agentes no debate – foi fundamental para a consolidação da concepção do

uso da ayahuasca enquanto manifestação religiosa ligada a uma tradição

cultural amazônica de longa duração. (ANTUNES, p.9, 2012)

Segundo Labate (2012), a CPS de 1971 traz algumas dúvidas a respeito

da regulamentação da bebida Ayahuasca. A CPS considera a DMT como substância

controlada, porém não proíbe explicitamente a Psycotria Viridis, planta que possui a

molécula e faz parte da fórmula Ayahuasca. A dúvida está na provisão que afirma

que ―uma preparação está sujeita as mesmas medidas de controle que as

substancias psicotrópicas nela contidas‖ CPS (1971, Art. 1[f]). O caso levanta

dúvidas a respeito se a Ayahuasca está coberta pela CPS, já que é uma bebida

composta por duas plantas. A dúvida permaneceu até 1988 quando foi adotada a

UN Convention Against Illicit Traffic in Narcotics Drugs and Psychotropic

Substances:

Segundo o Comentário a essa Convenção, uma ―preparação‖ de substâncias

psicotrópicas deveria ser compreendida como ―a mistura de uma dada

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quantidade de uma droga com uma ou mais substância diferentes‖. (LABATE,

p.8, 2012)

Embora não haja um consenso referente à CPS internacional sobre a

regulamentação da Ayahuasca, a interpretação individual de cada nação é

importante para que cada signatário possa implementar políticas nacionais mais

restritivas ao controle do consumo da bebida. Cada país pode interpretar a CPS de

modo diferente e formular leis mais estritas, mas questões relativas à importação e

exportação da bebida, por exemplo, continuam a tingir o debate sobre a

regulamentação e expansão do uso da Ayahuasca. Esse aspecto é frágil na

Resolução de 2010 que não fornecem diretrizes a respeito (LABATE, 2012).

Embora a questão da segurança não tenha predominado durante a

preparação da Resolução do CONAD de 2010, vários aspectos indicam que

considerações de saúde e segurança são elementos importantes no debate

no Brasil: a proibição do uso de ayahuasca por menores de 18 anos, que

vigorava numa resolução anterior atualmente extinta, o debate ainda em

aberto sobre o uso de ayahuasca por gestantes (Labate, 2011b), e o estimulo

ao aprofundamento da pesquisa cientifica recomendado pela Resolução atual

são alguns desses aspectos. Embora tenham surgido novas pesquisas

cientificas sobre as consequências da ayahuasca sobre a saúde (Labate &

Cavnar, 2010; Labate et al., 2009), preocupações com a segurança

permanecem indubitavelmente um ponto de controvérsia e preocupação na

esfera internacional. (LABATE, p.23, 2012)

No Brasil, o consumo do chá Ayahuasca é permitido em contexto

religioso. Embora não haja definição do que é religião na Constituição Federal ou em

qualquer outro estatuto legal, a liberdade de crença e de culto está protegida de

modo geral pela Constituição de 1988, Arts 1°, III, 5°, VI. Apesar da ausência de

definição constitucional sobre o que é religião, o governo federal reconheceu o uso

sacramental da Ayahuasca com a Resolução de n°5 do CONAD em 2006 e a

Resolução n°1 de 2010 apoiou-se nesse processo.

Apesar da colaboração do governo brasileiro, questões sobre

autenticidade religiosa e legitimidade tradicional permanecem como fonte de

controvérsia entre os grupos ayahuasqueiros. Devido a cada instituição e doutrina

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atribuir uma visão de mundo diferente com relação ao chá e sua relação

cosmogônica. Além do que, certas doutrinas levantam em questão da legitimidade

de outros grupos ayahuasqueiros. Como por exemplo, o caso da Doutrina do Santo

Daime em que há uma cisão entre a instituição liderada por Madrinha Peregrina e a

deixada por Padrinho Sebastião, em que a primeira considera a segunda ilegitima.

Nesse sentido, a indefinição sobre o conceito de religião na Constituição Federal

pode excluir modalidades como o xamanismo ayahuasqueiro por não representar o

modelo ocidental de religiosidade (LABATE, 2012).

Em abril de 2008, representantes das três principais doutrinas

ayahuasqueiras tradicionais (Barquinha, Santo Daime e União do Vegetal), com

apoio de autoridades das Fundações Culturais do Acre e do município do Rio

Branco encaminharam o pedido de patrimonialização da bebida Ayahuasca em

rituais religiosos ao ministro da cultura da época, Gilberto Gil, e ao Instituto do

Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), para que a bebida se tornasse um

bem cultural imaterial brasileiro. No mesmo ano, no Peru, o uso tradicional da

Ayahuasca tornou-se patrimônio cultural da nação por comunidades nativas. Em

2006, o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (Santo Daime – CICLU) de Alto

Santo foi tombado por decretos simultâneos do governador e do prefeito como

patrimônio histórico cultural do Acre e de Rio Branco.

O poder político local reconheceu a relevância histórica e cultural dessa

instituição para a formação da Doutrina do Santo Daime e da sociedade acreana.

Um ano antes, em 2005, foi criada a primeira Área de Proteção Ambiental (APA) do

Acre na Vila Irineu Serra, chamada de Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu

Serra (APARIS). Essas realizações comprovam que tanto o Governo do Estado do

Acre, como a Prefeitura do Rio Branco tem realizado esforços para desenvolver

ações de caráter prioritariamente cultural e ambiental para reconhecimento e

valorização das comunidades ayahuasqueiras. A solicitação do pedido de

patrimonialização da Ayahuasca, que é um reflexo dessas políticas de valorização

da cultura ayahuasqueira iniciada há alguns anos pelo estado do Acre, causou

impacto junto à imprensa e a opinião pública brasileira. O processo já nasce sob o

estigma da polêmica e sofre fortes reações e resistências durante o andamento do

processo, além dos entraves burocráticos.

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Em reunião realizada em 26/11/2008, a Câmara do Patrimônio Imaterial

recusou o registro da Ayahuasca como patrimônio cultural do Brasil sob a

alegação de que o pedido não representaria elementos suficientes para a

identificação do objeto do Registro em relação às categorias e critérios

estabelecidos pelo Decreto 3551/2000. Segundo a ata da reunião, ―comidas,

bebidas, assim como crenças, filosofias e teologias, não constituem em si

bens culturais passíveis de Registro, mas sim, referências para a produção e

reprodução de processos, representações e práticas culturais‖. (SANTOS,

p.3, 2010)

Como parte desse movimento de discussão sobre o uso contemporâneo

do chá Ayahuasca ocorreu a II World Ayahuasca Conference 2016 foi realizada na

cidade de Rio Branco (Acre), entre os dias 17 e 22 de outubro de 2016, tendo como

principal promotor a ICEERS Foundation. Esta Conferência reuniu pesquisadores,

estudantes, religiosos, representantes governamentais e lideranças indígenas,

interessados nos usos contemporâneos da Ayahuasca. Esta substância psicoativa

tem sido utilizada em rituais religiosos no Brasil (aqui legalmente aceita) e em outros

países, suscitando um variado número de interesses, sejam científicos, religiosos,

tradicionais e jurídicos. O evento reuniu temas diversos, associados diretamente à

Ayahuasca, tais como: tradições e saberes indígenas, psicologia e saúde pública,

uso terapêutico, religiões, shamanismo, patrimônio, sustentabilidade, aspectos

jurídicos, dentre outros.

Representantes dos povos indígenas da região amazônica estiveram

presentes, tais como os Yawanawá, Jaminawa, Kaxinawa, Kuntanawa, Ashaninka,

dentre outros. Eles confirmaram o uso tradicional das plantas sagradas, a luta pela

terra, a importância da espiritualidade, a resistência dos povos indígenas, a

reverência à floresta, dentre outros temas. Sua presença foi relevante, pois, no

processo de patrimonialização da Ayahuasca, iniciado em 2008, eles não assinaram

a solicitação formal, tendo sido feito apenas pelos representantes das três linhagens

religiosas, isto é, UDV, Santo Daime de Mestre Raimundo Irineu e a Casa de Mestre

Daniel Pereira de Matos.

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O evento trouxe experiências terapêuticas não religiosas que vem sendo

praticadas mediante o uso da Ayahuasca. Uma das entidades é a Associação

Beneficente Caminho de Luz, cujo trabalho teve início em 1994, sendo entidade

filantrópica no Acre, atuando na recuperação e reinserção social de pessoas

acometidas pelo uso abusivo de álcool e outras drogas10. Outra instituição é o

Centro de Reabilitação Emocional e Espiritual Vida Livre (CDI Luz do Vegetal),

localizado em São Paulo, sendo uma entidade voltada para recuperação de pessoas

com transtornos emocionais e problemas de dependência de substâncias químicas,

em que várias técnicas são utilizadas, entre elas o uso da Ayahuasca11.

No debate sobre a patrimonialização da Ayahuasca foi questionado o

longo período para a conclusão do processo, iniciado em 2008. O Sr. Deyvesson

Israel Alves Gusmão, representante do IPHAN (Departamento de Patrimônio

Imaterial), explicou que a demora se deve ao importante fato de que os povos

indígenas usuários da Ayahuasca não foram consultados e nem subscreveram o

documento de pedido para transformar a Ayahuasca em patrimônio cultural imaterial

no Brasil. O IPHAN estaria então consultando diversas comunidades indígenas que,

por sua diversidade étnica e uso tradicional das plantas sagradas, exige um trabalho

alongado de identificação. O Sr. Deyvesson esclareceu que os técnicos do IPHAN

têm avaliado o que pode ser objeto da política de patrimônio, no caso do uso ritual

da Ayahuasca, considerando a multiplicidade de usos, linguagens, crenças e

aspectos étnicos em jogo. Até o momento, o IPHAN tende a limitar o objeto da

política pública ao processo de elaboração ritual do chá, o que parece ser um

elemento comum a todos os interessados no assunto.

Mesmo com os impasses iniciais, o IPHAN abriu o respectivo processo de

patrimonialização e em seguida o Inventário Nacional de Referências Culturais -

INRC que é um procedimento desenvolvido a partir de métodos etnográficos que

visam levantar dados, informações e dar consistência aos pedidos de registro e

salvaguarda de um bem imaterial. Mas o processo ficou embargado, e desde então

o IPHAN ainda não se posicionou a respeito da situação da Ayahuasca.

10

Site da instituição: <www.cadesac.com.br> 11

Site da instituição: <www.vidalivre.org.br>.

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O INRC é um instrumento que cataloga e registra determinado bem de

natureza imaterial. Este levantamento visa ―Inventariar‖ os bens culturais que

remetem á identidade cultural de um grupo social. Quando determinado bem cultural

é conhecido através do INRC ele será, em seguida, reconhecido através de outro

instrumento do IPHAN chamado Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.

Antes do Registro do Bem imaterial, o conselho consultivo do IPHAN, ligados á

diferentes esferas de atuação, decidirão se a proposta é consistente e se deve ser

feito o registro.

O bem cultural imaterial, já devidamente registrado será inscrito em um

dos Livros de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que, atualmente está

dividido em quatro categorias: Livro de Registros de Saberes – para a inscrição de

conhecimentos e modos de fazer das comunidades; Livro de Registros de

Celebrações – para rituais e festas, da religiosidade e outras práticas da vida social;

Livros de Registro das Formas de Expressão – registro de manifestações literárias,

musicais, plásticas, cênicas, lúdicas; Livro de Registro dos Lugares – espaços como

mercados, feiras, praças e santuários, onde se reproduzem práticas culturais

(IPHAN, 2007).

Porém, o pedido do IPHAN para a realização do INRC da

Ayahuasca não conta apenas com a pesquisa de religiões ayahuasqueiras que

solicitaram o pedido, mas também dos povos indígenas que fazem uso do mesmo

chá e das comunidades urbanas mais recentes, categorizadas como neo-

ayahuasqueiras. Isto nos sugere que a realização do INRC da Ayahuasca é um

empreendimento amplo acerca dos rituais em que se faz o uso do chá. Essa

amplitude ocorre devido à diversidade cultural em torno da bebida levantando

questões do que se pretende inventariar afinal (SANTOS, 2010).

A proposta apresentada pelos técnicos do IPHAN dividiu o projeto em três

campos de pesquisa: campo dos originários, campo tradicional ou tradicionalista e

campo eclético ou neo-ayahuasqueiro. Nesse vasto leque em que a Ayahuasca está

presente, surgem as delimitações e dificuldades para a execução do INRC. É

necessária uma grande equipe de pesquisadores e de financiamento, além da

execução desse amplo projeto. No INRC, são feitas pesquisas etnográficas,

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produção em audiovisual, registros fotográficos, pesquisas bibliográficas e

documentais (IPHAN, 2007).

O pedido de patrimonialização da Ayahuasca levanta questões polêmicas

e controversas. Caso venha a ocorrer, representará uma grande conquista para as

comunidades ayahuasqueiras que ao longo do tempo foram bastante discriminadas

e marginalizadas por suas práticas religiosas. Mas, ao mesmo tempo, preservar este

bem imaterial pode significar cristalizá-lo, como se houvesse apenas uma prática

religiosa legítima a ser reconhecida. No caso da Ayahuasca, as práticas religiosas e

terapêuticas são dinâmicas, sincréticas e às vezes contraditórias (LABATE, 2011).

O uso da Ayahuasca envolve complexas redes sociais onde diversos

grupos possuem relacionamentos diferentes com esta substância enteógena12. Além

da variedade sociocultural presente nessas comunidades, a relação com a

Ayahuasca é diferente em cada grupo, que a trata e percebe diferentemente de

acordo com sua doutrina ou visão de mundo.

A realização do INRC da Ayahuasca, segundo Santos (2010), pode ser

um caminho promissor para se mapear o uso ritual da bebida. É importante levar em

consideração que as práticas em torno do chá modificaram-se muito, principalmente

no contexto urbano contemporâneo. É necessário considerar todos os fatores que

envolvem a interação entre ser humano e Ayahuasca a nível simbólico, social e

cultural, definindo parâmetros de mediação entre a cultura, as práticas sociais e o

ritual em torno da Ayahuasca. A interação entre ser humano e substâncias

psicoativas não depende apenas da atuação química da substância, mas, sobretudo

dos fatores psicológicos, biológicos e sociais presentes: como o estado psicológico

no qual a pessoa se encontra ao ingerir a substância, incluindo-se aí sua estrutura

de personalidade e expectativas a respeito da substância e o meio físico, social e

cultural onde ocorre o seu uso (MACRAE, 1999).

Nos próximos capítulos iremos aprofundar a compreensão a respeito dos

impasses e limites para que o processo de patrimonialização da Ayahuasca ocorra,

bem como a análise das políticas públicas de patrimônio cultural imaterial no Brasil.

O pedido de patrimonialização da Ayahuasca reforça a necessidade de avaliação da

12

Enteógeno: palavra grega que significa ―Deus dentro‖. Utilizo essa palavra para me referir às

substâncias psicoativas que agem ampliando o estado de consciência do indivíduo.

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jurisdição brasileira e de compreender como a mesma trata questões ligadas à

cultura, identidade religiosa, o consumo de substâncias psicoativas e categorias

ligadas ao patrimônio imaterial brasileiro. Essa investigação visa compreender quais

aspectos legais a política pública de patrimônio cultural pode ser repensada e como

o caso da Ayahuasca levanta limitações e põe em cheque discursos destoante dos

órgãos públicos envolvidos no processo.

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4 PATRIMÔNIO CULTURAL

Neste capítulo irei me aprofundar no conceito de Patrimônio cultural.

Investigarei a origem do termo ao longo da História e a formação dessa política

pública no Brasil. Além disso, tratarei sobre os conceitos de cultura e globalização,

Patrimônio cultural e o processo de construção simbólica de identidades.

4.1 OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DE CULTURA

A palavra cultura é de origem latina e significa cultivo ou instrução. Dentro

da concepção semântica herdada do latim “colere‖, o termo ―cultura‖ designou até o

século XVII um estado de terra cultivada, para aos poucos se referir à ação de

cultivar a terra, designando algo que está em processo. Segundo Laraia (2001) o

conceito antropológico de cultura como é conhecido atualmente foi definido por

Edward Tylor, no vocábulo inglês Culture. Podemos definir cultura como um conjunto

de hábitos, linguagens, crenças, cultivadas em determinada sociedade que

delimitam a atuação do ser humano no mundo de acordo com o contexto

socioambiental na qual estão inseridos.

[...] qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu

significado de ―habitar‖ evoluiu do latim colonus para o contemporâneo

―colonialismo‖ (...). Mas colere também desemboca, via latim cultus, no

termo religioso ―culto‖, assim como a própria ideia de cultura vem na Idade

Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e

transcendência (...). A cultura, então, herda o manto imponente da

autoridade religiosa, mas também tem afinidades desconfortáveis com

ocupação e invasão; e é entre esses dois polos, positivo e negativo, que o

conceito, nos dias de hoje, está localizado. Cultura é uma dessas raras

ideias que tem sido tão essenciais para a esquerda política quanto vitais

para a direita, o que torna sua história social excepcionalmente confusa e

ambivalente (EAGLETON, 2005, p. 10-11).

Cultura é um conceito complexo. Seus próprios significados ao longo da

História demonstram seus significados complexos e ambivalentes. Por outro lado,

cultura é um conceito fundamental para se compreender aspectos da sociedade que

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vão do político ao religioso, do popular ao erudito. Sua origem do latim cultus, nos

remete ao hábito de cultuar algo, seja uma ideia, os modos de vida ou até mesmo os

ritos da vida humana.

Cultura, para os gregos na Idade Clássica, seria a educação que é

transmitida para se atingir árete (perfeição moral). Cultura adquire assim uma

dimensão subjetiva, pois implicaria ao individuo estar atento a si mesmo, na busca

do auto aperfeiçoamento como condição de se obter árete. No mundo clássico

greco-romano o termo cultura estava associado ao conceito elevado de pessoa,

expressão da mais alta educação aristocrática e de cunho moral elevado, que

incentivava a espiritualização e a nobreza de espírito. Dos mitos gregos se

originavam as qualidades ideais ao qual o ser humano deveria cultivar inspirados

nas lendas dos nobres e heróis da mitologia clássica. De acordo com Alves (2010),

na visão clássica, cultura seria um conjunto de regras, normas, princípios morais e

modelos de ação que indicam o modo pelo qual os indivíduos e coletividades devem

se comportar.

