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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ UNIOESTE CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE E AS JUSTIFICATIVAS DO FRACASSO ESCOLAR: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES. Cascavel 2010

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ … · O liberalismo constitui-se, assim, como um instrumento teórico de luta da burguesia contra a nobreza feudal e a ordem econômico-social

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

UNIOESTE CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE E AS

JUSTIFICATIVAS DO FRACASSO ESCOLAR:

PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES.

Cascavel

2010

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ UNIOESTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO BRASILEIRA

A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE E AS

JUSTIFICATIVAS DO FRACASSO ESCOLAR:

PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES.

Monografia apresentada como requisito para obtenção do título de Especialista em História da Educação Brasileira, CECA-Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE – Campus de Cascavel. Orientador: Prof. Ms. Cezar Ricardo de Freitas.

Cascavel

2010

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ADRIÉLE CRISTINA DE SOUZA MEURER

A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE E AS

JUSTIFICATIVAS DO FRACASSO ESCOLAR:

PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES.

Monografia apresentada como requisito para obtenção do título de Especialista em História da Educação Brasileira, CECA-Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE – Campus Cascavel.

BANCA EXAMINADORA

____________________________

Profª. Drª. Ireni Marilene Zago Figueiredo.

Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

____________________________

Profª. Dr° João Batista Zanardini.

Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

____________________________

Prof. Ms. Cezar Ricardo de Freitas.

Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

Cascavel, Março de 2010.

4

Ao meu esposo, Djovane pelo

apoio, carinho e compreensão

nas longas horas de estudo e

na minha ausência.

À minha mãe, Maria Eudocia

de Souza e meu pai Geraldo

Aparecido de Souza, por

acreditarem em mim sempre.

Aos meus irmãos, pelo carinho

que dedicaram a mim sempre.

5

AGRADECIMENTOS

À minha mãe Maria Eudocia de Souza, pela sabedoria, ensinamentos,

educação e amor, que serviram de base para a pessoa que sou e para que eu

lutasse pelos meus objetivos. A você todo o meu amor.

Ao meu esposo Djovane Pereira da Silva Meurer, pela compreensão,

paciência, força em todos os momentos difíceis e por acreditar na minha

capacidade.

Ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional e Social –

GEPPES, por abrir as portas do conhecimento para mim, possibilitando que

esta pesquisa fosse possível.

Ao meu orientador, professor Ms. Cezar Ricardo de Freitas pela sua

paciência, compreensão, disponibilidade, pelo crescimento intelectual que me

proporcionou, à você minha gratidão e minha admiração.

A professora Drª. Ireni Marilene Zago Figueiredo, pela sua fundamental

importância em todo o meu processo de pesquisa, de crescimento intelectual,

pela compreensão, companheirismo, pelas orientações, agradeço

imensamente por tudo.

Ao professor Drº. João Batista Zanardini por aceitar carinhosamente o

convite para participar da banca de defesa deste trabalho. Sinto-me honrada

por sua presença.

Adriéle Cristina de Souza Meurer

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ÂMAGO

Quem bebe da fonte que jorra na encosta,

não sabe do rio que a montanha guarda.

Helena Kolody

[Digite uma citação do documento ou o resumo de uma questão interessante. Você

pode posicionar a caixa de texto em qualquer lugar do documento. Use a guia

Ferramentas de Caixa de Texto para alterar a formatação da caixa de texto da

citação.]

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RESUMO

O liberalismo foi a ideologia fundante e primordial para justificar e dirigir a plena

consolidação do modo de produção capitalista, tornando-se uma expressão

necessária no processo de estruturação e consolidação, transmitindo uma

visão de mundo que serviu para que o capitalismo fosse aceito como natural e

necessário. A ideologia liberal também sofreu adaptações com as mudanças

no capitalismo, contudo, os princípios fundantes desta ideologia permanecem.

Para compreender quais foram e quais são as justificativas da ideologia liberal

ao suposto fracasso escolar buscou-se a compreensão dos princípios e do

desenvolvimento do liberalismo, pois a partir da compreensão de como é

abordado na ideologia liberal os conceitos de igualdade, liberdade, democracia,

individualidade e propriedade, que se percebe que o fracasso escolar é

justificado como algo natural, de ordem individual. A saúde neste contexto

desempenha um papel importante de medicalização e patologização do

fracasso, desta forma o ―problema‖ não é analisado a partir do modo como a

sociedade está organizada econômica e socialmente e sim no individuo, sob

esta compreensão são várias as concepções a respeito do fracasso escolar,

mas em sua maioria estão relacionadas a questões patológicas, onde

educação e saúde justificam uma o fracasso da outra, tais concepções geram

mitos e preconceitos que servem para dissimular a lógica de produção e

reprodução da sociedade capitalista.

Palavras - chave: Capitalismo, liberalismo, fracasso escolar, saúde e

educação.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – categorização das pesquisas a partir dos temas abordados,

relacionados ao fracasso escolar......................................................................50

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SUMÁRIO

RESUMO.............................................................................................................7

LISTA DE TABELAS...........................................................................................8

INTRODUÇÃO.....................................................................................................9

SEÇÃO I: O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E DE DESENVOLVIMENTO

DO LIBERALISMO E SEUS REFLEXOS NA

EDUCAÇÃO......................................................................................................10

1.1 – O desenvolvimento do capitalismo e as fases do

Liberalismo.........................................................................................................11

1.2 – Neoliberalismo e os princípios

liberais................................................................................................................21

1.3 – Estado de Bem Estar Social, a crise do capitalismo e o

neoliberalismo....................................................................................................32

SEÇÃO II: A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE E AS

JUSTIFICATIVAS DO FRACASSO

ESCOLAR.........................................................................................................37

2.1 – Educação e saúde básicas como prioridades emergenciais........37

2.1 – Fracasso escolar: Um breve

histórico.............................................................................................................43

2.3- Fracasso escolar: Mitos e preconceitos...........................................51

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................61

REFERÊNCIAS.................................................................................................64

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Introdução

O interesse em estudar o fracasso escolar está relacionado ao processo

de formação acadêmica, ou seja, é resultado de um ensaio monográfico,

sustentado pelo referencial teórico – metodológico de Maria Helena Souza

Patto intitulado ―A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e

rebeldia‖, realizado no Curso de Pedagogia, da Universidade Estadual do

Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus Cascavel.Desde então, busco

compreender o fracasso escolar para além das questões intra-escolares

conforme busco desenvolver a análise neste trabalho.

Para compreender a constituição do suposto fracasso escolar, é

necessária uma contextualização histórica do processo de desenvolvimento do

liberalismo, pois a partir da compreensão desta ideologia, bem como do modo

de produção capitalista, é possível relacionar os princípios que norteiam a

ideologia liberal com as justificativas ao fracasso escolar.

Na seção I, é exposto o processo de consolidação do capitalismo e

como a ideologia liberal teve seus significados e conteúdos alterados de acordo

como este modo de produção se desenvolvia nas diferentes estruturas sociais.

Estes apontam para que a escola cumpra um papel estratégico para a

produção e legitimação da sociedade, bem como o consenso de que o fracasso

é um problema do indivíduo.

A crise do capitalismo de 1970 representa um marco, e com ela a

política neoliberal teve início na metade da década de 70 e se tornou

hegemônica na década de 80, no Brasil serviu de parâmetro para as reformas

a partir da década de 90 (FIGUEIREDO, 2006, p.47). No contexto da ideologia

da globalização, educação e saúde passaram a ocupar lugar de destaque nos

documentos dos organismos internacionais, visando enfrentar o atraso do país

e diminuir a pobreza dos indivíduos.

Na seção II aborda-se o processo onde a educação e a saúde básicas

emergem como prioridades, para depois relacionar o fracasso e seu

desenvolvimento no contexto histórico, observando como a educação e a

saúde numa relação cíclica vem justificando uma o fracasso da outra, e como é

forte a concepção de que as causas do fracasso escolar são de origem

patológica e individual.

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SEÇÃO I O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO LIBERALISMO E SEUS REFLEXOS NA EDUCAÇÃO. A compreensão do capitalismo e do seu desenvolvimento bem como do

liberalismo e dos princípios que o norteiam, é de suma importância para

compreensão das justificativas e das concepções sobre o fracasso escolar,

neste sentido essa seção vem contextualizar como o desenvolvimento do

capitalismo está relacionado com o liberalismo e como este justifica esse

modo de produção e o suposto fracasso escolar como um problema dos

indivíduos.

1.1 – O desenvolvimento do capitalismo e as fases do Liberalismo.

O desenvolvimento do modo de produção capitalista está ligado

diretamente à disseminação da ideologia liberal, como pontua Barbosa:

A história do pensamento liberal é a história do modo de produção capitalista e da ascensão da burguesia enquanto classe hegemônica (BARBOSA, 2000, p. 06).

O liberalismo ao estar relacionado com o capitalismo serviu, desse

modo, para justificar e dirigir a sua plena consolidação enquanto modo de

produção:

[...] o liberalismo surgiu como expressão historicamente necessária do modo de produção capitalista, não só na sua fase de estruturação e consolidação – na qual o liberalismo foi imposto como visão de mundo, através da qual a burguesia dirigiu o processo de luta contra a antiga ordem e de construção da nova – como também nas fases seguintes, de crescente expansionismo, nas quais a burguesia precisou de disponibilidade subjetiva para que o capitalismo fosse aceito como natural e necessário, identificado a progresso, desenvolvimento, democracia, liberdade, etc. Sob essa perspectiva o liberalismo não é só a primeira ideologia, mas é fundante da própria ideologia como categoria concreta da ordem capitalista (WARDE, 1984 p. 26 )

O desenvolvimento e penetração do capitalismo nas formações sociais

influenciaram e influenciam o conteúdo do liberalismo; Desse modo, o:

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Liberalismo não foi sempre o mesmo. Seus significados e conteúdos se alteraram, considerando, principalmente, os diferentes processos de penetração do capitalismo nas diferentes formações sociais (WARDE, 1984, p. 24-25).

A defesa da burguesia na luta contra a aristocracia era os direitos

individuais enquanto naturais:

Para que a luta da burguesia contra a aristocracia, em um primeiro momento, fosse vitoriosa, foi necessário destruir a ordem ‗imutável‘ que garantia os privilégios da nobreza, invocando os ‗direitos naturais‘ dos homens‖ [...]. Defendia-se que os direitos individuais antecedem ao Estado (BARBOSA, 2000, p. 07).

O liberalismo neste contexto tornava-se a bandeira revolucionária da

burguesia, instaurando um pensamento novo, com outros princípios:

O liberalismo constitui-se, assim, como um instrumento teórico de luta da burguesia contra a nobreza feudal e a ordem econômico-social então estabelecida. Fundamentava-se nos princípios da individualidade, da liberdade, da propriedade, da igualdade e da democracia os quais difundiam o ideal de que, no capitalismo, a sociedade é ―aberta‖ e, por isso, possibilitaria a ―mobilidade social‖ (CUNHA, 1979, p. 27).

No momento em que o capitalismo está em processo de expansão de

suas fronteiras e organização do mercado mundial, o liberalismo tem como

teses fundamentais o direito à liberdade, à igualdade, na natureza e igualdade

legal, o direito da propriedade, a segurança ou proteção do Estado, esta foi a

primeira fase, a fase do liberalismo clássico (WARDE, 1984, p.55). Neste

momento, a concepção ainda estava sendo constituída, onde as teses

específicas, da ideologia burguesa, iriam expandir-se como uma visão

universal das novas forças fundamentais do capitalismo (PEIXOTO, 1998,

p.116-118)

Um aspecto muito importante a respeito da primeira fase do liberalismo

como consolidação da ordem capitalista é que:

Do ponto de vista epistemológico, a ideologia liberal tende à visão apriorística do real. De um conjunto de princípios deriva o conhecimento dos fatos. Essa epistemologia se explica porque a realidade que os liberais estão buscando compreender está em constituição e está sendo constituída por uma classe à qual pertencem ou da qual são porta-vozes. Essa perspectiva não se opõe à da tendência analítica do século XVIII. O liberalismo desse século ainda é fortemente dedutivista. Afinal, a partir da razão absolutizada estão sendo construídos um novo homem e

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uma nova sociedade. As ciências físicas e matemáticas oferecem o grande modelo (WARDE,1984, p.58).

Esse novo homem a ser construído para essa nova sociedade moderna

teve a crença de uma organização racional da sociedade produzida

inicialmente pelos iluministas e foi desenvolvida posteriormente pelos liberais.

Tal crença contrariava a todo o irracionalismo, como uma forma de libertar o

novo homem dos mitos, da religião, da superstição e do arbítrio poder

(PEIXOTO, 1998,p.109 apud FREITAS, 2009, p. 21).

Os princípios do liberalismo foram sendo reestruturados e readaptados à

própria realidade apresentada pelo desenvolvimento da base econômica do

capitalismo nos diferentes países (PEIXOTO, 1998, p.113 – 114)

Durante o século XIX, a burguesia da primeira fase do capitalismo foi

perdendo o aspecto revolucionário. A burguesia se confrontava com forças

contra-revolucionárias, resultando em oposições e alianças de diferentes

matizes, incorporou reivindicações da classe trabalhadora, que apareceram

como concessões através das justificativas humanistas e pacifistas

(BARBOSA, 2000, P. 07-08). A burguesia do século XIX, depois de conquistar

o Estado estava politicamente satisfeita com o seu status quo, o desejo não era

transformá-lo e sim manter a concepção de ordem natural e estática, que

forneceria segurança e certeza (WARDE, 1984, p.42).

O positivismo contribuiu para este anseio, pois privilegiava a ordem

subjetiva, a sua concepção de Estado e suas relações com a sociedade civil,

fertilizaram o liberalismo[...] (WARDE, 1984, p.41-66-67); Desta forma:

O Positivismo é a assimilação mais fundamental que a ideologia liberal realizou e que a marcou indelevelmente, seja do ponto de vista da concepção de Estado, seja do ponto de vista epistemológico [...]. Em termos epistemológicos e em termos de concepção de estado e suas relações com a sociedade civil, o positivismo fertilizou o liberalismo, dando a ele fôlego para fazer frente à nova ordem política que emergia e para sobreviver no trânsito para o capitalismo pós-concorrencial. Em um aspecto e noutro, a concepção de educação positivista se revelou fundamental (WARDE, 1984, p. 41-66-67).

O liberalismo do final do século XIX e do inicio do século XX, passou por

revisões tanto no plano teórico, como no plano da organização do Estado, por

isso a denominação de liberalismo de transição decorre do momento de

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transição do capitalismo concorrencial para monopolista (WARDE, 1984, p.58).

O liberalismo, enquanto doutrina política, consolida e justifica esse momento:

É o liberalismo do final do século XIX e início do século XX, é o momento em que o capitalismo passa da fase concorrencial à fase monopolista. Os traços marcantes desse liberalismo são: ampliação dos direitos políticos aos não-proprietários e a conseqüente incorporação do tema da democracia; surgimento da legislação trabalhista e do direito a organização dos trabalhadores (sindicatos); redefinição do papel do Estado e suas relações com a sociedade civil. [...] Essa ampliação dos direitos políticos, típica da segunda fase do liberalismo, se dá de maneira contraditória. Por um lado, como produto da pressão políticas advinda dos não-proprietários, por outro, a burguesia amplia os direitos políticos, ao mesmo tempo em que cria mecanismos de educação das forças que a estão pressionando. Ao ampliar tais direitos, a burguesia o faz de maneira a manter o controle. [...] No liberalismo dessa etapa, o individualismo metodológico é substituído pela visão dos indivíduos organizados e representados como ‗entes coletivos‘ (PEIXOTO, 1998, p. 119-120).

Na segunda fase do liberalismo a relação entre Estado e sociedade civil

se diferencia da relação existente no liberalismo clássico:

A idéia originaria do liberalismo clássico de que é a sociedade civil que institui o Estado e a ele delega a tarefa de cuidar para que as regras contratuais emanadas da própria sociedade civil sejam por ela cumpridas, foi invertida. Diante da pressão da classe operária, há um movimento crescente na direção da ‗publicização (sociedade política como lugar do ‗público‘) da ordem privada (sociedade civil como lugar do ‗privado‘). Esse movimento pressupõe a subsunção (aparente) do individualismo possessivo aos interesses sociais. De que forma? Através da assimilação, à sociedade política (através de jurisdição competente), não do indivíduo isolado, mas dele nos ‗entes coletivos‘ [...] que o representam [...] De indivíduo idêntico a proprietário (seja lá do que for, mas que tenha uma mercadoria para vender) passou-se a indivíduo universal e múltiplo nas suas múltiplas participações sociais (sindicato, partido, agremiações corporativas, grupo religioso, etc.). A sociedade civil passou de espaço dos indivíduos em relações contratuais para espaço dos múltiplos agrupamentos e associações através dos quais os indivíduos se expressam e se protegem (WARDE, 1984 p. 63-64).

