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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO UEMA CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS CECEN DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA JOSÉ ROBERTO VIEIRA SANTOS “DUELO DE TITÃS”: CURANDEIRISMO, RELAÇÕES DE PODER E A CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO EM SÃO LUÍS (1912- 1947). São Luís MA 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO UEMA ......2016/03/05  · 2 Santos, José Roberto Vieira. “Duelo de titãs”: curandeirismo, relações de poder e a cristalização de um universo

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA

CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

JOSÉ ROBERTO VIEIRA SANTOS

“DUELO DE TITÃS”: CURANDEIRISMO, RELAÇÕES DE PODER E A

CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO EM SÃO LUÍS (1912-

1947).

São Luís – MA

2016

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Santos, José Roberto Vieira.

“Duelo de titãs”: curandeirismo, relações de poder e a cristalização

de um universo paralelo em São Luís (1912-1947) / José Roberto

Vieira Santos. – São Luís, 2016.

... f

Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade

Estadual do Maranhão, 2016.

Orientador: Profa. Dra. Tatiana Raquel Reis Silva.

1.Curandeirismo. 2.Exclusão social. 3.Executores do poder.

4.Paradigmas civilizacionais. I.Título

CDU:930.85”1912/1947”(812.1)

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JOSÉ ROBERTO VIEIRA SANTOS

“DUELO DE TITÃS”: CURANDEIRISMO, RELAÇÕES DE PODER E A

CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO EM SÃO LUÍS (1912-

1947).

Aprovado em: ____/_____/______

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Profª. Drª. Tatiana Raquel Reis Silva (orientadora)

________________________________________

1º Examinadorª

________________________________________

2º Examinadorª

São Luís – MA

2016

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente à minha mãe de coração, Nilza, por não fazer a menor ideia do

que seja a graduação e, ainda assim, ter me apoiado incondicionalmente, ou seja, ainda

que não fosse alfabetizada, me deu a educação necessária. Ressalto, também, a minha

mãe biológica, que sem ela isso tudo não seria possível e as minhas irmãs Janice e

Ivelize.

A minha amiga Lucinda Castro que me foi de muita valia durante o processo

seletivo vestibular, dedico os meus agradecimentos, pois, durante esse período as suas

palavras serviram de sustentáculo na dura rotina de estudos.

Aos meus amigos Leandro, Kelly, Francielma (fofinha), Franckciane, Carlos

Eduardo (Carlinhos), Julieta, Barbara, Magno, Maria Simoa e seu esposo senhor Walter

pela amizade de anos, o meu muito obrigado.

Às minhas primas Anniessilene, Annietiene, Annieliese, e ao meu primo

Raniere, por terem contribuído para o meu crescimento como pessoa. Aos meus amigos

mais recentes Carlos Matos (Carlinhos), Jocineide (Jo) e sua mãe Dona Maria, Shayane,

Gerlane, Ducely, Diego, Domingas, Jeane, Mayane, que puderam participar desse

processo com os seus apoios morais.

Não menos importante e, em especial, aos meus amigos quase pós-graduados e

graduados Flávio Poeta, Frank e Alex, pelo quarteto fantástico. Durante o período em

que estivemos juntos em sala de aula ou não, seja discutindo, ou até mesmo, brigando,

tenham a certeza de que nada disso foi desperdiçado, ou melhor, tudo foi aproveitado

para o meu crescimento profissional.

Aos meus outros amigos de curso Camila que inicialmente tivemos algumas

hostilidades, mas, com o passar do tempo foram exterminadas pelo convívio pacífico e

de amizade, a serelepe Rackell, Marla Jéssica, Marla Rafaela (Marla Potter), Aimé,

Paulo Mucilon, Pablo, Gugu, a todos o meu muito obrigado por tê-los conhecido.

Agradeço ainda aos meus colegas de trabalho Euzineth, Josinaldo, Marcos,

Gracelane, Rudi, Eduardo, Michael, Joelce e Lana, por tornar esses dez anos de serviço

um fardo mais ameno.

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Aos meus queridos professores Henrique Borralho que me instigou ao

pensamento mais solto e descontraído, Ana Lívia, Adriana Zierer, Ximendes, Milena,

Nielson, Beth, Reinaldo e, especialmente, a Fábio, Helidacy e Julia Constança onde os

ensinamentos de ambos foram muito relevantes para a construção deste trabalho.

A minha orientadora Tatiana que me deu as devidas orientações e teve a árdua

missão de me aturar durante um largo tempo.

A todos vocês e aos demais que por ventura não me recordo deixo os meus

grandes e sinceros agradecimentos e, também, é a vocês que dedico esse trabalho.

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RESUMO

O curandeirismo é muito recorrente em São Luís na primeira metade do século XX, e os

periódicos concernentes a esse período descreviam minuciosamente as consecutivas

batidas policiais aos terreiros de pajelança. Nesse contexto histórico, São Luís não fugia

da realidade de muitas cidades brasileiras, onde ocorria, teoricamente, um processo

acelerado de modernização. Contraditoriamente, o que se podia perceber era o caminhar

de uma cidade de braços dados com a pobreza da maioria da população, com a

imensurável exclusão social, com a gente mestiça de origem portuguesa, africana e

indígena. Sendo assim, foi possível notar uma relação de força entre o curandeirismo e

os “agentes do poder” do Estado como os jornais, a polícia, e o poder judiciário. Nesse

sentido, o objetivo desse trabalho consiste na ênfase e reflexão sobre os discursos dos

“executores do poder” estatal ludovicense, vinculados aos novos paradigmas

civilizacionais da primeira metade do século XX, assim como, a análise da reação da

população menos abastada, especificamente, dos adeptos do curandeirismo aos novos

métodos organizacionais emanados da medicina.

Palavras-chaves: Curandeirismo. Exclusão Social. Executores do Poder. Paradigmas

Civilizacionais. Medicina Científica.

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ABSTRACT

The faith healing is very recurrent in St. Louis in the first half of the twentieth century,

and periodic concerning this period thoroughly described consecutive raids on religious

communities of shamanism. In this historical context, St. Louis would not run away

from reality in many Brazilian cities, which occurred in theory, an accelerated process

of modernization. Contradictorily, which I could see was the walk of a city arm in arm

with the poverty of the majority of the population, with the immeasurable social

exclusion, with the mestizo people of Portuguese, African and indigenous origin. Thus,

it was possible to notice a power relationship between faith healing and the "power

brokers" of the state as newspapers, police, and the judiciary. In this sense, the objective

of this work is the emphasis and reflection on the speeches of the "power of executing"

state ludovicense linked to the new civilizational paradigms of the first half of the

twentieth century, as well as the analysis of the reaction of the less well-off population,

specifically, of faith healing fans emanating from the new organizational methods of

scientific medicine.

Key-words: Faith Healing. Social Exclusion. Executors of Power. Civilizational

Paradigms. Scientific Medicine.

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“Na verdade nossos termos "civilizado" e ''incivil" não constituem uma antítese do tipo

existente entre o ‘bem’ e o ‘mal’', mas representam, sim, fases em um desenvolvimento

que, além do mais, ainda continua. É bem possível que nosso estágio de civilização,

nosso comportamento, venham despertar em nossos descendentes um embaraço

semelhante ao que, às vezes, sentimos ante o comportamento de nossos ancestrais.”

Norbert Elias

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................11

1. CURANDEIRISMO E RELAÇÕES DE PODER EM SÃO LUÍS.....................18

1.1. “Duelo de Titãs”: embate entre curandeirismo e medicina oficial....................18

1.2. A Cura Oficial e Tradicional: uma breve contextualização histórica...............24

1.3. Hospitais Populares: discurso médico-oficial e o paradoxo do contexto citadino

ludovicense.....................................................................................................................31

2. CURANDEIRISMO E RELIGIÃO: REPRESENTAÇÃO RELIGIOSA,

COERSÃO CULTURAL E RESISTÊNCIA SOCIAL............................................39

2.1. A Religião por Trás das Representações do Universo Mágico-religioso do

Curandeirismo...............................................................................................................39

2.2. Marcas do Passado: coerção aos “atos abomináveis” nos periódicos

ludovicenses...................................................................................................................43

2.3. Relação Mina-pajelança e Resistência ao Saber Científico-

medicinal........................................................................................................................55

3. A NATUREZA DO CURANDERISMO: OS COSTUMES E O UNIVERSO DE

REPRESENTAÇÕES DE VIDA................................................................................62

3.1. Práticas e Costumes Populares: alguns apontamentos sobre a cura tradicional

contemporânea..............................................................................................................62

3.2. A Cristalização de Um Universo Paralelo: justiça brasileira, costumes

afrodescendentes e relações de poder..........................................................................67

3.3. O Habeas Corpus de Demétrio Santos e Seus Assistentes: antagonismos

práticos e históricos do processo de modernização de São Luís...............................78

3.4. O Inquérito Criminal de Maria Pereira de Sousa: exercício ilegal da medicina

e a segunda natureza do homem..................................................................................84

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CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................92

FONTES E REFERÊNCIAS........................................................................................97

ANEXOS.......................................................................................................................100

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INTRODUÇÃO

O curandeirismo é muito recorrente em São Luís do século XX, e os periódicos

concernentes à primeira metade deste século como os jornais descreviam

minuciosamente as consecutivas batidas policiais aos terreiros de pajelança. O objetivo

da força policial se dava em função de reprimir as práticas ilegais de cura, pois, este

processo era fundamentado pelos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890.

Naquela conjuntura, São Luís não fugia da realidade de muitas cidades

brasileiras, onde ocorria, teoricamente, um processo acelerado de modernização. No

entanto, o que se podia perceber era o caminhar de uma cidade de braços dados com a

pobreza da maioria da população, com a imensurável exclusão social, com a gente

mestiça de origem portuguesa, africana e indígena. Essas tônicas irão porfiar nas

literaturas concernentes ao tema curandeirismo.

Sendo assim, foi possível notar uma relação de força entre o curandeirismo e os

braços do Estado como os jornais, a polícia, e o poder judiciário. Dessa forma, o

objetivo desse trabalho consiste na ênfase e reflexão sobre os discursos dos “executores

do poder” estatal ludovicense vinculados aos novos paradigmas civilizacionais da

primeira metade do século XX, assim como, a análise da reação da população menos

abastada, especificamente, dos adeptos do curandeirismo aos novos métodos

organizacionais implementados pela medicina alopática.

O nosso recorte temporal (1912-1947) foi escolhido em função das poucas

mudanças do cenário político e sócio-econômico, decorrentes do processo

modernizador. Pois, foram notórias as incoerências dessas mudanças em virtude da

formação histórico-social brasileira, principalmente, no que se refere à aplicação de uma

terapia médico-científica num panorama bastante dominado por outra terapia médica

antagônica.

Os documentos escolhidos para a análise constituem os jornais de época dos

anos de 1915, 1940, 1941 e 1947, e os documentos oficiais e jurídicos como: uma

licença para baile de tambor de mina de 1912, emitida, possivelmente, por uma

delegacia de polícia, um habeas corpus de 1940, expedido pelo Tribunal de Apelação

do Estado do Maranhão, e um inquérito criminal de 1940, originário da Chefatura de

Polícia do Maranhão.

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Os periódicos serviram para se observar a visão elitista e intelectual da época

em relação às práticas e costumes do curandeirismo. Nas entrelinhas são disferidos

incessantes ataques às manifestações de matriz africana, pois, as discriminações e os

preconceitos lançados por esses jornais foram de crucial importância para se destacar as

relações de forças emolduradas pela lógica modernizadora adotada.

No palco dos conflitos entre o discurso médico-oficial e o tradicional, os

periódicos ludovicenses serviram como arma de combate à pluralidade medicinal,

principalmente, a de ordem afrodescendente. Os articulistas, empenhados em defender

uma ideologia que pretendia privar as manifestações de cura tradicional, promoveram

expressivamente a discriminação às religiões de matriz africana e indígena,

especificamente.

Dentre os jornais pesquisados temos A Pacotilha, fundado em outubro de

1880, pelo jornalista Victor Lobato, no contexto das discussões do processo

abolicionista. A intenção primordial era de cunho popular, abolicionista e republicano, e

não era, pelo menos na teoria, atrelado a partidos políticos. “Em janeiro de 1881 parou

de circular para reiniciar em abril do mesmo ano, reformulado e de tamanho igual aos

demais jornais diários” 1.

Em 1930 deixou de ser editado para retornar, mais uma vez, em 1934, no

entanto, em 1938 deixou de circular definitivamente. À frente de A Pacotilha se

destacaram jornalistas tradicionais pretensamente liberais, provindos de famílias de

proprietários rurais como António Lobo e João da Mata de Moraes Rego.

Este jornal explorava, sobretudo, notícias policiais e atraía uma gama de

leitores, dessa forma, a empresa era obrigada a fazer uma segunda edição. “Para mexer

e despertar a atenção do público o jornal colocava, do lado de fora, com um fio

amarrado na janela, cartazes com os títulos chamativos, o que aglomerava um bom

número de curiosos” 2.

1 PEREIRA, Josenildo de Jesus. Imprensa, ética e ideias abolicionistas no Maranhão na década de

1880. Fortaleza: ANPUH, 2009. P. 3. ANPUH - XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA.

Disponível em:

www.google.com.br/Imprensa/éticaescravistaeidéiasabolicionistasnoMaranhãonadécadade1880. Acesso:

22/12/2015; 14h44 min. 2 Um jornal com 84 anos de história. Disponível em:

www.observatoriodaimprensa.com.br/umjornalcom84anosdehistoria. Acesso: 21/12/2015; 19h06 min.

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Outro periódico analisado foi O Globo que lançou sua primeira edição no dia

29 de julho de 1925. Irineu Marinho, seu proprietário fundador, tinha como meta lançar

um periódico identificado com a vida carioca. Sua origem se encontra numa série de

negociações fracassadas, O Globo veio tomar o lugar que antes era do jornal A Noite.

“Um dos princípios editoriais do vespertino era buscar a notícia em todos os setores da

cidade, marca que permaneceu ao longo de toda a sua história” 3.

No maranhão, a sua circulação se iniciou em 1939 e seguia a mesma proposta

da ética do formato carioca. A sua atuação desenhou os traços da perseguição às

práticas de negro e de pobre em São Luís. A defesa dos costumes da elite branca foi a

sua tônica. Quando se tratava da participação de abastados nas sessões de cura, O Globo

sempre acenava para a rede de enganações e atraso cultural emanados dos terreiros de

cura.

Os jornais, portanto, se configuravam como o outro lado da balança, um

micropoder do Estado, onde, num duelo de forças com o curandeirismo, como uma

espécie de duelo de gigantes, populares e abastados interagiam mutuamente. A

perseguição ao curandeirismo, embutida nos artigos jornalísticos não exerciam outro

trabalho além de evidenciar a larga utilização do curandeirismo e o seu recrudescimento

na capital maranhense, tanto no centro urbano, quanto no interior da ilha.

Foram nos relatos policiais que curandeiros e pacientes tiveram suas

identidades reveladas, alcunhado de feiticeiros e charlatães, dentre outras depreciações.

Neles os articulistas proferiam os desejos da classe dominante no sentido de, num

primeiro momento, execrar das cercanias do centro de São Luís tudo aquilo que

remetesse à herança colonial, para, num segundo momento, reprimir e extirpar da

sociedade em geral tais práticas.

A licença para funcionamento de um tambor de mina, de 1912, no atual bairro

da Madre Deus, em nome de Agostinha Silva da Conceição é um documento primordial

para se refletir como era intensa a perseguição aos terreiros de pajelança. Porém, em

momento algum é citada alguma referência ao curandeirismo. Portanto, a análise de

outras documentações, e as diversas literaturas analisadas nos permitiu fazer algumas

considerações concernentes à associação entre o tambor de mina e a pajelança.

3 O Globo é lançado. Disponível em: http://www.memoria.oglobo.globo.com. Acesso: 03/09/2015;

18h10 min.

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O habeas corpus de 1940, de Demétrio Santos, um pai-de-santo, e seus

assistentes José Santos, Raimundo Buna e Simão Rodrigues relata a prisão desses

indivíduos por exercício ilegal da medicina, em São Luís. Esse documento nos forneceu

muitos vestígios sobre a ação do poder judiciário maranhense diante das práticas e

costumes da gente excluída da capital.

A documentação nos auxilia na compreensão da forma como eram

representados os adeptos da prática tradicional de cura. Essas características se aplicam

perfeitamente ao inquérito criminal de 1940, de Maria Pereira de Sousa, proprietária de

uma pensão de meretrizes, que realizou o parto de uma de suas inquilinas, logo, foi

acusada de exercício ilegal da medicina, por não ser habilitada para realizar tal mister.

Essas evidências nos permite refletir sobre o quanto era pernicioso exercer um ofício

ilegal e tradicional preferido por grande parte da população pobre e, com menos

intensidade, pelos escassos abastados, em detrimento de uma prática oficial.

Mediante a documentação apresentada procuramos apregoar o quão intensa

eram as relações de poder entre curandeirismo e Estado. Nesse sentido, a medicina

científica, a força judiciária e os relatos jornalísticos se apresentaram como premissas

para se pensar que estes órgãos poderiam ser braços desse Estado. No entanto, não

utilizamos como metodologia uma história da constituição da política do Estado

brasileiro, muito menos, uma história da medicina. Ao embarcarmos numa breve

contextualização histórica da medicina, o nosso objetivo recai no sentido de demonstrar

os principais argumentos utilizados pelas forças governamentais no combate ao

curandeirismo.

Utilizamos exaustivamente uma metáfora para designar as relações de poder

entre curandeirismo e Estado. A intensão de discorrer sobre o tema curandeirismo

utilizando uma metáfora se constitui numa tentativa de tornar esse trabalho mais

atraente ao leitor. A linguagem de fácil acesso e a empolgação, contidas aqui vem em

consonância com os escritos de Peter Burke.

Ele analisa em História e teoria social a relação da história com a teoria social

e, ressalta a relação convergente destas duas entre si e com outras disciplinas

humanísticas como a antropologia, a geografia, a filosofia, dentre outras áreas.

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Peter Burke tem como maior desafio evidenciar a teoria social como

ferramenta ou suporte capaz de ampliar a imaginação do historiador, no sentido de se

estabelecer perguntas e possíveis respostas a conflitos resultantes da análise dos fatos

históricos. Essa afirmativa vem em detrimento do que ele chama de paroquialismo, uma

espécie de limitação de horizontes dos historiadores.

Os historiadores correm risco de paroquialismo no sentido quase literal do

termo. Ao se especializarem, como em geral o fazem, em uma região

específica podem acabar considerando sua ‘paróquia’ completamente única, e

não uma combinação única de elementos que, individualmente, tem paralelos

em outros lugares. Os teóricos sociais demonstram paroquialismo em um

sentido mais metafórico, mais vinculado ao tempo do que ao lugar, sempre

que generalizam sobre a ‘sociedade’ com base apenas na experiência

contemporânea ou discutem a mudança social se levar em consideração os

processos de longo prazo4.

Ao utilizarmos Burke pretendemos comparar o embate entre curandeirismo e

Estado como a guerra entre deuses olimpianos e os titãs. Segundo a mitologia grega

houve uma grande batalha na antiguidade entre essas denominações divinas pela

hegemonia do universo. Longe de apontar os vencedores e os vencidos, a nossa intensão

é possibilitar ao leitor uma visão metafórica da queda de braço entre os procedimentos

medicinais da população desprivilegiada de assistência médico-hospitalar e das

coerções dos “donos do poder”.

Assim constituiu, em suas linhas gerais, o nosso trabalho, que se encontra

dividido em três capítulos. O primeiro utiliza a supracitada metáfora para distinguir o

embate entre a medicina científica e o curandeirismo. Associamos ambas as terapias à

figura de dois segmentos divinos mitológicos, ou seja, com métodos diferentes, as duas

medicinas disputaram na longa duração a preferência da população.

Num primeiro momento, o curandeirismo se beneficiou da escassez de médicos

cientistas ou oficiais, para noutro instante, concorrer rigorosamente à clientela. Passados

os estágios de dominação colonial, as peças foram mudando de lugar e foi notória a

percepção de que aos poucos a medicina oficial foi ganhando espaço, ainda que à custa

das parcas e defasadas determinações metropolitanas.

Nesse embate conseguimos abstrair uma tentativa do Estado brasileiro de

sucumbir a medicina mágico-religiosa. Como consequências gerais, foi possível notar

antagonismos práticos e históricos, pois, num paradigma onde a cultura europeia

4 BURKE, Peter. História e teoria social. 3. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2012. P. 17.

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pretendia agir rigorosamente, os conflitos concernentes a essa realidade deram seu grito

de existência.

Para a construção do texto foi de extrema importância recorrer a um

embasamento teórico pautado nos debates sobre exercício de poder. Os escritos de

Michel Foucault nos instigaram a uma ampla possibilidade de entendimento, logo, as

literaturas científicas de Paula Montero serviram para a percepção de como foi difícil

execrar a pluralidade medicinal mediante o processo de urbanização das grandes

metrópoles nacionais. Yvonne Maggie evidencia o recrudescimento do curandeirismo a

despeito das restrições governamentais e Lilia Schwarcz destaca a ineficiência do

processo de embranquecimento social brasileiro diante de uma sociedade tipicamente

mestiçada. Alceu Maynard enfatiza uma união entre a medicina científica e o

curandeirismo, Andréa Loyola assevera que diante de uma sociedade hierarquizada,

médicos e curandeiros disputaram a preferência da população de nova Iguaçu, no Rio de

Janeiro. Com base nesses trabalhos pudemos destacar as relações de força entre o

curandeirismo, mesmo com os avanços científicos do século XX.

O segundo capítulo constitui uma tentativa de inserir o fenômeno religioso

como mecanismo de engessamento das práticas culturais da população de São Luís.

Pois, pudemos notar o quanto a religião fomentou o curandeirismo praticado pelas

pessoas que o tinham como método de cura física e espiritual. As consequências se

circunscreveram num processo conflituoso que pretendia eliminar, das entranhas da

sociedade, toda e qualquer manifestação alheia aos princípios da política “progressista”

estatal.

As literaturas foram escolhidas de acordo com o nosso propósito. Aos nos

debruçarmos, superficialmente, na teoria sociológica durkeiminiana, as obras

anteriormente mencionadas ainda se fizeram necessárias por coadunar referências

relativas ao universo religioso do curandeirismo. Puderam-se notar as raízes do

fenômeno religioso em vários procedimentos do curandeirismo e, foi destacada ainda, a

importância da ligação entre este método medicinal e a pajelança.

No terceiro capítulo objetivamos apregoar os costumes da gente pobre como

cristalizador de um universo paralelo àquele pretendido pela sociedade dominante. Não

que nos capítulos anteriores não tivemos esse intuito, no entanto, o que se pretendeu foi

demonstrar de forma mais direta a associação entre esses costumes e os mecanismos de

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dominação das classes desfavorecidas, ainda que esse processo se consistisse

involuntariamente.

As obras supracitadas se demonstraram, mais uma vez, importantes, pois,

associadas aos escritos de Ana Lúcia Schritzmeyer a respeito das teorias antropológicas

e sociológicas que sustentaram as determinações do poder judiciário no combate ao

curandeirismo, e as teorias de Edward Thompson e Norbert Elias pudemos entender

como os costumes puderam ser decisivos no engessamento cultural da população menos

abastada, e com menos intensidade, da elite de São Luís.

Outras informações colhidas em sites confiáveis foram decisivas para a

construção desse trabalho, no sentido de auxiliar e complementar informações contidas

nas literaturas científicas anteriormente mencionadas.

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1. CURANDEIRISMO E RELAÇÕES DE PODER EM SÃO LUÍS.

1.1. “DUELO DE TITÃS”: EMBATE ENTRE CURANDEIRISMO E MEDICINA

OFICIAL.

Segundo a mitologia grega, os titãs eram seres extraordinários antecedentes dos

deuses olimpianos. Essas divindades são progenitores de Urano que personificava o céu

e Gaia que representava a terra. Em geral, eram representados como seres gigantescos

que temendo perder o domínio do universo travaram uma grande batalha com seus

descendentes, os deuses olimpianos Zeus, Hera, Poseidon, Ades, dentre outros, que

utilizando suas armas mágicas venceram e baniram eternamente os titãs para o Tártaro.

Quaisquer informações existentes desse mito são versões preexistentes e

narradas por pessoas encarregadas em transmitir as narrativas dos grandes feitos

heroicos da antiguidade. Isso ocorre principalmente em função do imaginário fértil dos

poetas e da credulidade dos povos. “É importante citar, também, que o mito não

funciona apenas como uma história de aventura é, também, uma ferramenta cultural.

Um mito, por mais esdrúxulo que pareça, possui um significado mais profundo” 5.

Não procuramos o significado ontológico desse mito, e longe de apontar os

vencedores e os vencidos, a intenção de nos referir aos titãs da mitologia grega é aludir

uma batalha, para um duelo de forças entre dois vastos campos de conhecimento

medicinal, o curandeirismo e a medicina científica, a ponto de evidenciar as relações de

poder entre essas duas terapias no Brasil.

Temos o curandeirismo, assim como a medicina oficial como dois titãs, logo,

eram largamente utilizadas pela população desde o Brasil colonial. Pois, é a partir da

evidência na utilização de suas terapias, estabelecendo uma corrida pela preferência de

suas práticas, que se dá a produção deste capítulo.

O curandeirismo e a medicina europeia, desde que se estabeleceram como

práticas recorrentes no Brasil sustentaram uma relação de força que adentrou a

contemporaneidade. Nesse contexto histórico pudemos ver que as duas terapias

disputaram acirradamente a clientela e tornaram-se protagonistas de um amplo processo

de formação nacional brasileira.

5 A mitologia por traz de god of war-guerra entre titãs e deuses. Disponível em:

www.iluminerds.com. Acesso: 03/09/2015; 00h05 min.

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19

Para entendermos com maior precisão essa relação de força é de

imprescindível necessidade que entendamos as principais correntes teóricas que tratam

das relações de poder e as literaturas que abordam a temática do curandeirismo e da

medicina oficial. Nesse caso, trabalharemos com as relações de poder explanadas pelo

filósofo e historiador Michel Foucault na sua obra Microfísica do poder, por dialogar

com maior precisão com a nossa pesquisa.

Este livro trata das manifestações de poder nas sociedades capitalistas, e

assegura que “o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma pratica social e, como

tal, constituída historicamente” 6. Nesse sentido, o poder não é algo que se possa ter nas

mãos, que se possa centralizar, a despeito da noção equívoca de que o Estado é o centro

emanante de poder. Este é, necessariamente, um exercício de práticas, de relações.

De forma alguma, esta obra trata da ineficácia do Estado em manter relações de

poder, pelo contrário, ele teria sim os seus mecanismos de controle, de adestramento

social. O que Foucault evidencia é que o fenômeno social caracterizado como poder é

algo que não está em lugar algum, não é algo se se possa ter nas mãos, é um fenômeno

que paira sobre a sociedade, que está muito além dos limites do Estado, mas que nem

por isso, este mesmo Estado, deixa de exercê-lo.

Há poderes que estão desprendidos das entranhas estatais, que podem ou não

caminhar concomitantemente com o Estado, pois, são os micro-poderes, os poderes

moleculares. Eles não foram absorvidos e criados pelo Estado, nem mesmo nasceram

fora dele. Pois, são essas forças sociais que se tornam objeto específico para Foucault.

“O que aparece como evidente é a existência de formas de exercício de poder diferentes

do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive a

sua sustentação e atuação eficaz.” 7. Pois nem mesmo o seu extermínio, “é suficiente

para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede

de poderes que impera em uma sociedade” 8.

Podemos identificar as características supracitadas em diversas literaturas

como em Da doença a desordem: a magia na umbanda que traz significativa

informação sobre uma série de terapias populares no Brasil. “Da doença a desordem

6 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. P. X.

7 Ibid. P. XI.

8 Ibid. P. XIII.

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constitui uma rigorosa análise das práticas terapêuticas da Umbanda e da cosmovisão

que inspira a sua interpretação etiológica da eclosão de moléstias” 9.

O cerne deste livro aponta para a coabitação de várias práticas medicinais

disponíveis aos brasileiros, ainda que o processo de urbanização pressuponha a

decadência dessas práticas populares de cura. Paula Montero assevera que o

curandeirismo recrudesceu mesmo com o avanço da modernidade, desfazendo a ideia de

que este fenômeno é um resquício do mundo rural.

Um ponto forte de sua pesquisa é a afirmação de que o curandeirismo não se

constitui fora do eixo da medicina científica, pelo contrário, esta terapia popular se

inscreve nos moldes científico-medicinais, ainda que represente uma retaliação aos

princípios científicos. Enquanto a medicina científica tenta suprimir a forma tradicional,

esta última, ainda que reflita resistência, toma como referência terapêutica as práticas da

primeira.

A obra Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil de Yvonne

Maggie se debruça sobre as relações de poder do Estado brasileiro diante das práticas

mágico-religiosas no Rio de Janeiro após a instauração da república. O recorte temporal

é de 1890 a 1985. Segundo a autora, esta data foi escolhida devido à riqueza de

documentos recolhidos no Arquivo Nacional, no Museu da Polícia do Rio de Janeiro, na

Secretaria de Segurança Pública e em delegacias. Essas fontes evidenciavam a criação

de vários artigos, leis e processos criminais com a finalidade de regulamentar, reprimir e

conter o avanço do curandeirismo, do espiritismo e do charlatanismo. Na medida em

que passam os anos, os órgãos e artigos judiciais tomavam novas formas a fim de conter

e reprimir tais práticas.

Crença é uma palavra chave dentro deste trabalho, na medida em que “valoriza

as fontes históricas no trabalho antropológico, ao utilizar os processos criminais para

estudar as formas de combate e perseguição às religiões mediúnicas e para analisar a

maneira pela qual a crença na feitiçaria se constitui e se organiza” 10

.

9 MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. — Rio de Janeiro: Edições Graal,

1985. (Biblioteca de Saúde e sociedade; v. n. 10). P. 9. 10

MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:

Arquivo Nacional, 1992. P. 17.

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O objetivo geral da obra é investigar as relações entre a crença na magia

benéfica e maléfica, as acusações de feitiçaria e charlatanismo e os mecanismos sociais

que as regulam. Yvonne Maggie mergulha em diversas teorias antropológicas,

sociológicas e determinista-evolucionistas que tentam explicar como se constitui e é

representado o sistema de crenças nas práticas mágico-religiosas. Segundo ela, essa

crença enche (e encheu) deste o período colonial brasileiro as casas dos curandeiros,

centros, terreiros, as casas de benzedeiras, espíritas e médiuns, de toda forma. A

credulidade na magia também norteou a atuação de juízes, promotores, advogados e

policiais.

A sua hipótese está ancorada na premissa de que as mais variadas formas de

repressão do Estado à magia deram origem a novas formas de cultos mágico-religiosos

e recrudesceram as que já existiam no Rio de Janeiro. Essa afirmação se inscreve no

fato de que era preciso conhecê-las para discipliná-las e socializá-las, pois, eram

conhecidas como práticas de negro e de pobre.

No processo de conhecimento e correção disciplinar, juristas e fiéis acabaram

se entrelaçando, consequentemente, foram influenciados pelo mesmo sistema de

crenças, afinal, “poder e saber caminham juntos e só se pode dominar se há

conhecimento, saber, sobre as práticas dos dominados” 11

.

