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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CENTRO DE EDUCAÇÃO E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS - NÍVEL DE MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS ETNO-HISTÓRIA GUARANI E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO A PARTIR DA ARQUITETURA: UM ESTUDO DE CASO NA ALDEIA TEKOHA AÑETETE GRACIELI ERNA SCHUBERT KÜHL FOZ DO IGUAÇU 2013

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

CENTRO DE EDUCAÇÃO E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM SOCIEDADE,

CULTURA E FRONTEIRAS - NÍVEL DE MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE, CULTURA E FRONTEIRAS

ETNO-HISTÓRIA GUARANI E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO A PARTIR DA

ARQUITETURA: UM ESTUDO DE CASO NA ALDEIA TEKOHA AÑETETE

GRACIELI ERNA SCHUBERT KÜHL

FOZ DO IGUAÇU

2013

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GRACIELI ERNA SCHUBERT KÜHL

ETNO-HISTÓRIA GUARANI E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO A PARTIR DA

ARQUITETURA: UM ESTUDO DE CASO NA ALDEIA TEKOHA AÑETETE

Dissertação apresentada à Universidade

Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE –

para a obtenção do titulo de Mestre em

Sociedade, Cultura e Fronteiras, junto ao

Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação

Strictu Sensu, nivel de Mestrado - Área de

Concentração: Sociedade, Cultura e

Fronteiras. Linha de Pesquisa: Território,

História e Memória.

Orientador: Prof. Dr. Erneldo Schallenberger

FOZ DO IGUAÇU

2013

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.

1 Ficha Catalográfica

2 Elaborada pela Biblioteca Central do Campus de Cascavel - Unioeste

K98e

Kühl, Gracieli Erna Schubert

Etno-história Guarani e a construção do espaço a partir da

arquitetura: um estudo de caso na aldeia Tekoha Añetete / Gracieli

Erna Schubert Kühl — Foz do Iguaçu, PR: UNIOESTE, 2013.

132 f. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Erneldo Schallenberger

Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do Oeste do

Paraná.

Bibliografia.

1. Guarani. 2. Etnohistória. 3. Aldeia Tekoha Añetete. I.

Universidade Estadual do Oeste do Paraná. II. Título.

CDD 21ed. 306.08998

Bibliotecária: Jeanine da Silva Barros CRB-9/1362

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GRACIELI ERNA SCHUBERT KÜHL

ETNO-HISTÓRIA GUARANI E A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO A PARTIR DA

ARQUITETURA: UM ESTUDO DE CASO NA ALDEIA TEKOHA AÑETETE

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em Sociedade,

Cultura e Fronteiras e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto

Sensu em Sociedade, Cultura e Fronteiras – Nível de Mestrado, área de Concentração em

Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________

Prof. Dr. Protasio Paulo Langer

Membro Efetivo (convidado)

_____________________________________________

Prof. Dr. Valdir Gregory

Membro Efetivo (da Instituição/Programa)

__________________________________________

Prof. Dr. Erneldo Schallenberger

Membro Efetivo (Orientador e Presidente da Instituição/Programa)

Cascavel, 25 de fevereiro de 2013.

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AGRADECIMENTOS

O processo para obtenção do titulo de mestre não foi fácil, por vezes pensou-se

em encerrá-lo antes da hora. Porém, sempre encontramos apoios que nos levam a acreditar

que a caminhada valerá a pena...

Inicialmente, agradeço a minha família, sempre estivemos juntos, principalmente

nos momentos difíceis, como quando somos inesperadamente surpreendidos pela perda de um

dos nossos. Infelizmente temos que continuar a caminhada, mesmo que ela pareça impossível,

a fé nos mostra o caminho. E nós continuamos, tocando em frente tudo aquilo que antes era

compartilhado com ela... da qual não pudemos nos despedir mas que sabemos o que ela faria

se ainda conosco estivesse.

Agradeço em especial ao Leandro, pela imensa compreensão que tem sempre que

decidimos investir tempo em algo. Ao meu pequeno grande menino Gabriel, razão de nossa

existência, que sempre questionou: ‘Mãe, quando você vai terminar seu trabalho?’

Agradeço aos Guarani Tekoha Añetete pelas oportunidades concedidas, pelas

vivencias compartilhadas e valores ensinados.

Ao meu orientador, Professor Doutor Erneldo Schallenberger, que sempre esteve

disposto a orientar-me, tanto em questões simples quanto nas mais complexas.

Agradeço a Faculdade Assis Gurgacz pela concessão de bolsa auxílio para

realização do mestrado. Agradeço especialmente à Professora Dra. Solange pelas

oportunidades concedidas e que sempre contribuíram para com meu desenvolvimento pessoal

e profissional, espero poder manter-me nesta caminhada, auxiliando sempre para superarmos

os desafios que surgem.

Aos meus colegas Professores do Curso de Arquitetura e Urbanismo/CAUFAG e

Design de Interiores/Dom Bosco, especialmente aos amigos Doutores Silmara e Fúlvio,

sempre dispostos a ajudar e oferecer palavras de incentivo na caminhada.

Ao Professor Doutor Valdir Gregory que ainda na especialização, em 2004,

orientou o projeto de pesquisa que resultou nesta dissertação. Suas palavras sempre foram

extremamente úteis, esclarecedoras e motivadoras.

Agradeço também a minha amiga, Doutora Lucia Terezinha Macena Gregory pelo

grande apoio acadêmico e pessoal. Sua intelectualidade inspiradora, sua experiência de vida e

suas palavras de conforto sempre fizeram minhas trajetórias mais aprazíveis.

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A todos os professores do PPGSCF-UNIOESTE e também à Vânia, secretária do

Programa, que sempre compreendeu minha distância, oferecendo apoio em relação às

questões burocráticas.

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KÜHL, Gracieli Erna Schubert. Etno-história Guarani e a construção do espaço a partir

da arquitetura: um estudo de caso na Aldeia Tekoha Añetete. 2013. 132 f. (Dissertação) –

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Foz do Iguaçu/PR.

RESUMO

Esta dissertação caracteriza-se como um estudo de caso na aldeia indígena Guarani

denominada Aldeia Tekoha Añetete, situada no município de Diamante d’Oeste/PR. Tem por

objetivo principal registrar aspectos culturais do grupo através de relatos sobre a construção

do espaço habitado e da arquitetura em si. A problemática dessa atividade está voltada à

arquitetura tradicional dos Guarani em oposição à arquitetura desenvolvida por agentes

externos no interior da aldeia, entre eles a Cohapar (Companhia de Habitação do Paraná) e a

Itaipu Binacional. Entre essas construções encontram-se residências e casa de reza. A

discussão está dividida em três capítulos. Inicialmente apresentam-se conceitos relacionados à

problemática, entre eles: cultura, identidade, território. Em um segundo momento é feita uma

descrição densa da aldeia visando caracterizá-la enquanto objeto de estudo. No terceiro

capítulo são abordadas as obras arquitetônicas presentes na aldeia, entre elas a arquitetura

tradicional dos Guarani, a arquitetura introduzida pela Cohapar e as obras feitas pela Itaipu,

além de breve análise sobre os mecanismos de incorporação dessas obras feitas por agentes

externos para com a dinâmica sociocultural do grupo a partir do olhar antropológico de

Rubem Thomaz de Almeida.

Palavras-chave: Guarani; Arquitetura; Etno-história; Aldeia Tekoha Añetete.

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KÜHL, Gracieli Erna Schubert. Etnohistory Guarani and construction of space from the

architecture: a case study in the Village Tekoha Añetete. 2013. 132 f. (dissertation) –

Satate Univessity of West Paraná – UNIOESTE. Foz do Iguaçu/PR.

ABSTRACT

This dissertation is characterized as a case study in Guarani Indian village named the Tekoha

Añetete reservation, Village in the municipality of Diamante d'oeste\/PR. Aims to register

main cultural aspects of group through reports on the construction of the living space and the

architecture itself. The problem of this activity is devoted to the traditional architecture of the

Guarani as opposed to architecture developed by external agents inside the village, among

them the Cohapar (housing Company of Paraná) and Itaipu Binacional. Among these

buildings are residences and prays. The discussion is divided into three chapters. Initially

presents concepts related to the problem, among them: culture, identity, territory. In a second

moment is made a dense description of the village in order to characterize it as an object of

study. In the third chapter are addressed the architectural works present in the village,

including the traditional architecture of the Guarani, the architecture introduced by the

Cohapar and the works made by Itaipu, besides brief analysis on merger of these works made

by external agents to the sociocultural dynamics of the group from the anthropological gaze of

Rubem Thomaz de Almeida.

Keywords: Guarani; Architecture; Ethnohistory; The Tekoha Añetete Reservation Village.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 – Imagem de satélite - Aldeia Tekoha Añetete......................................................51

FIGURA 2 – Imagem de satélite – núcleo familiar de Vicente Vogado..................................54

FIGURA 3 – Posto de Saúde situado na Aldeia.......................................................................58

FIGURA 4 – Escola Estadual Kuaá Mbo’e..............................................................................59

FIGURA 5 – Imagem de satélite – Escola Estadual Kuaá Mbo’e e seu entorno......................60

FIGURA 6 – Alunos Guarani em sala de aula..........................................................................62

FIGURA 7 – Centro Cultural situado na Aldeia.......................................................................63

FIGURA 8 – Barracão pré-moldado construído na Aldeia.......................................................63

FIGURA 9 – Cerimônia religiosa – Casa de Reza de Jerônimo Vogado.................................66

FIGURA 10 – Cerimônia religiosa – Casa de Reza de Jerônimo Vogado – detalhe do mbaracá

mirim.........................................................................................................................................67

FIGURA 11– Cerimônia religiosa – Casa de Reza de Jerônimo Vogado – detalhe do

takuá........................................................................................................................ ..................68

FIGURA 12 – Altar da Casa de Reza de Jerônimo Vogado.....................................................69

FIGURA 13 – Estrutura arquitetônica tradicional Guarani......................................................77

FIGURA 14 – Construção de residência tradicional Guarani...................................................79

FIGURA 15 – Construção de residência tradicional Guarani – detalhe do capim utilizado na

cobertura....................................................................................................... .............................79

FIGURA 16 – Interior de residência tradicional Guarani.........................................................80

FIGURA 17 – Planta baixa de residência tradicional Guarani.................................................80

FIGURA 18 – Residência de Vicente Vogado.........................................................................83

FIGURA 19 – Planta baixa de residência construída pela Cohapar na Aldeia.........................88

FIGURA 20 – Croqui de residência construída pela Cohapar na Aldeia.................................89

FIGURA 21 – Residência de Vicente Vogado – detalhe da presença de duas construções,

sendo uma tradicional e outra no padrão Cohapar....................................................................89

FIGURA 22 – Residência construída pela Itaipu Binacional na Aldeia...................................95

FIGURA 23 – Residência de Leonardo – padrão Itaipu...........................................................96

FIGURA 24 – Casa de Reza – padrão Itaipu Binacional..........................................................97

FIGURA 25 – Vista geral da Casa de Reza da Família Vogado..............................................98

FIGURA 26 – Fachada da Casa de Reza da Família Vogado..................................................98

FIGURA 27 – Interior da Casa de Reza da Família Vogado....................................................98

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

- Temática da Pesquisa..............................................................................................................10

- Marco teórico-metodológico da pesquisa...............................................................................13

- Estrutura da Dissertação.........................................................................................................19

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA......................................................................................24

1.1 Questões conceituais...........................................................................................................24

1.2 Características Gerais da Cultura Guarani..........................................................................34

2 CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO: A Aldeia Tekoha Añetete ..........41

2.1 A Aldeia Tekoha Añetete....................................................................................................31

2.2 Caracterização da Aldeia e Organização do Espaço...........................................................49

2.3 Dinâmica Sócio/cultural......................................................................................................64

3 EXEMPLOS DE ARQUITETURA PRESENTES NA ALDEIA TEKOHA

AÑETETE................................................................................................................................72

3.1 Arquitetura "Tradicional" representada nas obras atuais feitas pelos Guarani na Aldeia

Tekoha Añetete.........................................................................................................................72

3.2 Arquitetura implantada pela Companhia de Habitação do Paraná/Cohapar na Aldeia

Tekoha Añetete.........................................................................................................................84

3.3 Arquitetura implantada pela Itaipu Binacional na Aldeia Tekoha

Añetete......................................................................................................................................90

3.4 Um olhar antropológico sobre a Aldeia Tekoha Añetete Arquitetura Tradicional /

Cohapar / Itaipu ........................................................................................................................99

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................105

BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................109

ANEXOS................................................................................................................................112

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INTRODUÇÃO

- Temática da Pesquisa

A cultura Guarani pode ser considerada uma fonte inesgotável para pesquisas nos

diferentes campos das ciências humanas, sociais e aplicadas, entre outras, pois é composta por

símbolos materiais e imateriais, valores e práticas culturais que historicamente foram sendo

incorporadas pela tradição e recriadas em situações de convívio dos diferentes grupos, tanto

interna quanto externamente a essa cultura, através do contato com outras culturas.

Trata-se de uma cultura que emerge e se apresenta em um determinado espaço social

que é, acima de tudo, simbólico e a partir do qual ela se torna fundamental, pois, além de

justificar ações, também possibilita o desenvolvimento e a manutenção dos valores e das

crenças dos grupos. No caso dos Guarani, esse espaço coletivo imaginário possui muito mais

importância do que o espaço geográfico ou os bens materiais em si. São os bens imateriais, as

representações, os símbolos incorporados pela tradição às vivências, ao espaço, aos objetos e

à arquitetura que possibilitam a legitimação e a manutenção dos valores culturais do grupo. A

representação que o material assume encontra-se pautada em uma esfera superior, intangível,

qual seja a esfera simbólica.

Os apontamentos que compõem a presente discussão têm como propósito ampliar as

possibilidades de conhecimento de aspectos relacionados à cultura dos guarani e a atmosfera

simbólica que os envolve na atualidade, através de análise sobre a construção do espaço

habitado. Os elementos materiais estão sendo focados a partir da arquitetura dita ‘tradicional’

do grupo, com destaque para as características construtivas, materiais e técnicas empregadas,

e, sobretudo, nas representações simbólicas presentes em cada elemento incorporado pelos

Guarani na construção e no uso desses espaços.

Para desenvolver esta discussão, optou-se metodologicamente por um estudo de caso

formulado a partir da etno-história, baseado em pesquisa de campo junto ao grupo Guarani

que habita a Aldeia Tekoha Añetete, situada no município de Diamante do Oeste/PR. Este

recorte foi instituído pelo fato desse grupo possuir, em sua trajetória, peculiaridades em

relação a outras aldeias paranaenses, peculiaridades que, mesmo indiretamente, podem ter

provocado alterações significativas em relação ao ‘modo de ser’ dos Guarani dessa região.

Dentre as ocorrências que diferenciam as aldeias do oeste paranaense de outras há de

se considerar, num primeiro momento, a constituição da tríplice fronteira Brasil, Paraguai e

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Argentina. O território guarani original, do qual se tem conhecimento, abrangia, embora

intermitentemente, a região que cobria quase toda a bacia do Prata, incluindo a tríplice

fronteira referida. Com a formação dos estados nacionais, esse território, ocupado

predominantemente pelos Guarani, foi dividido segundo os novos limites territoriais vigentes.

Ocorre que os Guarani necessitaram reconstruir esse espaço, não somente de maneira

geográfica, mas também e principalmente de maneira simbólica, pois passaram a ser

submetidos à tutela dos poderes nacionais oficiais, segundo o país ao qual sua porção de

território é subordinada.

As fronteiras do território original não mais existem perante as diferentes soberanias

nacionais formadas a partir da constituição dos estados rio-platenses. Considerando a

importância que o território possui para os Guarani, enquanto lugar de reconhecimento do

grupo como unidade cultural, pode-se considerar a possibilidade de que tenham ocorrido

alterações substanciais em relação ao seu ‘modo de ser’, bem como de suas práticas culturais.

Em um segundo momento, outra ocorrência que possivelmente acarretou alterações

culturais significativas aos grupos do oeste paranaense foi à formação do reservatório de água

para a Usina Hidrelétrica de Itaipu (o atual Lago de Itaipu), no início da década de 1980. Esse

fato gerou tensões e transformações, principalmente em relação aos limites geográficos

ocupados pelos Guarani na região. A porção de território original que restou a eles, chamada

Tekoha Guassu Jacutinga, foi completamente inundada, levando o grupo a reivindicar novos

espaços. A Itaipu então concedeu a estes Guarani uma porção de área com pouco mais de 200

hectares, chamada de Tekoha Oco’ÿ, situada no município de São Miguel do Iguaçu/PR,

espaço esse insuficiente em relação ao número de habitantes a ele destinados, gerando

conflitos internos. Ocorreu que muitos Guarani migraram e iniciaram uma luta por novos

territórios. Essa estratégia resultou em duas aldeias com sede atualmente no município de

Diamante do Oeste/PR, sendo elas: Tekoha Añetete (1997) e Tekoha Itamarã (2002).

Os aspectos citados acima influenciaram diretamente na delimitação temporal e

espacial desta pesquisa. Constitui-se, portanto, objeto de análise da presente dissertação uma

dessas ‘novas’ aldeias, a Tekoha Añetete, no município de Diamante do Oeste, situada em

região de fronteira internacional. O recorte temporal é fixado para o período que se estende

dos anos 1970 até os dias atuais, também em função das especificidades citadas acima.

Após visitas de campo para o estabelecimento dos primeiros contatos, definiu-se pela

discussão de aspectos relacionados às representações simbólicas atribuídas à arquitetura

tradicional guarani e, sobretudo, à construção do espaço habitado. Além disso, são

apresentados e discutidos processos de implantação de programas habitacionais desenvolvidos

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pela Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar) e pela Itaipu, por volta dos anos 2004 a

2007, dos quais resultou a incorporação, nesse espaço da aldeia, de obras arquitetônicas não

indígenas, como residências e casa de reza.

Nesse aspecto serão apresentados discursos de representantes tanto da Cohapar quanto

da Itaipu sobre a implantação dessas políticas públicas de habitação, além de discutir algumas

semelhanças e diferenças do uso e da significação dessas obras em relação à dinâmica

sociocultural do grupo.

Dentre as questões a serem discutidas, temos: Quais são as obras arquitetônicas

presentes na aldeia? Como se dá a significação e o uso dessas construções por parte do

grupo? Em relação às obras construídas pela Cohapar e pela Itaipu, por que foram

construídas na aldeia? Quais foram os objetivos? Como se deu o processo para a definição

de tipologias construtivas, materiais ou técnicas e mesmo a formatação dessas tipologias?

Como ocorreu a incorporação dessas obras pelos Guarani e quais foram as influências dessas

ocupações na dinâmica cultural do grupo?

Esses questionamentos serão abordados a partir do viés da interdisciplinaridade, pois

se supõe que, através dessa perspectiva, tanto a metodologia quanto as fontes para a pesquisa

proposta ganham corpo e se estendem por caminhos flexíveis e bastante atraentes,

possibilitando a interação entre diferentes áreas do conhecimento científico tendo um objeto

comum. Nesse sentido, é possível integrar diferentes disciplinas em torno do estudo da

Cultura, tais como a História, a Antropologia, a Etnografia e a Arquitetura.

- Marco teórico-metodológico da pesquisa

A abordagem adotada tem por característica a interdisciplinaridade, fundada na

Arquitetura, na Antropologia, na Etnografia, na História e na memória, entre outros. Esta

abordagem está centrada em um estudo de caso baseado na cultura guarani, tendo como foco

a produção do espaço habitado. Através de análise comparativa da arquitetura tradicional dos

guarani na atualidade em relação a obras construídas por agentes externos junto à aldeia,

pretende-se entender os mecanismos de incorporação dos elementos arquitetônicos ao

cotidiano do grupo, através da perspectiva antropológica.

O enfoque dado à construção do espaço a partir da arquitetura busca enfatizar não

somente a arquitetura como técnica construtiva ou a matéria-prima adotada, mas também,

aprofundar a discussão do sentido cultural que as construções assumem perante as práticas

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tradicionais do grupo. Assim, dada à questão dos símbolos culturais que se encontram

materializados através da arquitetura, é preciso considerar a função simbólica atribuída a essas

obras enquanto parte constituinte de um território também construído simbolicamente.

Para colher as fontes que compõem esta dissertação foram utilizados os recursos de

observações de campo, entrevistas semiestruturadas e registros fotográficos, aliados à

pesquisa bibliográfica teórica e à leitura de fontes específicas já produzidas sobre a temática,

dando ênfase à fala dos Guarani. Foram registradas entrevistas em áudio e em vídeo

abordando as definições que esses sujeitos utilizam para externalizar seus valores e suas

crenças, seu universo simbólico em relação às representações materializadas através da

arquitetura.

A seleção dos sujeitos para registro de entrevistas baseou-se principalmente no nível

de informações e no papel social que exercem no grupo. Por outro lado, obedeceu-se o critério

de permissão do registro em vídeo/áudio. Foi elaborado um roteiro contendo os pontos

principais a serem abordados junto aos entrevistados, roteiro esse comunicado com

antecedência aos entrevistados.

Entre os entrevistados durante a pesquisa de campo, cabe ressaltar que o professor

Vicente Vogado é tido como um dos indivíduos que melhor expressa o cotidiano e a dinâmica

cultural da Tekoha Añetete, pois é detentor de conhecimentos herdados de seus antepassados

e transmite esses valores e conhecimentos aos mais jovens, enquanto professor na escola da

aldeia. Além disto, ele domina o idioma português, aspecto que facilita a comunicação com os

juruá/brancos. Ele afirma que conversa muito com os mais velhos, pois assim constrói o seu

conhecimento para então repassar aos mais jovens. É preciso ter interesse nos assuntos

tradicionais trazidos por seus antepassados para então ter o que ensinar aos mais jovens: “Nas

sociedades sem escrita, a atitude de lembrar é constante, e a memória coletiva confunde

história e mito. Tais sociedades possuem especialistas em memória que têm o importante

papel de manter a coesão do grupo” (SILVA, 2006).

Esse aspecto demonstra, claramente, uma das principais características da cultura

guarani, que é a formação da pessoa através da palavra. A palavra se forma através da fala,

inclusive, no passado, as crianças Guarani somente eram batizadas pelo rezador quando

iniciavam a fala, pois se acreditava que a partir desse momento o corpo possui sua alma

formada, podendo inclusive receber o nome revelado pelo rezador.

Segundo o funcionário da Itaipu, João Bernardes, que atua junto às comunidades

indígenas da região há mais de duas décadas, o professor Vicente atua como elo entre as

gerações mais tradicionais da aldeia, e as gerações mais jovens. Dessa forma, ele conquistou a

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liberdade de falar e o respeito por todos do grupo enquanto conhecedor, praticante e professor

da cultura tradicional dos Guarani.

Ele tem um elo muito forte entre a geração nova e a antiga, o Vicente [...] é

uma geração próspera da espiritualidade nos dias de hoje, poucas pessoas que possuem esta bagagem nas áreas indígenas, não é só daqui não, de

muitas outras áreas, não se conhece uma liderança, uma formação de

professor que carregue esta bagagem, mesmo quando ele fala em perguntar para os antigos, mas o que ele faz e o que ele presencia hoje já é cem anos na

frente, uma pessoa de muita serenidade, uma pessoa que tem que ser vista

com muito respeito, apesar de ser jovem ele tem toda a formação religiosa, você olha pra traz, os familiares dele, é algo que vem de muito longe e ele

está carregando para os seus descendentes, isto é muito bom... (João

Bernardes, entrevista concedida a Gracieli E. Schubert Kühl, em 19/12/2012

na Aldeia Tekoha Añetete).

Além das entrevistas com o professor Vicente, foram registrados também depoimentos

com o professor João Alves, atual cacique da aldeia e com Augustinho, Guarani que reside no

local; entre os depoentes não-guarani tivemos a colaboração de: João Bernardes, citado acima,

funcionário da Itaipu há mais de duas décadas atuando junto às aldeias na região de

abrangência da Binacional; com o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida, também

presença constante e, muitas vezes, decisiva na trajetória histórica do grupo enquanto

consultor da Itaipu para assuntos indígenas; com o indigenista Edívio Batistelli, funcionário

da Fundação Nacional do Índio (Funai); e com Rosangela Curri Kozak, funcionária da

Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar) pelo seu envolvimento no processo de

construção das casas em várias aldeias do Paraná, inclusive na Tekoha Añetete.

Em relação à arquitetura, foi realizado levantamento e registro das construções da

aldeia, enfatizando a tipologia construtiva, o material e a técnica adotada, a disposição

espacial no conjunto da aldeia, as representações simbólicas envolvendo as construções, entre

outros aspectos. Elaborou-se, também, levantamento fotográfico das construções feitas pela

Cohapar e Itaipu, registros em plantas arquitetônicas e demais recursos disponíveis.

Como suporte metodológico para o desenvolvimento desta atividade buscou-se como

referência pesquisadores como Ciro F. Cardoso e Ronaldo Vainfas (1997), que discutem

estratégias para o desenvolvimento de pesquisas científicas utilizando-se da

interdisciplinaridade para estudos de caso. Buscou-se apoio, também, enquanto referencial

metodológico, em obras de autores que discutem a produção científica pelo viés da etno-

história, da etnografia, da história oral, da memória e do estudo de caso, características

marcantes no âmbito metodológico desta dissertação.

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Segundo Cardoso & Vainfas (1997), desde muito tempo, a pesquisa científica e os

métodos adotados para tal vêm passando por constantes transformações. Nesse processo,

alguns paradigmas mantêm-se enquanto outros acabam por ser ultrapassados por novas

correntes historiográficas que surgem. Muitas dessas transformações ocorrem em função das

mudanças culturais, tecnológicas e mesmo sociais pelos quais vem passando a comunidade

mundial. Ocorrem novos meios de comunicação, novas práticas sociais, novos valores, novas

estruturas, entre outros aspectos que colaboram para as grandes renovações nas estruturas da

sociedade atual.

Juntamente com essa “Revolução Social”, quase que obrigatoriamente ocorrem

“Revoluções Científicas”, que levam ao surgimento de novos paradigmas, de novas formas de

desenvolver pesquisas em praticamente todas as áreas do conhecimento.

A emergência de novos objetos no seio das questões históricas: as atitudes

perante a vida e a morte, as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco e as relações familiares, os rituais, as formas de

sociabilidade, as modalidades de funcionamento escolar, etc. [...] Com estes

objetos novos ou reencontrados podiam ser experimentados tratamentos

inéditos tomados de empréstimo às disciplinas vizinhas. (CARDOSO, 1997, p. 14-15).

Pode-se afirmar que a possibilidade de pesquisas interdisciplinares vinculadas ao

método da história, por exemplo, surge no cenário científico em função da “revolução

francesa da historiografia”, termo empregado por Peter Burke1 para definir o surgimento da

Escola dos Annales, que teve como objetivo inicial combater o método engessado que se tinha

de produção do conhecimento histórico, onde o rigor científico forçava os pesquisadores a

utilizarem apenas documentos oficiais para seus estudos, entre eles os documentos escritos,

excluindo outras alternativas, como as mentalidades, a oralidade, as religiosidades, as práticas

culturais, os objetos materiais, a iconografia, entre outras inúmeras fontes.

Nesse contexto interdisciplinar é possível encaixar a etnografia como opção

metodológica para o estudo de grupos étnicos bem como para produção de fontes para

pesquisa, como no caso desta dissertação. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira, citado por

Jorge Eremites de Oliveira:

A pesquisa etnográfica consiste em três procedimentos básicos: “olhar”,

“ouvir” e “escrever”. O olhar e o ouvir fazem parte da primeira etapa dos trabalhos antropológicos, aquela que é realizada em campo, isto é, o registro

etnográfico de dados empiricamente observáveis. O escrever constitui a

segunda etapa das pesquisas, a interpretação etnológica, quer dizer, a análise

1 BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989). Sao Paulo: Unesp, 1990. IN: CARDOSO, 1997. p. 195.

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teórica dos dados etnográficos obtidos durante a observação do grupo

estudado. (OLIVEIRA, 2011, p. 6).