Em síntese, o pensamento grego sobre educação já estabelecia alguns

elementos que caracterizam diversos aspectos das modernas discussões

sobre o significado de cultura, tais como: a) a modelação do homem de

acordo com um padrão ideal preestabelecido; b) a formação do individuo em

relação aos costumes considerados como imperativos [seja do mundo

cortesão, seja do ―homem simples‖]; c) a desigualdade e diferença dos

grupos humanos como consequência das diferenças dos valores espirituais

[como a diferença entre ―bárbaro‖ e o ―civilizado‖] (ALVES, 2010, p. 27).

Na Idade Média o conceito de cultura se manteve ligada a ideia de

espiritualidade, de uma busca de práticas e experiências como condições para o

aperfeiçoamento do espirito. Além disso, o ser humano era visto como pertencente

ao Todo e ao Cosmos cabendo ao individuo contemplar a criação divina. No final da

Idade Média e com a acepção do Racionalismo juntamente com o declínio do

poderio da Igreja e a formação dos Estados-nações começa-se a desenvolver uma

concepção de individualismo ao qual o ser humano percebe as suas limitações

(ignorância) frente ao universo infinito e impenetrável.

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Com o advento do Iluminismo, cultura passa a representar um fenômeno

inerentemente humano que tem como referencia as ideias de progresso, evolução e

educação e por objetivo um refinamento cultural dos costumes. No século XVIII

cultura associa-se ao conceito de civilização, expressando a ideia de refinamento do

comportamento humano. Portanto civilização é um movimento coletivo resultado do

desenvolvimento da cultura (Alves, 2010). O termo cultura não se restringiu apenas

ao conceito de civilização, associou-se também a noção de diferenças nacionais,

associando-se aos conceitos de ―nação‖, ―nacionalismo‖ e ―nacionalidade‖. Além

disso, os pensadores iluministas concebiam o ser humano como um ser

cosmopolita, tomando consciência das formas simbólicas da constituição da vida

humana, lançando as bases para a formação do conceito de ―relativismo cultural‖.

O conceito antropológico de ―relativismo cultural‖ é de maneira simplista a

ideia de que não podemos julgar outra cultura com base em nossos próprios valores

e costumes. Isso permitiu o alargamento da concepção de cultura permitindo a

criação de outros conceitos como: Cultura popular, cultura erudita, cultura indígena,

cultura europeia entre outros.

O conceito de cultura foi se modificando e se ampliando ao longo do

tempo adquirindo uma gama múltipla de significados e sentidos. Hoje é possível

encontrar uma série de definições sobre o que é cultura o que torna complexo a sua

definição e estudo. Além das categorias acima citadas que foram incorporadas ao

conceito de cultura tais como o de cultivo, instrução, educação, espiritualidade,

valores éticos e morais, civilidade e nacionalismo outras categorias foram

associadas a partir do século XIX ao conceito de cultura. Acepções como os de

hábitos e costumes, identidade de um povo ou grupo social e linguagem surgiram

além de outras categorizações como exemplo os de cultura social, coletiva, cultura

sexual, racial, gênero, cultura cientifica, cultura nacional, religiosa, cultura

acadêmica, cultura popular e etc.

Diante de tantas acepções e suas múltiplas variedades se torna uma

tarefa temerosa propor uma definição de cultura. Para se permitir estudar tornando-

se um instrumento de reflexão, a Antropologia cultural persegue reflexões em torno

do conceito de cultura na necessidade de compreensão do ser humano em coletivo.

Segundo o antropólogo Mércio Pereira Gomes (2008), cultura é o modo próprio de

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ser do homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte

inconsciente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir,

fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o Absoluto e, enfim, reproduzir-se.

No sentido acima ―o modo próprio de ser‖ distingue o homem da biologia

e que seu comportamento é um construto de algo cultural que possui uma certa

descontinuidade em relação a natureza. Segundo Lévi-Strauss (2009), o homem é

um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social. Isso significa dizer que a

interação do ser humano com o mundo depende dos fatores naturais – biológicos

instintivos e ambientais – e de fatores culturais nos quais o individuo está submetido.

O "anjo caído" foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas

notáveis propriedades: a possibilidade da comunicação oral e a capacidade

de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu

aparato biológico. Mas, estas duas propriedades permitem uma afirmação

mais ampla: o homem é o único ser possuidor de cultura (LARAIA, 2001,

p.68).

O ser humano diferentemente das outras espécies possui a cultura como

ferramenta para apreender e se pensar o mundo através de símbolos a serem

decodificados de acordo com as crenças de sua comunidade.

O que se quer dizer com pensar? Para a Antropologia pensar é articular

uma compreensão do mundo através da linguagem. É claro que pensar é

um ato de consciência, individual, que se formam através de palavras,

conceitos e sentidos de uma língua. Mas é também um ato coletivo, na

medida em que os termos desse pensar, as categorias de pensamento são

dadas pela cultura da qual o individuo faz parte (GOMES, 2008, p.37).

A linguagem possui um significado importante na reprodução da cultura,

já que é um dos principais meios de transmissão de legados culturais:

A adaptação às circunstâncias de cada contexto é uma característica

constante da transmissão da tradição. A transmissão oral aciona esquemas

mnemônicos que garantem a estabilidade das estruturas musicais, plásticas

e narrativas, dando margem, porém, a múltiplas variações desse esquema,

em virtude dos aspectos contingentes de cada performance (IPHAN, 2017).

Através da transmissão de significados culturais passados de geração

em geração é possível traduzirmos o legado histórico-cultural de um povo através

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dos seus meios de preservação como a educação, a língua, as maneiras de

sociabilidade, as instituições e os rituais sociais. Dentro desse contexto encontramos

os conceitos de tradição, conservação e preservação bastante associados ao de

cultura e identidade. Existe uma necessidade atual de preservar os meios de

transmissão de uma determinada cultura ou de uma identidade cultural.

A palavra tradição é frequentemente usada como se fora um sinônimo de

cultura. Para a Antropologia, é uma palavra de cunho genérico, de

significado vago e não operacional, que se aproxima do conceito de cultura

como se fora um dos seus aspectos. Tradição seria tudo aquilo cultural que

uma coletividade reconhece como sendo essencial para sua identidade, e

que vincula sua existência atual com seu passado. Portanto, quando se fala

em tradição, fica subentendido o sentimento de lealdade ou deslealdade a

ela. Isto é, tradição é uma noção que implica uma ética, a exigência de uma

atitude perante a cultura (GOMES, 2008, p.48).

De acordo com a Constituição Federal de 1988 do Brasil, Art. 216, cultura

são todas as ações por meio das quais os povos expressam “suas formas de criar,

fazer e viver”. É um processo dinâmico, transmitido de geração em geração em uma

comunidade e que pode sofrer interferências de outras culturas moldando suas

práticas, sentidos e valores através do tempo, dos indivíduos e do espaço. Há

diversos grupos sociais que diferem entre si de acordo com sua imersão cultural,

construindo identidades individuais e coletivas em determinado contexto histórico,

social e espacial. Um grupo social que constrói suas memórias e costumes coletivos

cria elementos para a formação de sua identidade cultural enquanto grupo social.

[...] la cultura es el conjunto de símbolos, valores, actitudes, habilidades,

conocimientos, formas de comunicación y organización sociales, y bienes

materiales que hacen posible la vida de una sociedade determinada y le

permiten transformarse y reproducirse como tal, de uma generación a las

siguientes. Esta es sólo una de las posibles definiciones antropológicas de

cultura, porque en este terreno tampoco hay un acuerdo unánime; pero es

lo suficientemente amplia como para servir de base para la discusión del

tema. (BONFIL, 2000, p.3).

De acordo com a citação acima, os hábitos, costumes e crenças que

modelam a identidade de determinado grupo social, se identificam, criando códigos

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sociais que refletem a si mesmos e seus próprios valores. A cultura possui vários

elementos construtores de uma identidade coletivos aonde muitos grupos sociais

buscam se legitimar através de processos de reconhecimento e salvaguarda

patrimonial como forma de preservação de elementos materiais e imateriais de sua

cultura e identidade. Através do instrumento de patrimônio cultural, os grupos

buscam reafirmar sua identidade, seu território e sua própria história.

É outra – e é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, de cultura.

Para nós, a cultura está revestida de um papel estratégico, no sentido da

construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação

soberana no mundo (...). Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas

dimensões, da simbólica à econômica (ROCHA, 2009, p.39).

No Brasil, os conceitos de tradição e cultura foram muito usados e

pensados pelos intelectuais do Movimento Modernista tais como Mário de Andrade e

Oswald de Andrade. A partir da noção de ―tradição cultural‖, os pensadores

modernistas tomaram consciência da necessidade crescente de preservação do

legado histórico material e pela primeira vez, os intelectuais da época (na Semana

de Arte Moderna de 1922), se manifestaram acerca da dimensão imaterial do

patrimônio como constituintes da identidade brasileira ou da cultura brasileira. Na

próxima sessão irei abordar como a ideia de patrimônio cultural surgiu no Brasil

incentivando a criação de leis de preservação.

4.2 O CONCEITO DE PATRIMÔNIO: ALGUNS APONTAMENTOS...

Em primeiro lugar, devo investigar a origem do termo patrimônio e os seus

significados ao longo da história. O termo patrimônio origina-se da palavra pater que

significa pai. Patrimônio representava e ainda representa um conjunto de heranças

transmitido de forma parental. Ao longo do tempo, passou a ser qualquer bem

material ou conhecimento que transmitisse e perpetuasse relações de poder e

afirmação de soberania cultural da aristocracia. Patrimônio era um bem que tinha

como característica o fato de ser de natureza privada e elitista pertencente a

determinado grupo social privilegiado na sociedade.

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O termo patrimônio que no século XVI designava apenas os bens

materiais de natureza privada e geralmente elitista de uma sociedade, adquiriu a

partir do século XVIII horizontes mais amplos. O conceito hierárquico de patrimônio

passou, gradativamente, ao de algo comum à humanidade ou de uma determinada

comunidade. É com a Revolução Francesa que se inaugura a noção de Estado laico

e também o uso do patrimônio cultural como aglutinador de uma identidade nacional.

Aos símbolos nacionais cabe uma função central, uma vez que visualizam

de modo marcante os valores e os conteúdos da auto definição política de

uma comunidade, através dos quais os cidadãos conhecem e reconhecem

sua identidade política (JURT, 2012, p.44).

Deste modo, compreendo que patrimônio é uma construção sociocultural

que mobiliza um conjunto de práticas, agentes e agências no processo de

patrimonialização de um bem, assim como os valores que o legitimam (MOTTA,

2014).

A predominância dos monumentos que reafirmam os poderes políticos,

religiosos e militares reforça essa versão. Os bens culturais não

pertencentes às elites foram durante muito tempo relegados ao

esquecimento (CORÀ, 2014, p.2)

Apesar dos conceitos elitistas terem sido à base de comando e

fomentação de políticas culturais por muitas décadas, hoje em dia, há um avanço na

política adotada pelo IPHAN. De acordo com Camargo (2002) as atividades não se

limitaram apenas à preservação, mas ao restauro e à reabilitação dos bens, à

ampliação e à codificação dos conhecimentos relativos à temática arquitetônica e

artística da "arte tradicional brasileira", principalmente com a incorporação do

patrimônio imaterial, como festas, danças, procissões, gastronomia etc.

Podemos falar em património cultural como a representação simbólica das

identidades dos grupos humanos, isto é, um emblema da comunidade que

reforça identidades, promove solidariedade, cria limites sociais, encobre

diferenças internas e conflitos e constrói imagens da comunidade.

(CRUCES, 1998, p. 85).

Como o autor fala acima, essas representações simbólicas criam um

repertório cultural que guarda a história e a identidade de um determinado povo.

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Esses bens são chamados de patrimônio histórico de uma coletividade. O patrimônio

histórico seja ele material ou imaterial artístico ou arquitetônico exige um processo

de selecionar, guardar, transmitir uma memória social ao qual se atribui significados

resguardados pela ―força da tradição‖.

A partir dessa reflexão, me atento que os conceitos de Patrimônio e

Patrimônio Cultural são diferentes e que devem ser compreendidos separadamente.

O conceito de Patrimônio Histórico, no entanto, está dentro do conceito de

Patrimônio cultural. A definição de Patrimônio Histórico é o conjunto de bens móveis,

imóveis e naturais que possui valor inestimável a um país ou sociedade. Patrimônio

cultural, além dos bens materiais e imateriais está presente às tradições, as

manifestações populares, religiosas entre outros.

Quando falamos em patrimônio histórico não estamos nos referindo a

coisas, a uma ou algumas classes de objetos, e sim ao resultado de ações

humanas, a um processo contínuo de selecionar, guardar, conservar e

transmitir determinados bens, materiais e imateriais, a que se atribuem

determinados valores. O termo ―patrimônio‖ é usado devido à analogia com

o processo que ocorre na família quanto aos bens que passam de pais para

filhos, portanto, à herança, o que envolve não apenas valores econômicos

como também simbólicos e afetivos. No caso dos patrimônios históricos,

pode-se dizer que esse processo de selecionar, guardar, conservar e

transmitir se caracteriza por uma dimensão mais ampla, necessariamente

coletiva, que integra o modo como os grupos sociais organizam sua

memória (LONDRES, 2005, p.162).

A noção de patrimônio histórico e artístico, tal como é entendido hoje se

tornou possível no período do Renascimento, quando o mundo deixa de ser visto

como sacro e o ser humano se percebe em evolução temporal na cadeia da história.

Com o advento dos Estados-nações no século XVIII, houve o surgimento de políticas

de Estado voltadas para a proteção do patrimônio histórico e artístico. Ao mesmo

tempo, durante a Revolução Francesa, desenvolveu-se um sentido de patrimônio

que é um marco característico desta nação europeia.

O estatuto do que venha a ser um bem que pertença a uma nação como

parte de seu legado artístico, cultural e histórico, perpassa temáticas e

conceitos complexos e diversos como ―memória‖, ―nacionalismo‖ e

―identidade‖, etc. O que deve ser patrimônio e, sobretudo, o que deve ser

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feito desse patrimônio tombado, está diretamente ligado ao que venha a ser

a identidade nacional de cada nação [...] (BISPO, 2011, p.95).

Segundo Londres (2005) o modelo francês de preservação do patrimônio

histórico tornou-se artigo de exportação e foi introduzido a partir do século XX em

vários países do mundo inclusive no Brasil. A nação brasileira, que diferentemente

da França, já nasceu como colônia era completamente influenciada pela metrópole

portuguesa através do controle político, econômico e cultural que ditava os padrões,

gostos e comportamentos ao povo brasileiro. Qualquer obra que não seguisse o

padrão europeu era considerada ‗tosca‘ pelo poder público. Com o movimento

modernista do século XX veio à necessidade de proteger o estilo artístico

genuinamente brasileiro no intuito de construir uma tradição cultural brasileira junto

com a proteção dos bens histórico e artístico nacionais, que deveriam ser iniciativas

visíveis do ponto de vista das políticas públicas.

As primeiras ações do Estado brasileiro para preservação dos bens

patrimoniais no Brasil ocorreram na década de 1930. Vale destacar

brevemente o contexto sócio-político e econômico que vivia o Brasil nessa

década, com o fim da chamada ―política do café-com-leite‖ e a ascensão de

Getúlio Vargas pela primeira vez ao poder, como chefe do Governo

Provisório, cargo que ocupou até 1934. A partir deste período, o país

passou de um Estado com modelo agrário-exportador para um urbano-

industrial (BISPO,2011, p.99).

Durante o período de 1930 a 1945 houve uma séria de questões

articuladas na área de cultura gerando políticas públicas para a área de patrimônio

cultural. Ao mesmo tempo a esta ação federal foi criada em São Paulo o

Departamento de Cultura sob tutela de Mário de Andrade. Apesar do crescimento da

indústria cultura no Brasil entre os períodos de 1946 a 1960, a presença do Estado

nesse setor ainda era incipiente.

Mário de Andrade ficou a frente do Departamento e também acumulava a

gestão da Divisão de Expansão Cultural. Além disso, ele vai ter papel

importante na elaboração do anteprojeto de criação do Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1936, a pedido de

Gustavo Capanema. A partir do documento elaborado pelo modernista,

caberia ao SPHAN ―determinar e organizar o tombamento, sugerir a

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conservação e defesa, determinar a conservação e restauração, sugerir

aquisição e fazer os serviços de publicidade necessários para a propagação

e o conhecimento do patrimônio artístico nacional‖ (BISPO, 2011, p.100).

O Serviço de Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN) foi criado

em 13 de janeiro de 1937 apesar de algumas controvérsias quanto ao anteprojeto de

Mario de Andrade. Além disso, o Decreto-Lei n°25 de 1937 que é responsável por

organizar o serviço de patrimônio está vigente até hoje com pouquíssimas

alterações. Hoje SPHAN se chama IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional e está vinculado ao Ministério da Cultura.

Apesar da proposta de Mário não ter sido aprovada, tendo em vista que a

prerrogativa da época era de ser preservar os ―monumentos‖, tomados

como ―símbolos nacionais‖, as suas idéias foram retomadas por Aluísio

Magalhães, que incentivou a valorização da diversidade cultural brasileira

no processo de desenvolvimento do país, e desenvolveu experiências

significativas no ―Centro Nacional de Referência Cultural‖- CNRC e na

―Fundação Nacional Pró-Memória‖- FNPM. Nas décadas de 70 e 80 do

século passado, Aluísio recontextualizou a política cultural do IPHAN,

procurando substituir ―a visão anteriormente empregada a respeito da

proteção do ‗patrimônio histórico e artístico brasileiro‘ pela noção de ‗bens

culturais‘ (DO CARMO , 2010,p.3,).