No complexo emaranhamento sócio-cultural, práticas de branco e de negro

acabam se inscrevendo umas nas outras. Pois, as questões raciais foram alvos de

sucessivos debates na virada do século XIX para o XX, no sentido de se apagar as

marcas do passado colonial, uma vez que a pretensão de médicos e advogados, os

homens de ciência, era desenvolver mecanismos de embranquecimento social.

Nesse contexto e, na tentativa de buscar um entendimento para a questão da

miscigenação racial brasileira no processo de formação da identidade de um Brasil

moderno, Lilia Moritz Schwarcz em O espetáculo das raças: cientistas, instituições e

questão racial no Brasil, explana historicamente as principais teorias positivo-

deterministas advindas da Europa no período de 1870-1930. Esse enfoque é conduzido

pela abordagem social, com o propósito de se entender “como o argumento racial foi

política e historicamente construído nesse momento, assim como o conceito raça, que

11

Idem. P. 29.

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além de sua definição biológica acabou recebendo uma interpretação sobretudo social.”

12.

O recorte temporal foi escolhido devido à falência do sistema escravocrata e

consequentemente, à sua extinção em 1888, e ao advento republicano em 1889, onde era

necessário estabelecer novos padrões sociais. Pois, essa tarefa ficou a cargo dos

principais intelectuais brasileiros que se beneficiaram das correntes teóricas

evolucionistas genuínas da Europa e escreveram, na história brasileira de finais do

século XIX e início do século XX, os princípios paradigmáticos sociais.

O Brasil, em inícios do século XX, ainda passava por transformações

decorrentes dos ideários ocidentais, onde fatores como a urbanização, as questões

raciais, as práticas de negros, como o curandeirismo, eram largamente discutidos. Havia

um movimento que pretendia remover das entranhas sociais brasileiras as heranças

desse passado.

No Maranhão a discussão sobre o tema não foge da realidade do restante do

país. Nesse sentido, a obra Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de

Amélia Rosa, organizada por Mundicarmo Ferretti se debruça sobre a discriminação, o

preconceito e a intolerância contra o negro e a religião afrodescendente no Maranhão,

na segunda metade do século XIX, após analisar o processo-crime de Amélia Rosa,

datado da década de 1870 (1877-1878) em São Luís do Maranhão.

Ao analisar esse processo-crime, Mundicarmo Ferretti evidencia uma tendência

das autoridades em hostilizar a pajelança. Pois o depoimento das acusadas de

curandeirismo e maus tratos a uma escrava, era vertiginosamente sucumbido pelos

efeitos da intolerância religiosa. A necessidade de condenar Amélia Rosa se inscreve na

tentativa de barrar toda e qualquer prática que se encaminhe ao universo

afrodescendente, neste caso, a justiça pretendeu cortar o “mal” pela raiz.

Esse panorama permeia a vida do negro e os seus ritos durante o período

colonial, inclusive, há relatos de casos de intransigência religiosa promovida pela

Inquisição no Maranhão. No entanto, a “caça às bruxas” nesse período não se aplicou

exclusivamente aos negros. Portugueses e índios também eram perseguidos por

12 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P. 17.

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praticarem rituais inconcebíveis à Igreja Católica. “Uma das vítimas da intolerância da

Inquisição ligadas ao Maranhão foi o padre Antonio Vieira que, em 1667, foi impedido

de escrever e de pregar por algum tempo” 13

.

Ao fim da inquisição, período que se aproximava da Independência do Brasil,

esperava-se que as práticas religiosas do negro fossem mais aceitas, no entanto, o que se

viu foi a continuação da intolerância às suas manifestações culturais, ou melhor, “[...]

essa liberdade teve de ser conquistada palmo a palmo, pois a preocupação com a

feitiçaria continuou muito forte e o negro continuou a ser visto como feiticeiro, mesmo

quando era procurado para ‘curar ou desmanchar feitiço’ [...]”14

.

O século XX foi o período áureo das transformações urbanas, da Medicina

Científica, do Direito, sendo esses dois últimos, os pilares da república brasileira. A

intolerância contra as práticas culturais afrodescendentes se exacerbaram

consideravelmente com a criação de órgão públicos de repressão, além de uma enorme

burocracia para o funcionamento de terreiros.

Neste momento, com o discurso de sanear o país, Raimundo Nina Rodrigues

programou uma verdadeira perseguição aos terreiros de “macumba”, fantasiada de

fiscalização. “Se é verdade que em seus textos ele procurava mostrar o quão perniciosa

era a influência dos negros na população brasileira – o que estava em absoluta

consonância com as ideias de seu tempo...” 15

.

Carlúcio Baima de Brito, no seu trabalho de conclusão de curso “Toda cura

para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no tratamento de doenças e na

conservação higiênica de São Luís (1880-1905) ressalta a batalha entre o discurso

médico e as práticas curativas no tratamento de doenças e na conservação da higiene de

São Luís.

A principal problemática deste trabalho consiste no paradoxo da aplicação de

uma conduta sanitária numa cidade onde o processo higienização ainda era muito

incipiente. Dessa forma, no sentido de curar as diversas doenças causadas pelo ambiente

insalubre citadino, a maioria da população, sobretudo, aquela mais humilde, se

13

FERRETTI, Mundicarmo. (org.). Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de Amélia

Rosa. São Luís: CMF/FAPEMA, 2004. P. 19. 14

Ibid. P. 20. 15

Raimundo Nina Rodrigues e a garantia da ordem social. Disponível em:

http://www.usp.br/revistauspmarizacorrea. Acesso: 20/08/2015; 20h35 min.

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beneficiavam das terapias tradicionais disponíveis, já que a medicina oficial estava

restrita a uma pequena parcela da população de São Luís.

O diálogo com as literaturas supracitadas serviu para estabelecer uma reflexão

sobre as relações de poder existentes no Brasil entre o curandeirismo, que se configurou

como uma herança colonial, e a medicina herdada dos portugueses. Essa tônica será

muito evidenciada nos discursos jornalísticos da primeira metade do século XX em São

Luís do Maranhão no sentido de homogeneizar a sociedade aos moldes civilizatórios.

1.2. A CURA OFICIAL E TRADICIONAL: UMA BREVE

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA.

Como seriam as nossas vidas sem a medicina? Afinal de contas, de onde ela

vem? Quem foi o seu criador? Como ocorreu a sua difusão pelo mundo? Essas

perguntas rondam o nosso imaginário, no sentido de se entender como surgiram as mais

variadas formas de cura humana.

A medicina referenda a arte de curar, é promovida por agentes que se lançam

na função de sanar os males do mundo humano. Nesse ínterim, medicinas tradicionais

que ultrapassavam a forma corporal, atingindo a instância espiritual, eram praticadas a

mais de 10.000 anos (dez mil anos a.C). Esses rituais eram chamados de trepanações “e

provocavam pequenos buracos nos crânios dos indivíduos para a saída dos espíritos que

possivelmente seriam a causa de suas doenças.” 16

.

As informações mais condizentes sobre a medicina provêm da antiguidade

egípcia, com as mumificações dos corpos. “Este povo fez grandes avanços na medicina

graças ao seu sofisticado processo de mumificação de corpos. Os mumificadores, ao

abrirem os corpos dos faraós para retirar as entranhas, conseguiam muitas informações

sobre a anatomia humana.” 17

, como é o caso de Imhotep.

Imhotep foi um egípcio considerado o primeiro arquiteto, engenheiro e médico

da história. Além de um famoso construtor de pirâmides, era reconhecido como um

exímio médico e, como o fundador da medicina. Ele é autor de um tratado médico

16

A História da Medicina. Disponível em: http://www.brasilescola.com. Acesso: 15/08/2015; ás 00h36

min. 17

História da Medicina. Disponível em: http://www.suapesquisa.com. Acesso: 15/08/2015; ás 00h48

min.

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muito importante reconhecido hoje em dia como Papiro de Edwin Smith (1700 a.C),

contendo observações da anatomia humana, doenças e curas.

Por ter se tornado o médico mais importante da história egípcia, fato este

ocasionado pela salvação do príncipe egípcio Djoser e sua mãe, “anos mais tarde, ele foi

recompensado por suas ações pelo faraó Djoser que o designou como seu vizir,

sacerdote, arquiteto chefe e astrólogo” 18

.

Devido aos seus inúmeros talentos o povo pressupôs que apenas alguém com

tamanhas qualidades e estreitas ligações com as divindades poderia ter grandioso

reconhecimento. Após sua morte, Imhotep foi deificado, uma escassa ocorrência por ter

sido um mortal não-faraó que se tornou um deus.

Esse fato fere os preceitos ocidentais que apontam a Grécia como sociedade

“mãe” da medicina. No entanto, não pretendemos confrontar tais correntes teóricas,

pretendemos, apenas, utilizar essas duas teorias para evidenciar o quão antiga é essa

terapia.

Sabia-se que os gregos haviam tomado a dianteira nos estudos dos sintomas

das doenças. Por volta de 2.500 (dois mil e quinhentos anos a.C) Hipócrates e Galeno

iniciaram os estudos das doenças e do corpo humano. Após esses dois, poucos avanços

tiveram os estudos medicinais.

Na idade média os médicos utilizavam as sangrias, pois, o uso de sanguessugas

era muito comum. Mas, essas práticas eram grandiosamente limitadas devido às

influências da Igreja Católica que condenavam as pesquisas científicas. O Renascimento

Científico, ainda na idade média, rompeu com as limitações do clero e proporcionou

consideráveis avanços científicos. “Movidos por uma grande vontade de descobrir o

funcionamento do corpo humano, médicos buscaram explicar as doenças através de

estudos científicos e testes de laboratório.” 19

.

Os estudos do corpo humano ganharam novas feições no século XIX com a

invenção do microscópio acromático. Com essa descoberta o cientista Louis Pasteur

18

Estatueta de Imhotep. Disponível em: http://medicineisart.blogspot.com.br/2010/10/estatueta-de-

imhotep.html. Acesso: 08/01/2016; 16h00min. 19

Ibid. História da Medicina. Disponível em: http://www.suapesquisa.com. Acesso: 04/10/2015;

17h18min.

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revolucionou a medicina com a descoberta de que eram as bactérias as causadoras da

maioria das doenças.

No Brasil, desde os primeiros anos de colonização se têm notícias do uso da

medicina indígena e, décadas depois, da medicina africana. Ao longo de todo período

colonial a junção entre essas duas terapias travou árdua batalha com a medicina advinda

de Portugal, acentuando-se gradativamente com o passar dos séculos para então, na

segunda metade do século XIX encontrar o seu ápice com a oficialização da medicina.

Durante os três primeiros séculos de história do Brasil, isto é, durante o período

colonial, a medicina de cunho tradicional exercia-se soberanamente sobre aqueles

conhecimentos medicinais trazidos de Portugal.

Com efeito, muitas vezes garrafadas

e benzeduras eram preferidas e gozavam de maior prestigio social

do que as sangrias e ventosas aplicadas pelos barbeiros. "E melhor

tratar-se a gente com um tapuia do sertão que observa com mais

desembaraçado instinto, do que com um médico de Lisboa", observa

o bispo do Para, Dom Frei Caetano Brandão20

.

Esse panorama na preferência pela medicina tradicional pode ser explicado

pela existência de um irrisório número de profissionais com formação na ciência

hipocrática. Essa característica provocava de forma acentuada a preferência pela

pluralidade medicinal.

A inexistência de escolas de formação científica no Brasil atendia de antemão

aos interesses da coroa portuguesa. Sendo assim, quem desejava trilhar o caminho da

medicina, tinha que atravessar o oceano atlântico até as escolas mais renomadas de

Portugal, especificamente, as de Coimbra. “Até o século

XIX, o número de médicos diplomados é, portanto, mínimo, não

chegando, segundo os dados obtidos por R. Machado, em nenhum

momento, durante os séculos XVII e XVIII, a dez profissionais” 21

.

Soma-se ainda a questão do extrato social que gozavam os profissionais

médicos que eram oriundos das camadas populares metropolitanas e desfrutavam de

pequenos rendimentos. Esses profissionais em sua maioria eram escassos cirurgiões

barbeiros e aprendizes de boticário que vieram nas expedições dos donatários das

capitanias. Os profissionais portugueses gozavam de pouco prestígio social, não eram

20

MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 25. 21

Ibid. P. 25.

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considerados “homens bons”. Durante os dois primeiros séculos foram classificados

entre os homens-de-ofício, socialmente inferiores aos nobres e burgueses.

Esses profissionais eram em sua maioria humildes

imigrantes, judeus e, cristãos novos que, ao instalar-se o Santo

Oficio em Portugal, em 1547, deixaram o país para escapar aos

pesados tributos e as acusações de heresias anunciadas

continuamente pelos tribunais da Inquisição. Esses homens não

pertenciam portanto a estrutura de poder da colônia.22

A medicina sofreu poucos avanços durante os séculos XVII e XVIII, logo, ela

chegava ao Brasil, bastante desatualizada. Os livros eram insuficientes e desatualizados

e os poucos que havia, os escassos profissionais não os detinham devido aos altos

preços.

A falta de escolas era um fator que proporcionava a indistinção entre

curandeiros e médicos-oficiais. Mas, esse cenário mudará no início do século XIX,

especificamente, a partir de 1808, com a vinda da Família Real Portuguesa para o

Brasil. Esse momento é marcado pela invasão de Portugal pelas tropas de Junot,

obrigando D. João VI a embarcar com a maior parte da sua coroa para o Brasil. Dessa

forma, o estabelecimento do império brasileiro fundará instituições centralizadoras que

reproduzirá “de forma perfeita o antigo domínio colonial” 23

.

Formava-se concomitantemente com o domínio imperial uma classe ilustrada

que ora dependia da administração imperial, e ora deflagrava certa autonomia no que

tange a legitimação de um discurso dominante, sendo este, alinhado aos interesses

metropolitanos.

O pós-independência propiciará aos médicos-oficiais maior notoriedade, uma

vez que o centro das decisões políticas passará do campo para a cidade e a fundação das

primeiras escolas de medicina do império legitimará parcialmente a profissão de

médico.

Vinculado de maneira mais ou menos diretas às elites econômico-financeiras

do país, esse primeiro grupo de intelectuais brasileiros, até meados do século

XIX, conformava um perfil bastante homogêneo em termos de formação e

carreira.

A partir desse momento, porém, certas diferenças regionais e mesmo

profissionais começam a ser percebidas. Primeiramente, com o

22

Ibid. P. 26-27. 23

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no

Brasil. Op. Cit. P. 23.

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fortalecimento da produção cafeeira durante a década de 50 e a concomitante

mudança do eixo econômico do país - da Região Nordeste para a Sudeste -,

ocorre uma paralela diversificação entre as várias instituições científicas. Ou

seja, os estabelecimentos situados nas cercanias dos novos centros

econômicos do país foram progressivamente mais bem aquinhoados do que

os demais24

.

Na segunda metade do século XIX veremos uma nova transformação no

cenário político brasileiro. A chegada tardia das principais correntes teóricas europeias

permeará o pífio ideário científico da década de 1870. Essas teorias absorvidas

tardiamente adentrarão as faculdades de medicina e direito e, consequentemente, esses

dois ofícios se autolegitimarão como os encarregados de conduzir a política brasileira.

Esse novo ideário foi decorrente das transformações sociais consequentes da decadência

do sistema escravocrata e sucessivamente, do seu fim, associado ao advento

republicano.

O evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social darwinismo

conformarão uma ideologia onde era necessário que se rompesse com as antigas

concepções coloniais e metropolitanas. “Guardadas as especificidades de cada

disciplina, o que se pode afirmar é que em todos os lados reformulavam-se concepções

científicas arraigadas e faziam-se das pesquisas e experimentações procedimentos de

contestação às antigas concepções” 25

.

O século XX não proporcionou significativas mudanças para a medicina.

Mesmo com os avanços do final do século XIX, o que se via ainda era o misto de

práticas oriundas da antiga medicina europeia mescladas às práticas da medicina de

ordem afro-indígena, e a busca por legitimação fomentou uma relação de forças durante

todo o processo histórico brasileiro entre essas respectivas terapias medicinais e

adentrará o século XX com novas feições, mas, sem significativas transformações para a

medicina científica.

Seguindo essa lógica, A obra Medicina rústica26

de Alceu Maynard Araújo é

baseada numa pesquisa datada da década de 1950, na cidade de Piaçabuçu, no Estado de

Alagoas, às margens do rio São Francisco. A tese central deste livro consiste na

tentativa de amalgamar duas formas bastante peculiar de tratamentos médicos: a

medicina tradicional e a medicina científica.

24

Ibid. P. 24-25. 25

Ibid. P. 30. 26

ARAÚJO, Alceu Maynard. Medicina rústica. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.

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Os pressupostos de Alceu Maynard estão ancorados na estrutura social de

Piaçabuçu. Isto é, Piaçabuçu é uma cidade assim como várias cidades brasileiras de

meados do século XX, cujos habitantes careciam de melhor assistência política,

econômica e social. Onde o panorama da vida social “moderna” não possibilitou o seu

alvorecer. Medicina rústica trata profundamente da hostilidade da medicina científica

em relação às práticas tradicionais de cura, sendo assim, médicos e enfermeiros vindos

da cidade grande em muitas ocasiões chegavam até a ridicularizar as concepções e

práticas de cura da população residente nas distantes plagas da nação.

Já mencionamos que na relação entre dominadores e dominados há uma

inserção do primeiro grupo nos interstícios do segundo, ou, vice-versa. Essa mescla de

concepções possibilitava que as mesmas pessoas que pretendiam suprimir as práticas

tradicionais de cura sejam afetadas por esse sistema de crenças, o que nos possibilita a

compreensão de que os dois ideais de cura não formam um todo homogêneo. Essa

evidência aponta para o fato de que havia categorias de doenças que perpassavam as

fronteiras do compreensível e interagiam com concepções de cura “sobrenaturais”, logo,

não podiam ser compreendidas por esses médicos.

Em meados do século XX a medicina científica ainda era pouco difundida no

Brasil. A maioria das cidades, sobretudo, aquelas distantes dos grandes centros urbanos,

eram as mais atingidas pela falta de assistência médico-social. A medicina oficial ia

paulatinamente adentrando essas pequenas cidades, consequentemente, o principal

conflito após a chegada de médicos e enfermeiros em Piaçabuçu é decorrente da forma

pouco amistosa com que esses profissionais tratavam as variadas formas de cura. Por

isso, assegura Maynard, esta literatura se torna uma contribuição da antropologia social

à medicina.

Ele desenvolve um rico discurso apelativo para que a ciência antes de

evidenciar as suas metodologias na aplicação da sua terapia leve em consideração as

práticas rústicas de terapia da população de Piaçabuçu. As pessoas dessa cidade ainda

não teriam desligado as práticas mágicas das religiosas, assim como ainda não

conseguiram aceitar as práticas “modernas” de cura. Para aquelas pessoas, a medicina

tradicional associada às práticas mágico-religiosas, passada de geração para geração

ainda se configuravam como a forma mais eficaz de tratamento.

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A intenção desta obra é oferecer um panorama, onde os médicos, assim como o

governo, possa melhor assistir a população de Piaçabuçu sem comprometer em grande

escala as suas práticas culturais. Ou seja, o autor sugere que haja um entrosamento entre

as práticas científicas e tradicionais da medicina e que se percebam as peculiaridades

das formas de cura dessa população.

A Medicina Social seria uma ideologia, uma visão no que tange o tratamento

médico, onde a medicina acadêmica levasse em conta as práticas da medicina

tradicional. Dessa forma, a população, ao invés de repudiar as práticas da medicina

científica, poderia ver que tais práticas seriam uma continuidade, um apoio às suas

práticas tradicionais.

Diante dessas questões, a obra Médicos e curandeiros: conflito social e saúde27

de Maria Andrea Loyola versa sobre o pluralismo medicinal presente na cidade de Nova

Iguaçu no inicio da década de 1980, especificamente, no bairro de Santa Rita, localizado

na periferia da cidade, no Estado do Rio de Janeiro.

Havendo enormes fatores sociais que impediam uma assistência de saúde

eficaz à população de Nova Iguaçu, sobretudo, aquelas pessoas que se encontravam nas

regiões periféricas da cidade, especialistas da medicina de diversas ramificações

disputavam a sua preferência. Esses embates, além de terem sido, em parte, resultados

da ineficiência assistencial do Estado diante de sua população, proporcionaram conflitos

sociais entre os próprios especialistas e, entre esses especialistas e a população.

De um lado, os médicos acadêmicos tentavam a todo custo legitimar a sua

prática medicinal frente ao avanço das práticas populares, do outro, especialistas

tradicionais ou populares exerciam uma importante função diante do ineficiente quadro

médico presente no sistema de saúde de Nova Iguaçu, sendo muitas vezes, as práticas da

medicina tradicional, a única forma de terapia disponível para a população.

Andrea Loyola acentua ainda que o fator econômico funcionava de modo a

afastar ou aproximar os procedimentos oficiais de cura das respectivas populações. Ou

seja, o poder aquisitivo ocasiona a bipartição populacional entre os que possuem poder

aquisitivo e os que não possuem. Os mais ricos tendem a se aproximar do universo

27

LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. Rio de Janeiro: DIFEL –

Difusão editorial s.a, 1982.

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31

oficial da medicina e os menos abastados, do mundo tradicional da cura, ainda que

ambos sejam afetados pelos dois antagônicos sistemas de crenças. Os médicos, também,

são atingidos pelo mesmo fenômeno.

Assim, no topo da hierarquia médica, o subespaço da medicina oficial

concentrado no centro de Nova Iguaçu, o grau de inserção dos médicos nas

instituições profissionais sustentadas direta ou indiretamente pelo Estado

(hospitais, clínicas, etc.) está ligado ao volume do capital econômico, social e

escolar que possuem: quanto maior for o volume desses capitais, mais

importantes serão suas funções institucionais, mais sua prática será

institucionalizada, burocratizada e afastada da religião e menos sua clientela

será popular28

.

Como é possível observar, frente ao processo de legitimação das duas terapias

medicinais ambas acabam travando um duelo pelas suas legitimações desde o período

colonial, passando por poucas, mas, importantes transformações no decorrer da história.

A nossa intensão neste tópico foi fazer uma trajetória das duas terapias

medicinais. Pois, além de se confrontarem pelo campo de atuação, ambas defendem

rigorosamente os seus fundamentos. Mas, o que possibilitou que o curandeirismo

fincasse raízes tão profundas a ponto de subverter valores científicos que exercem o

poder de mando nesta sociedade? Essa interrogação será o ponto de partida para

entendermos esse universo de relações tão conflituosas.

1.3. HOSPITAIS POPULARES: DISCURSO MÉDICO-OFICIAL E O

PARADÓXO DO CONTEXTO CITADINO LUDOVICENSE.

São Luís, assim como a maioria das capitais brasileiras nas primeiras décadas

do século XX, tocava o ritmo de sua política baseada nas sociedades capitalistas

europeias. A ciência, mesmo incipiente, ordenava o caminhar, o adestramento, e o

controle sobre os homens se firmava em diversos segmentos.

A medicina social e, consecutivamente, a científica foi um mecanismo que

obteve o controle da sociedade. “O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera

simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo a corpo. Foi no

biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista”

29.

28

Ibid. P. 19. 29

Foucault, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 80.

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32

Desde o final do século XVI e início do século XVII as nações europeias se

preocupavam com o estado de saúde de sua população numa esfera política, econômica

e científica. Essa época foi caracterizada pelo domínio do mercantilismo, pois, se sabia

que junto com as embarcações havia homens, possivelmente carregando consigo,

enfermidades, e as mercadorias a serem comercializadas estavam propícias a

contaminações. Soma-se ainda a fome e as diversas epidemias que assolavam a Europa

e debilitavam a sua população. Nesse sentido, era necessário desenvolver uma medicina

de cunho social que atendesse diretamente os interesses nacionais como a Medicina de

Estado desenvolvida na Alemanha.

Com a organização de um saber médico estatal, a normalização da profissão

médica, a subordinação dos médicos a uma administração central e,

finalmente, a integração de vários médicos em uma organização médica

estatal, têm-se uma série de fenômenos inteiramente novos que caracterizam

o que pode ser chamada a medicina de Estado30

.

Na França se constituirá uma medicina social baseada no medo. O crescimento

das cidades promoverá uma multiplicação maciça das oficinas, o alargamento dos

cemitérios que cada vez mais se aproximam das residências, as construções cada vez

mais elevadas das casas correndo o risco de desmoronamento, o despejo gradativo e

acentuado dos esgotos, dentre outros, fez com que as autoridades desenvolvessem um

sistema médico-administrativo desses problemas. Esse amontoado de gente e animais

propiciou uma deflagração de epidemias, o que era algo bem comum na Europa do

século XVIII, e fomentará aquilo que Michel Foucault vai chamar de medo urbano ou

medo das cidades, pois, foi esse medo que possibilitou o surgimento da Medicina

Urbana francesa.

A Medicina Social tinha a incumbência primordial de atender o pobre, pois era

ele que se ocupava com os serviços gerais como os de carteiro, a mão-de-obra das

oficinas, a eliminação de dejetos e de utensílios móveis velhos, dentre outros. “Na

medida em que faziam parte da paisagem urbana, como os esgotos e a canalização, os

pobres não podiam ser postos em questão, não podiam ser vistos como um perigo. No

nível em que se colocavam, eles eram bastante úteis” 31

.

Com a criação de um sistema postal de entregas e de carregadores no século

XIX surgiu uma sucessão de revoltas populares. Foucault assegura que as diversas

30

Ibid. P. 84. 31

Ibid. P. 94.

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dispensas de trabalhadores retirou do pobre a possibilidade de subsistência no complexo

e imóvel contexto social europeu.

Mas, os conflitos não pararam por aí, pois, foi na Lei dos Pobres que a

Inglaterra fundou a sua Medicina Social na medida em que era necessário que se fizesse

um controle médico do pobre. Essa característica irá favorecer a criação de bairros de

pobres e bairros de ricos, logo, anteriormente a esse evento, não havia uma preocupação

acentuada em delimitar as referidas áreas. Segundo Foucault, a Medicina dos Pobres

possibilita a análise de um leque de opções por suscitar resistência, não somente na

Inglaterra, mas, em diversos países do mundo.

Essa fórmula da medicina social inglesa foi a que teve futuro, diferentemente

da medicina urbana e sobretudo da medicina de Estado. O sistema inglês de

Simon e seus sucessores possibilitou, por um lado, ligar três coisa: assistência

médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e esquadrinhamento

geral da saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos

perigos gerais. E, por outro lado, a medicina social inglesa, esta é sua

originalidade, permitiu a realização de três sistemas médicos superpostos e

coexistentes; uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma

medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação,

as epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios

para pagá-la. Enquanto o sistema alemão da medicina de Estado era pouco

flexível e a medicina urbana francesa era um projeto geral de controle sem

instrumento preciso de poder, o sistema inglês possibilitava a organização de

uma medicina com faces e formas de poder diferentes segundo se tratasse da

medicina assistencial, administrativa e privada, setores bem delimitados que

permitiram, durante o final do século XIX e primeira metade do século XX, a

existência de um esquadrinhamento médico bastante completo.32

A medicina científica, fruto da medicina social, promoveu a marginalização, a

exclusão das classes populares na Inglaterra. O completo e complexo sistema

organizacional de pobres e ricos, ao mesmo tempo em que desenvolvia métodos de

conter as epidemias, também servia para seccionar os pobres das áreas de atuação dos

ricos. Essa medida permitiu a eclosão de resistências, logo, os lugares destinados à

população menos abastada sofriam com sérios problemas sociais como violência, falta

de pavimentação e higienização urbana, prostituição, alcoolismo, assistência médica e

hospitalar, dentre outros problemas.

Ao nos determos nesses fatos é possível apreender que esse modelo foi adotado

pelo Estado brasileiro e, consequentemente, pelo Maranhão a partir da década de 1870,

como foi supracitado, que a partir dessa data uma gama de teorias positivo-

deterministas anacrônicas e alimentadas pelo processo abolicionista adentraram no

32

Ibid. P. 97-98.

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Brasil. Essa nova era recrudesceu após o advento republicano. Logo, autoridades,

intelectuais e a população mais rica atribuíam à periferia toda espécie de discriminação

e preconceito como às conferidas às periferias inglesas. No entanto, é preciso que

compreendamos o contexto de São Luís. A capital maranhense segue uma lógica bem

diferente das cidades inglesas. O fator étnico-cultural afrodescendente é um mecanismo

decisivo para a compreensão da dinâmica progressista ludovicense.

Os jornais que circulavam na cidade se constituíam como o principal veículo

de acusação, pois, deflagravam uma incessante campanha discriminatória contra a

pajelança. O importante a ser notado nesses periódicos é a falta de análise crítica sobre

uma cidade paradoxalmente seguidora de um ideal erroneamente aplicado numa terra já

bastante mestiçada.

Em um artigo33

datado de 03/07/1915, o articulista denuncia a frequente

atuação de um curandeiro, alcunhado de José pé de bola, no perímetro central de São

Luís. A larga procura se daria por conta da fama do pajé em exercer a medicina mágico-

religiosa e de precedentes afro-indígenas. A denúncia se encerra fazendo um apelo às

autoridades policiais para que sejam tomadas as providências cabíveis, logo, o

curandeiro estaria exercendo uma prática ilegal.

Já comentamos que São Luís se espelhava no modo de vida das sociedades

ocidentais capitalistas. O modo de se vestir e de se portar diante dos outros eram

algumas características bastante acentuadas. No entanto, havia algo a ser questionado.

São Luís oferecia um misto de comportamentos típicos de uma região onde era

extremamente difícil aplicar uma lógica social fundamentada nos padrões europeus.

O caráter étnico-religioso da população foi um dos principais “agravantes” para

que a capital maranhense não pudesse desenvolver-se aos moldes europeus. A prova

disso está nos periódicos que circulavam pela cidade no primeiro quartel do século XX.

No artigo34

de jornal datado de 07/07/1915 o informante denuncia mais uma

prática de pajelança em São Luís. Na denúncia, aspectos como a cor da pele, a

33

A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 03/07/1915. Fonte localizada no Arquivo Público do Estado do

Maranhão, no centro histórico de São Luís. 34

A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 07/07/1915. Fonte localizada no Arquivo Público do Estado do

Maranhão, no centro histórico de São Luís.

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ingenuidade das pessoas e exercício da feitiçaria são ressaltados no sentido de se

depreciar a prática de cura.

Outro aspecto evidenciado é a utilização de um órgão público tradicional como

a Escola dos Educandos Artífices do Estado, na qual mora Roza Guarda-mor, como

referência subsidiária para que a pajelança seja vista como algo pernicioso à sociedade,

haja vista que as sessões são bastante concorridas, explica o informante.

O contexto higiênico e sanitário de São Luís da primeira metade do século XX

era bem parecido com o da Europa dos séculos XVII e XVIII descrito por Michel

Foucault. As ruas eram infestadas de ratos, o esgoto corria a céu aberto e não havia

nenhuma espécie de tratamento sanitário, o que, em muitos casos, originava uma

sucessão de epidemias, como a peste bubônica.