Diante disso, os anos de 1920 e 1930 foram expressivos para a

constituição do Estado de Bem-Estar (Welfare State), tanto a Primeira (1914 -

1918) quanta a Segunda Guerra Mundial (1939 -1945) permitiu a experiência

maciça da intervenção do Estado, tanto na indústria bélica quanto na

distribuição (gêneros alimentícios e sanitários). A crise de 1929, com suas

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tensões sociais criadas pela inflação e pelo desemprego, provocaram em todo

mundo ocidental forte aumento das despesas publicas para a sustentação do

emprego e das políticas dos trabalhadores (BOBBIO; MATTEUCCI;

PASQUINO, 2004, p. 417 apud FREITAS,2009. p.24). Desse modo,

[...] em fins do século XIX o Estado interventivo, cada vez mais envolvido no financiamento e administração de programas de seguro social. As primeiras formas de Welfare State visaram, na realidade, a contrastar o avanço do socialismo, procurando criar a dependência do trabalhador ao Estado, mas, ao mesmo tempo, deram origem a algumas formas de política econômica, destinadas a modificar irreversivelmente a face do Estado contemporâneo (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p.

403 apud FREITAS,2009. p.24 ).

Desta maneira, o sistema de proteção social ao indivíduo para assegurar

a complementação ou a reposição de renda se generalizou no fim da Segunda

Guerra Mundial (FALEIROS, 1991, p.19).

A ampliação dos direitos políticos, na construção do Estado Burguês, foi

uma resposta a pressão dos não-proprietários, fundamentalmente a classe

trabalhadora. Esta ampliação foi típica da segunda fase do liberalismo, ocorreu

de forma contraditória, pois a burguesia ampliou os direitos políticos, todavia,

criou mecanismos para a educação das forças que a pressionavam, os

trabalhadores, para mantê-los sobre controle (WARDE, 1984, p. 59).Conforme

mencionamos, pode-se considerar então como traços marcantes da segunda

fase do liberalismo:

(...) a ampliação dos direitos políticos aos não–proprietários e a conseqüente incorporação do tema da democracia; o surgimento da legislação trabalhista e do direito da organização dos trabalhadores (sindicatos); a redefinição do Estado e suas relações com a sociedade civil; a redefinição dos parâmetros teóricos pelo confronto a reação contra-revolucionária de teor romântico e ao pensamento socialista (WARDE, 1984, p. 58-59).

A terceira fase do liberalismo também está relacionada ao

desenvolvimento do capitalismo, em sua fase de ampliação do capitalismo

monopolista. Esta fase é conhecida como liberalismo multifacetado:

Portanto, não corresponde mais à etapa econômica concorrencial do capitalismo, e sim à etapa do capitalismo de reprodução ampliada sob as bases monopolistas, caracterizada, também, por um Estado interventor e planificador [...] A terceira fase do liberalismo é a implementação dos pressupostos elaborados na fase anterior, na qual o Estado se caracteriza como interventor e planificador

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da esfera econômica [...] e a democracia liberal é, nesse contexto, apresentada como a única forma de garantia da liberdade (PEIXOTO, 1998, p. 121-269).

Podem ser destacados quatro pontos na fase do liberalismo

multifacetado:

[...] inicialmente a introdução do tema ‗anti-totalitarismo‘, convertido em tema central [...] desse liberalismo que se rearticula predominantemente após a Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, a questão dos modelos de Estados que estão articulados teórica e praticamente; no seio desta questão, as lutas e as conquistas dos direitos sociais. Por fim, a questão epistemológica. (WARDE, 1084, p.84).

A expressão anti-totalitarismo, presente nesta fase demonstra que as

lutas operárias representavam perigo. Com o Estado Soviético constituído em

1917 com a Revolução Soviética, as lutas operárias poderiam desencadear

uma série de revoluções, que afetariam o equilíbrio aparente do sistema

capitalista internacional (PEIXOTO, 1998, p. 121).

Se no primeiro momento de rearticulação do liberalismo o Positivismo foi

a assimilação mais fundamental, de forma a tornar-se uma epistemologia

hegemônica; no segundo momento uma nova orientação também foi

necessária, sendo esta o neopositivismo, ao qual destaca-se o pensamento de

K.Popper. Diferente do positivismo, o neopositivismo não se tornou

hegemônico, devido às condições de vir a ser não serem as mesmas que o

positivismo encontrou no século XIX. O neopositivismo, dedicado à redefinição

das bases lógicas do conhecimento, é mais do que aparente reação ao

indutivismo positivista hegemônico, é a expressão do intento de

desmantelamento da lógica dialética (WARDE, 1984, p. 89).

Nesta fase multifacetada, o liberalismo precisava diferenciar-se tanto dos

regimes fascistas, quanto dos socialistas, tendo como ―suporte teórico‖

principalmente, os pensadores norte-americanos, dentre eles, John Dewey

(WARDE, 1984, p. 85). Desta maneira, a discussão a respeito da ampliação

democrática, tornou-se central nessa fase1 (PEIXOTO, 1998, p.123).

1 O Liberalismo – enquanto projeto de mundo - precisa dar respostas ao cada vez mais

formulação de pensamento mais adequada para que o mundo encontre saídas para as muitas crises em que está imerso. A universalidade do Liberalismo – não pode ser ofuscada pela apropriação conservadora que a burguesia faz de suas formulações quando torna-se contra-revolucionária, nos alerta o autor. Esse momento seria aquele posterior à queda do Antigo Regime quando se consolida o poder burguês que limita seu projeto à defesa do direito à

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Dewey defendia as idéias de liberdade, de individualidade e de

inteligência livre, para ele:

Do ponto de vista humano, a crise do liberalismo foi um produto de determinados acontecimentos históricos. Assim que os princípios liberais foram formulados como verdades eternas, eles se fizeram instrumentos de interesses adquiridos em oposição a novas mudanças sociais, (...) Todavia, as idéias de liberdade, de individualidade e de inteligência livre têm valor duradouro, mais necessário hoje do que nunca. A tarefa do liberalismo é a de afirmar esses valores, de modo a mostrar sua importância intelectual e prática, em face das atuais forças e necessidades. (DEWEY, 1970, p. 53).

Para Dewey, a liberdade, a individualidade e a inteligência livre, só

poderiam se configurar como tal, se a perspectiva fosse o Bem Comum, Dewey

entende que desenvolvimento só é possível enquanto desenvolvimento social.

E, o capitalismo produziu riqueza e desenvolvimento humano, mas também

produziu miséria e exclusão porque permitiu a concentração daquela riqueza.

O problema humano contemporâneo a Dewey não é, a seu ver, o capitalismo,

mas a concentração, que é moralmente condenável. A saída é dispensar toda

forma de violência e convencer os homens a pautarem-se pelo Bem Comum -

essa proeza caberia à educação. A coletividade deve ser a referência das

vontades educadas que devem estabelecer um controle social da propriedade,

do Estado e também da ciência 2(BORGES, 2006, p. 50).

Desta maneira, os ideais de educação de Dewey, serviram para a

redefinição desta escola, que atendesse as exigências da fase do capitalismo

monopolista:

No final do século XIX e início do século XX, com o crescimento da organização dos trabalhadores e a conquista que representava o ―socialismo real‖ na União Soviética, tensionaram a burguesia a fazer algumas concessões no plano educacional, à classe trabalhadora. A crise do

propriedade e do direito ao voto – estratégias da conservação (BORGES, 2006, p.

49).ameaçador movimento socialista que cresce em toda a Europa, e dá indícios de organização dos partidos comunistas nas periferias do capitalismo, com o auxílio da então vitoriosa URSS. Dewey entende que o Liberalismo é passível de crítica, mas não no que tange às questões universais, e em sendo universal, este pensamento é a 2 Sobre o conceito de coletividade em Dewey ver FREITAS,C.R. O Escolanovismo e a

Pedagogia Socialista na União Soviética no início do século XX e as concepções de Educação Integral e Integrada.Cap I. Subitem 1.2 As preocupações de Dewey com um ―renascente liberalismo‖ e a sua proposta de Educação Integral e Integrada.

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capitalismo, da fase da livre concorrência, e da ideologia liberal contribuíram para as redefinições do projeto de domínio da burguesia. Nesse quadro, inclusive, a escola para a burguesia foi repensada, visto que a escola humanista, do período anterior, não estava respondendo ás necessidades de formação do tipo de dirigente que a fase do capitalismo monopolista passava a exigir (FREITAS, 2009.p. 31).

E esta escola repensada para atender as necessidades de formação da

fase do capitalismo monopolista, se constituiu com o movimento pela escola

nova:

Trata-se do movimento pela escola nova, composto por várias correntes do pensamento, mas que se aglutinaram em torno de alguns princípios, tais como o de que a escola deveria ser pública, gratuita e única. Esse movimento levou em conta reivindicações dos trabalhadores, como a questão da democratização do acesso ao saber, alargando ao atendimento escolar, e da unidade do ensino teórico e prático, definindo o novo principio pedagógico com base no trabalho produtivo. [...] O novo dessa proposta consiste justamente na inclusão de reivindicações do movimento operário; mas ela também mantém o velho. A burguesia procurará estruturar mecanismo para manter a ordem social dominante, que divide a sociedade em dirigentes e dirigidos [...] o movimento da ‗escola nova‘, apresentando os fundamentos para uma organização escolar no contexto do capitalismo monopolista, passou por muitas transformações, desde as suas idéias originais (DORE SOARES, 2000, p. 25-26 ).

Todo o movimento escolanovista que buscava então a democratização

do acesso ao saber, tendo incorporado o tema trabalho, foi à expressão da

terceira fase do liberalismo Embora suas manifestações fossem diversificadas,

unia-se ao objetivo de manter a ordem social classista, hierarquizada e

desigual, tal ordem estava ameaçada pelo crescimento dos conflitos sociais e

políticos, mantendo a estrutura seletiva e discriminadora da escola. (DORE

SOARES, 2000 p.206-207).

Este processo discriminatório e seletivo expressa o dualismo interno das

propostas escolanovistas. A proposta de uma escola ―ativa‖, unificada, onde as

aptidões e interesses individuais fazem com que os alunos retirem da escola o

melhor, contribui para justificar o fracasso, pautando-se na idéia de que se não

se aprende é porque não tem as aptidões necessárias:

O principal ideal liberal de educação é o de que a escola não deve estar a serviço de nenhuma classe, de nenhum privilégio de herança ou dinheiro, de nenhum credo religioso ou político. A instrução não deve estar reservada às elites ou

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classes superiores, nem ser um instrumento aristocrático para servir a quem possui tempo e dinheiro. A educação deve estar a serviço do indivíduo, do ‗homem total‘ liberado e pleno. A escola assim preocupada com Homem independente da família, da classe ou religião que pertença, irá revelar e desenvolver, cada um, seus dotes inatos, seus valores intrínsecos, suas aptidões, talentos e vocações (CUNHA, 1979, p. 34-35).

Dewey apontava para a necessidade da reformulação do liberalismo,

prenunciando uma crise decorrente da descrença em seus princípios, havendo

uma inversão da idéia progressista do liberalismo para uma concepção

conjuntural e ultrapassada. (PEIXOTO, 1998, p.125-127 apud FREITAS, 2009,

p. 36).

Neste sentido, o liberalismo não poderia reverter seu triunfo na negação

dos valores fundamentais formulados em sua origem. (PEIXOTO, 1998, p.

137).

[...] os valores de inteligência livre, da liberdade, da oportunidade de cada indivíduo de realizar suas potencialidades são preciosos demais para serem sacrificados a um regime de despotismo, especialmente quando o regime, em larga medida, é apenas o agente de uma classe econômica dominante em sua luta para conservar e estender os ganhos que acumulou às custas de uma genuína ordem social e de sua unidade e desenvolvimento. O liberalismo tem de se erguer de novo para formular os fins a que sempre se devotou em termos dos meios que são relevantes na situação contemporânea (DEWEY, 1970, p. 58-59).

Para enfrentar a crise, Dewey defendia um liberalismo renascente3 e

isso ficou expresso em sua teoria educacional, onde o método está

fundamentado na ampliação da democracia, pois esta diferenciaria o

liberalismo do fascismo e do socialismo, para Dewey, ambos baseavam-se na

aniquilação da democracia (PEIXOTO, 1998, p. 141-146).

Esta democracia seria uma possibilidade de resolver os conflitos sem

ser necessário o uso da força:

O conflito, no que concerne à democracia, a que nos liga a nossa história, e com a qual estamos comprometidos, está dentro de nossas próprias instituições e atitudes. Só pode ser ganho pela extensão da aplicação dos métodos democráticos, métodos de consulta, persuasão, negociação, comunicação, inteligência cooperativa, na tarefa de fazer nossa própria política, indústria, educação, nossa cultura em geral, uma servidora e

3 Expressão do próprio autor.

20

uma manifestação em evolução das idéias democráticas (DEWEY, 1970, p. 260).

O método da democracia para Dewey resolveria os problemas sociais,

melhorando a sociedade e corrigiria todas as distorções pela via da educação

(WARDE, 1984, p. 62). Tanto que para isso era necessária a universalização

da educação, porque este processo de democracia considerava-se um método

de inteligência organizada que teria como questões fundamentais a

democratização da ciência, a democracia para resolver os problemas sociais e

no liberalismo renascente, a educação era fundamental, pois seria esta que

mudaria os hábitos e os pensamentos, de acordo com os princípios liberais e

proporcionaria uma efetiva ação dos indivíduos no processo de mudança de

instituições (PEIXOTO, 1998, p. 138 – 139).

O ideal deweyano de educação visava uma escola capaz de equalizar a

sociedade, com isso, a desigualdade social produzida pelo capitalismo seria

sanada pela via educacional que levaria até a igualdade de direitos e não a

igualdade material :

Devem assegurar-se as facilidades escolares com tal amplitude e eficácia que, de fato, e não em nome somente, se diminuam os efeitos das desigualdades econômicas e se outorgue a todos os cidadãos a igualdade de preparo para suas futuras carreiras (DEWEY, 1979, p. 105 apud FREITAS, 2009. p. 46).

Percebe-se, então, que na segunda e terceira fase do liberalismo,

democracia e Estado ganham ênfase, a primeira como tema central e o

segundo com uma redefinição do seu papel:

Nessas duas fases do liberalismo (segunda e terceira), o tema da democracia constituía-se em tema central e vinha revestido de uma redefinição do papel e composição do Estado, ampliação dos direitos sociais e de cidadania burguesa e pela idéia de um planejamento econômico e político de mais longo prazo, que pudesse manter o mundo capitalista, segundo as regras de sua fase monopolista, por meio das quais se dariam a acumulação do capital e a manutenção do domínio econômico, político e social dos monopólios internacionais, mediante a consolidação da hegemonia burguesa em cada país (PEIXOTO, 1998, p. 269-270).

Neste contexto, o Estado passa a ter a característica de interventor e

planificador, numa resposta às exigências do capitalismo:

21

O papel atribuído ao Estado, a saber, de interventor e planificador, foi uma exigência da reprodução ampliada do capital. No entanto, alguns teóricos do liberalismo ainda insistiam na crítica ao Estado-providência, ‗tido como destruidor da liberdade dos cidadãos e da competição criadora, bases da prosperidade humana‘ (MORAES, 1997, p. 16 apud BARBOSA, 2000, p. 09).

A educação assume um papel fundamental tanto para o processo

ideológico, quanto para os interesses estatais:

[...] Assim, o Estado e a educação estatal estão constituídos não para preservar os interesses comuns dos seres humanos que não a possuem, a propriedade privada dos meios de produção, mas para garantir que estes sobrevivam em certas condições e que possam vender a sua força de trabalho, única fonte de riqueza, para os proprietários dos meios de produção, para os possuidores do capital e, se possível, dentro de uma ordem política que se convencionou denominar democracia (SANFELICE, 2005, p.179).