De acordo com Bispo (2011) com o golpe de 1964 e a ascensão dos

militares ao poder houve mudanças nas políticas na área da cultura. Houve uma

forte centralização no Conselho Federal da Cultura e uma reformulação na estrutura

pública e um aumento da institucionalização na área. Até o fim dos governos

militares, nos anos 80 até os anos 90 o Estado reduziu sua participação na

formulação de políticas públicas bem como financiamento na área cultural, reflexo de

uma política neoliberal. Nesse período de 20 anos houve um aumento das leis de

incentivo cultural. A partir do primeiro mandato do Governo Lula em 2003, surge uma

tentativa de institucionalização no campo.

Dentro da categoria Patrimônio encontramos a divisão entre bens de

natureza material e de natureza imaterial. O conceito de patrimônio cultural é relativo

aos domínios social e simbólico de determinados povos ou culturas que visam à

preservação da memória e identidade de determinado grupo social. As comunidades

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ayahuasqueiras13 que visam à legitimação de suas doutrinas através do processo de

patrimonialização da Ayahuasca utilizam-se do artifício do poder simbólico estatal

(BOURDIEU, 2010) como instrumento de validação e inserção cultural na sociedade

brasileira. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural

Imaterial da UNESCO de 2003, patrimônio cultural imaterial é:

[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas -

junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes

são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os

indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração,

é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu

ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um

sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para

promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os

fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio

cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de

direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre

comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável

(UNESCO,2003).

A política pública de patrimônio cultural é um instrumento do poder do

Estado que detém a centralidade hierárquica de criar, governar, através de

instrumentos ideológicos. Poder esse que é exercido sobre toda uma sociedade.

Nesse movimento o Estado legitima seu poderio através da construção de uma

identidade nacional, surgindo políticas de constituição do patrimônio histórico,

cultural nacional no Brasil. Os objetos das políticas públicas de constituição do

patrimônio histórico e cultural partilham de uma ideia de carisma para serem

considerados legítimos e aceitos como componentes de uma identidade cultural.

As políticas públicas do Estado, de modo geral, podem ser entendidas no

contexto do que Shils chama de centralidade. Para este autor, "a

centralidade é constituída pelo seu poder formativo ao iniciar, criar,

governar, transformar, manter, ou destruir aquilo que é vital na vida do

homem" [Shils, 1974, p. 395]. Tal poder central de que nos fala Shils [1974]

13

As entidades envolvidas no pedido de patrimonialização são: Centro de Iluminação Cristã Luz

Universal Alto Santo (CICLU – Santo Daime); Casa de Jesus Fonte de Luz (Barquinha) e Centro

Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV).

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76

tem sido concebido como um poder transcendente divino ou outro que

controla ou influencia a vida humana e o cosmo dentro do qual ela existe.

Mas para ele essa é apenas uma das possibilidades de ser carismático,

entre outras. O carisma pode se manifestar em personalidades individuais,

conforme salientado em Weber [2002], "mas pode vir a residir, em graus

variados de intensidade, em instituições – nas qualidades, normas e

crenças que seus membros são supostos abraçar ou que se espera que

possuam"[Shills](CANANI,2010,p.396).

O bem patrimonial para ser considerado legitimo por um determinado

grupo também se faz necessário ter forças sociais afetivas, ou seja, as forças sociais

não racionais que criam uma polaridade essencial entre racionalismo e carisma. A

centralidade do poder está hierarquicamente atribuída a instituições de salvaguarda

nacional onde se originam tais políticas e se difundem pela sociedade o caráter de

―sacralidade‖.

O carisma é a grande força revolucionária nas épocas com forte vinculação

à tradição [...] O carisma destrói [...] em suas formas de manifestação mais

sublimes regra e tradição e inverte todos os conceitos sacrais. Ao invés da

piedade em relação àquilo que é, desde sempre, considerado comum, e por

isso sacral, ele força a sujeição interna sob aquilo que nunca antes existiu,

sob o absolutamente singular, e por isso divino. Nesse sentido puramente

empírico e neutro, é, porém, o poder especificamente criativo e

revolucionário da história (Weber, 1991, p. 161).

O conceito de dominação social carismática de Weber, nesse ponto

amplia-se de sentido tornando-se um instrumento tanto do Estado como de grupos

sociais que buscam a legitimação social. Weber reconhece o carisma como uma

força social criativa ou destrutiva que pode dar novos rumos à história, destruir

instituições ou abrir caminhos para novas políticas. Segundo Bach (2011) o carisma

―força‖ a ―sujeição‖ como consequência da lealdade aos valores, no nível da ação.

Assim, o carisma se transforma em um recurso de poder e passa a constituir, ao

mesmo tempo, uma relação de dominação. Ou seja, se o patrimônio cultural é uma

construção, ela é influenciada e moldada também através do que cativa as pessoas.

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77

Através dessa construção o bem cultural ganha legitimidade através de laços

afetivos criados em sociedade. Essa afeição gera nas pessoas um sentimento de

identidade e pertencimento, criando um imaginário social e reafirmando-o através do

bem patrimonializado.

A utilização do conceito de Patrimônio para a criação simbólica de

identidades tem operado de forma fundamental para a legitimação e afirmação de

uma identidade nacional14. Isso acarretou na seleção de bens determinados pelo

interesse do Estado (e por suas classes dominantes), excluindo partes da cultura

não elitista e privilegiando um patrimônio cultural dominante. A lógica da construção

de patrimônio cultural tem seguido as regras do jogo mercadológico que seguem os

modelos do capitalismo global ocidental. As discussões da atualidade sobre a

política de patrimônio cultural, segundo Beatriz Labate (2010) advogam para a

ampliação do conceito de patrimônio cultural para que esta política pública alcance

manifestações da diversidade cultural de cada nação.

[...] investigações sociologias e antropológicas mostram que os diversos

setores sociais se apropriam de forma desigual da herança cultural de um

país. E vai além, ao dizer que não basta que existam políticas culturais que

criem museus, bibliotecas e outras instituições afins, e ainda programas de

incentivos à população, para que esta frequente tais locais. À medida que

se desce na escala social e econômica da sociedade em direção àqueles

que têm menos recursos e acesso à educação, percebe-se uma redução da

capacidade de apropriação do capital cultural transmitido pelas instituições.

Para o autor, o motivo dessa desigualdade seria a diferença de participação

dos vários grupos sociais na formação deste patrimônio. Ele ainda ressalta

14

Identidades podem ser partilhadas em sistemas mais vastos, como, por exemplo, a identidade

nacional, que tem uma relação densa com a noção de patrimônio cultural. A consolidação dos

Estados nacionais resultou de processos, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, que envolveram

disputas e estratégias diversas para o estabelecimento de um sentimento de cultura partilhada entre

os membros da nação. A identidade nacional dependeu, sobretudo, do reconhecimento de um

―passado comum‖ sustentado por ―tradições inventadas‖ [HOBSBAWM, 2012] ou reapropriadas, mitos

fundadores da nação, lendas de tradição oral, versões oficiais da história no espaço geograficamente

delimitado do Estado-nação. Os bens que formam o patrimônio histórico e artístico viriam objetivar,

conferir realidade e legitimar a ―comunidade imaginada‖ [ANDERSON, 2008] que é a nação,

materializando a sua ancestralidade [GONÇALVES, 1996] (BRANDÃO, 2017, p.1)

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78

que, mesmo em nações que adotam a noção antropológica de cultura,

existe uma determinada hierarquia dos capitais culturais (BISPO, 2011,

p.97).

No processo de reconhecimento de determinado bem histórico de

natureza material ou imaterial há uma relação de poder, hierarquizada que

estabelece competências e define os critérios e tipos de saberes que entram no

―jogo‖. Os grupos ayahuasqueiros que lutam pela patrimonialização desta bebida

estão utilizando como instrumento o patrimônio na esfera racional- legal do Estado

para a legitimação social. Sociologicamente, poderíamos atribuir a essa ação um

sentido de legitimação por meio de um sistema legal, que estabelece regras e

crenças sociais fazendo-se da impessoalidade e da coerção sua autoridade social.

Por meio da burocracia, o Estado moderno define o que é e o que não é cultura,

estabelece novos parâmetros culturais através da legitimação racional.

Porém com relação ao trato em lidar com questões ligadas à cultura o

modelo racionalista e burocrático é perpassado pela lógica carismática aos quais os

bens se fundam. Não é possível nos aprofundar no conceito de cultura ou pensar em

políticas culturais sem levar em consideração as lógicas afetivas ou não racionais de

uma determinada comunidade.

Weber não considera que a modernidade inaugura a cultura como tragédia,

mas, para ele, o homem que experimenta os avanços da racionalidade pode

adquirir uma consciência inédita da sua condição trágica, uma vez que a

efetiva racionalização de diferentes áreas da cultura desautorizou a grande

ilusão com a qual os homens tradicionalmente desviaram-se do problema: a

crença de que a vida tem sentido (NOBRE, 2000, p.20).

A crítica à modernidade citada acima também levanta questões de como

um modelo racional-burocrático pode então definir quais são as margens para o

significado de cultural ou de bem patrimonial? Essa questão sempre esteve presente

na construção da política pública de patrimônio cultural e se inaugura o conceito de

cultura como tragédia, compreende-se que o modelo racional possui suas limitações

frente à multiplicidade da realidade cultural. A cultura na atualidade deve ser visto

como algo dinâmico, marcado por traços complexos, variações de identidades e

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79

práticas culturais é um conceito ao qual o esquema racional-burocrático não pode

―abarcar‖.

Vivemos em um mundo em que a intensificação da globalização modifica as

maneiras do poder público lidar com as políticas públicas em diversos

setores: economia, segurança, saúde, dentre outras. E a esfera cultural não

escapa dessas transformações. O patrimônio histórico, e os usos que

devem ser feitos desses bens, têm sofrido também modificações neste

contexto (BISPO, 2011, p.95)

É importante frisar que o conceito de patrimônio se ampliou ao longo dos

anos, expandindo suas designações dependendo de diversos fatores sociais como a

economia, a política, a cultura e a saúde por exemplo. Na esfera da cultura as

questões se tornam mais complexas que requerem estudo para que a conservação

de um determinado bem cultural seja avaliado além das necessidades mercantilistas

de uma sociedade.

Também se constatou nesse tempo um outro entendimento de história que

centra seu interesse antropológico no homem e em sua existência, e assim

busca contemplar todos os atores sociais e todos os campos nos quais se

expressa a atividade humana. Tal compreensão implicou a valorização dos

aspectos nos quais se plasma a cultura de um povo: as línguas, os

instrumentos de comunicação, as relações sociais, os ritos, as cerimônias,

os comportamentos coletivos, os sistemas de valores e crenças que

passaram a ser vistos como referências culturais dos grupos humanos,

signos que definem as culturas e que necessitavam salvaguarda. Esses

novos entendimentos levaram à reformulação do conceito de patrimônio. O

valor cultural, a dimensão simbólica que envolve a produção e a reprodução

das culturas, expressas nos modos de uso dos bens, foi incorporado à

definição do patrimônio. A alteração também se deu em face da constatação

de que os signos das identidades de um povo não podem ser definidos

tendo como referência apenas as culturas ocidentais, assim como a cultura

campesina não pode ser vista como menor diante das atividades industriais.

(ZANIRATO, 2006, p. 4)

Conforme SANTOS (2003, p. 147), [...] uma outra globalização supõe uma

mudança radical das condições atuais, de modo que a centralidade de todas as

ações seja localizada no homem.(...) Nas presentes circunstâncias, a centralidade é

ocupada pelo dinheiro. A identidade cultural se torna cada vez mais complexa e a

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cultura é algo que está em continua mudança. Transformações essas ora positivas

com trocas e relações entre povos e ora negativa tais como ameaças de

homogeneização da cultura através da imposição de culturas hegemônicas.

4.3 PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL

Antes de tratar sobre a política de patrimônio cultural imaterial no Brasil,

devo atentar sobre a história da principal instituição responsável pelos processos de

salvaguarda de patrimônio material e imaterial: o IPHAN. No Brasil, a proclamação

da República em 1889 e a primeira Constituição Republicana de 1891 são marcos

da laicização do Estado brasileiro. E é neste contexto que em janeiro de 1890 é

publicado o Decreto de n°847 que introduziu a liberdade religiosa e retirou os

privilégios gozados pela Igreja Católica, religião oficial por quase quatro séculos.

Em 1937 é criado o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(SPHAN), porém diferentemente do intuito dos franceses de desarticular a Igreja

Católica, no Brasil a instituição detêm um grande número de bens tombados, mas

preservando sua posse e administração. O SPHAN sofreu forte influência do

modernismo brasileiro, resultado da Semana de Arte Moderna de 1922. A partir de

1969, o SPHAN se torna Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN), órgão responsável, junto ao Ministério da Cultura15, pelo processo de

Patrimonialização de bens culturais de natureza material e imaterial.

Diferentemente da França e Inglaterra, por exemplo, o Brasil nasce como

colônia, tendo Portugal como a metrópole que exerceria seu poderio imperial através

do domínio politico, econômico e cultural. Com o advento da modernização e da

criação do SPHAN, em 1937 o conceito de cultura modifica-se e o Estado passa a

reconhecer os bens de origem tradicional e popular.

Se esse patrimônio, que é de todos, deve ser preservado, é preciso

estabelecer seus limites físicos e conceituais, as regras e as leis para que

15

Endereço eletrônico Portal Ministério da Cultura: http://www.cultura.gov.br/

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81

isto aconteça: ―foi a ideia de nação que veio garantir o estatuto ideológico

(do patrimônio), e foi o Estado nacional que veio assegurar, através de

práticas específicas, a sua preservação (...). A noção de patrimônio se

inseriu no projeto mais amplo de construção de uma identidade nacional, e

passou a servir ao processo de consolidação dos estados-nação modernos

(FONSECA,1997, p. 54).

O IPHAN16 é uma instituição federal vinculada ao Ministério da Cultura,

responsável por preservar, fiscalizar, divulgar os bens culturais brasileiros e garantir

a utilização desses bens pela sociedade. Com a sua criação em 1937, o IPHAN foi

estruturado por intelectuais e artistas brasileiros da época, dentre eles Mário de

Andrade, Manuel Bandeira e o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda. Também em

1937, é criado o Decreto-Lei n°25/1937 regulamentando o instituto de tombamento

do Brasil e o Art. 134 da Constituição Federal, amplia a defesa de Patrimônio

Cultural. Mário de Andrade é nomeado, neste mesmo ano, Assistente Técnico

Regional do SPHAN de São Paulo.

Em 1946, com a nova Constituição do Brasil, em seu capítulo II, Art. 178,

estabelece que as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico,

bem como monumentos naturais, as paisagens e locais dotados de particular beleza

fica sob a proteção do poder público. E em 1970, com o Art. 180 que em parágrafo

único: Ficam sob proteção e especial do Poder Público os documentos, as obras e

os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e paisagens naturais

notáveis, bem como as jazidas arqueológicas (IPHAN, 2017). Em 1988, a nova

constituição brasileira é promulgada. Os artigos 215 e 216 incorporam os conceitos

de referencia cultural e patrimônio cultural, reconhecendo o valor e relevância das

manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras. O IPHAN obedece

ao principio normativo contemplado pelo artigo 216 da Constituição de 1988 da

República Federativa do Brasil com os respectivos incisos:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,

tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à

ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade nos quais se

incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as

16

Endereço eletrônico do IPHAN: http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.html

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criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos,

edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os

conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,

paleontológico, ecológico e científico (Art. 216, Constituição Federal, 1988).

Em 1991 é criada a Lei n°8.313/1991, Lei Rouanet e institui o Programa

de Apoio à Cultura Nacional (Pronac), com o objetivo de promover captação de

recursos para projetos de preservação do patrimônio cultural. Nos últimos 20 anos, o

IPHAN tem intensificado a incorporação dos chamados patrimônios imaterial

representados pelas manifestações da cultura popular reiterando a necessidade de

se pensar patrimônio a partir da diversidade cultural brasileira. A partir dos anos

2000 o IPHAN criou uma série de instrumentos e ferramentas para a salvaguarda de

bens imateriais, ente eles: Instituição do Registro de Bens Culturais de Natureza

Imaterial que constituem Patrimônio cultural e a criação do Programa Nacional do

Patrimônio Imaterial (PNPI/ Decreto 3.551/2000); Elaboração do Inventário Nacional

de Referencias Culturais (INRC), metodologia para identificação e produção do

conhecimento sobre bens culturais como vistas a subsidiar a formulação de políticas

de preservação.

Através do Decreto 3551 de 4 de Agosto de 2003 , instituiu-se o registro de

bens culturais de natureza imaterial que constituem o patrimônio cultural

brasileiro, e a criação do ―Programa Nacional do Patrimônio Imaterial‖, com

o objetivo de ―implementar política de inventário, registro e salvaguarda

desses bens‖. O decreto presidencial também sugere os diferentes

domínios que compõem essa dimensão do patrimônio, por meio da criação

dos livros de registro, voltados para os saberes, as celebrações, as formas

de expressão e os lugares [IPHAN, 2006] (DO CARMO, 2010, p.5).

No Livro de Registro, os bens culturais ficaram divididos em quatro

categorias. Depois de Registrado o bem se torna ―Patrimônio Cultural do Brasil‖. Os

aspectos de salvaguarda que norteiam o IPHAN foram estabelecidades através da

Convenção Para a Salvaguarda do Patrimonio imaterial Cultural da UNESCO em

2003.

Entende-se por ―salvaguarda‖ as medidas que visam a assegurar a

viabilidade do patrimônio cultural imaterial, que compreendem a

identificação, a documentação, a pesquisa, a preservação, a proteção, a

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promoção, a valorização, a transmissão, essencialmente pela educação

formal e não formal, assim como a revitalização dos diferentes aspectos

desse patrimônio (CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL, 2003).

O patrimônio cultural de uma sociedade é fruto de políticas públicas

norteadas pelo Estado por meio de leis e de instituições públicas responsáveis, com

a participação dos representantes que solicitam o pedido de patrimonialização

juntamente com a sociedade civil. Existe uma multiplicidade de atores que

participam do processo de construção da política pública de patrimônio cultural. A

relação entre o Estado e a sociedade, nesse sentido, adquire certa dinâmica com

relação à questão patrimonial devido a sua condição aberta e plausível de constante

discussão, sempre em disputa nas arenas sociais.