Juntamente com a varíola, outra doença assolou o Maranhão, principalmente

a cidade de São Luís: a peste bubônica. Segundo o médico sanitarista carioca,

Dr. Vitor Godinho, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

em 1887, a epidemia ocorreu no período de 17 de outubro de 1903 a 30 de

maio de 190435

.

Essa situação perdurou por grande parte do século XX e, é nesse contexto de

epidemia que os hospitais populares ou terreiros de cura se mostravam eficientes

quando o assunto era o tratamento de populares e abastados. Eles eram recorrentemente

procurados por toda espécie de gente, do mais simples popular, ao mais abastado

ludovicense. Eram os responsáveis por perpetuar os costumes afro-indígenas, herdados

pela gente simples e marginalizada.

Em um artigo datado de 05/07/1915, o articulista evidencia brevemente o

exercício ilegal da medicina no centro da cidade. A utilização de artefatos “estranhos”,

como penas de aves, enxofre e chifres de animais são evidentemente condenados pelo

informante, e o pedido de ação da polícia no combate à pajelança, para ele, se faz

necessário.

Parece que os pajés estão em plena atividade.

Noticiamos, no sábado, a existência de um ao caminho da Boiada.

Disseram-nos agora que na caza nº 23, da rua de S. Pantaleão, ha também

qualquer panacéa idêntica.

35

BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no

tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). São Luís: Editora da

UEMA, 2012. P. 46. Monografia de graduação.

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36

Durante o dia os vizinhos são incomodados. Queimam-se chifres, breu,

enxofre, penas de aves, etc.

E’ um horror!

Pedimos a atenção da policia36

.

Nesse sentido, é possível observar que as autoridades ludovicense pouco se

importavam com as questões assistenciais da população. Quase não havia hospitais, e os

poucos existentes, seguiam a lógica dos hospitais da Europa setecentista, ou seja,

serviam mais como morredouros. Os abastados podiam, quando não estavam nos

terreiros de cura tradicional, pagar por um médico e, geralmente, faziam todo o seu

tratamento em casa.

Temos uma noção um tanto equívoca, numa concepção generalizada, de que o

hospital, durante parte do século XIX e no início do século XX, era um lugar para tratar

e curar as doenças, fazendo com que o paciente retornasse à sociedade com a saúde

restabelecida. Pois, as tecnologias promoveram algumas melhorias ao atendimento

hospitalar, mas ainda perdurava um imaginário provindo da idade média onde os

hospitais não se configuravam como lugares de cura, pelo contrário, eram lugares

funestos, aonde as pessoas iam para morrer.

Antes do século XVII, na Europa, o hospital era concebido como um lugar

onde o pobre ia buscar a salvação espiritual. O pobre precisava de assistência, pois,

como pobre, era portador de doenças, e como tal, era perigoso. Além de servirem como

morredouros, também, serviam para excluir os que deviam se afastar das cercanias

sociais. “O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é

preciso curar, mas o pobre que está morrendo [...]. Dizia-se correntemente, nesta época,

que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer” 37

. O pessoal incumbido de

prestar assistência, não era especializado na arte de curar, eram geralmente leigos que

prestavam serviços com intento não de promover a cura, mas a salvação espiritual.

No limiar setecentista europeu procurou-se primeiramente eliminar o

imaginário negativo dos hospitais, para depois atuar positivamente sobre o doente. Não

se preocuparam de imediato em atender à demanda de enfermos, mas, exterminar as

expressões fúnebres, como a de morredouros, de lugar de pobre e de doença. Foi

36

A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 05/07/1915. Fonte localizada no Arquivo Público do Estado do

Maranhão, localizado no centro histórico de São Luís. 37

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 101.

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37

necessário que se criasse uma série de mecanismos disciplinares e hierárquicos para

aperfeiçoar o espaço hospitalar. O médico apareceu como o encarregado dessa

organização, de acordo com Foucault, o poder disciplinar conferido ao médico se deve

às transformações científicas da época e da disciplinarização do espaço hospitalar,

ocasionando o aparecimento de uma medicina hospitalar.

É, portanto, o ajuste desses dois processos, deslocamento da intervenção

médica e disciplinarização do espaço hospitalar, que está na origem do

hospital médico. Esses dois fenômenos, distintos em sua origem, vão poder

se ajustar com o aparecimento de uma disciplina hospitalar que terá por

função assegurar o esquadrinhamento, a vigilância, a disciplinarização do

mundo confuso do doente e da doença, como também transformar as

condições do meio em que os doentes são colocados. Se individualizará e

distribuirá os doentes em um espaço onde possam ser vigiados e onde seja

registrado o que acontece. 38

Enfim, a Medicina Social não é necessariamente uma medicina do corpo, do

biológico, mas uma medicina das coisas, da água, do ar, e teve um papel fundamental

no engessamento da medicina científica. Afinal, “a inserção da medicina no

funcionamento geral do discurso e do saber científico se fez através da socialização da

medicina, devido ao estabelecimento de uma medicina coletiva, social, urbana” 39

.

A supressão, teoricamente, do curandeirismo se consolida dentro do universo

de concepções da medicina científica. Logo, a instauração de uma prática de cura de

ramificação positivista, oficializada pelo Estado tendeu a marginalizar as demais

terapias existentes, agregadas, ou não, ao contexto médico-hospitalar.

Na discussão sobre os mecanismos que possibilitam o exercício de poder, é

destacado o saber. Pois, saber e poder se implicam mutuamente, resguarda Foucault. Ele

é uma peça de um sistema que sem a sua existência não existiria o poder, nesse sentido,

o poder constitui novos campos de saberes. Aqui encontramos um conflito referente à

pluralidade medicinal, sendo assim, as duas medicinas, a de ordem oficial e a de ordem

tradicional pressupõem dois mecanismos para se entender os referidos universos de

saberes.

A otimização do ambiente hospitalar não atingiu o Brasil, assim como, o

Maranhão. O que se via era a quase inexistência de hospitais, e os poucos que haviam

destinavam aos populares a faceta de morredouro. Durante todo o século XX é possível

38

Ibid. P. 107-108. 39

Ibid. P. 92.

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encontrar relatos da população em jornais, literaturas e em fontes orais afirmando a sua

preferência pelo tratamento nos hospitais populares ou terreiros de cura. A linguagem

adotada pelos pais-de-santo se aproximava da realidade do pobre, pois, ambos

compartilham do mesmo universo de representações.

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39

2. CURANDEIRISMO E RELIGIÃO: REPRESENTAÇÃO RELIGIOSA,

COERSÃO CULTURAL E RESISTÊNCIA SOCIAL.

2.1. A RELIGIÃO POR TRÁS DAS REPRESENTAÇÕES DO UNIVERSO

MÁGICO-RELIGIOSO DO CURANDEIRISMO.

Na tentativa de fornecer algumas explicações plausíveis sobre religião, Émile

Durkheim discorre sobre a origem do fenômeno religioso. Os estudos sobre religião

pressupõe uma fase madura da teoria durkeiminiana. Em sua pesquisa, o estudo do

fenômeno religioso torna-se central, pois foi no seio desta abordagem que elegeu o

totemismo australiano como objeto de pesquisa e, neste, encontrou a forma mais

elementar, o substrato mais puro desse fenômeno, por ele, ser menos influenciado pela

ação humana. Uma das ferramentas que utilizou foi a disponibilidade de documentos

sobre a sociedade formada em clãs, como as sociedades aborígenes australianas. Para o

autor, quanto mais antiga for a religião, mais próxima da sua originalidade ela estará,

pois, ela dispensaria elementos de religiões antepassada e poderia revelar um caráter

essencial da vida humana.

Émile Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa: o sistema

totêmico na Austrália se propõe a buscar a origem do fenômeno religioso, tendo como

base a análise do totemismo australiano e, encontra na sociedade, no pensamento

coletivo, a sua origem. Ele afirma que não é na efervescência das multidões que se

localiza a origem da religião, é simplesmente, o contrário, as comemorações, os rituais e

práticas coletivas só podem existir com o amparo da religião elementar. Conclui, dessa

forma, que não é no âmago da sociedade que se encontra a origem do fenômeno

religioso, mas, na anterioridade religiosa que se funda a sociedade.

A referida obra, em alguns momentos, apresenta algumas inconsistências, pois,

Durkheim, por mais que afirme que as representações religiosas é o fator que semeia o

sentimento social, se lança na função de afirmar tal teoria contraditoriamente.

Portanto, é nesses meios sociais efervescentes e dessa própria efervescência

que parece ter nascido a ideia religiosa. E o que leva a confirmar que essa é

bem a sua origem é que, na Austrália, a atividade propriamente religiosa está

quase toda concentrada nos momentos em que ocorrem as assembleias40

.

40

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. 3.

ed. São Paulo: PAULUS, 2008. P. 274.

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40

À medida que surgem as sociedades são originadas representações, ideias que

lhes são inerentes, o que significa dizer que a ideologia é uma ferramenta indispensável

à constituição social, daí a escolha das sociedades elementares. Acredita que através do

totemismo seria possível obter um entendimento mais próximo do “real”, no que

concerne à originalidade social, no que tange a captação do substrato mais puro do

fenômeno religioso. As sociedades elementares ofereceriam um modelo de

uniformidade social. “Ora, a organização á base de clãs é a mais simples que

conhecemos. Ela existe, com efeito, com todos os seus elementos essenciais, desde que

a sociedade compreende dois clãs primários” 41

.

A obra dispõe de uma abordagem evolucionista, no entanto, Émile Durkheim

dispensa o sentido de progresso moral por acreditar que cada sociedade é composta por

códigos originais, o que desfaz a ideia de primitividade e evolução, concedendo, dessa

forma, ao caráter evolutivo, uma faceta justificável, o tomando apenas como base para

se entender o surgimento da religião. Ou seja, ele usa o evolucionismo apenas para

buscar na história das sociedades totêmicas o embrião da origem do fenômeno religioso.

Durkheim se debruça sobre a ciência e afirma que ela jamais poderia substituir

a religião. Há uma essência permanente na religião que o autor francês denomina de

mana. Esse fenômeno seria a ferramenta constituinte da moral coletiva, ou seja, algo

que a ciência não possui. “Se um povo não tem fé na ciência todas as demonstrações

científicas não terão influência sobre esses espíritos. Também hoje em dia, se a ciência

vem a resistir a uma corrente muito forte da opinião pública, correrá o risco de com isso

perder o seu crédito” 42

.

Os homens sentiram a necessidade de se dotarem de um fator decisivo que

pudesse fazer interligação com os outros. Pois, foi no caráter coletivo, nas práticas, nos

ritos e costumes que este homem encontrou aquilo que poderia o identifica-lo. Para

alcançar essa coletividade precisaram se dispor de um fator primordial, algo que não

fosse uma coerção moral, não fosse uma mera disciplina, teria que ser um fenômeno que

penetrasse em seus corpos e mentes sem os reprimir moralmente.

Segundo Émile Durkheim, foi assim que surgiu a religião. Um fenômeno que

adentrou coletivamente e sem opressão moral o universo humano, além de ter originado

41

Ibid. P. 215. 42

Ibid. P. 263.

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a sociedade como estrutura que a conhecemos. “Mas ela é, antes de tudo, um sistema de

noções através das quais os indivíduos compreendem a sociedade de que são membros,

e as relações, obscuras mais íntimas, que mantêm com ela” 43

.

Com base no pensamento durkeiminiano, a obra maranhense Missa, culto e

tambor: os espaços da religião no Brasil discorre acerca dos estudos do catolicismo, do

protestantismo e das religiões afro-brasileiras. “Embora utilizando termos referentes ao

ritual de cada religião oficial esta obra discorre não somente sobre os rituais ou as

liturgias de cada segmento, mas sobre os sentidos destas vivências religiosas no

cotidiano dos sujeitos sociais, sob diferentes olhares” 44

.

Em outras palavras, este livro se refere aos ambientes ocupados por essas

religiões que, segundo Lyndon de Araújo Santos45

, num dado momento se apresentam

tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes uns dos outros, além de serem bastante

sincretizados. “As religiões no Brasil ocupam territórios que ultrapassam as fronteiras

do próprio limite do que seja o religioso, invadindo o político e o cultural, permeando as

relações sociais e definindo atitudes e visões de mundo” 46

.

A dissertação de mestrado Navegando em duas águas: tambor de mina e

pajelança em São Luís do maranhão na virada do século XIX para o XX47

tem como

objeto de estudo o discurso modernista republicano de virada do século XIX para o

século XX que considerava o tambor de mina e a pajelança como infortúnios, por

estarem diretamente ligados a um passado ancestral negro e indígena.

Thiago Lima dos Santos trava um debate entre o discurso modernista do Estado

brasileiro pré-republicano e pós-republicano, e o discurso popular social no que tange às

práticas de negro no sentido de apregoar como estes discursos modernistas se

constituíram como um paradoxo à realidade social brasileira. A sua abordagem social e

religioso-cultural tem como objetivo central evidenciar como as práticas e os costumes

de negros, especificamente a pajelança e o tambor de mina, se consolidaram

43

Ibid. P. 281. 44

CARREIRO, Gamaliel da Silva; FERRETTI, Sergio Figueiredo. Et. al. (Orgs.). Missa, culto e

tambor: os espaços da religião no Brasil. São Luís; EDUFMA/FAPEMA, 2012. P. 5. 45

Doutor em História, Professor do Departamento de História da UFMA, Coordenador do Grupo de

Pesquisa História e Religião. Este professor e, pesquisador também é responsável pela escrita da

apresentação da obra em questão. 46

Ibid. P. 5. 47

SANTOS, Thiago Lima dos. Navegando em duas águas: tambor de mina e pajelança em São Luís

do maranhão na virada do século XIX para o XX. São Luís: Ufma, 2014. Dissertação de Mestrado.

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42

paralelamente às normas do Estado, mesmo com as perseguições dos órgãos

reguladores.

A pajelança teria de forma direta e desprestigiada um lugar de destaque no

Maranhão por se configurar como única forma de terapia medicinal à população mais

carente e devido à sua procura. Essa prática perpassaria pelo universo religioso na

aplicação de uma medicina de cunho tradicional. Ou seja, a dimensão do curandeirismo

ou pajelança em São Luís pressupõe uma terapia de ordem natural e sobrenatural na sua

função terapêutica. Não se trata, apenas, de uma prática manipuladora de ervas

medicinais curativas, mas, de uma prática terapêutica natural associada a rituais mágico-

religiosos.

Pajelança. Informaram-nos que por traz do hospital militar moram dois indivíduos de

cor preta, de nomes Porfírio e Angelo, que vivem a engodar os ingenuos,

praticando feitiçarias.

Os seus dias de consultas são os sábados, à noite, e os domingos, de manhã e

à noite.

Durante as funções, têm a palavra a fumarada e o maracá.

Porfírio que é o mais velho e, por isso mesmo, pai do terreiro, vira santo do

fundo: o são verequete, e Angelo, carrega são João.

Hontem, à noite, efetuou-se uma meza de pajelança à rua 18 de Novembro,

na caza que fica quase em frente ao sitio onde foi a escola dos educandos

artífices do Estado, e na qual mora Roza Guarda-mór.

Essa sessão foi bastante concorrida48

.

A questão religiosa e étnica são duas características bastante evidentes neste

artigo. Além da discriminação e do preconceito latentes, os curandeiros em questão são

associados a exímios enganadores da população. Apesar da brevidade do artigo, ainda é

possível observar certo cuidado com as palavras ao descrever a complexidade da

“perniciosa” prática curativa, onde a religião sincrética afrodescendente é cognominada

de feitiçaria, uma espécie de prática diabólica.

Dessa forma, o objetivo geral de Thiago Lima dos santos é demonstrar que as

práticas de negros no Brasil e no Maranhão se consolidaram a despeito das perseguições

do Estado, graças à sua resistência às mudanças decorrentes do processo modernizador

que previa a urbanização, a higienização e a extinção de costumes considerados

ultrapassados. Ainda assim, esta resistência não se daria de forma consciente, como se

os praticantes dos rituais afrodescendentes tivessem plena noção de sua rebeldia. Ela

estaria inscrita no universo dos costumes sociais, religiosos e culturais de um povo que

48

A PACOTILHA. Pajelança. São Luís, 07/07/1915. Op. Cit.

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43

consegue enxergar diversas modalidades de vida, alheias e, concomitantemente,

inscritas no paradigma oficial.

O embate entre essa prática de cura e a medicina científica fornecem algumas

informações sobre o amplo e complexo universo de concepções mágico-religiosas

adotadas pelos praticantes da cura popular. As tensões entre as referidas terapias

medicinais se constituem, apenas, como a ponta de um iceberg. Restringir as

perseguições, as discriminações, os preconceitos, as prisões de curandeiros e pacientes

apenas à resistência da população carente de assistência social a despeito de um Estado

opressor, seria decapitar a gama de possibilidades de entendimento desse fenômeno.

2.2. MARCAS DO PASSADO: COERSÃO AOS “ATOS ABOMINÁVEIS” NOS

PERIÓDICOS LUDOVICENSES.

As práticas de cura associadas à magia são muito recorrentes no Maranhão

desde os seus primórdios. Por muito tempo essa terapia vem disputando espaço e

legitimidade com a medicina oficial diante do vasto e burocrático mercado de clientes.

Em São Luís não é diferente, pois, os periódicos da primeira metade do século XX

vislumbravam a frequência em que ocorriam acusações e batidas policiais aos terreiros

de pajelança e a domicílios da população menos opulenta, na tentativa de surpreender e

apreender possíveis responsáveis pelos “atos abomináveis” 49

, pelos resquícios de uma

sociedade escravocrata, colonial e miscigenada.

Os jornalistas instigavam a intolerância às religiões afrodescendentes no

período que vai do final do século XIX à primeira metade do século XX. Esses

intelectuais participavam dos atos de preconceito e intolerância. “[...] muitas vezes

cobrando das autoridades maior rigor no cumprimento da lei e das determinações de

órgãos públicos, criados para atuar nas áreas de saúde pública e encarregados da

fiscalização dos terreiros” 50

.

49

Os atos abomináveis a que nos referimos são todas e quaisquer práticas, costumes e tradições dos

escravos africanos e dos ameríndios. O curandeirismo, por exemplo, se configura como um misto de

práticas consideradas resquícios da colonização, dessa forma, também, está inserido nos “atos

abomináveis”. 50

FERRETTI, Mundicarmo Ferretti. (org.). Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de

Amélia Rosa. Op. Cit. P. 22.

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O real motivo de tal perseguição, certamente, se inscreve na tentativa de apagar

as marcas do passado, isto é, de extinguir os traços culturais afro-indígenas ligados à

magia herdados pela população maranhense.

A magia brasileira, desde a Colônia, dispõe de mecanismos reguladores das

acusações a bruxos e feiticeiros nos terreiros e locais de culto; e

diferentemente de muitas sociedades onde é forte a crença na feitiçaria, aqui

não se pune os feiticeiros com a morte. Foi a partir da República, no entanto,

com o decreto de 11 de outubro de 1890, que o Estado criou mecanismos

reguladores do combate aos feiticeiros, instituindo o Código Penal. No

Código introduziu-se três artigos referentes à prática ilegal da medicina, à

prática da magia e à proibição do curandeirismo.51

Esses costumes são rotulados de praga social pela imprensa ludovicense.

“Essas premissas culturais comuns constroem duas vertentes da noção de feitiçaria: uma

sociologizada, que vê o mal como produto da desorganização social e outra que acredita

nos poderes ocultos e sobrenaturais de produzir o mal” 52

. Nesse sentido, veremos nos

artigos a seguir, como os curandeiros eram representados, como as cognominações

alcoolismo, charlatanismo, prostituição, crendices, superstições, dentre outras, foram

largamente associada à cura alternativa.

No final da tarde do dia 10 de agosto de 1941, o chefe de polícia alcunhado de

Lemos, acompanhado de uma guarnição policial, seguiu um rastro de cura pelo lugarejo

denominado Sacavém. O articulista afirma que a batida policial foi coroada com êxito,

pois, o pai-de-santo João Pereira da Silva foi apreendido, trajado com vestimentas

próprias da pajelança.

A sessão era assistida por diversas pessoas que estavam ali em busca de

tratamento físico e espiritual, o que na visão jornalística era considerada uma afronta

aos ditames legais. Mas, a maioria dos relatos fica por conta da atividade do pai-de-

santo, visto como um representante do mal social, sendo o respectivo curandeiro, após

ser preso, encaminhado para o posto policial do Anil.

Consigo, foram encontrados alguns objetos essenciais para o ritual religioso,

dentre eles: “1 garrafa de cachaça, 2 maços de velas e 1 maracá” 53

. O extensivo uso de

álcool foi presenciado pelos policiais, afirma o articulista, algo a ser notado, também,

em outras sessões de cura relatadas pelos jornais da época.

51

MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. P. 22. 52

Ibid. P. 255. 53

O GLOBO. Macumba! Em pleno dia, no Anil. São Luís, 12/08/1941. P. 3. Fonte localizada na

Biblioteca Pública Benedito Leite, no centro da cidade de São Luís.

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Torna-se imprescindível fazermos algumas observações a respeito desse artigo,

como a constante presença de populares nas sessões de cura. Essa característica pode ser

observada no contexto citadino e periférico da capital maranhense em meados do século

XX, onde diferentes corpos sociais eram tocados pelo mesmo sistema de crenças

difundido pelo curandeirismo, pois, nesse contexto, as identidades se tornam uma só.

O terreiro de cura, dessa forma, se constitui a partir da ideia de igualdade

perpetrada pelo universo da pajelança, onde os variados sujeitos são tocados por esses

signos e acabam compartilhando do mesmo universo de representações sócio-culturais.

Por isso, veremos mais à frente que diferentes e, muitas vezes, antagônicos estratos

sociais convergirão e se apropriarão dos mesmos valores culturais.

Em uma tarde de sábado de 30/04/1940, o chefe de polícia Flávio Bezerra

recebeu uma denúncia de que havia com frequência, sessões de pajelança bastante

concorridas, inclusive, por membros da elite ludovicense, nas matas do Olho D’água,

interior da ilha. O Chefe de Polícia organizou uma guarnição comandada pelo

comissário de polícia Benedito Valeriano Ribeiro e partiu às 11 horas da noite para o

referido lugar.

Por volta da meia noite, a sessão se formava, pois, o pajé Demétrio Santos

organizava o andamento dos trabalhos. Ao chegar, acompanhado de seus assistentes

José Santos, Raimundo Buna e Simão Rodrigues, vestiu-se com uma blusa de gorgorão

verde, pôs um cordão vermelho e branco sobre os ombros e empunhou um maracá. Em

movimentos típicos dos transes indígenas e africanos, o pai-de-santo recebe a entidade

Ogum. Após a incorporação, o pajé se lança na missão de curar o doente Ludgero. Em

seguida, a sessão foi interrompida, “quando estava ‘benzendo’ o ‘cliente’ batendo-lhe

com o maracá na cabeça, a polícia veio estragar tudo” 54

.

A chegada dos policiais provocou uma grande correria, ocasionando a prisão

de Demétrio Santos, de seus ajudantes e do doente Ludgero.

Apesar da sessão ser realizada nos matagais do interior da ilha, havia muitos

adeptos, em torno de cem pessoas, inclusive, “gente boa, algumas de responsabilidade”

55. Após a apreensão, os detidos foram interrogados. O pajé, ao ser questionado em tom

54

O GLOBO. Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade. São Luís, 30/04/1940. P. 1-6.

Fonte localizada na Biblioteca Pública Benedito Leite, no centro da cidade de São Luís. 55

Ibid. P. 1-6.

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irônico por Flávio Bezerra sobre a sua profissão, se declarou curador, ocasionando o seu

recolhimento ao cárcere imediatamente.

Ao ser interrogado, o paciente Ludgero surpreendeu o chefe de polícia ao

afirmar que não acreditava no poder da medicina legal, asseverando que a mesma não

valia nada. A reação do doente condiz com o cenário médico brasileiro desde os

primórdios da colonização até a metade do século XX. No entanto, a

contemporaneidade, quase nada proporcionou ao desenvolvimento tecnológico e

estatístico da medicina científica.

A necessidade de flexibilidade e adaptação das práticas e costumes também

pode ser pensada pela falta de uma assistência médica segura e capaz de

solucionar os incontáveis problemas da colônia. Já no período imperial,

houve uma perseguição a todo tipo de prática considerada ilegal, ou seja, que

não fosse autorizada pelas faculdades de medicina. A medicina não era um

campo homogêneo no final do século XIX. Era um campo de disputa que

dava espaço a uma ampla aceitação do curandeirismo (Sampaio, 2001). A

dificuldade encontrada pelos representantes da medicina em legitimar sua

influência perante o governo era justamente pela grande incidência das

práticas de curandeirismo, enraizadas e presentes nos diversos grupos sociais.

Em conseqüência dessa forte presença é que as pessoas ainda recorriam a

esses curandeiros. Pode parecer estranho, mas era comum indivíduos da alta

sociedade procurarem os cuidados de homens e mulheres que detinham a

habilidade de curar, independente da ritualização dessa prática ou não56

.

Lilia Schwarcz contribui para as afirmações de Carlúcio Baima, pois, garante

que durante todo o século XIX, a medicina científica era muito incipiente, se tratava

mais de uma retórica médico-científica do que de uma ciência experimental. “O que

aqui se consome são modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente

popularizados enquanto justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação”

57. Assim, se procurou divulgar os manuais e livros de ciência advindos da Europa, ao

invés de produzir e difundir obras originais. “A ciência penetra primeiro como ‘moda’ e

só muito tempo depois como prática e produção” 58

.

Essa literatura fundamentada essencialmente nas teorias de Darwin e Spencer e

irradiada em território nacional alimentará o embate entre a medicina legal e o

curandeirismo, justamente por causa da prática científica ainda pressupor uma igualdade

técnica, o que consequentemente, alarga o campo de atuação da terapia tradicional.

Dessa forma, o que se presenciou com a entrada do século XX foi a estruturação de uma

56

BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no

tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). Op. Cit. P. 27. 57

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no

Brasil. Op. Cit. P. 30. 58

Ibid. P. 30.

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prática medicinal científica muito rasteira, ou melhor, muito propagandista,

possibilitando a larga incidência das práticas de cura difusa pelos pais-de-santo.

Nem sempre a presença de policiais nos terreiros de cura de São Luís denotou

perseguição. Alguns artigos apontam para a presença e aceitação da polícia na arte

terapêutica popular. Isso apontaria para uma espécie de transgressão da conduta legal,

não somente dos oficiais, mas, da própria sociedade, pois, um agente defensor da boa

índole, da conduta moral prescrita corrompera um conjunto de códigos morais, como

resguarda o seguinte artigo.

Um articulista evidencia uma grandiosa e complexa manifestação de cura

dirigida pela mãe-de-santo Altina de Sousa, onde os policiais puderam apreender

diversos instrumentos musicais, livros suspeitos, bebidas alcóolicas e outros apetrechos

como maços de velas, faixas com inscrições apologéticas, maracás, dentre outros, num

lugar conhecido como Cutim Grande.

Não escapou ninguém das vinte pessoas que lá se encontravam inclusive o

soldado nº 341, da Força Policial, do destacamento do Anil, que

entusiasmado, assistia aos “prodígios” da macumbeira.

Interrogado, declarou o referido policial, ao chefe da Segurança, que ali se

encontrava com o consentimento do comissário José Gomes Filho

encarregado do Pôsto Policial do Anil, o qual tinha plêno conhecimento e, de

certo modo, prestigiava o “culto” 59

.

Esta fonte requer um pouco de atenção, sobretudo, por causa da participação de

um sujeito “fora de suspeitas” de praticar “atos abomináveis”. Segundo o redator, havia

menores, além disso, a presença de uma autoridade policial credenciada pelo comissário

de polícia José Gomes Filho, do destacamento policial do Anil escandalizou as

autoridades que ali chegaram.

No lugar, encontravam-se pacientes e assistentes, inclusive, menores de idade

entre 11 e 17 anos e um membro da polícia local. Flávio Bezerra, o chefe de polícia, não

poupou ninguém. Todos foram presos, inclusive, os menores e o policial presente na

sessão. Esse chefe de polícia ficou muito famoso nos discursos jornalísticos do jornal O

Globo e nos relatos orais durante o Estado Novo, pois, sua fama se dava por causa da

sua atuação rigorosa no combate à pajelança e ao tambor de mina, como resguarda o

59

O GLOBO. A polícia dá uma batida na macumba do Cutim Grande. São Luís, 30/07/1941. P. 6.

Fonte localizada na Biblioteca Pública Benedito Leite, no centro da cidade de São Luís.

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artigo científico Tensões, interações e conflitos numa terra de voduns, encantados e

orixás.

Neste trabalho, António Evaldo Almeida Barros analisa documentos de época e

fontes orais com a finalidade de identificar como o vasto campo do curandeirismo no

Maranhão era representado e como os seus adeptos se posicionavam diante da sociedade

maranhense de meados do século XX, sobretudo, durante a atuação do Estado Novo.

Analisa-se a construção de ideias negativas acerca das práticas e

representações dos agentes envolvidos com os tambores e curas; legislações,

policiais e políticos, e suas diferentes relações com a Mina e a Pajelança; a

instituição do Tambor de Mina como uma “tradição maranhense” e símbolo

de cultura e religiosidade “afro-brasileira”, e o concomitante lugar social e

simbólico da Pajelança60

.

A forte presença do curandeirismo não atraia apenas os populares, pois,

diferentes sujeitos como os da alta sociedade também procuravam com frequência pelo

trabalho dos curandeiros. Isso significa que gente de destaque social, como o policial

presente na sessão de cura, “participam das mesmas premissas culturais. São blocos de

um mesmo edifício” 61

, ainda que diferentes formas de ver o mundo estejam

entranhadas nos renegados subterfúgios da cura alternativa.

A aproximação dos abastados propiciou privilégios ao mundo da cura em

determinados momentos, ainda que essas vantagens nem sempre conseguissem livrar os

curandeiros da prisão. Essas ocasiões indicavam a existência de tensões e conflitos, mas

perdurava o jogo de interesse dos envolvidos, sejam eles, de ordem material ou

espiritual, de vida ou de morte, onde diferentes identidades procuravam a mesma

solução para as suas vidas.

Pode-se afirmar que uma verdadeira multidão de pessôas de destaque em

nosso meio, compareceu à Chefatura, desde domingo, a pedir, a rogar que o

pagé Demetrio Santos seja solto.

Todas affirmam estar em divida para com o macumbeiro, que já as curou

desta ou daquella doença...

Os pedidos chovem:

60

BARROS, António Evaldo. Tensões, interações e conflitos numa terra de voduns, encantados e

orixás. ANPUH-BA. 2008. P. 2. Trabalho apresentado no IV Encontro Estadual de História – ANPUH-

BA. História: Sujeitos, Saberes e práticas. Disponível em: http://www.uesb.br. Acesso: 03/09/2015;

20h00 min. 61

MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. P. 235.

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49

- Solte o pagé, doutor Flávio. Mas o Chefe da Segurança Publica foi

inflexivel. Não attendeu às supplicas adescabidas dos supersticiosos

“clientes” de Demetrio62

.