O escolanovismo surge então como expressão do pensamento liberal na

educação, onde a escola assume a função política de manter a ordem social

responsabilizando o indivíduo. Reforçando os princípios liberais presentes em

todas as fases do capitalismo e que permanecem também no neoliberalismo,

como veremos a seguir.

1.2 - O Neoliberalismo e os princípios liberais.

Frederick August von Hayek ( 1899 – 1922) com sua obra ―O caminho

da Servidão‖ , escrita em 1944, lança um grito de alerta contra os movimentos

políticos tanto da direita quanto da esquerda, que expandiam-se na Europa

Ocidental l, apontando que a tendência de substituir a ordem espontânea e

complexa do mercado por uma ordem feita pelo homem e administrada por um

sistema planejado, resultava em pobreza e servidão:

Teóricos de diversas correntes das ciências sociais, como Anderson (1995), Fiori (1997) e Wainwright (1998), entre outros, não têm dúvidas em afirmar que o neoliberalismo foi gestado sobretudo na Europa Ocidental, no imediato segundo pós-guerra. E também não hesitam em definir um determinado trabalho teórico como seminal em relação a esse renascimento liberal. Pois, há mais de 60 anos (mais

22

precisamente, em 1944), vinha à luz, na Inglaterra, o livro O caminho da servidão, de Friedrich August von Hayek, notório economista integrante da Escola Austríaca, radicado em Londres havia já alguns anos. De modo sucinto, pode-se considerar essa obra como um ataque veemente a quaisquer dispositivos estatais que implicassem limites ao livre funcionamento dos mecanismos de mercado. Afinal tais dispositivos representavam, para o autor, uma terrível ameaça não só às liberdades econômicas dos indivíduos, como também às suas próprias liberdades políticas. O alvo imediato e expresso de Hayek era, naquele momento, a social-democracia européia, particularmente o trabalhismo inglês; e, de forma igualmente imediata, porém não tão expressa assim, o pensamento econômico keynesiano, então em firme ascensão ( VIDAL, 2006, p.74 - 75 ).

Nesta obra Hayek antecipava suas idéias contra o Estado de Bem-Estar

social. A partir de 1960 Hayek, Milton Friedman (...) e muitos outros começam a

ganhar espaço nas universidades norte–americanas; sendo que o momento

decisivo da evolução do neoliberalismo foi à passagem do campo da teoria

para o campo da política, com a vitória eleitoral de Margaret Thatcher, em 1979

na Inglaterra, de Ronal Reagan, em 1980, nos Estados Unidos e Helmut Kohl,

em 1982, na Alemanha. Com isso as teorias foram retraduzidas e se

transformaram num primeiro momento em políticas públicas em torno do tripé

básico: desregulação, privatização e abertura comercial, sendo consagradas

depois por organizações multilaterais que se transformaram, na prática, no

núcleo duro de formulação do pensamento das políticas neoliberais voltadas

para o ajustamento econômico da periferia capitalista, fazendo parte das

recomendações e condicionantes do FMI, BIRD, etc. (FIORI, 1997.p, 216-217.)

A fundamentação teórica do neoliberalismo não difere muito do

liberalismo clássico, o individualismo exacerbado; o apego desmedido às

liberdades individuais, sobretudo às econômicas, com destaque para o

princípio da inviolabilidade da propriedade privada; a aversão a um tipo

específico de igualdade (substantiva e não apenas formal ou jurídica), ainda

que relativa deliberadamente produzida por determinada intervenção estatal; a

apologia a uma ordem de intensa competição social, baseada numa suposta

livre concorrência em um mercado igualmente livre; a visão do Estado como

um ‗mal necessário‘, donde a decorrência lógica é o ideal do Estado mínimo; a

recusa à política enquanto possível contraponto a uma suposta racionalidade

econômica superior (VIDAL,2006, p. 72 - 73 ).

23

O surgimento do neoliberalismo simbolizou uma aguda reação

ideológica contra certos mecanismos da intervenção estatal, que almejavam o

planejamento da economia e a homogeneização nas sociedades nacionais do

chamado capitalismo avançado. Trata-se de um renascimento do pensamento

liberal mais sofisticado (VIDAL, 2006, p. 73)

O que o neoliberalismo formula é um mundo formado por indivíduos

competitivos a fim de maximizar os lucros, por tal que a economia deveria ser

de livre mercado, pois a economia seria o resultado da livre concorrência entre

os indivíduos. O mercado deve ser o único alocador de salários e capitais e

não o Estado, isso levaria ao projeto de reestruturação do Estado, visando

privatizações em massa, a redução de impostos e tributos sobre o capital e o

desmanche do chamado Estado de bem-estar social. (RIBEIRO, 2000, p. 4).

Pode-se destacar como diferenças fundamentais entre o liberalismo

clássico e o neoliberalismo, primeiramente: O individualismo liberal

apresentado atualmente tenta se formalizar como metodológico, com caráter

científico, tentando alcançar uma sofisticação formal e matemática. Essa

cientificidade se apresenta como suporte às políticas de recorte neoliberal

amplamente aplicadas e recomendadas desde 1970. A segunda diferença diz

respeito às idéias e políticas se combinaram de forma indiscutível no período

de 70, 80 até 90 com as transformações políticas materiais que o capitalismo

vivenciava desde a crise de 1973, onde muitas vezes era à força das idéias, da

ideologia e da teoria orientando as políticas, abrindo portas para o avanço da

desregulamentação generalizada dos mercados através do mundo, isto

resultou no avanço expansivo do capital que adubou o terreno para a chegada

das idéias neoliberais. c) A derrota comunista e o avanço das idéias e políticas

dos novos liberais para o Leste Europeu e países da Ásia, deram ao

pensamento neoliberal condições que o liberalismo jamais gozou: uma

ideologia que consegue ser quase universalmente hegemônica. d) O novo

neoliberalismo aparece como uma vitória que legitima uma vingança selvagem

do capital contra a política e contra os trabalhadores. Justamente porque essa

vitória acontece após uma época onde as políticas publicas e as lutas dos

trabalhadores conseguiram em conjunto uma obra institucional, complexa e

24

impressionante que foi o Welfare State4, contra esta obra que insurge o

fundamentalismo neoliberal ( FIORI, 1997, p, 215.).

Pode-se considerar que a idéia motora dos liberais continua sendo a

mesma como pontua FIORI:

De Adam Smith a qualquer dos contemporâneos, a idéia motora, a força utópica do liberalismo – pode tratar-se de uma utopia pouco generosa, mas é uma utopia -, as suas teses e propostas centrais seguem sendo, a busca da despolitização total dos mercados e a liberdade absoluta de circulação dos indivíduos e dos capitais privados. Estas idéias foram anunciadas de maneira concisa e absolutamente transparente por Adam Smith, antes que o século XVIII terminasse. Não têm nada de novo, portanto. Em segundo lugar, antes como agora, segue sendo feita pelos neoliberais a mesma defesa intransigente do individualismo. Em terceiro lugar, antes como agora, o tema da igualdade social apareceu no discurso dos liberais, assim como dos neoliberais, apenas como igualação de oportunidades ou condições iniciais igualizadas para todos. (FIORI, 1997. p 212)

A igualdade defendida no liberalismo é a igualdade jurídica, onde as

condições de partida deveriam ser iguais aos indivíduos, as diferenças e

competências de cada um garantiriam resultados legítimos e necessários para

a própria dinâmica da sociedade democrática. (FIORI, 1997, p. 212).

A igualdade de oportunidades, a liberdade, a democracia, a propriedade,

são princípios liberais, que contribuem para justificar esta ideologia.

O neoliberalismo defende a idéia de que o mercado, e não o Estado

deveria ser o único alocador de salários e capitais, advoga a

desregulamentação total, a derrubada das barreiras comerciais e a livre

circulação de bens, de trabalho e de capital. É parte essencial do projeto

neoliberal uma reestruturação do Estado, visando privatizações em massa, a

redução de impostos e tributos sobre o capital e o desmanche do chamado

Estado de bem-estar social5. (RIBEIRO, 2000, p. 5).

O mercado numa ação espontânea deveria ocasionar um equilíbrio entre

todos os indivíduos, nele todos poderiam tirar vantagens pelas vias da livre

concorrência e livre escolha. Isso nunca aconteceu, ao contrário, o mercado é

4 Grifos do autor. Estado de Bem-estar social.

5 Considerando que o Estado de Bem Estar Social não se consolidou em todo o mundo, nos países

periféricos, por exemplo, ele não se efetivou. Ver

25

o mecanismo que mantém a desigualdade de condições, para solucionar estas

desigualdades o Estado Liberal intervêm com medidas sociais, as políticas

sociais, cada vez mais ligadas aos interesses mercantis (FALEIROS, 2007. p,

47). Desta forma o Estado:

[...] é assim considerado, como o ―agente principal‖ que age pela sociedade civil, para tornar acessível esse mínimo para ―proteção‖ material dos indivíduos. Essa concepção paternalista do Estado se traduz por uma série de medidas para possibilitar a acessibilidade a esse mínimo: eliminação das barreiras geográficas pela descentralização; das barreiras financeiras pelas transferências; e das barreiras técnicas pela racionalização. O Estado se apresenta como o protetor dos fracos, como meio de satisfazer as necessidades sociais, pelas medidas legais que compensem as fraquezas dos indivíduos, pela introdução dos direitos sociais. Esta compensação se justifica em nome de uma justiça distributiva, da equidade ou igualdade de oportunidades. (...) (FALEIROS, 2007. p. 49).

E a igualdade de oportunidades faz parte dos princípios liberais, bem

como o princípio da individualidade, o liberalismo aceita e legitima a sociedade

de classes, rejeita os estratos sociais congelados, mas não a divisão da

sociedade em classes. Com o princípio da liberdade que se associa ao

individualismo, pleiteia-se a liberdade individual ao qual decorrerá a liberdade

econômica, política, intelectual e religiosa. Com a liberdade combatem-se os

privilégios conferidos a certos indivíduos por nascimento ou credo. O individuo

torna-se tão livre quanto o outro que pode atingir uma posição vantajosa em

virtude dos seus talentos e aptidões. É defendido também o princípio da

igualdade, esta se tratando da igualdade jurídica-politica, ou seja, a igualdade

de direitos entre os homens, igualdade civil. E a propriedade, outro principio

liberal, é concebida como um direito natural do individuo, por repudiar o

privilégio por nascimento e sustentar que o trabalho e o talento são os

instrumentos legítimos de ascensão social e de aquisição de riqueza, qualquer

individuo que trabalha e tenha talento, pode adquirir propriedade e riquezas

(CUNHA, 1979, p. 29 – 31).

Todavia, o principio considerado como expressão dos demais no âmbito

político é o princípio da democracia:

A democracia seria a expressão dos princípios da individualidade, da liberdade e da igualdade no âmbito da política. Na sociedade democrática liberal os direitos jurídico-políticos, integrantes da cidadania, manifestam-se, por exemplo, na possibilidade de participar como eleitor. Na sociedade

26

democrática liberal o envolvimento de diferentes segmentos da comunidade está implícito no discurso de que o Estado deve dar oportunidades de participação e decisão nas ações, numa relação que supõe ―compromisso-participação-tomada de decisão-exercício da cidadania‖ (FIGUEIREDO, FREITAS, 2008, p.216-217).

A educação neste contexto servirá para efetivar esta democracia:

A educação, neste contexto, torna-se um recurso estratégico para efetivar as promessas da democracia liberal. [...] Em nome do multiculturalismo, os desiguais receberão uma educação que os manterá em desvantagem frente às classes favorecidas. Assim, o sistema educacional preconizado transforma a desigualdade de tratamento dos cidadãos, conforme a diferença de sua posição social, em política de Estado (LEHER, 1998, p. 32-220).

Neste âmbito, há uma relação entre a educação, o Estado e as políticas

educacionais na sociedade capitalista:

Na sociedade capitalista, o Estado, as políticas sociais, a educação e a ideologia liberal atribuem as desigualdades dos indivíduos ao esforço e ao talento de cada um. Desse modo, a ―[...] ‗abertura de oportunidades‘ aos desiguais significa a aceitação da desigualdade e não sua eliminação‖ (FALEIROS, 1980, p. 22-24).

A educação é levantada como uma bandeira para a solução dos

problemas sociais pelos organismos multilaterais de financiamento:

[...] a educação é percebida cada vez mais, e com razão, como um elemento vital para o desenvolvimento econômico, a redução da pobreza e a diminuição das desigualdades de renda. (...) Cada vez mais a educação está sendo percebida como o principal catalisador do desenvolvimento (BID, 1998, p. 01-02).

A bandeira da Educação resgata o mito liberal da escola como

instrumento para construção de uma sociedade ―justa‖ (BARBOSA, 2000, p.

45).

Esta sociedade justa seria possível, já que se trata de uma sociedade

democrática. Contudo, se as oportunidades de participação e decisão nas

ações, no exercício da cidadania não se consolidam efetivamente, esta

democracia é apenas formal; pois entendemos que:

[...] Sociedade democrática é aquela na qual ocorre real participação de todos os indivíduos nos mecanismos de controle das decisões, havendo, portanto real participação deles nos rendimentos da produção. Participar dos rendimentos da

27

produção envolve não só mecanismos de distribuição de renda, mas, sobretudo níveis crescentes de coletivização das decisões principalmente nas diversas formas de produção. Fora disso, a participação é formal, ou até mesmo passiva ou imaginária, o que é mais desastroso (VIERA 1992, p.13).

Esta sociedade seria possível com a superação da contradição entre

capital e trabalho, com isso se realizaria a democracia política, social e

econômica (VIEIRA, 1992, p. 71). Na contramão da idéia de uma democracia

plena a democracia liberal descobre sua lógica a partir do conceito de

competitividade:

Portanto, na sociedade capitalista, a democracia liberal ―descobre sua lógica na lógica da sociedade competitiva, na qual o mercado se eleva como avaliador das capacidades, dos empenhos, dos interesses‖ (VIEIRA, 1992, p. 71).

Esta questão da competitividade gera nos indivíduos a idéia de que

havendo oportunidades, eles são os responsáveis pelo desenvolvimento de

suas aptidões, bem como do seu sucesso ou fracasso:

Portanto, nessa perspectiva apologética, o presente é caracterizado pelas novas tecnologias que configurariam a sociedade do conhecimento, na qual o futuro dos indivíduos seria determinado pela sua qualificação. Aqueles que fizerem as escolhas corretas, conforme as exigências do mercado, poderão se inscrever em relações de trabalho estáveis; já os demais terão que continuar a buscar, no sistema educacional, a qualificação exigida pelo mercado; os que, ainda assim, permaneceram desempregados, apenas estariam comprovando a sua incapacidade de fazer escolhas racionais (LEHER, 1998, p. 187-188).

Desta maneira, os princípios do liberalismo são disseminados na

educação, justificando e afirmando a sociedade capitalista. A democratização

do acesso à escola seria o caminho para a democratização da sociedade:

É pois, a partir dos talentos ou vocações individuais (que a escola tem a capacidade de despertar e desenvolver) que o indivíduo adquirirá sua posição, isto é, que o indivíduo ocupará na sociedade a posição que seus dotes inatos e sua motivação determinarem e, assim, de acordo com suas próprias aptidões, irá encontrar seu lugar na estrutura ocupacional exigente. A educação liberal não considera os alunos ligados às classes sociais de origem, não os considera privilegiados ou não, mas trata-os igualmente, procurando habilitá-los a participar da vida social na medida e na proporção de seus valores intrínsecos. Desta forma, ela pretende contribuir para que haja justiça social, levando a sociedade a ser hierarquizada com base no mérito individual. Donde se conclui que a ascensão ou

28

descensão social do indivíduo estará condicionada à sua educação, ao nível de instrução, e não mais ao nascimento ou à fortuna que dispõe. Isto porque o talento está no indivíduo, independente do status ou condição material (CUNHA, 1979, p. 34-35).

O sistema escolar irá desta maneira, discriminar e ao mesmo tempo

dissimular esta discriminação:

A discriminação se faz pela exclusão de certas classes sociais do sistema escolar (Tipo I), pela destinação de 'partes' distintas do sistema escolar, com ensino de conteúdo específico para cada classe (Tipo II) ou, então, através de um sistema educacional unificado e homogêneo, mas de distintos padrões de qualidade conforme as classes sociais que freqüentam cada escola ou cada grupo de escolas (Tipo III). Esta última forma é a que permite o exercício da função de discriminação social de forma mais eficaz justamente porque a dissimula mais; as diferenças de escolaridade entre as crianças e jovens das diversas classes passa a ser explicada por razões individuais como 'falta de habilidade', falta de 'potencialidade inata', 'falta de motivação' etc. (CUNHA, 1979, p. 168).