O estudo etnográfico relacionado à perspectiva histórica permite que a etno-história

possa ser definida como:

Um método interdisciplinar para estudar a história de grupos étnicos a partir

de dados variados (arqueológicos, etnográficos, iconográficos, orais, textuais

etc.). Seu foco maior esteve nos contatos interétnicos e nas consequentes mudanças socioculturais deles advindas, algo que somente é possível

apreender quando considerado o processo histórico e sociocultural vivido

pelas famílias indígenas estabelecidas na área estudada. (OLIVEIRA e PEREIRA, 2011, p. 6).

A história oral, permite aferir elementos relacionados às transformações por que

passaram os grupos étnicos. Segundo CRUIKSHANK (FERREIRA & AMADO, 2005, p. 155):

Tanto como evidência sobre o passado quanto como evidência sobre a construção social do presente. [...] A tradição oral vincula o presente ao

passado. Isso continua sendo de especial importância nas sociedades

indígenas, nas quais o conhecimento genealógico tem papel significativo na explicação das regras que governam a organização social.

Utilizando-se da fonte oral enquanto recurso de pesquisa, é pertinente ressaltar a

importância da memória no processo da pesquisa. Essa importância relaciona-se ao fato de

que os aspectos relatados nos depoimentos são fruto da vivência dos entrevistados, das

relações sociais estabelecidas, das lembranças e dos esquecimentos vinculados ao fato em

questão.

Segundo Pierre Nora (1981), a memória é a vida própria de cada grupo social,

imbricada de sentimentos e de emoções registrados por uma única pessoa ou por um grupo.

Esses registros são vulneráveis frente a transformações, bem como são involuntárias ou

conduzidas, fazendo com que a memória não seja totalmente pura, fiel aos dados de que a

história necessita.

Já Le Goff (1994) acredita que um povo que possui forte memória coletiva não será

dominado com facilidade, pois saberá utilizar-se do passado como arma contra os opressores.

Ocorre, porém, que a memória coletiva pode ser transformada, manipulada segundo interesses

diversos, dependendo dos valores de cada indivíduo envolvido. Sendo assim, “[...] a memória

coletiva não é somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder” (LE

GOFF, 1994, p. 476). Ainda analisando o pensamento de Le Goff (1994), podemos citar que

“A memória, onde cresce a história, [...] procura salvar o passado para servir o presente e o

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futuro” (Idem, p. 477).

Na opinião de Ulpiano T. B. de Meneses (1992), ao analisarmos a relação entre

história e memória, ambas não se confundem. A história é vista como a forma intelectual de

conhecimento. A memória age ativamente na construção da identidade social, reorganizando

simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e relações. Nesse sentido,

admite-se que a memória seja utilizada como objeto da história no entendimento das

representações sociais.

Outro fenômeno que também ocorre quando se trata do tema memória é a chamada

amnésia social, em que se pode perceber que a memória costuma ser vista como algo de

constante retenção, assimilação e de exclusão. Segundo alguns autores, a memória está em

constante mutação, através de um processo pelo qual os dados irrelevantes aos poucos são

excluídos, dando lugar a informações úteis ao indivíduo.

Segundo Janice Theodoro da Silva (1990), grande parte da memória histórica

corresponde a ausências, perdas, ao que deixou de ser registrado por não fazer parte dos

'grandes acontecimentos', reafirmando o fato de que devemos estar cientes de que a memória

se relaciona muito intimamente com o esquecimento de fatos menos importantes. Inclusive

psicólogos insistem em estudar essa relação entre memória e esquecimento, pois acreditam

que a memória é, muitas vezes, manipulada, tanto individual quanto coletivamente, por

emoções, inibição, pela censura e por interesses políticos.

Este aspecto é muito bem resumido por Janice (1999) quando diz: “É agradável eu

lembrar de uma história onde eu servi a mesa? Ou é agradável eu lembrar de uma história

onde estou à mesa, cercada de uma baixela cheia de tradição?”.

Com isso se justifica a opção metodológica com base na interdisciplinaridade, tendo

em vista que a análise de grupos étnicos a partir desse viés se torna mais abrangente e,

consequentemente, mais completa. Segundo Ronaldo Vainfas (1997), combinar abordagens

distintas talvez seja o ideal, resguardadas as diferenças e até a oposição de paradigmas. Sendo

assim, "A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o

modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,

pensada, dada a ler" (CHARTIER, 1990, p. 16-17).

O suporte teórico para desenvolvimento desta dissertação é constituído por autores

como Cliford Geertz (2011), Roberto Cardoso de Oliveira (2006), Fredrich Barth (1998),

Gimenez (2009), entre outros. Esses pesquisadores abordam os conceitos relacionados à

problemática proposta, e trarão como contribuição o aprofundamento das discussões em torno

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da utilização da cultura indígena, com ênfase na arquitetura como fonte para pesquisas

histórico-culturais dos Guarani do Oeste do Paraná.

Entre os conceitos a serem abordados destacam-se, de modo específico, questões em

torno da cultura, dos grupos étnicos, da identidade, da territorialidade o Tekoha , os

simbolismos, a construção do espaço simbólico guarani e a arquitetura tradicional.

Estes referenciais sugerem a caracterização e a identificação do grupo étnico, no caso

os Guarani do Tekoha Añetete, e remetem para uma etnografia fundada no método descritivo.

A Análise dos modelos arquitetônicos tradicional e contemporâneo sugerem a recorrência à

história comparada, que segundo March Bloch (1928) requer que haja a possibilidade de se

poder verificar semelhanças e diferenças para se fazer a comparação.

- Estrutura da Dissertação

Sobre a forma como o trabalho está sendo estruturado, adotou-se a proposta de

organização textual em três capítulos, além deste texto introdutório e do texto final.

Resumidamente apresentam-se da seguinte forma: o primeiro capítulo é composto pelo

referencial teórico da pesquisa, onde são apresentados os conceitos postos em aderência com

o objeto de estudo, além de questões relativas à cultura guarani de maneira geral. O segundo

capítulo, define-se pela caracterização do objeto de estudo em si, no caso a Aldeia Tekoha

Añetete, abordando a origem histórica, características populacionais, organização do espaço

habitado e a dinâmica sociocultural desse grupo Guarani na atualidade. No terceiro capítulo,

são expostas questões relacionadas à problemática da pesquisa e que têm por foco a análise

das obras arquitetônicas presentes na aldeia, entre elas as 'tradicionais', as implantadas pela

Cohapar e aquelas implantadas pela Itaipu. Após a introdução e os três capítulos, finalizando

a discussão, apresenta-se uma entrevista com o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de

Almeida, que, como citado anteriormente, esteve presente em momentos decisivos para a

constituição do grupo na atualidade. Nessa entrevista são abordados aspectos avaliativos em

relação à presença de instituições externas na organização de atividades no interior da aldeia,

entre elas a Cohapar e a Itaipu.

Descrevendo de maneira mais detalhada cada fase desta dissertação, inicia-se com o

primeiro capítulo, no qual se optou pela apresentação da fundamentação teórica que direciona

a discussão, abordando conceitos que permeiam a análise do objeto de estudo. Apesar de ser

uma fase de apresentação de conceitos, já estão sendo direcionados enfoques teóricos que,

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mais adiante, auxiliarão na compreensão prática do objeto de estudo e de sua problemática,

visando realizar um contraponto entre a teoria e o trabalho de campo.

Entre os autores que subsidiam esta discussão destaca-se Cliford Geertz, que reflete

sobre a cultura enquanto teia de significados construídos na relação entre atores sociais em

um determinado espaço comum. Ele ressalta a importância de se considerar o contexto em

que as práticas culturais e os símbolos são produzidos. Fredrik Barth, contribui no sentido de

discutir as fronteiras culturais surgidas a partir das áreas de fricção interétnica, grupos étnicos

e seus estatutos sociais, além das questões envolvendo as identidades de maneira geral.

Roberto Cardoso de Oliveira é antropólogo e também discute os caminhos da identidade sob

olhar construído através da pesquisa com grupos indígenas, especialmente os terenas, no Mato

Grosso do Sul/BR. Esse viés se encaixa, em muitos momentos, com a proposta da pesquisa

descrita nesta dissertação, tanto pela metodologia que Oliveira utiliza como também pela

maneira clara como aborda a questão da formação da identidade étnica indígena. Erneldo

Schallenberger e Bartolomeu Meliá também trazem pesquisas voltadas a grupos étnicos e,

nesse caso, contribuem no sentido de discutir a formação da identidade a partir do outro, ou

seja, como se constroem as identidades pessoais ou coletivas através da diferenciação do eu

em relação ao outro, além das questões relacionadas ao estudo dos Guarani desde os primeiros

contatos com o homem branco. Gilberto Gimenez também faz parte dessa discussão voltada à

formação das identidades, das territorialidades e da cultura em si, enfatizando que esses

aspectos são alterados e ressinificados através da interação social e do sentido que assumem

perante o indivíduo ou o grupo.

Como continuidade do primeiro capítulo, em um segundo tópico são apresentados

elementos que constituem características gerais da cultura guarani, entre elas questões de

ordem social, política e religiosa. Essa inserção se torna necessária a partir da importância de

se discutir o objeto de estudo sob olhares traçados por outras abordagens. Isso representa

aliar-se a esses pesquisadores na abordagem da temática a fim de caracterizá-la, situando-a

em relação a outros grupos formados culturalmente. Objetiva-se, também, com essa análise, a

caracterização dos Guarani em diferentes temporalidades, ou seja, a forma como esses grupos

se organizavam em tempos remotos e a forma como estão organizados na atualidade, as

características mantidas e as adaptadas em função das construções históricas definidas ao

longo do tempo e do espaço.

Para essa caracterização são trazidos autores como Egon Schaden, com sua obra

"Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani", que trata dessa temática. Erneldo

Schallenberger também compõe o referencial teórico desta dissertação por destacar-se em

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relação à temática da identidade e da construção do espaço guarani, desde a formação do

território del Guayrá até os tempos atuais. Além disso, o referido autor possui ampla

produção bibliográfica voltada às Reduções Jesuíticas no Brasil, Argentina e Paraguai. Às

referências de Schaden e Schallenberger somam-se as de Bartolomeu Meliá, etnólogo que tem

produção ampla sobre a cultura guarani, trazendo para o horizonte científico características

fundamentais para o estudo desses povos. Meliá tem por foco de análise os Guarani em seus

aspectos mais amplos, relacionados aos costumes, às crenças, ao modo de ser e práticas

desenvolvidas por esses grupos tanto no passado quanto na contemporaneidade. Nesta

abordagem, além das características culturais, serão discutidas especialmente as questões

envolvendo a construção do território por parte dos Guarani, a função social e simbólica que

essa construção ocupa no cotidiano desses grupos.

O segundo capítulo está centrado na caracterização dos Guarani tomados para estudo.

Nessa fase são abordados aspectos relacionados ao histórico da aldeia Tekoha Añetete, entre

eles a sua trajetória, os territórios ocupados, até chegarmos aos dados estatísticos, sociais e

culturais da atualidade. Esse ponto tem como objetivo apresentar um panorama do grupo,

situando-o no contexto histórico e social da região. Para tanto, além da pesquisa de campo, foi

realizado um levantamento bibliográfico, buscando identificar obras produzidas sobre grupos

indígenas da região oeste do Paraná, comparando os seus dados com os da atualidade, estes

coletados junto ao grupo durante as pesquisas de campo.

As produções de Sarah I. Gomes Tibes Ribeiro farão parte do conjunto referencial

para a discussão empreendida no segundo capítulo. Questões em torno da territorialidade,

organização social e os objetos rituais que integram esse grupo Guarani na atualidade, terão

como aporte teórico Rubem T. Almeida (2001) e Valéria Soares de Assis (2006).

O terceiro capítulo – sobre a problemática da pesquisa analisa a cultura dos Guarani

no oeste do Paraná a partir de manifestações materiais junto à Aldeia Tekoha Añetete, com

destaque para a arquitetura tradicional e a apropriação, por parte do grupo, de obras

arquitetônicas implementadas por agentes externos, entre eles a Itaipu e a Cohapar. Essa

divisão textual tem por característica dissertar sobre a construção do espaço Guarani, tanto o

espaço geográfico com seus elementos naturais e materiais, quanto e principalmente o espaço

simbólico e seus elementos culturais que o delimitam. A constituição da territorialidade

guarani enquanto espaço de vivências coletivas será abordada de maneira especial, pois será o

foco das discussões que adiante se voltarão para a arquitetura.

Nessa fase adentramos, especificamente, na discussão sobre a arquitetura guarani, que

representa materialmente porção importante dos símbolos religiosos do grupo e que,

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juntamente com os objetos materiais utilizados nas rezas, auxilia na composição da atmosfera

sagrada. A matéria-prima utilizada nas construções tradicionais é retirada da natureza, como,

por exemplo, o cipó para as amarrações, o sapé para a cobertura, os roliços de madeira

utilizados para a confecção das paredes, entre outros. Cada um desses elementos possui uma

função na construção, não somente prática, mas principalmente simbólica. Juntos,

representam aspectos da crença dos Guarani que foram passados de geração em geração. A

utilização desses elementos segundo a técnica tradicional traz força ao grupo, pois

culturalmente isso agradaria aos deuses.

Durante as primeiras pesquisas de campo foi possível perceber que existem, nessa

aldeia, muitos elementos arquitetônicos externos que não foram construídos segundo a técnica

tradicional dos Guarani. Ocorre que, após o processo de formação da aldeia, instituições

oficiais firmaram convênios para a construção de moradias visando oferecer melhores

condições de habitação para a população local. Um fato que chama a atenção é que, dividindo

e/ou complementando o espaço das residências construídas através desses convênios, os

Guarani implementam outra construção, geralmente ao lado ou no fundo, que segue, quando

possível, a técnica tradicional. Esse espaço anexo é o local onde são desenvolvidas

praticamente todas as atividades diárias do grupo familiar, restando à obra empreendida pelos

órgãos oficiais a função de uso apenas para pernoite dos membros.

Assim, portanto, no terceiro capítulo são abordados aspectos dessa arquitetura dita

"contemporânea" empreendida por instituições externas junto à aldeia, em relação à

arquitetura tradicional dos guarani. São discutidas questões voltadas aos conceitos que

levaram a concepções dos projetos arquitetônicos e em relação às formas como os Guarani

incorporam e fazem uso dessas construções em seu cotidiano.

Como fechamento da discussão apresenta-se uma análise antropológica sobre essa

aldeia feita por Rubem Thomaz Almeida, antropólogo que esteve presente durante o todo o

processo de formação da Tekoha, principalmente com a elaboração de laudos para a

orientação das ações da Itaipu na aquisição de território, emissão de pareceres sobre a

construção de casa de reza, entre outras ações relacionadas aos Guarani da Añetete.

Essa análise constitui porção relevante na presente pesquisa em função de fornecer ao

leitor elementos de opinião sobre o grupo, emitidos por um profissional que há muito atua

com comunidades indígenas e que configurou como agente de opinião em tomadas de

decisões importantes no processo histórico do grupo aqui analisado, principalmente na relação

entre a Itaipu Binacional e os Guarani do extremo oeste do Paraná.

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É importante salientar que a fonte material é o caminho pelo qual a atividade foi

desenvolvida, caracterizando-se como mediadora entre o historiador e o indivíduo ou grupo,

reais ‘objetos’ da pesquisa. O que se busca neste caso é o estudo do indivíduo, da cultura do

grupo e não do objeto/matéria/técnica em si.

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CAPÍTULO 1

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Conforme abordado na fase introdutória, esta pesquisa tem como objeto central um

estudo de caso de uma aldeia Guarani localizada no oeste do Paraná. Na abordagem desse

objeto serão contemplados os aspectos culturais gerais para se chegar ao objetivo da pesquisa,

que é registrar as representações simbólicas presentes na arquitetura tradicional dos Guarani, a

forma como as edificações são erigidas e a função material e imaterial dessas obras frente ao

cotidiano do grupo. A problemática de pesquisa baseia-se na compreensão dos mecanismos de

incorporação dessas edificações construídas na aldeia por órgãos externos e mediante a

utilização de material, técnica e referencial diferentes da arquitetura ‘tradicional’ dos Guarani.

Em se tratando de pesquisa de cunho científico, faz-se necessário iniciar a reflexão a

partir da abordagem teórica que fornece a base conceitual para o desenvolvimento das

atividades. Seguem, portanto, reflexões teóricas relacionadas aos conceitos que permeiam

toda a pesquisa e a produção textual desta dissertação.

Primeiramente, são abordados conceitos como cultura, identidade, grupo étnico,

etnicidade, entre outros. As discussões publicadas por autores renomados foram selecionadas

visando possibilitar a interpretação do objeto de estudo, no caso, os Guarani da Aldeia Tekoha

Añetete.

Em um segundo momento, são elencadas algumas características culturais dos Guarani

de maneira geral, como: questões religiosas, organização social e política, construção de

territórios, entre outros. Esse tópico também tem por fim, caracterizar a cultura guarani de

maneira geral, para, posteriormente, nos capítulos que seguem chegar aos Guarani que

habitam o oeste do Estado do Paraná, mais especificamente, que constituem a Aldeia Tekoha

Añetete.

1.1 Questões conceituais

Atualmente se fala muito sobre cultura, porém o significado atribuído ao termo em

cada um dos contextos é diverso. A semelhança entre todos é que “[...] cultura é simplesmente

uma forma de falar sobre identidades coletivas” (COUCHE, 1999, p. 24).

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Buscando a gênese do termo, chegamos ao século XIII, quando a palavra surge do

latim, ligada ao meio rural, ao cultivo da terra ou ao cuidado dispensado ao campo ou ao

gado.

Até o século XVIII, a evolução do conteúdo semântico da palavra se deve

principalmente ao movimento natural da língua e não ao movimento das

ideias, que procede, por um lado pela metonímia (da cultura como estado à cultura como ação), por outro lado pela metáfora (da cultura da terra à

cultura do espírito), imitando nisso seu modelo latino ‘cultura’, consagrado

pelo latim clássico no sentido figurado (COUCHE, 1999, p. 20).

Por volta de 1700, os franceses passam a atribuir uma espécie de sentido figurado ao

termo, fato que ocorre com a publicação no Dicionário da Academia Francesa. A partir de

então, o termo passa a aparecer sempre seguido de complementos como: ‘cultura das artes’,

'cultura das ciências’, ‘cultura das letras’, referindo-se ao estudo ou desenvolvimento de um

determinado assunto ou aspecto da sociedade.

Com o passar dos anos, o termo liberta-se dos seus complementos e inicia uma nova

fase de definições e usos quando é empregado sozinho, não mais acompanhado por um

atributo para caracterizá-lo. O sentido do termo também sofre alterações, passando a designar

as ações em torno da ‘formação’ e da ‘educação’ do espírito humano: “Depois de um

movimento inverso observado anteriormente, passa-se de ‘cultura’ como ação (ação de

instruir) à ‘cultura’ como estado (estado do espírito cultivado pela instrução, ‘estado do

indivíduo que tem cultura).” (COUCHE, 1999, p. 20). Nesse momento o conceito passou a ser

definido como algo superior, aquele conhecimento ou prática, que se possui ou não, pois

algumas pessoas possuem cultura, outras não.

No século XVIII, ‘cultura’ é sempre empregada no singular, o que reflete o universalismo e o humanismo dos filósofos [...] a palavra é associada às

idéias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão no centro

do pensamento da época (iluminismo). A ideia de cultura participa do

otimismo do momento, baseado na confiança no futuro perfeito do ser humano. O progresso nasce da instrução, isto é, da cultura, cada vez mais

abrangente. (COUCHE, 1999, p. 21).

Nesse período, a cultura relaciona-se intimamente com outro termo, muito em voga no

momento, principalmente na França, o de ‘civilização’. Embora utilizados de forma

associativa, ‘cultura’ representava os progressos individuais enquanto o termo ‘civilização’

representava os progressos coletivos.

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No idioma alemão, o termo Kultur recebe traços que diferem parcialmente do caso

francês. Inicialmente é uma palavra utilizada por intelectuais da época visando distinguir a

classe letrada da aristocracia e da nobreza.

Duas palavras vão lhes permitir definir esta oposição dos dois sistemas de

valores: tudo o que é autêntico e que contribui para o enriquecimento

intelectual será considerado como vindo da cultura; ao contrário, o que é somente aparência brilhante, leviandade, refinamento superficial, pertence à

civilização. A cultura se opõe então à civilização como a profundidade se

opõe à superficialidade (COUCHE, 1999, p. 25).

Superando essa fase de evolução do termo, iniciamos a reflexão visando às definições

atuais de cultura, algo que não deixa de ser também muito abrangente. Clifford Geertz aborda

a questão a partir de um olhar construído através da antropologia social. Segundo ele, o

conceito de cultura:

Denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado

em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas

simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida

(GEERTZ, 2011, p. 66).

É possível afirmar que esse ‘padrão de significados’ se refere aos comportamentos, às

práticas, aos valores, aos costumes, aos mitos, aos ritos e aos símbolos herdados pelos

indivíduos através do grupo social ao qual pertencem e que são produzidos e reproduzidos

diariamente por atores sociais,2 os quais assumem essa organização como algo natural,

proporcionando-lhes identidade com a sua coletividade. São características herdadas não

através da genética humana, mas a partir de práticas sociais que acompanham e oferecem

sentido ao ser/estar do indivíduo perante um grupo social que lhe é familiar.

Os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam

possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui

fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’ (BOURDIEU, 2003, p.10).

Gilberto Gimenez ressalta que: “La cultura nunca debe entenderse como un repertorio

homogéneo, estático e inmodificable de significados. Por lo contrario, puede tener a la vez

‘zonas de estabilidad y persistencia’ y ‘zonas de movilidad’ y cambio.” (GIMÉNEZ, 2009,

2 O termo ‘atores sociais’ utilizado nesta discussão é abordado por Giménez (2009) como sendo os indivíduos

com capacidade de atuar, mobilizar-se e serem mobilizados em prol de sua coletividade.

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p.10). A cultura está desse modo, em constante movimento, renovando-se a partir dos

elementos externos e internos que favorecem essa movimentação.

Bartolomeu Meliá ressalta que a cultura é a pele que reveste o indivíduo ou os atores

sociais; através da pele são absorvidos e desenvolvidos os sentidos do ser humano. A pele é o

ambiente de contato e tudo o que é produzido nesse ambiente é exteriorizado ou interiorizado.

A cultura para o indivíduo é como a pele para o corpo. Ela cria elementos identificadores que

proporcionam sentidos, ao mesmo tempo em que filtra os elementos externos, incorporando-

os ou ignorando-os, variando conforme cada momento: “La cultura es la piel que habitamos,

... La piel me limita, pero me permite los contactos com todo lo que me es exterior, pero me

habitará en mi” (MELIÁ, 2011, p. 16).

Apesar de alguns estudos apontarem os aspectos culturais como responsáveis pelas

relações de poder ou de domínio cultural, Geertz (2011) afirma que ela deve ser

compreendida como o contexto em que se desenvolvem as relações sociais, sejam elas de

poder ou não. A cultura é, portanto, desenvolvida a partir das relações sociais, através das

quais a cultura torna-se compreensível.

A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos

casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as

instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual

eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com

densidade (GEERTZ, 2011, p. 10).

Essa posição defendida por Geertz destaca também a relevância em se considerar o

contexto, o espaço em que esse homem se constitui enquanto ser, enquanto indivíduo

pertencente a uma coletividade específica e distinta. Não basta afirmar o pertencimento ao

grupo, é necessário sentir-se enquanto grupo e ser reconhecido por essa coletividade. Assim,

isso deve ser entendido porque o indivíduo, enquanto ser social, não se forma isoladamente,

mas através das relações estabelecidas e desenvolvidas com os semelhantes, uma espécie de

‘teia de significados’.

Os aspectos que compõem a cultura encontram-se na esfera do intangível, são

elementos simbólicos não palpáveis nem possíveis de serem explicados, pois são

presenciáveis através de representações abstratas que permeiam o imaginário dos indivíduos.

São sentidos que regem e justificam ações humanas sem com isso constituírem-se

materialmente ou racionalmente. São referências simbólicas relacionadas a determinadas

vivências, individuais ou coletivas, que oferecem sentido a ações humanas construídas

tradicionalmente em cada grupo social. Citando Roberto Cardoso de Oliveira, podemos

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definir “[...] cultura como representação, portadora de significados vários, uma dentre as mais

diversas modalidades de simbolização.” (OLIVEIRA, 2006, p. 37).

O sentido do termo representação é descrito por vários autores no âmbito de pesquisas

vinculadas à história cultural, entre eles Chartier, que define:

A representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma

distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por

outro, a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de alguém. No primeiro sentido, a representação é

instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente

através da sua substituição por uma ‘imagem’ capaz de reconstruir em

memória e de figurá-lo tal como ele é (CHARTIER, 1990, p. 20).

Outros pesquisadores que tratam da temática indígena utilizam, além da citação acima,

a definição de Palmer para o termo. Segundo ele:

Representação é, primeiro e antes de mais nada, algo que está no lugar de outra coisa [...] é um tipo de modelo da coisa que ela representa. Essa

descrição implica a existência de dois mundos relacionados, mas

funcionalmente separados: o mundo representado e o mundo representante

[...] deverá haver alguns aspectos correspondentes se um mundo representar o outro (PALMER apud NÖTH, 1997, p. 135).

3

Em se tratando de um estudo de caso junto a uma aldeia guarani, torna-se necessário

discutir também os conceitos de etnia e de grupos étnicos. Para tanto, tem-se por linha mestre

autores como Fredrich Barth (1998), que também discute a temática a partir da antropologia.

Segundo ele:

Os grupos étnicos são vistos como uma forma de organização social. Então,

um traço fundamental torna-se [...] a característica da autoatribuição ou da atribuição por outros a uma categoria étnica. Uma atribuição categórica é

uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua

identidade básica mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente. (BARTH, 1998, p. 194).

Assim, portanto, a constituição de grupo étnico está intimamente relacionada a

questões identitárias e, por consequência, culturais, ou seja, representa a forma como os

indivíduos se autodefinem e também a maneira como são rotulados por agentes externos. Não

bastam antecedentes como herança genética, o compartilhamento de valores fundamentais em

unidades culturais ou a interação através da comunicação. Segundo Barth, esses fatores são

importantes, porém o que se deve considerar como essencial no processo da definição de

3 Esta definição foi abstraída de: BOTTON, Fernando Bagiotto (2011). É, porém também encontrada em outros

autores utilizados na composição desta dissertação, entre eles: ASSIS, Valéria Soares, 2006, p. 148.

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grupos étnicos são a autoidentificação dos indivíduos em relação à coletividade, além da

atribuição que os outros concedem à organização social em questão, as diferenças expressas

na relação direta com outros grupos.

No caso dos Guarani aqui analisados, existem, também, definições em relação ao

pertencimento ou não a determinado grupo étnico, definições que serão apresentadas nos

capítulos que seguem.

Quando discutimos aspectos culturais referindo-nos às coletividades, como é o caso

desta discussão, invariavelmente tocamos em outras questões conceituais, entre elas a

identidade, seja ela individual ou coletiva, que é constituída a partir das relações

desenvolvidas por atores sociais em situação de contato.

Se partirmos do pressuposto de que a cultura é composta por símbolos e outras

representações em nível abstrato, podemos afirmar que a identidade é a demonstração prática

desse conjunto de significados, onde os símbolos culturais são transformados em sinais

concretos de valores e de padrões sociais, os quais compõem o imaginário de determinada

coletividade. A identidade pode ser considerada parte da cultura e possui como principal

característica a demonstração de crenças e de valores através de sinais tangíveis, facilmente

definidos e compreendidos dentro do contexto de origem. Segundo Gimenez: “Los materiales

com los cuales contruimos nuestra identidad para distinguirmos de los demás son siempre

materiales culturales” (GIMÉNEZ, 2009, p. 11).