No dia 08 de Junho de 1947, por volta da 18 horas, esteve um repórter do

jornal O Globo numa sessão de curandeirismo na casa do afamado pajé Zé Malaquias,

localizada nas medições do Sítio do Físico, no interior da Ilha. Ao chegar, diz o

repórter, viu de imediato uma criança tocando tambor, umas mulheres novas e anciãs

dançando e, especificamente, o que lhe chamou bastante atenção foram os trejeitos

sexuais de gosto duvidosos de Zé Malaquias, a presença de menores, o ambiente

bárbaro típico da cultura africana e indígena e a licença da polícia para o funcionamento

de um tambor de mina.

Além da hostilidade com que descreve o ambiente, o repórter, disfarçado de

cliente, detalha de forma discriminatória e preconceituosa a aparência física de Zé

Malaquias.

Procuramos um garoto, que estava junto à porta de entrada, e dissemos-lhe

que desejávamos falar com “Zé Malaquias”. O “curandeiro” veiu até nós.

Olhamo-lo de perto, detidamente. Um bigodinho petelante, mal feito. Rosto

magro, baixo, franzino, feio. Fisionomia de um doente sexual. Levou o

repórter a uma sala secreta, onde também ficam os aposentos do “pagé”. O

repórter sentou sobre um caixão de querosene. O quarto era estreito. A um

canto uma mulher deitada em uma rede suja. Em outro canto, onde estavam

“Zé Malaquias” e o repórter, havia uma imagem de santo63

.

Em todos os artigos mencionados foram destacadas questões relacionadas à

sexualidade, sejam dos pacientes e, ou, dos curandeiros. Neste relato, houve uma

preocupação maior em ressaltar os “desvios” sexuais de Zé Malaquias. Essa

característica, normalmente é associada à loucura, à degeneração humana, á barbárie, ou

seja, a preocupação do periódico era lançar à caça e repressão, atos tão torpes.

A noção de sexualidade perpassa pela ideia de prostituição e desvios sexuais,

sobretudo, de Zé Malaquias, logo, os menores que se encontravam na sessão, tendo a

moral e o caráter ainda em formação, estariam propícios a cederem às artimanhas do

curandeiro. No entanto, discutiremos melhor e mais adiante essa problemática, assim

como, a associação do curandeirismo ao tambor de mina.

62

O GLOBO. São Luís, 30/04/1940. Op. Cit. P. 1-6. 63

O GLOBO. A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha. São Luís, 9/06/1947.

P. 4. Fonte localizada na Biblioteca Pública Bendito, localizada no centro de São Luís.

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50

As artimanhas dos pais-de-santo não recairiam somente sobre os menores, pois,

tanto os populares, quanto os abastados estariam envolvidos na rede de enganação

perpetrada pelo pajé, ou seja, “a associação de crimes e criminosos com macumba,

magia etc. também é comum” 64

.

Pouco sabemos, nós os civilizados que nos libertamos das perigosas

superstições dos nossos ancestrais – do índio e do preto –, sabemos que a

macumba é um mal social, de profundas raízes. Tanto crer nos poderes

sobrenaturais de um “pagé” um caboclo ignorante do interior da ilha, como

muitos cidadãos de gravata, bem colocado na vida, aqui na cidade. Assim, a

porta da tenda de exploração que muitos “curandeiros” da nossa ilha já foram

vistos automáveis de luxo. Gente de dinheiro, pessoas, mesmo de certo

destaque na sociedade, ao que sabemos, frequentam os centros de

“pajelança”, sempre que precisam recorrer aos “curandeiros”. E assim, a

macumba encontra campo aberto ao seu desenvolvimento, protegida por

homens influentes, profundamente supersticiosos65

.

Em um artigo datado de 22 de novembro de 1947, o articulista inicia a sua

matéria denunciando o recrudescimento do curandeirismo. Essa prática estaria em alta

devido à superstição da população em geral, ou seja, tanto os opulentos, quanto os

populares estariam envolvidos na rede de enganação dos pajés.

Este caso envolve uma denúncia de pajelança no João Paulo, na casa do

indivíduo Pio Fernandes, cognominado de Drº. em feitiçaria. Então, por volta das 23

horas, o chefe de polícia Homero Braúna, em voltas pelo referido local chegou à casa do

curandeiro, não o surpreendendo em atividade. Após uma breve conversa, Homero

Braúna apreendeu um livro onde estavam inscritos vários nomes de pessoas de renome

da capital, gente que supostamente seriam acometidos pelos poderes maléficos do

curandeiro.

Ao ser interrogado, o senhor Pio Fernandes se declarou curandeiro, mas,

ressalvou imediatamente que não praticava feitiço, pois, a sua profissão existia em

virtude do bem.

O “pagé” Pio Fernandes é cego e aleijado. Declarou ao sr. Homero Braúna,

ao ser interrogado sobre as suas atividades na macumba: ‘É a minha

profissão. Vivo disso, mas não faço o mal. Só faço o bem. Trabalho para

fazer casamento e reatar amizades, unir maridos e esposas que se

separaram’66

.

64

MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. P. 242. 65

O GLOBO. São Luís, 9/06/1947. Op. Cit. P. 4. 66

O GLOBO. O Chefe de Policia descobre um foco de macumba no João Paulo. São Luís,

22/11/1947. P. 4. Fonte localizada na Biblioteca Pública Bendito, localizada no centro de São Luís.

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O suposto feiticeiro não foi detido pelo chefe de polícia. O articulista encerra

esse artigo protestando para que se faça lei, já que o curandeirismo é visto como mal

social por está diretamente ligado, à primeira vista, às classes mais humildes, pois, “a

expressão classes pobres, portanto, apresenta-se como sinônimo de classes perigosas”

67, o que deveria ser extinta de uma vez por todas das entranhas sociais.

Com muita frequência, os periódicos de São Luís trazem à tona a associação do

curandeirismo à feitiçaria. Paula Montero trata do assunto fazendo algumas distinções

entre o feiticeiro urbano e aquele do mundo rural. A autora se utiliza das descrições do

renomado médico maranhense, Nina Rodrigues, que classifica a magia urbana como a

“prática do feitiço e do contrafeitiço” 68

. Dessa forma, o pai-de-santo se torna um misto

de feiticeiro e sacerdote, ou seja, aquele que pratica a magia maléfica e exerce a função

de guia espiritual, consecutivamente.

Além de ser dotado de poderes maléficos, este curador também seria capaz de

reverter feitiços provocados por outros feiticeiros. Os seus sortilégios são beneficiados

pela fitoterapia, uma vez que para fazer ou desfazer o mal, são preparadas bebidas à

base de plantas. “No caso da cura de doenças, toda prática desses pais-de-santo se volta

para a prática do contra feitiço” 69

.

No sertão, os negros tiveram intervenção do cristianismo e foram obrigados a

assimilar forçadamente a lógica religiosa predominante do campo, “o catolicismo

popular” 70

. O africano, desde cedo abandonou parcialmente os seus costumes e

introduziu em seus rituais de magia as práticas advindas do universo indígena e

europeu. O resultado dessa conversão foi devido à origem de um curandeirismo

respeitado e a liderança do curandeiro como sacerdote espiritual possibilitou “sua

aceitação enquanto mestre catimbozeiro” 71

.

Já Yvonne Maggie trata do mesmo assunto ressaltando a perseguição aos

terreiros de cura em busca de supostos feitores de malefícios e charlatães. Ao analisar os

processos-crime, ela registra que além de haver participação dos personagens da trama

(curandeiros, populares, magistrados, policiais, dentre outros) no curandeirismo,

67

BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: Discurso médico e práticas curativas no

tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). Op. Cit. P. 17. 68

MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 41. 69

Ibid. P. 41. 70

Ibid. P. 42. 71

Ibid. P. 42.

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observa também que a rede de repressão à feitiçaria se inscreve na própria feitiçaria, ou

seja, a própria repressão seria a principal originadora da feitiçaria.

Todos esses ângulos por onde se pode ler os processos apontaram para as

hipóteses gerais de inicio colocadas. Em primeiro lugar, os personagens da

trama parecem participar da mesmas premissas culturais. Em segundo lugar,

relativizando a hipótese repressiva, tudo leva a crer que a repressão não

barrou o desenvolvimento das crenças, ao contrário, parece ser fruto da

mesma rede histórica que funda o campo denominado de campo da

feitiçaria72

.

Dentro do complexo sistema cultural do curandeirismo estão circunscritos

tanto personagens da elite, quanto sujeitos das classes populares. Pois, como já

ressaltamos, a loucura é um mal social a ser evitada pelos órgãos reguladores, e a

feitiçaria, nesse caso, denota loucura e adentra o universo dos referidos personagens

causando distúrbios que ultrapassam as barreiras do racional. Dessa forma, o feitiço é

representado em duas linhas de raciocínio, uma material, e outra, sobrenatural.

Uma afirma que os malefícios mágicos atacam a vítima e produzem

consequências objetivas, perda do emprego, do amante, doença, morte e

loucura. Outra socializa a magia. Ou seja, a macumba, o candomblé, o

espiritismo alto ou baixo, produtos da anomia, acabam produzindo um mal

social: a loucura. 73

A versão material da magia maligna aponta para a ocorrência de problemas de

ordem física, a sobrenatural, inscrita no abstrato sortilégio da vida dos praticantes das

artes sobrenaturais, também teria como consequência, um mal material, ou seja, a

loucura. Portanto, a feitiçaria se estrutura de forma ambígua, material e sobrenatural, e

tem como consequência final, problemas relacionados à desorganização social e ao

desequilíbrio cósmico. Dessa forma, essa premissa nos encaminha para o entendimento

de que, ao praticarem o curandeirismo, o espiritismo, dentre outros, a clientela está

corrompendo com as normas preestabelecidas pela legalidade, é como se curandeiros e

pacientes estivessem praticando uma espécie de poluição e, ou, desintegração dos

códigos civilizatórios.

Os artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 11 de outubro de 1890 foram

criados durante a república brasileira com o intuito de regular a prática das profissões, e

o curandeirismo estando inserido no âmbito da ilegalidade foi drasticamente perseguido

por representar a alienação aos pressupostos da cientificidade, dessa forma, foi

cognominado de feitiçaria por utilizar a magia.

72

MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Op. Cit. p. 173. 73

Ibid. P. 176.

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53

O Estado tomou para si, a partir dos últimos anos do século XIX, a tarefa de

reprimir toda e qualquer prática ligada à cura tradicional, sendo esta, na maioria das

vezes, rotulada de feitiçaria e charlatanismo, já que, segundo Maggie, para o Estado,

havia espertos enganadores da credulidade humana no seio da cura alternativa.

O Estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e interveio no

combate aos feiticeiros regulando acusações, criando juízos especiais e

pessoal especializado. À medida que os anos se passam, instituições iam

sendo criadas na polícia para regular o combate, identificar e punir os

produtores de malefícios. Essa função do Estado permanece até hoje, mas de

1890 a 1940, com a introdução de uma mudança importante no Código Penal,

o aparato jurídico se institucionalizou e passou a ser usado com mais

intensidade como instrumento de combate aos feiticeiros74

.

Mas, precisamos deixar claro que o que se queria nesse momento com a

perseguição e repressão à magia era dominar tais práticas, contendo-as, pois, “[...] a

elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente” 75

.

Notemos que um nome em comum foi muito ressaltado nos artigos

supracitados, interior da ilha. Este local, durante muito tempo se circunscreveu às

localidades alheias ao centro urbano de São Luís. Destaca-se o fato de que este centro se

compôs durante boa parte do século XX às mediações do atual bairro da Praia Grande,

ou seja, toda área que se encontrava fora desta localidade, era denominada de Interior da

Ilha.

Pois, o João Paulo, assim como o Cutim Grande, o Anil, o Sacavém, o Olho

D’água, dentre outros, em meados do século XX eram exemplos de regiões interioranas

da ilha do Maranhão, uma região periférica destinada à agricultura, à “escória” social,

ou, a tudo aquilo que precisava ser afastado do convívio citadino por representar a

estagnação social.

São também bastante lembradas em São Luís, pelas pessoas mais velhas, as

transferências de terreiros e de curadores para a periferia das cidades, devido

á repressão policial e à hostilidade de moradores que se instalaram mais

recentemente em suas imediações e consideravam a sua existência, ali, um

atestado de atraso cultural. 76

O Estado possui os seus mecanismos de poder, no entanto, há forças que estão

acima das suas possibilidades. Pois, como já asseveramos, são os poderes moleculares

trabalhados por Michel Foucault. Estes, ao mesmo tempo em que podem estar de acordo

74

Ibid. P. 23. 75

Ibid. P. 33. 76

FERRETTI, Mundicarmo. (org.). Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de Amélia

Rosa. Op. Cit. P. 22.

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com os ditames estatais, também, podem se desviar das suas ideias. Enfim, é essa

afirmativa que norteia o desenvolvimento deste trabalho. Eleger uma expressão que

objetiva o exercício de poder alheio ao Estado como um grande oponente à sua

ideologia.

O curandeirismo e a sua nomenclatura cultural representa a possibilidade de

existência de um universo antagônico ao proposto pelo Estado, onde os excluídos

possam se sentir partícipes da sociedade, ainda que essa possibilidade não ultrapasse as

cercanias da retaliação inconsciente.

Evidentemente não nos enganamos quanto a possibilidade transformadora

das práticas populares. Sabemos que, sem condições reais que lhe permitam

uma atuação política efetiva que tornem essas crenças um todo coerente

capaz de "cimentar uma nova hegemonia", essa concepção de mundo se

encerra nas fronteiras do "vivido", no sentido de que não consegue extrapolar

os limites da compreensão individualizada das contradições77

.

De forma mais objetiva podemos apregoar as manifestações sócio-culturais

ligadas ao curandeirismo como uma expressão que pressupõe um poder molecular.

Logo, o curandeirismo, durante a primeira metade do século XX se estabeleceu como

tudo aquilo que o Estado queria exterminar. Essas manifestações, ao longo do período

estudado se consolidaram como práticas não agonizantes ou resistentes, e sim, viventes,

uma vez que, mesmo com tamanha perseguição, seja pela imprensa ou por autoridades

policiais, recrudesceram.

Ao denominarmos o curandeirismo como vivência, significa dizer que ele não

existe na forma de resistente. A resistência designa agonia, indica um estado de

sobrevida, no entanto, o curandeirismo aqui representado significa vivência, ou seja, é

uma prática que não se desfez nesse paulatino processo de modernização78

. Pelo

contrário, se reformulou de forma acentuada a entrar na pós-modernidade como grande

concorrente da medicina científica.

Dessa forma, os relatos, as denúncias, as súplicas dos periódicos de forma geral

evidenciavam a grande procura dos populares e abastados pelas formas tradicionais da

medicina. São Luís não oferecia uma estrutura médico-hospitalar adequada à crescente

avalanche populacional que se encontrava marginalizada no centro urbano e

disseminada, também, nas periferias da cidade.

77

MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 22. 78

Essa afirmativa é um grifo nosso. Ela é resultante das nossas conclusões parciais sobre o objeto de

estudo.

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A procura pelos pais-de-santo não aponta apenas para a ineficiência do Estado

em possibilitar uma rede de cuidados médicos à sua população. Assim como a medicina

e os periódicos, o curandeirismo, também expressa uma forma de saber. “Poder e saber

se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de

saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder” 79

.

Nesse sentido, ao negligenciarmos os conhecimentos advindos do campo do

curandeirismo estaremos mutilando a história, o processo de formação dessa sociedade,

logo, São Luís, como foi supracitado, é um recanto de descendentes afro-indígenas ou

mestiços. Essa população herdou de seus antepassados conhecimentos milenares ligados

à cura, seja ela de ordem material ou oculta.

2.3. RELAÇÃO MINA-PAJELANÇA E RESISTÊNCIA AO SABER CIENTÍCO

MEDICINAL.

A historiadora maranhense Christiane Mota desenvolveu uma pesquisa sobre

pajelança na Baixada Maranhense, em seu livro Pajés, curadores e encantados:

pajelança na Baixada Maranhense ela analisa as representações de saúde e doença

dentro do sistema de crenças mágico-religioso da pajelança no município de Bequimão.

O tema se faz oportuno por causa da abundância de recursos naturais como a flora e a

fauna associada à pajelança e ao uso da medicina popular como tratamento e cura.

Esse trabalho “analisa experiências de doença, saúde e cura vivenciadas pelos

pajés e pelos clientes que recorrem aos tratamentos pela pajelança, como é denominada

esta prática religiosa em grande parte do território maranhense e em Estados vizinhos”

80. A pajelança, segundo Christiane Mota, se configura como a amálgama entre a

medicina tradicional, que no Maranhão está visceralmente associada ao catolicismo

popular e ao tambor de mina.

Essa pesquisa assegura o quanto “as sessões de cura na pajelança são

frequentadas pelos moradores da região” 81

devido ao seu caráter festivo e recreativo,

pois, além das sessões, a música e a dança são acompanhantes indispensáveis. No caso

da cura das doenças, sejam elas físicas ou espirituais, são utilizadas ervas medicinais

devido à sua abundancia. “Durante o tratamento os pajés são auxiliados por entidades

79

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. Cit. P. XXI. 80

MOTA, Christiane. Pajés, curadores e encantados: pajelança na Baixada Maranhense. 1. ed. São

Luís: Edufma, 2009. P. 12. 81

Ibid. P. 12.

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espirituais denominadas de encantados que fazem parte do universo da encantaria

brasileira” 82

. Os encantados são diversos: podem ser indígenas, nobres europeus como

o rei Sebastião e caboclos brasileiros ou animais encantados como aves, peixes, cobras e

jacarés.

Na primeira parte do livro Pajelança no Maranhão, Christiane Mota começa a

sua explanação definindo de que forma é constituída a pajelança, e assegura que as

caraterísticas religiosas e étnico-culturais dão a esta prática os seus devidos contornos.

No entanto, é de extrema importância que se tome cuidado com a expressão pajelança,

pois, “[...] não há como delimitar um modelo” 83

. Ao ser escolhida como tema de

pesquisa, devemos tratá-la com flexibilidade, atribuindo-lhe especificidades referentes à

área de estudo, somente dessa forma, poderemos caracterizá-la diante dessa diversidade

de crenças.

A pajelança se apresenta com características universais ligadas ao transe, a

fitoterapia, a crença em encantados, aos festejos e obrigações do pajé, dentre outros.

Mas, dependendo de cada região ela “[...] apresenta singularidades condizentes com sua

formação histórica” 84

. Um exemplo clássico é a pajelança cabocla amazônica. Esta, não

é a representação do xamanismo, mas, a singularidade de uma pajelança da região

amazônica.

Na obra é feita uma alerta para a legalização da medicina no final do século

XIX. Após a oficialização toda e quaisquer práticas alheia a esta foram rebaixadas ao

patamar pejorativo de curandeirismo e charlatanismo, a partir de então, curandeiros

começaram a serem perseguidos pelos aparelhos estatais reguladores.

O artigo Observações sobre concepções e práticas populares de cura em São

Luís de Madian Pereira se propõe a analisar as práticas curativas Mágico-religiosas da

medicina popular na zona urbana de São Luís através dos relatos de uma curandeira.

Entre os aspectos discutidos pela autora encontramos o caráter marginal dado à

medicina alternativa pelo saber Médico-científico. Ou seja, “os procedimentos

82

Ibid. P. 13. 83

Ibid. P. 44. 84

Ibid. P. 44.

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empregados pelos especialistas da medicina popular não são reconhecidos pela

medicina oficial, colocando-a numa posição marginalizada” 85

.

O saber científico atribui ao curandeirismo um caráter rústico, pelo fato, dele

pressupor falta de cientificidade encontrada na primeira e, “[...], que se ainda

sobrevivem é pelo fato da ignorância está muito arraigada entre membros das classes

populares” 86

. Essa ideologia das classes dominantes deixa claro que “as variadas

expressões da medicina popular – fitoterapia, excretoterapia, simpatias, benzeções e

rezas, entre outras, estariam fadadas ao desaparecimento, devido ao processo de

industrialização das cidades [...]” 87

.

Essa característica vem na contramão do discurso de Yvonne Maggie e Paula

Montero, logo, como já mencionamos, mesmo com a urbanização e industrialização das

grandes cidades, e as coerções das autoridades, o curandeirismo não perdeu as suas

características, ou melhor, com o processo de urbanização, ele recrudesceu

consideravelmente.

Christiane Mota evidencia essa característica e apregoa que há alguns

curandeiros e adeptos de São Luís que compartilham desse pensamento. Pois, algumas

pessoas desses terreiros acreditam na falência da “verdadeira” pajelança. Isso estaria

ocorrendo devido ao aumento do atendimento médico especializado e científico na

capital, logo, a função de curandeiro estaria perdendo notoriedade. Caso contrário,

estaria acontecendo no interior do Maranhão, pelo fato de a Medicina Legal não

satisfazer as necessidades daquela população, nesse sentido, o pajé se mantém “puro”

por ser ele o “único” e “verdadeiro” detentor da arte de curar.

Percebemos que mesmo com o crescimento das cidades e, consequentemente,

do processo de sofisticação tecnológica da medicina oficial, recrudescem os terreiros de

cura na zona urbana das cidades, pois, se não considerarmos os valores por trás do

sistema de crenças do curandeirismo, “somos obrigados a descobrir, por trás dessa

aparente irracionalidade, um sistema lógico de conhecimento” 88

.

85

PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. “Observações sobre concepções e práticas populares de cura

em São Luís”. In: NUNES, Izaurina Maria de Azevedo. (org.). Olhar, memória e reflexões sobre a

gente o Maranhão. São Luís: Comissão Maranhense de Folclore, 2003. P. 245. 86

Ibid. P. 245. 87

Ibid. P. 245. 88

MONTERO, Paula. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Op. Cit. P. 13.

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Se a medicina resiste é porque possui uma eficácia concreta a demanda de

saúde e também porque a medicina alopática, que se pretende “toda

poderosa”, não consegue diluir os diversos modos de curar, demonstrando

assim que há diferentes concepções de mundo, diferentes formas de viver, de

sentir e de agir dos agentes da cultura popular, que resistem culturalmente ao

saber erudito89

.

O discurso de Dona Raimunda, a curandeira entrevistada por Madian Pereira,

faz um alerta para a procura do curandeirismo na atualidade, logo, essa retórica se

constrói pelo fato do seu trabalho já ter alcançado diversas classes sociais. Parece-nos

que o prestígio da curandeira abrange inclusive a aceitação de alguns médicos

científicos que respeitam e utilizam o seu trabalho. Por quanto, tanto médicos

especializados na ciência, quanto, populares e abastados se beneficiam da fitoterapia de

Dona Raimunda como as garrafadas, chás e lambedores. Essa aceitação consiste no fato

dos médicos em questão serem médiuns espíritas, e acabam por compartilhar do mesmo

sistema de crenças desta curandeira.

A explicação diluída das causas das enfermidades dadas pela curandeira

promove uma aproximação e, consequentemente, uma veneração pelas práticas

curativas em questão. Ela explica ao doente simplificadamente qual a doença que ele

sofre, conjuntamente com as suas causas, utilizando-se de uma linguagem acessível e

explícita ao seu conhecimento, consequentemente, a relação de causa e efeito das

moléstias dentro do universo mágico-religioso se torna uma ferramenta indispensável

para a legitimação do curandeirismo.

As práticas da medicina científica, de alguma forma, despertam alguma repulsa

dos médicos populares. No caso de Dona Raimunda, ela tem respeito pelos médicos

oficiais, no entanto, “o que ela não gosta é quando alguém considera um médico quase

como um ‘Deus’, como se a sua palavra fosse a última verdade” 90

. Os saberes do

médico e do curandeiro são distintos, mas não antagônicos, pois, segundo ela, um não

invalidaria o outro.

Essa ocorrência pode ser, também, notada no trabalho de Andreia Loyola. Essa

autora afirma que os populares do bairro de Santa Rita, periferia de Nova Iguaçu, no

Rio de Janeiro preferem o tratamento dos curandeiros por causa da aproximação desses

profissionais com o seu mundo, com o seu modo de representar a saúde e a doença. Já

89

PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. “Observações sobre concepções e práticas populares de cura

em São Luís”. Op. Cit. P. 246. 90

Ibid. P. 248.

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os médicos oficiais se utilizam da sua formação universitária para impor uma

supremacia “fundamentada na desigualdade da competência técnica e não na distância

social” 91

entre eles e a população.

Na maior parte das vezes, a desqualificação feita pelos médicos das

representações que o doente das classes populares têm cerca de seu corpo e

de suas doenças visa, na verdade, atingir os especialistas da medicina

popular: se a ignorância daqueles doentes serve de explicação ou de

justificativa para muitos erros ou fracassos médicos, é porque na verdade ela

significa mais do que uma simples falta de saber; ela é também superstição,

ou seja, recursos à práticas mágicas e primitivas, que ‘não curam nada,

atrapalham o trabalho dos médios’ e ‘retardam a sua procura até um ponto

em que eles mais nada podem fazer’. Assim sendo, grande parte da

responsabilidade pelos altos índices de mortalidade e/ou incidência de certas

doenças é transferida para os agentes da medicina popular 92

.

Mundicarmo Ferreti faz algumas considerações a respeito da pajelança de

negros em São Luís no século XIX e da cura em terreiros do município de Cururupu, no

litoral ocidental do Maranhão. No trabalho Cura e pajelança em terreiros do maranhão

(Brasil), uma das principais problemáticas abordadas é o “Tambor de curador”, onde ela

enfatiza uma sessão de cura, onde o pajé, ou curador tenta curar uma pessoa com fortes

dores de cabeça.

Mundicarmo Ferreti se detém numa discussão no sentido de denominar

curandeirismo e pajelança, dessa forma, ela assegura que, no Maranhão, ‘cura’ e ‘mina’

são denominações diferenciadas, mas que durante o século XIX e primeira metade do

século XX, serão compreendidas a partir de um misto de representações mágico-

religiosas, resultando num sincretismo denominado pajelança. Isso teria se estabelecido

por causa da perseguição aos curandeiros e suas terapias medicinais ilegais.

Para mascarar a prática de cura, os curandeiros disfarçavam as suas sessões

como brincadeira, diversão de negros cognominada de Tambor de Mina. Nesse contexto

o curandeirismo é considerado uma prática ilegal de cura, e o Tambor de mina, uma

mera diversão religiosa, onde fiéis cultuavam suas divindades, dessa forma, a relação

mina-pajelança se configurava como uma tentativa de desviar as atenções das

autoridades.

Christiane Mota compartilha da mesma opinião de Mundicarmo Ferretti, pois,

ela afirma que há uma estreita relação entre tambor de mina e pajelança, na medida em

91

LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. Op. Cit. P. 23. 92

Ibid. P. 25.

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que, sabe-se que por muito tempo os pais-de-santo foram perseguidos pela polícia e

encontraram na mina uma espécie de válvula de escape por esta manifestação religiosa

está associada à diversão de negros com seus batuques e suas danças. Já a pajelança não

teria desfrutado da mesma regalia por representar um misto de religiosidade e terapia

médica, ou seja, eram atos a serem desprestigiados por compreender uma gama de

fatores regulados pelo Estado, sobretudo, a medicina de ordem tradicional. Enfim, “a

intensa perseguição aos pajés seria uma das explicações sobre a relação mina-pajelança”

93, como demonstra o seguinte artigo.

“Zé Malaquias”, depois, mandou uma moçoila buscar uns papéis e mostrou-

nos a licença da Polícia para o funcionamento do “tambor de mina”. A

licença dizia mais ou menos assim: “Crescêncio Alves tem licença para

dansar “tambor de mina” nos dias 29, 30, 31, 2 e 3, tendo pago a taxa exigida

por lei”. Era duas licenças, uma datada de maio e ambas contendo a

assinatura do sr. Paulo A. Cunha, sub-delegado do João Paulo. Crescêncio

Alves é o pai de Malaquias, segundo nos afirmou êste. Ficamos, então,

sabendo: “Zé Malaquias” tem licença para dansar “tambor de mina” e paga

imposto, como qualquer dono de baile. Dai dizer que tem patente. Quando

examinamos os documentos apresentados por: Zé Malaquias”, várias pessoas,

todas praticantes da macumba, cercaram-nos, com um olhar apreensivo,

como se fossemos autoridades policiais. “Zé Malaquias” tranquilizou a todos,

dizendo, referindo-se ao repórter: “Ele também é da macumba” 94

.

A manifestação recreativa Tambor de Mina é um movimento religioso muito

recorrente no Maranhão. Mas, durante o século XIX e grande parte do século XX foi

muito perseguida por ser uma manifestação da cultura afrodescendente e por estar

diretamente associado ao curandeirismo.

Caso parecido ocorreu na emissão de uma licença95

para a realização de um

Tambor de Mina, em fevereiro de 1912, concedida pelo delegado de polícia Pereira

Junior a Agostinha Silva da Conceição, no bairro da atual Madre Deus. Os artigos do

jornal O globo da década de 1940 afirmam que o Tambor de mina era um disfarce para

a realização de sessões de curandeirismo. Ou seja, ao analisarmos este documento, é

possível entender que, na verdade, a licença concedida por Pereira Junior poderia,

perfeitamente, ser mais uma evidência de como era intenso o curandeirismo e a sua

perseguição na capital maranhense no início do século XX, pois, para serem realizadas

as suas sessões precisaria de uma escapatória.

93

MOTA, Christiane. Pajés, curadores e encantados: pajelança na Baixada Maranhense. Op. Cit. P.

53. 94

O GLOBO. São Luís, 9/06/1947. Op. Cit. P. 4 95

Arquivo Público do Estado do Maranhão-APEM/Autorização par licenças de bailes e saída de

presos (fevereiro-abril); Ano 1912.

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Em algumas regiões do Estado, como é o caso da Baixada Maranhense,

Tambor de Mina e curandeirismo se mesclam. Por isso, mesmo pressupondo que as

realizações de Tambor de Mina autorizadas pela polícia poderiam ser uma forma do

curandeirismo passar despercebido pelos olhares da sociedade e da polícia, poderia, este

verdadeiramente, ser uma brincadeira. A grande questão é que no Maranhão, cura e

tambor de mina, dificilmente estão dissociados.

Mundicarmo Ferretti analisa a complexidade da pajelança ludovicense e

destaca, também, o curandeirismo no município de Cururupu. Pois, a religião é um

fenômeno bastante comum nesses terreiros e a doença é percebida não somente no

universo material, biológico, mas também, no abstrato, no sobrenatural, na magia, e

finaliza, apregoando que, para fugirem da fiscalização do Estado, curandeiros, por

muito tempo, se autolegitimavam espíritas, mineiros, umbandistas com o intuito de

serem representados como fiéis de uma religião e não como contraventores da lei.

Apesar do Maranhão ser conhecido como ‘berço’ do tambor de mina

(religião afro-brasileira muito conhecida no Norte do Brasil), muitos terreiros

maranhenses (casas de culto) são apresentados como “de curadores” ou

realizam rituais de cura ou pajelança, termos que traduzem sua função

terapêutica e sua origem indígena afirmada naquele campo religioso (apesar

da palavra pajé ter sido muito usada no Maranhão do século XIX, para

designar atividades médico-religiosas de populações negras) 96

.

96

FERRETI, Mundicarmo. Cura e pajelança em terreiros do maranhão (Brasil). São Luís: Ufma,

2008. Apresentado em 18/3/2008 no Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia Médica – Universitá

degli Studi di Milano Bicocca – Itália. Retoma texto apresentado em Mesa Redonda do VIII Encontro da

ABANNE – São Luís, 1-4/7/2003 – intitulado: Tambor de curador e pajelança em terreiros maranhenses.