As disputas que ocorrem no âmbito do patrimônio são de natureza

política, econômica e simbólica em que a sociedade, o Estado, o setor privado e os

movimentos sociais ora agem de forma antagônica, ora em parcerias. Pensar

patrimônio na era da indústria cultural é compreender que existem fenômenos

sociais que regem os caminhos da formação dessa política pública que atuará de

acordo com o contexto histórico e político de cada nação. Isso significa dizer que

como toda e qualquer política pública, as políticas de patrimônio cultural são um

campo de disputas entre setores da sociedade e o Estado. Há interesses e conflitos

envolvidos nessa arena em que a legitimidade e a busca pelo poder através do

consenso (ou não) sobre o bem cultural são uma constante. Cito como exemplo as

matrizes do Samba do Rio de Janeiro que buscaram na política pública de

patrimônio cultural a proteção e o fortalecimento desta manifestação popular.

Embora seja um estilo musical bastante presente nas mídias, suas raízes sofreram

interferências através da indústria cultural:

―Há tempos percebemos o enfraquecimento das raízes do samba do Rio. A

massificação deu ao samba um formato que está distante dos principais

elementos que compõe suas matrizes. Não é uma proposta de

engessamento ou saudosismo. O samba é vivo, dinâmico. Nossa intenção é

de valorizar e preservar as matrizes do samba carioca: samba de partido-

alto, samba de terreiro e samba-enredo‖, explica Nilcemar Nogueira, neta de

Cartola e vice-presidente do Centro Cultural. Foi ela quem coordenou o

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projeto de pesquisa e documentação, que contou com o financiamento e o

apoio técnico do Iphan. Vários ―bambas do samba‖ também participaram

ativamente, como os compositores Monarco, Xangô da Mangueira e Nelson

Sargento. (IPHAN, 2017)

Além de ser um construtor de identidades (local e nacional), o conceito

de patrimônio se relaciona com a cultura e os interesses mercadológicos, possuindo

uma função transformadora, carregada de significados que marcam a relação entre

sujeito e o Estado. É claro, também, que as políticas públicas de patrimônio cultural

são responsáveis pela formação de processos identitários, o que pode significar

tanto um resgate de um determinado bem cultural quanto à massificação do mesmo.

Outro exemplo que trago é do Ofício das Baianas de Acarajé que se tornou um bem

registrado no Livro de Saberes. Através da patrimonialização deste ofício preserva-

se os elementos essenciais envolvidos, os modos de fazer, o tabuleiro, a

indumentária religiosa como marca distintiva da condição social e religiosa das

baianas do Acarajé. Esta comida tipicamente baiana trás as marcas da cultura

africana e do candomblé, além disso, o oficio se torna um bem patrimonial que

protege o grupo social envolvido, no caso as baianas do Acarajé que podem ter

preservados seu trabalho e modo de vida através da atuação da política pública de

patrimônio.

Por sua vez, Garcia Canclini (1993) compreende que existe uma

hierarquia de bens simbólicos e o autor adota o conceito de ―capital cultural‖ de

Pierre Bourdieu para analisar processos relacionados com patrimônio. Canclini

compreende que na própria lógica de transmissão do capital cultural17 reside o

principio mais poderoso de eficácia ideológica dessa espécie de capital. O capital

cultural possui um universo autônomo com suas próprias leis e que pode atuar de

forma material ou simbólica na condição de ser apropriado pelos agentes sociais e

utilizado como objeto de luta (seja no campo de preservação patrimonial, artístico ou

cientifico, por exemplo).

17

Capital cultural é um conceito criado por Bourdieu para explicar como a cultura, em uma sociedade

de classes, se transforma em uma espécie de moeda que as classes dominantes utilizam para

acentuar as diferenças. A cultura se transforma em um instrumento de dominação.

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85

Situando, assim, o conceito de patrimônio a esfera de ―reprodução social‖,

existe a imposição de um modelo hegemônico que massifica e aniquila

manifestações culturais consideradas de ―periferia‖, segundo Canclini. Posso citar

como exemplo de cultura periférica as próprias culturas ayahuasqueiras, englobando

também as culturas indígenas que fazem uso do chá. A discussão pautada pelos

antropólogos, afirma, em sua maioria, a necessidade da política pública de

patrimônio cultural seguir o contra fluxo do capitalismo. Ou seja, proteger e dar

meios para que culturas periféricas, mais fragilizadas pela indústria cultural ou

processos de massificação cultural, possam se legitimar e garantirem autonomia e

direitos preservados.

Os valores e significados atribuídos a determinado bem cultural devem

ser pensados em coletividade. Com a ampliação da noção de patrimônio, surgindo o

conceito de bem cultural a diversificação dos instrumentos de proteção e a

participação de novos atores e agentes, expandiu o âmbito do alcance dessa

política pública para além das tradicionais ações de proteção monumental que

visavam apenas à preservação de imóveis de origem aristocrática

Assim, a visão incorporada pela Constituição Federal de 1988 extrapola o

entendimento do patrimônio como apenas o bem material representado

pelos monumentos e obras de arte. Desde então, dimensões menos

tangíveis do patrimônio cultural ganham relevo, sendo este cada vez mais

compreendido como algo integrado aos processos, aos rituais e às

manifestações culturais que proporcionam significados e identidades aos

grupos sociais (CORÁ, 2014, p.1)

.As políticas de preservação monumentalistas deram espaço para o

surgimento dos bens imateriais na arena das políticas públicas de patrimônio.

Segundo Dos Santos (2011), política pública de patrimônio cultural necessita da

continua participação com esforços em longo prazo de apoio e cooperação da

população brasileira, pois a construção de um bem patrimonial que leva tempo, e é

uma construção simbólica que legitima sua existência. É necessário tempo e

passado para que haja memória. Não existe identidade sem memória.

Por sua vez, patrimônio é um legado que pode ser preservado, adquirido,

perdido ou transformado de uma geração para outra. Esses bens são legitimados

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pelo poder simbólico estatal, as leis, a jurisdição que têm como instrumento os

órgãos preservacionistas e as políticas públicas de Salvaguarda de bens materiais e

imateriais. O plano de salvaguarda indica de que forma o Estado e a sociedade

poderão agir, a partir daquele momento, para preservar as condições que permitem

a continuidade da manifestação cultural manifestada (IPHAN, 2007). O Instituto

Histórico Artístico Nacional (IPHAN) é o órgão publico responsável pela competência

legal de proteção patrimonial no Brasil, promulgado pelo Decreto-Lei n°25 e é a mais

antiga entidade oficial de preservação de bens culturais da América Latina. (MEC,

1980, p.25).

Hoje, um dos maiores desafios à gestão do patrimônio cultural é definir

conceitual e legalmente novas formas de acautelamento compatíveis com

sua abrangência, cada vez maior, e com o exercício dos direitos culturais do

cidadão, reconhecidos no texto da Constituição de 1988, particularmente no

artigo 215: ―O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos

culturais e acesso às fontes da cultura nacional (...)‖ e no artigo 216: ―O

Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o

patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,

tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e

preservação‖.(DOS SANTOS, 2010,p.1)

Com as questões levantadas acima, reflito como a política pública de

patrimônio cultural no Brasil lida com a abrangência da diversidade de práticas

culturais? É uma política pública que está em construção e que levanta cada vez

mais questões sobre a definição do conceito de cultura. Além disso, existem

desafios na garantia dos direitos culturais situados no artigo 215 e 216 da

constituição Federal, o IPHAN não abrange todas as necessidades sociais

apresentadas. Além disso, historicamente, o cuidado do patrimônio sempre esteve a

cargo da elite.

Devemos concordar com Byrne (1991: 275) quando afirma que é comum que

os grupos dominantes usem seu poder para promover seu próprio patrimônio,

minimizando ou mesmo negando a importância dos grupos subordinados, ao

forjar uma identidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de

separação entre os setores superiores e inferiores da sociedade não é, em

geral, tão marcado quanto no Brasil. Poderíamos dizer, assim, que a busca

da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais,

poderia bem ser interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores

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condições de vida, mas contra a própria lembrança do sofrimento secular dos

subalternos. (FUNARI, 2000, p.7)

A política pública de patrimônio cultural é elaborada através da

deliberação de diversos setores da sociedade, com a participação do Estado, da

sociedade civil e empresas. Sem dúvida é um campo de disputas que cabe aos

diversos setores da sociedade lutar como forma de resistência e preservação de sua

cultura. Um exemplo que define bem como o campo do patrimônio cultural pode ser

uma arena de disputas é o caso da roda de capoeira. A capoeira que já foi um

esporte criminalizado constitucionalmente em 1890 teve um longo caminho até

adquirir status de patrimônio cultural brasileiro. Através dessa política pública a

capoeira ganha proteção da lei, garantindo a preservação de sua prática, origens e

liberdade de expressão.

O processo de patrimonialização da capoeira veio através de muita luta

por parte dos capoeiristas, ao longo das décadas afim de superar a marginalização e

o preconceito, um dos atores que ganhou destaque nesse processo foi o Mestre

Bimba que com sua atuação visionária retirou o esporte da marginalidade levando

para as academias. Segundo Braga & Saldanha (2002) o Decreto nº 3.3551/2000, a

Lei nº 12.288/2000, a Lei nº 10.639/2003 e Lei Municipal nº 9.041/05 e a legislação

que se aplica à capoeira como manifestação cultural do Brasil, por entenderem ser

imprescindível a efetivação da proteção a manifestação cultural de tamanha

importância.

Implicaria o interesse em favorecer a emergência de uma consciência

política que absorvesse o presente como um tempo historicamente

constituído, no qual o passado é projetado como reflexão sobre a diferença, o

outro, o conflito e a resistência, elementos constituintes da ininterrupta luta

pelos direitos sociais. (RODRIGUES, 2001, p.11)

O Patrimônio cultural é, também, de natureza imaterial, ou seja, são

vestígios culturais de uma determinada comunidade. É a representação simbólica de

cultura e por isso é o resultado dos processos de seleção e de negociação dos

significados. O conceito de Patrimônio cultural é uma construção antropológica

pautada no processo de construção de imaginário, lutas e pressões sociais que se

utiliza de políticas públicas de patrimonialização para a preservação da memória e

da cultura de grupos sociais. Posso ilustrar como exemplo o Carimbó que é uma

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manifestação de dança oriunda do Norte do país que possui como raízes ancestrais

os povos indígenas, negros e ibéricos. Com a abertura do processo através do

pedido de patrimonialização oficializado pela irmandade Carimbó São Benedito e

outros grupos, foi iniciado o Inventário Nacional de Referencias Culturais (INRC).

Através desse Inventário realizou-se um levantamento de identificação e

documentação e, com o reconhecimento nacional, o Ministério da Cultura por meio

do IPHAN pôde desenvolver uma série de políticas públicas de salvaguarda deste

bem imaterial.

O patrimônio cultural, considerado em toda a amplitude e complexidade,

começa a se impor como um dos principais componentes no processo de

planejamento e ordenação da dinâmica de crescimento das cidades e como

um dos itens estratégicos na afirmação de identidades de grupos e

comunidades, transcendendo a ideia fundadora da nacionalidade em um

contexto de globalização (FONSECA, 1997, p.72).

Portanto, patrimônio cultural é um construto, uma ―fabricação social‖ de

identidades e valores culturais. Tendo em vista que existe uma relação entre

Patrimônio cultural e cultura, em que a primeira se relaciona com a segunda através

da transformação dos valores e dos elementos culturais, ocorre uma

interdependência nesse processo de construção social. Nessa interação, há um

processo de seleção e negociação de significados, pois nem tudo que é da cultura

pode ser patrimonializado, tudo dependerá da atuação dos agentes e do diálogo e

interesses envolvidos.

O sentido de patrimônio que uma sociedade cria dependerá das

necessidades, valores e do tipo de relação herdado pelos antepassados sobre

determinado patrimônio histórico. Muitas vezes a transmissão de um bem cultural

herdado de uma memoria coletiva se dá de forma intuitiva, ou seja, através de

atributos sentimentais, de carisma. Não é possível estabelecer de antemão um

padrão de legado que deverá se tornar um bem cultural. O processo de selecionar,

guardar, transmitir e intuir é uma necessidade ampla e coletiva que integra os grupos

sociais ao organizarem suas memórias.

Neste ponto queremos introduzir a ideia de como o património cultural pode

ser pensado como uma objectivação da cultura (Handler, 1988), isto é, um

processo de representação da cultura em objectos materiais ou imateriais

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de teor simbólico, através da descontextualização, transferência de sentidos

ou mudança de lógicas. A cultura passa assim a ser vista como uma coisa,

um objecto ou uma entidade. (PERÉZ, 2009,p.142)

Em um sentido, Patrimônio cultural tende a aparentar a ideia de algo

estático, uma obra finalizada e a cultura como algo em constante mudança. Apesar

das aparências, ambas estão em constante mudança, interligadas e em uma relação

de mútua dependência. Patrimônio cultural é uma expressão da cultura dos grupos

humanos que recupera a memória, seleciona bens culturais, ritualiza sociabilidades,

dar valor e visibilidade a repertórios culturais. O bem cultural torna-se um veículo de

transmissão de memória e de legados para o futuro.

De acordo com Canclini (1994), os paradigmas patrimonialistas que

incidem no processo de interpretação, recuperação e conservação do patrimônio

cultural são: Tradicionalista ou folclorista: bens materiais e imateriais que

representam a cultura popular pré-industrial; Construtivista: bens culturais frutos de

uma construção social. O patrimônio cultural como uma representação ideológica

das identidades; Patrimonialista: a preservação de bens do passado frente ao futuro;

Produtivista ou mercantilista: Patrimônio cultural é uma produção, uma mercadoria

que segue a lógica do mercado; Participacionista: a preservação e seleção deve

seguir o processo de seleção democrática através das necessidades sociais

existentes.

Patrimônio cultural é o debate sobre valores sociais que surge das lutas, é

uma política de caráter participacionista onde ocorre embate de forças da sociedade

que atuam na formação de identidades socioculturais. É um jogo de interesses e de

forças sociais entre os agentes. A política pública de patrimônio cultural não surge

sem o enfrentamento necessário que existe nas arenas sociais que disputam a

hegemonia e o poder. Pode-se afirmar que patrimônio cultural é um instrumento

estatal que fornece capital simbólico e cultural a determinados grupos sociais que

alcançam a legitimação por meio de uma política pública.

A compreensão de que as políticas públicas culturais estão em plena

construção, que se alteram e se moldam a partir das demandas sociais surge

quando observamos a política de patrimônio como um campo de disputa social. Por

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meio do conceito de Patrimônio cultural, compreende-se que há o processo da

institucionalização da cultura, ou seja, o Estado e seus instrumentos retém de

maneira simbólica aquele bem cultural através do processo patrimonial, como é o

caso do IPHAN e do Ministério da Cultura. Determinado bem que antes pertencia a

um determinado grupo, agora, de certo modo, também pertencerá ao Estado. É uma

estratégia instrumental e pragmática que traz legitimidade identitária a um grupo

social. Através do poderio estatal, os grupos e segmentos sociais lutam, construindo

um campo de ideologias e hegemonias culturais.

Si bien el patrimonio sirve para unificar a una nación, las desigualdades en

su formación y apropiación exigen estudiarlo también como espacio de

lucha material y simbólica entre las clases, las etnias y los grupos. Este

principio metodológico corresponde al carácter complejo de las sociedades

contemporáneas. En las comunidades arcaicas casi todos los miembros

compartían los mismos conocimientos, poseían creencias y gustos

semejantes, y tenían un acceso aproximadamente igual al capital cultural

común. En la actualidad, las diferencias regionales o sectoriales, originadas

por la heterogeneidad de experiencias y la división técnica y social del

trabajo, son utilizadas por las clases hegemónicas para obtener una

apropiación privilegiada del patrimonio común. Se consagran como

superiores ciertos barrios, objetos y saberes porque fueron generados por

los grupos dominantes, o porque éstos cuentan com la inforniación y

formación necesarias para comprenderlos y apreciarlos, es decir, para

controlarlos mejor. El patrimonio cultural sirve, así, como recurso para

reproducir las diferencias entre los grupos sociales y la hegemonía de

quienes logran un acceso preferente a la producción y distribución de los

bienes. Los sectores doniinantes no sólo definen cuáles bienes son

superiores y merecen ser conservados; también disponen de medios

económicos e intelectuales, tiempo de trabajo y de ocio, para imprimir a

esos bienes mayor calidad y refinamiento. (CANCLINI,1994 p. 2)

Canclini, acima faz um panorama dos elementos e agentes envolvidos

definindo a lógica dos jogos que envolvem a política pública de Patrimônio Cultural

nas sociedades modernas contemporâneas. A heterogeneidade que marca as

sociedades de classes através da divisão técnica e social do trabalho é usada pelas

classes hegemônicas para obter apropriação privilegiada de um bem cultural. A

política de patrimônio no Brasil fora marcada em seu início por ações

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preservacionistas oriundas das elites e para as elites. Essa situação foi se

modificando com a criação do IPHAN, além da participação de diversos agentes e

grupos sociais que participaram ativamente do processo como forma de obter

reconhecimento e proteção de determinado bem que por motivos de preconceito e

marginalização já foram criminalizadas e perseguidos como foi o caso do samba, da

capoeira e do carimbo, hoje patrimônios culturais brasileiros.

Preservar o que e para quem? Essa é uma pergunta que lança desafio e

críticas para a compreensão sócia histórica brasileira do conceito de Patrimônio

cultural. Sem dúvida são pertinentes os desafios no processo de patrimonialização

onde surgem portanto, contradições, conflitos e heterogeneidades. Na luta por

direitos sociais muitas vezes grupos se engajam e atuam junto as políticas públicas

no esforço de legitimação social e de contestação de exclusão (culturas de periferia).

A luta é também pela democratização do erudito e do popular, da inclusão de

minorias e a disponibilidade do acesso à cultura e educação em geral. Desafios

perenes da identidade brasileira.