O discurso ideológico da educação como mola propulsora vem sendo

propagado já há algum tempo:

O discurso da educação como panacéia para todos os males é muito antigo. Ele nasceu com a sociedade capitalista, como parte de um discurso ideológico produzido para atribuir à escola um papel central no cuidado com a infância, com a transmissão dos saberes considerados socialmente relevantes, com a formação do cidadão e com a qualificação do trabalhador. Apareceu já com essa característica geral, abstrata, a-histórica, como se essa escola sempre tivesse existido, cumprindo um papel central no desenvolvimento e na vida dos indivíduos. No Brasil isso não foi diferente, pois desde o Império esse repetitivo discurso de que a ‗educação é fundamental para... ‘sempre esteve presente, sendo acionada para justificar diferença de desenvolvimento econômico e social, em comparação com os chamados países em desenvolvimento (LOMBARDI, 2006, p. 01 apud FIGUEIREDO; FREITAS 2008.p .219).

A relação entre a educação e a saúde, proposta nos documentos do

Banco Mundial, reforçam a ideologia liberal, atribuindo aos indivíduos os

problemas sociais como o desemprego, o analfabetismo, a pobreza dentre

outros:

Assim, ―a educação e a saúde têm justificado uma o fracasso da outra, sempre transformando as grandes questões sociais em individuais, isentando de responsabilidade o modelo de desenvolvimento...‖ [...] Destaca-se, por exemplo, o seguinte

29

raciocínio circular: ―É preciso ser sadio para ter boa aprendizagem‖. ―É preciso ser culto (não ignorante) para ter saúde‖ (COLLARES; MOYSÉS, 1989, p. 73).

A educação seria de suma importância à saúde e vice-versa:

A educação (...) ajuda a reduzir a pobreza aumentando a produtividade do trabalho dos pobres, reduzindo a fecundidade e melhorando a saúde, e capacita as pessoas de habilidades que necessita para participar plenamente na economia e na sociedade. (...) Grande parte do crescimento (...) se deve ao melhoramento da qualidade da força de trabalho, o que inclui mais educação e melhor saúde (...) A educação é um instrumento de promoção do crescimento econômico e de redução da pobreza. É o elemento fundamental da estratégia aplicada pelo Banco Mundial para reduzir a pobreza mediante: a) uma maior utilização produtiva do trabalho, que é o bem principal dos pobres, e b) a prestação de serviços sociais básicos aos pobres. O investimento na educação leva a acumulação de capital humano, que é fundamental para aumentar o nível de receita e conseguir um crescimento econômico sustentado. (...) A educação contribui com o crescimento econômico através do incremento da produtividade individual resultante da aquisição de habilidades e atitudes, e através da acumulação de conhecimentos. (...) Para haver crescimento é preciso investir não somente em capital humano através da educação, da saúde e da nutrição, se não também em capital físico (BANCO MUNDIAL, 1995, p. xv-03-09).

As áreas de educação e saúde articulam-se, a criança tem problemas na

escola, logo é encaminhada para a área da saúde para diagnosticar uma

doença orgânica, centrada na criança6, bem como os problemas de saúde são

causados pela ignorância de cada um individualmente (COLLARES; MOYSÉS,

1989, p. 73- 74 Grifos nossos).

Se existe igualdade de oportunidades, aquele que fracassa, só fracassa

por fatores individuais: doença ou falta de esforço, o sistema é perfeito e

funcional, fracassa aquele que não se ajusta, ou seja, os disfuncionais

(COLLARES; MOYSÉS, 1989, p. 74).

Faleiros (1990) aponta também para esta questão:

[...] o trabalho é o critério de vida normal para viver bem. Os que não conseguem, com o salário que ganham obter essa vida normal, vêem-se censurados socialmente pelas próprias políticas sociais, que atribuem, então, ao indivíduo, seu fracasso. [...] No domínio da saúde, por exemplo, a doença passa a ser atribuída à falta de higiene, à educação deficiente,

6 O fato de estar centrada na criança aponta para a questão da individualização da

sociedade capitalista, onde o indivíduo é o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso.

30

ao mau comportamento do indivíduo que bebe ou come de forma indevida (FALEIROS, 1980, p. 58.).

O discurso ideológico da igualdade de oportunidade, da eliminação das

discriminações, da proteção aos fracos, da criação de novos direitos sociais é

expressão manifesta da ideologia liberal. (FALEIROS, 2007, p.53).

Deve se considerar que as idéias motoras do liberalismo, sejam do

liberalismo clássico ou dos contemporâneos liberais são as mesmas:

Primeiramente porque se busca antes de tudo: ‗o menos de Estado e política possível‘. Isto é, desde os pais pioneiros do liberalismo, a proposta que foi, e segue sendo, ‗a busca da despolitização total dos mercados e a liberdade absoluta de circulação dos indivíduos e dos capitais privados‘. Em segundo lugar, antes como agora, segue sendo feita pelos neoliberais a mesma ‗defesa intransigente do individualismo‘. Em terceiro lugar, antes como agora, o tema da igualdade social apareceu no discurso dos liberais, assim como dos neoliberais, apenas enquanto ‗igualação de oportunidades ou condições iniciais igualizadas para todos‘. O liberalismo, no século XVIII, como no século XIX e no século XX, sempre foi radicalmente contrário à busca de um maior grau de igualdade entre os indivíduos e grupos sociais, por meio de uma intervenção pública orientada pelo princípio da universalidade ou da igualação dos resultados. O liberalismo sempre defendeu que as condições de partida deveriam ser iguais; a partir daí, as diferenças e as competências inevitavelmente gerariam distintos resultados, perfeitamente legítimos e necessários para a própria dinâmica da sociedade capitalista (FIORI, 1997, p. 212).

Nesse sentido, considerar as políticas sociais, dentre elas a educação e

a saúde, à revelia do contexto econômico, político e social, reforça o caráter

ideológico do discurso que supostamente as valoriza. Assim, quanto menos se

investe em educação e saúde mais força ganha o mito, político e

ideologicamente desmobilizador, de que elas são responsáveis pela situação

de pobreza do indivíduo e do país. O sucesso do discurso ideológico, por

exemplo, da educação e da saúde como supostos agentes do desenvolvimento

e da redução da pobreza reside justamente na sua capacidade de dissimular

as suas funções e aparentar independência em relação às condições

contextuais a que serve. Portanto, a crença no caráter redentor da educação e

da saúde, alimentada pelo discurso dominante, em âmbito nacional e

internacional, dissimula as contradições e as relações internas de dominação,

próprias ao modo de produção capitalista, e alimenta o mito do crescimento

econômico e desenvolvimento social (FIGUEIREDO, 2006).

31

Com isso, à escola cabe ensinar os conhecimentos básicos que

contribuem para administração da pobreza, sustentando o mito de que o nível

de escolarização garante o nível econômico. A educação e a saúde auxiliarão

na melhoria de renda dos pobres, contribuindo então para o desenvolvimento

social e econômico, sustentando o trabalho como maior bem:

A melhoria das condições de saúde contribui para o crescimento econômico de quatro maneiras: reduz as perdas de produção causadas por adoecimento do trabalhador; permite o uso de recursos naturais que estiverem total ou parcialmente inacessíveis por motivo de doenças; aumenta o número de crianças matriculadas em escolas e as torna mais aptas para os estudos; e libera recursos que, em vez de serem gastos com tratamento, podem ter outra destinação. (...) Entre as medidas mais importantes que os governos podem tomar para melhorar a saúde de seus cidadãos estão, portanto, as políticas econômicas conducentes ao crescimento sustentado. Dessas políticas econômicas, aumentar a renda das pessoas carentes é a mais eficaz para melhorar a saúde. (...) A redução ou alívio da pobreza justifica muito bem a intervenção pública na área da saúde. Para que se consiga reduzir a pobreza são necessárias duas estratégias de igual importância: promover a utilização do bem mais importante dos pobres - o trabalho - e aumentar o seu capital humano, mediante o acesso a atendimento médico, educação e nutrição básicos (BANCO MUNDIAL, 1993, p. 19-20-08-58.).

O discurso liberal desta maneira vem consolidando e justificando os

interesses do capital, apresentando o discurso de que com educação se

melhora a saúde e com saúde se melhora a educação, e as duas juntas irão

contribuir para o crescimento e o desenvolvimento do país, ou seja, as

mudanças no capitalismo produzem com primazia ontológica as mudanças no

âmbito da ideologia dominante, no caso, o liberalismo.

As mudanças no capitalismo, produzem também, alterações na ideologia

liberal que a sustenta, apesar de não romper fundamentalmente com a

estrutura da sociedade e com seus princípios fundamentais de igualdade,

liberdade, democracia, individualidade, tais princípios apontam para que a

escola cumpra um papel estratégico para a produção e legitimação da

sociedade, bem como o consenso de que o fracasso é um problema do

indivíduo.

32

1.3 - Estado de Bem estar Social, a crise do capitalismo e o

neoliberalismo.

O termo liberalismo pode ser utilizado em três sentidos: 1) Como

concepção do mundo ou filosofia centrada no indivíduo; 2) Como teoria política

que se preocupa com as origens e a natureza do poder; 3) Como teoria

econômica organizada sobre as leis do mercado e que fundamenta as relações

de produção capitalista. Tais aspectos que só se isolam para análise

constituem ―modelos de sociedade‖, que na realidade histórico-social articulam-

se de maneiras diferentes. Isso permite diferenciar as tendências

desenvolvidas dentro desta concepção (MERQUIOR, 1983 apud BIANCHETTI,

2001, p. 45). O aspecto que identifica e unifica cada fase do liberalismo é a

concepção do indivíduo como átomo social. A particularidade dos modelos,

está fundamentada pela concepção de poder e pelo contexto que deve conter

as relações econômicas,:

O liberalismo, ante o feudalismo, representa a sociedade moderna, que rejeita o determinismo social e institucionaliza o conflito derivado das novas formas de produção na figura mediadora do poder político. As diferentes propostas nascidas desta raiz originária reproduzem a hegemonia nos diferentes setores da burguesia em cada momento histórico, em relação às características e ao poder das forças antagônicas. As tendências ―conservadoras‖ do liberalismo sustentam como necessidade a continuidade política, entendida como continuidade dos fatores de poder e não de regime político, que permita a‖ evolução natural‖ das instituições econômicas que, por sua própria dinâmica, estabelecerão o equilíbrio na sociedade. As desigualdades sociais são equivalentes às desigualdades do mundo natural (que por outra parte garantem seu equilíbrio) e qualquer intento para modificá-las vai contra a natureza. Este modelo representa uma síntese do liberalismo econômico (leis do mercado) com o elitismo político. As tendências moderadas representam o pensamento liberal que, diante das pressões derivadas do conflito social buscam manter o essencial do sistema capitalista, cedendo naqueles aspectos que não põem em risco os valores da concepção global. As tendências mais democráticas que partilham uma visão social das relações humanas orientam sua perspectiva na busca de atenuar os efeitos sociais que derivam do modo de produção capitalista, avançando na aceitação de certos direitos sociais que limitam alguns direitos individuais (BIANCHETTI, 2001, p.45-46).

33

A crise do capitalismo na década de 1970 era evidenciada pela

aceleração da inflação, o desemprego e o baixo crescimento econômico:

O ponto de partida no processo de transformação nos países desenvolvidos do capitalismo central pode ser encontrado em meados da década de 70, quando começa a manifestar-se um estancamento econômico, acompanhado de um processo de estagflação, que reflete a existência de problemas estruturais no padrão de acumulação e crescimento (BIANCHETTI, 2001, p. 22).

O novo capitalismo financeiro cria uma nova ordem internacional

capitalista, que controla o fluxo de capitais e estabelece as condições em que

esse capital se distribui. [...] os desenvolvimentos macroeconômicos

elaborados desde a ortodoxia neoliberal se transformam em programas

concretos, aplicados tanto nos países centrais, que possuem instituições socais

de matriz keynesiana, como nos da periferia capitalista que não possuem esse

modelo (BIANCHETTI, 2001, p. 29-30).

O neoliberalismo, em seu diagnóstico, a respeito das causas da crise,

apresenta o Estado como responsável pela mesma, seria o modelo de Estado

de Bem Estar Social, considerado um intento socialista dentro das estruturas

capitalistas, o causador dos problemas. As críticas dos neoliberais ao Estado

Benfeitor, são transferidas mecanicamente, pelos grupos hegemônicos dos

países periféricos, as suas próprias realidades, favorecendo a definição de uma

nova estratégia de controle de poder (BIANCHETTI, 2001, p. 31). Com ,

A crise do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) e, em seguida, do socialismo real, pareceu oferecer o combustível para colocar em xeque as funções estatais como indutoras do crescimento econômico e promotoras de bem-estar. Portanto, a partir da década de 1970, a intervenção do Banco Mundial nas políticas sociais acompanhou o revigoramento do liberalismo econômico, com o ressurgimento do velho pensamento liberal, denominado neste momento de neoliberalismo, com ataque aos programas e políticas estatais (FIGUEIREDO, 2006, p.41-42).

A principal diferença entre esse neoliberalismo e o velho liberalismo é que

...este novo neoliberalismo aparece como uma vitória ideológica que abre portas e legitima uma espécie de selvagem vingança do capital contra a política e contra os trabalhadores. Isto acontece porque essa vitória neoliberal se dá logo após uma época em que as políticas públicas e a luta dos trabalhadores conseguiram em conjunto construir uma das obras institucionais que eu reputaria das mais complexas e impressionantes que a

34

humanidade conseguiu montar, e que foi chamado Welfare State. E, portanto, é contra esta obra, sobretudo, que hoje se insurge o fundamentalismo liberal. E é ao projeto de desmonte desta obra igualitária que os neoliberais conseguiram transformar na grande bandeira das ‗reformas‘ das quais se fala indiferenciadamente em toda a América Latina, como se elas fossem o ‗abre-te sésamo‘ da felicidade ou de um ‗novo modelo de desenvolvimento‘. O que de fato deve ser considerado como uma vitória estrondosa do ponto de vista publicitário dos neoliberais, na medida em que se apossaram do ‗reformismo social-democrata‘, transformando-o numa arma ou proposta de destruição da principal obra dos próprios socialdemocratas (FIORI. 1997 p. 215).

O consenso Keynesiano em torno dos objetivos do pleno emprego, do

crescimento e da eqüidade, soldado por uma solidariedade social nascida da 2ª

Guerra Mundial, na destruição e na resistência, concebera o Estado como

regulador, planejador, produtor e coordenador de alguns investimentos-chave

para o processo de acumulação que caracterizou os vinte e cinco anos da

―época de ouro‖ do capitalismo. Contudo, os pilares ideológicos que

sustentavam o Welfare State e as democracias de massa dos países

industrializados, haviam chegado ao fim. O velho consenso Keynesiano em

torno do crescimento, da eqüidade e do pleno emprego foi substituído pelo

novo consenso neoliberal que libertaria o capital das garras da regulação

estatal, propondo o equilíbrio macroeconômico, à competividade global e a

eficácia empresarial e individual (FIORI, 1997, p.103-117 apud FIGUEIREDO,

2006, p.44).

O Keynesianismo e o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State)

aconteceram em maior ou menor proporção nos países altamente

capitalizados, como a Grã-Bretanha, os países da Escandinávia, em alguns

momentos na França e na Alemanha Federal. Não existiu Estado de Bem-Estar

Social fora desses países, e ele começou a morrer com a crise iniciada na

década de 1970. O Estado de Bem-Estar Social foi possível em determinado

momento do capitalismo, surgindo sobretudo nos países onde o crescimento

no pós-2ª guerra Mundial (1945) foi muito acentuado (VIEIRA, 2001, p. 20 apud

FIGUEIREDO, 2006, p.44-45).

O que aconteceu nos países periféricos foi,

[…] uma combinação permanente e alterada de paternalismo e repressão. O que, se não impediu que toda população tenha sido excluída no ‗mercado capitalista‘, o fez como consumidora

35

marginal dos seus produtos materiais e culturais, incluindo aí a aspiração ao bem-estar e ao conforto, próprios de um capitalismo desenvolvido. Mais escassamente na condição de população trabalhadora, com todas suas implicações sócio-econômicas, e ainda menos na condição cidadã, com todas as suas implicações político-ideológicas. Não tivemos um Estado ‗Keynesiano‘, nem tampouco ‗social-democrata‘. A intervenção socioeconômica do Estado brasileiro (...) não favoreceu a formação de um ‗capitalismo financeiro‘, nem de um ‗capitalismo organizado‘ e muito menos de um ‗Estado de Bem-Estar Social (FIORI, 1998, p.192-194 apud FIGUEIREDO, 2005, p.44-45).