Publicado em I Quaderni del CREAM, v.8, 2008. Disponível em: www.gpmina.ufma.brpastasdocCura.

Acesso: 19/03/2014; 19h50 min.

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62

3. A NATUREZA DO CURANDERISMO: OS COSTUMES E O UNIVERSO DE

REPRESENTAÇÕES DE VIDA.

3.1. PRÁTICAS E COSTUMES POPULARES: ALGUNS APONTAMENTOS

SOBRE A CURA TRADICIONAL CONTEMPORÂNEA.

O curandeirismo é constituído por uma série de práticas, dentre elas, a

fitoterapia. Ela é largamente utilizada nos rituais de cura como as benzimentos, os

banhos e as garradas. “Ela remonta a cerca de 8.500 anos a.C e apresenta origens tanto

na Etnobotânica quanto na etnofarmacologia” 97

. A estrutura bioquímica das plantas

possui princípios ativos capazes de curar diversas doenças e foi a partir do

conhecimento dessas propriedades terapêuticas que surgiu a medicina alopática

moderna.

Ainda que a medicina de Imhotep ou a hipocrática tenha se desenvolvido

consideravelmente na longa duração, a fitoterapia não deixou de existir. Poderíamos

atribuir esse fenômeno ao fato da medicina científica não atender à grande demanda

populacional espalhada pelas largas regiões do Brasil na contemporaneidade.

Entretanto, se nos detiver exclusivamente a esse aspecto, estaríamos também nos

limitando a considerar outros fatores como o fato da identidade dessas pessoas estarem

agregadas ao curandeirismo e a crença no potencial de cura da medicina natural, a falta

de políticas públicas, o fator econômico-educacional das novas gerações, dentre outros.

Sugerindo algumas respostas a esse problema, o trabalho Comunidades

ribeirinhas amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais98

tem a finalidade

de relatar a experiência vivida por acadêmicos do último ano de Enfermagem da

Universidade do Estado do Pará (UEPA) em comunidades ribeirinhas amazônicas

localizadas às margens do rio Tapajós, nos municípios de Aveiro e Belterra, no Estado

Pará.

Essa população é quase sempre composta por famílias numerosas e sofrem

com a ausência governamental, pois, fatores como água potável, saneamento básico,

moradia digna, educação, trabalho e assistência médico-hospitalar são praticamente

97

Programa de plantas medicinais e Terapias não convencionais. Disponível em:

www.ufjf.b/proplamedatividadesfitoterapia. Acesso: 18/09/2015; 10h26 min. 98

FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto; PEREIRA, Henrique dos Santos. Comunidades ribeirinhas

amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007.

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inexistentes. A precariedade que perdura nessas localidades revela a pobreza em que a

região está mergulhada e, quando se trata de saúde, as dificuldades encontradas são

mais perceptíveis, pois, quase não existem postos médicos, o que acaba contribuindo

para o surgimento de doenças tropicais como a cólera, a esquistossomose, a dengue, a

malária, a doença de Chagas, dentre outras.

As comunidades ribeirinhas da Amazônia têm nos últimos tempos, sido alvo de

várias pesquisas científicas que se interessam em conhecer e entender como é a vida das

pessoas dessa região, e um dos aspectos mais observados pelos cientistas é a

manipulação das plantas medicinais pela população local e o interesse da indústria

farmacêutica pela flora amazônica. As plantas, para a grande maioria dessa população

ainda se constituem como o único medicamento disponível, e o que faz com que isso

ocorra é consequência da perduração de um misto de costumes herdados dos

antepassados dessas pessoas, agregados a fatores econômicos e à chegada de uma nova

era social, a idade contemporânea, aquela onde os grandes fenômenos, sejam eles,

sociais, culturais ou políticos, ocorrem em grande velocidade, fazendo com que vários

costumes sejam fragmentados, como é o caso da chegada da medicina científica em

lugares remotos da Amazônia.

Encontramos no Brasil uma medicina hierarquizada de modelo tecnocrático,

onde, a figura do médico suprime a do paciente e as máquinas sobrepõem-se ao

conhecimento popular. Esse modelo pressupõe que as máquinas tem a exclusiva

finalidade de deliberarem e identificarem causas e efeito das doenças, pois, numa

tentativa de encontrar a cura o mais breve possível, o sistema de saúde brasileiro acabou

virando um “negócio lucrativo e de péssima qualidade” 99

. Dessa forma, surge um

embate entre o tecnicismo da medicina alopática fundamentado pela Organização

Mundial de Saúde (OMS) e o tradicionalismo da medicina popular que é entendida por

esta organização governamental como:

[...] o resumo de todos os conhecimentos teóricos e práticos, explicáveis ou

não, utilizados para diagnósticos, prevenção e supressão de transtornos

físicos, mentais ou sociais, baseado exclusivamente na experiência e

observação, e transmitidos oralmente ou por escrito de uma geração a outra.

Também considerada como uma firme mistura de prática médica ativa e

experiência ancestral, ou seja, semelhante ao conceito de fitoterapia100

.

99

Ibid. P. 112. 100

Ibid. P. 110-111.

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A mecanização dos procedimentos médicos adotados pelo Estado tenta

desprestigiar amplamente as práticas tradicionais de cura, relegando-as ao descaso. Este

fator é consequência da “crescente pressão econômico-cultural da sociedade envolvente,

com consequências funestas para as culturas tradicionais” 101

. Portanto, há um

movimento social nas comunidades ribeirinhas que pretende criar métodos que

possibilitem o registro, o aprimoramento e a perpetuação dos conhecimentos da

medicina tradicional. “O conhecimento acumulado por estas populações através de

séculos de contato com seu meio ambiente, enriqueceria bastante o pouco que se sabe

sobre a flora tropical” 102

.

Há uma crescente inserção de medicamentos industrializados e de médicos-

cientistas nessas áreas. Isso pressupõe que as populações das comunidades ribeirinhas

se encontram em um grandioso dilema, pois, elas acreditam na eficiência das plantas

medicinais, ainda que os seus efeitos positivos demorem, no entanto, os medicamentos

sintéticos propagados pelas indústrias farmacêuticas instaladas na região se apresentam

como uma espécie de cura em curto prazo e com mais praticidade no preparo de

soluções. Ainda assim é possível notar a resistência de algumas pessoas em aceitarem

essas inovações tecnológicas.

Alguns aceitam as ideias científicas vindas de fora, embora ao mesmo tempo

receiem desfazer-se de suas crenças e práticas tradicionais e muitos

continuam tendo mais fé em seus curandeiros nativos do que no médico.

Numa crise “experimentarão” o último103

.

De acordo com essas ideias, Alceu Maynard desenvolve uma reflexão sobre o

processo de adaptação da medicina científica na cidade de Piaçabuçu, no Estado de

Alagoas, em meados do século XX. Ele discorre sobre a insistência popular em

continuar adotando os métodos curativos de uma medicina que o referido autor chama

de medicina rústica. O uso costumeiro de utilizar os benzimentos, as garrafadas, os

banhos, dentre outros costumes, associados às práticas mágico-religiosas são uma

espécie de essencialidade de uma população que desconhecia os modestos avanços

científicos de meados do século XX.

101

Ibid. P. 113. 102

Ibid. P. 113. 103

SILVA, Sheila Maria Garcia; NASCIMENTO, Keila Gardênia Silva. et al. “A ‘saúde’ nas

comunidades focais do Projeto Piatam: o etnoconhecimento e as plantas medicinais”. In: FRAXE,

Therezinha de Jesus Pinto; PEREIRA, Henrique dos Santos. (orgs.). Comunidades ribeirinhas

amazônicas: modos de vida e uso dos recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007. Cap. V. P. 115.

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Causas como deficiência governamental e arrogância profissional estão no topo

dos aspectos que dificultam uma aceitação popular da medicina alopática. Segundo

Alceu Maynard, os médicos e enfermeiros que se deslocam das grandes cidades do

Brasil em direção aos subúrbios nacionais, como é o caso de Piaçabuçu, carregam

consigo uma ideologia profissional “superior” com a intenção de submeter os

conhecimentos populares.

O objetivo geral de Alceu Maynard é proporcionar uma releitura sobre os

conceitos de saúde e doença da população de Piaçabuçu. Ou seja, que os médicos e

enfermeiros que se deslocaram àquela localidade levassem em conta os conhecimentos

daquela população sobre saúde e doença. Algo que ele vem a cognominar de Medicina

social, uma mescla de medicina científica e antropologia.

Aos médicos está reservado um papel espinhoso, pois é muito difícil

esquadrinhar o espírito de uma pessoa doente do que o da sã, daí a

necessidade da antropologia para que sua senda seja mais fácil de palmilhar,

amenizada. Precisa o médico infundir confiança, estabelecer um leal, afetivo

e amistoso rapport com o paciente que não raro é um adepto das práticas

espíritas, mágicas ou religiosas sobreviventes na cultura rústica no que

concerne à medicina. Para a melhor compreensão deste problema necessário

se torna o adestramento do médico nas disciplinas da metodologia

antropológica, para não criar resistências ou temores e atingir o alvo

colimado104

.

A flora amazônica representa para as populações e comunidades ribeirinhas a

essência da vida. São das matas que essas populações retiram o seu sustento e o remédio

para as enfermidades no decorrer de suas vidas. O conhecimento popular, ou, a

etnobotânica deu a possibilidade de valorização e reconhecimento desses costumes,

portanto, notamos um forte apelo pela preservação desse bem natural associado ao

desenvolvimento de técnicas que permitam a sua sustentabilidade, como é o caso do

plantio e do replantio de ervas medicinais.

O artigo de Maria do Rosário Santos Medicina popular: mística e cura na zona

rural ressalta o uso e a importância da medicina tradicional para o Maranhão. Destaca-

se nesse contexto, de forma específica, o seu uso na zona urbana e rural, além da

inserção de rituais místico-religiosos.

O uso da medicina popular no Maranhão vem crescendo muito nos últimos

anos. Na capital, assistimos à proliferação das farmácias naturistas, onde os

produtos, na sua totalidade, são manipulados industrialmente. Mas o

fenômeno ganha maior proporção no interior do Estado, onde os remédios

104

ARAÚJO, Alceu Maynard. Medicina rústica. Op. Cit. P. 13.

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caseiros sempre estiveram presentes na vida do povo do campo, até mesmo

por ser a única forma de medicamento disponível e acessível às pessoas de

baixa renda105

.

Ao nos determos neste trabalho, observamos que o “progresso”, não se

constitui, meramente, como um agente de exclusão social, logo, o mesmo, possibilita o

estudo das plantas medicinais e, consequentemente, a sua revalorização. “A prática da

medicina popular, obviamente, é uma herança deixada por nossos antepassados, cuja

importância, pelo seu valor terapêutico e, também, pelo fator econômico vem

despertando interesse internacional” 106

.

Ainda que a medicina tradicional ganhe espaço na sociedade em questão

devido ao seu valor terapêutico, os seus procedimentos médicos e empíricos não são

enquadrados, ou, devidamente reconhecidos pelo sistema médico oficial. “Mas não

podemos negar que a medicina caseira, como prática milenar, vem resolvendo os

problemas de saúde das zonas rural e urbana, onde um significativo número de pessoas

a utiliza como fonte de soluções práticas no seu dia-a-dia” 107

.

As feições mágico-religiosas são largamente associadas às funções médico-

terapêuticas da medicina caseira no Maranhão. “Convém ainda ressaltar que essa prática

vem se desenvolvendo numa dinâmica própria, coerente com o contexto sociocultural e

religioso porque, está, também, ligada à natureza, envolvendo elementos místicos” 108

.

Sendo assim, a medicina alternativa do povo maranhense não caminha solitariamente,

pois, possui uma dinâmica própria, fruto das sociedades que a adota.

No interior do Estado, especialmente nos povoados, as plantas medicinais

possuem uma força vital por serem a única forma de medicamento ao alcance

dos usuários locados nas camadas populares, cujo poder aquisitivo limita seu

acesso aos produtos peculiares à sociedade de consumo. Daí a razão da

comunidade carente buscar o comprovante na “farmácia de Deus-criação

divina” ou “mãe natureza”, onde elementos extraídos da flora e da fauna

tornam-se indispensável na resolução dos problemas de saúde. Em alguns

casos, as doenças são desencadeadas através da mediunidade e, para alguns

curadores, a enfermidade redime e purifica o corpo através do sobrenatural.

Sabe-se também que os remédios caseiros tem um papel de fundamental

importância nos terreiros de minado Maranhão pela forma mitológica à qual

as ervas estão intimamente ligadas à natureza e são fontes de energia que

divinizam e atribuem valores específicos na forma de preparar o remédio ou

105

SANTOS, Maria do Rosário. “Medicina popular: mística e cura na zona rural”. In: NUNES, Izaurina

Maria de Azevedo. (org.) Olhar, memória e reflexões sobre a gente do Maranhão. São Luís: Comissão

Maranhense de Folclore, 2003. P. 253. 106

Ibid. P. 253. 107

Ibid. P. 253. 108

Ibid. P. 253.

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banho, onde cada tipo de erva tem função determinada, assim como os

ingredientes usados no ato de defumar.

As casas de culto de origem afro são, antes de tudo, um espaço de

concentração de natureza ecológica, dado o respeito e a consciência que as

mineiras têm em preservar a natureza como fonte de energias positivas109

.

Feitas algumas reflexões, detectamos que a modernidade distanciou o homem

da natureza. Notamos, ainda, que os praticantes de costumes mágico-religiosos, por

estarem mais distantes dos grandes centros urbanos, ainda resistem e, dão algum valor a

elementos vindos da natureza, pois, os incorpora aos seus ritos costumeiros. Esse

pensamento pode ser aplicado perfeitamente aos curandeiros e adeptos do

curandeirismo em São Luís, no entanto, algumas peculiaridades podem ser notadas,

provavelmente, pelo fato destes últimos estarem mais próximos do “progresso”.

Este trabalho proporcionou à autora um contato gratificante com as pessoas das

áreas de invasão e periferia de São Luís, oriundas principalmente da zona rural, pois,

elas conservam e alimentam hábitos caseiros no que concerne ao cultivo e aquisição das

plantas medicinais.

Esse é um aspecto que, de acordo com Maria do Rosário Santos tornou este

trabalho coletivo, por ter sido construído baseado no modo de vida de pessoas comuns e

de baixa renda. Sendo assim, a real intenção dele é “mostrar toda a riqueza desse

maravilhoso universo, onde uma mistura de elementos materiais e espirituais se

constitui a base da diversificada medicina caseira e torna de domínio público as diversas

maneiras de cura utilizadas pela sabedoria popular” 110

.

3.2. A CRISTALIZAÇÃO DE UM UNIVERSO PARALELO: JUSTIÇA

BRASILEIRA, COSTUMES AFRODESCENDENTES E RELAÇÕES DE

PODER.

Desde as primeiras linhas deste trabalho estamos tecendo alguns comentários a

respeito da cura mágico-religiosa, da medicina oficial advinda de Portugal, das relações

de poder, das práticas e costumes de negros, dentre outros aspectos tangíveis. Nesse

percurso podemos notar a interferência judiciária no processo de legitimação do

curandeirismo com a finalidade de execrar das entranhas da gente mestiça, costumes

centenários herdados de outras gentes além-mar.

109

Ibid. P. 254. 110

Ibid. P. 255.

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Nesse sentido, a obra de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégio de

saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990) 111

é oportuna, pois,

nela a referida autora analisa os pressupostos que nortearam os julgamentos de casos de

curandeirismo encaminhados a instâncias superiores. Ou seja, casos de acusações de

curandeirismo que foram julgados mais de uma vez. Assim, podemos perceber como os

juízes elaboravam os seus discursos diante de acusações à prática de curandeirismo,

pois, é ressaltado como os juristas lidavam no início do século XX com a liberdade de

culto garantido pela constituição republicana brasileira concomitantemente com a

restrição às práticas mágico-religiosas existentes.

É ressaltado o quanto as faculdades de Direito e Medicina no Brasil se

beneficiaram das principais correntes teóricas antropológicas e sociológicas europeias e

da teoria do evolucionismo de Darwin. O discurso da primitividade das sociedades

servia como elemento crucial para que juízes, fundamentados numa tradição jurídica

brasileira do século XX julgassem práticas que agrediam os pressupostos progressistas

defendidos pelo Direito brasileiro da época. Dessa forma, foi possível identificar

charlatães, líderes poderosos e carismáticos com o fim de proporcionar ganhos em

benefício próprio e “alívio psicológico” 112

da população desinformada em geral, seja,

aquela humilde, ou, a abastada.

Ao contextualizarmos historicamente o desenvolvimento do processo de cura

no Brasil, ressaltamos a existência de uma pluralidade medicinal. No inicio, meio e fim

da colonização portuguesa variadas terapias concorriam à preferência da população,

uma vez que não havia uma modalidade terapêutica que pudesse se destacar com o

passar dos séculos, e já que não havia um propósito imediato dos colonizadores em

desenvolver um aparelho administrativo.

Essa coabitação proporcionou, desde cedo, um embate entre a medicina

tradicional praticada por negros, ameríndios e mestiços e, a de invento oficial praticada

por médicos vindos de Portugal quase sempre sem nenhuma formação acadêmica. Esse

conflito adentrou os séculos seguintes e anteriores ao advento imperial, fomentando

conflitos no sentido de serem reconhecidas. Pois, com a transferência do núcleo político

de Portugal para o Brasil, esse cenário ganhou novas feições.

111

SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégios de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais

brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM, 2004. 112

Ibid. P. 34.

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A instauração do Império luso-brasileiro possibilitou uma notoriedade à

medicina de origem portuguesa com a criação das faculdades de Direito e Medicina,

logo, esta terapia, por mais que tenha ganhado status de oficial, teve que coabitar

conjuntamente com a terapêutica tradicional. Esta conjuntura sofreu modificações que

privilegiaram acentuadamente a medicina oficial, com a criação de legislações que

coadunavam com o processo de modernização advindo com a instauração da república.

O trabalho Feitiçaria e curandeirismo nos processos crimes-Caetité/BA- 1920

e 1939 trata dos diferentes sujeitos qualificados como curandeiros e feiticeiros nos

processos crimes movidos em Caetité, cidade localizada no sudoeste baiano, entre os

anos de 1920 e 1939. Adriana de Jesus investiga quem eram os sujeitos que praticavam

a cura em Caetité e quais eram os argumentos utilizados pelos outros profissionais das

áreas médica, jurídica, jornalística, dente outras, que, fundamentados nos artigos 156 a

158 do Código Penal de 1890 denunciavam e julgavam as diversas terapias naturais

como práticas perigosas à saúde pública. “A feitiçaria examinada na documentação

judiciária de Caetité era tratada como ‘coisa para fazer o mal’ e quem exercia prática de

cura era chamado de feiticeiro, bruxo e curandeiro [...]” 113

.

Ao analisar os processos-crime, a referida autora, tenta identificar nas

declarações dos acusadores, acusados e testemunhas as relações sociais originadas a

partir da crença em feitiçarias, forças ocultas, rituais mágico-religiosos e processos de

cura que havia naquele contexto daquele município. Restava ainda demonstrar as

tensões e conflitos ocasionados pelas relações de força do poder público com os

curandeiros.

Em variados trabalhos sobre as relações de força entre Estado e curandeirismo

é possível notar a participação de indivíduos “fora de suspeitas” nos terreiros de cura.

Anteriormente comentamos a respeito da participação de oficiais da força policial da

capital maranhense protegendo e até participando dos rituais mágico-religiosos

espalhados pela cidade. Mas, o que poderia levar tais “homens de bem” a lugares mal

vistos como esses? Seria unicamente devido à falta de hospitais? Adriana de Jesus

assevera que uma gama de pessoas distintas social e economicamente como lavadeiras,

funcionários públicos, artistas, lavradores, comerciantes, negociantes, inspetores de

113

SACRAMENTO, Adriana de Jesus. Feitiçaria e curandeirismo nos processos crimes- Caetité/BA-

1920 e 1939. [S.L]: ANPUH, [Entre 2010 e 2015]. Disponível em:

www.anpuhba.org.adrianadejesussacramento. Acesso: 19/03/2014; 17h28 min.

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polícia, diaristas, damas distintas, dentre outros profissionais, enchiam as casas de cura,

possivelmente, em busca de tratamento médico ou médico-espiritual baseados pela fé na

cura tradicional. “Além disso, essas práticas curativas eram acessíveis para esses

segmentos sociais e não exigiam um tratamento prolongado e fora do ambiente

familiar” 114

.

O poder judiciário já demonstrava seu poder no século XIX, quando o

problema girava em torno da saúde e da oficialização profissional. Caso idêntico

aconteceu em Minas Gerais, no século XIX, como frisa o presente trabalho de pós-

graduação de Marcelo Rodrigues Dias, Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais

na segunda metade do oitocentos que analisa a influência do curandeirismo na

sociedade mineira da segunda metade do século XIX. Seu recorte espacial em

específico foram as cidades de São João Del-Rei, Oliveira e Pitangui. Suas fontes

documentais foram os processos-crimes e artigos de jornais que evidenciavam a

recorrência das práticas de cura popular em larga escala.

A abordagem enfatiza o jogo judiciário no sentido, deste, ora apontar, na

maioria das vezes, o curandeirismo como crime, prática ilegal, ora, como um fenômeno

fruto da ignorância intelectual da população. O curandeirismo era constantemente

perseguido devido ao amplo aceitamento da sociedade mineira, por coadunar práticas

populares e tradicionais comuns nas vidas daquelas pessoas. Diga-se de passagem, a

população referida aqui e, na maioria das vezes julgada, se trata dos menos abastados

que sem recursos financeiros que pudessem propiciar um atendimento mais “eficaz” de

cura valiam-se daquilo que estava ao seu alcance. A medicina oficial ministrada pelos

médicos licenciados constituía um crivo que separava da dessa terapia uma considerada

parte da população.

De fato, a medicina surgia como uma novidade das mais inusitadas nos

costumes das gentes. A assimilação do costume de ir ao médico tratava-se de

um processo lento, gradativo e cheio de resistências. A crença alimentada

pelas pessoas nas curas tradicionais e empíricas tornavam a incorporação da

medicina oficial no seio da sociedade muito difícil. Estas prestigiadas

terapêuticas tradicionais e ancestrais na sociedade oitocentista mineira

ajudavam a constituir um amplo universo sobre o qual a busca da cura

transitava na sociedade115

.

114

Ibid. P. 2. 115

DIAS, Marcelo Rodrigues. Repressão ao curandeirismo nas Minas Gerais na segunda metade do

oitocentos. São João Del Rei – MG: UFSJ, 2010. P. 17. Disponível em: www.ufsj.edu.brportal. Acesso:

19/03/2014; 17h27 min.

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O confronto entre essas duas forças, onde o curandeirismo se torna um

universo de práticas execráveis, seria um mecanismo legitimador da perseguição por

parte das autoridades competentes aos praticantes da cura alternativa. Logo, o

curandeirismo era um oponente em potencial à medicina oficial. Portanto, fica claro

neste trabalho, que de forma alguma, médicos licenciados permitiriam o funcionamento

da livre terapia tradicional. Neste caso, o poder judiciário, se configura como algoz na

“caça as bruxas” no que se refere aos praticantes da terapia tradicional da sociedade

mineira oitocentista.

O certo é que esse novo panorama, pré-republicano e pós-republicano, tem em

suas raízes uma predisposição em anular os efeitos da colonização. O curandeirismo,

ainda que tenha sofrido represálias, manteve-se em desenvolvimento, logo, a ereção

desse Estado teria extrema dificuldade de apagar as marcas do passado, uma vez que,

os costumes herdados da população escrava e indígenas estavam ligados visceralmente

à sociedade em geral.

Falamos incessantemente em costumes, mas, qual será a influência dos

costumes herdados pela população descendente das diversas nações afrodescendentes

no processo civilizador brasileiro e maranhense? Qual o direcionamento dado por eles

às práticas de curandeirismo em São Luís?

Para fornecer algumas explicações plausíveis, é necessário que façamos

algumas observações sobre esse fenômeno. Para tanto, em Costumes em comum:

estudos sobre a cultura popular tradicional, Edward Palmer Thompson se debruça

sobre o desenvolvimento de uma história do trabalho na sociedade inglesa do século

XVIII, em pleno desenvolvimento do capitalismo. Ele analisa, sob um aspecto marxista,

os hábitos dos setores populares britânicos interligando campos de estudos de

abordagem social, cultural e antropológica no sentido de evidenciar os costumes e

tradições, as estratégias e as manipulações da lei, os cercamentos dos campos e,

consequentemente, o fim das terras comunais, estabelecendo teoricamente o confronto

dessa sociedade com o autoritarismo capitalista.

Thompson encara a história do trabalho inglês setecentista sob um panorama

de um capitalismo industrial “progressista” afirmando que os costumes se configuravam

como peças chave no intuito de se compreender como os mesmos eram frequentes,

atuantes e rebeldes. Pata tanto, a cultura é considerada pelo autor inglês como um

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amarrilho de costumes e tradições, muitas vezes, contraditórios, mas, que servem como

parâmetro no que tange a análise dessas classes superiores e inferiores no processo de

transformação econômico-social.

Ele defende a ideia de que a consciência e os usos costumeiros eram

especificamente fortes no século XVIII. Alguns desses costumes seriam muito recentes

e representavam as reivindicações de novos direitos das classes trabalhadora e burguesa.

Ele questiona a tentativa de alguns historiadores que se ocupam dos séculos XVI e XVII

tender a ver o século XVIII como um período em que os costumes se encontravam em

declínio, seguido pela feitiçaria, pela magia, dentre outras superstições. Segundo essa

afirmativa, a população estaria sendo pressionada por mudanças vindas de cima, como

era o caso da suplantação da oralidade pela alfabetização, pois, as determinações

resultantes da chegada de uma nova era estariam escorrendo das camadas superiores em

direção aos estratos inferiores da sociedade.

Havia uma resistência no processo reformador da sociedade inglesa do século

XVIII, ou seja, para Thompson, as pressões que visavam uma reforma social, que

tendenciosamente pretendiam sucumbir, em particular, os costumes dos estratos sociais

inferiores encontravam imensurável resistência, o que proporcionava o surgimento de

uma lacuna, “uma profunda alienação entre a cultura patrícia e a da plebe.” 116

. Pois, nos

séculos anteriores, o termo “costume” teria sido empregado para caracterizar boa parte

do que hoje denota o termo ‘cultura’, “o costume era a segunda natureza do homem”.

117.

Caso parecido é discutido na obra O processo civilizador: uma história dos

costumes de Norbert Elias. O ponto de partida do livro é entender as diferenças entre os

conceitos de civilização e cultura. Os dois, de acordo com o autor, não são universais e

não são atemporais. Ambos os conceitos lidam com as realizações da sociedade, com a

sua organização política e econômica, com suas tecnologias, dentre outros. Mas há dois

movimentos a serem notados e contrários: cultura se referiria a um plano intelectual,

abstrato, enquanto civilização estaria ligada a um plano mais prático e concreto. Cultura

se refere à especificidade, ou seja, a cultura de um povo ou de uma sociedade, já

civilização se refere a um princípio de universalização, civilização seria aquilo que

116

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 13. 117

Ibid. P. 14.

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todas as sociedades deveriam alcançar num dado momento, é um movimento da

“Humanidade”. Civilização seria algo em comum a todas as sociedades, é o potencial

dessas sociedades, é um fenômeno que visa o “progresso”.

A sociogênese dos conceitos de Kultur e Zivilization118

se inicia com a análise

da burguesia alemã. A época analisada é a da aristocracia cortesã, entre os séculos XV e

XVIII. Neste período, a burguesia alemã não detinha força política, não conseguia

cargos relevantes na administração do Estado e também não tinha acesso à sociedade de

corte.

A sociedade de corte era composta por aqueles que participavam das rotinas da

nobreza, assim como participavam de seus eventos e se submetiam às suas regras. O

que Norbert Elias analisa profundamente são os “modos civilizacionais”. A etiqueta da

corte. Os comportamentos e as relações que sua vigência tem.

A aristocracia alemã rejeitava a sua própria língua. A língua refinada era o

francês e as cortes a utilizavam. Havia um aspecto duplo: evitar as classes dominadas e

estabelecer um princípio de distinção. A burguesia alemã, por sua vez, tentava aprender

o idioma francês, na esperança de ter algum reconhecimento e conseguir alcançar

posições mais privilegiadas na estrutura social. Entretanto, com todas as limitações que

recaiam sobre esta classe, a única brecha encontrada foi o recrudescimento dos

princípios da intelectualidade.

Segundo essa ótica, o sujeito civilizado, seria burro e controlado socialmente,

culto era o indivíduo detentor de conhecimento, de cultura. A burguesia alemã evitava a

sociedade cortesã, rejeitava seus comportamentos “refinados” e superficiais, não

conseguia posições importantes na organização do Estado e não tinha nenhum poder

político, entretanto, via nas universidades a sua única saída.

Norbert Elias percebe que uma intelligentsia é formada na Alemanha tendo

como núcleo os escritores, artistas, filósofos, poetas, dentre outros, originados na

burguesia. A rejeição à aristocracia de corte começa a se firmar institucionalmente com

a formação de um corpo de intelectuais que reforçavam todo o campo cultural e

intelectual do país e o termo cultura se firmava como algo que valorizava aquilo que é

único. O termo cobre as estruturas econômicas e políticas, as invenções, as tecnologias,

118

Esses são os termos “Cultura” e “Civilização” na língua alemã.

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mas, está sempre em uma esfera intelectual, em uma profundidade de conhecimento e

em um princípio de distinção. A “cultura” é o termo que a classe burguesa alemã usa

para legitimar sua distinção em relação à aristocracia. É um termo de autolegitimação.

Por sua vez, o termo civilização tem um processo longo dentro das classes

dominantes francesas. A mudança do termo é demarcada por Norbert Elias como

transformações históricas que podem ser vistas nas passagens dos termos distintivos das

classes dominantes de cortês, polido e até civilizado. Essas transformações são

demarcadas por novos padrões de refinamento e controle dos instintos. Norbert Elias

observa essas mudanças como algo mais ou menos homogêneo por toda a Europa. Não

necessariamente em todas as cortes, mas, pelo menos, no ideal que estas cortes trazem

para o que deveria se tornar uma sociedade de corte.

O impressionante no estudo de Norbert Elias é que, tomando como objeto de

estudo as sequenciais transformações dos comportamentos das sociedades cortesãs, os

livros e manuais de comportamentos, de bons modos, ele percebe que, de uma

perspectiva histórica, de um ponto de vista em longo prazo, há um movimento de

controle cada vez maior dos instintos. Esse é o processo civilizador. Um processo onde

as estruturas emocionais incorporam controles dos instintos cada vez maiores e se

modificam de acordo com as transformações que acontecem na própria sociedade.

Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três

séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades

contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental

procura descrever a que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se

orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o

desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito

mais119

.

Neste processo, por exemplo, é localizada historicamente a estrutura

psicológica descrita por Freud. Ego, Id e Superego fariam parte de uma estrutura que só

poderia realmente ter nascido em tempo de alto controle e repressão. Esta é uma

interpretação da estrutura psíquica que faz sentido e que explica os indivíduos da

sociedade por ser uma estrutura que tem lugar cativo para as contradições cada vez

maiores de impulso, de gozo e de refinamento, de repressão e controle.