Esses materiais culturais citados por Gimenez podem ser representações concretas de

símbolos, representações das quais fazem parte os sinais, também responsáveis pela

construção das identidades. Segundo Geertz:

Os significados só podem ser ‘armazenados’ através de símbolos: uma cruz, um crescente ou uma serpente de plumas. Tais símbolos religiosos,

dramatizados em rituais e relatados em mitos, parecem resumir, de alguma

maneira, pelo menos para aqueles que vibram com eles, tudo que se conhece

sobre a forma como é o mundo, a quantidade de vida emocional que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está nele (GEERTZ,

2011, p. 93).

Segundo Schallenberger, a identidade “[...] expressa o autoconhecimento, derivado de

um processo de construção de significado com base em um conjunto de atributos culturais

inter-relacionados, que prevalece sobre outras fontes de significado” (SCHALLENBERGER,

2011, p. 13).

A definição da identidade de determinado grupo não está somente restrita às

semelhanças compartilhadas internamente, mas também, e de maneira muito marcante, refere-

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se às diferenças. As características comuns oferecem harmonia, mas também definem

aspectos dos quais não se compartilha o modo de ser dos outros e as diferenças relacionadas

ao meu modo de ser. É o que Roberto Cardoso de Oliveira chama de ‘Identidade Contrastiva’:

Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio

de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se

defrontam. É uma identidade que surge por posição. Ela não se afirma isoladamente. No caso da identidade étnica, ela se afirma “negando” a outra

identidade (OLIVEIRA, R. C., 2003, p. 6).

Gimenez também discute a constituição das identidades a partir da oposição entre

semelhanças e diferenças: “La identidad está relacionada com la idea que tenemos acerca de

quiénes somos y quiénes son los otros, es decir, com la representación que tenemos de

nosotros mismos em relación com los demás” (GIMÉNEZ, 2009).

A referência aos grupos étnicos e a formação das identidades sugere questionamentos

relacionados aos limites culturais. É diante deles que se constroem as diferenças identitárias

entre os grupos, que geralmente são responsáveis pelo afloramento e pelo fortalecimento

desses traços em ambos os lados da moeda.

Relações sociais estáveis, persistentes e muitas vezes de uma importância social vital, são mantidas através dessas fronteiras e são freqüentemente

baseadas precisamente nos estatutos étnicos dicotomizados. Em outras

palavras, as distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrário, frequentemente as próprias

fundações sobre as quais são levantados os sistemas sociais englobantes. A

interação em um sistema social como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem permanecer apesar

do contato interétnico e da dependência dos grupos (BARTH, 1998, p. 188).

Esse conjunto de significados possibilita a constituição de identidades pessoais e

coletivas, transformando-se em fator aglutinador de indivíduos em torno de características

comuns, bem como também o distanciamento em relação a determinadas ações ou grupos: “A

identificação de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico implica compartilhamento

de critérios de avaliação e julgamento” (BARTH, 1998, p. 197).

Neste processo de construção das identidades insere-se, portanto, o sentimento de

reconhecimento dos indivíduos enquanto parte do grupo, delimitando as diferenças entre o

eu/grupo em relação ao outro, um sentimento para além do ‘ser’, mas principalmente ‘sentir-

se’ como tal, “[...] identidad sentida, vivida y exteriormente reconocida de los actores sociales

que interactúan entre si em los más diversos campos” GIMÉNEZ (2009, p. 11).

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Essa questão do reconhecimento é abordada também por Roberto C. de Oliveira como

sendo uma espécie de ação de domínio público relacionada aos indivíduos que buscam a

afirmação de que são detentores de valor social, ou seja, são capazes de algo ou partilham

características, conhecimentos e práticas que, reconhecidamente, os identificam com

determinada coletividade.

Para que essa identidade individual possa transformar-se em algo coletivo é necessário

o reconhecimento do indivíduo pelo grupo de maneira social e pública. Faz-se essencial o fato

de ele ser aceito pela coletividade para que sua autoidentificação se transforme em algo

relevante.

Aproximando a discussão ao objeto de estudo que se propõe analisar, Roberto C.

Oliveira afirma que, de maneira geral, atualmente as etnias indígenas estão buscando o

reconhecimento moral, algo que, em tempos passados, era restrito às políticas públicas. Isto

quer nos dizer que esses grupos estão se voltando para o interior da sua cultura, para o âmago

de suas origens, desenvolvendo o autoreconhecimento para então, se reportarem para as

questões externas. Estão se autoreconhecendo moralmente, fazendo-o a partir de seus valores

tradicionais, resgatando sua moral para fortalecer seus anseios em relação às questões

externas ao grupo: “[...] o reconhecimento começa com o autoreconhecimento; [...] é o desejo

de ser reconhecido e, em consequência, o anseio de ter reconhecimento dos seus direitos – e

dentre estes direitos está o de possuir uma identidade” (OLIVEIRA, 2006, p. 41 e 34).

Esse aspecto pode ser percebido, também, a partir dos discursos proferidos tanto pelos

Guarani quanto pelas instituições que atuaram ou atuam junto a essas aldeias, conforme será

apresentado nos capítulos que seguem. Notou-se que o tratamento dispensado a eles tem se

configurado no sentido de ouvir seus anseios, valorizando a capacidade de organização que

essa etnia possui como resultado de séculos de evolução.

Será, portanto, nas sociedades multiculturais que a questão da identidade

étnica e de seu reconhecimento vai se tornar ainda mais crítica. Em tais

sociedades, a dimensão da identidade étnica relacionada com a da cultura tende a gerar crises individuais ou coletivas. E com elas surgem

determinados problemas sociais susceptíveis de enfrentamento por políticas

publicas, como, por exemplo, as chamadas políticas de reconhecimento (OLIVEIRA, 2006 p. 36).

Percebe-se que, nas discussões envolvendo cultura e identidades, constantemente são

abordados conceitos de etnia, grupo social, pessoa e etnicidade, fato que leva a discussão

desses aspectos também de maneira conceitual, para que possamos esclarecer o viés teórico

que orienta essas abordagens.

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A etnicidade, definida por Barth (1998) como ‘grupos distintos culturalmente

convivendo em espaços físicos comuns’, é outro fator que favorece a definição e o

fortalecimento das identidades relacionadas aos grupos étnicos, isto porque faz emergir as

chamadas ‘áreas de fricção interétnica’.

Essas áreas de fricção interétnica, por sua vez, são caracterizadas por espaços de

encontros, de trocas e de conflitos identitários que, na maioria das vezes, resultam também no

fortalecimento das identidades coletivas como estratégia de defesa e de sobrevivência do

grupo enquanto unidade étnica.

Embora a emergência e a persistência de tais sistemas pareçam depender de

uma estabilidade relativamente alta dos traços culturais associados aos

grupos étnicos [...] eles não implicam uma rigidez semelhante quanto aos padrões de recrutamento ou de atribuição aos grupos étnicos; pelo contrário,

as relações interétnicas que frequentemente observamos implicam uma

multiplicidade de processos, cujo efeito transforma a identidade individual e

grupal e modifica os outros fatores demográficos que prevalecem na situação (BARTH, 1998, p. 204).

Pode-se afirmar que o estudo de caso a ser desenvolvido nos capítulos que seguem tem

por característica a análise cultural em uma região de fricção interétnica, primeiramente pelo

fato de os Guarani, reduzidos na aldeia Tekoha Añetete, constituírem um grupo

reconhecidamente distinto pela sociedade envolvente e por órgãos como a Fundação Nacional

do Índio/Funai ou pela Itaipu Binacional, que fornecem a eles um status de minoria étnica em

situação de adaptação em um ‘novo’ espaço geográfico, no caso uma área desapropriada e

transformada em reserva indígena. Em um segundo momento, essa fricção interétnica se

estabelece no próprio interior da aldeia, em função do contato direto que os Guarani têm com

professores e funcionários não índios que atuam junto à escola indígena situada no local.

Esses contatos empreendidos em espaços multiculturais são regidos por preceitos

éticos previamente definidos entre ambos os grupos. Segundo Barth, são constituídos

estatutos sociais que regem esses contatos, os quais são caracterizados pela atribuição de

sentido a determinadas atitudes bem como a definição de funções que cada indivíduo deve

assumir perante a coletividade em questão. Ou seja, os funcionários da escola indígena

existente na aldeia, juntamente com os Guarani, constituíram, através da convivência diária,

estatutos regentes para as relações entre branco/juruá e Guarani no âmbito escolar. Cada

indivíduo assume sua responsabilidade nas relações de contato, visando desenvolver as

atividades de maneira respeitosa e eficiente.

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Os Guarani, apesar desse contato direto com a sociedade externa, que ocorre

principalmente através da escola, organizam seu estatuto étnico visando manter a identidade

cultural através da mínima interferência em seus valores e em suas práticas culturais

desenvolvidas no cotidiano.

Situações de contato social entre pessoas de culturas diferentes também

estão implicadas na manutenção da fronteira étnica: grupos étnicos persistem

como unidades significativas apenas se implicarem marcadas diferenças no comportamento, isto é, diferenças culturais persistentes. Assim, a

persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas critérios e

sinais de identificação, mas igualmente uma estruturação da interação que

permite a persistência das diferenças culturais (BARTH, 1998 p. 196).

É importante ressaltar também, que os grupos étnicos constituem sistemas sociais

mutáveis, ou seja, através destes contatos com outros grupos podem surgir alterações internas

significativas, principalmente porque a identificação pessoal pode variar segundo as

circunstâncias. As fronteiras que regem os grupos são permeáveis, possibilitando a interação

com a exterioridade e consequentemente a inserção de elementos externos.

O antropólogo Rubem Thomaz Almeida (2006, p. 117), a partir de suas vivências

junto aos Guarani Kaiowa e Ñandeva, afirma que “a sociedade executa movimentos com o

intuito de ‘encaixar’ elementos alheios a sua cultura, o que lhe permite entender-se no mundo

mesmo dentro de contextos alheios a sua tradição”.

Os Guarani foram expostos a novas tecnologias, novas técnicas agrícolas, novos meios

de comunicação (escola, internet, aparelhos celulares, antenas parabólicas), mas nem por isto

deixaram de ser Guarani. Todos os indivíduos sofrem alterações, migram, adotam novas

práticas, sem por isto perderem sua identidade social. Pois “[...] uma etnia pode manter sua

identidade étnica mesmo quando o processo de aculturação em que está inserida tenha

alcançado graus altíssimos de mudança cultural” (OLIVEIRA, 2006 p. 36).

Sarah Ribeiro, que possui publicações sobre a formação da identidade dos Guarani na

região oeste do Paraná, afirma:

Cada sociedade indígena absorve as relações com os outros, incluindo-se aí

os ensejos de imposição dos poderes instituídos, de maneira própria e única.

Surge, então, uma sociedade singular, transformada, que talvez não portando mais determinados traços culturais distintivos, ou atribuindo novos

significados àqueles que mantêm, permanece autoidentificando-se, neste

caso em particular, como Guarani (RIBEIRO, 2002, p. 44).

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Portanto, em relação aos Guarani, é possível através da formação identitária, estudar

aspectos simbólicos de sua cultura. Os sinais são os objetos, um meio de ligação com o

mundo espiritual. As danças e os rituais visam enaltecer suas crenças, seus simbolismos, sua

fé, que também são intangíveis, superiores aos homens.

A partir desta reflexão pode-se afirmar que a cultura e a identidade são alguns dos

meios mais complexos para o estudo de grupos humanos, pois é possível encontrar junto a ela

aspectos e significados em relação aos valores, à vida e ao mundo local e espiritual que cerca

os indivíduos.

Nossas ideias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são,

como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais (...). Chartres é feita de pedra e vidro, mas não é apenas pedra e vidro, é uma catedral, e não

somente uma catedral, mas uma catedral particular, construída num tempo

particular por certos membros de uma sociedade particular. Para

compreender o que isto significa, para perceber o que isto é exatamente, você precisa conhecer mais do que as propriedades genéricas da pedra e do

vidro e bem mais do que é comum a todas as catedrais. Você precisa

compreender também – e, em minha opinião, da forma mais crítica – os conceitos específicos das relações entre Deus, o homem e a arquitetura que

ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram a sua criação

(GEERTZ, 2011, p.36).

1.2 Características Gerais da Cultura Guarani

Os Guarani que habitam a região da tríplice fronteira nacional - Brasil, Paraguai,

Argentina – é composta por etnias que se assemelham em relação aos aspectos culturais

fundamentais, porém diferem no que tange a linguagem, práticas religiosas e tecnologias

aplicadas quanto ao uso do meio ambiente. Estas semelhanças e diferenças influenciam de

certa forma, a constituição das identidades étnicas relacionadas a estes grupos.

Os Guarani são conhecidos por diferentes denominações: Chiripá, Kainguá, Mbyá,

Ñandeva, Apyteré, Tembekuá, e outros. Porém, a denominação com que designam a si

mesmos é Avá, que significa, em guarani, “pessoa”.

As populações que falam algum dialeto guarani distinguem-se umas das outras, como já foi assinalado, em muitos aspectos da vida econômica, da

organização social, do sistema religioso e dos demais setores da cultura.

Mas, acima dessas diferenças indiscutíveis, há um fundo comum de elementos idênticos ou semelhantes, em virtude do qual todos os bandos se

apresentam como unidade em oposição a outras tribos, inclusive da família

tupi-guarani (SCHADEN, 1975, p. 13 e 14).

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A vida dos Guarani em todos os seus momentos importantes - concepção, nascimento,

nominação, iniciação, paternidade e maternidade velhice e morte - se baseia na 'palavra-alma'

que cada pessoa recebe. O nome, ao nascer, é uma "palavra/alma" que estrutura o ser humano,

a pessoa individual, inserindo-a no conjunto social e ambiental, ou seja, no mundo guarani.

Da mesma forma, como os valores tradicionais são transmitidos através da oralidade, a

educação também segue esta prática. É uma educação da palavra (alma) e através da palavra

(oralidade), não para aprender ou memorizar palavras já ditas, mas para ouvir as mensagens

recebidas dos seres espirituais, 'os de Acima', geralmente através de sonhos.

Os Guarani buscam o aprimoramento do ser/pessoa através da perfeição de seu 'dizer',

de seu 'falar'. A palavra não é ensinada, nem aprendida na esfera humana, ela é um dom que

se recebe ‘dos de Acima’ e não um conhecimento aprendido através de um professor.

Estes preceitos religiosos são transmitidos diariamente através da família, mas também

e principalmente nas ‘casas de reza’, locais de encontro para realização de cerimônias

religiosas em sua maioria, rituais diários. As ‘casas de reza’ são construções que possuem

características arquitetônicas específicas em cada local, dependendo principalmente da

disponibilidade de materiais para sua edificação. A função que elas assumem em qualquer

agrupamento guarani é semelhante: concentrar rituais religiosos como as festas de plantio e da

colheita (do milho), geralmente acompanhadas de muitas danças e cantos.

A casa de reza de fato sugere ser o espaço onde a tradição se recria diariamente, pois é

o local que concentra o grupo em torno do rezador4.

Ñande Ru rog (choza del sháman) es el apelativo com que se designa al

espacio destinado al jiroky-ñembo’e la danza-oración; tal espacio estaba

antiguamente integrado al og guasu, og jekutu comunal y actualmente

constituye uma construcción estructuralmente independiente – por lo genaral – del área habitacional pero em estrecha relación com el

(PERASSO, 1987, p. 95).

Tradicionalmente estes grupos organizam-se em aldeias compostas por várias casas

comunais, destinadas às famílias nucleares, formadas pelo casal e seus filhos com suas

respectivas esposas. Através destes núcleos familiares são organizadas as atividades de

subsistência do grupo, entre elas o plantio, a colheita, a caça, a pesca entre outros.

4 Em relação ao termo que se refere ao líder religioso dos Guarani, durante a pesquisa bibliográfica para

elaboração desta dissertação, foi possível encontrar inúmeras formas de grafia, entre elas: tamõi, shamán,

chamoy, ñandru, rezador, pajé entre outras. Nas citações retiradas destes autores os termos foram mantidos

conforme se apresentavam, porém o termo adotado nesta pesquisa para citar o líder religioso do grupo é rezador,

isto porque é a forma como os entrevistados referem-se a este.

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Além das ‘casas de reza’, as residências compõem a organização espacial das aldeias;

construídas, em sua maioria, com roliços de madeira, cipós e capim para a cobertura.

Geralmente, não possuem divisões internas e o chão é de terra batida para facilitar a lida com

o fogo, que deve ser aceso logo ao amanhecer e manter-se até o momento em que todos

dormem.

O fogo é um elemento sagrado para os Guaranis, pois afasta o mal e guarda as pessoas

de doenças e outras situações negativas que podem acometer os indivíduos. A fumaça é muito

utilizada em cerimônias religiosas e tem a função de purificar o local ou os indivíduos

envolvidos.

As aldeias são unidades politicamente autônomas e interdependentes em relação às

demais. Os grupos maiores reúnem-se somente em datas festivas, em eventos coletivos, nas

grandes caçadas, nas festas de colheitas e em rituais para consumo da chicha – bebida a base

de milho fermentado.

Segundo Bartomeu Meliá (2011), é no espaço da aldeia que se desenvolve plenamente

a vida social dos Guaranis. Desde tempos remotos praticavam uma agricultura muito

produtiva, que incluía milho, mandioca, batata, feijão, amendoim, cará, abóbora, bananas,

entre outros cultivos. A agricultura dos Guaranis gerava amplos excedentes que motivavam

grandes festas e a distribuição dos produtos, conforme determinava a economia de

reciprocidade expressa especialmente através do plantio, da colheita e de encontros festivos

coletivos.

As aldeias grandes, com duzentas ou mais almas, subdividem-se, porém,

normalmente em diversos grupos locais, cada um dos quais é constituído por uma parentela que tem como núcleo a família-grande de uma

personalidade de prestígio, geralmente um chefe religioso (ñanderú, entre os

ñandeva; pai, ñanderú ou mburuvitxá entre os Mbüá; pai, entre os Kayová). Somente em determinadas circunstâncias, como em importantes festas

religiosas, a horda ou aldeia toda aparece realmente como unidade

(SCHADEN, 1975, p. 12).

Cada núcleo familiar possui pelo menos um rezador, o líder espiritual do grupo,

responsável por dirigir as cerimônias e guiar as ações do grupo segundo os desígnios

sagrados. O processo de escolha de um rezador ocorre logo que o indivíduo nasce, quando o

rezador recebe um sinal dos deuses indicando que aquela criança poderá ser um líder

espiritual futuramente. Os rezadores, antigos pajés, não são, portanto, eleitos pela comunidade

e sim indicados pelos deuses.

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A rigor, cada chefe de família-grande, ou mesmo de família elementar,

pode, contanto que tenha vocação para tal, tornar-se o chefe religioso de

sua parentela. O poder que elege certos indivíduos ao cargo de rezador repousa em seus conhecimentos religiosos, em sua faculdade de prever o

futuro e no exercício das praticas que afastem os males do presente e

previnam os do futuro. O rezador é aquele que sabe tudo (SCHADEN,

1975, p. 97).

Outra figura de destaque na composição das autoridades da aldeia é o cacique. Ele

mantém, dentre outras funções, a harmonia entre todos os indivíduos do grupo, além de

representar sua coletividade em eventos e ocasiões formais realizadas fora dos limites

geográficos da Aldeia. Conforme Schaden,

O capitão (cacique) representa oficialmente os interesses da aldeia perante os moradores brasileiros e é ao mesmo tempo chefe de polícia no interior

do grupo. É sua tarefa restabelecer a ordem e castigar os culposos, sempre

que a desorganização social e o abuso do álcool façam surgir brigas no seio da comunidade (SCHADEN, 1975, p. 98).

Alguns autores afirmam que esta autoridade constituída no interior da aldeia,

aparentemente possui forte ligação com o desejo que as instituições ‘brancas’ possuem de

instituir a sua ordem social em meio aos Guaranis, tanto é que o capitão comumente é

nomeado pelos funcionários do posto indígena, colocando-o no nível da representação dos

órgãos oficiais junto aos Guaranis, impondo a sua ordem social aos indivíduos da aldeia.

O capitão não se considera competente em assuntos de natureza religiosa e

o ‘ñanderú’, por seu turno, apesar de sua autoridade indiscutivelmente maior, não costuma imiscuir-se em questões de política interna ou externa

do grupo, contanto que não atinjam de modo mais ou menos direto, os

interesses vitais da aldeia. (SCHADEN, 1975, p. 98-99).

Em relação à ocupação territorial é possível afirmar que existiu na America do Sul um

grande 'território guarani', pois assim presenciaram e relataram os conquistadores europeus

quando da chegada ao Brasil. Historicamente, estes grupos não possuíam limitações

geográficas; as fronteiras eram definidas a partir dos recursos naturais disponíveis, isto porque

eles compreendem seu universo como uma região de florestas, rios e campos, locais que

possibilitam o desenvolvimento do ‘modo de ser’ Guarani, conforme seus antepassados. Essa

relação se fundamenta no modo de ser e proceder, com características próprias relacionadas

ao território como o lugar vivido, o espaço onde os Guaranis são o que são, onde se movem e

onde existem.

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Milton Santos reflete as questões relacionadas à constituição de territórios habitados.

Segundo ele o “território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos,

mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado simbólico (...)

territorialidade não provém do simples fato de viver num lugar, mas da comunhão que com

ele mantemos” (SANTOS, 2004, p. 61 e 62).

Da mesma forma Gimenez define a construção da territorialidade regida por princípios

culturais, de pertencimento e de construção social por parte dos indivíduos em seus espaços

habitados:

La territorialidad se mide por la persistência de los vínculos subjetivos de

pertenencia a um territorio determinado, independenetmente de la persistencia física em la misma. Um mismo sujeto puede vincularse

subjetivamente de muchas maneras com muchos territórios a la vez. Se

puede abandonar fisicamente um território sin perder la referencia simbólica

y subjetiva al mismo mediante la comunicacion a distancia, la memória, El recuerdo y la nostalgia. Y quando transpomos fronteiras internacionales

frecuentemente llevamos ‘la pátria adentro’ (GIMÉNEZ, 2009, p. 28/29).

Este contexto ou espaço habitado, vivido, onde se desenvolvem as manifestações

culturais de maneira coletiva, na língua guarani chama-se tekoha, que segundo Meliá (2011),

expressa o “lugar donde estamos y somos lo que somos”. Ou, segundo Schallenberger (2011),

“(...) o lugar onde se davam as condições de viver humanamente”. É no interior do tekoha que

o Guarani se encontra, onde demonstra seu teko, “modo de ser, sistema, hábito, costumbre.

(...) Sin tekoha no hay teko”(MELIÁ, p. 28). Portanto, teko vem a significar costume, viver, o

modo de ser do povo Guarani, acrescentando-se o sufixo ha, tem-se o termo que indica o

lugar onde se executa a ação.

Segundo Rubem Thomaz Almeida, para os Guaranis “o tekoha é a referência primeira

do indivíduo, superada apenas pela área do te’yi, isto é, a região dentro do tekoha na qual a

família extensa se define espacialmente” (ALMEIDA, 2001, p. 122).

Esta forma de compreensão do território nos supõe a importância do espaço simbólico

para esta cultura, pois é o lugar ou o espaço no qual o Guarani pode viver seus costumes. “A

apropriação do espaço e a sua integração ao modo de ser Guarani significaram, ao nível do

simbólico, a constituição de uma territorialidade guarani, cujas fronteiras possuíam os limites

do espaço circulante trilhado, habitado e visitado pelos seus membros” (SCHALLEBERGER,

2006, p. 32).

Muitas evidências mostram que a organização social deste grupo nunca esteve

desvinculada da terra, tanto nas práticas de cultivo e subsistência quanto na busca de espaços

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possíveis de desenvolver seu ‘modo de ser’. O indivíduo faz parte da natureza; não é possível

distinguir o ser humano dos animais ou de outros elementos da natureza.

(...) A territorialidade guarani sugere o seu entendimento a partir da espacialidade vivenciada e simbolicamente representada. Um espaço

integrado no modo de vida, ou seja, no conjunto dos elementos constitutivos

da cultura, cuja dimensão é o horizonte possível da circulação dos sujeitos que sempre estão em busca de parentes e da mãe-terra generosa que

sustenta a vida (SCHALLNEBERGER, 2006, p. 33).

Segundo a crença dos Guaranis, as matas, os rios, os lagos e outros elementos da

natureza são espaços ocupados por seres espirituais, com os quais os indivíduos precisam

interagir para reproduzir seu modo de vida. Se para Milton santos (2004, p. 26) “O importante

é saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o território usado, e que

esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu

movimento atual”, para os Guaranis a vivência e a convivência no espaço definiu o seu lugar

de cultura.

Percebe-se, portanto, que os Guaranis construíram trajetórias históricas diversas,

relacionadas à ocupação territorial na maioria das regiões que percorreram, isto em função de

serem povos andantes. Este fato fez também com que muitos outros grupos indígenas fossem

pacificamente incorporados à cultura Guarani, principalmente em função das técnicas

agrícolas de que dispunham e que impressionavam os demais. Esta incorporação

especificamente é chamada de ‘guaranização’. Segundo Erneldo Schallenberger, este

processo:

Representa uma atitude simbólica pela qual os Guaranis passaram às outras

culturas tribais formas de representação dos fenômenos naturais e da sua relação com a natureza. (...) as motivações, as imagens e as práticas Guarani

passaram, desta forma, a nascer entre as diferentes populações por eles

contatadas como fruto de certa conexão mitológica, sem que isto representasse necessariamente uma imposição de novos padrões culturais

(SCHALLENBERGER, 2006, p. 31)

Portanto, estudar o povo Guarani requer compreender o universo cultural em que ele

está envolto, enquanto agente e sujeito deste, considerando-o em todos os seus aspectos,

individuais e coletivos, responsáveis pela construção do sentido para cada ação específica,

desde a mais técnica até a mais simbólica. “La cultura es ubicua: se encontra em todas as

partes. Es como uma sustância inasible que se resiste a ser confinada em um setor delimitado

de la vida social, porque es uma dimension de toda la vida social.” (GIMÉNEZ, 2009, pg. 11)

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A cultura torna-se, portanto, matriz de identidades individuais e coletivas que possuem

como pano de fundo identidades e territorialidades específicas, podendo ser tanto espaços

físicos quanto espaços simbólicos. Em ambos os casos, tanto em relação à identidade quanto

aos territórios, temos como meio de sustentação e propagação destes valores através de

símbolos, bens materiais e imateriais, que legitimam ações desenvolvidas pelo grupo em prol

da manutenção da identidade.

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CAPÍTULO 2

CARACTERIZAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO: A ALDEIA TEKOHA AÑETETE

2.1 – A Aldeia Tekoha Añetete

As informações apresentadas na discussão que segue, foram levantas a partir de

consultas a bibliografias relacionadas à temática. Mas também, foram principalmente

confirmadas através de relatos pelos próprios Guarani, que participaram ativamente do

processo de formação do Tekoha Añetete, entre eles o Professor Vicente e o Professor João

Alves, sendo que este último atualmente é cacique na referida aldeia.

As fontes históricas sobre os Guarani no Oeste do Paraná, constituem-se de relatórios

de pesquisas arqueológicas, laudos antropológicos, bibliografias publicadas e atividades

desenvolvidas por instituições ligadas a preservação deste patrimônio cultural, como o Museu

da Terra Guarani/Ciudad del Este/PY e o Ecomuseu/Foz do Iguaçu/BR, ambas pertencentes a

Itaipu Binacional.

A partir destas fontes é possível afirmar que a presença indígena em terras do Oeste

Paranaense remonta há mais de mil anos, porém é uma cultura em desenvolvimento há pelo

menos três milênios atrás. A chegada até esta região se deu principalmente pela via fluvial,

através de afluentes dos Rios Paraná, Uruguai e Ivaí.

Conforme já afirmado no capítulo anterior, os Guarani não possuíam demarcações

territoriais fixas, constituíam sim espaços possíveis de desenvolvimento do seu modo de ser.