A crítica ao Estado de Bem Estar Social foi acentuada a partir da crise

de 1970, onde os países centrais incentivavam o desenvolvimento de

propostas embasadas na perspectiva de que o mercado deveria substituir a

política e o monetarismo tomar o lugar do Keynesianismo; o Estado mínimo

deveria suceder o Estado Benfeitor (ANDERSON, 1995, p.9 -10 apud

FIGUEIREDO, 2006, p.44-45) Desta forma,

Os fundamentos ideológicos da restauração liberal-conservadora resistiram à ―era Keynesiana‖ e venceram a batalha acadêmica durante a década de 1970. Todas as vertentes do novo pensamento hegemônico convergiram em torno de um denominador comum: o ataque ao Estado regulador, com a defesa do retorno do Estado liberal. Nesse contexto, os Estados Keynesianos e Desenvolvimentistas foram transformados nos grandes responsáveis pela ―estagflação‖ da década de 1970, atribuída aos desequilíbrios orçamentários provocados pelo crescimento do gasto público e, em particular, do gasto social. No campo econômico, as recomendações foram: as desregulações dos mercados, a abertura das economias nacionais e a privatização dos serviços públicos ( FIORI, 1997, p.115 -116).

A política neoliberal teve início na metade da década de 70 e se tornou

hegemônica na década de 80, na sociedade brasileira serviu de parâmetro

para as reformas a partir da década de 90 (FIGUEIREDO, 2006, p.47).

Com exceção do Chile, no final da década de 1980, toda a América

Latina e o Brasil em particular, chegaram às praias do neoliberalismo, pelos

caminhos econômico e político, o primeiro com a renegociação da dívida

externa com imposições de condicionalidades e políticas e reformas

econômicas na dimensão liberal e o segundo a crescente adesão no ponto de

vista ideológico e pragmático por parte das elites econômicas e políticas latino-

americanas, ao novo ideário liberal. Isto se deu independentemente de quais

36

fossem os passados partidário, ideológico ou teórico dos novos dirigentes dos

países deste continente (FIORI, 1997, p. 217 – 218).

Nesse contexto,

A doutrina desenvolvimentista, como conduzida pela potência hegemônica, estava demasiadamente exaurida e desacreditada. Por isso a renovação do sistema ideológico foi muito bem vinda. Os neoliberais se afirmam como os portadores da ‗verdadeira doutrina‘ capitalista e empreendem reformas neste modo de produção em crise estrutural; reformas estas que configura, conforme alegam, uma nova Era, a da globalização. (...) a ideologia neoliberal aparece completa e sustentada por outra dimensão da ideologia, a globalização, que se pretende ‗científica‘ e empírica‘ e, ironicamente, isenta de ideologia (LEHER, 1998, p. 80 -95 apud FIGUEIREDO, 2006, p. 43).

Nesse sentido, a ideologia da globalização aparece como único caminho

que leva ao progresso e à modernidade, ao paraíso e à plena realização da

natureza humana, além de processo inevitável ao qual todos os países e

regiões do mundo estariam subordinados, seria o melhor caminho (na verdade

o único) para o desenvolvimento, para superar as misérias do atraso e a

pobreza. Ao efetivar-se a globalização, permitiria superar os males do

capitalismo primitivo, atrasado (CARCANHOLO, 2000, p. 78 -79).

Desse modo o,

[...] neoliberalismo como a concepção capaz de orientar políticas destinadas a superar as mazelas do atraso e permitir, mais rapidamente, alcançar as vantagens da globalização, o progresso e a modernidade, tais manifestações extremas de exploração e miséria seriam superáveis (CARCANHOLO, 2000, p. 82).

A chamada globalização econômica, efetivamente comporta uma fase

do imperialismo atual, nada mais é do que a mundialização financeira como

expressão determinante, em última instância, desse processo de reprodução e

acumulação de capital. Esse é o contexto onde, desde o início da Guerra Fria,

o capitalismo avança e é sustentado e organizado, tendo nas instituições e

organismos financeiros e mediadores internacionais como a ONU, FMI, OMC,

BID, OEA - Organização dos Estados Americanos e Banco Mundial, por

exemplo, a sua expressão mais refinada (DEITOS, 2005, p. 208-209).

Foi a partir deste contexto, que a educação e a saúde passaram a

ocupar lugar de destaque nos documentos dos organismos internacionais,

como veremos na próxima seção.

37

SEÇÃO II

A RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E SAÚDE E AS JUSTIFICATIVAS DO

FRACASSO ESCOLAR.

Durante muito tempo fala-se sobre o fracasso escolar no âmbito da

educação brasileira, este vem sendo explicado por diferentes concepções que,

em sua maioria são relacionadas às questões sociais, patológicas focalizadas

no individuo. Numa sociedade de classes, é importante compreender quais são

as justificativas a este suposto fracasso escolar a partir da relação entre os

organismos internacionais, o capitalismo, o liberalismo e a relação da educação

e saúde.

2.1 – Educação e saúde básicas como prioridades emergenciais.

Foi a partir da crise financeira internacional de 1970 que as áreas de

educação e saúde tornam-se prioridades para o BIRD7 e estão circunscritas ao

processo de ―satisfação das necessidades básicas‖, como uma das estratégias

político-ideológicas para administrar a pobreza, por meio, entre outras coisas

da contenção do crescimento populacional. A educação em saúde,

contemplando as devidas orientações sobre o planejamento familiar, teria como

finalidade a redução da natalidade, o que implicaria num alto grau de retorno

social dos investimentos em serviços básicos, como a educação e a saúde; daí

o consenso entre o BIRD e o BID quanto à prioridade da oferta desses

serviços. A implementação das políticas de ajuste pelo FMI, pelo BID e pelo

Banco Mundial/BIRD, a partir do contexto da crise da dívida externa (1982),

tem intensificado a exclusão social. A ênfase na educação e na saúde básicas

é parte integrante das estratégias político-ideológicas da ideologia da

globalização e, portanto, é concebida como variável fundamental no processo

de implementação das políticas de ajuste para manter a pobreza em níveis

suportáveis, contribuindo para a estabilidade política e social (FIGUEIREDO,

2006, p. 59).

7 Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento

38

No período da ideologia do desenvolvimento, o BIRD teve ações mais

voltadas para a reconstrução física e econômica dos países da Europa, com o

Plano Marshall. A partir do ―Ponto IV‖ do ―Discurso sobre o Estado da União‖

do Presidente Truman, 1949, inaugurou-se uma nova era, a do

desenvolvimento. O empenho para colocar em ação a ideologia do

desenvolvimento foi intenso. Na América Latina, no contexto da Guerra Fria,

tivemos o programa da Aliança para o Progresso, que à semelhança do que

fora feito na Europa, por intermédio do Plano Marshall, tinha como objetivo

promover o desenvolvimento nessa região. No contexto da Aliança para o

Progresso, a educação e a saúde8 não foram consideradas as principais

estratégias de intervenção. A educação, por exemplo, foi pensada menos em

termos econômicos, relacionada ao desenvolvimento, e mais enquanto espaço

de embates ideológicos, pois havia grande preocupação com a influência

marxista nas universidades latino-americanas (FIGUEIREDO, 2006, p. 60).

A maneira do BIRD conceber o desenvolvimento mudou com o decorrer

dos anos:

Nos primeiros vinte anos, o BIRD viu na infra-estrutura básica a condição do processo de reconstrução econômica dos países europeus. Essa linha de pensamento propagou-se nos países subdesenvolvidos, onde se concebia que o desenvolvimento seria o resultado da transformação de uma economia tradicional, de base agrícola, em outra moderna, de base industrial, e onde os capitais privados, nacionais e estrangeiros, requeriam, para a sua expansão, investimentos em infra-estrutura básica, de responsabilidade dos governos. A concepção de desenvolvimento, portanto, assumiu diferentes características na trajetória do BIRD. Até meados da década de 1950, o desenvolvimento era entendido como crescimento econômico, implicando a necessidade de se investir em infra-estrutura, financiada com poupança interna. No período seguinte, a concepção continuou formulada nos termos anteriores, mas os

8 Dentre os objetivos da Aliança para o Progresso, estariam: ―Eliminar o analfabetismo entre os

adultos do Hemisfério e, até 1970, garantir um mínimo de seis anos de instrução primária a tôda criança em idade escolar, na América Latina (...). Aumentar, em um mínimo de cinco anos, a esperança de vida ao nascer, e elevar a capacidade de aprender e produzir, através do melhoramento da saúde individual e coletiva.‖ UNIÃO PANAMERICANA. Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos. Aliança para o progresso. Documentos oficiais emanados da Reunião Extraordinária do Conselho Interamericano Econômico e Social no Nível Ministerial. Realizada em Punta del Este, Uruguai de 5 a 17 de agôsto de 1961. Washington, D.C., 1961, p. 11.

39

investimentos para o desenvolvimento - além dos de infraestrutura - estenderam-se ao campo industrial, agrícola e educativo (LICHTENSZTEJN, 1987, p. 176-177 apud FIGUEIREDO, 2006, p. 60).

No fim da década de 60 a atuação dos organismos internacionais

assume novas feições:

A estratégia de atuação dos organismos internacionais assume novas feições no período que compreende o final da década de 1960 e, de forma mais evidente, nos cinco primeiros anos da década de 70. Um marco dessa mudança de orientação é a publicação do livro de Robert McNamara ‗Essência da Segurança‘, de 1968, no qual o tema do desenvolvimento é associado ao da segurança. (...) McNamara aponta que ‗segurança é desenvolvimento‘ e que ‗sem desenvolvimento não há segurança‘. Na verdade, McNamara estava dizendo que sem a ideologia do desenvolvimento os custos políticos da segurança aumentam. Esta tese, que antes norteara o governo J. Kubitschek, fora incorporada pelos ideólogos do governo militar brasileiro, especialmente na Escola Superior de Guerra. Não por acaso, o lema de Geisel foi ‗Desenvolvimento e Segurança‘ (LEHER,1998, p. 63-64 apud FIGUEIREDO, 2006, p. 62).

Com McNamara a concepção de desenvolvimento foi além do

crescimento econômico. O BIRD sustentou que o crescimento econômico

deveria incluir aspectos sociais e políticos, tal como a planificação familiar,

urbanização e desemprego. McNamara defendia que os governos deveriam

reorientar sua política de desenvolvimento para enfrentar frontalmente a

pobreza (FIGUEIREDO, 2006, p.63).

Na década de 1970, portanto, a ênfase do BIRD nos investimentos

sociais trouxe a publicação dos documentos de política setorial do BIRD, que

ocorreu a partir dos estudos sobre educação, saúde, agricultura, energia,

população e transporte (FIGUEIREDO, 2006, p.67).

O primeiro documento para a educação foi publicado em 1971, seguido

de mais dois, datados de 1975 e 1980. Em 1995 foi produzido o documento

“Prioridades y Estrategias para la educación: Estudio setorial del Banco

Mundial. Esse documento sintetizava os principais estudos sobre a educação

publicados pelo BIRD, posteriores ao último documento de política setorial de

1980. Na saúde, o primeiro documento foi publicado em 1975. Denominado de

―Salud: documento de política sectorial‖ e apresentou a concepção e as

propostas do BIRD para a reforma dos sistemas de saúde nos países em

desenvolvimento (FIGUEIREDO, 2006, p.67).

40

Na década de 1970, portanto, a concepção de desenvolvimento esteve

centrada nas necessidades humanas básicas, tendo como prioridade o

combate à pobreza. A saúde é considerada uma componente para enfrentar os

problemas originados pela pobreza; e estava incluída em projetos de

colonização e desenvolvimento (FIGUEIREDO, 2006, p.68).

Para conter a pobreza, era necessário investir em infra-estrutura

produtiva e social e a educação e a saúde deveriam ser concebidas de forma

integrada para garantir a estabilidade social, com o desenvolvimento de

projetos, nessas áreas, que articulassem o crescimento/desenvolvimento com

o bem-estar social (FIGUEIREDO, 2006, p.70):

Es evidente que la salud contribuye directamente al bienestar humano y que, de hecho,puede considerarse como una medida del bienestar social. (...) El mejoramiento de la salud, cuando está satisfactoriamente con otros adelantos socioeconômicos, constituye una parte vital del proceso de desarrollo; pero si se promueve en forma aislada puede tener un efecto desiquilibrante, ya que las consecuencias adversas de un crescimiento más rápido de la población puden contrarrestar los benefícios aportados por la salud. Una política de salud constructiva deberá aspirar a mantener el delicado equilibrio entre una salud mejor y el desarrollo económico general. (...) Sea cual fuere la opción que se adopte, las actividades en el sector de la salud debe enfocarse en general de manera análoga a las del sector de La educación; debe tratarse de apoyar proyectos que combinen la promoción del desarrollo económico con la redistribuición del bienestar ( BANCO MUNDIAL, 1975,p. 71 apud FIGUEIREDO, 2006, p.70).

A saúde emerge relacionada aos problemas causados pelo crescimento

demográfico:

Los factores demográficos pueden influir en la salud tanto a nivel de la comunidad como al nivel familiar. Las presiones de la población sobre la tierra pueden llevar a exceso de cultivo, agotamiento de los suelos y nutrición deficiente para toda una comunidad y forzar a sus miembros a emigrar, con los consiguientes problemas emocionales y de salud física de la desorganiziación social (BANCO MUNDIAL, 1971, p.38 apud FIGUEIREDO, 2006, p.72 ).

Desse modo, articular o bem-estar ao desenvolvimento econômico

dissimula as contradições inerentes ao processo de acumulação capitalista. O

―... submodelo de satisfação das necessidades básicas está colocado pelo

Banco de tal maneira que não entra em contradição com a lógica, por si só

excludente e concentradora, do desenvolvimento capitalista nos países

41

subdesenvolvidos. No fundo, isso significa que não objeta as assimetrias

produtivas, de renda e de consumo que caracterizam sua dinâmica.‖

(LICHTENSZTEJN, 1987, p. 194-195 apud FIGUEIREDO, 2006, p. 74).

Diante desse contexto, a educação e a saúde são concebidas como

estratégias de redução da pobreza:

As políticas que visam a expandir o ensino também são cruciais para promover a saúde. As pessoas mais instruídas buscam e utilizam informações sobre saúde de modo mais eficiente que aquelas com pouca ou nenhuma escolarização. Por isso, rápida expansão de oportunidades educacionais para todos - em parte mediante o estabelecimento de um padrão mínimo mais alto de escolarização (digamos, seis anos completos) – é um meio eficaz em função dos custos de promover a saúde. A educação feminina (de crianças e adultos) é particularmente benéfica à saúde da família, porque cabe em geral à mulher comprar e preparar alimentos, manter limpa a casa, cuidar de crianças e idosos e travar os primeiros contatos com o sistema de saúde (BANCO MUNDIAL, 1993, P. 08-09 apud FIGUEIREDO, 2005, p.90).

Contudo, essa convergência de metas nas ações nos setores da saúde

e da educação impede que a educação seja analisada de forma desarticulada

dos objetivos da saúde. Embora com funções distintas, são concebidas como

estratégias para reduzir a pobreza, o desemprego, a doença e o fracasso

escolar (FIGUEIREDO, 2006, p.91).

A educação, por sua vez, desempenha, de fato, a tarefa ideológica de

atribuir aos indivíduos a responsabilidade pelo desemprego, pela doença, pela

pobreza, pelo fracasso escolar (evasão e reprovação):

Os discursos lamentam as conseqüências dessa ordem econômica, deixando intocados, entretanto, os mecanismos que as produzem. (...) Ainda mais, fazem crer que o sucesso ou o fracasso escolares são produto único das ‗razões de ordem intelectiva‘, ou seja, dissimulam tanto os seus próprios mecanismos de discriminação quanto os da própria ordem econômica.‖(CUNHA, 1979, p. 57 apud FIGUEIREDO,2006, p.91).