119

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1994. P. 23.

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Feitas algumas considerações sobre costumes pudemos notar como eles se

constituíram e constituem uma espécie de amarrilho de outros costumes, originando,

assim, o fenômeno social cognominado de cultura. No Maranhão este mesmo amarrilho

foi responsável por diversos conflitos entre autoridades governamentais e curandeiros

na primeira metade do século XX, como é o caso percebido por António Evaldo

Almeida Barros no artigo científico Nos (des) caminhos da cura.

Neste trabalho, ele pretende enfatizar através de fontes escritas, de jornais em

particular, a intensa difusão do curandeirismo no Maranhão em meados do século XX.

Ele ressalta que a prática de pajelança nesse período era intensa, dessa forma, em grande

parte foi desvalorizada e depreciada pela massa de intelectuais, pela polícia e grande

parte da sociedade, sendo associada à criminalidade, ao homossexualismo, a barbárie, a

degeneração fenotípica, ao atraso cultural do Maranhão, a práticas diabólicas, ao

alcoolismo, à prostituição infantil, dentre outras depreciações.

O mais notável nesse trabalho é o quanto a imprensa e grande parte da

sociedade maranhense, através dos jornais, Pequeno e, principalmente, O Globo,

apresentava o Maranhão como o avesso do universo civilizado. Seus rituais de cura

eram associados à magia primitiva, ou seja, as práticas e os costumes mágico-religiosos

dos pajés representavam a continuidade de um mundo “incivilizado”.

As mesas de cura se espalhariam por todo o Estado, através de um processo de

mobilização, interações e conflitos. Muitas vezes pessoas da própria elite participavam

das curas, evidenciando que as práticas de curandeirismo no Maranhão, por mais que

fossem definidas como práticas rústicas, de pobres, negros e caboclos, muitos abastados

maranhenses, personalidades da alta roda social, delas, participavam com frequência.

A exemplo do que ocorreu em diversos lugares do Brasil, como na Bahia e

em Pernambuco, e em outros países da América Latina, no Maranhão

também foi intensa a construção negativa das práticas e representações

relacionadas aos repertórios sociais identificados com África ou com os

povos nativos, particularmente aqueles nos quais eram realizadas Curas.

Dessa operação participaram membros de diferentes estratos sociais e

posições políticas, de diferentes cores, gêneros e gerações. Parte da imprensa,

laica ou religiosa, de direita e de esquerda, constituiu-se como o canal central

através do qual se deu a difusão massiva de estereótipos e preconceitos

referentes ao mundo dos encantados e das Curas ditas supersticiosas120

.

120

BARROS, António Evaldo Almeida. Nos (Des) Caminhos da Cura. Net, Porto Seguro – BA, [2007 e

2014]. P. 5. Trabalho apresentado no Fórum de Pesquisa “Terapeutas, cuidadores e curadores populares:

Uma interface entre Antropologia, cidadania e saúde popular” da 26ª. Reunião Brasileira de

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O discurso religioso, concomitantemente com o jornalístico, o policial e o

médico-oficial, uniram-se numa vanguarda que tinha como principal objetivo eliminar

os terreiros de pajelança e seus adeptos de São Luís e, com menos intensidade, no

restante do Maranhão. Os curandeiros, dessa forma, eram associados a astutos

religiosos, que, pretensiosamente ludibriavam os extratos sociais em geral. Tanto

pobres, quanto, abastados estariam propensos a cair nas armadilhas dos curandeiros.

Essa característica é bastante espinhosa porque acaba por generalizar o

processo de “caça às bruxas”, ou seja, a história do curandeirismo em São Luís não é

emoldurada apenas como um fenômeno passível à vitimização. Diversas denúncias em

artigos de jornais, segundo António Evaldo Almeida, evidenciavam como curandeiros e

pacientes da cura tradicional conseguiram manter os seus terreiros em funcionamento,

mesmo com toda forma de ataque vindo de cima. Isto é, ainda que o Estado perseguisse

os curandeiros, este fenômeno mágico-religioso conseguiu manter-se em

desenvolvimento. Por diversas vezes, utilizando a sua própria denominação religiosa, os

pajés conseguiram escapar das garras da polícia, e foi muito decorrente, curandeiros se

beneficiarem de relações mais próximas com agentes da elite ludovicense.

Através de um processo de intensas e múltiplas mobilizações, interações e

conflitos, pajés ou curadores foram capazes de questionar e romper com

representações pejorativas que os emolduravam num mundo de passividade,

bestialidade e malignidade, e afirmaram-se como sujeitos sociais centrais

para a história do Maranhão121

.

Ao tratar das questões ligadas à sexualidade, António Evaldo Almeida destaca

as relações de gênero que envolvia a cura e o tambor de mina em meados do século XX.

Ele afirma que antes da década de 1950 não era comum que homens assumissem a

função de pais-de-santo ou dançassem o tambor de mina, logo, seriam vistos como

homossexuais ou afeminados. Mas, a partir desta data, continua enfatizando, alguns

curandeiros e dançarinos despontaram no cenário mina-pajelança no Maranhão, pois, ao

se submeterem a tal exercício, os homens dessa dualidade religioso-terapêutica

promoveram uma revolução no que tange o ideário sexual desse universo.

As funções masculinas dentro desse mundo se resumiam ao exercício de tocar

tambores, ou, pelo menos, deveriam exercer essa função. “De fato, até os anos 1950, o

Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil. Disponível em:

<http://www.abant.org.br/conteúdo/ANAIS/CDvirtual26RBAforunsdepesquisa/trabalhos>.htm. Acesso:

19/03/ 2014; 17h05 min. 121

Ibid. P. 37.

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Tambor de Mina costumava ser dançado e chefiado principalmente por mulheres negras

ou mestiças, provenientes das camadas mais pobres da população maranhense.” 122

. Em

algumas situações, ressalva o escritor, alguns chefes de terreiros surgiram sem que fosse

necessário serem identificados como tal, ou que fossem pais-de-santo, como é o caso do

senhor Inocêncio Barbosa, que chefiava o terreio de sua esposa e mãe-de-santo Estelina

Barbosa.

Até sua morte, ele era o responsável por toda a organização das festas,

participando tanto das questões rituais quanto dos festejos externos,

realizadas no terreiro de sua esposa, fundado nos anos 1950. Era um

profundo conhecedor do universo místico da Pajelança e do Tambor de Mina.

Foi o senhor Barbosa quem levou sua esposa para ser preparada no santo,

pois não aceitava (como ocorrera algumas vezes) que ela caísse em terreiros,

por não estar preparada123

.

Que os mundos do tambor de mina e da pajelança são bastante complexos,

isso, todos nós já sabemos. Agora, resta fazer algumas considerações a esse respeito,

dessa forma, António Evaldo Almeida destaca as relações de poder existentes no

interior dessa dualidade. Essa afirmativa serve para uma reflexão de que não era

somente no antagonismo Estado-curandeirismo que havia relações de poder no que

concerne o engessamento social. Essa relação à Michel Foucault perpassava por um

entendimento de que havia diferenças entre o tambor de mina e a pajelança no

Maranhão em meados do século XX. Porém, “tal divisão não seria clara e distinta para

muitos sujeitos” 124

. Mas do que isso, essa situação se tratava mais de uma questão de

poder do que de verdade, afirma o referido autor.

Ainda que reconhecessem veladamente as diferenças entre essas duas práticas

mágico-religiosas as autoridades policiais, os médicos oficiais, os clérigos, sobretudo, a

imprensa, objetivavam a coagi-las, pois, estavam propensos a “perseguir não somente as

ditas manifestações mórbidas, mas tudo o que, em suas perspectivas, se aproximasse

dessas práticas.” 125

.

Destacamos o curandeirismo neste processo, porque, por mais que a maioria

das literaturas sobre o tema não dê ênfase consistente que permita a observação do

processo de legitimação deste na longa duração, as mesmas obras deixam margem para

brotarem posicionamentos pertinentes que afirmam a tentativa do curandeirismo de se

122

Ibid. P. 33. 123

Ibid. P. 33. 124

Ibid. P. 35. 125

Ibid. P. 35.

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autolegitimar perante o avanço das ideias científicas advindas da Europa. Pois, feições

como os costumes dos afrodescendentes se apresentam como algum dos

posicionamentos para se pensar, não numa espécie de sobrevida das práticas e rituais de

negros no Brasil, mas, como, vivências, algo que se pronuncia a todo o momento como

uma estrutura rigorosamente engessada, um universo paralelo, uma sociedade que

coexiste com a sociedade “dominante”.

3.3. O HABEAS CORPUS DE DEMÉTRIO SANTOS E SEUS ASSISTENTES:

ANTAGONISMOS PRÁTICOS E HISTÓRICOS DO PROCESSO DE

MODERNIZAÇÃO DE SÃO LUÍS.

Como foi possível observar no tópico anterior existiu uma interferência

judiciária durante todo o período de desenvolvimento do curandeirismo em terras

brasileiras. No Maranhão a lógica se manteve, pois, na década de 1940, ocorreu a prisão

de um famoso pai-de-santo em São Luís.

No dia 30 de abril de 1940, o pajé Demétrio Santos e três assistentes, José

Santos, Raymundo Buna e Simão Rodrigues foram surpreendidos por uma Guarnição

Policial, chefiada pelo Comissário de polícia Benedito Valeriano Ribeiro no interior da

ilha. Apreendidos em flagrante exercício ilegal da medicina, afirma a guarnição policial,

os artigos de jornais da época126

e o Chefe de Polícia do Maranhão Flávio Bezerra, o

curandeiro e seus assistentes foram conduzidos para a Penitenciária Estadual sem um

julgamento prévio.

No mesmo dia é feito um pedido de soltura, impetrado pelo advogado das

vitimas Drº. Soares de Quadros ao Tribunal de Apelação do Estado do Maranhão,

presidido pelo Desembargador Raymundo Publio Bandeira de Melo. Analisado o

pedido de habeas corpus, é emitido um ofício ao Chefe de Polícia exigindo maiores e

melhores esclarecimentos sobre o ocorrido alegando de imediato a ilegalidade da prisão.

Em seguida, o supracitado Chefe de Polícia faz uma apelação com registro formal para

que seja repensada a ordem de habeas corpus.

Repensado e julgado os documentos, os acusados de curandeirismo são postos

em liberdade após a expedição de um alvará de soltura. Depois de concluídos os

126

A análise dos artigos de jornais onde estão contidas as informações referentes a essa documentação

está no segundo capítulo, tópico 2.2.

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pareceres, tanto do Presidente do Tribunal de Apelação, quanto, do Chefe de polícia do

Estado, é feito um pedido pelo primeiro, para que o caso seja transformado em

diligência policial e nada a mais.

A nossa intensão é analisar essa documentação com o intuito de se perceber,

dentro do jogo de poderes judiciários, como são representados os agentes do

curandeirismo, sejam eles, curandeiros, pacientes, ou, simplesmente, adeptos dessa rede

de costumes, práticas e ritos mágico-religiosos.

A documentação é composta por cinco registros expedidos por repartições

públicas ligadas diretamente ao poder judiciário do Estado do Maranhão da década de

1940. Dentre as repartições estão a Chefatura de Polícia e o Tribunal de Apelação. O

primeiro documento a ser analisado é a ordem de Habeas corpus concedida pelo

presidente do Tribunal de Apelação do Estado do Maranhão Raymundo Publio Bandeira

de Mello referente ao pedido de soltura impetrado pelo advogado Dr. Soares de

quadros, o segundo é o Ofício 102 expedido, também, pelo Tribunal de Apelação, o

terceiro é a Resposta do Chefe de Polícia do Estado referente ao ofício 102, o quarto é a

Ordem de soltura expedida pelo Tribunal de Apelação, o quinto e último documento, os

Conclusos, se encontra dividido em duas partes que os chamaremos de Conclusos um, e

Conclusos dois, também, emitido pelo Tribunal de Apelação.

No primeiro documento Habeas corpus, datado de 30 de Abril de 1940,

intitulado de COLENDO TRIBUNAL DE APPELAÇÃO, o desembargador Raymundo

Publio Bandeira de Mello, Presidente do Tribunal de Apelação do Estado do Maranhão,

julga um pedido de soltura feito pelo Advogado Drº. Soares de Quadros em benefício

dos presos de justiça Demétrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão

Rodrigues, e em seguida concede parecer positivo para que sejam libertados do cárcere.

A justificativa de Raymundo Publio se baseia no fato de que os presos não

haviam praticado crime algum, uma vez que os mesmos estavam apenas em meio a uma

diversão de negro e de pobre, possivelmente, o tambor de crioula, já que esta

brincadeira não foi mencionada no presente documento, sem ofender a ordem pública,

estando as casa abertas e iluminadas, os presentes não estavam portando armas e,

estavam brincando com o máximo de respeito possível.

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O desembargador segue a sua justificativa frisando o sensacionalismo da

imprensa de São Luís, onde os articulistas afirmam que os detidos estavam numa

reunião às portas fechadas, apontando para o fato, desta, ser uma prática criminosa, por

se tratar de um exercício profissional ilegal. Ele segue ainda informando, contrariando

os periódicos da época, que a reunião íntima e divertida não apresentava propósito

criminoso, pelo contrário, se tratava, na verdade, de uma reunião particular, ou melhor,

era apenas a realidade da população humilde da capital maranhense, que não tendo

outro modo para interagir socialmente com o seu meio, brincavam com o que havia

gratuitamente, a diversão cultural dos seus antepassados.

Ele ressalva que não havia motivos para a prisão, já que os encarcerados não

haviam sido surpreendidos em flagrante delito, como reforça a imprensa, no entanto, se

encontravam recolhidos injustamente à Penitenciária Estadual, sem que para isso,

houvesse um julgamento, configurando, assim, um ato inconstitucional. Ao mesmo

tempo em que se baseia no código criminal para inocentar os indivíduos, ele contraria

os periódicos que circulam pela cidade que afirmavam ser a referida brincadeira um ato

criminoso e de resquícios coloniais.

A prisão dos pacientes, pobres e pacatos lavradores que sem justo motivo ou

legal razão se encontram recolhidos a cellas da Penitenciária como si

criminosos fossem, ou sejam, não corresponde a qualquer dos requisitos de

legalidade exigidos no artigo 322 do Codigo do Processo Criminal, nem se

realisou por alguns dos meios prescriptos nos artigos 272 e 273 desse

Codigo. Em taes condições constitue constrangimento ilegal e o principio do

nosso Direito Politico é que “dar-se-á habeas-corpus sempre que algum

soffrer ou se achar na imminencia de soffrer violencia ou coação illegal na

sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar” (não

corrente).

Assim effectivamente dispõe a citada constituiçao, numero 16 ao artigo 122.

Requer, pois, o impetrante que o colendo Tribunal de appellação tome

conhecimento e processe o pedido recurso habeas-corpus, concedendo a

ordem em homenagem ao Direito e mercê à justiça127

.

O segundo documento, o Ofício 102, expedido pelo Tribunal de Apelação em

04 de maio de 1940 vem buscar informações sobre os motivos da prisão das vitimas,

para que seja julgado o pedido de habeas corpus.

127

MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Tribunal de apelação. Habeas

corpus. Soltura. Habeas corpus nº 393, São Luís, de 1940. Ordem de Habeas corpus. Documentos

encontrados na Coordenadoria da Biblioteca e Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão,

localizada na Rua Viveiros de castro, s/n, Alemanha, São Luís, Maranhão. São eles: Habeas corpus,

Ofício 102, Resposta do Chefe de Polícia do Estado, Ordem de soltura, Conclusos um e conclusos dois.

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Neste documento, mais uma vez, o impetrante frisa a ilegalidade da prisão e

recolhimento à Penitenciária Estadual, por ordem de Flávio Bezerra, os acusados de

prática ilegal da medicina: Demétrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão

Rodrigues.

O terceiro documento, a Resposta do Chefe de Polícia do Estado, datado de 06

de maio de 1940, trata do julgamento de Flávio Bezerra à ordem de habeas corpus

executada pela Primeira Turma do Tribunal de Apelação do Estado. Nesse documento,

o Chefe de Polícia justifica que a prisão dos acusados foi ocasionada pelo flagrante

delito de prática de pajelança e consequente exercício de curandeirismo.

A justificativa de Flávio Bezerra vem se chocar com a do próprio Raymundo

Publio de Mello, onde o desembargador, influenciado pelo pedido de soltura do

Advogado dos presos, Drº. Soares de Quadros, afirma que os detidos não foram

surpreendidos em prática ilegal, ou criminosa, e sim, em uma brincadeira cultural. Ou

seja, enquanto o presidente do Tribunal de Apelação julga o caso como uma mera

diversão dos pobres da periferia de São Luís, o Chefe de Polícia considera que se tratava

não de uma festividade, mas, de um ato criminoso tanto a pajelança quanto o

curandeirismo.

O quarto documento, a Ordem de soltura, se refere ao alvará de soltura emitido

por Raymundo Publio de Mello ao administrador da Penitenciária Estadual do

Maranhão ou responsável competente, em resposta ao pedido de habeas corpus feito

pelo advogado Drº. Soares de Quadros para que sejam postos imediatamente em

liberdade, sob o julgo da lei, os presos de justiça Demétrio Santos, José Santos,

Raymundo Buna e Simão Rodrigues.

Na primeira parte do quinto documento, os Conclusos um, Raymundo Publio

de Mello conclui o relatório documental que coloca em questão a liberdade dos

indivíduos supracitados por práticas ilegais da medicina. O desembargador converte o

julgamento em diligência policial no sentido de se obter maiores informações sobre o

caso.

Na segunda parte, os Conclusos dois, o relator Costa Fernandes, por ordem do

presidente do Tribunal de Apelação conclui que seja executada a ordem de habeas

corpus referente ao pedido de soltura feito pelo Drº. Soares de Quadros em favor dos

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presos anteriormente mencionados. As ressalvas resguardam mais uma vez que os

pacientes se achavam ilegalmente presos por vários dias, por ordem do Chefe de Polícia

do Estado, uma vez que não havia prova cabal de ato criminoso, configurando, dessa

forma, um ato inconstitucional.

A documentação deixa algumas fissuras que permitem a observação do jogo de

poderes entre o Estado e o curandeirismo, principalmente, no choque de opiniões entre

Flávio Bezerra e Raymundo Publio de Mello. Enquanto o Chefe de Polícia considera

que os envolvidos exerciam veladamente o exercício ilegal da medicina, o

desembargador considerava o fato ocorrido como uma diversão. Essas afirmativas

revelam a heterogeneidade de opiniões dentro do próprio aparelho de Estado.

Outro ponto capcioso é o fato de que Flávio Bezerra conduziu os acusados à

Penitenciária Estadual arbitrariamente, o que denota veementemente uma relação de

força entre dois ofícios da lei de grande destaque no Maranhão de meados do século

XX.

Ao analisar essa documentação, percebemos que a polícia, a imprensa e o

direito podem ser perfeitamente comparados a três forças moleculares aliadas do

Estado. No século XX, a polícia e o direito, se configuram como dois braços da lei que

entraram na vida social das pessoas no intuito de adestrá-las, pois, contrariamente do

que ocorre na contemporaneidade, na idade média, quando, tanto a polícia como o

direito, serviam mais como fiscalizadores das normas preestabelecidas pela sociedade,

cabendo ao serviço militar a contensão dos movimentos sediciosos.

A perseguição do curandeirismo praticado pelos acusados é consequência

daquilo que o historiador francês Michel Foucault vem chamar de emergência, pois, a

prática terapêutica, sendo em meados do século XX uma ilegalidade, se constitui no

interior da sociedade ludovicense como algo que precisava ser contido. Logo, as forças

de plantão, a polícia, o direito e a imprensa, se manifestam neste sentido, não somente

com a intenção de contê-lo, mas, sobretudo, de adestra-lo, discipliná-lo. Dessa forma, as

ações das três forças são, “o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro” 128

.

O que podemos asseverar é que, seja de maneira legal, ou não, a iniciativa da

Chefatura de Polícia conjuntamente com a imprensa local atendia a um desejo elitista

128

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 24.

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alinhado aos preceitos do processo modernizador que se iniciou na segunda metade do

século XIX, onde os costumes afrodescendentes representavam um universo de práticas

e ritos coloniais a serem lançados no esquecimento.

A superstição em nosso meio é uma das formas mais esquisitas de

exterioridade religiosa.

Povo tradicionalmente religioso, muitos maranhenses, por atavismo ou outros

quaesquer laços que não veem ao acaso, nesta simples reportagem, para as

suas manifestações de fé, não se lhe dão de frequentar “sessões em que

macumba e participar de outras extravagantes reuniões em que indivíduos

anormaes lhe exploram a sua crendice exagerada129

.

Enquanto isso, as determinações do jurista maranhense, baseada na

constituição brasileira “asseguravam” as recreações culturais de matriz africanas, desde

que não ultrapassassem o campo do ofício da medicina legal. Neste caso, o discurso de

Raymundo Publio Bandeira de Mello coaduna com o discurso de Michel Foucault:

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que

ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia,

produz coisas, induz o prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se

considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social

muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir130

.

A apreensão de Demétrio Santos e seus assistentes, relatada nos documentados

analisados, serve para refletirmos sobre como eram representados os praticantes da

pajelança em São Luís em meados do século XX. Numa cidade em que discursivamente

se autolegitimava como adepta do progresso, reinava as contradições, ao ponto que a

Europa teve uma evolução histórica alheia à do Brasil. Aqui, as questões de raça e

cultura são tônicas recorrentes nesse processo, pois, os conflitos, as discriminações, os

preconceitos, dentre outros adjetivos, se inscrevem num panorama repletos de

antagonismos práticos e históricos.

A realidade de São Luís desde o limiar do século XX se manteve praticamente

inalterada. Imperava a pobreza da grande maioria da população conjuntamente com a

parca sociedade elitista. A urbanização caminhava a curtos passos, as ruas não possuíam

calçamento, não havia uma rede de esgoto e um fornecimento de água potável, ainda

assim, a classe abastada ludovicense, a maioria dos letrados, os profissionais em

destaque como médicos, advogados e jornalistas, e as autoridades competentes,

prosseguiam com o processo de exclusão social da população menos abastada.

129

O GLOBO. Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade. São Luís, 30/04/1940. Op.

Cit. P. 1-6. 130

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 8.

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Os conflitos generalizados e costumeiros resultantes da exclusão social

explicam o cerne das contradições sócio-políticas e culturais no que concerne à saúde

pública, sobretudo, às práticas mágico-religiosas do curandeirismo, por este fenômeno

cultural representar uma gama de concepções de vida que caminham

concomitantemente com os ideais do Estado, ou melhor, que possuem vida própria.

3.4. O INQUÉRITO CRIMINAL DE MARIA PEREIRA DE SOUSA:

EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA E A SEGUNDA NATUREZA DO

HOMEM.

No último tópico do primeiro capítulo deste trabalho (tópico 1.3) reservamos

algumas considerações à ineficiência da assistência médico-hospitalar de São Luís no

primeiro quartel do século XX. Nos artigos de jornais analisados pudemos perceber a

frequente procura pelos terreiros de pajelança e as suas curas mágico-religiosas. Caso

parecido ocorreu em São Luís na década de 1940, onde uma mulher prestou socorro à

outra em trabalho de parto.

Maria Pereira era uma trabalhadora autônoma, proprietária de uma casa de

pensão, localizada no centro da capital maranhense. No mês de maio de 1940 abrigou

em seu convívio uma meretriz gestante e sem teto, cognominada Ozita Santos. Passado

algum tempo a respectiva inquilina de Maria Pereira sofreu um acidente doméstico.

Dois dias após o acidente Ozita Santos entrou em trabalho de parto e Maria Pereira

prestou-lhe prontamente os primeiros socorros realizando o seu parto com auxílio de

duas assistentes, Balbina Santos e Filomena Silva.

O recém-nascido nasceu com sérios problemas de saúde e veio a falecer no dia

seguinte. Essa consequência chamou a atenção das autoridades que instaurou um

inquérito criminal para ser solucionado o caso, onde foi ouvida a acusada por prática

ilegal da medicina Maria Pereira de Sousa, a suposta vítima e as assistentes.

Neste tópico analisaremos uma documentação policial referente a essa

ocorrência com a finalidade de reforçar o que foi proposto no tópico 1.3 do primeiro

capítulo, onde está evidente a proibição de práticas milenares de assistência médica

diante de um ineficiente quadro médico-hospitalar de uma cidade que se autolegitimava

adepta do progresso ocidental.

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Os documentos são compreendidos em número de seis, expedidos pela

Chefatura de Polícia do Maranhão, onde são relatados, através de interrogatórios os

procedimentos utilizados por Maria Pereira de Sousa ao partejar Ozita Santos, e são eles

a Portaria, o Termo de Declarações um, o Termo de Declarações dois, o Termo de

Declarações três, o Termo de declarações quatro e o Relatório.

O primeiro documento, a Portaria, datado de 11 de junho de 1940, O Chefe de

Polícia Flávio Bezerra autua a mulher Maria Pereira de Sousa por partejar Ozita Santos.

No dia seguinte ao parto o recém-nascido veio a óbito, provavelmente, essa ocorrência,

chamou a atenção das autoridades.

A principal justificativa de Flávio Bezerra é que a referida parteira não era

licenciada a exercer a medicina, configurando, dessa forma, uma prática criminosa aos

olhos das autoridades competentes. Após a autuação, o Chefe de Polícia determina que

seja instaurado um inquérito criminal para que se possa saber as reais causas e

consequências do ato da parteira.

No segundo documento, que inicia o inquérito criminal, o Termo de

Declarações um, datado de 12 de junho de 1940, a depoente e acusada de prática ilegal

da medicina Maria Pereira de Sousa, doméstica, de trinta e nove anos de idade, natural

da cidade de Jerumenha, no Estado do Piauí, residente na Rua 28 de Julho, nº 483, em

São Luís, depõe perante o Chefe de polícia Flávio Bezerra. Ela afirma saber ler e

escrever e que em determinado dia do mês de maio, esteve em sua casa uma mulher de

codinome Ozita Santos pedindo-lhe abrigo. Ao ver o estado de gestação da futura

inquilina, a depoente estendeu-lhe a mão de imediato, sem que para isso tenha lhe

cobrado quantia alguma, nem mesmo a alimentação, pois a comida vinha da casa de

alguns parentes da gestante que moravam na Rua da Estrela, também, no centro da

cidade.

Segundo a acusada, Ozita Santos teria dito que foi dispensada da pensão de

meretrizes de Plautilha Castro, localizada nesta mesma cidade, porque, estando grávida,

não atendia aos interesses do estabelecimento.

Maria Pereira de Sousa cedeu um quarto sem cama, mas, com uma rede, pois, a

inquilina não estava exercendo a profissão de meretriz. Dessa forma, no dia sete de

junho, Ozita Santos ao se embalar na rede sofreu uma queda provocada pelo

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rompimento de uma das cordas de sustentação. Ela teria caído batendo com as nádegas

no chão, mas, a acusada só ficou sabendo do ocorrido na noite do dia seguinte porque

encontrou a grávida com fortes contrações uterinas, mas, não se preocupou, pois a

gestante ainda não estaria em tempo de ser partejada.

Dois dias após a queda a depoente achava-se em seu quarto, quando

repentinamente os gritos de dores de Ozita Santos chamaram a sua atenção. Ela se

prestou prontamente a socorrê-la e, chegando ao quarto da grávida a encontrou aos

prantos, vomitando bastante, logo, desarmou a rede, fez uma rodilha com a mesma, pôs

ao chão e colocou a parturiente em posição de partejamento. Em seguida, assistida por

outra inquilina e, ajudante de cozinha chamada Balbina, partejou-a. Ozita Santos deu à

luz a um recém-nascido do sexo masculino, que veio ao mundo com um tom de pele

arroxeado e visivelmente arquejante.

Ao ser questionada pelo interrogador a acusada alegou que foi a única

intervenção médica que teria feito na sua inquilina. Porquanto, ela já teria feito mais de

vinte intervenções como essas em sua terra natal, pois, essa prática lhe teria sido

transmitida pela sua mãe, uma parteira experiente, e nas ocasiões que viajava para a sua

terra natal fazia partos naquele lugar. Em São Luís, residente há dezesseis anos,

declarou, foi a primeira vez que havia partejado, pois, não levou a parturiente ao pronto

socorro alegando que o mesmo não a atenderia, pelo menos, em tempo hábil.

Em sua justificativa final, Maria Pereira de Sousa se justificou afirmando que

além de não haver um local preciso que pudesse ter levado Ozita Santos para dar à luz

ao seu filho, o seu gesto foi de pura humanidade, pois, a sua inquilina além de não

dispor de meios cabíveis, foi atirada na rua por Plautilha Castro ao notá-la sem serventia

alguma.

[...] que deixou de chamar medico de Serviço do Prompto Socorro, em

virtude deles não atenderem; que o seu acto foi todo de humanidade, pois

tinha Ozita em sua residência em virtude dela não ter onde morar, e ainda ter

sido jogada na rua da casa de Plautilha Castro, residente à rua 28 de julho131

.

131

MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Chefatura de Policia. 1º Delegacia

Auxiliar. Inquérito Policial. São Luís, 1940. Documentos encontrados na Coordenadoria da Biblioteca e

Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, localizada na Rua Viveiros de castro, s/n,

Alemanha, São Luís, Maranhão. São eles: a Portaria, o Termo de Declarações um, o Termo de

Declarações dois, o Termo de declarações três, o Termo de Declarações quatro e, o Relatório.

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O terceiro documento, o Termo de Declarações dois, datado de 25 de junho de

1940 é referente ao depoimento de Ozita Santos, maranhense, de dezoito anos de idade,

casada, meretriz, não-alfabetizada, residente na Rua 28 de Julho, nº 483, em São Luís,

Estado do Maranhão. Ela presta declarações ao Chefe de polícia Flávio Bezerra sobre a

acusada de prática ilegal da medicina Maria Pereira de Sousa. Em seu depoimento, ela

tornou verdadeiro o depoimento da acusada, afirmando que a mesma a socorreu em

momento difícil por caridade e humanidade, e finalizou alegando que não foi levada a

um hospital por falta de recursos financeiros e por não estar matriculada naquele serviço

médico.

O quarto documento, o Termo de Declarações três, datado de 25 de junho de

1940, relata o depoimento de Filomena Silva, de vinte e cinco anos de idade,

maranhense, solteira, meretriz, residente na Rua 28 de Julho, nº 483, nesta cidade, não-

alfabetizada. Segundo o escrivão, a depoente esteve diante do Chefe de Polícia Flávio

Bezerra e afirmou que no dia nove de junho se encontrava em um quarto da pensão de

Maria Pereira de Sousa quando foi surpreendida pelo chamado da mesma, que se

encontrava no quarto de Ozita Santos. Chegando ao destino encontrou a parturiente

gemendo de dores e vomitando. Em seguida, a acusada lhe teria pedido para que

desarmasse a rede no sentido de fazer uma espécie de forro para que a gestante pudesse

dar à luz.