Esta opção fez com que o território da atual tríplice fronteira Brasil/Paraguai/Argentina e seu

entorno fosse, como de outras áreas da região platina, marcadamente ocupada por esta etnia.

Segundo Schallenberger (2006), esta região foi palco de encontro de povos oriundos

de dois movimentos migratórios: as levas vindas do sul, que eram portadoras de práticas

culturais relacionadas à caça, à coleta e possuíam aptidões para a guerra. A outra leva de

nativos que chegou à região da atual tríplice fronteira teve origem na região amazônica e no

sudeste brasileiro, estes por sua vez praticavam a horticultura.

Ambas as frentes migratórias optaram por fixar-se em espaços propícios ao

desenvolvimento da agricultura, nas encostas de montanhas e nas margens de rios que

cortavam os vales.

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Destes grupos iniciais derivaram-se diversos agrupamentos menores entre eles o

Mbya, os Ñandeva ou Chiripa e os Kaiova. Porém, segundo Maria Inês Ladeira, “parece que

os Guarani não se autoidentificam com essas denominações, embora passem a adotá-las,

sobretudo nas suas relações com os brancos” (LADEIRA, 2008, p. 54).

Estes indígenas ocuparam esta região e imprimiram nela seus valores sociais e

culturais, baseando-se na dinâmica resultante da vivência do local, nos elementos naturais

disponíveis e que resultaram na formatação deste grande território.

Com a chegada dos espanhóis, no início de 1500, são registrados os primeiros relatos

com informações importantes sobre estes grupos de Guarani e que serviram de base para

estudos contemporâneos sobre esta etnia. Valendo-se do conceito de grupo étnico definido por

Barth no capitulo anterior, bem como destes relatos de viajantes, pode-se entender que:

Os Guarani distinguiam-se dos demais grupos indígenas pela forma de ocupação da terra. O espaço que habitavam estava marcado por uma

paisagem fortemente caracterizada pela presença de aldeias – tava -,

instaladas, de modo especial, em terrenos situados nas margens dos rios e

próximos às florestas (SCHALLENBERGER, 2006, p. 30).

A partir do contato com os europeus, estes agrupamentos passaram por transformações

principalmente em função de adaptações necessárias à sua sobrevivência. Estas alterações

relacionam-se ao ‘modo de ser’, aos costumes, práticas e cotidiano. Os europeus

empreenderam atividades que atingiram diretamente estes grupos. No território circunscrito

ao atual Estado do Parará (Brasil) se projetaram três frentes de colonização: a encomendeira, a

missionária e a bandeirante. Da primeira resultaram a fundação de cidades e a inserção

produtiva da mão de obra indígena no sistema colonial. Não de menor importância em termos

socioculturais foi o desencadeamento de um processo de miscigenação inaugurado por esta

frente. A frente missionária reuniu os povos dispersos em povoados – reduções -, através da

estratégia da evangelização. O avanço bandeirante se fez em função do recrutamento da mão-

de-obra para a incipiente agroindústria do litoral brasileiro. Estabeleceram-se, assim, relações

interétnicas, marcadas por fricções e interdependências.

O encontro entre mundos culturais distintos esteve marcado por conflitos de interesses

entre encomendeiros, jesuítas, bandeirantes e das próprias coroas ibéricas, pela

desterritorialização dos Guarani, pela profunda mudança no seu ‘modo de ser’ e pelo seu

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definitivo deslocamento do espaço de vivência e convivência através da destruição das

encomendas e das missões.5

Após este período, os registros relacionados aos Guarani tornam-se escassos. Em

1912, consta que foi criado oficialmente o primeiro aldeamento indígena no Oeste do Paraná,

chamado Colônia Guarani, no local em que se encontra atualmente o bairro Três lagoas,

Município de Foz do Iguaçu. Segundo informações obtidas através de laudos antropológicos

realizados pela Itaipu Binacional quando de sua construção, este espaço contava com 517,99

hectares, reconhecidamente demarcados para a ocupação indígena. Porém, em função de

doenças que atingem a população deste aldeamento, em 1977 esta Colônia já havia sido

desocupada por parte dos Guarani.

Entre os anos de 1948/50, alguns indivíduos desta Colônia Guarani migraram para a

região as margens do Rio Paraná e seus afluentes, entre eles os Rios Jacutinga, Oco’ÿ,

Guaxiro’y, Bela Vista, Pinto, Passo Kue e Porto Irene, formando o Tekoha Guasu Jacutinga.

Segundo relata Albernaz (2009):

O Tekoha Guasu de Jacutinga, segundo os depoimentos dos “velhos”

Guarani recolhidos por Rubens T. de Almeida, era formado por cerca de

nove casas grandes (oga jekutu ou oga guasu), cada uma reunindo entre 6 a

8 famílias nucleares, que viveram ali durante os anos de 1960 e 1970. Segundo o depoimento nativo, muitas famílias se dispersaram com medo de

serem mortas durante a desapropriação daquelas terras pelo Instituto de

Colonização e Reforma Agrária. Alguns anciãos de Oco’ÿ afirmam que os conflitos deste período envolveram mortes e destruição das casas. Dentre

estas mortes, uma anciã conta que Maximino, uma liderança de Jacutinga,

foi morto em confronto com os brancos (ALBERNAZ, 2009, p. 124).

Neste período intensificam-se, também, os projetos voltados à ‘colonização’ das terras

do Oeste paranaense, visando a ampliação das fronteiras agrícolas e a efetiva ocupação desta

região de divisa internacional. Os contatos entre colonos e índios estabeleceram-se em uma

atmosfera de tensão, principalmente em função da relação que cada um deles possui com a

terra. Os Guarani viam-se como parte dela e não como proprietários. Para eles os elementos

da natureza possuem simbologia sagrada. Os colonos mantinham uma relação de posse com o

território colonizado, definindo as fronteiras da propriedade, que tinha como função

primordial o sustento da família e também, em alguns casos, a ascensão financeira. Como a

5 Para saber mais sobre a presença de espanhóis em território paranaense, cidades espanholas, reduções jesuíticas

ou guerra guaranítica, ver:

SCHALLENBERGER, Erneldo. A Integração do Prata no sistema Colonial: Colonialismo Interno e

Missões Jesuíticas do Guairá. Toledo: Editora Toledo, 1997.

____________. O Guairá e o Espaço Missioneiro: índios e jesuítas no tempo das missões rio-platenses.

Cascavel/PR: Coluna do Saber, 2006.

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massa de ‘colonizadores’ constituía-se em maioria na região, os Guarani gradativamente

foram perdendo espaço, o que resultou num certo confinamento social.

Os conflitos em torno das questões agrícolas estiveram sempre presentes na

constituição das territorialidades no oeste do Paraná, sendo o território da Aldeia Jacutinga

afetado em definitivo com a construção da Usina Hidrelétrica Itaipu, em 1982, que com o seu

reservatório de águas, inundou este espaço Guarani, obrigando-os a se retirarem para outros

locais.

O medo e a pressão estabelecidos, em função da construção da Usina, fizeram com

que muitos Guarani migrassem para outras regiões, inclusive para o Paraguai. Estas

migrações resultaram na diminuição dos Guarani da Aldeia Jacutinga, principalmente no

momento em que a equipe da Itaipu fez os levantamentos sobre a concentração de índios nas

terras a serem inundadas. As conclusões obtidas através destes estudos apontam que existiam

poucas famílias de Guarani que habitavam esta região. Estes resultados serviram como base

para ações de formação de novas aldeias para abrigá-los, entre elas a de Santa Rosa do Oco’ÿ,

considerada insuficiente para a demanda populacional que nela habita.

O Tekoha Oco’ÿ possui uma área total de 231 hectares, muito inferior ao da aldeia

inundada. Foi criada oficialmente em 1982 no Município de São Miguel do Iguaçu, oeste do

estado do Paraná. Esta área indígena é uma estreita faixa de terras localizada entre as margens

de um dos braços do lago da Usina Hidrelétrica de Itaipu - formado pela construção desta

hidroelétrica em 1982 -, e as fazendas do entorno, onde se pratica a agricultura de grande

escala.

A situação de limitação espacial decorrente da transferência destes

indígenas do local onde habitavam - que seria alagado pela Usina

Hidrelétrica de Itaipu - para a então criada área indígena de Oco’ÿ, tem

motivado os Ava-Guarani a reivindicarem outra terra para sua ocupação, além da preservação dos 231 hectares de Oco’ÿ. [...] Portanto, os Ava-

Guarani reconhecem como motivo de seus deslocamentos nos períodos

anteriores à vinda deles para Oco’ÿ a pressão dos brancos. A partir desta constatação, tecem críticas à ação dos que chegaram aos lugares onde eles

habitavam, utilizando a força para os “empurrarem para lá”, expulsando-os

dos lugares onde moravam há tempos imemoriais. (ALBERNAZ, 2009 p.

129).

A estratégia adotada a partir de então pelos Guarani, visando recuperar áreas de terra

em equivalência aos 1500 hectares inundados em Jacutinga, iniciou-se logo após a concessão

do território no Oco’ÿ. Inicialmente aceitaram as terras, mesmo sendo impróprias para abrigar

toda a demanda populacional do grupo, mas iniciaram movimentos para pressionar a Itaipu a

conceder outros espaços para ocupação indígena, passando, inclusive, a se cogitar a

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possibilidade de transformar o Parque Nacional do Iguaçu em Reserva Indígena para os

Guarani.

Segundo Conradi (2009), entre as ações para pressionar os órgãos competentes, os

Guarani convocaram o presidente da Itaipu para reunião na aldeia e enviaram correspondência

ao Banco Mundial, ainda em 1986, denunciando os prejuízos provocados pela formação do

Lago de Itaipu para as comunidades nativas da região e a consequente negligência por parte

da Binacional.

Esta tática resultou em investigações por parte do Banco Mundial e forçou a Itaipu a

explicar-se perante seus financiadores, comprometendo-se a agir no sentido de rever estas

questões. Estas ações empreendidas pelos Guarani possibilitaram a criação de espaços para

negociação com a Itaipu, que em um segundo momento renderam bons frutos, descritos a

seguir.

A Itaipu assumiu a tarefa de averiguar um espaço físico semelhante ao território da

antiga Aldeia Jacutinga e iniciou buscas por toda a região, porém os resultados demoraram a

aparecer. Os Guarani, como forma de protesto e visando agilizar as ações desenvolvidas pela

Itaipu para aquisição de novas áreas, invadiram o Refugio Biológico Bela Vista, de

propriedade da Binacional.

Este ato aumentou a pressão junto à Itaipu até que em 1996 foi encontrado um novo

espaço, que passou por avaliação também dos Guarani a fim de opinarem sobre o local e as

possibilidades de desenvolvimento do seu ‘modo de ser’.

Após aprovação de todas as partes envolvidas, em 18 de abril de 1997 a Itaipu

adquiriu parte do território da Fazenda Padroeira, que tinha por atividade a criação de búfalos,

somando-se 1700 hectares situados no Município de Diamante do Oeste/PR. Ficou conhecida

como Tekoha Añetete que em Guarani significa ‘terra verdadeira’. Inicialmente foram

transferidas para o local de 32 famílias, totalizando cerca de 160 pessoas.

Itaipu e Funai firmaram um protocolo de intenções, em que a Itaipu assim

que adquirisse a área, a doaria à comunidade. À Funai caberia o translado

de 160 índios para a nova reserva. No mesmo documento ficou determinado que se esgotariam todas as responsabilidades da Usina sobre os destinos e

problemas da comunidade Guarani. As ações da Itaipu dentro da segunda

reserva indígena não param com a demarcação. Ela foi obrigada a atuar dentro da aldeia em diversos momentos, elaborando e patrocinando diversos

programas, como, por exemplo, o projeto de construção de casas indígenas

na ordem de R$ 800.000,00 nas duas reservas (CONRADI, 2009, p. 4702).

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Através destes convênios foram adquiridas, também, sementes para plantio,

equipamentos agrícolas, medicamentos, cestas básicas e materiais para construção de

residências para os mesmos.

Segundo Zeila Costa (2002), em função da transferência destes indivíduos para a

reserva ter sido feita de forma rápida, ao receberem oficialmente as terras da aldeia, a primeira

iniciativa foi construir barracas de lonas, fornecidas pela Itaipu Binacional. Ficaram todos

juntos nessas barracas por três dias. Depois de instalados, foram procurar locais adequados

para a construção das casas ‘definitivas’. A escolha dos locais levou em consideração a

existência de água para o consumo, a relação de parentesco e, em vários casos, a preocupação

com a ocupação das regiões fronteiriças da aldeia, evitando assim a invasão de pessoas

indesejadas.

Esta aparente motivação inicial foi logo sucumbida pelas dificuldades de adaptação a

este novo espaço. Como já citado, este território cedido aos Guarani era uma antiga fazenda

de búfalos, coberta, portanto, por pastagens do tipo colonião e também floresta nativa. Em

função disto, os primeiros plantios agrícolas empreendidos pelos indígenas não produziram o

suficiente para sustentar o grupo. Isto porque havia a necessidade de eliminar a vegetação que

recobria a terra, utilizando máquinas pesadas como tratores e agrotóxicos para o mesmo fim -

estrutura que o grupo não possuía.

No reassentamento deste grupo, pode-se verificar algumas das

consequências de um GP que não leva em consideração as questões sociais,

como a externalidade (Drumond, 1995), ou seja, o prejuízo que o acordo

entre duas partes causa a uma terceira que não participou da elaboração do projeto. A ida ao aterro sanitário em busca de alimentos e a mendicância

foram decorrentes da falta de planejamento e investimentos anteriores ao

próprio processo de reassentamento (COSTA, 2003 p. 21).

Após esta primeira safra ter se apresentado frustrada, muitos Guarani deslocaram-se

até o núcleo urbano do Município de Diamante do Oeste em busca de alimentos, fato que

gerou reações junto à sociedade local, que solicitou auxílio por parte do poder público

municipal. Várias ações foram empreendidas a fim de amenizar o problema em questão, entre

elas:

A realização de uma campanha de arrecadação de alimentos e roupas por iniciativa da Igreja Católica. A aposentadoria de alguns indígenas foi outra

forma de contornar a situação. No final de 1998, a prefeitura fez um

cadastramento das famílias indígenas, que passaram a ser assistidas por um programa federal de cestas básicas da Companhia Nacional de

Abastecimento (CONAB), até agosto de 2001 ainda estavam recebendo as

cestas (COSTA, 2003, p. 23).

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Neste período inicial de ocupação da aldeia, as lideranças Guarani também buscaram

apoio, principalmente junto a entidades como FUNAI, Itaipu Binacional e Prefeitura

Municipal. As demandas eram diversas, desde apoio para a agricultura, até auxílio em relação

à aquisição de alimentos, roupas e infraestrutura básica. A somatória de iniciativas tanto por

parte dos Guarani como por parte do governo municipal, resultaram na retomada do apoio por

parte da Itaipu, através de projetos voltados à sustentabilidade do grupo.

Foram também realizadas atividades de pesquisa e análise antropológica do grupo,

visando ajustar as ações de órgãos oficiais ás reais necessidades dos Guarani, enquanto

unidade étnica.

Assim, num primeiro momento, as discussões são feitas entre as entidades

que vão participar do projeto e as lideranças indígenas. Após essa discussão,

as lideranças levam as propostas para a comunidade. As discussões na comunidade são feitas geralmente aos sábados, quando se reúnem na Opy,

para dançar e orar. Somente após esse processo, é que uma nova reunião

com as entidades envolvidas é feita, onde comunicam a vontade do grupo. A partir daí, evidentemente, inicia-se uma série de negociações, até

chegarem a um consenso (COSTA, 2003 p. 25).

Como resultado de todas estas atividades tem-se a elevação na qualidade do apoio

prestado à aldeia por agentes externos, bem como melhorias relacionadas a ações diretas e

pontuais que repercutiram no sentido de solucionar os problemas e de viabilizar novas ações.

Percebeu-se, por exemplo, que o foco de atuação deveria ser na agricultura e na criação de

animais, visando à geração de sustento e renda para os Guarani. Segundo o atual cacique da

aldeia, João Alves, a Itaipu firmou convênio para auxílio na agricultura familiar para os

Guarani desta aldeia, por vinte (20) anos. As atividades desenvolvidas pela Itaipu junto ás

aldeias do oeste paranaense são discutidos no item 3.3 e 4.2 desta dissertação.

Segundo os Guarani, que compõem a aldeia, após terem alcançado a estabilidade

necessária para a dinâmica interna do grupo, surge então à necessidade de criação de uma

escola para os estudantes terem acesso ao conhecimento dito escolar, visando garantir seus

direitos enquanto cidadãos. Segundo o Projeto Político e Pedagógico da Escola KUAA

MBO’E:

Os indígenas julgam a educação escolar como sendo um instrumento de

fortalecimento das culturas e identidades e um possível canal de conquista da desejada cidadania, entendida como direito de acesso aos bens e aos

valores materiais e imateriais do mundo moderno. (PPP – Escola Indig.

KUAA MBO’E – TEKOHA AÑETETE – Diamante d’Oeste/PR).

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A partir desta visão, no dia 21 de fevereiro de 2006 foi criada a Escola Estadual

Indígena KUAA MBO’E - Ensino Fundamental, através da resolução n.º 508/2006. A

aprovação por parte do Núcleo Regional de Educação do Paraná do Regimento Escolar

ocorreu através do parecer n.º 183/06 de 30 de junho de 2006 e a autorização de

funcionamento do Ensino Fundamental (1ª a 4ª Serie) no dia 08 de agosto de 2006, com a

resolução n.º3835/06.6.

A implantação desta instituição no interior da aldeia reflete alguns aspectos sobre a

forma como foram implementadas as Políticas Públicas para estes Guarani. Veremos adiante

que estas ações, em muitos momentos, visam atender os anseios, solicitações e necessidades

do grupo; os Guarani, por sua vez, são conhecedores da legislação bem como dos seus direitos

e deveres enquanto comunidade indígena. Disto, resultam os programas governamentais

implantados junto à aldeia.

Justamente em função desta mobilidade que os Guarani possuem enquanto

comunidade organizada, em 2010 ocorreu outro fato marcante na trajetória histórica desta

aldeia; entre os dias 03 e 05 de fevereiro o Tekoha Añetete foi palco para o I Encontro dos

Povos Guarani da América do Sul, que teve como objetivo principal discutir a identidade

cultural e a questão fundiária relacionada aos indígenas na referida região.

O encontro contou com a participação de líderes indígenas da América do Sul e de

representantes de instituições envolvidas com as questões indígenas em todo o país. A título

de registro, representando os indígenas, estavam presentes as lideranças Mario Tupã, anfitrião

do Encontro e cacique da Aldeia Tekoha Añetete, Pedro Mancoelho, do Paraguai, Silvino

Moreira Kavai Mirim, da Argentina, e Saturnino Cueler Kavarai, da Bolívia. (Museu do

Índio, www.museudoindio.org.br).

Entre as reivindicações das lideranças Guarani do Brasil, da Argentina, da Bolívia e do Paraguai, presentes no Encontro, estão: garantias de combate à

discriminação, ao preconceito e à violência em seus territórios; a criação de um foro permanente de discussão em defesa dos direitos dos Guarani, no

âmbito do Mercosul Cultural; e o respeito, a partir de mudanças das leis de

fronteira, do livre trânsito cultural, de acordo com as tradições dos povos

indígenas, nas fronteiras dos quatro países. (Museu do Índio,

www.museudoindio.org.br, acessado em 18/11/2012).

Com a apresentação desta discussão sobre aspectos da trajetória histórica dos Guarani

que compõe o Tekoha Añetete, pode-se perceber a presença de características marcantes

6 Outras informações referentes à Escola Indígena KUAA MBO’E são citadas no próximo item deste mesmo

capítulo 2, item 2.3 – Caracterização da aldeia e Organização do espaço.

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destes indivíduos, entre elas a persistência na busca por seus direitos e pela manutenção dos

elementos que compõe sua identidade étnica.

Este processo em muito se deu pela relação que possuem com o território. Não fosse

isto, a luta possivelmente estaria sucumbida há tempo. Isto prova que esta etnia possui

realmente laços afetivos e simbólicos muito fortes no que tange ao oeste do Paraná, pois

elaboram estratégias na luta por reaver porções deste território habitado por seus

antepassados.

Vale lembrar que o Guarani não é o dono da terra, mas sim é parte dela, portanto esta

luta é travada também por eles próprios enquanto indivíduos que se consideram filhos da

mãe-terra e da mãe-natureza, na busca constante da reafirmação enquanto grupo étnico

pertencente a um determinado território simbólico.

2.2 – Caracterização da Aldeia e Organização do Espaço

Atualmente a Aldeia Indígena Tekoha Añetete possui população estimada de 300

pessoas, distribuídas em aproximadamente 78 famílias. Os núcleos familiares extensos estão

organizados em torno das casas de reza, três no total, situadas em regiões distantes umas das

outras dentro da aldeia.

O idioma guarani é falado por todos os habitantes da aldeia, já que entre eles a

comunicação ocorre na língua tradicional. As crianças, os mais velhos, os rezadores e mesmo

outros indivíduos que possuem pouco contato com o branco, não dominam a língua

portuguesa.

As crianças desconhecem o português até o momento de irem à escola. Os mais velhos

compreendem apenas alguns vocábulos enquanto jovens e adultos entendem e falam

razoavelmente bem a língua portuguesa; utilizam-na principalmente quando necessitam

comunicar-se com os brancos.

Como visto no primeiro capítulo, os Guarani enquanto família linguística, subdividem-

se em vários grupos, entre eles Mbÿa, Kaiowa, Chiripa, entre outros.

Visando diminuir as divergências - ou suscitá-las ainda mais - apresenta-se uma

definição antropológica elaborada pelo pesquisador Rubem Thomaz Almeida em entrevista

concedida a esta pesquisadora. Segue o que ele afirma em relação a definição sobre qual sub

grupo Guarani ocupa do Añetete:

Esta é uma questão difícil de pensar.... eu diria que em relação à região

oeste do Paraná, o contato entre os Mbÿa e os Chiripá foi bastante intenso,

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o que teria levado a inter-relações entre ambos, mantendo nuances de um e

outro, mantendo muitos intercâmbios de interpretações da cosmologia, na

produção da vida social, na organização política, e mesmo na língua. Então é muito difícil dizer que eles são Mbÿa ou são Ñandeva, Chiripá.

(ALMEIDA, Entrevista concedida em 04/01/2013, por Gracieli E. Schubert

Kühl).

Vale ressaltar que inclusive eles mesmos encontram dificuldades em definir-se

enquanto descendentes de um ou outro subgrupo. Isto porque muitas vezes a linhagem paterna

descende de um subgrupo enquanto a descendência materna é de outro, porém, todos são

Guarani falante, sem definir exatamente para qual subgrupo pertencem.

No caso desta pesquisa especificamente, como citado anteriormente, constitui-se como

informante chave o Professor Vicente Vogado, que se auto define como sendo descendente de

Chiripás. Portanto, nesta análise serão expostas em maior quantidade características Chiripá

muito em função do depoente, porém, não deixarão de ser apresentados aspectos similares aos

demais subgrupos, principalmente em função da dificuldade em se distinguir uns dos outros.

O espaço compreendido pela aldeia corresponde atualmente a uma área territorial de

1774 hectares, situada na confluência dos Rios São Francisco Falso e São Domingos, Linha

Ponte Nova, Município de Diamante do Oeste – PR. O espaço compreendido pela aldeia

possui a forma semelhante à de um triangulo, sendo que em duas laterais é circundada pelos

referidos rios e na terceira lateral encontra-se a divisa seca com o Município de

Ramilândia/PR.

O acesso é feito por estrada de asfalto, partindo da sede municipal até a comunidade

da Vila Bonita. No trecho restante o caminho é de calçamento com pedras irregulares e a parte

final é de cascalho.

O relevo desta região caracteriza-se por topografia acidentada e coberta por algumas

regiões de mata, inclusive a aldeia quando de sua constituição possuía apenas 40% de área

agricultável, sendo o restante coberto por vegetação densa. Segundo descrição feita pelo

antropólogo Rubem Thomaz de Almeida, que produziu relatório sobre esta área como opção

para criação de Reserva indígena, o local possui as seguintes características:

São aproximadamente 1700 ha. localizados na confluência dos rios São

Francisco e São Domingos, águas definem mais da metade do perímetro da

propriedade – que sugere a figura de um triangulo cujo vértice mais agudo é formado pelos dois rios. A área, situada a 13 km, da sede do município, é

constituída por uma montanha não muito elevada que se estende por entre

os dois rios. É coberta, em boa parte, por mato. Apesar de não estar intacto,

parece conter características valorizadas pelos índios, tais como diversidade de árvores e plantas, utilizadas como matéria prima para construção de suas

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habitações, utensílios e, principalmente, os pohã ñana, ou plantas

medicinais para seus remédios. Pela inclinação do morro, parece ser difícil a

prática agrícola, em moldes ocidentais, sem recursos financeiros e técnicos. O relevo não deve impedir, contudo, que os Guarani ocupem espaços mais

altos e nas proximidades do mato, distribuindo suas casas e cultivando suas

lavouras tradicionais, as kokue – onde a diversidade prevalece frente à

quantidade de cultivos. – (DOC. 10: Pasta: 1996. Assunto: Visita a terras que serão eventualmente destinadas pela Itaipu e Funai à comunidade

Guarani-Chiripa do Oco’ÿ. Relatório de viagem a Fazenda Padroeira,

Diamante do Oeste/PR, Data: 05.09.1996, Local: Rio de Janeiro/RJ. Emitente: Rubem Thomaz de Almeida. Destinatário: ITAIPU E FUNAI. In:

CONRADI, Carla, TITULO, p. 4701.)

Em imagens atuais da aldeia, feitas via satélite e disponíveis na internet, pode-se

verificar as características citadas por Almeida (2005). Percebe-se a presença dos rios que

delimitam a aldeia e que possibilitam práticas como a pesca; a floresta abriga elementos vitais

para os Guarani, como as plantas medicinais e a madeira para construção de casas, além de

todos os elementos sagrados ligados a mãe-natureza.

Na imagem abaixo se destacam os espaços cobertos pela mata, centralizados na figura,

pequenas clareiras onde se localizam as residências, rodeadas por pequenas roças destinadas

ao plantio de gêneros agrícolas para sustento e eventualmente comercialização de excedentes.

Além da mata e das lavouras, destacam-se com linhas pontilhadas a presença dos Rios

São Francisco Falso, contornando a aldeia na porção superior da imagem e na porção inferior

o Rio São Domingos. É uma área diferenciada em comparação com outras na região, possui

mata fechada em grande parte do território, enquanto seu entorno é composto por grandes

lavouras destinadas ao plantio de soja e milho, ou por grandes pastagens para criação de gado.

Aldeia Tekoha Añetete em destaque através dos pontilhados brancos indicando o curso dos Rios São Francisco

Falso e São Domingos. Imagem de satélite via Google Maps, em 18/11/2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

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Segundo relato dos Guarani, o espaço físico da aldeia é ideal, porque é grande e

possibilita que cada família possua a sua roça para sustentar seus dependentes, diferente de

outras aldeias que são estreitas, o que dificulta o cultivo agrícola. Outro aspecto positivo é a

presença da mata, o que favorece a caça, apesar de os animais estarem reduzidos, porém ainda

existem.

Outra característica favorável da aldeia segundo os Guarani relaciona-se ao seu

considerável distanciamento em relação à cidade de Diamante do Oeste. Isto dificulta o

contato dos Guarani com as práticas urbanas, entre elas a bebedeira ou a presença constante

de pessoas estranhas.

A ocupação do território foi definida pelos próprios Guarani quando de sua chegada ao

local. Dentre os aspectos citados por eles que mais chamam a atenção é a preocupação que

tiveram em fixar residências nas margens da aldeia, isto porque, segundo eles, desta forma o

território estaria resguardado de possíveis invasões ou mesmo da entrada de estranhos através

de suas fronteiras. Esta é uma característica marcante nesta configuração espacial, perceptível

na imagem acima: a ocupação situada, sobretudo, nos limites territoriais da aldeia.