As causas do fracasso escolar são apresentadas pelo BIRD,

desarticuladas das condições sociais e econômicas, restringindo-se a questões

de nutrição e saúde dos indivíduos:

Uno de los principales factores que perpetúan la pobreza es la carencia de una alimentación adecuada para las mujeres embarazadas y sus hijos. (...) Las deficiencias de nutrición en los primeros años de vida pueden producir daños irreparables en la capacidad mental de los niños. (...) La principal contribuição de la educación en este campo puede ser a través de la instrucción

42

de los padres en cuestiones de régimen alimentício, preparación de alimentos y otras nociones de economia doméstica. (...) La malnutrición y las enfermedades (...)influyen en el rendimiento escolar al disminuir la motivación del niño y su capacidad de concentración y asimilación (BANCO MUNDIAL, 1975, p.42 apud FIGUEIREDO, 2006, p. 91).

A Educação e a saúde tornam-se mecanismos de redução de pobreza,

através do aumento da produtividade e da renda e o que levaria a uma

situação de bem-estar social aos indivíduos já que ―Nem sempre os pobres

podem pagar pelo tratamento médico que aumentaria sua produtividade e seu

bem-estar. Investimentos públicos para os pobres, na área da saúde, reduzem

a pobreza ou mitigam suas conseqüências. Algumas ações em favor da saúde

são de caráter inteiramente público.‖ (BANCO MUNDIAL, 1993, p. 53 apud

FIGUEIREDO, 2006, p. 92)

A implementação das reformas estruturais de dimensão neoliberal

produzem um quadro de distribuição de renda desigual, isto gera a pobreza e a

precariedade nas condições de saúde, educação, moradia e emprego. O FMI,

o BIRD e o BID, ao prosseguirem com o processo de implementação das

políticas de ajuste estruturais e setoriais, buscam corrigi-las com medidas

destinadas a administrar a pobreza. Portanto, no contexto da ideologia da

globalização, as políticas compensatórias, que têm como prioridade atender os

grupos de extrema pobreza, consubstanciam, em parte, a proposta dos

organismos internacionais, em especial o BIRD e o BID, de focalização dos

gastos destinados a esses grupos, desta forma, a educação e a saúde básicas

contribuem para criar as condições favoráveis mínimas para a implementação

das políticas de ajuste econômico, visando à estabilidade política e social

(FIGUEIREDO, 2006, p.92-96).

Se as políticas de educação e saúde estão relacionadas visando uma

estabilidade política e social, na questão do fracasso escolar a educação e a

saúde estão sempre relacionadas servindo para justificar uma o fracasso da

outra.

43

2.3 – Fracasso escolar: Um breve histórico.

No contexto do capitalismo pode-se considerar que a escola adquire o

significado de instrumento de ascensão social nos países capitalistas liberais

estáveis a partir do ano de 1848:

a escola adquire significados diferentes para diferentes grupos e segmentos de classes, em função do lugar que ocupam nas relações sociais de produção. Neles, a escola é valorizada como instrumento real de ascensão e de prestígio social pelas classes médias e pelas elites emergentes. Como instituição a serviço do desenvolvimento tecnológico necessário para enfrentar as primeiras crises do novo modo de produção, de modo a racionalizar, aumentar e acelerar a produção (PATTO, 1996, p. 26).

Com a Revolução Francesa, a escola universal e gratuita, antes

privilégios de poucos, torna-se uma realidade. A escola imposta como

instrumento de unificação nacional passou a ser desejada pelas classes

trabalhadoras, quando se apercebem da desigualdade embutida na nova

ordem e tentam escapar, pelos caminhos socialmente aceitos, da miséria de

sua condição (PATTO, 1996, p. 29).

Este aumento da demanda social por escola e a expansão dos sistemas

nacionais de ensino trouxeram alguns problemas:

De um lado a necessidade de explicar as diferenças de rendimento da clientela escolar; de outro, a de justificar o acesso desigual desta clientela aos graus escolares mais avançados. Tudo isto sem ferir o principio essencial da ideologia liberal segundo o qual o mérito pessoal é o único critério legítimo de seleção educacional e social (PATTO, 1996, p. 40). (grifos do autor)

Com a I Guerra Mundial, a crença no poder da escola foi abalada:

O século XX tem início desmentindo a idéia de que a escola obrigatória e gratuita viera transformar a humanidade para redimi-la da ignorância e da opressão. A posse do alfabeto, da constituição e da imprensa, da ciência e da moralidade não havia livrado os homens da tirania, da desigualdade social e da exploração (PATTO, 1996, p. 27).

Os liberais receberam um duro golpe na sua crença dos superpoderes

da escola:

Esse conflito mundial desferiu um duro golpe nos liberais que acreditavam nos superpoderes da escola, e os levou a investirem contra a pedagogia tradicional, na elaboração de uma pedagogia que promovesse espiritualmente o ser humano (PATTO, 1996, p. 27).

44

A crítica a pedagogia Tradicional desconsidera que bem ou mal a

população em geral estava se instruindo e se politizando, portanto a burguesia

partindo da crítica a escola tradicional, responsabilizou-a pelos desastres

sociais:

Se a escola não estava formando democratas isto se devia ao fato de ela mesma não ser democrática. À pedagogia da imposição deveria se opor uma pedagogia calcada nos conhecimentos acumulados pela psicologia nascente a respeito da natureza do desenvolvimento infantil que substituísse o verbalismo do professor pela participação ativa do aluno no processo de aprendizagem (PATTO, 1996, p. 27).

A crença dos liberais na possibilidade da escola realizar uma sociedade

de classes igualitária, pautada no mérito pessoal, contou com a psicologia

científica a qual coube buscar a explicação e a mensuração das diferenças

individuais, tornando-se uma expressão da nova ordem social que emerge do

mundo feudal, sendo fundamental à compreensão da natureza e da pesquisa e

do discurso educacionais sobre a reprovação escolar que vigoravam nos

países capitalistas (PATTO, 1996, p. 28).

A idéia do mérito pessoal e da igualdade de oportunidades foi reforçada

pela psicologia:

No âmbito da liberal-democracia, é compreensível que a preocupação com a superdotação e sua contrapartida, a subdotação intelectual, tenha sido a principal atividade da psicologia nos setenta anos após a publicação da primeira obra de Galton9.Se as aparências já faziam crer que as oportunidades estavam igualmente ao alcance de todos – pois é inegável que, em comparação com a estática sociedade feudal, a nova ordem possibilitou grande mobilidade social – a psicologia veio contribuir para a sedimentação desta visão de mundo, na exata medida em que os resultados nos testes de inteligência , favorecendo via de regra os mais ricos, reforçavam a impressão de que os mais capazes ocupavam os melhores lugares sociais (PATTO, 1996,p.40).

9 Francis Galton 1822-1911. foi um antropólogo, meteorologista, matemático e estatístico

inglêsGalton tinha um intelecto prolífico, e produziu mais de 340 artigos e livros em toda sua vida. Ele também criou o conceito estatístico de correlação e a amplamente promovida regressão em direção à média. Ele foi o primeiro a aplicar métodos estatísticos para o estudo das diferenças e herança humanas de inteligência, e introduziu a utilização de questionários e pesquisas para coletar dados sobre as comunidades humanas, o que ele precisava para obras genealógicas e biográficas e para os seus estudos antropométricos. Como um pesquisador da mente humana, ele fundou a psicometria (a ciência da medição faculdades mentais) e a psicologia diferencial.Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Francis_Galton.

45

No século XIX as explicações das dificuldades de aprendizagem escolar

articula-se em duas vertentes: das ciências biológicas e medicina, com

pressupostos racistas e elitistas e da psicologia e pedagogia, uma concepção

menos heredológica10 da conduta humana, mais atenta às influencias

ambientais e mais comprometida com os ideais liberais democráticos, nos

países capitalistas no decorrer de todo o século XX, esta ambigüidade será a

característica do discurso a respeito das dificuldades de aprendizagem

(PATTO, 1996, p.40).

Durante os trinta primeiros anos do século XX, a avaliação dos

―anormais escolares‖ tornou-se sinônimo de avaliação intelectual:

Nesta época, os testes de QI adquiriram um grande peso nas decisões dos educadores a respeito do destino escolar de grandes contingentes de crianças que, na Europa e na América, conseguiam ter acesso à escola. No entanto, a incorporação de alguns conceitos psicanalíticos veio mudar não só a visão dominante de doença mental como as concepções correntes sobre as causas das dificuldades de aprendizagem. A consideração da influência ambiental sobre o desenvolvimento da personalidade nos primeiros anos de vida e a importância atribuída à dimensão afetivo-emocional na determinação do comportamento e seus desvios provocou uma mudança terminológica no discurso da psicologia educacional: de anormal, a criança que apresentava problemas de ajustamento ou de aprendizagem escolar passou a ser designada como criança problema (PATTO, 1996, p.43-44. Grifos do autor).

Na década de trinta, com a disseminação dos conhecimentos de

psicologia e o advento do escolanovismo, a ênfase volta-se para a atribuição

do fracasso às diferenças individuais, baseada na concepção de genialidade

hereditária, apoiando-se nos estudos de Darwin (princípio da evolução das

espécies), difundida por Galton, já em 1869, influenciando no movimento dos

testes mentais bastante marcantes na década de 1890. Os casos de

dificuldade de aprendizagem começam a ser diagnosticados e tratados por

psiquiatras, dando origem a medicalização do fracasso. Porém, essa

explicação é fortemente marcada pela teoria racista em que se considerava a

superioridade da raça branca em relação aos índios, negros e mestiços

(FORGIARINI; SILVA,2007 p. 4).

10

Heredologia: Ciência que analisa a partir de características hereditárias.A questão das raças é um

exemplo, de acordo com a raça a capacidade de aprendizagem.

46

Até a década de 30 a grande parte das concepções sobre o fracasso

estavam relacionadas à teoria racista, a explicação as dificuldades de

aprendizagem deixa de ser de racial, passando a ser cultural a partir da década

de 40. Não são mais as raças que são inferiores e sim as culturas, as crianças

pobres faziam parte de um meio cultural com deficiência de estímulos, valores,

hábitos, habilidades e normas, o que dificultaria a aprendizagem (FORGIARINI;

SILVA,2007, p. 5).

A nova palavra de ordem é a higiene mental escolar. Com intenções preventivas, as clinicas de higiene mental e de orientação infantil disseminaram-se no mundo, a partir da década de vinte e se propõe a estudar e corrigir os desajustamentos infantis (PATTO, 1996, p.44).

Em 1940, a psicologização do fracasso escolar tornou-se ainda maior

Nesse sentido, o movimento de higiene mental (...) colaborou para justificar o acesso desigual das classes sociais aos bens culturais, ao restringir a explicação de suas dificuldades de escolarização ao âmbito das disfunções psicológicas. [...]. Seu prestígio foi tão forte que suplantou, na explicação do fracasso escolar, uma das premissas do pensamento escolanovista que não podia ser negligenciada: a de que a estrutura e funcionamento da escola e a qualidade do ensino seriam os principais responsáveis pelas dificuldades de aprendizagem (PATTO, 1999, p.45 -46)

O movimento de higiene mental ajudou a instalar a escola seletiva. Este

movimento dissimulava a seletividade com procedimentos técnicos e verdades

cientificas de difícil constentação na época (PATTO, 1996, p.45).

A forte tendência social torna o pobre o grande depositário de todos os

defeitos, os adultos das classes subalternas são considerados mais agressivos,

relapsos, desinteressados pelos filhos, inconstantes, viciados e imorais

(PATTO, 1996, p.48-49).

Percebe-se que a ―deficiência‖ é sempre do oprimido:

Dizem para o oprimido que a deficiência é dele e lhe prometem uma igualdade de oportunidades impossível através de programas de educação compensatória que já nascem do fracasso quando partem do pressuposto de que seus destinatários são menos aptos à aprendizagem escolar. Mesmo assim, fazem renascer com estes programas, a esperança da justiça social, mais uma vez graças ao papel democratizante atribuído à escola compensatória que supostamente reverterá às diferenças ou deficiências culturais e psicológicas que as classes ―menos favorecidas‖ seriam portadoras (PATTO, 1996, p.50).

47

Até a década de 1970, o fracasso escolar era justificado por

características biológicas, psicológicas e sociais dos alunos. O termo social era

empregado no sentido de déficit cultural dos usuários das escolas públicas. Os

psicólogos educacionais, de formação psicanalítica, psiconeurológica ou

cognitivista, não apresentavam a dimensão pedagógica do processo. Durante

os anos de 1970 tentou-se superar, ainda, o discurso fraturado sobre as

causas do fracasso escolar que passou a ser explicado pela teoria da Carência

Cultural, por meio do qual se afirmava que as deficiências (déficit) do ambiente

cultural das chamadas classes baixas produziam a deficiência no

desenvolvimento psicológico infantil, ocasionando as dificuldades de

aprendizagem e de adaptação escolar (FORGIARINI; SILVA,2007, p. 9).

Ainda nos anos 1970 as teorias de Althusser (1974), Bourdieu (1974),

Bourdieu e Passeron (1975) Establet e Baudelot (1979) apresentaram uma

outra forma de se pensar o papel da escola:

(...) introduziram a possibilidade de se pensar o papel da escola no âmbito de uma concepção crítica de sociedade. Mais especificamente, forneceram as ferramentas conceituais para o exame das instituições sociais enquanto lugares nos quais se exerce a dominação cultural, a ideologização, a serviço da reprodução das relações de produção; na escola, o embaçamento da visão da exploração seria produzido, segundo esta teoria, principalmente pela veiculação de conteúdos ideologicamente viesados e do privilegiamento de estilos de pensamento e de linguagem característicos dos integrantes das classes dominantes, o que faria do sistema de ensino instrumento a serviço da manutenção dos privilégios educacionais e profissionais dos que detêm o poder econômico e o capital cultural (PATTO, 1996, p.114).

A apropriação destas idéias nas pesquisas, ficaram mais no âmbito da

divulgação, do que domínio da pesquisa do fracasso escolar:

A apropriação destas idéias parece ter sido mais fiel nos inúmeros ensaios voltados para a sua análise e divulgação do que no domínio da pesquisa do fracasso escolar propriamente dita. Aqui, a convivência da teoria da reprodução com a convincente teoria da carência cultural, aliada a uma concepção positivista de produção de conhecimentos, resultou em distorções conceituais que levaram a aplicação da concepção da escola como aparelho ideológico de Estado a descaminhos teóricos (PATTO, 1996, p. 114).

Ressalta-se dos anos de 1970,

48

(...)uma das características que diferenciou a pesquisa do fracasso escolar foi à investigação crescente da participação do próprio sistema escolar na produção do fracasso, através da atenção ao que se convencionou chamar de fatores intra-escolares e suas relações com a seletividade social operada na escola (PATTO, 1996, p.118).

Durante os anos de 1980,

Até a década de 1980, as tentativas de explicação do fracasso escolar estavam voltadas para culpabilizar principalmente o sujeito que sofria o fracasso e a sua família, como se fossem seres inertes, soltos no tempo e no espaço. E raras vezes o foco dos estudos voltou-se para a instituição escolar como um dos fatores determinantes deste problema. Mas, quando o fizeram, também foi num sentido de atribuir à culpa a esta e a quem nela trabalha, não a relacionando com o contexto social e político

(FORGIARINI; SILVA,2007,p.6).

O ano de 1997 foi um marco na mudança de enfoque. Um grupo de

pesquisadores da Fundação Carlos Chagas desenvolveu um conjunto de

subprojetos de pesquisa voltados para a investigação da participação do

sistema escolar no baixo rendimento das crianças dos segmentos sociais mais

pobres. Os resultados destes projetos levaram a outros subprojetos dedicados

à pesquisa mais detalhada dos mecanismos intra-escolares de seletividade

social da escola, privilegiando a investigação de aspectos estruturais,

funcionais e da dinâmica interna da instituição escolar (FCC,1984 apud

PATTO, 1996, p.118).

No contexto dos anos 80, ressaltam-se três tendências para as causas

do fracasso escolar:

(...) com estudos da realidade escolar a partir do materialismo histórico, três tendências se configuraram: continuaram as tentativas de encontrar as causas das dificuldades de aprendizagem e de ajustamento escolar no desenvolvimento psíquico do aprendiz; num mesmo relato de pesquisa a política educacional antidemocrática e o aprendiz eram simultaneamente responsabilizados pelos maus resultados do ensino, o que configurava um ―discurso fraturado‖; concepções críticas e não-críticas da escola na estrutura econômico-social capitalista passaram a conviver num mesmo projeto, o que indicava apropriação superficial da nova referência teórica (ANGELUCCI et al 2004 , p. 57).