4.4 PATRIMÔNIO CULTURAL: CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DE IDENTIDADES

O processo de patrimonialização é complexo, o que exige confronto entre

grupos sociais, órgãos responsáveis pelo processo, políticas públicas, etc. A

dialética, a relação e a negociação entre os agentes são cruciais para se definir o

que é ou não patrimônio cultural. Além disso, é uma construção política geradora de

legitimidade e representações de valor simbólico. Longe de ser um processo

harmonioso, Canclini destaca:

Como espacio de disputa económica, política y simbólica, el patrimonio está

atravesado por la acción de tres tipos de agentes: el sector privado, el

Estado y los movimentos sociales. Las contradicciones en el uso del

patrimonio tienen laforma que asume la interacción entre estos sectores en

cada periodo. (CANCLINI,1997, p.2)

Portanto, ao conceito de Patrimônio devemos ultrapassar o sentido

tradicional e reducionista que é dado sobre cultura e compreender os múltiplos

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fenômenos sociais e políticos que perpassam essa política pública, ou seja

ultrapassar a noção monumentalista e elitista e compreender que patrimônio cultural

também envolve as classes populares. Patrimônio cultural é uma ―idealização

construída‖ (DA SILVA, 2010), simbólica de uma identidade manufaturada pela

comunidade que no presente a idealiza como símbolo de um sentimento coletivo de

legitimação cultural.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o

"interior" e o "exterior"— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato

de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo

tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando- os "parte

de nós", contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os

lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade,

então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, "sutura") o sujeito à

estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles

habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e

predizíveis.(HALL, 2006,p.9)

O patrimônio cultural representa simbolicamente uma identidade, que

através dos bens imateriais patrimonializados ocorre uma transmissão cultural que

estreitam os vínculos com a história. Essa identificação com o passado fortalece os

vínculos identitários de uma coletividade, é criado um símbolo cultural como

aglutinador social de um determinado grupo que se assemelha entre si e ao mesmo

tempo busca se diferenciar dos demais. Nesse processo de patrimonialização ocorre

a objetificação cultural, processo que reúne fragmentos de tradições culturais, na

tentativa de representar a ideia de uma totalidade cultural. O bem cultural se torna

uma metáfora da ideia de totalidade cultural que certamente possui uma face

ideológica criada por agentes estatais e sociais. O passado dá um sentido de

identidade e pertencimento. Através do Patrimônio cultural, essa memória coletiva é

modelada pela materialização do legado cultural através do símbolo do Patrimônio, a

ponte que faz a ligação entre passado e presente.

Os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e

domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de

fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou

lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam

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práticas culturais coletivas). A Constituição Federal de 1988, em

seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao

reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e

imaterial. (IPHAN, 2015, p.7).

O desafio maior sobre preservação e transmissão de bens culturais

intangíveis incide sobre como transmitir a memória, o saber e o fazer frente àquilo

que é vivo e dinâmico. Como é possível assegurar a continuidade de uma prática

sociocultural sem aprisioná-la no tempo e espaço? Quais seriam os critérios a serem

aplicados a um bem intangível de natureza cambiante? Tais preocupações são a

tônica principal de regulamentações da UNESCO e de políticas públicas de diversos

países (MOTTA, 2004).

Desde os anos 90 a UNESCO tem sido o órgão internacional de

referência em políticas de salvaguarda das culturas tradicionais e populares e

aglutinador das discussões sobre as relações entre cultura e novas formas de

desenvolvimento. Com a emergência do neoliberalismo tem sido crescente a

preocupação da sociedade pelas politicas preservacionistas para a defesa e

promoção de valores como a diversidade cultural.

A conservação se refere à proteção das tradições vinculadas à cultura

tradicional e popular de seus portadores, segundo o entendimento de que

cada povo tem direitos sobre sua cultura e de que sua adesão a essa

cultura pode perder o vigor sob a influência da cultura industrializada

difundida pelos meios de comunicação de massa. Por isso, é necessário

adotar medidas para garantir do Estado o apoio econômico das tradições

vinculadas à cultura tradicional e popular, tanto no interior das comunidades

que as produzem quanto fora delas. (...) Deve-se sensibilizar a população

para a importância da cultura tradicional e popular como elemento da

identidade cultural. Para que se tome consciência do valor da cultura

tradicional e popular e da necessidade de conservá-la, é essencial proceder

a uma ampla difusão dos elementos que constituem esse patrimônio

cultural. Numa difusão desse tipo, contudo, deve-se evitar toda deformação

a fim de salvaguardar a integridade das tradições (UNESCO, 1989,p.4).

Como foi explicado na citação acima, as políticas de preservação de

patrimônios culturais devem seguir o contra fluxo do capitalismo e da indústria

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cultural, afim de preservar as culturas populares ou as chamadas culturas de

periferia. Isso só pode ser feito com o apoio do Estado, das empresas e de setores

da sociedade, além dos grupos sociais que desejam se afirmar através da

patrimonialização cultural. A UNESCO têm sido o órgão mundial em ampla

referência acerca de políticas de patrimônio ancoradas numa perspectiva

sociocultural que compreende preservar os direitos de minorias como os índios,

negros, quilombolas e comunidades tradicionais ao todo. Desde sua fundação em

1945, a UNESCO tem conferido à cultura um papel crucial presente no conteúdo

normativo de suas legislações sobre patrimônio mundial através de convenções que

influenciaram o IPHAN no Brasil como exemplo.

Com a convenção de 1972 da UNESCO houve o incentivo de

preservação dos bens culturais e naturais considerados significativos para a

Humanidade. Esta Convenção serviu de parâmetro para o IPHAN criar sua política e

instrumentos de preservação de bens imateriais no Brasil. Nessa ordem discursiva,

patrimônio passa a ser compreendido como o resultado de um complexo processo

de práticas sociais, que envolve diferentes agentes e agências, negociações e

construções culturais e o modo de compreensão e interpretação de processos

culturais.

4.5 PATRIMÔNIO IMATERIAL, CULTURA E GLOBALIZAÇÃO

Com o advento da globalização e os impactos vertiginosos ocorridos nas

últimas décadas, como o fluxo informacional e comunicacional, com o crescimento

dos mercados culturais mundiais e o processo de industrialização do simbólico, a

sensação é que estaríamos passando por um acelerado processo de

homogeneização e padronização cultural (MATTERLART, 2005). A globalização

cultural estaria, assim, potencializando antigas desigualdades entre países e

sobretudo entre culturas. A imposição de um modelo hegemônico de cultura põe em

risco os repertórios culturais de minorias mais frágeis perante a agressividade

mercadológica da indústria cultural.

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Os apelos à diversidade e à promoção das identidades locais foram

potencializados em territórios como a América Latina, contextualmente

marcados por uma grande heterogeneidade de línguas, crenças, costumes

e tradições. No continente latino-americano o temor generalizado de uma

unificação cultural fez com que as organizações profissionais de cultura, em

parceria com os movimentos sociais, assumissem a tarefa de pressionar os

governos locais e nacionais no sentido de realizar a defesa e promoção das

identidades locais e regionais. Manuel Castells destaca que a luta latino-

americana pelo direito à diversidade cultural deu ao tema da identidade,

nesse continente, um poder extremamente mobilizador e politicamente

muito eficaz (ALVES, 2000, p. 77).

Como Alves explica Patrimônio inscreve-se sobre a história e a memória,

muitas vezes adquirindo conceitos ambíguos. A perspectiva moderna sobre

Patrimônio (principalmente após o Renascimento, no final do século XVIII e início do

século XIX), trouxe a necessidade de preservação do passado, que implica o

exercício de poder que de forma ambígua sendo a tentativa de superação do velho e

de demarcação do tempo, um parâmetro para a noção de progresso e evolução.

A noção moderna sobre Patrimônio cultural vem acompanhada de

discussões a respeito da pós-modernidade e da necessidade de preservação de

culturas tradicionais, frente à rápida expansão da globalização e dos riscos que

advém do neoliberalismo. A deslocação das estruturas e os processos sociais

abalam as referencias dos indivíduos no mundo moderno (HALL, 2010). Por vezes o

processo de formação de identidades culturais tem se tornado provisório e

problemático exemplos. De fato, o que está em jogo em relação às identidades é a

tentativa de se criar estabilidade, frente às rápidas mudanças e à fragmentação

presente nas sociedades modernas.

Os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de

uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social.

Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas

na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças

características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram

para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em

termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais

íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (GIDDENS, 1990, p. 21).

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O homem moderno perde a referencia que antes as culturas tradicionais

lhe forneciam. O individuo se fragmenta, desloca-se, separa-se. Sua cultura é

híbrida, móvel e temporária. Nesse sentido, a instrumentalização do aparato estatal

é uma via, uma tentativa de aglutinar as referencias culturais em um símbolo: o bem

cultural. A política de Patrimônio certamente é um recurso utilizado pelas culturas

tradicionais e populares para cristalizar a sua identidade em meio ao rápido

processo de liquidez das relações sociais e culturais (BAUMAN, 2010).

No processo de globalização, que é desigual e tem sua própria geometria

de poder, as comunidades lutam e exercem embates para se preservarem em meio

à dominação global ocidental. Pensar nesse bem cultural a ser cultuado e fortalecido

nos remete ás vezes a um ideário romântico da pureza racial ou cultural que

determinado bem deve ter, porem deixemos as fantasias de lado, pois o objeto

patrimonializado certamente será marcado pelas rápidas mudanças do progresso

global. Além disso, os bens imateriais possuem natureza fluida, mutável, submetidos

à dinâmica cultural. Como é o caso da Ayahuasca. A bebida que outrora era apenas

conhecida pelos índios amazônicos, ao longo do tempo saiu do contexto rural da

população ribeirinha amazonense e alcançou os grandes centros e megalópoles no

Brasil e no mundo. Hoje a bebida é utilizada em rituais com influencias culturais das

mais diferentes proveniências.

Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas,

mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que

retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e

que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais

que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador

pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a

acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas "raízes" ou

desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse

pode ser um falso dilema. (HALL, 2010, p.24)

Apesar dos rápidos avanços da globalização no processo de hegemonia

cultural, esse quadro é relativo, sobretudo nos países subdesenvolvidos. As antigas

querelas identitárias, como as tradições populares de origem indígena e negra, se

mantem vivas e se multiplicam em identidades locais de inspiração religiosa, como é

o caso das doutrinas ayahuasqueiras do norte do país. As doutrinas ayahuasqueiras

que permaneceram até ás décadas de 70 e 80 praticamente isoladas na floresta

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amazônica e desconhecidas pelo restante do país hoje se encontram com filiais em

várias capitais brasileiras e em novos formatos. As chamadas doutrinas neo-

ayahuasqueiras surgidas nos centro urbanos são o resultado de uma grande mistura

das doutrinas tradicionais com novos elementos de outras religiões como o budismo,

a umbanda, o hinduísmo, espiritismo e até com a presença de elementos

terapêuticos, como é o caso do Caminho do Coração ao qual tratei no capítulo

anterior.

Nessa perspectiva, deixamos de lado a ideia do chamado ―folclore‖, para a

abordagem da manifestação cultura ―viva‖, atual, incluída no discurso das

mudanças oriundas do processo de globalização. Assim, tendo em vista que

as manifestações da cultura tradicional e popular estão sujeitas a constante

mudança, como a política de salvaguarda entende essa questão? Como

relacionar a ideia de preservação ao conceito de ―autenticidade‖? Como

entendem os protagonistas, ou seja, os indivíduos aos quais se direciona a

política de salvaguarda? Essas perguntas podem ser respondidas a partir

de uma reflexão sobre o papel dos próprios membros dos grupos e o

interesse em perpetuar as suas práticas, e também a partir de uma

discussão acerca do papel do Estado na formulação de uma política capaz

de acompanhar o caráter dinâmico dessas manifestações, tendo em vista

que ―a seleção e a avaliação de bens culturais imateriais devem estar

apoiados mais em noções de referência cultural e de continuidade histórica

do que no conceito de autenticidade que tradicionalmente estrutura o campo

da preservação‖ [SANT´ANNA, 2005, p.6] (DO CARMO, p.10, 2010).

Porém, a ideia de um multiculturalismo num cenário globalizado deve ser

compreendida em seus pormenores, pois a tendência é que culturas minoritárias ou

mais fracas sejam engolidas nesse processo. A ideia contemporânea é a de que

culturas estão em mutação e que a maioria das identidades modernas estão

entrando em colapso. Nesse sentido a difícil tarefa das políticas publicas de

patrimônio cultural é dar de conta de uma realidade complexa e dinâmica:

A natureza dos bens culturais imateriais é dinâmica e mutável, ou seja,

esses bens são permanentemente reiterados e recriados. Com isso, a ideia

de autenticidade, tal como tradicionalmente utilizada no campo do

patrimônio e relacionada à perenidade de uma forma, da matéria ou da

configuração geral do bem, não é aplicável a este universo. Os instrumentos

de identificação, reconhecimento e fomento do sistema de salvaguarda do

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patrimônio cultural imaterial devem, portanto, ser formulados e aplicados

tendo em conta essa dinâmica (SANT‘ ANNA, 2008, p.5).

A salvaguarda patrimonial é a tentativa da cultura local se sobrepor e

fazer parte dessa cultura global. A identidade passa a ser reconhecida como global e

pertencente ao avanço moderno fora de seu ―localismo‖.

A pós-modernidade é ainda a própria modernidade, porém, sem ilusões. A

modernidade está ligada diretamente aos novos paradigmas da sociedade,

agravada pelo fenômeno da globalização e das implicações desta, razão

pela qual também utilizamos a expressão liquidez, o que significaria falar

das novas tecnologias, da aceleração do tempo, da fragmentação do

espaço e das coletividades, provocando o crescimento do individualismo.

(BAUMAN, 2000, p.121)

A constituição do patrimônio histórico está sempre em processo. Nada

garante sua permanência ou imutabilidade. A continuidade histórica de determinado

bem cultural depende da existência de grupos interessados nesse cerne da questão.

A ação do Estado se torna um dialogo necessário para a intervenção dos atores

sociais.

O entendimento é de que, em se tratando de uma memória viva, a lei é um

recurso limitado, e o poder de polícia é um recurso inadequado. A ação do

poder público deve ser flexível e descentralizada, predominantemente

mediadora, na medida em que cada situação exigirá estratégias distintas de

preservação, que só serão eficazes se elaboradas e implementadas em

parceria com os interessados. (LONDRES, 2005,p. 11).

A estratégia de preservação como política pública deve ser elaborada em

parceria com os grupos sociais interessados. No caso do processo de

patrimonialização da Ayahuasca, por exemplo, essa tarefa se torna mais complexa

porque além das doutrinas ayahuasqueiras fazerem uso do chá, têm os grupos neo-

ayahuasqueiros nos centros urbanos e as diversas tribos indígenas que também

consagram a bebida no Norte do país. A estratégia nesse caso é a realização do

Inventário para se fazer o levantamento do uso ritual da Ayahuasca por esses

grupos, o que torna um desafio, levando em consideração todos os elementos

culturais que envolvem essa bebida amazônica.

Assim, diferentemente dos bens materiais como uma igreja ou um

monumento que deve ser tombado e preservado da maneira mais original

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possível, a salvaguarda dos bens de natureza imaterial deve propor

medidas que não caiam no estigma da Folclorização, ou seja, de uma

espécie de ―congelamento‖ dessas práticas culturais, mas que garantam

tratar seus valores simbólicos em meio às diversas transformações

decorrentes da contemporaneidade. Nesse sentido, os saberes e fazeres

das manifestações culturais não devem ser vistos como uma coisa

―engessada‖, esperando para ser preservados ou resgatados e sim como

um processo cultural em movimento (DO CARMO, 2010, p.12).

O compromisso da preservação deve ser reiterado geração após geração.

A preservação só faz sentido se a sociedade estiver se relacionando com esse

compromisso. A experiência de patrimônio não deve se limitar apenas a

conservação de bens culturais ou seguir a logica consumista de viés global, mas se

tornar constantemente em experiências ricas e transformadoras. Esse é um desafio

sobretudo no Brasil, devido a grande desigualdade, ao elitismo patrimonial, ao

analfabetismo cultural por parte da população e ainda às falhas no processo de

salvaguarda da diversidade cultural brasileira. As mudanças que ocorrem na

sociedade devem ser acompanhadas por atualizações das políticas públicas nesse

setor.

Un patrimonio reformulado que considere sus usos sociales, no desde una

mera actitud defensiva, de simple rescate, sino con una visión más compleja

de cómo la sociedad se apropia de su historia, puede involucrar a nuevos

sectores. No tiene porqué reducirse a un asunto de los especialistas en el

pasado: interesa a los funcionarios y profesionales ocupados en construir el

presente, a los indígenas, campesinos, migrantes y a todos los sectores

cuya identidad suele ser trastocada por los usos hegemónicos de la cultura.

En la tiledida en que nuestro estudio y promoción del patrimonio asuma los

conflictos que lo acompañan, puede contribuir al afianzamiento de la nación,

pero ya no como algo abstracto, sino como lo que une y cohesiona en un

proyecto histórico solidário a los grupos sociales preocupados por la forma

en que habitan su espacio y conquistan su calidad de vida. (CANCLINI,

1999, p.9).

Patrimônio é uma política pública que está em constante discussão. Nesse

segundo capítulo compreendemos seu conceito e origem e aprofundaremos no próximo

capítulo a análise sobre o pedido de patrimonialização da Ayahuasca. A possível

patrimonialização da bebida Ayahuasca é usada como mecanismo simbólico de

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legitimação social pelas doutrinas. Um meio que serve de ponte para a integração cultural

do segmento social ayahuasqueiro. Esse construto visa criar representações coletivas e

simbólicas através do Estado, representando uma das muitas lutas cambiantes da

realidade social. A sociedade moderna é moldada pelo poder simbólico que cria relações

de dominação estatal, de classe, de cultura, etc. É esse movimento de lutas e de poderes

que cria e recria os padrões de modelos vigentes ou as rupturas dos paradigmas sociais

da realidade contemporânea no Brasil.