Diferente do que ocorre em aldeias de outras etnias, os Guarani distribuem-se de

maneira diversa no espaço, formando uma espécie de teia. Estas ramificações formam-se

através de caminhos que ligam uma residência à outra e também às casas de reza. Eles não

comungam de um núcleo ou pátio central com as moradias distribuídas regularmente em torno

deste; ‘a primeira impressão causada por um tekoha é de desorganização na ocupação do

espaço disponível, como se as famílias tivessem se instalado aleatoriamente’ (ALMEIDA,

2001, p. 124), no caso dos Guarani as construções são dispersas no espaço, sendo ligadas

fisicamente apenas através de estradas ou picadas.

Porém, o fator que une estes grupos deriva das relações de parentesco, a partir das

quais tem origem os critérios para ocupação deste espaço. Podemos relacionar este sistema ao

que Barth (1998) define como ‘estatutos étnicos’. Segundo Rubem Thomaz Almeida, “cada

família, nuclear ou extensa, tem a posse da terra para a reprodução de seu sistema econômico. Assim,

não há um centro geográfico ou físico, mas sim um centro político, que poderá variar de local de

acordo com o líder (ALMEIDA, 2001, p. 124).

Na aldeia Tekoha Añetete, existem algumas trilhas, porém a maior parte dos caminhos

são formados por estradas pavimentadas com cascalho, principalmente para viabilizar o

transporte escolar dos alunos Guarani até a escola existente na aldeia. A pavimentação e

manutenção destes caminhos é feita através de convênio entre a Itaipu Binacional e a

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Prefeitura do Município de Diamante do Oeste, resultado do Programa de Sustentabilidade

das Comunidades Indígenas, descrito com mais detalhes no item 3.3 desta dissertação.

No entorno destas residências são identificadas pequenas lavouras para cultivo

agrícola. Na Aldeia Tekoha Añetete cada família possui sua porção de terra para plantio. Na

família de Vicente, por exemplo, ele, o patriarca possui sua área, seus filhos outras próximas a

dele, mas são distintas. Todos se auxiliam nas dificuldades.

Esta organização segue características tradicionalmente praticadas pelos Guarani,

como afirma Almeida em relação à organização desta etnia em tempos passados:

A economia estava organizada de maneira a permitir o trabalho comunitário

na koyguasu [roça grande], cabendo paralelamente a cada família nuclear uma roça pequena de subsistência, independente da roça grande da família

extensa, o princípio econômico da reciprocidade, distribuição e

redistribuição dos bens produzidos era uma prática comum. (ALMEIDA,

2001, p. 125)

Eles afirmam que não são como os brancos que competem entre si sem se importarem

com o outro; o Guarani geralmente é solidário com os demais, um ajuda o outro. Neste

sentido, afirmam que quando uma família não possui determinado alimento, como, por

exemplo, mandioca ou milho, as demais ajudam fazendo a doação deste produto.

Embora o Guarani seja incapaz de conceber a vida humana sem as alegrias da caça e da pesca, a base de seu sustento lhe é fornecida pela lavoura. (...),

sobretudo, na situação atual... a importância das roças aumenta cada vez

mais em detrimento das atividades suplementares (SCHADEN, 1975, p.37).

Na imagem abaixo, destacam-se algumas residências e as áreas de plantio em seu

entorno. Este núcleo familiar apresentado é de Vicente Vogado, professor na Escola da aldeia.

Sua casa está rodeada por árvores frutíferas, lavoura e pelas residências de seus filhos,

formando um núcleo familiar com vários aspectos característicos da organização espacial

tradicional das Aldeias Guarani.

Conforme afirma Almeida “em algumas casas a roça fica imediatamente após o

‘pátio’, ou seja, é uma continuidade da habitação. Na maioria das vezes, contudo, a roça fica

afastada, não raro a quilômetros. Mantém-se sempre um distanciamento do vizinho mais

próximo, que invariavelmente é um parente (ALMEIDA, 2001, p. 131).

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Núcleo familiar de Vicente Vogado - destaque para as áreas destinadas ao plantio no entorno das residências.

Imagem de satélite via Google Maps, em 18/11/2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

Grande parte das atividades desenvolvidas no Añetete ocorrem a partir de quatro

grandes grupos familiares, principalmente as ações empreendidas por agentes externos, entre

eles a Itaipu Binacional e a Prefeitura Municipal de Diamante do Oeste. Cada um destes

grupos possui um coordenador que tem por função organizar a dinâmica interna em relação às

necessidades e ao recebimento de apoio dispensado por destes agentes externos. Entre as

ações coordenadas por estes representantes encontram-se a destinação de maquinários para

preparo e cultivo do solo e para colheita, distribuição de sementes e mudas de árvores e

capins, entre outras ações.

O grupo do atual cacique João Alves, situado logo na entrada da aldeia em frente à

Escola, agrupa cerca de quinze (15) famílias; O núcleo do Professor Vicente Vogado reúne

em torno de vinte e duas (22) residências e cerca de dezoito (18) famílias; o terceiro grupo

possui como coordenadores Leonardo e Cecílio Ortiz e é composto por aproximadamente

dezesseis (16) famílias; o quarto grupo possui em torno de doze (12) famílias e tem como

representante Augusto Martinez.

Nas áreas de lavoura são produzidos alimentos para sustento do grupo, entre eles

milho, mandioca, batatas, abóboras, entre outros. Tudo o que é produzido é dividido com os

mais próximos ou com aqueles que por vários motivos possuem dificuldades em produzir seu

próprio alimento. Esta prática encontra-se amparada no que ALMEIDA (2001) define como

princípio econômico da reciprocidade Guarani.

Segundo relatos colhidos na aldeia, estes Guarani comercializam seus produtos

agrícolas quando ocorrem sobras nas colheitas. Esta ação visa arrecadar recursos financeiros

para necessidades variadas, dentre elas as despesas relacionadas ao trabalho com a terra, já

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que algumas vezes eles utilizam tratores e máquinas terceirizadas para facilitar as atividades

de plantio e colheita.

Segundo o Professor Vicente, em tempos passados as lavouras eram distantes das

casas; procurava-se um local em meio à mata, preferencialmente um taquaral; fazia-se a

roçada e em seguida a queimada para então iniciar o plantio que era feito com instrumentos

bastante simples, como o chacho7 e a enxada por exemplo; não utilizavam máquinas

agrícolas, somente ferramentas manuais.

Atualmente queixam-se de não poder mais realizar as queimadas para cultivo agrícola;

precisam esperar a chegada da máquina para tombar a terra, o que na maioria das vezes

demora, fazendo com que o bom período para plantio se esgote.

Entre os alimentos tradicionalmente cultivados pelos Guarani, o que possui maior

valor agregado é o milho. Segundo os entrevistados, este alimento não somente sacia a fome

do corpo, como também alimenta a alma, o espírito guarani. Ou seja, para além da função

alimentar de saciar a fome, o milho também possui forte apelo simbólico. Para esta etnia o

milho é fundamental para seu sustento. Afirmam que sem milho não vivem. As crianças desde

muito cedo já são alimentadas com a canjica, derivada do milho, para que cresçam saudáveis

e protegidas. Este alimento, para que possua valor simbólico, necessita ser preparado em fogo

de chão, isto porque o fogo também possui referencias simbólicas e tem por função primordial

afastar o mal, as doenças e tudo mais de ruim que possa acontecer ao Guarani. O milho

preparado em fogo de chão segue, portanto, os costumes antigos e possui forte relação com a

simbologia presente na cultura dos Guarani.

Não é qualquer semente cultivada que possui este valor simbólico. Existe uma espécie

específica de milho, que é branco. Para este cultivo é necessária à realização de cerimônias

religiosas. Quando chega o período de iniciar o plantio, as sementes são levadas à casa de reza

para realização de ritual. Segundo os depoentes, neste momento, vem ñanderu e fortalece as

sementes para que cresçam bem, possibilitando uma boa safra. O plantio também é permeado

de ações religiosas. Quando da colheita, as primeiras espigas são trazidas novamente à casa de

reza para também passarem por um ritual, uma espécie de agradecimento a ñanderu pela

safra.

Em suma, tudo o que diz respeito ao milho se associa ao mundo

sobrenatural. É verdade que se fala em cerimônias correspondentes

7 Chacho: ferramenta feita a partir de um roliço de madeira com uma das extremidades apontada, com a qual se

fazia a cova no solo para depositar as sementes. Alguns exemplares utilizados por colonos contam com uma

ponteira de ferro nesta extremidade. Alguns destes objetos estão expostos em Museus da região, como em Porto

Mendes, distrito de Marechal C. Rondon/PR, no Museu Histórico Pe. José Gaertner.

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também para outras plantas de cultivo – mandioca, batata-doce, feijão,

abóbora, morango, fumo, algodão – mas estas parecem limitar-se ao

‘batismo’ dos primeiros frutos, espécie de exorcismo da ‘primeira cestada’. Diante da cruz que se encontra defronte a casa do pai, cada mulher deposita

a sua canastra, o mynakú, para se ‘batizar’ e para ‘não dar cólica’. Isto

vale para todos os produtos da roça, dos quais o milho se distingue por

fornecer os marcos de um genuíno calendário econômico-religioso, a ponto de, como vimos, se poder quase falar numa ‘religião do milho’.

(SCHADEN, 1975, p. 43)

Como cita Schaden acima, outro produto cultivado pelos Guarani é a mandioca, a

qual faz parte do cardápio quase que diário destes indivíduos. Mesmo não possuindo a

mesma importância religiosa, a mandioca é indispensável ao Guarani principalmente nos

períodos em que o milho torna-se produto escasso, isto por ser um produto disponível em

praticamente todos os meses do ano.

Além do milho e da mandioca, cultivam também o fumo, apesar de atualmente a

produção de este cultivar, registrar índices menores que em tempos passados. Da mesma

forma como o milho, o fumo também possui apelo simbólico para os Guarani, porque

segundo eles, a fumaça produzida tanto pelo fogo de chão como pelo cachimbo, petyngua,

possui o poder de espantar os maus espíritos.

Segundo ASSIS (2006, p. 181), “fuma-se o petyngua coletivamente, mas é o líder

religioso quem fuma preferencialmente para que, também pela via do tataendy/chama e do

tatachina/fumaça do petyngua, possa se inspirar para os cantos que deverá entoar, oriundos da

esfera divina”.

É por este motivo que a importância do fumo ultrapassa o simples hábito, pois está

intimamente relacionado às cerimônias religiosas. Seu uso é cotidiano, as crianças desde

pequenas já possuem a permissão de utilizarem o petyngua, sem que isto seja visto como algo

nocivo à saúde dos indivíduos, pois está estritamente ligado às práticas religiosas do grupo.

Eles crêem que os meninos, ao iniciarem o uso do cachimbo voluntariamente desde

cedo, poderão tornar-se rezadores no futuro. “Uma das peças mais interessantes da cultura

material dos Mbÿa é o cachimbo, petyngua, de forma típica, feito de barro ou nó de pinho.

Fumam-no de maneira ‘comunista’, duas, três ou mais pessoas” (SCHADEN, 1975, p. 45).

O que se nota é um predomínio extraordinário da religião em todas as

esferas da cultura, inclusive na economia, ao ponto das atividades

econômicas aparecerem, não raro, como simples pretexto para a realização

de cerimoniais de contacto com o sobrenatural e controle de poderes pessoais que se julgam ter influência no destino dos homens. (...) o ciclo

econômico anual ... é antes de mais nada um ciclo de vida religiosa ... que

acompanha as diversas atividades de subsistência, em especial as diferentes fases da cultura do milho. (SCHADEN, 1975, p.38)

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Outro elemento essencial para a subsistência dos Guarani em relação à alimentação é a

prática da caça, que além de servir como complemento na alimentação também possui relação

com símbolos construídos historicamente pelo grupo. Os Guarani possuem uma visão da

natureza que em muito se difere da praticada pelo homem branco. Não existe distinção entre

ser pensante e não pensante. A natureza, tanto plantas, água, animais possuem o mesmo valor

que o ser humano. Segundo os depoentes, a natureza e os animais também possuem alma.

Segundo relatos dos habitantes da aldeia, antigamente quando um animal selvagem era

abatido por um Guarani, antes de este ser transformado em alimento, era necessário que a

caça fosse levada até o rezador para se obter permissão do ‘dono’ do animal para daí então

servir de alimento a família do caçador. É uma atitude que demonstra a forma com que os

Guarani compreendem a sua relação com a natureza. É como se os animais possuíssem dono

que zela por eles, portanto, para serem transformados em alimento deve-se solicitar

permissão. Este aspecto também pode ser notado em relação às árvores, matéria prima para

construção de residências e casa de reza. Antes de cortá-las é necessário pedir autorização ao

seu ‘dono’. Este aspecto será discutido mais amplamente em item posterior.

É relevante ressaltar também a presença de instituições oficiais no interior da aldeia,

entre eles um Posto de Saúde e um Colégio Estadual. Segundo relato do atual cacique do

Añetete, nos primeiros tempos da aldeia, lhes foi informado que as crianças deveriam

deslocar-se até a sede do município para estudar, da mesma forma deveria acontecer para os

que necessitassem de atendimento médico. Os Guarani então, conhecedores da legislação que

protege os direitos indígenas, reivindicaram junto às autoridades competentes a construção da

Escola e do Posto de Saúde, sendo atendidos no ano de 2001.

Atualmente a assistência médica é realizada junto ao Posto de Saúde da aldeia, que

além de atender os 300 Guarani do Tekoha Añetete, também atende os Guarani da aldeia

vizinha, o Tekoha Itamarã. Este órgão, instituído, portanto, em 2001 é mantido pelo Governo

do Estado e oferece atendimento médico, odontológico e serviços de enfermagem. Atuam

nesta unidade, uma enfermeira, uma técnica em enfermagem, um médico, um dentista e um

agente indígena de saúde, que é um Guarani que reside na aldeia e atua como mediador entre

os habitantes locais e o serviço de saúde.

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Posto de Saúde da Aldeia Tekoha Añetete. Em 06/12/2012. Por Gracieli E. Schubert Kühl.

Segundo funcionários desta unidade, a dinâmica da instituição ocorre normalmente e

como em qualquer outro local. São realizadas consultas, pré-natais, receita-se medicamentos,

enfim, a função deste Posto de Saúde na aldeia é semelhante a qualquer outro Posto de Saúde

da região.

Questionados sobre a relação destes atendimentos de saúde com a importância das

cerimônias de cura desenvolvidas pelos rezadores, tanto funcionários quanto Guarani expõe o

mesmo discurso. Segundo eles, quando uma pessoa fica doente, primeiramente ela procura o

rezador. Este, por sua vez, procura resolver o problema, mas quando percebe que a doença

não regride, encaminha o indivíduo à Unidade de Saúde local para que seja avaliado e tratado

pelo médico.

As gestações e os partos em sua maioria são acompanhados pelo médico local e as

crianças nascem no Hospital em Diamante D’Oeste ou outro hospital de referência da região.

Poucas mulheres da aldeia ainda optam por terem seus filhos em casa, à moda antiga. Quando

isto ocorre são as parteiras que realizam o parto.

Após o nascimento inicia-se o processo da escolha do nome. Nesta aldeia mantém-se a

prática de o rezador escolher o nome indígena para a criança. Quando a mulher está grávida

ela já conversa com o líder religioso para quando do nascimento lhe seja revelado o nome.

Segundo Vicente, ñanderu espalha o ambá pelo mundo, que é a alma colocada nas crianças

quando nascem. Quando ele se comunica com os deuses através das rezas, descobre de onde

vem o ambá daquela criança. O ambá das meninas vem do lado do sol nascente e dos meninos

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do poente. Para que o nome traga força a seu postulante é necessário o batismo na casa de

reza.

Enquanto não recebem o nome indígena, as meninas são chamadas de Kuñae e os

meninos de Avaé. Em tempos remotos o nome era revelado após um ano de vida

aproximadamente, sendo que atualmente, em função da necessidade em se registrar o

nascimento em cartório, o nome precisa ser escolhido em até três meses. O nome não indígena

é escolhido a partir de almanaques que contém uma série de sugestões.

Estas crianças recebem acompanhamento de saúde desde o nascimento até a idade

adulta através de convênio firmado entre a Prefeitura Municipal de Diamante D’Oeste e a

Itaipu Binacional, sendo esta última a maior mantenedora da atividade através do Programa

de Sustentabilidade das Comunidades Indígenas.

Como descrito no item 3.3 desta dissertação, o Programa de Sustentabilidade das

Comunidades Indígenas possui vários eixos de atuação, entre eles o de Segurança Alimentar e

Nutricional. Através deste programa, alguns profissionais da saúde realizam visitas á aldeia

duas vezes por semana, quando são desenvolvidas atividades de acompanhamento nutricional,

capacitação de mães indígenas para o preparo de pratos que utilizam alimentos saudáveis e

acompanhamento do peso e tamanho das crianças. Para aquelas que estão abaixo do padrão

estabelecido pelos órgãos envolvidos, é destinado acompanhamento mais próximo, até que

atinja o nível de desenvolvimento satisfatório.

Em relação à educação, a aldeia conta com a Escola Estadual Indígena Kuaá Mbo’e,

que significa ‘conhecer ensinar’, atendendo exclusivamente Guarani do Tekoha Añetete. Os

alunos ocupam as séries iniciais e finais da Educação Infantil e para o ano de 2013 está

prevista a implantação de turma voltada ao Ensino de Jovens e Adultos/EJA, também através

da Secretaria Estadual de Educação do Paraná.

Escola Estadual Indígena Kuaá Mbo’e. Em 06/12/2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

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Como citado anteriormente, esta Escola foi reconhecida oficialmente em 21/02/2006

pela Resolução nº. 508/2006. A Instituição mantedora é a Secretaria de Estado de Educação

do Paraná - SEED, através do Núcleo Regional de Educação do Município de Toledo.

Segundo funcionários, as condições físicas da Escola são boas, já que a estrutura é nova,

porém, já possuem necessidade de ampliação do espaço em função do aumento no número de

alunos. É composta por quatro salas de aula, uma sala de informática e uma quadra de

esportes coberta. A parte administrativa conta com uma sala destinada à secretaria, uma sala

da direção e uma sala de professores onde está instalado o acervo da biblioteca da escola.

Possui também, oito banheiros sendo quatro masculinos e quatro femininos, uma cozinha

grande e bem equipada, atendendo os padrões da vigilância sanitária, com uma sala destinada

para a merenda escolar, uma sala depósito de produtos de limpeza e um banheiro.

Vista aérea das dependências da Escola Indígena Kuaá Mbo’e no centro da imagem. O portal da aldeia

localiza-se a esquerda da imagem seguindo pela estrada de terra. Imagem de satélite via Google Maps,

em 18/11/2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

Dentre os professores que atuam nesta instituição, cinco (05) deles são Guarani e onze

(11) não-indígenas. Em relação a estes professores não índios, há pouca rotatividade devido à

boa aceitação da comunidade em relação ao trabalho desenvolvido com os alunos. Todos

moram na sede do Município de Diamante D’Oeste e deslocam-se todos os dias até a aldeia

para trabalhar.

Segundo o Projeto Político-Pedagógico da Escola, o ensino é bilíngue, na língua

Guarani e língua Portuguesa, sendo que a alfabetização é feita somente na língua Guarani

porque as crianças nesta idade são falantes apenas deste idioma.

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A escola não tem nenhum método específico, sendo que a oralidade é a forma

utilizada e a partir daí se introduz o alfabeto guarani, que se vale de recursos metodológicos

que utilizam a imagem de animais comuns na aldeia, o nome do aluno, associando-os a letra.

A alfabetização na segunda língua ocorre a partir do 2º ano, onde professor indígena e não

indígena trabalham com os alunos em momentos diferentes.

O ensino é orientado especificamente para os indígenas, as disciplinas trabalhadas são

de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais/DCN, disponível junto à Secretaria de

Educação do Estado do Paraná/SEED/PR.8 O ensino religioso é trabalhado por um professor

indígena seguindo os costumes da cultura guarani.

O calendário escolar é adequado às necessidades específicas da comunidade, sendo

diferenciado de outras escolas e contendo as especificidades da comunidade como as datas

comemorativas relacionadas à Fundação da Aldeia, dia do índio, semana cultural indígena,

Sepé Tiaraju9, ñemongarai (Batismo da Semente) e Karuai (festa da colheita).

Segundo relato dos próprios Guarani, o que motiva os alunos a estudarem é a

necessidade de aprenderem a segunda língua, pois quando saem de sua comunidade

necessitam dela para se comunicar com os não indígenas e socializar-se com outras culturas.

Eles têm consciência de que as dificuldades são grandes em relação ao aprendizado da língua

portuguesa, porém a necessidade é maior.

A comunidade considera necessária a educação escolar para seus filhos,

porque ela é assegurada pela Constituição que dá direito as comunidades

indígenas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e

bilíngüe. As famílias desejam que as crianças aprendam a ler e escrever na segunda língua, (língua Portuguesa) porque percebem que ninguém vive

isolado, eles saem da aldeia e tendo conhecimento do mundo letrado fica

mais difícil o indígena ser enganado pelo não índio. Percebe que para ir ao banco, correio, prefeitura, lojas, supermercados necessitam se comunicar

em outra língua e que nem por isso deixam de ser indígenas. Isso os torna

mais seguros de si e podem reivindicar os seus direitos de cidadãos. (Proj. Político e Pedagógico da Escola Estadual Indígena Kuaá Mbo’e).

8 Um dos documentos que estabelece as ações voltadas à criação de Escolas Indígenas é a Deliberação 09/2002,

elaborada pela Comissão Temporária de Educação Escolar Indígena, aprovada em 05/12/2002. “Assunto: Dispõe

sobre criação e funcionamento de Escola Estadual Indígena, autorização e reconhecimento de cursos, no âmbito

da educação básica no Estado do Paraná e dá outras providências. Relatora: Rosi Mariana Kaminski.” Disponível

em: http://www.educacao.pr.gov.br/arquivos/File/deliberacoes/deliberacao092002.pdf, consultada em

27/12/2012. 9 Herói da resistência da Guerra Guaranítica contra os impérios ibéricos.

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Alunos Guarani em sala de aula. Projeto Viva Escola. Em 2011, acervo da Escola Est. Kua’á Mboé.

Entre as atividades diferenciadas realizadas na Escola, existe o dia do contador de

história, que é desenvolvido junto aos alunos com a presença de pessoas mais velhas da

comunidade, as quais têm a incumbência de repassar às crianças as histórias sobre à casa de

reza, os mitos e lendas guaranis. Procura-se, desta forma, afirmar e manter a língua e a

identidade e a diversidade étnica, fazendo o aluno perceber a importância de se manter a

oralidade e ter orgulho de ser indígena.

Segundo relatos de alguns Guarani, no tempo de seus antepassados o professor era o

rezador e a casa de reza era a escola. Hoje, principalmente as crianças, estão se afastando da

casa de reza para irem à escola, fator que dificulta a dinâmica interna dos grupos na realização

de suas cerimônias. Alguns estão adaptando os horários das cerimônias, iniciando-as à noite

para que todos possam participar.

Além da Escola e do Posto de Saúde, existem outras construções na aldeia, entre elas

um Centro Cultural, que aparentemente não é utilizado para a finalidade proposta, a não ser

como sala de aula quando necessário. Encontra-se na aldeia também um barracão pré-

moldado para guarda de veículos de transporte escolar e outros. Foi construído um centro para

comercialização de artesanato com forno para secagem de objetos cerâmicos e um pequeno

pavilhão que inicialmente utilizou-se como sala de aula até o momento em que as instalações

da Escola fossem concluídas. Atualmente é utilizado pela assistência social no

acompanhamento das crianças residentes na aldeia, através do já citado Programa de

Sustentabilidade das Comunidades Indígenas. Todas estas obras foram construídas por não-

guaranis.

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Centro Cultural. Aldeia Tekoha Añetete, utilizado como sala de aula, extensão da Escola. Município de

Diamante do Oeste/PR. Em abril 2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

À esquerda Barracão pré-moldado, à direita dependências da Escola da Aldeia e no centro da imagem a

construção de espaço físico para comercialização de artesanato local. Aldeia Tekoha Añetete. Mun. De

Diamante do Oeste/PR. Em abril 2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

Em relação aos casamentos na aldeia, atualmente é feita uma cerimônia na casa de rezas,

comandada pelo rezador. Após a cerimônia de ‘benção’ tem início a festa, semelhante aos casamentos

brancos. Quando os noivos não possuem casa própria continuam morando com os pais, geralmente da

noiva, até que um local seja construído.

As cerimônias relacionadas à morte também sofreram algumas alterações se comparadas às de

tempos passados10

. Segundo eles, quando um Guarani morre tem seu corpo levado até a casa de reza

onde permanece por 24 horas. Na sequência é feito o sepultamento em um lugar próprio, não pode ser

perto da casa das pessoas. É um cemitério que possivelmente segue os padrões locais, um espaço já

destinado a este fim. Para estes sepultamentos usam caixões geralmente obtidos através de doações

10

Para maiores informações sobre as cerimonias fúnebres e de casamentos dentro da cultura Guarani, consultar

a bibliografias como: SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo: EPU, Ed. Da

Universidade de São Paulo, 1974.

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feitas pela Prefeitura ou por outras pessoas. Segundo eles, não existe diferenciação entre os Guarani,

seja criança, rezador ou outros, todos são sepultados no mesmo local e seguindo a mesma cerimônia.

Assumindo a função de representante político e social do grupo, surge a figura do cacique,

uma autoridade eleita pelos Guarani que tem por função a representação da aldeia em se tratando de

assuntos externos de interesse da coletividade. Necessita deslocar-se para participar de reuniões

representando o grupo, quando precisa trazer algum programa ou projeto para a aldeia é ele quem deve

encaminhar e participar do processo até que seja concluído.

Segundo o Professor Guarani da Escola, Vicente Vogado, no caso da aldeia aqui

analisada, o cacique/capitão é eleito pela maioria do grupo. Para a escolha são considerados

quesitos como afinidade do indivíduo com todo o grupo, preocupação com os anseios e

necessidades de todos, engajamento e busca por soluções relacionadas às dificuldades

presentes no interior da aldeia. Este é um cargo definido através de eleição e pode ser alterado

a qualquer momento; basta o grupo assim desejar. Em novembro de 2012 foi eleito para

Cacique João Alves, que também é professor na Escola da aldeia.

2.3 – Dinâmica Sociocultural

Apesar de ser tarefa quase impossível dissociar a vida social da dinâmica cultural dos

Guarani, visto que, segundo eles, são características indissociáveis, a apresentação de aspectos

relacionados às crenças e aos costumes, sobretudo os voltados à religião do grupo, requer que

se considerem os elementos simbólicos e os sinais sagrados presentes entre os Guarani.

Muitos deles são organizados em torno dos líderes espirituais, chamados rezadores, e dos

objetos materiais incorporados às cerimônias religiosas.

Na cultura guarani atual, o rezador é o grande líder espiritual. Possui como função

central, conduzir e comandar as cerimônias religiosas junto à casa de reza, pela qual é

responsável. É o xamoi, aquele que sabe tudo. Ele cuida do grupo, zelando para que as

doenças não apareçam. É ele quem inicialmente busca a cura e quando não consegue efetuá-la

chama outros rezadores pra ajudar. Em última instância, recorrem à assistência médica da

aldeia.

Os entrevistados relatam que os rezadores não possuem força para curar as doenças

classificadas como ‘de branco’, por este motivo é que muitas vezes procuram tratamento

médico fora da aldeia. Quando o caso é muito grave recorrem imediatamente a hospitais ou

postos de saúde, sendo esta uma prática consentida previamente pelos rezadores para com o

grupo.

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Segundo o Professor Vicente, o rezador é que possui as armas espirituais para proteger

todos da aldeia. É ele quem estabelece comunicação com os deuses para melhor orientar todos

do seu grupo. É a pessoa mais importante no interior da organização da aldeia.

O rezador mantém-se como tal até sua morte, quando já deve ter outro rezador

preparado para assumir o posto de líder espiritual. Uma aldeia não pode ficar sem rezador.