No contexto dos anos de 1990, as políticas educacionais estiveram

subjugadas aos interesses do capital estrangeiro, sob as determinações do

49

Banco Mundial e FMI, momento em que houve a reorganização da ideologia

liberal de acumulação do capital, denominada de neoliberalismo. Para garantir

esta soberania, utilizou- se, nas Diretrizes Educacionais, de palavras chaves

como: desregulamentação, descentralização e flexibilização, as quais visavam

estimular à autonomia, a liberdade, a independência, a iniciativa e a

criatividade, desencadeando o esvaziamento de conteúdos da escola pública

brasileira (FORGIARINI; SILVA,2007, p.11).

No artigo ―O estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar (1991-

2002): um estudo introdutório‖ Angelucci et al (2004), as autoras apresentam

as pesquisas relacionadas ao fracasso escolar desenvolvidas na cidade de São

Paulo, tanto nos cursos de Pedagogia e Psicologia das universidades, quanto

nos da Fundação Carlos Chagas, onde foram localizadas 71 obras, das quais

32 doutorados e 39 mestrados (FORGIARINI; SILVA, 2007,p.11). Estas foram

categorizadas da seguinte maneira:

Desta forma, as autoras pontuam que o fracasso escolar é

compreendido como:

- problema psíquico: a culpabilização das crianças e de seus pais (foco

no aluno);

- problema técnico: culpabilização do professor (foco no professor);

- questão institucional: a lógica excludente da educação escolar (foco na

política pública como determinante do fracasso escolar);

- questão política: cultura escolar, cultura popular e relações de poder

(foco nas relações de poder estabelecidas no interior da instituição escolar,

mais especificamente na violência praticada pela escola ao estruturar-se com

50

base na cultura dominante e não reconhecer – e, portanto, desvalorizar – a

cultura popular) (FORGIARINI; SILVA, 2007, p.11-12).

A categorização destas pesquisas:

possibilitou o levantamento de alguns aspectos preliminares, reveladores dos caminhos que a pesquisa vem percorrendo na última década. Chamou a atenção a presença significativa de pesquisas que concebem o fracasso escolar como fenômeno estritamente individual, o que pode ser observado pelo grande número de obras que constam das categorias ―Distúrbios de desenvolvimento e problemas de aprendizagem‖, ―Remediação do fracasso escolar‖ e ―Papel do professor na eliminação do fracasso escolar‖. A primeira centra no aluno a responsabilidade pelo fracasso, atribuindo-lhe, predominantemente, problemas cognitivos, psicomotores ou neurológicos. Já as duas outras categorias responsabilizam ora o aluno ora o professor e propõem soluções predominantemente técnicas, de base teórica comportamental ou cognitivista, para eliminar o fracasso. Como era de se esperar, as pesquisas constitutivas das três primeiras categorias da Tabela 1 concentram-se no lugar acadêmico em que se produz e pratica psicologia. Da mesma forma, a crítica à psicologizacão do fracasso escolar ocorre nesse mesmo lugar. Assim como a atribuição de responsabilidade ao professor é freqüente nas pesquisas que relacionam fracasso escolar e incapacidade técnica, o trabalho docente também é alvo das pesquisas que inserem o fracasso escolar na lógica excludente da escola pública fundamental. No entanto, essas pesquisas, ancoradas numa perspectiva crítica da relação escola-sociedade, partem do princípio de que, para entender o trabalho docente, é preciso considerar o lugar da escola em uma sociedade de classes. Ainda com base na categorização apresentada, observa-se que catorze teses procuram discutir o fracasso escolar em suas relações com as políticas educacionais, bem como com a macropolítica: trata-se de pesquisas que procuram realizar uma análise do capitalismo — ou, mais especificamente, do neoliberalismo — em suas implicações na produção do fracasso escolar ( ANGELUCCI et al 2004 , p. 59).

Percebe-se desta maneira, que o fracasso escolar continua sendo

relacionado à saúde, sendo medicalizado, psicologizado, sendo sempre

considerado um problema do indivíduo, ou do professor ou da escola sempre

desarticulado do contexto social, isso gera mitos e preconceitos:

Uma das características fundamentais da vida cotidiana é a existência de juízos provisórios: provisório porque se antecipa à atividade possível do confronto com a realidade; nem sempre é confirmado, sendo muitas vezes refutado no infinito processo da prática. Quando um juízo provisório é refutado no confronto com a realidade concreta, seja por meio da ciência ou mesmo por não encontrar confirmação nas experiências de vida do indivíduo, e mesmo assim se mantém inabalável, imutável e

51

cristalizado contra todos os argumentos da razão; não é mais um juízo provisório, mas um preconceito (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.24-25).

2.4 – Fracasso escolar: Mitos e preconceitos

Se concebermos que o fracasso escolar é causado por problemas

individuais, relacionados à questões biológicas a escola, entendida como

instituição social concreta, integrante de um sistema sociopolítico concreto –

apresenta-se como vítima de uma clientela inadequada (COLLARES;

MOYSÉS, 1996, p.27).

Este processo de biologização é conhecido no contexto histórico

nos momentos de grande tensão social, de movimentos reivindicatórios importantes, a resposta da sociedade sempre foi no sentido de biologizar as questões sociais que se haviam transformado em foco de conflitos. Nesse processo, sempre houve o respaldo de uma ciência de matriz positivista, cujos interesses coincidem com os de uma determinada classe social. Porém, essa corrente filosófica insiste sempre em se apresentar como ciência pura, neutra, objetiva, como se não fosse construída por homens concretos , inseridos em um sistema social estratificado em classes, com motivações contraditórias (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.27).

Com o processo de biologizar questões sociais,atinge-se dois objetivos

complementares: isentar de responsabilidades todo o sistema social, inclusive

em termos individuais e , usando a expressão de Ryan (1976), ―culpabilizar a

vítima‖ (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.28).

Ao separar os alunos entre ―os que não irão aprender‖ e ―os que

aprendem‖ legitima-se uma exclusão tanto escolar quanto na vida social:

Uma exclusão que já havia sido estabelecida muito antes, pelo estrato social em que nasceu, mas que, de todo modo, necessita do aval de alguma instância, reconhecida como competente, para poder se manter por gerações e gerações (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.59).

A exclusão é reforçada e naturalizada pelos princípios liberais de

igualdade, democracia e individualidade. Considera-se que na escola as

igualdades de oportunidades existem logo a democracia está acontecendo,

mais são as características individuais que determinam seu sucesso ou o seu

suposto fracasso. Esta exclusão é necessária a sociedade capitalista e é

52

respaldada pela escola órgão reconhecidamente competente. (COLLARES;

MOYSÉS, 1996, p.59).

O pensamento circular ―a criança não aprende porque é doente e é

doente porque não aprende como se cuidar‖ teve início como o movimento por

puericultura:

Inicialmente, constitui um movimento circular de senhoras burguesas que se deslocam até a periferia para ensinar as mães pobres a cuidar de seus filhos, alimentá-los, vesti-los, limpá-los, enfim educá-los (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.74).

As descobertas de Louis Pasteur11 fornecem a Medicina seu estatuto de

ciência moderna e a puericultura muda de espaço. O discurso ,então, perde o

tom coloquial e adquire o caráter normatizador e autoritário da Medicina que se

apropria do tema, como campo teórico e de atuação

Nesta maneira de pensar o processo saúde/doença, não há espaço para determinantes como políticas públicas, condições de vida, classe social. A ignorância é a grande responsável pelas altas prevalências de doença. Então, a solução só pode ser por meio do ―ensino‖. Neste campo, a Medicina exerce seu papel normatizador com grande eficiência. E essas idéias perduram até hoje, seja na formação de profissionais, seja no famoso ―senso comum‖, reflexo das concepções ideológicas dominantes (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.74).

A partir da consolidação do capitalismo a medicina passa com mais

intensidade a normatizar a vida dos indivíduos:

Se a Medicina, desde suas origens, cumpre o papel social de normatizar a vida de indivíduos e de grupos sociais, a partir da consolidação do capitalismo passa a fazê-lo com intensidade maior eficiência. A normatização da vida tem por corolário a

11 Louis Pasteur 1822-1895 foi um cientista francês. Suas descobertas tiveram enorme

importância na história da química e da medicina. É lembrado por suas notáveis

descobertas das causas e prevenções de doenças. Suas descobertas reduziram a

mortalidade de febre puerperal, e ele criou a primeira vacina para a raiva. Seus

experimentos deram fundamento para a teoria microbiológica da doença. Foi mais

conhecido do público em geral por inventar um método para impedir que leite e vinho

causem doenças, um processo que veio a ser chamado pasteurização. Ele é

considerado um dos três principais fundadores do microbiologia, juntamente com

Ferdinand Cohn e Robert Koch. Pasteur também fez muitas descobertas no campo da

química, principalmente a base molecular para o assimetria de certos cristais. Seu

corpo está enterrado abaixo do Instituto Pasteur em Paris, em um mausoléu decorado

por mosaicos em estilo bizantino que lembram suas realizações.Disponível em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Louis_Pasteur.

53

transformação dos ―problemas da vida‖ em doenças, em distúrbios. Surgem, então, os ―distúrbios de comportamento‖, os ―distúrbios de aprendizagem‖, a ―doença do pânico‖, apenas para citarmos alguns entre os mais conhecidos. O que escapa às normas, o que não via bem, o que não funciona como deveria... tudo é transformado em doença, em um problema biológico (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.74- 75).

Cria-se o mito de que a doença impede a aprendizagem:

Para os profissionais da Saúde e da Educação, a doença impede a aprendizagem. Porém, que tipo de doença, em que gravidade? Aparentemente, essas questões não se colocam. Estar doente, não importa a gravidade (ou sua ausência) nem a época da vida em que se esteve doente, nem o tempo (tanto faz se aguda ou crônica, se dura dias ou a vida toda), é um estado absoluto. A doença, nesse imaginário, não admite modulações. O processo saúde/doença é transformado em saúde total ou doença total. Perde sua relação de determinação com as condições de vida, com a inserção do grupo familiar nos estratos sociais, nos meios de produção. Torna-se a-histórico. Uma tal concepção de saúde e doença, que prioriza ao extremo o aspecto biológico, que foca sua atenção quase que exclusivamente no indivíduo, tanto em termos de determinantes como de soluções, avançando no máximo até a família, realmente não pode admitir condicionantes. Afinal, uma hemácia será sempre uma hemácia, independente da região geográfica e da classe social (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.76).

Acreditar que as crianças não aprendem por que são doentes, porque

são pobres é afirmar ainda mais o preconceito, pois ser pobre é conseqüência

de um modelo de desenvolvimento político imposto ao país; ser pobre é nascer

numa casa em que já se era pobre (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.76).

As classes com menos condições financeiras e seus integrantes são

alvos de muitos preconceitos. Esses preconceitos e estereótipos fazem parte

de uma visão de mundo ideológica e mistificadora. Precisamos estar atentos

para os mitos de que somos porta-vozes (PATTO, 1985, p.53):

O que se enxerga é aquilo que nossa concepção política e filosófica do mundo nos permite enxergar. Dependendo da posição de nosso mirante, de sua altitude (que será tanto maior, quanto maior o conhecimento prévio e a disponibilidade para um olhar sem preconceitos e desvinculado de interesses de classe), maior a amplitude do horizonte que pode ser descortinado. Romper com preconceitos é essencial para subir a mirantes mais privilegiados. E deles, pode-se romper com outros preconceitos, e por ai... Mas infelizmente, a maior parte das pessoas ainda está presa a grilhões dos preconceitos mais elementares, mais frágeis. E, por sua fragilidade, tão sólidos (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.189-190).

54

Enraizados nestes preconceitos, ficam os mitos a respeito do fracasso

escolar. Há o mito de que as crianças pobres, das classes trabalhadoras falam

uma linguagem que o professor não entende e que o professor fala uma

linguagem que a criança não entende:

É perfeitamente compreensível que, pelas condições materiais de existência dessas crianças, a linguagem adquira certas características não presentes na chamada linguagem culta. Apesar dessas diferenças, falamos todos a mesma língua. As dificuldades de compreensão vêm muito mais da relação preconceituosa e desrespeitosa que o adulto acaba tendo com a criança num contexto institucional adverso a ambos (PATTO, 1985, p.58).

Outro mito é o de que as crianças que são desnutridas ―fracassam‖ na

escola, o que não se justifica, pois, não encontra respaldo cientifico já que,

a grande maioria das crianças que desenvolvem desnutrição grave provavelmente morre antes dos cinco anos , não estando na escola; as funções intelectuais superiores de maior complexidade (que poderiam ser comprometidas pela desnutrição) não são pré-requisitos para a alfabetização; aliás, aos sete anos, nem mesmo estão presentes ( COLLARES; MOYSES, 1996, p.96-97).

Outro grande mito é o de que as crianças pobres sofrem carência

afetiva, por isso tem mais dificuldade para aprender:

As crianças das classes trabalhadoras apresentam problemas emocionais? Certamente, porém não em escala significantemente diferente de crianças de outras classes sociais. Problemas de ordem diferente, mas não com freqüência diferentes. Problemas psicológicos sérios podem comprometer a aprendizagem na escola? Com certeza, mas não por uma interferência direta e exclusiva sobre os processos de aprendizado, e sim por poderem comprometer todas as atividades desta criança. Porém, não é desta criança que se está falando ao relacionar aprendizagem com aspectos emocionais. Abrindo um parêntese, sem dúvida essa criança necessita de ajuda de um profissional especializado. Um tratamento com psicólogo. Não pelo não aprender, mas por sua vida. Por seu sofrer. Não na escola, para ser ainda mais estigmatizado, mas na rede de saúde. Mas, então, quem é a criança a quem se atribui desajustes emocionais? É a criança da periferia, que vive em um ambiente com valores diferentes, que é constantemente agredida pela vida, que precisa se defender para sobreviver. A criança que tem de ser forte. Que, de agredida, se diz que é agressiva (COLLARES; MOYSES, 1996, p.141-142).

Acreditar que a criança que faz parte de uma família pobre, não aprende

por carência emocional, é afirmar a incapacidade de toda uma classe social de

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amar seus filhos. Talvez haja diferentes formas de amor. Quando uma mãe

trabalha em uma casa de família das 7h às 17h e das 20h à meia-noite, faz

faxina em um prédio de escritórios para garantir a sobrevivência e os estudos

de seus filhos, esta pode ser a forma que lhe é socialmente possível de amá-

los. Por outro lado, quando convivemos com famílias de periferia, até mesmo

nas favelas, vemos que não é verdadeiro afirmar que todos os pais são

bêbados, todas as mães são prostitutas e todas as famílias são desintegradas

(PATTO, 1985, p.59).

Outro mito consiste em acreditar que as crianças pobres abandonam a

escola cedo para trabalhar e ajudar a renda da família. PATTO, 1985 assinala

que a família pobre deseja e se empenha para que seus filhos estudem, porque

vê na escolarização uma possibilidade de melhorar as suas condições de vida.

O que acontece é que vários mecanismos mais ou menos sutis presentes nas

escolas muitas vezes acabam por impossibilitar esse sonho e frustrar a luta

pela sua realização; desse modo, o que chamamos ―evasão‖ assume, na

realidade, muito mais características de ―expulsão‖ (PATTO, 1985, p.60).

Este fracasso, explicado na sociedade muitas vezes por mitos que

isentam o modelo de desenvolvimento de responsabilidade e reafirmam o

princípio liberal de igualdade:

Neste quadro tão ilusório que todos são iguais e têm exatamente as mesmas chances, só se pode mesmo fracassar por fatores individuais, por doença e/ou por falta de esforço. O sistema sócio-político é perfeito, harmônico; ―funcional‖. Fracassam os que não se ajustam, os ―disfuncionais‖. A eles, então, só resta a marginalização e a culpa/responsabilidade por seu fracasso. E uma vez adultos, por serem ―disfuncionais‖ e marginais ao sistema, obviamente não têm o direito a participar efetivamente da sociedade civil (COLLARES; MOYSES, 1989, p.74).

Desta forma, educação e saúde não apenas justificam o fracasso

escolar como passam a explicar a vida do indivíduo na sociedade civil:

Amplia-se assim, em espirais, o círculo de justificativas, num espaço ideológico muito maior. As afinidades ideológicas entre educação e saúde, que num primeiro plano explicam e legitimam as condições de saúde da população e o fracasso escolar, interagem durante toda a vida do individuo para justificar sua exclusão da sociedade civil (COLLARES; MOYSES, 1989, p.74).