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101

5 O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA NO BRASIL

No capítulo 1 tratei sobre os aspectos legais da Ayahuasca dando um panorama

desde a década de 80 até os dias atuais. Neste capítulo, apresento um quadro mais

detalhado sobre normas, pareceres, situação jurídica e o processo de

patrimonialização da Ayahuasca.

5.1 AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE AYAHUASCA

Em 1985 o cipó Banisteropis Caapi, um dos componentes da bebida

Ayahuasca, se encontrava na lista de plantas proibidas pela Divisão Nacional de

Medicamentos (DIMED). Em 31 de janeiro de 1986 o CONFEN (Conselho Federal

de Entorpecentes) que através do Grupo de Trabalho (GT) instituído pela Resolução

de número 04/85 aprovou por unanimidade a suspensão da Banisteropis caapi da

supracitada lista do DIMED. O GT também considerou que:

O referido uso ritual do ―Daime‖ há muitas décadas vem sendo feito, sem

que tenha redundado em qualquer prejuízo social conhecido‖ e que

segundo o relatório antes referido, ―padrões morais e éticos de

comportamento em tudo semelhantes aos existentes e recomendados na

nossa sociedade, por vezes até de modo bastante rígido, são observados

nas diversas seitas (CONFEN, GT DA AYAHUASCA, 1986).

Além disso, segundo o documento a Resolução Número 04/85, atenta aos

múltiplos aspectos envolvidos no uso ritual de substâncias derivadas de espécies

vegetais, por comunidades religiosas ou indígenas, tais como os sociológicos,

antropológicos, químicos, médicos e da saúde, em geral, determina o exame de

todos esses aspectos, que devem ser, assim, levados em conta em decisões sobre

questões relativas ao uso daquelas espécies vegetais. Ao final o CONFEN se

compromete em voltar atrás na decisão caso sejam apurados casos em que haja

mau uso do chá.

Este documento é um dos que representam o inicio do processo de

legalização e tratamento mais atualizado sobre o chá Ayahuasca e suas plantas

componentes. O CONFEN com a Resolução de número 6, de 4 de feveireiro de

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1986 resolve dar continuidade ao Grupo de Trabalho para concluir os estudos dos

aspectos da Resolução 04/85 e decidir em definitivo sobre a listagem das plantas

Banisteropis caapi e Psycotria Viridis. No Relatório final do Grupo de Trabalho em 26

de agosto de 1987, redigido pelo jurista Domingos Bernardo de Sá foram detalhadas

informações a respeito da Colônia Cinco Mil, descrevendo os rituais, o preparo da

bebida, a convivência e a cosmologia da doutrina e da comunidade, a história do

Padrinho Sebastão Mota de Melo e de sua esposa Madrinha Peregrina. De acordo

com esse Relatório, indagações foram feitas a respeito da Ayahuasca enquanto

―alucinógeno‖ e as manifestações ―culturais‖ associadas ao seu uso.

Estes quase dois anos durante os quais a ―Ayahuasca‖ foi objeto das

preocupações do Grupo de Trabalho, em que foram mantidos inúmeros

contatos com usuários dos mais diversos estratos sociais, como no rio de

Janeiro, na capital da República ou no interior da selva amazônica,

numerosas indagações foram formuladas, mas que na realidade,

implicavam já um juízo prévio e condenatório. Essas indagações gravitaram,

mais frequentemente, em torno de duas palavras, ―alucinógeno‖ e ―culturas‖.

A ―Ayahuasca‖ é ―alucinógeno‖? É possível admitir seu uso pelo homem da

cidade, tendo em vista as diferentes ―culturas‖, urbana e rural?

(RELATÓRIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987, p.29).

Ainda consta no Relatório que a busca empreendida pelo usuários da

Ayahuasca não se assemelha à alucinação, desvario ou insanidade mental. De

acordo com Bernardo de Sá, jurista responsável pelo relatório final do CONFEN,

existe um projeto em comum das instituições ayahuasqueiras associado à busca do

sagrado e do autoconhecimento. Para o jurista não cabe ao GT definir se as formas

empregadas pelas instituições na busca do sagrado são devaneios ou fantasias.

Existe ainda, no Relatório, a preocupação com relação à expansão da Ayahuasca

em âmbito nacional, compreendendo que existem possíveis impactos e

consequencias da inserção do chá nas metrópoles brasileiras. A problematização

gira em torno das possíveis consequências que seriam a proliferação desenfreada

de usuários e supostos riscos da utilização da Ayahuasca fora do seu contexto de

origem.

De acordo com o parecer da antropóloga Regina Abreu presente no

Relatório Final do CONFEN de 1987, a inserção das instituições ayahuasqueiras no

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meio urbano faz parte de um legitimo processo social de expansão e manifestação

de identidades religiosas:

[...] De tudo resulta que essas comunidades, do campo ou da cidade, que

adotam a Doutrina do Santo Daime, podem parecer, aos olhos de muitos,

grupamentos exóticos, mas a convivência com essa diversidade somente

poderá ser enriquecedora para os individuos e para a sociedade como um

todo (RELATORIO FINAL DO GT, CONFEN, 1987, p.32).

Na conclusão do Relatório do CONFEN é perceptivel a visão que o

documento tem em encarar a diversidade cultural como uma chave política para

transformar a preocupação quanto à expansão da Ayahuasca em um processo

legítimo. O reconhecimento desse fenômeno propõe uma leitura da expansão do

consumo da Ayahuasca como parte de um processo chave da diversificação cultural

brasileira.

Em novembro de 1991 é emitida uma Carta de principios para o uso da

Ayahuasca redigida pelos grupos que fazem uso do chá com apoio do CONFEN

assinalando principios para o preparo e uso do chá, o respeito aos rituais religiosos,

sobre cuidados, restrições, a difusão de informações e a regulamentaçao legal. Na

Carta as entidades ayahuasqueiras comprometem-se a não comercializar

Ayahuasca sendo seus custos de produção, transporte, estocagem e distribuição

responsabilidades de cada Centro ayahuasqueiro. As entidades18 signatárias devem

evitar a prática do curandeirismo e será vedado terminantemente a participação de

pessoas ao ritual e ingestão do chá caso apresentem sintomas de embriagues ou de

consumo de outras substâncias psicoativas.

Através da Ata da 5° reunião extraordinária do CONFEN realizada em

dois de junho de 1992 e publicado no Diário Oficial, Seção 1, N.º: 11467, em 24 de

agosto de 1992, o conselheiro Bernardo de Sá proferiu parecer sobre o chá

Ayahuasca. Segundo Bernardo de Sá, as instituições ayahuasqueiras seguiram a

risca a Carta de princípios emitida um ano antes, em 1991. De acordo com o jurista,

na Ata de 1992 emitida pelo CONFEN:

[...] Submeto à soberana decisão do Plenário, agora as seguintes

recomendações: a – a Ayahuasca, cujos principais nomes brasileiros são

18

As entidades envolvidas na época foram os três troncos fundadores: Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal;

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"Santo Daime" e "Vegetal", e as espécies vegetais que a integram o

"Banisteriopsis Caapi", vulgarmente chamado de cipó , jagube ou mariri e a

"Psychotria Viridis", conhecida como folha, rainha ou chacrona, devem

permanecer excluídos das listas da DIMED ou do órgão que tenha

responsabilidade de cumprir o que determina o art.36 da Lei n.º 6.368, de

21.10.1976, atendida, assim, a análise multidisciplinar constante do

Relatório Final, de setembro de 1987 e do presente parecer; b – poderá ser

objeto de reexame o uso legitimo da Ayahuasca, aqui reconhecido, bem

como aliás de qualquer outra substância com atuação no Sistema Nervoso

Central, desde que com base em fatos novos, cujos aspectos substantivos

ou essenciais não tenham sido, ainda, apreciados pelo CONFEN, tendo em

vista que o acatamento a decisões relativas a matérias sobre as quais já se

haja pronunciado o Colegiado, é fator de estabilidade das relações no

âmbito da própria Administração Pública e perante os interesse individuais

envolvidos; c – deve ser organizada comissão mista integrada pelo

CONFEN que poderá convidar assessores, e por representantes de

entidades que observam o uso da Ayahuasca em seus ritos com o objetivo

de consolidar os princípios e regras básicas, comuns às diversas entidades

referidas, para fins entre outros, de acompanhamento da Administração

Pública; d – fazem parte integrante e complementar do presente parecer, o

relatório final e os documentos que os instruíram, apreciados pelo CONFEN

em sua reunião plenária e setembro de 1997 e que ora são reapresentados,

por cópia, para os arquivos do CONFEN e atendimento aos eventuais

pedidos de esclarecimento formulados pelos interessados em geral (ATA

n°5 CONFEN 1992).

No relatório acima, que contou com a assessoria de pesquisadores nas

áreas de antropologia, psiquiatria, e psicofarmacologia, Bernardo de Sá argumenta

que o uso do chá é quase que exclusivamente social sempre uma sequencia de atos

ou ritos a observar-se (PARECER CONFEN, 1992, p.16). Ainda no parecer de 1992,

Bernardo de Sá utiliza a análise do assessor Edward MacRae sobre a questão:

A propósito é oportuno verificar o que diz MacRae: ―Quanto ao interesse

cultural da ayahuasca ter um uso ritual urbano no Brasil há quase 70 anos,

lembra-se que esse é aproximadamente o mesmo tempo de existência da

umbanda e que, assim como no caso dela, o uso religioso do chá psicoativo

ensejou a criação de instituições que provem a muitas pessoas os

arcabouços éticos, sociais e culturais, em torno dos quais construíram suas

vidas. Os diversos estudos antropológicos e históricos realizados sobre

esse uso da bebida tem ressaltado a conduta pacifica e ordeira dos adeptos

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das diversas seitas, cujos valores básicos coincidem com aqueles

considerados emblemáticos das sociedades cristãs ocidentais‖ (PARECER

CONFEN, 1992, p.12-13).

Segundo Antunes (2015) a literatura antropológica encara o fenômeno do

uso da Ayahuasca como manifestação religiosa socialmente integradora. Esse

pensamento se tornou presente nas políticas públicas o que foi de fundamental

importância para a não proibição da bebida no país. Ainda de acordo com o autor a

atuação de pesquisadores e a produção acadêmica sobre a Ayahuasca definiram as

primeiras agendas das políticas públicas voltadas ao uso e controle da Ayahuasca

no Brasil.

Em 31 de dezembro de 2002, o Conselho Nacional de Políticas sobre

Drogas (CONAD) através da Resolução n°26, reexamina a questão da

regulamentação da Ayahuasca para uso religioso. Segundo a Resolução, que parte

do principio que:

O uso ritualístico do ‗chá Ayahuasca‘ constitui-se em manifestação cultural

e religiosa de há muito reconhecida pela sociedade brasileira e que a

mesma trás ―proposta de medidas de controle social e outras sugestões que

se façam oportunas, haja vista a necessidade de trazer para a prática pela

sociedade, dentro do princípio da responsabilidade compartilhada, normas e

procedimentos que preservem manifestação cultural religiosa consagrada,

observados os objetivos e normas estabelecidos pela Política Nacional

Antidrogas e pelos diplomas legais pertinentes (RESOLUÇÃO N.26 DO

CONAD, 2002).

De acordo com Antunes (2015), a Resolução de 2002 acabou não

acontecendo na época devido à mesma ter sido emitida no último dia de

administração do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Em

março de 2004, o CONAD solicitou à Câmara de Assessoramento Técnico-Científico

(CATC) do CONFEN a elaboração de um novo estudo. Segundo MacRae (2008), a

CATC realizou novas discussões a respeito da Ayahuasca contando novamente com

a participação dos antropólogos Edward MacRae, Sandra Lucia Goulart e Beatriz

Caiuby Labate. As discussões deram como resultado final a Resolução de n°5 do

CONAD, de 4 de novembro de 2004.

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O parecer da CATC reconheceu juridicamente a legitimidade do uso

religioso da Ayahuasca e que ―o processo de legitimação iniciou-se, a mais de

dezoito anos, com a suspensão provisória das espécies vegetais que compõem a

lista da Divisão de Medicamentos (DIMED) [...]”. Segundo o documento, a decisão

veio após uma análise multidisciplinar e que a decisão de garantir o direito

constitucional ao exercício de culto deve ser alicerçada sobre a base de uma gama

de informações prestada por profissionais de diversas áreas do conhecimento. Ao

final, a Resolução indica a formação de um Grupo Multidisciplinar de Trabalho

(GMT) para: empreender um levantamento e acompanhamento do uso religioso da

Ayahuasca, pesquisar sobre a utilização terapêutica em caráter experimental;

promover o cadastro nacional de todas as instituições que adotam o uso do chá

Ayahuasca; e elaborar um documento que traduza a deontologia19 do uso da

Ayahuasca, como forma de prevenir seu uso inadequado. (RESOLUÇÃO N. 5,

CONAD, 2004).

O GMT incluiu pesquisadores das áreas de antropologia, serviço social,

psicologia, farmacologia, bioquímica, psiquatria e direito, alem de repesentantes das

instituições ayahuasqueiras. Em um seminário organizado pelo CONAD, realizado

em março de 2006 em Rio Branco, estado do Acre, foram escolhidos os

representantes das entidades ayahuasqueiras. Os pesquisadores componentes do

GMT foram os que já haviam prestado assessoria ao CONFEN e CONAD

anteriormente, contando com a presença dos estudiosos que participaram da

elaboração de relatórios do CONFEN sobre Ayahuasca (ANTUNES, 2015).

De acordo com o Relatório Final do GMT Ayahuasca de 2006, foram

aprovados enquanto principios deontologicos da Ayahuasca: o uso restrito aos

rituais religiosos, sendo vetado seu uso associado a substâncias psicoativas ilícitas;

proibição da comercialização da Ayahuasca; a busca pela autossustentabilidade por

parte das entidades ayahuasqueiras; evitar o oferecimento de pacotes turisticos

associados à Ayahuasca; não fazer propaganda; a recomendação para os grupos se

constituirem enquanto organizações juridicas; controle sobre o ingresso de novos

adeptos; manter ficha cadastral dos participantes; manter a ética e o respeito mútuo

nas instituições. Ao final do Relatório o documento afirma:

19

Deveres morais e éticos associados ao uso do chá Ayahuasca.

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Considerando, por fim, que o uso ritualistico religioso da Ayahuasca, há

muito reconhecido como prática legítima, constitui-se manifestação cultural

indissociável de identidade das populações tradicionais da Amazônia e de

parte da população urbana do país, cabendo ao Estado não só garantir o

pleno exercicio desse direito à manifestação cultural, mas também protegê-

la por quaisquer meios de acautelamento e prevenção [...] (RELATÓRIO

FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.13).

Além disso, o mesmo documento destaca para a questão de ―publicidade

da Ayahuasca‖ que tem sido alvo de deturpações e abusos, principalmente na

internet, e estabeleceu que ―o uso ritual responsável é incompatível com a

publicidade e a oferta de promessas de curas milagrosas, de transformações

pessoais arrebatadoras [...]‖ (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.9). O

relatório adverte para que as entidades tratem do tema com discrição quanto aos

efeitos da bebida. O documento reconhece o carater religioso do uso da Ayahuasca

desde a coleta até o preparo e ministração do chá tratando-se de ―ato de fé e não de

comércio‖. De modo que o consumo da Ayahusca para fins lucrativos é incompativel

com seu uso em contexto religioso, decidindo também dar ampla publicidade ao

relatorio. Merece destaque no documento a proibição do turismo da Ayahuasca onde

se orienta que as entidades adotem uma ―prática religiosa responsável‖, evitando

que venha a se transformar em ―mercantilismo de substância psicoativa,

enriquecendo pessoas ou grupos, que encontram argumento da fé apenas o escudo

para práticas inadequadas‖ (RELATORIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.9).

O documento ainda ressalva que a prática de curandeirismo é proibida no

Brasil, recomendando que as propriedades curativas e medicinais da Ayahuasca

devem ser compreendidas do ponto de vista espiritual evitando-se a propaganda

que possa induzir a opinião publica e autoridades a equívocos. Nas proposições o

relatório recomenda ―fomentar pesquisas científicas abrangendo as seguintes áreas:

farmacologia, bioquímica, clínica, psicologia, antropologia e sociologia, incentivando

a multidisciplinaridade‖ (RELATÓRIO FINAL GMT AYAHUASCA, 2006, p.9).

Por sua vez, em 25 de janeiro de 2010, o CONAD aprovou a Resolução

N°1. Segundo Antunes (2015), a Resolução de N°1 dispõe acerca da observância,

pelos orgãos da administração pública, das decisões do Conselho sobre normas e

os procedimentos compativeis com o uso religioso da Ayahuasca, bem como sobre

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os princípios deontológicos. A Resolução determina a publicação na íntegra do

Relatorio Final do Grupo Multidisciplinar de trabalho, dar publicidade ao mesmo e

encaminhá-lo aos conselheiros do CONAD e para as instituições que fazem uso do

chá (RESOLUÇÃO N.1, CONAD, 2010).

A partir desse panorama sobre a elaboração de politicas publicas acerca da

Ayahuasca, depreende-se o papel estratégico da participação de

pesquisadores especialistas no tema, seja prestando assessoria os órgãos

publicos seja inserindo-se progressivamente nas comissoes e nos grupos

de traalho constituidos com o objetivo de investigar questoes concernentes

à bebida e seus usos [...] É possível afirmar, portanto, que a atuação de

intelectuais foi fundamental não apenas para dar visiblidade ao tema, mas

também para modelar a percepção publica dos fenomenos em disputa. Tal

atuação [...] contribuiu para conferir legitimidade legal às instituições

ayahuasqueiras ao reconstruir as praticas de cosumo do chá enquanto

manifestação religiosa e cultural tradicional de origem amazonica. Mas

também contribuiu para definir o que pode ser entendido como uso ritual em

contraposição ao uso mercantil da droga para delinear os parametros

aceitaveis de regulamentação dessas religiões por parte do Estado tais

como a proibição da publicidade e de modos de produção não artesanais da

bebida (ANTUNES, 2015, p. 171-172).