Geralmente a criança desde muito cedo já apresenta traços que poderão fazer dela um rezador.

Da mesma forma como o rezador é o grande líder espiritual do grupo, a casa de

reza/opy caracteriza-se como o centro religioso da aldeia, onde são realizadas praticamente

todas as cerimônias religiosas que compõe o cotidiano Guarani. Pode-se afirmar que a casa de

reza, juntamente com os sujeitos que praticam os ritos sagrados, de fato significam o espaço

onde a tradição se recria diariamente.

A idéia é de que a opy é tanto um suporte do mundo como a via de contato

entre o divino e o humano. (...) O espaço onde a opy se encontra é

entendido como o lugar do refugio e da atualização da memória e da identidade do grupo. É o lugar do sagrado onde os Mbyá podem ter acesso e

contato com o mundo divino de forma mais eficaz (ASSIS, 2006, p. 236).

Na aldeia Tekoha Añetete é possível identificar pelo menos três casas de reza, sendo

cada uma delas subordinada a um núcleo familiar. A família de Vicente Vogado, por

exemplo, possui uma casa de reza, que é comandada por Jerônimo Vogado, rezador principal

deste núcleo. A família do cacique João Alves também possui sua casa de reza, a terceira casa

de reza foi construída pela Itaipu Binacional e fica próxima ao núcleo dirigido por Leonardo e

Cecílio Ortiz.

Quando visualizamos rituais indígenas, seja pessoalmente ou através de mídias

eletrônicas, podemos perceber a presença marcante da dança, dos objetos sagrados e mesmo

da reza na composição do rito. Estes elementos são os sinais que representam algo simbólico,

superior e intangível, neste caso o universo mitológico dos Guarani. Os sinais são facilmente

descritos pelos Guarani, cada um deles possui uma função marcante no conjunto cerimonial e

os Guarani envolvidos no ritual identificam-se com estes elementos, adotam postura de

respeito, transferem sentidos a estes sinais, que passam a representar materialmente algo que

se encontra em outra esfera, a simbólica.

O conhecimento pleno de um objeto requer, em suma, que o consideremos

em seu contexto mais amplo, e em sua característica de sistema (as articulações de significação entre os vários objetos que, relacionados,

“falam” sobre as concepções de mundo do grupo social que os produziu),

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analisando as muitas dimensões e as múltiplas significações que, nas

sociedades indígenas, nele estão sempre materializadas e resumidas (SILVA

& SILVA, 2000, p. 372).

Através dos objetos materiais incorporados ao cotidiano dos Guarani é possível

analisar inúmeros aspectos culturais e sociais. Por exemplo, ao se tomar como fonte para

estudo apenas o “altar” que se encontra na casa de reza, ter-se-ia um enorme leque de

possibilidades a serem consideradas.

Em vários relatos presenciados durante as visitas à aldeia, os entrevistados afirmam

que os objetos que compõem o altar servem para ‘dar força’ ao rezador. Com eles e através

deles, o líder religioso do grupo se comunica com os deuses e é informado dos destinos da

tribo, podendo assim, orientar sobre o melhor caminho a seguir. “Ora os objetos rituais agem

como variáveis da ideia de esteio (apoio, eixo), ora tem a função de fortalecer, de transmitir energia,

força àquilo e aqueles que são suportes do mundo Mbyá” (ASSIS, 2006, p. 185).

Cerimônia religiosa no interior da casa de reza do Sr. Jerônimo. Detalhe da presença do altar, do

chocalho (mbaraka mirim), dos cocares e o petyngua. Por Gracieli E. Schubert Kühl, em 06/07/2012.

Durante pesquisa de campo, foram levantados questionamentos em relação aos

símbolos tidos como sagrados aos Guarani, entre eles o altar da opy, o Mbaraka (chocalho

feito com porungo, sementes e um cabo curto de taquara, é segurado nas mãos pelos

rezadores) e o takua, que possuem ligação direta com a cosmologia Guarani.

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Cerimônia religiosa no interior da casa de reza do Sr. Jerônimo. Detalhe da presença do chocalho nas

mãos dos Guarani durante a atividade. Por Gracieli E. Schubert Kühl, em 06/07/2012.

Em relação ao altar colocado junto às casas de reza, é perceptível verificar objetos que

representam de alguma forma aspectos culturais do grupo. Entre eles se encontra um tronco

de madeira talhada que comporta a água utilizada nos batismos. Esta madeira é de cedro, que

simboliza a saúde, para que a criança batizada não sofra com as doenças durante sua vida.

Sem este recipiente com água o batismo não ocorre.

O mbaraka mirim é também componente fundamental para as cerimônias religiosas

dos Guarani. Segundo eles, é um elemento ligado diretamente à casa de reza, utilizado para

fazer batismos, rituais de cura, entre outros. Afirmam que inclusive as crianças compreendem

a função sagrada do mbaraka mirim, quando elas o utilizam auxiliam na sustentabilidade do

ritual fornecendo força ao rezador, além de inserir estes jovens desde cedo aos rituais

desenvolvidos dentro da casa de reza. Aparentemente os rezadores utilizam o canto

juntamente com o som do mbaraka para dar o compasso a toda a cerimônia dentro da casa de

reza.

Em uma das atividades junto à aldeia, um dos Guarani citou o processo de

transformação destes objetos materiais em representações de algo sagrado. Tomou como

exemplo a confecção do mbaraka mirim (chocalho), utilizado durante as cerimônias

religiosas. Segundo ele, um mbaraka mirim, confeccionado para compor os rituais, é feito

desde o início para este fim, desde a escolha do material até a formatação final do artefato.

O objeto utilizado pelas mulheres durante as cerimônias é o takua (taquara), que é

batido ao chão durante a reza, seguindo o compasso musical do mbaraka e do canto. Ambos

os objetos – mbaraka e takua – são inclusive transportados quando os Guarani visitam outras

aldeias, visando a realização conjunta de cerimônias.

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Cerimônia religiosa no interior da casa de reza do Sr. Jerônimo. Detalhe da presença do takua nas

mãos dos Guarani durante a atividade. Por Gracieli E. Schubert Kühl, em 06/07/2012.

Um fato que chama a atenção, principalmente dos não índios quando visitam a aldeia,

seja ela o Tekoha Añetete ou outra na região, é a comercialização destes objetos tidos como

sagrados para os Guarani. A partir do momento em que um turista adquire este material, o

objeto assume outras funções, principalmente como souvenirs. Segundo eles, isto é possível

por que estes objetos colocados à venda já são fabricados para este fim. Desde o início da

confecção já se estabelece que tal mbaraka seja utilizado para comercialização, não passando

pelo processo de batismo na casa de reza, sem constituir, portanto, relação com os aspectos

religiosos do grupo.

Este batismo pelo qual passam os objetos que participam dos rituais sagrados, é

chamado de sacralização. Ocorre:

Com a defumação do objeto pelo xamã com seu petyngua. Ao ser investido

dessa característica de sagrado o objeto torna-se inalienável, (...) além disso, as coisas sagradas devem ser guardadas e protegidas, pois elas são o suporte

material dos valores mais caros do grupo, os valores que contém o sentido

de identidade, de coesão. (ASSIS, 2006, p. 237)

Este aspecto ligado à sacralização dos objetos cerimoniais representa o que GEERTZ

define como ‘teia de significados’ incorporados em símbolos, do qual todos os integrantes do

grupo encontram sentido.

Pode-se perceber claramente nesta representação a presença dos sinais e dos símbolos

religiosos. O tronco de madeira colocado junto ao altar é o sinal que remete a algo superior, a

um significado cultural que se encontra na esfera simbólica, portanto intangível.

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Os objetos rituais no interior da opy (casa de reza), além de serem um

suporte material que viabiliza a relação dos homens com a esfera divina,

também simbolizam alguns aspectos relacionados à dinâmica e à organização social do grupo. [...] alguns objetos simbolizam o feminino e o

masculino, assim como sua complementaridade; simbolizam os papeis

sociais de cada um e configuram uma representação [...] do que é o mundo

divino que aspiram alcançar (ASSIS, 2006, p. 182).

Altar na casa de reza, detalhe para os objetos e também para tronco de cedro que serve de reservatório

d’água para as cerimônias de batismo. Em maio de 2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

A cerimônia de batismo é realizada por volta dos quatro meses de vida da criança, é

comandada pelo rezador e acompanhada por todos da família. São também realizados

batismos das sementes para plantio, geralmente no mês de janeiro, período que antecede as

atividades de cultivo do solo.

Observando o cotidiano dos Guarani na Aldeia do Tekoha Añetete, é possível perceber

o uso constante de uma espécie de cachimbo, chamado por eles de petyngua. Este objeto

também está relacionado a elementos simbólicos, principalmente o fogo e a fumaça. Eles

compartilham o petyngua uns com os outros livremente. Segundo eles a fumaça serve para

espantar o mal, para limpar a pessoa de doenças ou outros males que podem lhes atingir. É o

símbolo das cerimônias de cura.

O petyngua é uma via material para se inspirar, curar e sacralizar as coisas

do mundo através da fumaça produzida. A fumaça do petyngua é considerada a forma imperfeita, um duplo do tatachina/névoa vivificadora,

princípio vital. É um dos elementos considerado como aquilo que dá vida às

coisas, que as anima, assim como possibilita a cura, a revitalização (ASSIS, 2006, pg. 183).

Este objeto possui um formato padrão, porém, diferem-se na decoração do cachimbo,

específica de cada artesão no momento da confecção. O fumo é adquirido fora da aldeia, no

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comércio da região, pois os Guarani estão aos poucos abandonando a prática de plantio do

tabaco, possivelmente em função da fragilidade da planta perante as pragas e defensivos

agrícolas presentes em lavouras que circundam a reserva.

O cocar também está presente nas cerimônias religiosas, segundo eles o cocar e o colar

são utilizados durante as rezas e, também, na cura de doentes. Quando o indivíduo passa a

usá-los estabelece uma ligação direta com ñanderu e já sabe que a cura ocorrerá.

Como se percebe, os objetos incorporados à vivência do grupo expressam os sinais

envoltos num universo simbólico derivado dos mitos que sustentam a religiosidade guarani.

Estes sinais estão presentes no imaginário coletivo, transmitido de geração em geração.

Apesar de ser possível identificar na atualidade vários aspectos tradicionais inseridos

no cotidiano deste grupo, algumas questões ainda levam a questionamentos sobre quem são os

Guarani de hoje e, por conseguinte, nos perguntamos: será que ainda poderiam ser

considerados como tais? Caso optássemos por um método comparativo, que tomasse por

objeto de estudo aldeias atuais em sua relação com os costumes praticados no passado,

certamente seria perceptível que o Guarani de hoje difere e muito do Guarani antigo. Eles

mesmos assumem que os costumes estão se perdendo, pois os jovens não buscam conhecer

estes valores, as práticas não possuem sentido para a maioria dos jovens Guarani na

atualidade.

Em função destas dúvidas, que permeiam principalmente o imaginário daqueles que

acreditam que os índios atuais deveriam manter costumes antigos para continuarem a serem

índios, cabe citar a definição que este grupo assume sobre o que é ser guarani atualmente.

Segundo um dos professores Guarani da Escola, Vicente Vogado:

Hoje em dia o meu pai e a minha mãe são Guarani puro, falam só o

Guarani, não falam português, usam os próprios costumes da vida antiga, o

fogo de chão, esse é o costume que veio do antepassado... o Guarani vem

através do conhecimento sobre o costume antigo. Mesmo que fala Guarani talvez não sabe o simbólico, vive como o branco (Juruá), este não é Guarani

(Vicente Vogado, em 20/06/2012).

Eles afirmam que o Guarani atual apresenta características físicas muito diferentes das

que se apresentavam em tempos mais remotos, hoje usam relógio, roupas bonitas, possuem

casas boas, porém, sua essência, o seu interior não mudou nem poderá mudar, pois, se isto

ocorrer eles deixarão de ser Guarani. As ações do dia-a-dia, os costumes, as práticas, a

essência deve ser mantida. Não basta falar a língua ou se vestir como os antigos, é preciso que

o interior, o coração não se altere.

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Segundo GEERTZ, a antropologia moderna “tem a firme convicção de que não

existem de fato homens não modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca

existiram e, o que é mais importante, não o poderiam pela própria natureza do caso”

(GEERTZ, 2011, p. 26).

Desta forma, pode-se perceber a construção da identidade do grupo em relação a

outros indivíduos. Segundo Vicente, não basta somente falar o idioma, ou afirmar que é

Guarani, é necessário também cultivar os costumes, conhecer o significado das práticas e

reproduzi-las diariamente para não perder a conexão com o passado.

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CAPÍTULO 3

EXEMPLOS DE ARQUITETURA PRESENTES NA ALDEIA TEKOHA AÑETETE

O surgimento da Arquitetura enquanto ‘arte de construir abrigos’ remonta à pré-

história, justamente no momento em que os indivíduos deixam de ser nômades e passam a

habitar determinados locais por um tempo mais longo, basicamente em função do

descobrimento e da prática da agricultura.

Neste momento o homem passa de caçador/coletor a agricultor através do cultivo

agrícola. Descobre técnicas de plantio e colheita, o que permite que se fixe por períodos mais

longos em um determinado espaço, sem que haja necessidade de movimentos nômades em

busca de alimento. Surge, com isso, a necessidade de construir abrigos, para a proteção contra

o frio e os animais ferozes. Estes primeiros abrigos são descritos por pesquisadores através do

‘mito da cabana primitiva’ que para alguns é considerado o início da arquitetura.

Independente de quando ou quem inventou a arquitetura, é consenso entre os

pesquisadores que a prática de construir espaços, habitáveis ou não, demonstra características

culturais específicas da sociedade em que foram construídos. Ou seja, a arquitetura é um

produto cultural, pois é resultado da sociedade que a empreendeu segundo as necessidades ou

anseios vividos no momento em que a obra foi idealizada.

Divergências a parte, estas questões são apresentadas a fim de dar sentido às obras

desenvolvidas pelos Guarani na atualidade como sendo resultados da ‘arquitetura tradicional’.

O termo tradicional é utilizado nesta dissertação no sentido de representar os conhecimentos,

valores e técnicas transmitidos de geração em geração e que atualmente permeiam o

imaginário coletivo dos Guarani integrantes do Tekoha Añetete. Sendo assim, as obras

identificadas como ‘ tradicionais’ são aqui tratadas como construção de espaços a partir de

técnicas arquitetônicas tradicionais, resultado de ações desenvolvidas ao longo do tempo e

que foram sendo adaptadas, aprimoradas e transmitidas historicamente até atingir as

características atuais.

3.1 - Arquitetura ‘Tradicional’ representada nas obras atuais feitas pelos Guarani na

Aldeia Tekoha Añetete

Quando se trata de arquitetura tradicional guarani, deve-se primeiramente rememorar

algumas características culturais do grupo. Os Guarani organizavam-se originalmente no

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espaço a partir da disponibilidade de alimentos. A sua distribuição e a apropriação do espaço

se dava a partir da fixação de pequenos grupamentos ou aldeias que lhes facultassem o acesso

às dádivas da natureza na abundância necessária para a estabilidade dos grupos. Quando o

espaço apropriado não mais propiciava o sustento necessário, partiam então para novos

lugares, com a finalidade de encontrar a abundância para a manutenção do grupo. Nestes

espaços as construções eram bastante rústicas e simples, pois a cada migração eram

desmontadas e reconstruídas ou abandonadas. Portanto, estas e outras características

influenciaram na forma como os Guarani tradicionalmente desenvolveram sua arquitetura.

Além das questões práticas relacionadas à técnica construtiva, é preciso considerar as

transformações ocorridas neste processo a partir dos inúmeros contatos com outros grupos

étnicos e, também, as constantes alterações ocorridas internamente, resultado natural da

evolução cultural por que passam os grupos étnicos.

Portanto, discutir a arquitetura tradicional dos guarani, na atualidade, é mais do que

refletir acerca das técnicas herdadas dos seus antepassados que, transmitidas e reproduzidas

no tempo presente, representam a arte de construir abrigos. Significa, antes de mais nada,

demonstrar alguns aspectos relacionados a um processo intenso de contato interétnico com os

grupos envolventes, dominados e dominantes, que de alguma forma imprimiram mudanças na

formatação arquitetônica que os Guarani na atualidade definem como tradicional.

Além disto, o próprio termo tradicional já induz a várias interpretações,

principalmente quando se trata de pesquisas sob a ótica interdisciplinar. Isto porque para

alguns o conceito de tradição pode ser considerado como estático enquanto para outros é um

aspecto em constante transformação.

A discussão breve do termo tradição remete à palavra de origem latina traditio, que

significa transmissão, ou seja, resume-se ao ato de repassar algo para alguém. Em se tratando

de cultura, pode-se afirmar que é a transmissão de conhecimentos, práticas e valores de uma

pessoa à outra, geralmente estendendo-se por várias gerações.

Tradição possui muitos significados: pode estar atrelada ao conservadorismo

e ao resgate de períodos passados considerados gloriosos; pode ser inventada

para legitimar novas práticas apresentadas como antigas. Muitas vezes é

pensada como imóvel, mas hoje cada vez mais estudiosos percebem suas ligações com as mudanças. Está ligada ao folclore, à cultura popular e à

formação de identidades (SILVA, 2006).

Refletir, portanto, sobre aspectos da arquitetura dita ‘tradicional Guarani’ significa

esbarrar em questões teóricas e práticas que somente por uma opção metodológica baseada

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em estudo de caso pode tornar viável a pesquisa científica. Isto porque esta tradição

arquitetônica atualmente se encontra envolta por tecnologias e materiais não indígenas e

mesmo dentre as características próprias da cultura guarani, facilmente a pesquisa depara-se

com divergências nos relatos, mesmo entre depoentes de uma mesma aldeia, como é o caso do

Tekoha Añetete.

Segundo o antropólogo Rubem T. Almeida, em entrevista concedida para esta

pesquisa:

É difícil você dizer que existe uma construção arquitetônica Guarani tradicional, porque se você ‘andar’ pelo Guarani do Paraná/ ilha do mel, se

pensar em Paraná/Pinhalzinho, Paraguai, Guarani do Rio de Janeiro, do

Mato Grosso do Sul/Amambaí, você vai ter uma gama enorme de variações.

Não se pode afirmar que exista uma construção tradicional. Então como é que eles fazem hoje? Será que hoje eles tendo o material disponível e as

condições o que eles fariam? Neste caso a casa do Vicente é típica. [...]

Tradicional é pensar como eles constroem hoje. (Rubem Ferreira Thomaz Almeida - Entrevista concedida a Gracieli E. Schubert Kühl, em 03 e

04/01/2013, Rio de Janeiro/RJ).

A definição de ‘arquitetura tradicional’ adotada para esta pesquisa define-se, portanto,

a partir de entrevistas realizadas com os informantes Guarani que residem na aldeia. Estes por

sua vez indicaram as obras classificadas como sendo tradicionais, bem como, suas

características. Além disto, foram apresentadas imagens destas construções ao antropólogo

Rubem Thomaz Almeida, que acompanhou a trajetória do grupo desde o processo de

reivindicação do seu atual território, até pouco tempo, e que reforçou as informações

relacionadas a esta análise.

Antes de adentrar na discussão sobre as obras arquitetônicas existentes na aldeia, é

preciso enfatizar que a casa em si é apenas um elemento que compõe o espaço habitacional

construído pelo Guarani, isto porque as funções diárias são desenvolvidas no espaço do

‘pátio’/oká, que significa ‘fora’, ‘fora da casa’ e não somente na casa de moradia. “A vida

social, a vida cotidiana, mesmo a comida é tudo feito no oká, ou no quintal como nós

chamaríamos. É esta a concepção que se tem sobre a arquitetura Guarani. Quer dizer, não é só

a construção da casa, obvio que tem o seu sentido também”, (ALMEIDA, 2013, registro oral),

porém, deve-se considerar todo o entorno, o pátio em si, para então compreender a dinâmica

social desenvolvida no espaço residencial.

A unidade residencial Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva contemporânea é

a família nuclear [xe ñemoña], que é também uma unidade produtiva. Ela tem seu lugar dentro do tekoha (...). Assim, há um espaço para a construção

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da moradia, para fazer a roça e, sempre que possível áreas de caça e pesca

que sustentam o casal e seus descendentes, quase sempre distante de suas

moradias. [...] Em todas as habitações Kaiowa e Ñandeva há invariavelmente o ‘patio’ou oká, não raro com uma ramada ou árvores para abrigo do sol. É

uma área limpa em torno das construções e onde se realizam festas e

cerimônias, recebem-se visitas, realizam-se encontros e reuniões. É onde o

cotidiano se desenvolve de fato, constituindo um ‘lugar de estar’, com bancos e espaços para sentar, sendo, portanto, público. Nas margens desse

‘pátio’, os Ñandeva e Kaiowa plantam ervas medicinais [juju] para uso

diário. Em algumas casas a roça fica imediatamente após o ‘pátio’, ou seja, é

uma continuidade da habitação (ALMEIDA, 2001, p. 131).

Após registrar que a arquitetura do espaço habitado Guarani, que não se resume somente a

casa em si, mas ao seu entorno, pode-se adentrar na discussão sobre os materiais e técnicas

utilizadas nas construções propriamente ditas, praticadas por indivíduos desta etnia, as quais

representam a forma dita ‘tradicional’ de construção do grupo.

Segundo pesquisas registradas, em períodos anteriores, os Guarani construíam e

habitavam as casas grandes/ogajekutu, as quais abrigavam um número expressivo de

indivíduos, componentes das famílias nucleares.

Tradicionalmente habitavam casas-grandes chamadas ogajekutu [casa

fincada no chão] de um só bloco, sem qualquer divisão interna e paredes que se confundiam com o teto. Eram ocupadas por diversas famílias nucleares,

que formavam uma família extensa, centralizada na pessoa de um chefe

religioso, o qual dividia a organização política, social, econômica e religiosa

do grupo com um líder político a ele subordinado. A ampliação das famílias nucleares correspondia a ampliação da ogajekutu, de maneira que todas as

famílias permaneciam dentro dela (ALMEIDA, 2001, p. 125).

Atualmente, os Guarani constroem residências menores e casas de reza/opy. Outras

obras praticamente inexistem dentro da dinâmica dos grupos. Em relação à técnica

construtiva, estas obras apresentam-se de forma bastante simples, deixando para as questões

simbólicas a presença mais marcante.

Outra característica marcante nesta organização espacial é que esta etnia elabora duas

construções:

Cada família elementar constrói sua própria habitação, composta de duas

construções fechadas [koty], uma ao lado da outra. Uma delas, em geral a mais ampla, constitui o espaço de dormir e é reservada à família. Raramente

o visitante, principalmente se não é indígena, tem acesso a koty, local onde a

família [ñemoña] toma mate junto ao fogo [tata ypype], nas manhãs ou ao

entardecer. (...) A outra construção também serve para abrigar a intimidade das famílias (nucleares), e é onde preparam e consomem os alimentos,

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funcionando também como despensa para armazenar os produtos da roça, as

ferramentas e outros utensílios (ALMEIDA, 2001, p.131).

Antecipando a discussão, a partir desta descrição, pode-se tecer uma breve análise

desta tipologia construtiva em relação ao que se observa no Tekoha Añetete. É possível

afirmar que as casas construídas tanto pela Itaipu quanto pela Cohapar seriam parte deste

conjunto, possivelmente teriam como função ‘abrigar a intimidade das famílias’. Sendo assim,

a construção feita pelos Guarani, ao lado destas obras da Cohapar e da Itaipu, possivelmente

correspondem ao ‘local onde a família toma mate junto ao fogo’.

Presume-se, portanto, que realmente esta casa, chamada pelos Guarani de ‘casa do

fogo’ é uma demonstração da arquitetura tradicional, não só em função do material ou da

técnica, mas também e principalmente, em relação ao uso que fazem destas obras.

Tradicionalmente, os Guarani construíam dois espaços considerados residência, conforme

afirma Almeida na citação acima.

Seguindo a discussão relacionada à arquitetura dita ‘tradicional’ dos Guarani, segundo

José Perasso e Jorge Vera (1986, p. 95), pesquisadores que analisaram etnograficamente os

grupos Guarani Chiripá com sede no Paraguai, “Los Chiripa construyen generalmente su og

miri / og’i (vivenda familiar – nuclear) con cubierta a doble agua de jahape (imperata

brasiliensis – sapê), cerrando las secciones laterales com bambusáceas, gramíneas, yvara e

maderas diversas;”

Apesar de na atualidade serem avistadas habitações indígenas contendo elementos

industrializados, geralmente reutilizados por estes grupos, a construção da residência típica

Guarani segue fazendo uso de materiais e técnicas herdados dos antepassados.

Basicamente, são utilizados materiais naturais como o sapê, as folhas e o tronco da

palmeira/pindo (Arecastrum romanzoffianum), galhos roliços de madeira, cipó e barro.

As paredes são de tronco de pindó (uma espécie de palmeira), cortados longitudinalmente e fincados no chão. Também utilizam como parede,

quando há, a takuara batida, que forma placas amarradas à estrutura da

casa. O telhado é preferencialmente de sapé, mas as ramas de pindó também

podem ser utilizadas, apesar de serem menos apreciadas, por durarem menos (ALMEIDA, 2001, p. 132).

Esta palmeira/pindo possui ligação com a cosmologia Guarani. Segundo os depoentes,

ela representa um dos suportes que sustenta o mundo; em função disto a sua utilização na

construção da opy é fundamental. Segundo Assis (2006, p. 153), “a denominação nativa de

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esteio, pindovy, (pindo, palmeira; vy, erguido, ereto, na vertical), expressa claramente a

relação entre um e outro”.

Em relação à técnica construtiva das obras existentes no Tekoha Añetete, percebe-se

que, igualmente como em outras construções, primeiro é feita a parte estrutural da residência:

são cravados no chão, madeiras e galhos roliços ou troncos de palmeira na posição vertical,

como se fossem colunas para sustentação das paredes; em seguida são afixadas as tesouras na

parte superior da obra, com o mesmo material da parte inferior a fim de sustentar a cobertura.

Na imagem abaixo, a construção da direita apresenta apenas a fase estrutural da obra,

enquanto a imagem da esquerda já possui a cobertura e algumas paredes. Esta cobertura

mostrada na imagem possui peças de fibrocimento, diferenciando-se das obras tradicionais

que utilizam fibras naturais. Ainda assim, a imagem foi mantida como forma de demonstrar a

técnica empregada e também para reafirmar a presença de elementos não indígenas nas obras

empreendidas pelos Guarani. É possível presenciar esta prática em muitas casas na aldeia.

Segundo relatos, isto ocorre em função da escassez de materiais na natureza local, levando-os

a adotar elementos industrializados.

Imagem contendo duas construções, uma delas apresenta a parte estrutural e a segunda contém a cobertura e algumas paredes. Aldeia Tekoha Añetete, Mun. De Diamante do Oeste/PR, em abril 2012,

por Gracieli E. Schubert Kühl.

As paredes também são feitas com troncos de palmeira ou galhos roliços de árvores,

ambos com menor espessura, igualmente fincados no chão e amarrados uns aos outros com

cipó preto. Em alguns casos é feito revestimento com um tipo de esteira, uma amarração de

filetes de taquara trançados. Em outros casos o revestimento constitui-se de barro, disposto a

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partir de técnica semelhante às de construções de pau-a-pique, onde a trama de madeira e os

galhos roliços ficam entre duas paredes de barro. Segundo relatos colhidos com representantes

do grupo, estas duas formas de revestimento são utilizadas com a finalidade de vedação

interna, proporcionando maior conforto térmico da casa.

As madeiras utilizadas são o marfim, o angico ou o rabo-de-bugio, pois são mais duras

e não permitem que os carunchos as destruam. Esta madeira utilizada na construção é retirada

da mata, porém, para isto existe um ritual religioso a ser seguido. Antes da construção da obra

em si, é necessário que o rezador local seja consultado. É ele quem dirá se a obra deve ser

feita ou não. Em seguida os construtores vão até a mata e escolhem a árvore que melhor se

adapta à obra que desejam construir.