Considera-se que o processo de medicalização do fracasso escolar se

expandiu rápido e facilmente, pois,

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este processo responde às expectativas da sociedade em diferentes níveis. Ao se localizar o problema na criança, como uma ―doença‖ intrínseca e inerente a ela, isenta-se de responsabilidades a família, a professora, o sistema escolar e, por fim, todo o sistema político (COLLARES; MOYSES, 1989, p.75).

A medicalização também ocorre de acordo com a classe do aluno, o que

reforça o caráter ideológico da mesma:

Para a ―criança pobre‖, o mau rendimento escolar é sinônimo de retardo de desenvolvimento por desnutrição. Para a ―criança rica‖, é sinônimo de disfunção neurológica. Em ambos os casos, o estigma de doente é o mesmo e os prejuízos psicológicos (que podem ser permanentes) também. A grande diferença é que para uma existe tratamento, embora demorado e oneroso: não por coincidência, é para a criança que se insere em uma família que pode pagá-lo (COLLARES; MOYSES, 1987, p.77).

É preciso compreender, conforme mencionamos, que o pensamento

circular que ―é preciso ser sadio para ter boa aprendizagem‖ e ―é preciso ser

culto (não ignorante) para ter saúde‖ é um mito, reforçado pela ideologia liberal

e pelos organismos internacionais onde,

A educação e a saúde, de acordo com o BIRD, constituem-se em variáveis fundamentais para a promoção da inserção dos países em desenvolvimento ao processo de globalização (perspectiva macroeconômica), e dos pobres e desempregados à atividade produtiva (perspectiva microeconômica). Desse modo, ―... na percepção desta instituição se não é possível integrar as pessoas ao tempo hegemônico (era do mercado ou globalização) pelo desenvolvimento econômico, é preciso integrá-las de uma outra forma. E a educação é a mais recorrentemente citada.‖ (LEHER, 1998, p. 259 apud FIGUEIREDO, 2006, p.154).

Os organismos internacionais,

como o BIRD e o BID, preocupam-se com a educação e a saúde na defesa dos interesses do capital, e justificam os financiamentos nessas áreas a partir da campanha de redução da pobreza. A ênfase na culpabilização das áreas de educação e de saúde pelo atraso econômico dos países periféricos e pela pobreza, por parte desses organismos, é uma velha tática liberal que dissimula os interesses econômicos e políticos externos e internos, vinculados ao processo de acumulação capitalista, subjacentes às deficiências e à suposta necessidade de financiamento para essas áreas, cujo objetivo só pode ser o favorecimento e a ampliação e concentração do capital (FIGUEIREDO, 2006, p.244).

57

Reiteramos, portanto que a educação e a saúde, respectivamente,

justificam uma o fracasso da outra, sustentando o modelo de desenvolvimento

capitalista pela exclusão dos indivíduos. É preciso compreender que a saúde é

resultado das condições de vida dos indivíduos, que são determinadas pela

sua inserção no processo de produção e reprodução de usa existência..

Portanto, saúde não se ensina, mas precisa ser problematizada enquanto o

direito de toda a população a viver em condições adequadas (COLLARES,

MOYSES, 1989, p.86). A educação também não deve servir apenas como uma

defensora dos interesses do capital, propagando os princípios liberais,

culpando os indivíduos e isentando o modo de produção capitalista, deveria

contribuir, dessa forma, para romper com seu papel histórico de legitimar e

justificar desigualdades e injustiças sociais (COLLARES, MOYSES, 1989,

p.86).

Magda Soares (2002) apresenta ideologias que ajudaram e ainda

ajudam a propagar o fracasso escolar como um problema individual, isolado,

nesse sentido, deve-se compreender que o discurso pela democratização da

escola, a idéia de escola como direito para todos e da igualdade de

oportunidades, visa aparentemente responder a demanda popular por

educação, contudo é importante considerar que:

A escola pública não é, como erroneamente se pretende que seja, uma doação do Estado ao povo; pelo contrário, ela é uma progressiva e lenta conquista das camadas populares em sua luta pela democratização do saber, através da democratização da escola (SOARES, 2002, p. 9)

Esta escola, pautada nas igualdades de oportunidades, pode ser

compreendida pelo que Magda Soares chama de ideologia do dom:

[...] as causas do sucesso ou do fracasso devem ser buscadas nas características dos indivíduos: a escola oferece ―igualdade de oportunidades‖; o bom aproveitamento dessas oportunidades dependerá do dom – aptidão, inteligência, talento – de cada um. A ideologia do dom oculta-se sob um discurso que se pretende cientifico : a existência de desigualdades naturais, de diferenças individuais vem sendo legitimada pela Psicologia, desde sua já distante constituição como ciência autônoma, na segunda metade do século XIX. Assim, a Psicologia Diferencial e a Psicometria – ramos da Psicologia – legitimam desigualdades e diferenças, pela mensuração de aptidões intelectuais (aptidão verbal, numérica, espacial, etc.), de prontidão para a aprendizagem, de inteligência ou de quociente intelectual (QI) etc., através de testes, escalas, provas, aparentemente

58

―objetivos‖, ―neutros‖, ―científicos‖. Essas desigualdades e diferenças individuais, assim legitimadas, é que explicariam as diferenças de rendimento escolar, dessa forma, não seria a escola a responsável pelo fracasso do aluno; a causa estaria na ausência, neste, de condições básicas para a aprendizagem, condições que só ocorreriam na presença de determinadas características indispensáveis ao bom aproveitamento daquilo que a escola oferece (SOARES, 2002, p.10).

A cientificidade desta ideologia é abalada pelo fato de que ―as diferenças

naturais‖ não ocorriam apenas entre indivíduos, mas, sobretudo, entre grupos

de indivíduos: entre os grupos social e economicamente privilegiados e os

grupos desfavorecidos, entre pobres e ricos, entre as classes dominadas e

dominantes (SOARES, 2002, p.11). Se a explicação ao fracasso fosse à da

ideologia do dom, alunos da classe dominante também fracassariam. O

fracasso maciçamente concentrado nos alunos das camadas populares

socioeconomicamente desfavorecidas, trouxe a tona outra ideologia: a

ideologia da deficiência cultural:

As desigualdades sociais é que seriam responsáveis pelas diferenças de rendimento dos alunos na escola. Segundo essa concepção, as condições de vida de que gozam as classes dominantes e, em conseqüência, as formas de socialização da criança no contexto dessas condições permitem o desenvolvimento, desde a primeira infância, de características – hábitos, atitudes, conhecimentos, habilidades, interesses – que lhe dão a possibilidade de ter sucesso na escola. Ao contrário, as condições de vida das classes dominadas e as formas de socialização da criança no contexto dessas condições, não favoreceriam o desenvolvimento dessas características e, assim, seriam responsáveis pelas dificuldades de aprendizagem dos alunos delas provenientes (SOARES, 2002, p.13).

Os que propõem essa explicação ao fracasso escolar, não consideram

os antagonismos de classe, não criticam a estrutura social, acreditam sim

numa superioridade no contexto cultural das classes dominantes, as

desvantagens dos alunos viriam da ―deficiência cultural‖ ou ―privação cultural‖

(SOARES, 2002. p. 13)

Os termos deficiência, carência, ―privação cultural‖, significam falta de

cultura. Nesse caso, são inaceitáveis no âmbito sociológico e antropológico,

pois todos os grupos possuem uma cultura, diferente uma da outra, mas

possuem. O que acontece é que;

A escola, como instituição a serviço da sociedade capitalista assume e valoriza a cultura das classes dominantes; assim, o

59

aluno proveniente das classes dominadas nela encontra padrões culturais que não são os seus e que são apresentadas como ―certos‖, enquanto os seus próprios padrões são ou ignorados como inexistentes, ou desprezados como ―errados‖. Seu comportamento é avaliado em relação a um ―modelo‖, que é o comportamento das classes dominantes; os testes e provas a que é submetido são culturalmente preconceituosos, construídos a partir de pressupostos etnocêntricos, que supõem familiaridade com conceitos e informações próprios do universo cultural das classes dominantes. Esse aluno sofre, dessa forma, um processo de marginalização cultural e fracassa, não por deficiências intelectuais ou culturais, como sugerem a ideologia do dom e a ideologia da deficiência cultural, mas porque é diferente. Neste caso, a responsabilidade pelo fracasso escolar dos alunos provenientes das camadas populares cabe à escola, que trata de forma discriminativa a diversidade cultural, transformando diferenças em deficiências (SOARES, 2002,p.15 -16)(grifos do autor).

Estas três ideologias apresentadas por Soares demonstram que a

discriminação das camadas populares na escola, representa uma ameaça ao

próprio ideário liberal que fundamenta e justifica a sociedade capitalista, pois, o

principio de ―igualdade de oportunidades‖ vê-se negado, quando se evidencia

que a escola pública, universal e gratuita não serve igualmente a todas as

crianças: crianças das classes favorecidas obtêm sucesso, enquanto crianças

das camadas populares enfrentam dificuldades de aprendizagem, fracassam,

abandonam o sistema de ensino mal iniciam o período de escolarização

obrigatória.Com a ideologia da deficiência cultural, surge uma resposta

confortável ocultando a verdadeira causa da discriminação: a desigual

distribuição de riqueza numa sociedade capitalista (SOARES, 2002, p. 30-31).

Justifica-se que mesmo com igualdade de oportunidade, o indivíduo tem a

liberdade de escolha, que seu desenvolvimento depende da sua

individualidade, se tem talento, se tem dom, se é esforçado. Pensar todos

estes princípios isoladamente, fortalece o mito e a existência do fracasso

escolar.

O fracasso deve ser desmistificado, pois se não rompermos com o

pensamento circular, que a criança pobre não aprende, porque é pobre, porque

fala errado, porque tem fome, estaremos esquecendo de fazer a análise do

contexto e das relações sociais próprias do modelo de sociedade capitalista e

com isso estaremos mantendo os mitos e aumentando ainda mais os

preconceitos com relação aos indivíduos das classes menos favorecidas,

60

desconsiderando que, as crianças das classes mais favorecidas, as crianças

ricas também apresentam problemas de aprendizagem e que também

―fracassam‖.

É preciso compreender o fracasso como resultado das relações do modo

de produção capitalista, que deve considerar a divisão de classes, a

distribuição desigual de riquezas, a cultura dominante x a cultura de cada

classe ou grupo, a ideologia liberal e como a mesma justifica a sociedade

capitalista. Compreendendo o contexto, se perceberá que a escola proposta

como um lugar de igualdade, um lugar de acesso ao saber, onde ―todos são

iguais‖ parece ser uma escola mais contra o povo, do que para o povo. Contra

porque apesar de ser proposta como universal, gratuita, acessível, cria

estratégias que impedem o povo de aprender, e o fracasso é uma destas.

O suposto fracasso proveniente das camadas populares representa uma

dominação que estes estratos sociais sofrem na sociedade como um todo, e de

certa forma atende aos interesses da classe dominante, preservando sua

hegemonia. A escola passa a ser uma instituição a serviço das classes

dominantes, e o fracasso que deveria ser ―resolvido‖ parece ser um fato sem

solução educacional, pois este só poderá ser ―solucionado‖ a partir do

momento em que forem eliminadas as discriminações, as desigualdades,

possibilitando a verdadeira igualdade de condições de aprendizagem. Todavia,

seria necessário transformações na estrutura social como um todo, pois as

transformações no âmbito escolar não passam de mistificações, não surtindo

efeitos, servindo apenas para simular soluções, onde na verdade apenas se

reforça ainda mais o suposto fracasso o mistificando, dissimulando, tornando

apenas o individuo o agente do seu fracasso ou sucesso (SOARES, 2002,

p.64).

61

Considerações finais

A compreensão da sociedade capitalista, da sua consolidação e

organização é muito importante para compreensão de qualquer fato que

aconteça neste contexto. Abordar um tema que traz em si uma expressão forte

como o fracasso é um processo delicado. Se nos apropriamos da expressão

fracasso, já estamos considerando que na escola existe uma divisão de

classes: Fracassados e bem sucedidos. Estaremos constatando que realmente

existe um fracasso. Considerando que a sociedade capitalista é uma sociedade

classista e a ideologia liberal, justifica esta sociedade, o que se buscou, foi

compreender quais foram e são as justificativas desta ideologia para este

suposto fracasso.

O fracasso escolar, um tema muito abordado na realidade educacional

brasileira, foi e é na maioria das vezes, analisado como um fato individual,

patológico, relacionado às condições sociais e econômicas dos alunos. Tais

concepções, contribuem para que a hegemonia da classe dominante prevaleça

e seja preservada:

[...] o fracasso dos alunos provenientes das camadas populares é apenas mais uma faceta da dominação que essas camadas sofrem na sociedade como um todo, e atende aos interesses das classes dominantes, pois colabora para a preservação de sua hegemonia ( SOARES, 2003, p.64)

Diante das concepções a respeito do fracasso escolar, percebe-se que o

mesmo esteve sempre relacionado as questões de saúde e que esta área

serviu para justificar o fracasso da educação, medicalizando, patologizando e

tornando natural e ―culpa‖ do indivíduo seu ―fracasso‖.

Este enfoque em questões de saúde, a partir dos anos de 1970,

contribuiu também para enfatizar que o individuo pobre era aquele que mais

estava sujeito ao fracasso escolar senão o que mais fracassava, ora por sua

cultura ser ―deficiente‖, ora por não ter ―aptidões‖ necessárias, outrora por não

saber cuidar da sua saúde. Neste sentido, foi preciso compreender a

emergência da preocupação com a administração da pobreza e

conseqüentemente da prioridade em saúde e educação, visto que essas duas

áreas justificam uma o fracasso da outra, num movimento circular, conforme

destacamos:

62

Assim, ―a educação e a saúde têm justificado uma o fracasso da outra, sempre transformando as grandes questões sociais em individuais, isentando de responsabilidade o modelo de desenvolvimento...‖ [...] Destaca-se, por exemplo, o seguinte raciocínio circular: ―É preciso ser sadio para ter boa aprendizagem‖. ―É preciso ser culto (não ignorante) para ter saúde‖ (COLLARES; MOYSÉS, 1989, p. 73).

As análises que partem deste raciocínio acabam desconsiderando o

modo de produção capitalista e todas as implicações da ideologia liberal, neste

contexto. É necessário compreender que o suposto fracasso escolar é refletido

também nas questões sobre o mercado de trabalho, pois estes indivíduos

serão considerados ―fracassados‖ e ―culpados‖, pela sua condição social e

econômica. Por isso, a partir do principio liberal de que se garante a igualdade

de oportunidades cabendo ao individuo sustenta-se a educação como forma de

alcançar ascensão social.Dessa forma,

A falta de educação é que explicaria a diferença de renda e a

situação de pobreza. Nesse sentido, no contexto da ideologia da

globalização, o mito liberal da escola reforça a interpretação de

que, pela educação, será possível reduzir a pobreza e as

desigualdades, não apenas entre os indivíduos, mas entre as

nações (FIGUEIREDO, 2006,p. 145).

Conforme sustentam o BIRD e o BID,

[...] A educação, ao ser concebida como mecanismo de mediação na redução das desigualdades sociais e superação do próprio atraso do desenvolvimento brasileiro, cumpre sua ―...função ideológica de dissimular os mecanismos de discriminação da própria educação, bem como; os da ordem econômica. As desigualdades entre as classes sociais bem como a dissimulação que as produz (pela educação) são produto da ordem econômica capitalista (CUNHA, 1979,p. 70 apud FIGUEIREDO, 2006,p. 146 – 147).

Desta forma, se percebe o quanto a ideologia liberal está presente no

contexto do capitalismo, justificando e consolidando este modo de produção e

como o fracasso escolar está relacionado posteriormente ao trabalho. Onde o

único ―culpado‖ é o indivíduo, e o próprio modelo de desenvolvimento

capitalista fica isento das responsabilidades.

Esta pesquisa, embora com limites, foi muito importante para a

compreensão do modelo de desenvolvimento capitalista e de como o fracasso

63

escolar está relacionado a preservação da hegemonia capitalista, se

estendendo à vida dos indivíduos que passam a ser considerados fracassados

em outros aspectos que não só os escolares, tendo a ideologia liberal

dissimulando e mistificando a real lógica da sociedade capitalista.

64

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