Enquanto os primeiros relatórios do CONFEN, na década de 80, focavam

na defesa da legitimidade do uso da Ayahuasca enquanto manifestação religiosa e

cultural, a partir dos anos 2000 as resoluções do CONAD param de associar o uso

da Ayahuasca à tematica das drogas. Segundo Antunes (2015), a legitimidade do

uso religioso da Ayahuasca se tornou um consenso bem estabelecido. A temática

agora avança para debater quais seriam os mecanismos sociais e legais

necessários para o ―uso responsável da Ayahuasca‖, entendido como uso ritual e

sem fins lucrativos. O autor afirma que essa preocupação culminou para o

estabelecimento dos principios deontológicos da Ayahuasca a fim de impedir o uso

da bebida de de forma descontextualizada que ameaçasse a legitimidade

conquistada por parte das entidades ayahuasqueiras. Conforme a citação de

Antunes (2015), a atuação de intelectuais foi fundamental para dar visibilidade ao

tema, contribuindo no processo de legitimação social das comunidades

ayahuasqueiras. Essa atuação também contribuiu para a mudança de conceito

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associado ao uso da Ayahuasca que sai da esfera de políticas de drogas e passa

gradativamente para o de políticas públicas de patrimonio cultural.

5.2 AYAHUASCA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL DA CULTURA BRASILEIRA

Em 2010 durante o Seminário ―Culturas Tradicionais da Ayahuasca:

Construindo Políticas Públicas para o Acre‖, a Assembléia Legislativa do Acre

homenageou os três fundadores das organizações religiosas originais e tradicionais

da Ayahuasca no Brasil: Centro de Iluminação Cristã de Alto Santo, Centro Espírita e

Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz e União do Vegetal. Por susgestão do

deputado Móises Diniz foram concedidos títulos de cidadãos acreanos aos mestres

Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos e José Gabriel da Costa.

Em setembro de 2006 as instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz

Universal de Alto Santo foram tombadas como Patrimonio histórico e cultural do

Acre, através do Decreto do governador Jorge Ney Viana Macedos Neves e do

Prefeito do Rio Branco Raimundo Angelim Vasconcelos. Dois anos depois, em 2008,

os tres troncos fundadores entraram com um pedido de reconhecimento da

Ayahuasca como Patrimonio cultural imaterial brasileiro junto ao Instituo do

Patrimonio Histórico e Artistico Nacional (IPHAN). Segundo Labate (2010) esse

processo representa uma importante conquista na história dos grupos

ayahuasqueiros, que tem sido, desde sua origem, frequentemente perseguidos. A

relação desses grupos com o poder público do Acre e a transição da Ayahuasca do

estigma de droga perigosa para status de patrimonio cultural regional e nacional

representam uma importante transformação, e muito pouco foi escrito sobre isso até

o momento.

Esse pedido empreendido em 2008, realizado pelos três troncos

fundadores a partir de um diálogo com as fundações culturais do estado do Acre e

do municipio do Rio Branco por meio do IPHAN, representa segundo Antunes

(2015), um dos principais desdobramentos recentes da controvérsia pública sobre

Ayahuasca no Brasil. De acordo com a solicitação feita ao IPHAN:

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[...] a atuação destes três mestres fundadores - Irineu, Daniel e Gabriel –

estabeleceu as bases doutrinárias de uma nova tradição religiosa,

sincreticamente brasileira e tipicamente amazônica, que possibilitou a

formação de comunidades organizadas em torno do uso ritual da

Ayahuasca e que passaram a ter importante papel (político, social e cultural)

na própria formação da sociedade brasileira na Amazônia Ocidental.

O conhecimento espiritual destas doutrinas tem sido transmitido de geração

a geração e mantido por diversas tradições culturais através de um

sincretismo religioso caracteristicamente amazônico, o que implica numa

relação essencialmente harmônica com a natureza e estabelece um

sentimento de identidade e continuidade, garantindo assim o respeito à

diversidade étnico-cultural e à criatividade humana. Com isso as Doutrinas

do Daime/Vegetal, como estabelecidas por seus mestres fundadores,

tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo assim

receber o reconhecimento como patrimônio cultural de nosso país.

Com base nas informações acima relacionadas podemos afirmar que a

utilização ritual da Ayahuasca em doutrinas religiosas preenche os quesitos

que a caracterizam como patrimônio imaterial, considerado como ―práticas,

representações, expressões, conhecimentos e técnicas que comunidades

ou grupos reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural‖

(PEDIDO DE TOMBAMENTO DA AYAHUASCA, 2008, p.1).

Como é possível observar na transcrição da solicitação, o documento

afirma que o uso ritual da Ayahuasca em contexto religioso preenche os quesitos

que caracterizam a noção de patrimônio imaterial. Em novembro de 2011, o IPHAN

deu inicio a avaliação do pedido, abrindo uma licitação para que fosse realizado um

levantamento preliminar através do Inventário Nacional de Referências Culturais

(INRC) sobre os bens e as referências culturais associados ao uso do chá no Acre

(ANTUNES, 2015).

Não obstante, o processo de reconhecimento ainda encontrar-se em

andamento, constata-se que, apesar das divergências e disputas entre

entidades ayahuasqueiras com relação ás práticas e instituições que devem

ser contempladas pela categoria de patrimônio cultural, a discussão esta

pautada de antemão em uma categorização previa dos fenômenos em

questão enquanto manifestação religiosa e cultural legitima. Tais

desdobramentos, os quais só foram possíveis apos décadas de discussões

e de desenvolvimento de politicas publicas, possibilitam atestar a

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consolidação da associação Ayahuasca/religião/cultura na atual

configuração da controvérsia publica no Brasil (ANTUNES, 2015, p. 175).

Por sua vez Goulart (2016) destaca que os três troncos fundadores já

vinham desenvolvendo várias iniciativas em conjunto para a ampliação do diálogo

sobre a Ayahuasca junto ao poder público e em especial com o Governo do Acre,

desde a década de noventa. A designação de cultura ayahuasqueira se tornou

estratégia fundamental para a formalização do pedido de patrimonialização do uso

ritual da Ayahuasca para a obtenção de legitimidade e reconhecimento público.

A designação ―comunidades tradicionais da Ayahuasca‖ que surge, pela

primeira vez, na carta de solicitação da patrimonialização do uso da Ayahuasca,

levanta algumas questões polêmicas em torno desse conceito. Em um primeiro

momento os três troncos fundantes se autodesignaram comunidades tradicionais

ayahuasqueiras propondo a distinção das comunidades que fazem o uso do chá em

três campos: ―os originários‖(correspondendo aos povos indígenas), ―os

tradicionais‖(os três troncos fundadores: Alto Santo, Barquinha e UDV) e ―os

ecléticos‖ (demais comunidades Ayahuasqueiras, como o CEFLURIS e o Caminho

do Coração por exemplo). Goulart (2016) explica que a noção de ―tradicional‖

associada aos três troncos resulta em parte de um antigo processo de contrastes e

disputas vividos com o CEFLURIS. Enquanto o CICLU Alto Santo, Barquinha e UDV

sempre tenderam a aproximação e ao fortalecimento de alianças, por outro lado as

mesmas instituições tenderam a se distanciar do CEFLURIS.

Labate (2012) explica que a origem do acirramento se deu com a cisão

entre CICLU Alto Santo e CEFLURIS e pelo fato da comunidade criada por Padrinho

Sebastião aceitar viajantes e pessoas de fora e expressar maior tolerância ao uso de

outras plantas psicoativas (cannabis sativa) além da Ayahuasca. No Seminário

realizado em Rio Branco no ano de 2010 representantes dos grupos ayahuasqueiros

questionaram as categorizações ―tradicionais‖ e ―ecléticas‖. Alex Polari, liderança do

CEFLURIS, enviou uma carta ao Seminário onde destaca que as religiões

ayahuasqueiras brasileiras são apenas ―parte de um vasto universo‖ e antes de tudo

tributárias aos povos indígenas das Américas. Polari afirma que ―mais do que nós

[comunidades ayahuasqueiras], podem ser considerados [os povos indígenas] os

detentores deste patrimônio sagrado‖ (NEVES E SOUZA, 2010, p. 43-45)

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Goulart (2016) afirma que o CEFLURIS destaca a diversidade das

tradições do uso da Ayahuasca e critica a postura dos três troncos em marcar a

distinção e peculiaridade da tradição do uso da Ayahuasca como própria e exclusiva

deles. Alex Polari prossegue argumentando em sua carta que os três troncos ao se

colocarem como ―os mais tradicionais‖ se desvinculam do uso indígena e coloca-os

de forma simplista no campo dos ―originários‖. Embora o CEFLURIS se considere

―uma derivação legítima e autêntica do tronco do Mestre Irineu‖, a instituição não é

incluída pelo outros três troncos no campo ―tradicional‖. As categorias ―tradicional‖ e

―eclético‖ foram construídas numa tentativa de se lidar com as ―rivalidades‖

existentes entre os três troncos e demais grupos ayahuasqueiros.

Nas atuais discussões sobre a inserção do tema da Ayahuasca em politicas

públicas culturais, as noções de uso religioso e uso ritual também

aparecem. Entretanto, essas noções são utilizadas, agora, ao lado de

outras, que vêm ganhando mais evidência. Temos como ―tradição‖,

―comunidades tradicionais da Ayahuasca‖, ―culturas ayahuasqueiras‖ se

tornam mais frequentes entre os representantes e porta-vozes destes

grupos, e se apresentam a estes como mais adequados para a construção

de um novo modo de reconhecimento público, relacionado não mais ao

debate sobre drogas e sim às reflexões sobre patrimônio cultural

(GOULART, 2016, p.134-135).

Os conceitos de comunidades tradicionais da Ayahuasca, culturas

ayahuasqueiras insere o uso religioso da Ayahuasca nas discussões de políticas

públicas culturais. De acordo com Santos (2010) o IPHAN recusou o pedido de

registro do uso ritual da Ayahuasca como patrimônio imaterial alegando que

comidas, bebidas crenças não são bens passiveis de registro. O IPHAN optou pela

realização do INRC para levantamento sobre os bens culturais associados ao uso

ritual do chá. Segundo Goulart (2016), antes da realização do INRC da Ayahuasca

vários grupos ayahuasqueiros realizaram o I Encontro da Diversidade Cultural

Ayahuasqueira, No Rio Branco em 2011. O objetivo do evento era debater o registro

do uso da Ayahuasca como patrimônio cultural. Participaram representantes dos três

troncos fundadores, do IPHAN e do Ministério da Cultura. Alex Polari enviou uma

segunda carta ao evento argumentando que o pedido de registro não incluía as

nações indígenas e nem outras religiões ayahuasqueiras igualmente relevantes e

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tradicionais. Nesta segunda carta Polari enfatiza a necessidade de se criarem

instrumentos de proteção da cultura da Ayahuasca em toda sua diversidade. A carta

que foi lida no evento influenciou os representantes do IPHAN e por isso os

representantes dos grupos indígenas foram convidados a participar das reuniões do

IPHAN para a realização do INRC da Ayahuasca.

A participação de indígenas foi bem mais difícil de ser incorporada na

realização do Inventário do IPHAN. Fatores como o acesso a comunidades

indígenas, a sua localização, a variedade e complexidade cultural destes

grupos conduziram ao entendimento de que o levantamento sobre as

referencias culturais dos usos indígenas da Ayahuasca deveria ser

empreendido num inventário particular, com apoio de uma equipe

especializada na área etnológica. Foi essa sugestão que a equipe que

realizou o Inventário Nacional de Referencias Culturais do uso ritual da

Ayahuasca encaminhou ao IPHAN (GOULART, 2010, p.139).

O INRC da Ayahuasca foi dado início em 2008 fazendo um levantamento

preliminar sobre as referências culturais que envolvem o uso da Ayahuasca,

sobretudo na região da Amazônia Sul-Ocidental. Em 2014 o IPHAN enviou

recomendações para a equipe responsável pelo relatório do inventário. Os técnicos

do IPHAN compreenderam a necessidade de se contemplar os vários sujeitos e

entidades que fazem uso do chá, sobretudo as nações indígenas.

Assim, o IPHAN entende que as políticas públicas de patrimônio imaterial

cultural são frutos do diálogo permanente para o aperfeiçoamento dessas

estratégias e instrumentos de salvaguarda e sua adequação aos contextos

específicos de cada bem cultural (IPHAN, 2010). O IPHAN possui o Departamento

do Patrimônio Imaterial que cuida da preservação dos bens culturais de natureza

imaterial.

São os ofícios e saberes artesanais, as maneiras de pescar, caçar, plantar,

cultivar e colher, de utilizar plantas como alimentos e remédios, de construir

moradias, as danças e as músicas, os modos de vestir e falar, os rituais e

festas religiosas e populares, as relações sociais e familiares que revelam

os múltiplos aspectos da cultura cotidiana de uma comunidade (IPHAN,

2010, p.17).

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O IPHAN compreende portanto que o uso religioso do chá Ayahuasca se

enquadraria no Livro de Registro dos Saberes em que o objeto de patrimonialização

virá a ser o modo de fazer o chá Ayahuasca com toda a sua ritualística própria. Com

o Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 foi instituído o Registro de Bens Culturais

de Natureza Imaterial, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e também o

Inventário Nacional de Referencias Culturais. Segundo o IPHAN (2010) o INRC é um

instrumento para conhecer e documentar bens culturais como também para

conhecer o valor atribuído pelos grupos sociais a esses bens. Através do Inventário

o IPHAN documenta e identifica problemas e soluções para a salvaguarda das

manifestações culturais. Após o Bem ser ―Inventariado‖ ele será registrado através

do instrumento de salvaguarda do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.

O bem será devidamente registrado em um dos seguintes livros:

Livro de Registro dos Saberes – para a inscrição de conhecimentos e

modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro

das Celebrações – para rituais e festas que marcam a vivência coletiva do

trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida

social; Livro de Registro das Formas de Expressão – para o registro das

manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e Livro de

Registro dos Lugares – destinado à inscrição de espaços como mercados,

feiras, praças e santuários, onde se concentram e reproduzem práticas

culturais coletivas. (IPHAN, 2010, p.22)

A inscrição no Livro de Registro, segundo o IPHAN (2010), serve para o

reconhecimento e valorização de determinada manifestação cultural na formação da

cultura brasileira. Esse ato estimula a sociedade a preservar o bem para criar

condições no apoio efetivo da salvaguarda por parte de instituições públicas e

privadas em nível federal, estadual e municipal, de organismos internacionais e dos

cidadãos. Através da criação do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI)

foi possível a criação dos livros de Registros para salvaguarda de bens culturais.

Já foram registrados como Patrimônio Cultural do Brasil: o Ofício das

Paneleiras de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santo; a Arte Gráfica

Kusiwa, dos Índios Wajãpi do Amapá; o Círio de Nazaré, em Belém; o

Samba de Roda do Recôncavo Baiano; o Modo de Fazer Viola-de-Cocho,

no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; o Ofício das Baianas de Acarajé; o

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Jongo no Sudeste; a Cachoeira de Iauaretê – lugar sagrado dos povos

indígenas dos rios Uaupés e Papuri, no estado do Amazonas;a Feira de

Caruaru e o Frevo em Pernambuco; o Tambor de Crioula do Maranhão; as

Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: partido alto,samba de terreiro e

samba-enredo; o Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas Regiões do

Serro, na Serra da Canastra e Serra do Salitre, no estado de Minas Gerais,

o Ofício dos Mestres de Capoeira e também a Roda de Capoeira; além do

Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em

Divina Pastora, Sergipe. (IPHAN, 2010, p.23).

Através do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) criado

através do Decreto. 3.551/2000, foi possível apoiar projetos de identificação,

reconhecimento, salvaguarda e promoção do patrimônio cultural brasileiro, como o

dos bens culturais citados acima. Os objetivos do PNPI são os de implementar uma

política nacional de inventário, registro e salvaguarda de bens culturais de natureza

imaterial; contribuir para a preservação da diversidade cultural do país e para a

divulgação de informações sobre o patrimônio cultural brasileiro para toda a

sociedade. O Programa tem ainda os objetivos de captar recursos; promover a

constituição de uma rede de parceiros; incentivar e apoiar iniciativas e práticas de

preservação desenvolvidas pela sociedade. Através da salvaguarda de bens

culturais eles serão registrados, inventariados, documentados e estudados. Segundo

o IPHAN (2010), o objetivo desses estudos é a produção, circulação e valorização

dos bens culturais imateriais podendo contribuir para melhorar a vida das pessoas

que com eles se identificam.

Em qualquer ação de inventário, documentação e salvaguarda de bens

culturais é fundamental a participação das pessoas que identificam aquela

tradição cultural como sua. Somente com o envolvimento dessas pessoas e

com a parceria de instituições locais é possível pensar numa preservação

que seja realmente eficaz. É importante também ressaltar que não apenas o

Iphan tem desenvolvido trabalhos de apoio e fomento à preservação da

diversidade cultural do nosso país. Outras áreas do Ministério da Cultura

têm atuado de forma a estimular a continuidade e a valorização das

diferentes manifestações culturais de natureza imaterial existentes em

nosso país, e também de forma a divulgá-las em âmbito nacional (IPHAN,

2010, p.28-29).

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De acordo com o IPHAN (2010), a política de salvaguarda do Patrimônio

Imaterial visa preservar o patrimônio cultural brasileiro, fortalecendo e dando

visibilidade às referencias culturais dos grupos sociais em sua heterogeneidade e

complexidade. Significa, também, promover a apropriação simbólica e o uso

sustentável dos recursos patrimoniais para a sua preservação e para o

desenvolvimento econômico, social e cultural do país.