Em ato contínuo, resguarda a depoente, Maria Pereira de Sousa chamou outra

inquilina, Balbina dos Santos, que a ajudou a fazer o parto. Ela presenciou o momento

do nascimento de uma criança do sexo masculino, porém, logo em seguida, retirou-se

do quarto e não teve a oportunidade de ver quando a acusada cortou o umbigo da

criança. Ao retornar ao quarto, observou que o recém-nascido estava arroxeado,

bastante agitado, arquejante e não chorava, estando ele em um berço vindo da casa da

irmã de Ozita Santos.

No dia seguinte, a criança veio a falecer e, assegurou que Maria Pereira de

Sousa havia feito tudo aquilo em benefício da humanidade, sem visar interesse próprio.

O quinto documento, o Termo de Declarações quatro, datado de 25 de junho

de 1940, discorre sobre o depoimento de Balbina dos Santos, de trinta e oito anos de

idade, maranhense, solteira, cozinheira, residente na Rua 28 de julho, nº 483, São Luís,

Maranhão, não alfabetizada. Ao prestar esclarecimentos, ela reproduz de forma

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fidedigna ao Chefe de Polícia Flávio bezerra o que já havia sido declarado por Maria

Pereira de Sousa, Ozita Santos e Filomena Silva.

Ela acrescenta ainda que em alguns momentos, até a alimentação da gestante

ficou por conta da acusada Maria Pereira de Sousa e que a ajudou a fazer o parto, mas,

como tinha muito serviço à sua espera na cozinha da pensão, retirou-se logo em seguida.

Ao voltar momentos depois ainda encontrou a criança viva, no entanto, ela estava

arquejante, arroxeada e não chorava.

No sexto e último documento, o Relatório, datado de 06 de julho de 1940, é

relatado o passo a passo do caso ocorrido em São Luís onde a parteira Maria Pereira de

Sousa partejou sem autorização legal a Mulher cognominada Ozita Santos, resultando

na morte do seu recém-nascido.

Ao ser interrogada pelo Chefe de Polícia do Estado do Maranhão Flávio

Bezerra, a parturiente declarou que em indeterminado dia do mês de maio foi despedida

da pensão de Plautilha Castro, localizada em São Luís, em virtude de não mais poder

pagar. Por se encontrar em estado de gestação, procurou a pensão da acusada Maria

Pereira de Sousa para pedir-lhe abrigo, o que lhe ocorreu de imediato ao relatar o que

lhe havia acontecido. A parteira lhe teria estendido de imediato a mão oferecendo-lhe

abrigo e alimentação gratuitamente. No entanto, no dia 07 de junho de 1940, ela estava

deitada em uma rede quando repentinamente uma das cordas que a firmava se partiu

ocasionando a sua queda.

Ela assegurou que no início, nada sentiu, até que na manhã do dia 09 de junho

do mesmo ano, dois dias após a queda, começou a sentir fortes contrações uterinas, e

que essas dores teriam aumentado a partir das quinze horas, ocasionando vômitos.

Nesse momento a parturiente teria chamado por Maria Pereira de Sousa, que assistida

por uma inquilina chamada Balbina lhe socorreu imediatamente. Em ato continuo, após

o desarmamento da rede, fez uma rodilha com a mesma, Ozita Santos entrou em

trabalho de parto, dando à luz a uma criança do sexo masculino que com um tom de

pele arroxeado e arquejando, teria vindo a óbito no dia seguinte.

Flávio Bezerra ouviu as testemunhas que constataram serem verdades as

declarações da acusada, e ainda confirmaram a amizade entre a parteira e a parturiente.

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Após o depoimento de Ozita Santos, o Chefe de Polícia interrogou a acusada.

Numa tentativa de autodefesa e legitimação da sua profissão de parteira, Maria Pereira

de Sousa asseverou que em sua terra natal já havia feito mais de vinte partos, e que

aprendeu esse ofício com a sua mãe que lhe ensinou a maneira exata de aparar a criança.

Afirmando tudo que antes foi relatado por Ozita Santos, a parteira relatou ainda

o motivo pelo qual não levou a parturiente ao pronto-socorro. Ou seja, Se a tivesse

levado ao hospital, não seria atendida, por isso, o seu socorro se definia como um ato de

humanidade, logo, Ozita Santos não tinha uma moradia condizente com o seu estado de

gravidez, e ainda a tinha como uma amiga.

Algo a ser observado é que as declarações de Maria Pereira e Balbina dos

Santos não fizeram menção à participação de Filomena Silva no Parto de Ozita Santos.

De alguma forma, esse problema torna as conclusões sobre essa documentação um tanto

obscura.

A análise da documentação mais uma vez abre o leque de informações a

respeito da saúde em São Luís. Como foi supracitada no início desse tópico, na década

de 1940, a assistência médico-hospitalar ludovicense caminhava paulatinamente como

no início do século XX. Agora, determinar que esse fator fosse consequência

unicamente da falta de hospitais é mutilar a gama de possibilidades de compreensão dos

fatos.

Pretensões à parte, geralmente as parteiras do Maranhão e, especificamente, em

São Luís, estão ligadas à pajelança. Neste caso, onde, Maria Pereira de Sousa é acusada

de exercício ilegal da medicina, não é feita qualquer referência às práticas mágico-

religiosas do curandeirismo. No entanto, a documentação é imensuravelmente objetiva

ao se tratar de procedimentos médicos que deveriam se prestados pelo serviço público

de saúde, mas, aí é que mora o problema. Como fornecer um serviço público a uma

classe social, já que os serviços médico-hospitalares eram insuficientes á população em

geral?

A acusada responde em alto e bom tom que não procurou um pronto socorro

porque não atenderiam Ozita Santos. Mais que isso, a própria parturiente relata que não

seria atendida por não estar matriculada naquele serviço médico, provavelmente, devido

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às suas condições financeiras, logo, tais condições refletiam diretamente nas

impossibilidades em geral da população ludovicense menos abastada.

Outro fator a ser considerado é que, ainda que pudessem ir ao pronto socorro,

as pessoas em questão, dentre outras, muitas vezes preferiam ser atendidas em casas de

conhecidos ou em sua própria casa por se tratar de um ambiente familiar. Além disso,

“essa busca estava relacionada na crença da cura.” 132

.

No final do século XIX era muito comum que as pessoas procurassem os

cuidados das parteiras devido à confiança depositada nelas e aos seus cuidados médicos,

logo, a medicina e a farmacopeia brasileira ainda caminhavam lentamente. No

Regulamento Sanitário de 1894 era proibido às parteiras “realizarem algum tipo de

tratamento fora de sua competência” 133

.

Na década de 1940, a realidade no que tange a assistência médico-hospitalar se

mantinha praticamente inalterada, pois, cabia à justiça deflagrar o seu processo de

contenção da sedição social proveniente desse quadro. Neste caso, não somente às

resistências aleatórias ao paradigma estatal, mas, também, às ramificações culturais de

matriz africana. Dessa forma, uma das conclusões gerais observadas ao lermos a

documentação, é de que o inquérito criminal instaurado pela Chefatura de Polícia tinha

como obrigação moral recolher à prisão Maria Pereira de Sousa, pois, a parteira servia

como espelho para que outras pessoas praticassem a ilegalidade.

Ao discorrer sobre a prisão, Michel Foucault, afirma que ela consiste na função

de exercer sobre o indivíduo uma coerção moral, mas, que para isso, a pessoa não se

sinta obrigada a aceitar as suas decisões. É como algo que penetra no íntimo pessoal

sem agredi-lo moralmente, fazendo com que esse poder seja absorvido como algo

inerentemente.

O que é fascinaste nas prisões é que nelas o poder não se esconde, não se

mascara cinicamente, se mostra como tirania levada aos mais ínfimos

detalhes, e, ao mesmo tempo, é puro, é inteiramente “justificado”, visto que

pode inteiramente se formular no interior de uma moral que serve de adorno

a seu exercício: sua tirania brutal aparece então como dominação serena do

Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem134

.

132

SACRAMENTO, Adriana de Jesus. Feitiçaria e curandeirismo nos processos crimes- Caetité/BA-

1920 e 1939. Op. Cit. P. 2. 133

BAIMA, Carlúcio de Brito. “Toda cura para todo mal”: discurso médico e práticas curativas no

tratamento de doenças e na conservação higiênica de São Luís (1880-1905). Op. Cit. P. 60. 134

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Op. Cit. P. 73.

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De qualquer forma, seja pela ineficiência médico-hospitalar, ou, pela fé no

curandeirismo, o que se pode perceber é que as inovações moderno-científicas,

ancoradas em terras brasileiras ainda sofriam resistências devido à carga cultural da

maioria da população. A força autoritária do Estado que “impõe” resistências aos ritos

costumeiros da população é a mesma que os legitima, ao menos, imparcialmente. Assim

como a existência humana se constitui como a primeira vida, em Thompson, “O

costume era a segunda natureza do homem” 135

e, a primeira natureza do curandeirismo.

135

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional

Op. Cit. P. 14.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o vislumbre pelo universo mágico-religioso da cura era necessário

investigar detidamente esse fenômeno no sentido de se estabelecer as devidas

conjecturas. Nesse sentido, foi de real necessidade delimitar um espaço e um tempo,

pois, os conflitos referentes a essa abordagem sofrem influências de ordem

sóciocultural.

A principal problemática se conteve em apontar alguns antagonismos da

formação histórico-social de São Luís, elencar algumas contradições no processo de

coerção dos “atos abomináveis”, evidenciar a existência de uma relação de força entre a

medicina oficial e o curandeirismo, e apregoar algumas influências do fenômeno

religioso e dos costumes na cristalização desse universo de representações.

Lançados os devidos fundamentos, a nossa intenção foi proporcionar

veementemente a percepção da existência de um mundo alinhado e, ao mesmo tempo,

independente do proposto pelo Estado. De forma alguma pretendemos nos desfazer do

paradigma governamental, no entanto, foi de real importância indicar algumas

evidências da ação dos mecanismos de coerção étnico-cultural, logo, foi percebido que

esses braços do governo estavam prontamente afiados para subsidiar o desenvolvimento

de uma sociedade aos moldes das nações europeias.

Sem dúvida alguma, cada característica anteriormente mencionada poderia

satisfazer as necessidades básicas desse trabalho. No entanto, o nosso intento é de

proporcionar uma gama de possibilidades de informações e entendimentos que possam

ser desenvolvidas cuidadosamente em trabalhos futuros. Pois, as relações de poder, o

fenômeno religioso, e os ritos costumeiros são grandezas que podem ser discutidas

numa esfera mais abrangente, cada uma.

No maranhão, sobretudo, em São Luís, na primeira metade do século XX, a

população ainda procurava os terreiros de cura com muita frequência. Parece-nos que o

processo de modernização não alcançou o alvo colimado, principalmente, o que

concerne aos procedimentos médicos-científicos. O que se via ainda eram antagonismos

práticos e teóricos na política e na sociedade, pois, ao mesmo tempo em que se tentava

exterminar os terreiros, permitiam, também, a sua multiplicação.

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Essa desproporcionalidade se deveu grandiosamente a vários fatores, dentre

eles, à permissividade corriqueira do exercício da medicina, até então, ilegal, a

determinados extratos sociais privilegiados como algumas autoridades policiais,

judiciárias, e abastados, ao afastamento da gente de santo para as periferias ou interiores

da Ilha do Maranhão, à crença na cura, e finalmente, mas, não o mais importante, à

carência de recursos médico-hospitalares.

O Estado tentou exercer de várias formas a sua autoridade diante do

curandeirismo praticado por grande parte da população. Pois, foram nessas relações que

ele pretendeu uma queda de braço no sentido de dominar as práticas ancestrais da gente

mestiça, e utilizou alguns mecanismos que, na lógica de Foucault, podemos chamar de

micropoderes.

A imprensa lançou mãos aos ataques contra os pais-de-santo e à gente pobre

que utilizava a terapêutica afrodescendente. Foram várias manifestações de preconceito

e discriminação que visava à coerção dos “atos abomináveis”. Os articulistas, moldados

numa lógica eurocêntrica, vinham em apoio à classe dominante e abastada da cidade e

reagiam, nem sempre, uniformemente, mas, paradoxalmente, contra as manifestações

religioso-culturais de matriz africana, alegando, serem estas, resquícios de um passado a

ser esquecido.

O processo-crime de Amélia Rosa, discutido por Mundicarmo Ferreti, é um

excelente exemplo para se pensar como eram tratadas as manifestações supracitadas, no

século XIX. Ela assegura que, em menor intensidade, houve inicialmente uma tentativa

de punir Amélia Rosa e as suas assistentes por maus tratos à escrava Joana. O que se

pretendia era conter e punir os atos “torpes” da curandeira, pois, numa sociedade como

a de São Luís de final de século XIX, tais manifestações se tornavam antagônicas ao

processo modernizador instaurado a partir da segunda metade desse século.

Cabia à força policial levar ao cárcere as pessoas que corrompiam essa

realidade, mas, o que se via era a inserção de agentes policiais nas rodas de “macumba”

disseminada por São Luís. Alguns oficiais, assim, como, parte da elite ludovicense,

compartilhavam do mesmo universo da encantaria afro-indígena maranhense. Essa

situação se inscreve perfeitamente na primeira metade do século XX, onde boa parte da

população ainda recorria frequentemente aos trabalhos dos pajés.

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Grande parte das literaturas evidencia a carência de assistência médico-

hospitalar em São Luís como uma das principais causas da grande procura pelos

terreiros de cura. Isso nos parece verdade, mas, não unicamente a verdade, pois, a

crença na fé se apresenta, também, como um dos grandes obstáculos aos intentos do

Estado.

A pajelança estava associada visceralmente ao curandeirismo, pois, para

muitos literatos e, para a população irradiada no difuso universo mágico-religioso de

São Luís, pajelança afro-indígena e cura eram sinônimas. E longe de evidenciar as

liturgias dessa dualidade, a nossa intenção foi relacioná-la ao engessamento de um

universo paralelo agregado e, ao mesmo tempo, independente do Estado.

Christiane Motta desenvolve perfeitamente essa ideia ao enfatizar que na

Baixada maranhense, especificamente, na cidade de Bequimão, a população se apropria

dessa prática com o intuito de representar a dualidade saúde-doença. Em suas linhas

gerais, tanto a saúde, quanto, a doença para essas pessoas são resultantes do

rompimento de normas inscritas no mundo material e no universo sobrenatural.

Algumas doenças seriam causadas por desrespeito a algumas praticas que deveriam ser

levadas a sério com o mundo encantado, no entanto, outras doenças eram causadas pela

influência biológica. Algumas vezes elas estavam inscritas na amálgama das duas

denominações, da material e da sobrenatural.

Na tentativa de dar um tom mais enérgico a essa discussão, António Evaldo

Almeida Barros destaca que a associação da cura tradicional à pajelança não está ligada

inteiramente à resistência da gente pobre e mestiça do maranhão. Segundo ele, resumir a

pajelança à simples resistência seria mutilar uma extensão de possibilidades de

entendimento.

Além da crença na cura, as perseguições não são encontradas nas mesmas

proporções em todo o Estado. Haveria uma dinâmica que pretendia extirpar da

sociedade essa prática religiosa, e a força da repressão se acentuava nas cercanias da

capital e se amenizava em direção ao interior. E mais, esse processo se localizava com

maior ou menor intensidade em determinadas frações temporais.

Muitas vezes, as batidas policiais eram assessoradas por agentes que em graus

diferenciados pretendiam exterminar os terreiros de pajelança. De acordo com o autor, a

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necessidade de coagir os pais-de-santo era mais uma medida em resposta às

reinvindicações das classes dominantes que não queriam se avizinhar com os barracões

de cura.

As manifestações de intolerância religiosa, também são percebidas num embate

entre a polícia e o poder judiciário. Ao analisarmos o pedido à ordem de habeas corpus

de Demétrio Santos, José santos, Raimundo Buna e Simão Rodrigues, acusados de

exercício ilegal da medicina, pudemos notar o grau de intolerância da polícia

ludovicense ás práticas de pobre. O Chefe de Polícia do Maranhão Flávio Bezerra

atesta que surpreendeu os acusados exercendo a medicina ilegal, logo, não estavam

licenciados para tal ofício.

Ainda que os acusados implorassem que não estivessem praticando o ato

“torpe” foram recolhidos arbitrariamente, sem um prévio julgamento às dependências

da Penitenciária do Estado. Vindo à contramão, o presidente do Tribunal de Apelação

do Estado Raimundo Publio Bandeira de Mello, ao examinar o pedido de habeas corpus

impetrado pelo advogado dos acusados, alegou que eles não foram surpreendidos em

exercício ilegal algum, pois, ambos, juntamente com outras dezenas de pessoas,

estavam em ato de diversão, expressando a sua religiosidade em meio à gente pobre da

periferia da cidade.

Em ato contínuo, foi possível apreender no inquérito criminal contra a parteira

Maria Pereira de Sousa, consequências semelhantes às dos acusados acima. Na tentativa

de salvar a vida de Ozita santos, Maria pereira foi acusada, também, de exercício ilegal

da medicina. Seu ato foi interpretado por Flávio Bezerra como uma infração aos artigos

156, 157 e 158 do Código Penal republicano que proibia o exercício ilegal de qualquer

profissão.

Ainda que pudessem pagar por atendimento médico-hospitalar, as classes

privilegiadas optavam pelo atendimento médico a domicílio. Eles não desejavam

abandonar os confortos proporcionados pelo ambiente familiar.

As práticas e costumes dos curandeiros e da gente pobre de São Luís, não

atendiam unicamente ao propósito da resistência social, pois, estavam inscritos num

universo ritualístico ancestral que caminhava concomitantemente com o paradigma

social vigente. O ato de fazer oferendas aos santos e caboclos, de participar dos festejos,

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de cumprir com as obrigações religiosas, de entoar cânticos, de fazer e receber os

benzimentos, de fazer porções como as garrafadas e os banhos, de ir frequentemente ao

terreiro de cura em busca de soluções medicinais, de pedir proteção aos encantados,

dentre outros costumes satisfaz a percepção do grandioso universo de representações

inerentes ao curandeirismo ou pajelança.

Foram nos terreiros de “macumba” que pessoas de variados níveis sociais, de

variadas cores e etnias conseguiram ver as coisas sagradas e profanas por um mesmo

ângulo. Eram nesses locais que se sentiam membros de uma mesma família, de uma

mesma roda social, onde compartilhavam de interesses mútuos.

Para se orientarem em um período de rápida mudança social, muitas pessoas

sentem a necessidade crescente de encontrar suas raízes e de renovar os laços

com o passado, em especial o passado de sua comunidade – a família, a

pequena cidade ou aldeia, a profissão, o grupo étnico ou religioso136

.

Por ser uma terra imensuravelmente mestiçada, onde, se insere uma gama de

práticas e costumes herdados dos africanos e ameríndios, seria pertinente se pensar o

quão era difícil estabelecer normas baseadas no modelo de Estado europeu. A imprensa,

a polícia, dentre outros mecanismos de coerção, se tornam exemplos práticos desse

desnivelamento político-social.

136

BURKE, Peter. História e teoria social. Op. Cit. P. 38.

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FONTES E REFERÊNCIAS

FONTES

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______. Pajelança. São Luís, 07/07/1915.

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Luís, 30/04/1940.

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30/07/1941.

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Luís, 9/06/1947.

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______. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Chefatura de Policia. 1º

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ANEXOS

Artigos do jornal A Pacotilha transcritos

A Pacotilha. São Luís, 03/07/1915.

Pajelança

Disseram-nos que na quinta do Srº Manoel Castro, à rua da boiada, reúnem-se todas as

noites indivíduos, que tomam parte numa meza de pajelança, sob a prezidência do pajé

José de tal, vulgo José pé de bola.

A frequência é sempre enorme, devido à fama desse pajé que é tido em conta de bom

médico, tais as curas que tem praticado.

Pedimos a atenção da autoridade policial para o caso, afim de serem tomadas as

providencias devidas.

A Pacotilha. São Luís, 05/07/1915.

Pajelança.

Parece que os pajés estão em plena atividade.

Noticiamos, no sábado, a existência de um ao caminho da Boiada.

Disseram-nos agora que na caza nº 23, da rua de S. Pantaleão, ha também qualquer

panacéa idêntica.

Durante o dia os vizinhos são incomodados. Queimam-se chifres, breu, enxofre, penas

de aves, etc.

E’ um horror!

Pedimos a atenção da policia.

A Pacotilha. São Luís, 07/07/1915.

Pajelança.

Informaram-nos que por traz do hospital militar moram dois indivíduos de cor preta, de

nomes Porfírio e Angelo, que vivem a engodar os ingenuos, praticando feitiçarias.

Os seus dias de consultas são os sábados, à noite, e os domingos, de manhã e à noite.

Durante as funções, têm a palavra a fumarada e o maracá.

Porfírio que é o mais velho e, por isso mesmo, pai do terreiro, vira santo do fundo: o

são verequete, e Angelo, carrega são João.

Hontem, à noite, efetuou-se uma meza de pajelança à rua 18 de Novembro, na caza que

fica quase em frente ao sitio onde foi a escola dos educandos artífices do Estado, e na

qual mora Roza Guarda-mór.

Essa sessão foi bastante concorrida.

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Artigos de jornais O Globo transcritos

O GLOBO. São Luís, 30/04/1940. P. 1-6.

Tire o pajé da roda: Preso o macumbeiro n° 1 da cidade.

A superstição em nosso meio é uma das formas mais esquisitas de exterioridade

religiosa.

Povo tradicionalmente religioso, muitos maranhenses, por atavismo ou outros quaesquer

laços que não veem ao acaso, nesta simples reportagem, para as suas manifestações de

fé, não se lhe dão de frequentar “sessões em que macumba e participar de outras

extravagantes reuniões em que indivíduos anormaes lhe exploram a sua crendice

exagerada.

Denuncia

Sabaddo, a tarde, o dr. Flávio Bezerra, chefe de Policia do Estado, recebeu uma

denuncia de que nas mattas do “Olho d’Agua” no logar Angelino, se realizavam, ,

frequentemente, “sessões” de pajelança.

O denunciante acrescentava que as “sessões” eram concorridíssimas e frequentadas por

muita “gente boa” da cidade...

A acção da Polícia

Sempre zeloso e cumpridor dos seus deveres, o dr. Flávio Bezerra, que vem, de há

muito, combatendo eficazmente os macumbeiros que infestam a cidade, organizou uma

diligencia composta por quatro investigadores e que partiu às 23 horas para o “Olho

d’Agua”, chefiada pelo commissário Benedicto Valeriano Ribeiro.

E a diligencia foi coroada de exito absoluto.

Sempre activa

Sempre activa e observadora, a nossa reportagem pode descrever, com todas as

minucias o que então se passou.

Sessão formada

A’ meia noite em ponto o “sessão estava formada.

A’ meia noite em ponto a “ses- de silêncio. Aguardava-se a chegada de Demetrio

Santos, o pagé.

Ele chegou. Veste uma blusa de gorgorão verde, casquette da mesma fazenda, um

cordão branco e encarnado sobre os ombros e tem um maracá nas mãos, cujos

“balangandans” se encontram na Policia.

Acompanham-no acolytos: José Santos, Raimundo Bona e Simão Rodrigues.

O macumbeiro olha para o alto. Bate com o pé esquerdo no chão, invocando o Ogun. E,

de subido agita o maracá, num gesto frenetico.

“Curando”

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Cambaleando, contorcendo-se o pagé aproxima-se do logar onde o pedreiro Ludgero

Leite se encontra deitado.

Ludgero é o doente.

Vai ser “curado”

Tudo estragado

Demetrio chegou junto ao doente, sempre agitando o maracá. Braços e corpo

movimentando-se num rythmo verdadeiramente bárbaro.

E... quando estava “benzendo” o “cliente” batendo-lhe com o maracá na cabeça, a

polícia veio estragar tudo!

A diligencia organizada pelo dr. Flávio Bezerra tinha chegado.

Houve correrias e atropellos. E o pagé, com os seus acolytos e o doente, foram presos

em flagrante!

Cem espectadores

Cerca de cem pessoas assistiam à “sessão”. E entre ellas, “gente boa”, algumas de

responsabilidade, cujos nomes temos anotados, e que segundo nos disseram, são

“habituées” dessas reuniões... apezar delas se realizarem dentro do matto, a quinhentos

metros de distancia da estrada.

Na Policia

Ontem, pela manhã, o dr. Flávio Bezerra mandou vir o macumbeiro à sua presença. E

interrogou-o:

- Seu nome?

- Demetrio Santos.

- Profissão?

- Lavrador.

- Só?

- E “curador” também...

- E que é que você cura?

Demetrio Santos toma uns ares importantes:

- Eu curo “moléstias naturaes”

O dr. Flávio sorri:

- Pois eu quero que você me “cure” de uma grave moléstia que eu tenho...

E o pagé, rápido:

- A de não gostar de pagelança...

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- Qual é, doutor?

- Pois se é assim, pode ficar certo de que vou curá-lo, doutor...

- sim; porém, antes, você vai ser identificado e aguardará processo, no xadrez

respondeu-lhe o Chefe de Polícia.

E lá se foi o macumbeiro recolido às “grades” de onde tão cedo Ogun não o livrará...

“Os medicos não valem nada”

O Chefe de Polícia manda buscar Ludgero Leite. E pergunta-lhe:

- E você, o que estava fazendo?

- Eu estava sendo “curado”.

- De que molestia?

- Rheumathismo. Há muito tempo que ando sofrendo. Procurei varios médicos aqui na

cidade. Qual, doutor! Os medicos não valem nada! não “deram volta” com a minha

doença! E agora, com “mestre” Demetrio é que já estou quase bom...

“Solte o pagé!”

O chefe de Polícia, está deveras escandalizado.

Pode-se afirmar que uma verdadeira multidão de pessôas de destaque em nosso meio,

compareceu à Chefatura, desde domingo, a pedir, a rogar que o pagé Demetrio Santos

seja solto.

Todas affirmam estar em divida para com o macumbeiro, que já as curou desta ou

daquella doença...

Os pedidos chovem:

- Solte o pagé, doutor Flávio. Mas o Chefe da Segurança Publica foi inflexivel. Não

attendeu às supplicas adescabidas dos supersticiosos “clientes” de Demetrio.

Este ficou, então, descansando no xadrez.

E os seus prosélitos, de certo, hão de star em casa, a esta hora, suplicando a todos os

“paes de santos:” – “Tire o pagé da roda!”

E a voz da razão responde: - “Não tiro!”.

O GLOBO. São Luís, 30/07/1941. P. 6.

A polícia dá uma batida na macumba do Cutim Grande.

É incontestável, digna de aplauso a atitude do dr, Flávio Bezerra à frente da nossa

Polícia Civil.

Medidas acertadas, são, diariamente, tomadas por aquelas autoridades que não mede

sacrifícios no sentido de bem zelar pela sociedade maranhense.

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Ontem, por exemplo, o dr. Flávio Bezerra organisou e chefiou pessoalmente uma

deligência ao interior da ilha, na qual se fez acompanhar do tenente João Paulo e oito

investigadores.

Essa diligência tinha por fim fazer cessar uma movimentada macumba que se vinha

praticando no logar Cratéus, ao Cutim Grande, dirigida por Altina de Sousa, esposa de

Agostinho Sousa, ali residentes.

Os “trabalhos” de cura iam bem animados, quando as 11 horas da noite de ontem, o dr.

chefe de Polícia e a turma de policiais faziam o cerco da casa onde era realizado o

“brinquedo”.

Não escapou ninguém das vinte pessoas que lá se encontravam inclusive o soldado nº

341, da Força Policial, do destacamento do Anil, que entusiasmado, assistia aos

“prodígios” da macumbeira.

Interrogado, declarou o referido policial, ao chefe da Segurança, que ali se encontrava

com o consentimento do comissário José Gomes Filho encarregado do Pôsto Policial do

Anil, o qual tinha plêno conhecimento e, de certo modo, prestigiava o “culto”.

Depois de efetuar a prisão dos responsáveis por aquela prática nociva, o dr. Flávio

Bezerra apreendeu, no local da “cura”, o seguinte material: 1 faixa vermêlha com lêtras

brancas, contendo os dizeres: “Save o Barão de Coré”; 1 faixa branca com lêtras

encarnadas, ostentando a frase: “Salve o Rei São Sebastião”; 1 faixa vêrde com lêtras

amarelas, com a inscrição: “Salve o Príncipe Oliveira”; 1 manto de setim branco; 2

taquaris, 1 chicote, 1 pandeiro, 3 violões, 1 cavaquinho, 2 maços de velas, 3 garrafas de

cervêja, 4 de cachaça, 1 de vinho de genipapo, 1 maracá, 2 livros de preces, 2 cúias, 11

charutos, 1 almofada e tabaco moído.

E para maior agravante da situação, assistiam, à pajelança, menores de 11 a 17 anos de

idade.

Damos, a seguir, a relação dos presentes à “clínica” de d. Altina: - Maria José Rocha,

doente; Miguel silva, Francisca silva, de 17 anos, doente; Martinho Fernandes, doente;

Valentim Paulino Fernandes, Raimundo Santos, 14 anos, assistente; Marcelina Silva, 11

anos, assistente; Raimundo Santos, José Penha, Agostinho de Castro Costa, Maria

Cordeiro, Manoel dos Santos, Maria Azevêdo, Maria da Conceição Pires, Danilo

Castro, Francisco A. Dias, José Ribamar Pereira, Nidio Passos dos Santos, doente e o

soldado, também doente.

O dr. Flávio Bezêrra, ilustre chefe de Polícia, que vem dando tenaz combate à

macumba, ao ter conhecimento de que o Comissário José Gomes Filho permitia e até

mesmo, amparava a pajelança de Cratéus, já, permitindo o comparecimento de policiais

já levando pessoas conhecidas ao “brinquedo”, s. s. procurou, desde então, averiguar o

fato, terminando, ontem, por constatar a culpabilidade daquele funcionário em consentir

na prática perniciosa de tão condenável profissionalismo.

Adiantou-nos o dr. Flávio Bezerra que, hoje mesmo, dispensará aquele policial da

comissão de encarregado do Pôsto do Anil, transferindo-o para a Central de Polícia.

O GLOBO. São Luís, 12/08/1941. P. 3.

Macumba! Em pleno dia, no Anil.

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Os macumbeiros do Anil, andam, agora, com “dôr de cabêça”, com as medidas adotadas

pelo chefe de polícia, para dar combate a essa verdadeira praga social.

Ante-ontem, por volta das 17, 30 horas, investigador Lemos, acompanhado por dois

outros policiais, meteu-se pelo caminho do Sacavém procurando os curandeiros obtendo

êxito na sua excursão, pois, decorrida meia hora, foi surpreendido no lugar denominado

“Floresta”, o individuo João Pereira da Silva, em trajes de rei na prática de tão abusivo

“metier”, assistido por vários “crentes” e “doentes”.

Com a chegada do investigador Lemos o “pajé” quis correr, sendo, porém, em vão a sua

tentativa.

Prêso o chefe, fôram encontrado em seu poder e conduzidos a Delegacia, 1 garrafa de

cachaça, 2 maços de velas e 1 maracá.

O “Pai do Santo”, que estava sensivelmente embriagado, foi conduzido para o pôsto de

Anil e dali, transportado para a central de polícia.

O GLOBO. São Luís, 9/06/1947. P. 4.

A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha.