Segundo o Professor João Alves, antes de cortar a madeira eles também precisam ir

até a casa de reza para que o rezador peça permissão ao dono daquela árvore para que a

mesma seja cortada e utilizada na obra. Somente depois deste processo é que o material é

cortado, retirado da mata e levado ao local da construção. Segundo os Guarani, caso não seja

solicitada esta permissão, o dono da árvore poderá trazer coisas ruins aos moradores da casa,

inclusive doenças e morte.

A cobertura geralmente é feita com capim sapê (Imperata Brasiliensis) ou folhas de

palmeira, conforme disponibilidade no local; são amarradas com cipó. Especificamente neste

grupamento, em função da escassez dos materiais acima citados, está se fazendo uso de outro

capim nas coberturas, chamado de capim Santa Fé, cultivado no local. Segundo o funcionário

da Itaipu que atua nas aldeias da região, João Bernardes, existe a intenção de cultivar uma

área maior desta planta a fim de haver disponibilidade permanente para atender a demanda

das construções.

Segue imagem ilustrando uma residência em construção, onde é possível perceber a

composição da cobertura com o referido capim Santa Fé, ainda verde, a colocação das paredes

e principalmente as amarrações feitas com cipó. Nos exemplos apresentados abaixo, não se

fez uso de materiais industrializados como pregos ou arames, é definido como ‘tradicional’.

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Construção de residência ‘tradicional’ no Tekoha Añetete. Detalhe para o uso de capim santa fé na cobertura, paredes de roliços e amarrações de cipó. Em dezembro de 2012, por Gracieli E. Schubert

Kühl.

Construção de residência ‘tradicional’ no Tekoha Añetete. Detalhe para o uso de capim santa fé na

cobertura, paredes de roliços e amarrações de cipó. Em dezembro de 2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

O piso no interior das residências é de chão batido. Esta técnica possibilita outro

aspecto ligado à cosmologia Guarani, que é a prática ligada ao fogo de chão. Como citado

anteriormente, a manutenção do fogo de chão está relacionado à manutenção da saúde e à

cura de doenças, além do preparo de alimentos como o milho. A fumaça produzida pelo fogo

está relacionada à cura de muitas doenças e outros males que podem acometer os indivíduos.

O interior das construções guarani geralmente não possuem divisões; o fogo de chão

fica no centro em torno do qual as atividades são desenvolvidas. Quando ocorrem divisões

internas, são para formar o quarto ou cômodo de descanso onde ficam os locais para repouso,

embora estas situações sejam incomuns.

Em tempos mais distantes, não existiam camas no interior das casas, mas somente

folhas de palmeira devidamente dispostas no chão, formando uma espécie de colchão. Em

período mais recente, é possível encontrar as tarimbas, um estrado de madeira utilizado como

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cama. Tanto as acomodações feitas com folhas de palmeira quanto às tarimbas são

organizadas no entorno do fogo de chão.

Imagem atual do interior de uma residência Guarani no Tekoha Añetete. Mun. De Diamante D’Oeste,

em abril de 2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

Planta da Casa Guarani segundo PERASSO (1987).

Segundo relatos dos integrantes da aldeia, não é aconselhável a construção de

residências ou casas de reza nos períodos em que a lua esteja na fase nova. Recomenda-se que

as edificações somente sejam realizadas na lua minguante ou crescente. Isto porque a

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estrutura da casa torna-se mais forte quando construída nestes períodos, pois o ataque de

pragas que danificam a matéria-prima é menor.

A mão de obra para construção é coletiva. O futuro morador conta com a ajuda dos

demais membros do núcleo familiar. Quando se trata da construção de uma casa de reza, onde

é necessária a participação de um número maior de pessoas, ocorre o que alguns autores

chamam de potirõ.

O potirõ é uma modalidade social importante para estimular as relações e vínculos entre os grupos locais. Nestas ocasiões estabelecem-se, reforçam-se

ou reordenam-se alianças políticas e de parentesco. Esta categoria de

atividade esta pautada no valor do mborayu / reciprocidade, generosidade. (...) É acionado para aquelas atividades que requerem um numero amplo de

pessoas, para além da família nuclear (ASSIS, 2006, p. 158).

Conforme referência anterior, além das residências, os Guarani constroem as casas de

reza/Opy, que é o lugar onde se centralizam as manifestações religiosas e também alguns

rituais de cura. Cada grupo familiar (ñemoña) deve ter sua casa de reza.

Em relação à construção ou reforma de casas de reza, é seguido calendário próprio,

sendo todo o processo de construção orientado pelo rezador que recebe dos deuses a indicação

da data e do local mais adequado para a construção. O período indicado para construir é a

primavera, isto porque é o período dos batismos, quando a casa fica fortalecida perante a fé

guarani. Além disto, é a estação das grandes cerimônias, pois, além de ser destinada à

construção de casas de reza, reúne os rituais de batismo das sementes que serão cultivadas no

próximo plantio e, por isto, é um período que proporciona força espiritual a tudo que se inicia.

A perspectiva cíclica do mundo – na qual tudo passa por uma seqüência

recorrente de nascimento, amadurecimento, morte e renascimento –

presente nas narrativas míticas, aparece desdobrada em várias situações sociais, dentre as quais se inclui a opy. As estações do ano expressam esta

concepção cíclica e a primavera é entendida como a época de nascimento e

renovação da vida. Este é um período de grande movimentação nas aldeias. É quando intensificam as atividades de tudo o que se refere a esta fase,

como a preparação da terra e das sementes (especialmente de avati) para o

cultivo, incluindo aí a construção ou reforma da casa ritual (ASSIS, 2006, p. 153).

A técnica construtiva que antecede a implantação da casa de reza é idêntica a das

residências; segue o padrão com paredes de roliços de madeira, chão batido e cobertura de

fibra vegetal seca. As representações simbólicas encontram-se mais fortemente registradas

nestas obras.

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O centro do tekoha/aldeia corresponde ao lugar onde se encontra a opy.

Possuir um centro parece ser significativo para os Mbyá. O centro significa

o eixo, o vértice, a base onde os demais elementos do mundo podem se mover. A palavra opy em sua tradução literal quer dizer casa central, o –

casa e py, centro. Os significados destas raízes lingüísticas, py, centro e y,

coluna, viga, eixo a partir do qual algo começa ou se apóia, permitem

entender a importância dessa ideia no pensamento e no cotidiano social do grupo (ASSIS, 2006, p. 184).

Apesar de toda relevância da casa de reza enquanto local de convergência do grupo

cabe ressaltar que visualmente ela não se destaca em meio à distribuição espacial das demais

construções no interior de aldeias Guarani, pois, segundo ASSIS: “os dois tipos obedecem aos

mesmos estilos arquitetônico e tecnológico”. A única diferença que pode ser percebida é

quanto a sua dimensão, uma vez que ela pode ser maior que as demais o’o/casas a fim de

possibilitar o abrigo de todos aqueles que participam dos rituais (ASSIS, 2006, p. 151).

Depois de concluída a opy, coloca-se o altar, que deve conter todos os seus elementos

rituais para que a qualquer momento possam ser realizadas cerimônias. Como vimos no

capítulo anterior, entre os objetos presentes nos rituais guarani pode-se destacar o Mbaraka

miri / chocalho de uso masculino, Takua / taquara ou instrumento de uso feminino, o cocar, o

violão e em alguns casos um violino.

Em el Nande Ru rog se dispone el tatarendy’y (sitio de las

luminárias donde se penden los objetos rituales); el referido apelativo

se aplica em forma generalizada as “altar” que se levanta em la

sección este. Ñande rovái, donde aparece Kuarahy (Kuarahy

oséhápe), ocupando la sección anterior a la batea, ygary ña’e, para la

chicha (PERASSO, 1986, p. 96).

O Professor Vicente relatou que atualmente os jovens estão desinteressados quanto ao

conhecimento das técnicas tradicionais de construção guarani. Em sua opinião esta técnica

deve ser mostrada e ensinada às novas gerações a fim de preservar esta tradição. Inclusive,

muitas construções atuais não seguem os padrões tradicionais; não são orientadas pelo

rezador, o que poderá ocasionar má sorte aos futuros moradores ou, até mesmo, a

permanência pouco duradoura na casa.

Uma característica da arquitetura feita pelos moradores da aldeia é a implantação de

uma obra ‘tradicional’ ao lado das construções feitas pela Cohapar e pela Itaipu, uma espécie

de anexo que na realidade é uma complementação do espaço habitado, do pátio/oká, conforme

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citado há pouco. Segundo o professor Vicente, isto está relacionado à necessidade de

preservação das técnicas construtivas dos Guarani.

Segundo ele, esta construção, além de ser utilizada para manter o fogo de chão,

também tem a função de mostrar aos mais jovens um exemplo da arquitetura praticada por

seus antepassados, para que este conhecimento não se perca em meio às construções em estilo

não– guarani, existentes na Aldeia.

Residência do Sr. Vicente Vogado. Detalhe das duas construções, a frente a casinha do fogo, segundo técnica tradicional (roliços de madeira nas paredes e cobertura vegetal seca) e ao fundo a obra da

Cohapar, com as varandas de piso cimentado, paredes de alvenaria até a altura do peitoril das janelas e

o restante de madeira com cobertura de telha. Aldeia Tekoha Añetete, por Gracieli E. Schubert Kühl em julho 2012.

Como resultado das pesquisas para elaboração deste tópico, sobre a arquitetura

praticada atualmente pelos Guarani no Tekoha Añetete, pode-se constatar que as informações

relacionadas ao significado simbólico dos elementos ou mesmo das construções foram citados

por eles, mas de maneira vaga.

É possível supor alguns dos motivos que levaram a esta situação; entre os menos

prováveis surge o que pesquisadores definem como um “’muro de silêncio’ cerceando

aspectos da cosmologia dessa sociedade, conforme afirmou Pierre Clastres (1978).11

Esta

possibilidade se sustenta somente em função do contato estabelecido entre os Guarani e o

Juruá/branco desde tempos imemoriais e a resistência criada na sua trajetória histórica.

Porém, os momentos de contato entre a pesquisadora, os informantes e demais habitantes da

aldeia foram muito proveitosos e em clima de aparente aceitação, sem portanto transparecer

qualquer resistência da parte deles.

11 IN: SANTOS, 2012 p. 20

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Outra constatação sugere, portanto, que estes elementos simbólicos constituem um

universo realmente cosmológico, atuando enquanto concepção de mundo articulada à vida

social, norteando a elaboração de categorias de pensamento locais, bem como de atributos da

identidade pessoal e coletiva. Porém, constituem sistemas praticamente intraduzíveis, ou seja,

são aspectos existentes no imaginário Guarani, mas que quando transformados em discurso,

em palavras, tornam-se de difícil definição.

Possivelmente, esta constatação esteja relacionada ao que muitos autores discutem

sobre a relação entre símbolo e sinal. Segundo SCHALLENBERGER (2001, p. 03), “O

símbolo é a melhor expressão de alguma coisa. Enquanto vivo e cheio de significado ele está

para além da explicação imaginável. O símbolo nunca pode designar coisa conhecida, pois,

neste caso, ele é sinal”.

Aproximando esta discussão ao objeto de estudo, no caso a arquitetura atual dos

Guarani e suas representações, os símbolos seriam os aspectos imaginários presentes no uso e

nas atribuições da casa de reza, por exemplo, mas que dificilmente podem ser descritos, pois

permeiam a consciência desta coletividade. Caso os Guarani atingissem a descrição destes

símbolos, eles teriam seus sentidos em parte anulados, pois “uma vez encontrado o sentido

que nele é procurado, ela passa a ser símbolo morto que só mais terá significado histórico”

(SCHALLENBERGER, 2011, p.03).

Portanto, ao finalizar este tópico, ressalta-se que foram abordados aspectos culturais

dos Guarani registrados através da arquitetura, sendo esta uma representação do universo

cosmológico do grupo, permeada por símbolos que compõe o imaginário coletivo dos

habitantes do Tekoha Añetete. Sendo assim, pode-se afirmar que “O símbolo é sempre um

produto de natureza altamente complexa que se constitui de dados racionais e irracionais

fornecidos pela simples percepção interna e externa, isto é, afeta tanto o pensamento quanto o

sentimento, mexe com a sensação e a intuição” (SCHALLENBERGER, 2011, p.03).

3.2 Arquitetura Implantada pela Companhia de Habitação do Paraná/Cohapar na

Aldeia Tekoha Añetete

Além da arquitetura tradicional descrita no tópico acima, existem na aldeia obras

construídas por instituições externas, entre elas a Companhia de Habitação do Paraná/Cohapar

e a Itaipu Binacional. Estas ações foram implantadas nas aldeias a partir da identificação de

necessidades relacionadas à habitação.

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Para registrar as informações relacionadas à construção de casas no Tekoha Añetete

pela Cohapar, foram realizadas entrevistas com a funcionária da instituição Rosangela C.

Kozak, que na época ocupava o cargo de Diretora de Projetos e mantém-se na companhia há

mais de duas décadas como funcionária concursada, fato que leva a conclusão de que sua

participação no referido projeto tenha sido de grande relevância e proximidade.

Além de Rosangela, foi entrevistado Edívio Batistelli, indigenista que há muito atua

como funcionário de carreira junto a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), regional de

Curitiba. Batistelli ocupou o cargo de Assessor para Assuntos Indígenas do Governo Estadual

do Paraná no período em que as residências foram tomando força nas aldeias. Possivelmente,

sua atuação esteve na prática, relacionada à mediação nas negociações, muitas vezes atuando

como intérprete do Guarani, algo demasiadamente relevante para a temática em questão.

Estas duas pessoas selecionadas para relatar sobre o processo de construção de

residências indígenas pela Cohapar compõem, portanto, um quadro bastante amplo sobre as

iniciativas, ações e conclusões sobre o processo de construção destas moradias. Sendo assim,

seguem as informações relatadas por estes sujeitos sobre a política habitacional empreendida

pela Cohapar junto às aldeias Guarani do oeste do Paraná, especificamente sobre as

construções situadas no Tekoha Añetete.

Como citado, em relação à Cohapar, estes empreendimentos são fruto de políticas

habitacionais implantadas pelo governo estadual em diversas aldeias, que tiveram por missão

atender a demanda indígena por habitações. Foram parceiros deste programa habitacional

várias instituições entre elas o governo federal, Conselhos Indígenas e Fundação Nacional da

Saúde/FUNASA, além da Fundação Nacional Indígena (FUNAI) e Cohapar, representando o

governo estadual.

Segundo documentação disponibilizada pela Companhia, o custo de cada unidade

habitacional girou em torno de R$10.000,00 (dez mil reais) na época. A arquitetura

implantada através da Cohapar foi desenvolvida segundo iniciativa do Governo Estadual na

gestão do então Governador Sr. Roberto Requião, no período de 2002 a 2006.

Segundo Rosangela, há muito tempo as comunidades indígenas do Paraná estavam

desassistidas, principalmente na área habitacional. O então governador ordenou que fossem

empreendidas ações, visando atender as necessidades habitacionais destas comunidades.

Inicialmente, foram realizados estudos visando identificar a demanda habitacional do

período e, na sequência, foi iniciada a elaboração do projeto, visando atender esta população.

O governador exigiu que toda a ação, desde o projeto até a finalização das obras, tivesse a

participação das lideranças indígenas, evitando assim que fosse elaborado ‘entre quatro

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paredes’. Esta preocupação estava relacionada à necessidade de se considerar a etnia, os

costumes, necessidades e práticas culturais de todos os grupos atendidos.

Este projeto foi elaborado em conjunto com as lideranças indígenas, que

opinaram na definição dos projetos arquitetônicos de cada etnia. Romanelli

salienta que as casas foram projetadas garantindo os traços arquitetônicos da cultura indígena, mas assegurando o acesso a modelos contemporâneos.

(NOTICIA: Romanelli inaugura Casa da Família Indígena e anuncia novas

unidades do programa Cohapar Postado em: 09/12/2003 – www.cohapar.pr.gov.br, acesso em 12/1/2012).

As análises iniciais demonstraram que as duas etnias indígenas no Paraná com maior

população eram os Kaingang e os Guarani, que além de representarem maior população

também detinham a maior demanda por políticas públicas voltadas a habitação. Em função

disto, estas duas etnias foram as primeiras a serem contempladas com a política habitacional

implantada pela Cohapar nos anos de 2002 a 2006.

Segundo o presidente da Cohapar, Luiz Claudio Romanelli, a construção das

casas é o início do resgate de uma dívida histórica com os povos indígenas. “Estamos cumprindo um compromisso assumido, de trabalhar para melhorar

a qualidade de vida das pessoas mais pobres do nosso Estado. Os índios

vivem em situação muito precária. Ao longo do tempo, por falta de investimento do governo, as aldeias foram se transformando em favelas”.

(NOTICIA: Romanelli inaugura Casa da Família Indígena e anuncia novas

unidades do programa Cohapar Postado em: 09/12/2003 –

www.cohapar.pr.gov.br, acesso em 12/1/2012).

Outro dado obtido como resultado de pesquisas sobre a demanda habitacional em

comunidades indígenas indicou a necessidade de construção de 1300 casas, sendo que ao final

do mandato, em 2006, foram entregues 950 delas.

Dentre algumas das dificuldades encontradas, os envolvidos relatam que foi a ação de

reunir todas as lideranças e chegar a um consenso em relação aos modelos das obras. Porém,

o desafio maior foi em relação à logística da construção, ao transporte do material e à seleção

de mão de obra qualificada e adequada ao trabalho em aldeias indígenas.

Esta seleção de mão de obra visava principalmente encontrar trabalhadores –

pedreiros, carpinteiros, serventes – que tivessem afinidade com os indígenas, ou que no

mínimo soubessem portar-se com respeito frente à cultura e aos costumes do grupamento

onde as casas eram construídas. Esta preocupação fazia-se necessária em vista de que estes

construtores permaneceriam por um longo período no local, tempo necessário para a

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construção das casas. Por isto, deveriam ser pessoas criteriosamente selecionadas segundo as

facilidades de interação com os indígenas.

O material utilizado pela Cohapar nas construções envolvia madeira, alvenaria e vidro.

As casas eram feitas em alvenaria até a altura do peitoril da janela e deste ponto acima de

madeira. Segundo Rosangela Curri Kosak, representante da Cohapar, esta técnica mista entre

alvenaria e madeira foi utilizada visando impedir que as casas fossem desmontadas e

remontadas em outro local, já que a característica ‘nômade’ do Guarani inclui a prática de

migrar entre aldeias, levando consigo a residência, facilmente desmontada por ser

tradicionalmente feita com madeira e sapé.

Desta forma, inserindo a alvenaria na obra, a casa permaneceria no local mesmo que a

família migrasse para outros espaços. A intenção da Companhia era que, através dos

movimentos migratórios, ocorresse uma espécie de troca entre as famílias, enquanto uma se

deslocasse para o Tekoha Añetete e outra para o Ocoy, ambas trocassem as casas entre si, sem

ter a necessidade de remover a construção do local cada vez que os indivíduos migrassem.

Vale adiantar que este aspecto foi objeto de discussão junto ao antropólogo Rubem

Thomaz Almeida, quando se faz análise crítica em torno dos argumentos utilizados pela

Cohapar para justificar a incorporação da alvenaria nas construções do Tekoha Añetete.

Segundo ele, o conceito de migração é diverso, principalmente em se tratando da etnia

Guarani, tendo em vista que eles não migram de uma aldeia a outra, mas sim, constantemente

realizam visitas aos parentes de outros Tekoha. Estas visitas podem ser de alguns dias,

podendo prolongar-se até alguns meses, porém, sempre retornam ao seu território de origem.

Outro aspecto destacado nos relatos dos envolvidos na construção das casas pela

Cohapar é o de privilegiar, no interior da casa, o espaço para o fogo de chão, característico

destas etnias, o que fez com que fossem inseridas chaminés para facilitar a saída da fumaça

quando esta fosse de grande quantidade.

Ao mesmo tempo em que há nas moradias um espaço para o fogo de chão,

tradicional na cultura tanto de kaingangues como de guarani, as moradias

têm as comodidades típicas da vida moderna, como banheiro, energia elétrica, tanque de lavar roupa e um acabamento de primeira qualidade, com

cobertura em telhas cerâmicas e forro. (NOTICIA: Romanelli inaugura

Casa da Família Indígena e anuncia novas unidades do programa Cohapar Postado em: 09/12/2003 – www.cohapar.pr.gov.br, acesso em

12/1/2012).

Desde as primeiras unidades construídas até as últimas, foram implementadas

mudanças circunstanciais. Inicialmente, as janelas eram totalmente de madeira, porém

conforme as unidades foram sendo construídas, os Guarani solicitaram que estas tivessem a

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esquadria de metal com vidros, possivelmente para vedação do vento e entrada de iluminação

no interior da residência durante o inverno.

Em relação à planta baixa destas casas [imagem abaixo], elas contam com área total de

52 metros quadrados; possuem dois quartos e sala/cozinha conjugados. Na parte externa,

possuem: banheiro, área de serviço e varandas de chão batido, com espaço para o fogo de

chão e para desenvolvimento do artesanato. Este aspecto foi alterado conforme a evolução das

construções, quando os Guarani solicitaram que as varandas também possuíssem piso

cimentado.

Planta baixa da residência construída pela Cohapar no Tekoha Añetete.Fonte disponibilizada

pela própria companhia, em dezembro de 2012.

Atualmente no Añetete, nas casas visitadas para esta pesquisa, todas possuem

varandas com piso cimentado; o fogo de chão é mantido na casinha do fogo/koty, uma espécie

de anexo à casa da Cohapar, construída pelos Guarani segundo a técnica tradicional, onde se

mantém o fogo para preparação dos alimentos.

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Croqui fachada da residência construída pela Cohapar no Tekoha Añetete. Fonte

disponibilizada pela própria companhia, em dezembro de 2012.

Residência de Vicente Vogado. Detalhe das duas construções, a frente a casinha do fogo, segundo

técnica tradicional (roliços de madeira nas paredes e cobertura vegetal seca) e ao fundo a obra da Cohapar, com as varandas de piso cimentado, paredes de alvenaria até a altura do peitoril das janelas e

o restante de madeira com cobertura de telha. Aldeia Tekoha Añetete, por Gracieli E. Schubert Kühl

em julho 2012.

A cobertura com telhas de barro foi à opção, por oferecer certo conforto térmico e

facilitar a ventilação do interior da casa, o que favorece, também, a retirada da fumaça

constantemente presente no ambiente em função do fogo de chão. Esta foi uma preocupação

relatada pelos entrevistados, pois muitos Guarani estavam adoentados em função da fumaça

existente no interior das casas devido a pouca ventilação. As doenças respiratórias eram as

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mais comuns nestas habitações tradicionais. A intenção foi oferecer mais qualidade de vida e

menor risco de doenças respiratórias sem com isto negar as raízes culturais, ou seja,

proporcionar mais qualidade de vida e menos riscos de doenças respiratórias.

Os banheiros eram construídos ao lado das residências, separadamente, utilizando-se

do sistema de fossa séptica ou sumidouro, porém, com o passar do tempo os Guarani

solicitaram que fossem construídos mais próximos da casa, de maneira integrada, conforme

planta baixa demonstrada anteriormente.

Questionados sobre o processo de aceitação das casas por parte dos Guarani, os

envolvidos afirmam que foi positivo, porque estes indivíduos viviam em situação crítica em

relação à habitação, uma vez que as moradias eram precárias e qualquer construção que

oferecesse o mínimo de conforto e segurança seria muito bem vinda.

Porque a gente percebe que o mundo não evolui só pra nós, embora

eles [Guarani] ainda tragam muito de suas características, hoje tem

muita gente nas aldeias que já tem formação universitária, que tem um

nível de informação mais elevado e que leva pra comunidade este

conhecimento [...] não vou dizer que seja de regalias, mas de viver

melhor, de ter mais higiene, de ter educação ambiental, de uma série

de coisas, porque um piso fácil de limpar corresponde a uma

higienização da sua habitação, que a gente nem propôs, eles vieram e

pediram o que eu acho muito salutar porque representa que eles estão

se desenvolvendo com o desenvolvimento. (Rosangela Curri Kosak,

em 06/12/2012).

Segundo Rosangela, os índios devem caminhar com suas próprias pernas, porém com

apoio de instituições externas, caso contrário cria-se uma situação de abandono. Para

Batistelli:

A iniciativa do governo em investir em habitação é um grande passo para

promover a inclusão social destas comunidades. "A habitação é uma forma

de proteção e qualifica o processo de interação social. As comunidades

tiveram participação direta na definição dos projetos arquitetônicos, o que garante um padrão de traços arquitetônicos da cultura e ao mesmo tempo

assegura o acesso a modelos contemporâneos da sociedade", pondera.

(NOTICIA. www.cohapar.pr.gov.br, acessado em 12/11/2012).

3.3 Arquitetura implantada pela Itaipu Binacional na Aldeia Tekoha Añetete

A pesquisa para elaboração deste tópico contou basicamente com os documentos

disponibilizados pela Itaipu, mesmo em pequena quantidade, e com as reuniões e entrevistas

com funcionários da Binacional que participam de alguma forma de ações cotidianas

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desenvolvidas junto ao Tekoha Añetete. Entre eles: Marlene Curtis, Valdecir Maria, Eduardo

Pavan e, principalmente, João Bernardes, que trabalha constantemente no interior das aldeias,

prestando auxílio na implantação das ações do Programa de Sustentabilidade das

Comunidades Indígenas, desenvolvido pela Itaipu.

Além destes, contou-se também com o depoimento do antropólogo Rubem F. Thomaz

Almeida, que foi consultor da Itaipu para questões relacionadas às comunidades indígenas

situadas na região de abrangência da Binacional. Dos depoimentos do antropólogo foram

destacados para a presente análise dois momentos: a criação do Tekoha Añetete, da qual

participou ativamente no processo de definição do local e de re-locação destes Guarani; e na

implantação do Programa de Sustentabilidade das Comunidades Indígenas, onde teve

participação decisiva na definição e na aplicação prática das ações.

Antes de aprofundar a discussão sobre a presença de obras empreendidas pela Itaipu

junto ao Tekoha Añetete, é necessário retomar alguns aspectos da trajetória histórica do grupo

em relação a Binacional. Vale lembrar que a presença dos Guarani no oeste paranaense

remonta a um longo período histórico, sendo que no último século estes grupos sofreram

alterações significativas, principalmente em relação a ocupação do espaço.

A história destas comunidades com a Itaipu surge na década de 1970, quando inicia o

processo para formação do Lago de Itaipu, fato que gerou o alagamento de grandes porções

do território tradicional dos Guarani, atingindo o Tekoha Guassu Jacutinga.

Segundo João Bernardes, funcionário da Itaipu, na década de 1970 iniciaram-se

estudos para cadastrar a presença indígena na região que seria atingida pelas águas do

reservatório. Identificou-se a antiga aldeia Jacutinga, que abrigava em torno de 13 famílias de

Guarani. Com base nestas estatísticas, foi oferecido a este grupo como forma de indenização

pela inundação de suas terras, uma área de 272 hectares, que atualmente é o Tekoha Oco’ÿ.

Mesmo com o aceite deste território, os Guarani deixaram claro para a Binacional que

o anseio por parte deles era de possuir um território maior, cerca de 1500 hectares. Após

várias ações, tanto dos indígenas quanto da Itaipu, em 1997 foi adquirida a área que hoje é o

Tekoha Añetete, com mais de 1770 hectares. Esta trajetória histórica envolvendo a Itaipu e a

formação das aldeias indígenas no Oeste do Paraná foi desenvolvida no capítulo anterior, no

item 2.1.

Os primeiros anos neste novo território foram caracterizados por alguns problemas de

ordem prática para os índios. A presença da Itaipu no interior da aldeia era feita a partir da

demanda, sem ações permanentes, ou seja, em períodos de plantio e colheitas a Binacional

disponibilizava equipamentos para apoiar estas atividades.