5.3 O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO DA AYAHUASCA

De acordo com o Sr. Deyvesson Gusmão20, Coordenador Geral de

Identificação e Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN, em

entrevista concedida via e-mail em janeiro de 2017, ―um processo de

patrimonialização é um ato administrativo complexo e como tal deve obedecer

determinados ritos para que, ao final, seja considerado legitimo e aceitável pela

sociedade‖. Ele me explicou que o reconhecimento de um Patrimônio Imaterial é

feito através do Registro instituído pelo Decreto de n°3.551/2000 que estabelece o

passo a passo do processo. O processo é melhor detalhado na Resolução 01/2006

do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

De acordo com a Resolução 01/2006, disponibilizada no site do IPHAN,

há a explicação detalhada sobre a solicitação do processo de patrimonialização. A

instrução técnica do processo administrativo de Registro consiste da documentação

mencionada no art. 4:

(I. identificação do proponente (nome, endereço, telefone, e-mail etc.); 2 II.

justificativa do pedido; III. denominação e descrição sumária do bem

proposto para Registro, com indicação da participação e/ou atuação dos

grupos sociais envolvidos, de onde ocorre ou se situa, do período e da

forma em que ocorre; IV. informações históricas básicas sobre o bem; V.

documentação mínima disponível, adequada à natureza do bem, tais como

fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filme; VI. referências

documentais e bibliográficas disponíveis; VII. declaração formal de

20

O contato com o Sr. Deyvesson Gusmão ocorreu no Congresso Internacional da Ayahuasca

(Ayaconference) em 2016, na cidade do Rio Branco, Acre.

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representante de comunidade produtora do bem ou de seus membros,

expressando o interesse e anuência com a instauração do processo de

Registro. (RESOLUÇÃO 01/2006 IPHAN, 2007, p.2)

Além disso, no Art.9 do documento explica-se que a sistematização de

conhecimento e documentação do bem cultural deve abranger:

I. descrição pormenorizada do bem que possibilite a apreensão de sua

complexidade e contemple a identificação de atores e significados

atribuídos ao bem; processos de produção, circulação e consumo; contexto

cultural específico e outras informações pertinentes; II. referências à

formação e continuidade histórica do bem, assim como às transformações

ocorridas ao longo do tempo; III. referências bibliográficas e documentais

pertinentes; 4 IV. produção de registros audiovisuais de caráter etnográfico

que contemplem os aspectos culturalmente relevantes do bem, a exemplo

dos mencionados nos itens I e II deste artigo; V. reunião de publicações,

registros audiovisuais existentes, materiais informativos em diferentes

mídias e outros produtos que complementem a instrução e ampliem o

conhecimento sobre o bem; VI. avaliação das condições em que o bem se

encontra, com descrição e análise de riscos potenciais e efetivos à sua

continuidade; VII. proposição de ações para a salvaguarda do bem.

Parágrafo único – A instrução técnica deverá ser realizada em até 18

(dezoito) meses a partir da avaliação da pertinência do pedido pela Câmara

do Patrimônio Imaterial, podendo ser prorrogada por prazo determinado,

mediante justificativa (RESOLUÇÃO 01/2006 IPHAN, 2007, p. 3-4).

Ao final da fase de pesquisa e documentação, o material produzido será

entregue na forma de dossiê como parte integrante do processo de Registro que

será examinado pelo IPHAN emitindo-se um Parecer Técnico. Após a conclusão do

Parecer, com a decisão do Conselho Consultivo sendo favorável, o bem receberá o

título de ―Patrimônio Cultural do Brasil‖. A decisão sendo contrária, o IPHAN

arquivará o processo e comunicará o ato formalmente ao proponente (RESOLUÇÃO

01/2006 IPHAN, 2007).

O Sr. Deyvesson Gusmão me explicou que ―no caso relacionado à

ayahuasca, a solicitação de Registro, feita em 2008, já passou pelo crivo da Câmara

do Patrimônio Imaterial do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que apontou

a necessidade de mais informações para que, após obtidas, fosse feita a análise de

pertinência da solicitação‖. A Câmara também indicou a necessidade de

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identificação de um bem e ainda que o uso indígena da Ayahuasca deveria ser

contemplado nos estudos. Decidiu-se por realizar um Inventário das referências

culturais relacionadas ao uso ritual da Ayahuasca. Para tanto, optou-se por ter como

recorte para pesquisa o estado do Acre e utilizar o Inventário Nacional de

Referências Culturais (INRC). O que se espera é que o Inventário aponte bens

passíveis de Registro, uma vez que o ―uso ritual da Ayahuasca‖ não se enquadraria

nas categorias da política de Patrimônio Imaterial, estabelecidas no Decreto

3.551/2000.

Gusmão afirma que o INRC é dividido em três etapas: Levantamento

Preliminar; Identificação; e Documentação. Até o momento, no que tange ao INRC

relacionado aos usos rituais da Ayahuasca, foi realizado a primeira etapa, o

Levantamento Preliminar. A continuidade do Inventário, por ora, está condicionada à

realização de um processo de esclarecimento acerca da política de patrimônio

imaterial junto aos Povos Indígenas do Acre. Após isso, o Inventário deverá ser

retomado.

Conforme me foi esclarecido em entrevista, Gusmão afirma que o primeiro

desafio, e talvez o mais evidente seja a diversidade de usos e de grupos que fazem

uso ritual do chá. São muitas linhas religiosas (diversificados usos religiosos) e

muitos povos indígenas e, com tudo isso, consequentemente tem-se grupos de

detentores da Ayahuasca bastante diversificados. Isso implica em grande

quantidade de bens culturais, diferentes crenças e estruturas rituais. Outra questão é

a assimetria de entendimentos acerca da política de patrimônio imaterial entre os

povos indígenas e grupos não indígenas. Os grupos não indígenas, alguns deles

solicitantes do Registro tais como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal,

reconhecem o Registro de patrimônio cultural brasileiro como instrumento de

legitimação. Quanto aos Povos Indígenas, há ainda a necessidade de se fazer um

trabalho de esclarecimento junto a esses Povos acerca da referida política e das

implicações do Registro. Disso decorre outro desafio: o de fazer esse trabalho junto

aos Povos Indígenas, considerando-se o elevado valor financeiro para uma ação

dessa magnitude e ainda a necessidade de que o processo de esclarecimento se dê

por metodologia que leve em conta os sistemas de pensamento próprios desses

Povos.

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Gusmão prossegue afirmando que a definição deve ser consensual para

o Registro entre todos os envolvidos. A referência cultural relacionada ao uso ritual

da Ayahuasca deve contemplar a diversidade de usos e identidades, ligadas a todo

o universo dos grupos ayahuasqueiros. Segundo Gusmão, talvez esse seja o maior

desafio desse processo. É importante dizer que a bebida não se tornará patrimônio

cultural. A política de patrimônio imaterial, da maneira como estabelecida, não

permite o reconhecimento de bebidas, comidas, receitas ou congêneres como

Patrimônio Cultural do Brasil.

Segundo o Sr. Deyvesson Gusmão o que o IPHAN compreende que o

que deve se tornar patrimônio cultural é o ―preparo do chá‖ que entraria na categoria

―modos de fazer‖ do Livro de Registro de patrimônios culturais. Por isso, nunca

haverá o ―Registro da Ayahuasca‖, o que se pode, ao cabo do processo, é o

Registro de alguma forma de expressão, saber, lugar ou celebração (cf. Decreto

3551/2000) relacionados ao uso ritual da Ayahuasca. Não é sem valor dizer também

que o Registro como Patrimônio Cultural do Brasil é consequente, gera obrigações

para o Estado Brasileiro.

Após o processo de reconhecimento, o IPHAN se compromete como

ampla divulgação e promoção do bem, que se dá por meio da construção de um

conjunto de medidas e ações de apoio e fomento ao bem Registrado. A experiência

desses quase dezessete anos de aplicação da política de patrimônio cultural tem

demonstrado que os bens registrados passam a ser amplamente conhecidos no

Brasil e suas comunidades de detentores reconhecidas. Após o Registro, processos

de transmissão de conhecimento tem se amplificado uma vez que o reconhecimento

desperta o interesse dos mais jovens pelos saberes dos mais velhos.

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6 CONCLUSÃO

Nessa dissertação tratei no capítulo 1 dos aspectos químicos,

farmacológicos, biológicos, cosmológicos e legais da bebida Ayahuasca. Busquei

avaliar como a bebida age no organismo humano, seus princípios químicos, além

dos benefícios e impactos para a mente humana. Tratei dos aspectos etnobotânicos

da bebida, falando a respeito das plantas que constituem o chá e os componentes

presentes nessa fórmula alquímica. Apresentei a cosmologia dos três troncos

fundadores (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal), do Caminho do Coração

(comunidade neo-ayahuasqueira) e da cosmologia da tribo indígena Kaxinawá.

Apresentei nesse capítulo os aspectos legais e jurídicos da bebida Ayahuasca no

Brasil servindo de base para abertura, nos capítulos posteriores, sobre a avaliação

das políticas públicas de patrimônio cultural e o processo de patrimonialização da

Ayahuasca.

No capítulo 2 abordei o conceito de cultura e o seus múltiplos sentidos

trazendo um breve referencial histórico desse conceito e como ele foi cunhado ao

longo do tempo. Trouxe para a reflexão os conceitos de patrimônio, patrimônio

histórico e cultural mostrando suas diferenças e como a política de patrimônio

cultural é empreendido no Brasil. Tratei também como o patrimônio cultural contribui

para a construção de identidades e para a legitimação social. Os impactos da

globalização na cultura e no construto da política pública de patrimônio imaterial.

No capítulo 3 foquei no processo de patrimonialização da Ayahuasca no

Brasil, apresentando um quadro mais detalhado sobre normas, pareceres, situação

jurídica e o processo de patrimonialização da Ayahuasca. Os objetivos dessa

pesquisa foram: investigar os aspectos químicos, farmacológicos, biológicos,

cosmológicos, sociais e legais da Ayahuasca no Brasil; Conduzir uma análise da

política pública de patrimônio cultural no Brasil; Analisar o processo de

patrimonialização da Ayahuasca buscando compreender seus impasses e como

esse processo levanta questionamentos a respeito da politica publica de patrimônio

cultural no Brasil.

Segundo Gusmão após a realização do Levantamento Preliminar do

INRC, impõe-se como condicionante para a continuação do Inventário que se realize

o esclarecimento junto aos Povos Indígenas. Não há, por ora, como ser assertivo

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acerca de uma ―visão indígena‖ sobre a solicitação de Registro. Isso tanto pela

diversidade de Povos, quanto pela falta de um diálogo mais detido e com mediação

antropológica adequada. Talvez isso seja possível após o citado processo de

esclarecimento.

A Ayahuasca é um objeto de disputas, estendendo-se entre vários

segmentos culturais, religiosos, articulações políticas fomentando debates entre

representantes ayahuasqueiros e intelectuais pesquisadores. É possível que com a

finalização do INRC da Ayahuasca e do esclarecimento sobre a política pública de

patrimônio cultural e do possível Registro junto aos indígenas o modo de fazer a

bebida seja considerado Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro. Creio que esse

acontecimento levará alguns anos para ocorrer, mas que certamente é algo que já

está em processo. Sem dúvida a Ayahuasca já é um assunto que está em pauta nas

políticas públicas culturais e a transição do conceito de ―drogas‖ para o de

―patrimônio cultural‖ já é algo consolidado pela própria jurisdição brasileira e pelos

intelectuais pesquisadores sobre o tema.

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ANEXOS

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ANEXO A - Carta de solicitação para o processo de reconhecimento do uso da

ayahuasca em rituais religiosos como patrimônio imaterial da cultura brasileira.

Excelentíssimo Senhor

Gilberto Passos Gil Moreira

Ministro da Cultura da República Federativa do Brasil

Ayahuasca é um termo de origem Quéchua, que significa ―vinho das almas‖, e é

utilizado para designar o chá feito pela cocção de duas plantas originárias da floresta

amazônica: o cipó Jagube ou mariri (Banisteriopsis Caapi) e as folhas da Rainha ou

Chacrona (Psychotria Viridis). Este chá serviu como base para o estabelecimento de

diferentes tradições espirituais por comunidades indígenas em uma vasta região que

compreende diversos países amazônicos (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador,

etc.), tradições mágico/culturais que se consolidaram na grande floresta amazônica

durante os últimos dois mil anos, pelo menos, e exerceram influências importantes,

inclusive sobre sociedades complexas da região andina, como a civilização Inca, por

exemplo.

Mais recentemente, nos primeiros anos do século XX, na Amazônia Ocidental

(atuais estados do Acre e de Rondônia, na fronteira com o Peru e a Bolívia), a

formação da sociedade extrativista da borracha - que a exemplo dos povos

indígenas amazônicos – tinha como marca fundamental uma enorme multiplicidade

étnica e cultural, estabeleceu as condições necessárias para que a milenar tradição

indígena da Ayahuasca fosse assimilada por brasileiros e desse origem a uma nova

configuração religiosa, cultural e social. Assim, Raimundo Irineu Serra e Daniel

Pereira Mattos (ambos negros maranhenses, descendentes de escravos) fundaram

entre 1910 e 1945 uma doutrina religiosa que rebatizou a Ayahuasca com o nome

de ―Daime‖. Algum tempo depois, na década de 60, o baiano José Gabriel da Costa

formulou uma outra doutrina que passou a chamar a Ayahuasca de ―Vegetal‖.

Porém, mais importante do que apenas designar novos nomes, a atuação destes

três mestres fundadores - Irineu, Daniel e Gabriel – estabeleceu as bases

doutrinárias de uma nova tradição religiosa, sincreticamente brasileira e tipicamente

amazônica, que possibilitou a formação de comunidades organizadas em torno do

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uso ritual da Ayahuasca e que passaram a ter importante papel (político, social e

cultural) na própria formação da sociedade brasileira na Amazônia Ocidental.

O conhecimento espiritual destas doutrinas tem sido transmitido de geração a

geração e mantido por diversas tradições culturais através de um sincretismo

religioso caracteristicamente amazônico, o que implica numa relação essencialmente

harmônica com a natureza e estabelece um sentimento de identidade e

continuidade, garantindo assim o respeito à diversidade étnico-cultural e à

criatividade humana.

Com isso as Doutrinas do Daime/Vegetal, como estabelecidas por seus mestres

fundadores, tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo

assim receber o reconhecimento como patrimônio cultural de nosso país.

Com base nas informações acima relacionadas podemos afirmar que a utilização

ritual da Ayahuasca em doutrinas religiosas preenche os quesitos que a

caracterizam como patrimônio imaterial, considerado como ―práticas,

representações, expressões, conhecimentos e técnicas que comunidades ou grupos

reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural.‖

Em atenção aos ditames da Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, expedida pelo

Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os

representantes responsáveis pelas Fundações Culturais do Estado do Acre e do

Município de Rio Branco, a partir do diálogo com os centros que integram os três

troncos fundadores das contemporâneas doutrinas Ayahuasqueiras, solicitam ao

Senhor Ministro da Cultura que, através do Iphan, instaure o processo de

reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos como Patrimônio

Imaterial da Cultura Brasileira.

Rio Branco, 30 de abril de 2008.

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Daniel (Zen) Santana de Queiroz

Presidente da Fundação Elias Mansour

Estado do Acre

Marcos Vinicius Neves

Diretor-presidente da Fundação Garibaldi Brasil

Município de Rio Branco

Peregrina Gomes Serra

Centro de Iluminação Cristã Luz Universal-CICLU – Alto Santo

Francisco Hipólito de Araújo Neto

Centro Espírita e Culto de Oração ―Casa de Jesus – Fonte de Luz

José Roberto da Silva Barbosa

Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - UDV

Jair Facundes de Oliveira

Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - CICLU

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ANEXO B - Quadro cronológico dos principais acontecimentos sobre a ayahuasca

no brasil

1985 – O cipó Jagube (Banisteropis caapi) é colocado na lista de plantas proibidas

pela Portaria n.02/1985 – Divisão de Medicamentos (DIMED);

1986 – Suspensão do cipó Jagube da lista de plantas proibidas através da

Resolução n. 04/1985 – Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN);

1986 – Instaurado um Grupo de Estudos (GT) para acompanhamento e

levantamento de informações sobre Ayahuasca através da Resolução n.06/1986 –

Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN)

1987 – É feito um levantamento detalhado sobre o uso do chá Ayahuasca em

contexto religioso através do Relatório Final do Grupo de Trabalho 1987 – Conselho

Federal de Entorpecentes (CONFEN);

1992 – Parecer do Dr. Domingos Bernardo de Sá sobre o uso religioso do chá

Ayahuasca – 02/06/1992 – Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN);

2002 – O CONAD reexamina a questão do uso da Ayahuasca em contexto religioso:

Resolução n.26 – 31/12/2002 – Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas

(CONAD);

2004 – Parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico – 17/08/2004 –

Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD);

2004 – Elaboração do documento sobre a deontologia do uso da Ayahuasca

Resolução n.05 – 04/11/2004 – Conselho Nacional de Política sobre Drogas

(CONAD);

2005 – Foi criada a primeira Área de Proteção Ambiental (APA) do Acre na Vila

Irineu Serra, a (APARIS) Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra;

2006 – Aprovados os princípios deontológicos da Ayahuasca pelo Relatório Final do

Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca – 23/11/2006 – Conselho Nacional de

Políticas sobre Drogas (CONAD);

2006 – Tombamento das instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal

de Alto Santo (Santo Daime) foram tombadas como Patrimonio histórico e cultural do

Acre, através do Decreto do governador Jorge Ney Viana Macedos Neves e do

Prefeito do Rio Branco Raimundo Angelim Vasconcelos;

2008 – Pedido de Tombamento da Ayahuasca pelos três troncos fundadores (Santo

Daime, Barquinha e União do Vegetal);

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2010 – Elaboração de normas e procedimentos compatíveis ao uso religioso da

Ayahuasca através Resolução n.01 – 25-01-2010 – Conselho Nacional de Política

sobre Drogas (CONAD);

2011 – Levantamento preliminar através do Inventário Nacional de Referências

Culturais (INRC) sobre os bens e as referências culturais associados ao uso do chá

Ayahuasca no Acre;

2011 – I Encontro da Diversidade Cultural Ayahuasqueira realizado no Rio Branco.

Acre;

2016 – II AyaConference realizada no Rio Branco, Acre.

2017 – Aprovado na Câmara Legislativa do Estado do Pará um projeto de lei que

reconhece o uso ritual do chá Ayahuasca como Patrimônio cultural do Estado do

Pará;