A macumba está sendo praticada abertamente no interior da ilha de São Luis. Foi o que

constatou, ontem, a nossa reportagem. As casas de pajelança são conhecidas de todos e

os curandeiros chegam mesmo ao cumulo de afirmar que tem licença da polícia para

desenvolver as suas atividades.

Pouco sabemos, nós os civilizados que nos libertamos das perigosas superstições dos

nossos ancestrais – do índio e do preto –, sabemos que a macumba é um mal social, de

profundas raízes. Tanto crer nos poderes sobrenaturais de um “pagé” um caboclo

ignorante do interior da ilha, como muitos cidadãos de gravata, bem colocado na vida,

aqui na cidade. Assim, a porta da tenda de exploração que muitos “curandeiros” da

nossa ilha já foram vistos automáveis de luxo. Gente de dinheiro, pessoas, mesmo de

certo destaque na sociedade, ao que sabemos, frequentam os centros de “pajelança”,

sempre que precisam recorrer aos “curandeiros”. E assim, a macumba encontra campo

aberto ao seu desenvolvimento, protegida por homens influentes, profundamente

supersticiosos.

Visitando um dos maiores focos

A reportagem de “O Globo” visitou, ontem, um dos maiores focos de macumba do

interior da ilha, localizado nas mediações do sítio do “físico” penetramos nos

“domínios” de “Zé Malaquias”, “curandeiro célebre”. Eram quase 18 horas, quando

chegamos a tenda de exploração de “Zé Malaquias”. A casa fica à margem da estrada.

Dansava-se o velho “tambor de mina”, num salão que ocupava dois terços da casa. No

tambor vimos uma criança de aproximadamente 12 anos. Havia no meio da sala um

grupo de dansarinas – duas velhas e umas mulheres nonas – formando um circulo. De

homem, só havia “Zé Malaquias” fumando charuto e requebrando-se qual uma

dançarina de cabaré. Vestia uma pijama de seda laquê encarnada. Uma pijama igual

àquelas usadas por mulheres de pensões livres.

Na sala secreta do falso pagé

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A dança ia animada com o seu ritmo meio indígena e meio africano. Uma crioula,

moçoila de uns 17 anos, porfiava com Malaquias. Notava-se alguma coisa de sensual

nos seu gestos, ao som do “tambor de mina”. A criança, que tocava um dos tambores,

não olhava para ninguém: estava concentrada no seu trabalho.

Procuramos um garoto, que estava junto à porta de entrada, e dissemos-lhe que

desejávamos falar com “Zé Malaquias”. O “curandeiro” veiu até nós. Olhamo-lo de

perto, detidamente. Um bigodinho petelante, mal feito. Rosto magro, baixo, franzino,

feio. Fisionomia de um doente sexual. Levou o repórter a uma sala secreta, onde

também ficam os aposentos do “pagé”. O repórter sentou sobre um caixão de querosene.

O quarto era estreito. A um canto uma mulher deitada em uma rede suja. Em outro

canto, onde estavam “Zé Malaquias” e o repórter, havia uma imagem de santo.

Travou-se o seguinte diálogo:

O repórter: - “ZÉ Malaquias” é você que está fazendo cura?

“Zé Malaquias”, desconfiado: - cura, não! Aqui eu faço “tambor de mina”, com

permissão do Chefe de Polícia.

O repórter: - Espera, “Zé Malaquias”, eu sei que tu “curas”. Vim aqui para isso. Minha

mulher me largou. Estou só, quero que ela volte pra mim. Por quanto tu fazes o

“serviço”?

“Zé Malaquias” - Tu vem de algum sitio?

O repórter - Não. Moro na cidade.

“Zé Malaquias” – Quando ela te largou?

O repórter – Há um mês.

“Zé Malaquias – Quando tu pode vir aqui?

O repórter – Domingo.

“Zé Malaquias” – Não. Tu vem na quarta-feira à noite, que eu faço o “serviço”.

O repórter – está certo, eu venho quarta-feira à noite.

Ao sair da sala secreta com o “curandeiro”, o repórter fez algumas perguntas à mulher

que estava deitada numa rede?

- A senhora mora aqui?

- Não. Estou passando alguns dias.

A mulher tinha um aspecto doentio, o rôsto pálido, roupa suja, olhar e gestos esquisitos.

Quis o repórter fazer mais perguntas, porém, “Zé Malaquias” não deixou. Insistiu com o

repórter para que saísse do quarto, dizendo que aquela mulher viera da colônia dos

psicopatas.

Licença da Polícia

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“Zé Malaquias”, depois, mandou uma moçoila buscar uns papéis e mostrou-nos a

licença da Polícia para o funcionamento do “tambor de mina”. A licença dizia mais ou

menos assim: “Crescêncio Alves tem licença para dansar “tambor de mina” nos dias 29,

30, 31, 2 e 3, tendo pago a taxa exigida por lei”. Era duas licenças, uma datada de maio

e ambas contendo a assinatura do sr. Paulo A. Cunha, sub-delegado do João Paulo.

Crescêncio Alves é o pai de Malaquias, segundo nos afirmou êste.

Ficamos, então, sabendo: “Zé Malaquias” tem licença para dansar “tambor de mina” e

paga imposto, como qualquer dono de baile. Dai dizer que tem patente.

Quando examinamos os documentos apresentados por: Zé Malaquias” , várias pessoas,

todas praticantes da macumba, cercaram-nos, com um olhar apreensivo, como se

fossemos autoridades policiais. “Zé Malaquias” tranquilizou a todos, dizendo,

referindo-se ao repórter: “Ele também é da macumba”...

Uma pose para a nossa objetiva

Quibemos bater uma fotografia do “curandeiro”. “Zé Malaquias” deu um sorriso

vaidoso. Quiz ser fotografado com algumas jovens macumbeiras. Batemos a chapa. Mas

já havia pouca luz e não dispúnhamos dd lampada de magnésio. Apenas tínhamos e mão

uma pequena “Codack”. Se prestar fotografia, estamparemos em mão uma pequena

“kodack”. Quadro pitoresco colhido em um dos maiores centro de pajelança da nossa

ilha.

A licença da polícia fomenta a macumba

Não há a menor duvida de que a licença pela policia para que se pratique o “tambor de

mina” fomenta a macumba. E isso porque onde há o “tambor de mina” há fatalmente a

macumba. Uma cousa não existe sem a outra; pelo que não se pode considerar o

“tambor de mina” uma diversão como outra qualquer. E, ao contrário, um meio de

exploração torpe, de depravação de costumes. “Zé Malaquias” tem todas as

características de um doente sexual, como já dissemos. Vive de explorar os

supersticiosos. Não trabalha e, segundo nos afirmaram, tem os seus amantes. Várias

crianças que assistem ao “tambor de mina”, estão crescendo naquele ambiente sórdido,

foco de prostituição, verdadeira escola do crime.

Enquanto isto, não há uma escola primária para mais de 60 crianças que habitam aquela

zona onde os pagés montaram a sua tenda de exploração.

O governo está com um problema sério, que se agrava dia a dia, com a licença dada por

autoridades policiais, como o sub-delegado do Anil, para a prática do “tambor de mina”.

No entender da gente ignorante, a macumba é uma cousa legal como outra qualquer. E

há rasão de se pensar assim.

O GLOBO. São Luís, 22/11/1947. P. 4.

O Chefe de Policia descobre um foco de macumba no João Paulo.

Por várias vezes temos nos ocupado do problema da macumba em São Luis. A feitiçaria

tem se desenvolvido consideravelmente, constituindo um meio de exploração de

indivíduos perniciosos que se localizam em pontos diversos do interior da ilha e mesmo

em alguns bairros da nossa capital. Os “pagés” são procurados por gente das mais

diferentes classes sociais, por todos aqueles que se deixam dominar por velhas

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superstições. E, assim, os “curandeiros” fazem da macumba a sua profissão. Moram

sempre numa casa em que há uma grande sala para a dansa do “tambor de mina”. Há

muita cachaça, e a festa sempre se estende até a alta madrugada. Em uma visita que

fizemos a um dos focos de macumba do interior da ilha – conforme reportagem já

publicada por este vespertino – vimos jovens de 17 a 18 anos na festa do “tambor de

mina”, requebrando-se numa festa dirigida pelo “pagé” Zé Malaquias que fumava

cachimbo e estava vestido com uma pijama de seda laqué encarnada. A presença dessas

jovens mostra que o “tambor de mina” é um foco de prostituição. Os “pagés” usam o

“tambor de mina” para despistar as autoridades. Quando chegam pessoas estranhas, eles

afirmam que lá não se nenhuma macumba, apenas se dansa o “tambor de mina”, com

licença fornecida pela Policia.

O Sr. Homero Brauna descobre um foco de pajelança

Em face de uma denuncia, o sr. Homero Brauna titular da pasta da Segurança Publica,

de, anteontem à noite um bordo pelo João Paulo, descobrindo um foco de pajelança, à

rua da Cerâmica. Pouco depois das 23 horas, o Chefe de Policia deu com a casa do pagé

Pio Fernandes, conhecido por dr. Pio. Nunca se perguntou, no bairro, de que êle é

doutor. Mas, não é preciso. Todos sabem: é doutor em feitiçaria.

Um livro curiosíssimo

O Chefe de Policia não surpreendeu, infelizmente, o “pagé” em função. Estava tudo

calmo e não havia estranhos. Após uma hábil conversa, o sr. Homero Brauna conseguiu

apreender um livro curiosíssimo, contendo o nome de muita gente importante da cidade

– gente a quem devia o feiticeiro fazer mal, que seria bem remunerado. Algumas

pessoas cujo nome estava no livro deviam desaparecer, outras separar-se da família.

Enfim, estavam catalogadas no livro pessoas odiadas e de quem seus inimigos queriam

vingar-se, fazendo através do poder sobrenatural do “pagé”, as piores maldades.

Não vimos o livro, mas, ao que nos deu a entender o chefe de Policia, a divulgação do

conteúdo deste livro provocaria, sem duvida, um escândalo social.

“É a minha profissão”

O “pagé” Pio Fernandes é cego e aleijado. Declarou ao sr. Homero Braúna , ao ser

interrogado sobre as suas atividades na macumba: “É a minha profissão. Vivo disso,

mas não faço o mal. Só faço o bem. Trabalho para fazer casamento e reatar amizades,

unir maridos e esposas que se separaram”.

Um problema sério

Não resta duvida que o caso da exploração da macumba é um problema serio. A Policia

o que, no máximo pode fazer é prender os exploradores da superstição popular. Mas

continuará a superstição e surgirão outros exploradores. Não faltará quem acredite

nesses profissionais da feitiçaria. O problema de macumba constitue, portanto, um

problema de generalização social. Só dando ao povo uma educação bem orientada –

trabalho longo e penoso para um país onde é enorme o índice de ignorância popular.

Os pagés são protegidos té por pessoas de influencia, que mantêm essa herança atávica

da superstição.

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Faça, entretanto, a Policia o que lhe compete: prender os exploradores. Pelo mens, a

medida terá a vantagem de restringir a exploração dos profissionais da feitiçaria.

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Documento Do Tribunal de Apelação do Estado Maranhão

MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Tribunal de apelação.

Habeas corpus. Soltura. Habeas corpus nº 393, São Luís, 1940.

COLENDO TRIBUNAL DE APPELAÇÃO:

02 de abril de 1940.

Dentre os direitos assegurados na constituição de 10 de novembro se encontra o à

LIBERDADE, e à SEGURANÇA individual que é condição daquella, a modo que “a

excepção do flagrante delito, a prisão não poderá effectuar-se senão depois de pronuncia

do indicado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escripta da

autoridade competente”, inscreve aquelle estatuto, no seu artigo 122, inciso 11. Todavia

a Policia desta Capital, à ordem do respectivo Chefe, prendeu e recolheu à Penitenciária

cidadãos pacatos e sem registro no cadastro criminal, ademais sem ordem de autoridade

judiciária, nem occorrencia da circunstancia de apanhados em flagrante pratica d’algum

crime ou mesmo contravenção punível a que não possa responder senão com sacrifício

de sua liberdade.

São victimas de tamanha violência os moradores do logarejo do interior da Ilha

denominado “Angelim” Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna Simão

Rodrigues, de semelhante maneira privados de sua liberdade e moralmente massacrados

em chronicas policiaes dos jornais desde os primeiros minutos de domingo ultimo (28),

porque áquella hora tomavam parte numa brincadeira regional inofensiva à Ordem

Publica ou social, juntamente muitas dezenas de pessoas qualificadas, todos sem armas,

em perfeita ordem e maximo respeito reciproco, a portas abertas e casa illuminada.

Ora, como documenta o desenvolvido registro de imprensa (jornal incluso), ressalvado

o tom sensacionalista da reportagem, nada havia, na alludida reunião intima e divertida,

que, ao menos, denunciasse proposito criminoso. Era apenas a realidade do meio pobre

em noite de sabbado costumeiramente festiva em toda paragem de convívio humano.

Não havia motivo para a diligencia policial segundo o jornal organizada para aquelle

fim, cujo epilogo é a violência contra a qual o advogado abaixo assignado, por

solicitação dos próprios interessados, e faculdade legal e legitima, vem reclamar o

remédio constitucional de concessão de habeas-corpus, com a qual o colendo Tribunal

mais uma vez affirmará o império da Lei e do Direito.

A prisão dos pacientes, pobres e pacatos lavradores que sem justo motivo ou legal razão

se encontram recolhidos a cellas da Penitenciária como si criminosos fossem, ou sejam,

não corresponde a qualquer dos requisitos de legalidade exigidos no artigo 322 do

Codigo do Processo Criminal, nem se realisou por alguns dos meios prescriptos nos

artigos 272 e 273 desse Codigo. Em taes condições constitue constrangimento ilegal e o

principio do nosso Direito Politico é que “dar-se-á habeas-corpus sempre que algum

soffrer ou se achar na imminencia de soffrer violencia ou coação illegal na sua liberdade

de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar” (não corrente).

Assim effectivamente dispõe a citada constituiçao, numero 16 ao artigo 122. Requer,

pois, o impetrante que o colendo Tribunal de appellação tome conhecimento e processe

o pedido recurso habeas-corpus, concedendo a ordem em homenagem ao Direito e

mercê à justiça.

O impetrante afirma ser verdade quanto allega e espera deferimento.

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São Luis, 30 de abril de 1940.

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Tribunal de Apelação.

Oficio nº 102.

4 de maio de 40

Exmº. Sr. Dr. Chefe de Policia

Local.

Tendo sido impetrada ao tribunal e appellação, uma ordem de “habeas-corpus” em favor

de Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão Rodrigues, sob a alegação

de que os mesmos se encontram presos e recolhidos illegalmente à Penitenciária do

Estado de ordem de V. Excia., venho, em cumprimento ao deliberado pela Primeira

Turma, em sessão de hoje, solicitar de V. Excia. Informações a respeito para que possa

ser julgada a referida ordem de “habeas-corpus”.

Apresento a V. Excia. Os meus protestos de elevada estima e distincta consideração.

Raymundo Publio Bandeira de Mello.

Presidente do Tribunal de Apelação.

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CHEFATURA DE POLICIA

S. Luis 6 de Maio de 1940.

Exmº Sr. Dez. Presidente do Tribunal de Appellação do Estado.

Satisfazendo a solicitação de V. Excia. Contida no officio n. 102, de 4 do corrente,

tenho a honra de informar que Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão

Rodrigues, se acham presos, por terem sido surprehendidos na pratica de pajelança, e

consequente exercício da medicina illegal .

Da oportunidade me aproveito para reiterar a V. Excia. os protestos de minha elevada

estima e grande consideração.

Flavio Bezerra

Chefe de Policia.

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Tribunal de Apelação. (obs. 2º via)

O Desembargador Raymundo Publio Bandeira de Mello, Presidente do Tribunal de

Appellação.

Pelo presente alvá, indo por mim assignado, mando ao sr. Administrador da

Penitenciária do Estado ou quem suas vezes fize que ponha imediatamente em liberdade

a Demetrio Santos, José Santos, Raymundo Buna e Simão Rodrigues, que ahi se

encontram presos ordem do dr. Chefe de Policia e em favor dos quaes foi pela 1ª Turma

do Tribunal de Appellação, em sessão de hoje, concedida uma ordem de “habeas-

corpus”. O que cumpra na forma e sob as penas da [lei].

Secretaria do Tribunal de Appelação, 6 de Maio de 1940.

Raymundo Publio Bandeira de Mello.

Presidente do tribunal de Appellação.

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Conclusos

Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de habeas-corpus requerido pelo

advogado Dr. Soares de Quadros em favor de Demetrio santos e outros, residentes nesta

Capital.

Mandou, na primeira Turma do tribunal de Appelação, converter o julgamento em

diligência para pedi informação ao Dr. Chefe de Policia.

São Luis, 4 de maio de 1940.

Publio de Mello.

Costa Fernandes relator.

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Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de habeas-corpus, da comarca da

Capital, impetrando o Dr. Soares de Quadros em favor de Demetrio Santos e outros.

Mandou, na primeira Turma do Tribunal de appelação, conceder a ordem impetrada, de

acordo com o parecer verbal do Dr. Procurador Geral do Estado, de vez que os

pacientes se acham presos há dias, sem que, no caso, houvesse prisão em flagrante, e

por despacho de Auctoridade policial competente.

Publio de Mello

São Luis, 6 de Maio de 1940.

Costa Fernandes relator.

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MARANHÃO. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Chefatura de Policia.

1º Delegacia Auxiliar. Inquérito Policial. São Luís, 1940.

PORTARIA

Tendo chegado ao meu conhecimento, que a mulher Maria Pereira de Sousa, partejou,

no dia 9 do corrente sem estar devidamente habilitada para tal mister, a mulher Ozita

Santos, resultando no dia seguinte, vir a falecer o recém-nascido, mando que autoada

esta, seja instaurado inquérito a respeito.

O que cumpra-se

CHEFATURA DE POLICIA DO ESTADO DO MARANHÃO, em São Luis, 11 de

junho de 1940.

Dr. Flavio Bezerra.

Chefe de Policia.

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Termo de declarações.

Aos doze dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta, nesta Cidade de

São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia Doutor

Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Maria Pereira de

Souza, piauyense, solteira, serviços domésticos, de trinta e nove annos de idade,

residente à rua 28 de julho n. 483, sabendo ler e escrever e depois de prestar o

compromisso legal, disse: que é natural do Município de Jeromenia, lugar Juigui, no

Estado do Piauhy, que na sua terra natal fez vários partos, em numero superior a vinte,

pois sendo sua mãe Joanna Freire de Souza, ali residente, parteira proficional , ensinou-

lhe a maneira de aparar crianças; que reside nesta capital há cerca de dezeceis annos,

porem vai continuamente ao logar onde nasceu, passar temporada e em nessas ocasiões

que faz parto naquele lugar; que aqui em São Luiz, até antes de hontem ou traz

honteontem, não tinha feito nenhum parto; que tendo aberto, em Outubro do anno

passao, uma pensão de meretrizes, à rua indicada, onde reside, recebeu há unns dez dias

passados uma inquilina de nome Ozita Santos, que lhe pedira um quarto para morar, que

no mesmo dia em que recebeu a nova inquilina notou de logo que a mesma estava

gravida, circunstancia que outras suas inquilinas observaram também, que por isso

mandou Ozita ocupar um quarto, pelo qual nada cobrava, pois Ozita nada possue e até

mesmo s suas refeições veem da casa de unns seus parentes moradores à rua da Estrella;

que no quarto de Ozita não existe cama, dormindo a mesma em uma rêde, pois não

estava fazendo a vida; que na sexta feira ultima, dia sete do corrente, à noite, Ozita

estava se embalando na rêde, quando uma das cordas que a sustinha, arrebentou e Ozita

cahiu, sentada, batendo as nadegas; que veio a saber dessa queda, no dia dia seguinte à

noite, quando notando que sua inquilina referida estava deitada, com sintomas de se

achar doente, perguntou-lhe o que tinha e ella lhe contou; adiantando porem que não

receiava ter qualquer abalo, visto ainda não ser época de parto; que no domingo, dois

dias portanto da queda, as quatorze horas, achava-se a declarante em seu quarto, quando

Ozita poz-se a gritar pedindo-lhe que a fosse socorrer, pois estava sentindo dores; que

indo em auxilio de sua inquilina, e ao chegar ao seu quarto, encontrou-a vomitando e

extorcendo-se de dores; que indagando o que ella tinha, Ozita lhe respomdeu que estava

com dôres para ter criança; que desmanchando a rêde de Ozita, que se achava armada,

estendeu-a no chão, fel-a deitar-se sobre a rêde e partejou-a, que a sua ação consistiu em

coloca-la meio sentada sobre uma rodilha de pannos, mandando que sua inquilina

Balbina Santos sustentasse Ozita afim de melhor ella poder ter a criança; que acto

continuo ella teve a criança, porem esta nasceu estava arroxiado e arquejante , devido

certamente haver recebido um baque, quando da queda de Ozita, pois desde aquelle dia

a criança deixou de mexer no ventre de Ozita, conforme ella confessou a depoente; que

a unica intervenção da depoente nesse parto, pois marcou o cordão umbilical com a

distancia de treis dedos e cortal-o amarrando-o em uma tira de panno bem limpo, em

virtude de na ocasião, não ter a linha uzada para aquelle fim; que do umbigo a criança

deixou um pouco de sangue ralo, na mesma noite, falecendo na noite do dia seguinte;

que deixou de chamar medico de Serviço do Prompto Socorro, em virtude deles não

atenderem; que o seu acto foi todo de humanidade, pois tinha Ozita em sua residência

em virtude dela não ter onde morar, e ainda ter sido jogada na rua da casa de Plautilha

Castro, residente à rua 28 de julho. Nada mais disse. Lido e achado conforme, vai

assinado pela autoridade, pela depoente, commigo escrivão. Eu, Raymundo de Carvalho

Martins Ferreira, escrivão o escrevi e assigno.

Flavio Bezerra.

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Maria Pereira Souza.

Raymundo Carvalho Martins Ferreira.

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Termo de declarações.

Aos vinte e cinco dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta nesta

Cidade de São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia,

Doutor Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Ozita Santos,

Maranhense, casada, meretriz, de dezoito annos de idade, residente à rua 28 de julho nº.

483, não sabendo ler nem escrever e depois de prestar o compromisso legal, disse: que

em dias do mez de Maio, cuja data não se recorda, fora despedida por Plautilha Castro,

em virtude de não poder pagar a pensão; que foi ter a pensão de Maria Pereira Souza

aquem contou-lhe a sua situação e pediu que ella o tivesse ali; que Maria Pereira

atendeu, ficando a depoente em um quarto, sem pagar , pois o seu estado não permitia

fazer a vida, pois estava gravida; que ate refeição lhe dava Maria pereira, sem lhe

cobrar cousa alguma ; que no dia sete do corrente, cerca das vinte e duas horas, estava

se embalando na rede quando uma das cordas se partiu, cahindo a depoente no chão,

sentada; que não sentiu nada, apenas a criança deixou de mexer; que no dia seguinte

tambem nada sentiu; que no outro dia pelas quinze horas começou a sentir dores

pequena e por isso nada disse; que passando uma meia hora , começou sentir mais dor e

com vontade de vomitar; que gritando por Maria Pereira que o acordou, esta ao chegar

já encontrou a depoente vomitando; que Maria chamou Filomena Silva, que chegando

pediu que ella tirasse rede e colocasse no chão, para servil-a de cama, e fazendo uma

rodilha a depoente sentou-se, enquanto Filomena a segurava, digo Balbina a segurava

pelas costas; que feito isso a depoente teve logo a criança, que nasceu arroxiada e

arquejante, que Maria Pereira, cortou o umbigo i amarrou-o, que voltou [ilegível] a

criança deixar sangue ralo do umbigo, e no dia seguinte, isto é terça feira a noite ele

faleceu; que deixou de chamar medico porque não podia pagar, a o Prompto Socorro

não atendida em virtude da depoente não ser matriculada naquele serviço; que Maria

Pereira, partejou , fazendo isso, por humanidade, pois tem sido muito sua amiga,

fazendo tudo por si, sem lhe cobrar nada. Nada mais disse. Lido e achado conforme, vai

assignado pela autoridade, pelo Senhor Benedicto Antonio Marques, a caso da

depoente, por ser analfabeta, commigo escrivão. Eu, Raymundo Carvalho Martins

Ferreira, escrivão o escrevi e assigno.

Flavio Bezerra.

Benedicto Antonio Marques.

Raymundo Carvº. Martins Ferreira.

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Termo declarações.

Aos vinte e cinco dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta nesta

Cidade de São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia,

Doutor Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Filomena

Silva, maranhense, solteira, meretriz, de vinte e cinco annos de idade, residente à rua 28

de julho nº 483, não sabendo ler nem escrever e depois prestar o compromisso legal

disse: que no dia nove do corrente, pelas quinze horas, foi chamada por Maria Pereira,

que se achava num quarto onde estava Ozita, e chegando lá, encontrou Ozita gemendo e

vomitando, tendo Maria Pereira, pedido a depoente que tirasse a rede, e colocasse no

chão o que fez; que Maria Pereira, chamando Balbina, para ajudar a sentar Ozita, em

cima de uma rodilha, e acto continuo Ozita teve uma criança do sexo masculino; que a

depoente retirou-se em seguida; que não assistiu quando Maria Pereira cortou o umbigo;

que quando voltou ao quarto de Ozita, já a criança estava bem roxa e agitada em um

berço que veio da casa da irmã de Ozita; que a criança arquejava e não chorava; que no

dia seguinte morreu; que Maria Pereira, fizera aquilo, sem visar interesse e sim por

humanidade, foi na amizade de Ozita; que de nada mais sabia. Lido e achado conforme,

vai assignado pela autoridade, pelo Senhor Buzalgo, digo Clovis Buzalgo, a caso da

depoente, por ser analfabeta, commigo escrivão. Eu, Raymundo de Carv. Martins

Ferreira, escrivão o escrevi e assigno.

Flavio Bezerra.

Clovis Buzaglo.

Raymundo Carv. Martins Ferreira.

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Termo de declarações.

Aos vinte e cinco dias do mez de junho do anno de mil novecentos e quarenta nesta

Cidade de São Luiz do Maranhão, na Chefatura de Policia, presente o Chefe de Policia,

Doutor Flavio Bezerra, commigo escrivão abaixo declarado, compareceu Balbina dos

Santos, maranhense, solteira, cozinheira, de trinta e oito annos de idade, residente à rua

28 de julho, nº 483, não sabendo ler nem escrever depois de prestar o compromisso

lega, disse: no dia nove do mez passado, pelas quinze horas, estava trabalhando na

cozinha, da pensão de Maria Pereira, quando foi chamada por esta, que estava no quarto

de Ozita Santos; que lá chegando encontrou Ozita vomitando e com dores, pois esta

estava gravida; que nessa ocasião [ilegível] por Ozita de que esta cahira de rede, e

batera com as nadegas no chão, atribuindo que aquelle estado, foi devido a queda que

levara da rede, quando um dos lado, a corda repartiu; que ajudou Maria Pereira a

segurar Ozita, a qual foi colocada meio sentada em uma rodilha de pannos , tendo ella

tido logo uma criança do sexo masculino; que a criança não chorou, e estava

arquejando; que como tivesse serviço na cozinha , retirou-se, que mais tarde voltou ao

quarto de Ozita, já encontrando a criança no berço; que a criança estava com aspecto de

doente; que no dia seguinte a criança falleceu; que Maria Pereira, é amiga de Ozita, e

fez tudo aqui, por caridade, pois Ozita ali estava sem recurso e nada pagava pela sua

estadia, tendo Maria Pereira lhe dado ate comedoria . Nada mais disse. Lido e achado

conforme, vai assignado pela autoridade, e a caso da depoente ser analfabeta, o Senhor

José Lopes Sobrinho, commigo escrivão. Eu, Raymundo de Carvº. Martins Ferreira,

escrivão o escrevi e assigno.

Flavio Bezerra.

José Lopes Sobrinho.

Raymundo de Carv. Martins Ferreira.

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RELATORIO

Deu margem à instauração deste inquérito a portaria de Fls. 2, pelo facto de ser Maria

Pereira de Sousa, partejado sem estar autorizada a mulher Ozita Santos, resultando a

vim falecer o recém-nascido.

Ouvida Ozita Santos, mãe do recém-nascido, declarou que, em dias do mês de maio,

cuja data, não se recorda, fôra despedida da pensão de Plautilha Castro, em virtude de

não poder pagar; que por isso procurou a pensão de Maria José Pereira, à qual, expondo

a sua situação, pedira hospedagem, o que lhe foi dado, sem que a depoente pagasse

coisa alguma, inclusive comedoria; que alem de tudo se encontrava gravida, sem poder

fazer a vida; que no dia 7 do corrente estava deitada na rêde, quando uma corda partiu,

caindo a depoente, e batendo com as nadegas no chão; que de começo nada sentiu, até

que no dia 9, pela manhã, começou a sentir dores; que pelas 15 horas, estas aumentaram

e a depoente começou a vomitar, e nesse estado gritou por Maria Pereira, que lhe

acodisse, o que prontamente, fez e chegando ali chamou Balbina, que desarmando a

rêde, colocou-a no chão e fizeram uma rodilha, onde a depoente conservou-se amparada

por Balbina, e acto continuo a depoente teve uma creança do sexo masculino; que

assistiu quando Maria Pereira, cortou o umbigo da creança, a qual ao nascer estava

arrocheada e arquejante; que no dia seguinte a noite, falecera.

Ouvidas testemunhas em número legal, confirmam as declarações acima citadas,

declarando, ainda, que, Maria Pereira de Sousa, era amiga de Ozita Santos.

Ouvida a acusada, declarou, que, na sua terra natal fez vários partos, em numero

superior a vinte, pois a mãe da depoente é parteira profissional, ensinando-lhe a maneira

de aparar a creança; que no dia 9 do corrente Ozita Santos, que estava hospedada em

sua casa, por motivo de ter sido expulsa da pensão de Plautilha Castro, tendo compaixão

dela e do seu estado, dera-lhe hospedagem e comedoria sem lhe cobrar coisa alguma,

isto desde uns dez dias antes; que acudindo, encontrou-a extorcendo-se de dôres e

vomitando, declarando nessa ocasião, ter caído da rêde, razão porque julgava julgava

que ia ter parto, em consequencia da queda recebida, e deitando Ozita, sobre uma

rodilha de pano, teve ela imediatamente a creança, a qual nascera arquejante, e um

pouco arrocheada; que cortou o umbigo medido trez dedos do cordão umbilical,

amarrando-o com uma tira de pano bem limpo, em virtude de não ter a linha usada para

aquele fim; que a creança deitou um pouco de sangue ralo do umbigo; que não chamou

o serviço de pronto socorro, em virtude deles não atenderem; que o seu acto foi de

humanidade, pois tinha Ozita em sua companhia, porque a mesma não tinha para onde

ir, e mesmo era sua amiga.

E, como esteja a acusada incursa no Art. 156, da consolidação das leis Penaes,

determino sejam estes autos enviados ao M.M. Sr. Dr. Juiz de Direito da 4ª. Vara, para

os devidos fins.

1ª Delegacia Auxiliar de Policia, 6 de Julho de 1940.

Dr. Flavio Bezerra.

Chefe de Policia.

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