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Entre 1992 e 2000 a Itaipu repassou verbas à Fundação Nacional do Índio/FUNAI,

para que esta fomentasse ações de suporte para o desenvolvimento da aldeia. Porém, este

suporte oferecido pela Fundação não foi feito a contento dos moradores do recém-formado

Tekoha, fato que levou muitas famílias a migrarem para outros locais. Com isto, entre

2000/01 a Itaipu assumiu estas atividades, principalmente as voltadas ao desenvolvimento da

agricultura praticada pelos Guarani, tendo em vista que estas práticas compõe as ações

tradicionais da etnia e que, portanto, deveriam ser fomentadas para que o grupo alcançasse

autonomia.

Este contato mais próximo entre a Itaipu e os Guarani de seu entorno fez com que aos

poucos fossem iniciadas ações em outras áreas, até o momento em que estas atividades foram

agrupadas em um grande projeto de instalação permanente nestas aldeias. Este projeto,

intitulado ‘Sustentabilidade das Comunidades Indígenas’, teve como intuito inicial atender, de

maneira ampla, diversas necessidades existentes no interior destes grupos.

Aparentemente estas ações hoje agrupadas em um programa, não tiveram a intenção

de ressarcir os Guarani em relação a prejuízos causados pela Binacional no passado, mas sim,

instituir como missão prestar apoio a estas comunidades. O principal objetivo a ser atingido

com estas atividades é o de fixar estes Guarani em seus territórios, oferecendo suporte para

que atinjam autonomia na produção de gêneros alimentícios e renda, bem como na

valorização cultural, evitando com isto a migração para os centros urbanos em busca de

sustento. Atualmente três aldeias são atendidas pelo Programa de “Sustentabilidade das

Comunidades Indígenas”: os Tekohas: Oco’ÿ, Añetete e Itaramã.

Portanto, desde 2003 este programa atua junto a estas aldeias, sendo desenvolvido

através de parceria com o Município de Diamante do Oeste. Segundo Marlene Curtis,

funcionária da Itaipu e uma das coordenadoras destas ações, a intenção não é promover

assistencialismo, mas prestar apoio aos Guarani a partir de seus próprios anseios e

necessidades.

Segundo a equipe de funcionários que cederam as informações aqui descritas, toda e

qualquer ação somente é empreendida se possuir o consenso por parte dos Guarani. Muitas

vezes estas atividades ocorrem em resposta a solicitações feitas por eles próprios, que

reivindicam serviços e melhorias relacionados à infraestrutura entre outros pedidos, sempre

voltados à melhoria da qualidade de vida da coletividade a qual pertencem.

Segundo Rubem Thomaz Almeida, que durante o período de implantação do programa

prestou consultoria à Itaipu, esta prática voltada a atender as solicitações feitas pelos Guarani

sem a intenção de impor qualquer coisa, esta foi uma das orientações repassadas por ele:

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“ouvir as populações envolvidas e com elas discutir seus próprios problemas e as soluções

que apresentam é um caminho capaz de orientar ações mais adequadas como se pretendeu

apontar aqui” (ALMEIDA, Relatório 2006).

Dentre as principais características que configuram este programa, destacam-se cinco

eixos norteadores das ações empreendidas. Todos eles estão descritos abaixo conforme

apresentados no Relatório Cultivando Água Boa+8 2003/2010, disponibilizado pela Equipe

da Itaipu para compor as fontes de informações desta pesquisa. Os Eixos são:

1 - Produção agropecuária: voltado à aquisição de equipamentos para

plantio, insumos, animais e sementes; preparo de solos; apoio ao Projeto

bovinocultura de Leite, à apicultura e à criação suína; apoio à produção de peixes em tanques-rede; apoio e acompanhamento em viagens para

realização de visitas técnicas; e implantação do Projeto de Plantas

medicinais.

2 - Fortalecimento e promoção da cultura Guarani – este eixo tem por função auxiliar ações de resgate cultural como apoio às apresentações dos

corais indígenas através da disponibilização de transporte, alimentação,

roupas e equipamentos. Presta também apoio à produção de artesanato através da disponibilização de transporte para eventos, alimentação,

roupas, equipamentos e cursos como o de tintura natural em tecido através

de parceria com o Centro de Artesanato Ñandeva/ITAIPU. Além destas ações, recentemente foram empreendidas atividades visando fomentar as

práticas áudios-visuais para divulgação do modo de ser guarani e

fortalecimento da identidade étnica; realização de eventos comuns às

aldeias em especial a Semana Cultural Indígena e patrocínio a viagens para eventos que discutem a valorização e o respeito à diversidade.

3 - Estímulo à formação de parcerias através do fortalecimento da rede de

atores sociais, públicos e privados, preocupados com a sustentabilidade Guarani e com a defesa dos direitos desta etnia. (Relatório Cultivando

Água Boa+8, 2003/2010, p. 59-61).

4 - Segurança alimentar e nutricional infantil – este eixo tem por

função garantir o acesso a produtos saudáveis por parte dos Guarani.

Além da disponibilização desta alimentação, ocorrem também

capacitações permanentes para as mulheres da aldeia através de

visitas constantes de nutricionistas, as quais auxiliam na preparação

destes alimentos. Semanalmente as crianças passam por avaliação

para acompanhar o desenvolvimento das mesmas. Segundo João

Bernardes, atualmente o índice de desenvolvimento das crianças do

Tekoha Añetete indica que não estão em situação de risco alimentar,

graças ao acompanhamento feito por este programa.

5 - Melhoria da infraestrutura, com a construção, adequação e

manutenção de estradas, casas para moradia com rede elétrica, casas

de reza e centros de artesanato, construção e reforma de centros de

nutrição e casa de máquinas/equipamentos, construção de cisternas,

entre outras ações.

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A partir deste último eixo – melhoria da infraestrutura - no final de 2003 e início de

2004, por iniciativa dos próprios Guarani, foi solicitada à Itaipu a construção de casas na

aldeia, visando melhorar a qualidade de vida da população local.

A partir desta solicitação, a Binacional formou um grupo de estudos para averiguação

de características e definição de modelos arquitetônicos que estivessem em sintonia com a

cultura guarani. Este grupo foi coordenado pela arquiteta Julia Henriques, que contou com a

participação de outros funcionários da Itaipu, além dos próprios Guarani, entre eles João

Alves e Vicente Vogado.

Além de inúmeros encontros para discussão da temática, o grupo realizou visita a

grupos Guarani que atualmente habitam a região missioneira do Estado do Rio Grande do

Sul/BR, a fim de identificar modelos e técnicas construtivas tradicionais e a partir disto definir

o modelo a ser implantado pela Itaipu nas aldeias locais. Segundo João Alves, este local foi

escolhido pelo fato de ter participado de programa habitacional implantado pelo governo

gaúcho. Como resultado desta viagem, foi definido o modelo a ser seguido, priorizando a

utilização de materiais de uso tradicional dos Guarani, como a madeira.

Este modelo ficou assim definido: planta central em formato retangular com duas

varandas arredondadas nas extremidades do retângulo. O interior é de chão batido no cômodo

conjugado cozinha/sala, para possibilitar a prática do fogo de chão; nos dois quartos

existentes está presente o assoalho de madeira e as paredes possuem mata-juntas para

vedação, evitando a entrada de vento e oferecendo maior conforto térmico aos habitantes; as

paredes externas foram feitas com eucalipto do tipo citriodoro, tratado em autoclave,

posicionados verticalmente na obra; as aberturas, janelas e portas, são de madeira; o telhado

possui dez águas e é feito com telhas de barro. Possui ainda duas varandas, sendo uma em

cada extremidade da casa, além de um banheiro externo.

O material para a cobertura foi definido como sendo de telhas de barro, porque o sapé,

de uso tradicional, é material que muito em breve estará extinto da região, obrigando-os a

adaptar-se a materiais industrializados como a telha; por isto eles optaram desde o início pela

cobertura com telhas de barro. Todo o material utilizado nas obras tem origem de fora da

aldeia e a mão de obra para construção destas casas foi de não-índios.

Seguem fotografias dos modelos executados no Añetete:

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Imagens internas e externas de residências construídas pela Itaipu. Fonte cedida pela Binacional em

dezembro de 2012.

Este modelo de casas desenvolvidas por Itaipu buscou atender aos aspectos culturais

dos Guarani, entre eles a questão da re- locação das casas em outros espaços. Esta prática está

relacionada ao fato de que, por motivos ligados a práticas cosmológicas, os Guarani mudam o

local de suas residências, mesmo sem sair do seu tekoha. A construção da residência sendo

feita toda com roliços de eucalipto facilita a desmontagem, o transporte e a remontagem em

outro local. Destaca-se com isto uma das diferenças das habitações feitas pela Itaipu daquelas

feitas pela Cohapar, como citado anteriormente.

A primeira casa construída pela Itaipu serviu de protótipo, através da qual se

apresentou o modelo aos Guarani, visando obter a aprovação ou para que indicassem as

alterações necessárias. Esta residência pertence ao Leonardo, morador da aldeia, e existe até

os dias atuais aparentemente sem alterações, a não ser a construção do anexo ao fundo, para

abrigar o fogo de chão. Seguem imagens abaixo:

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Residência do Sr. Leonardo, primeira casa feita pela Itaipu no Tekoha Añetete. Em dezembro de 2012,

por Gracieli E. Schubert Kühl.

Foram construídas pela Itaipu, no Tekoha Añetete, 36 casas de moradia, que em sua

maioria estão dispostas no entorno de uma das estradas que circundam a aldeia. Este caminho

foi batizado por eles como estrada Guarani, demonstrando a importância simbólica que estas

obras assumiram perante a dinâmica interna, cultural e social destes indivíduos.

As casas construídas pela Itaipu na atual Aldeia Itamarã passaram por algumas

modificações, dentre elas, foi solicitado pelos Guarani, a inserção de mais um quarto e a

colocação do banheiro no interior da residência.

Existem no Tekoha Añetete e no Tekoha Oco‎ÿ casas de reza construídas pela Itaipu.

Estas obras seguiram as características definidas pelos Guarani, repassadas, no caso do

Añetete, aos técnicos através de um desenho feito no chão pelo rezador Jerônimo Vogado, pai

de Vicente. Portanto, o modelo foi definido pelos Guarani e desenvolvido pela Itaipu. Este

processo também contou com a participação do antropólogo Rubem Thomaz Almeida,

atuando muitas vezes como interlocutor entre as aldeias e a Itaipu.

No processo de definição do projeto para construção da casa de Reza no Tekoha

Añetete, a pedido da Itaipu, Almeida emitiu um parecer ressaltando algumas características

específicas a serem observadas. Segundo ele, os Guarani do Añetete:

- Entendem que a casa de reza não deve ter janelas, o que impediria, para os

Mbya, a entrada na opy das entidades divinas reverenciadas.

- A casa não deve ter mais do que uma porta com largura para a entrada de uma pessoa. Esta porta deve estar voltada para o sol nascente (“kuarahy

oikoteve opyta oga renondepe”).

- A casa deve ser bem fechada (eventualmente com mata-junta) para que o ambiente ritual criado pela fumaça sagrada produzida por seus cachimbos se

mantenha.

- Embora lamente, não importa que a casa seja coberta com telhas de barro.

- Solicitam que as ‘varandas’ que constam no desenho sejam eliminadas e que a casa se amplie ‘para que caiba maior numero de pessoas’.

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- A ‘varandas’ deveriam ser eliminadas dando lugar a uma parede reta, o que

faria com que a casa venha a ter apenas duas águas.

- A altura das paredes seria, conforme discutido, de 1,70m e a cumeeira de aproximadamente 3,50m. (Arquivo da Itaipu. Correspondência emitida por

Rubem Thomaz Almeida à Itaipu em 28/03/2006).

Seguem imagens atuais da casa de reza que originou a discussão apresentada acima.

Casa de rezas construída pela Itaipu no Tekoha Añetete. Em abril de 2012, por Gracieli E. Schubert

Kühl e Jairo Bertolini.

Atualmente existe somente uma casa de reza feita pela Binacional no Añetete; porém

o núcleo familiar do Professor Vicente já solicitou a construção de uma casa de reza para sua

parentela. O local será definido pelo rezador, ele é quem receberá as orientações sobre o local

adequado para a construção.

Questionado sobre as semelhanças e diferenças entre uma casa de reza feita pelos

Guarani, a partir da técnica tradicional, e uma casa de reza feita por agentes externos, neste

caso a Binacional, Vicente afirma que uma casa de reza grande, nova e bonita, como é o caso

da obra feita por Itaipu, atrai muitos Guarani que estão distantes das cerimônias que ocorrem

no local. Além disto, a casa de reza de Jerônimo Vogado, rezador e pai de Vicente, é

consideravelmente pequena para a quantidade de pessoas que compõe o núcleo familiar e que,

portanto, fazem uso da referida obra. Afirma, também, que a manutenção da obra utilizada

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por eles atualmente é muito grande, pois os materiais usados na construção não são

adequados, gerando constantes reformas que dependem de valores financeiros não

disponíveis. Segue imagem da casa de reza a ser substituída.

Vista geral da casa de reza da família de Jerônimo Vogado. Vista geral, em dezembro de 2012, por Gracieli E. Schubert Kühl.

Fachada da casa de reza da família de Jerônimo Vogado. Vista geral, em dezembro de 2012, por

Gracieli E. Schubert Kühl.

Imagem interna da casa de reza da família de Jerônimo Vogado. Vista geral, em dezembro de 2012,

por Gracieli E. Schubert Kühl.

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Sendo assim, a substituição da casa de reza apresentada acima por uma obra nova, faz

com que a expectativa do Professor Vicente seja a melhor possível, pois segundo ele

aumentará consideravelmente o número pessoas durante as cerimônias que ocorrem.

Ainda segundo Vicente Vogado, as questões simbólicas relacionadas à casa de reza

enquanto elemento central na organização espacial, religiosa e mítica do grupo são instituídas

após a conclusão da obra, quando a mesma passa pelo batismo para então ser tomada como

centro religioso.

Evidente que esta atitude demonstra uma adaptação em relação às práticas tradicionais

dos Guarani de construírem suas casas de reza, que compreendiam um ritual a ser seguido que

antecedia o início da obra. O que se pode perceber é que o fato de a Itaipu construir a casa de

reza não altera a função da mesma enquanto centro religioso de grupo. Possivelmente, este

aspecto esteja relacionado ao fato de que o sentido do local seja transmitido através das

palavras do rezador, que se mantém vivas e significativas, independente da estrutura física

que envolve o ritual.

Sendo assim, pode-se perceber que a arquitetura material, aquela que é visível,

palpável e descritível não representa tudo aquilo que realmente faz sentido ao ‘modo de ser

Guarani’. É, portanto, a força das palavras e das ações que justificam toda a dinâmica

religiosa do grupo e não as características físicas apresentadas.

3.4 Um olhar antropológico sobre O Tekoha Añetete - Arquitetura Tradicional/

Cohapar / Itaipu

Durante as pesquisas bibliográficas e documentais para elaboração desta dissertação,

foi percebido que na história do Tekoha Añetete constantemente era citada a participação do

antropólogo Rubem Thomaz Almeida. Foi então que surgiu a possibilidade de entrevistá-lo,

com objetivo de elaborar um parecer sobre a trajetória do grupo e, principalmente, sobre a

arquitetura existente na aldeia, tanto tradicional quanto as aplicadas pela Cohapar e pela

Itaipu.

Esta análise antropológica, além de constituir uma fonte documental para outras

pesquisas relacionadas à temática, contribuirá para que os leitores, ao se depararem com um

depoimento argumentativo e crítico, tenham parâmetros técnicos para elaborarem suas

próprias conclusões a respeito da presença da Cohapar e da Itaipu na prestação de serviços

habitacionais aos habitantes da referida aldeia.

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Portanto, a apresentação de alguns excertos de sua fala se justifica pelo fato dele ter

atuado de maneira muito próxima aos Guarani, emitindo pareceres que orientaram as ações

empreendidas pela Itaipu. Desde 1995 contribuiu para a escolha do território, passando pela

estruturação e fixação da aldeia, a construção de residências e casas de reza até a implantação

do Programa de Sustentabilidade das Comunidades Indígenas, em 2006.

As informações apresentadas são resultantes da entrevista concedida por Almeida, nos

dias 03 e 04 de janeiro de 2013, na cidade do Rio de Janeiro. Metodologicamente apresenta-se

como uma entrevista semiestruturada, ou seja, foram previamente definidos tópicos a serem

abordados durante a atividade, sem elaboração de questões propriamente ditas. Esta estratégia

foi adotada visando possibilitar uma dinamização maior em relação aos pontos abordados,

sem, com isto, produzir material baseado em questionários sistematizados e inflexíveis. Foi,

portanto, uma espécie de conversa sobre o Tekoha Añetete, baseada em tópicos previamente

definidos, visando sempre extrair do entrevistado uma opinião, um posicionamento em

relação aos aspectos abordados. Portanto, as informações apresentadas a seguir foram

organizadas de forma a manter trechos originais da fala do entrevistado em uma sequência

pré-estabelecida, visando proporcionar uma melhor abstração das informações por parte dos

leitores.

É importante destacar, primeiramente, a função assumida pelo antropólogo no decorrer

do processo de contato entre a Itaipu e as aldeias na região. Segundo ele, seu posicionamento

sempre foi de:

Consultor para a ITAIPU, que era ouvido, respeitado, mas que teve como

função ouvir os Guarani e transmitir à Binacional os anseios dos indivíduos

que compõe esta etnia e que de alguma forma ou outra foram atingidos pela ITAIPU quando da formação de seu reservatório. (Rubem F. T. ALMEIDA,

entrevista concedida a Gracieli E. Schubert Kühl em 03 e 04/01/2013).

Coloca-se, portanto, como desafio para análise deste depoimento, enquanto fonte para

o desenvolvimento desta pesquisa, dispensar um olhar crítico em relação a fala do

antropólogo. Isto porque ele esteve presente em praticamente todo o processo de formação do

Tekoha Añetete, porém, como consultor da Itaipu Binacional, ainda que seu discurso esteja

voltado a atender os anseios dos Guarani envolvidos no processo. Este aspecto deve ser

enfatizado justamente para caracterizar a fonte oral supracitada e facilitar ao leitor maior

discernimento em relação às informações apresentadas.

Os aspectos relatados no espaço que segue, apresentam informações referentes ao

depoimento cedido por Rubem Almeida sobre o processo de implantação de programas

habitacionais junto ao Tekoha Añetete em relação direta com a arquitetura tradicional.

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Portanto, este item contempla aspectos relacionados ao olhar antropológico crítico dispensado

às arquiteturas empreendidas na aldeia pela Cohapar e pela Itaipu, apontando pontos positivos

e negativos identificados em cada uma delas.

Em diversos discursos presenciados no decorrer desta pesquisa, foi relatado que a

matéria-prima tradicionalmente adotada pelos Guarani na construção de suas casas era escassa

na região quando da instalação da reserva indígena. Em função disto, “as aldeias foram se

transformando em favelas”. (Noticia vinculada pela Cohapar em: 09/12/2003 –

www.cohapar.pr.gov.br, acesso em 12/1/2012). Esta é uma das justificativas adotadas pela

Companhia de Habitação do Paraná para instalar o Programa ‘Casa da Família Indígena’ em

várias aldeias paranaenses, entre elas o Oco’ÿ e o Añetete.

No decorrer desta pesquisa, bem como durante a entrevista realizada com Rubem

Almeida, percebeu-se que os habitantes do Añetete possuíam acesso, mesmo que restrito, a

alguns materiais tradicionais para construção das casas, isto porque a aldeia era coberta em

parte por mato bom, que oferecia madeira, palmeira, cipó e outros materiais possíveis de

serem utilizados nas construções. Porém, apesar desta aparente disponibilidade, o material

realmente era restrito, o que fazia e ainda faz com que eles busquem alternativas para

construção em materiais industrializados.

É comum visualizar aldeias, nas mais diversas situações vividas pelos Guarani na

atualidade, que estes geralmente recorrem a materiais que se encontram facilmente

disponíveis para construir suas habitações, como: papelão, plástico, pedaços de outdoor,

tábuas, arame, lona, etc. esta prática era comum também nas comunidades Guarani existentes

no Oeste do Paraná, entre elas, Ocoÿ e Añetete. Rubem Almeida lembra que existiam casas

muito bem construídas, aprazíveis e confortáveis no Okoÿ, apesar da restrição de material em

área tão diminuta e com pouco mato disponível.

A partir deste panorama, de que os Guarani tradicionalmente utilizam materiais

diversos para construção de suas residências, é possível então questionar o argumento

utilizado pela Cohapar para justificar a implantação de projetos habitacionais nas aldeias

indígenas. Isto porque, segundo notícias vinculadas pela Companhia, “as aldeias foram se

transformando em favelas” (Cohapar, 2003). Este argumento demonstra certa ingenuidade, ou

mesmo desconhecimento da realidade Guarani por parte da Companhia de Habitação, “a

pessoa que disse isso se deixou levar apenas pela aparência das casas que se assemelham a nossas

favelas. É uma maneira pouco cuidadosa de ver o Outro e revela desconhecimento de causa absoluto”.

(Rubem F. T. ALMEIDA, entrevista concedida a Gracieli E. Schubert Kühl em 03 e 04/01/2013).

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Sobre o processo de implantação das residências na referida aldeia, Rubens Almeida

presenciou ambos os casos. Segundo ele, no ano de 2006, os processos para construção das

residências já estava avançado.

Eram claras as diferenças, tanto no procedimento de implantação do projeto

como nas construções de uma e outra instituição. Ambas tinham em suas

pautas construir casas – que entrariam no rol de suas atividades. Havia, certamente, a demanda dos índios. Pois bem, o movimento da hidroelétrica

para implantação de seu projeto foi: “vamos procurar entender como esses

índios constroem e usam suas casas; vamos ao Rio Grande do Sul visitar os

índios de lá, vamos levar alguns índios daqui para que eles vejam como são as casas de lá. Junto com os índios, vai junto uma arquiteta nossa para

procurar entender como são as casas Guarani”. Lembro-me que a outra

instituição simplesmente queria porque queria fazer casas, sem qualquer preocupação se os índios gostariam ou não delas, se as usariam ou não. Do

meu ponto de vista houve imposição arquitetônica e de material na

construção das casas. O que queria ressaltar, mais do que formas arquitetônicas ou material utilizado, na medida em que, como comentamos,

os Guarani usaram as casas segundo seus padrões, é a forma como os

projetos foram implantados e as, digamos, concepções metodológicas de

uma e outra instituição em relação ao trabalho indigenista. É como se uma procurasse saber o que querem os Guarani e a outra já soubesse o que eles

querem. (Rubem F. T. ALMEIDA, entrevista concedida a Gracieli E.

Schubert Kühl em 03 e 04/01/2013).

Aparentemente, o que se percebe através da análise dos documentos e depoimentos

que compõe o rol de fontes utilizadas nesta pesquisa, é que os interesses institucionais

prevaleceram no momento de construção das casas. Porém, houve esta diferença entre uma e

outra instituição, principalmente em relação à Itaipu, que optou pela iniciativa de buscar

outros exemplos e levar os índios para averiguar outras construções semelhantes ao modelo

‘tradicional’ indígena.

A Cohapar lançou na época, matérias na mídia para divulgar a construção das

habitações nas aldeias indígenas, citando que: “as casas foram projetadas garantindo os traços

arquitetônicos da cultura indígena mas assegurando o acesso a modelos contemporâneos”.

(Noticia Cohapar, Postada em: 09/12/2003 – www.cohapar.pr.gov.br, acesso em 12/1/2012).

O que se percebe in loco é que na realidade a obra atendeu em menor quantidade os aspectos

culturais em comparação com as da Itaipu.

Como já citado, existe inclusive um dos caminhos no interior da aldeia que é chamado

de ‘Caminho Guarani’ ou ‘Estrada Guarani’ por conter em sua maioria casas do modelo

Itaipu, mais próximo, portanto, do modelo tradicional desta cultura.

Conforme citado no item 3.2 desta dissertação, o que os representantes da Cohapar

relatam nas entrevistas é que os próprios Guarani solicitaram algumas alterações em relação

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ao projeto original. Entre elas foi pedida a construção de piso cimentado na varanda das

residências, local onde originalmente era de chão batido, para abrigar o fogo de chão.

Outro aspecto considerado, segundo os representantes da Cohapar, é a destinação de

chaminés no interior das casas para retirada da fumaça, possibilitando mais saúde aos seus

habitantes. Segundo conclusões desta pesquisa, encontra-se neste aspecto outra divergência, já

que a fumaça não é considerada prejudicial ao Guarani, pelo contrário, ela é utilizada nos ritos

para cura de doenças.

As construções avistadas hoje na aldeia que representam a Cohapar sofreram,

portanto, alterações em relação o projeto original, a pedido dos próprios indígenas. Porém,

ainda assim é facilmente perceptível a presença de materiais industrializados nas obras,

principalmente tijolo, cimento, cal, ferro, entre outros, que em nada se assemelham ao que

tradicionalmente os Guarani utilizam como matéria-prima para suas construções. “Não é a

construção em si que talvez perturbe, e sim o material, isto porque a alvenaria não se

identifica com os Guarani, não se dissolve tão facilmente na natureza, ficando ali no chão por

muito tempo, este condicionante também pesa em relação a estas obras.” (Rubem F. T.

ALMEIDA, entrevista concedida a Gracieli E. Schubert Kühl em 03 e 04/01/2013).

Retomando a discussão em torno da construção simbólica do espaço habitado, onde se

conclui que o Guarani adapta-se ao material e a técnica disponíveis atualmente ao seu uso,

prevalecendo à força das ações e do sentido, construídos no interior da obra e não somente na

arquitetura enquanto técnica, pode-se concluir que realmente:

Para os índios pesa pouco uma arquitetura ou outra, eles se adaptam às

obras, mesmo se fossem todas de alvenaria eles iriam se adequar, iriam usar, como fazem com as que foram construídas. A Itaipu fez a dela de

madeira e penso que há maior empatia dos índios com esse material [...] Isto

ocorre não tanto pela estética, mas por ser de madeira, por permitir que a casa seja mudada de lugar utilizando-se o mesmo material. Com casas

construídas em alvenaria isto não é possível. Isso tudo foi discutido com os

índios na época. (Rubem F. T. ALMEIDA, entrevista concedida a Gracieli

E. Schubert Kühl em 03 e 04/01/2013).

Em relação ao relato de Rubem Almeida afirmando que os Guarani: ‘se adaptam às

obras, mesmo se fossem todas de alvenaria’, foi possível durante a pesquisa de campo, através

da observação da arquitetura presente na aldeia, perceber claramente esta adaptação. Em

praticamente todas as casas feitas pela Cohapar e pela Itaipu, os Guarani constroem uma

espécie de anexo ou estendem o telhado, formando um ‘puxado’, ou, em outros casos, fazem

outra construção separada da primeira.

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Esta obra, como já foi assinalado, tem por função abrigar o fogo de chão e segue o

modelo definido como ‘tradicional’ Guarani. Além de demonstrar um mecanismo de

adaptação, notou-se também que é uma forma de complementar o espaço habitado, isto

porque segundo Almeida descreve em seu livro:

Cada família elementar constrói sua própria habitação, composta de

duas construções fechadas [koty], uma ao lado da outra [grifo nosso].

Uma delas, em geral a mais ampla, constitui o espaço de dormir e é

reservada à família. Raramente o visitante, principalmente se não é

indígena, tem acesso a koty, local onde a família [ñemoña] toma

mate junto ao fogo [tata ypype], nas manhas ou ao entardecer. (...) A

outra construção também serve para abrigar a intimidade das famílias

(nucleares), e é onde preparam e consomem os alimentos,

funcionando também como despensa para armazenar os produtos da

roça, as ferramentas e outros utensílios (ALMEIDA, 2001, p .131).

Portanto, mais do que um mecanismo de adaptação dos modelos não indígenas ao

cotidiano do grupo, é possível afirmar que este anexo justifica-se porque tradicionalmente os

Guarani possuíam dois espaços construídos para habitação, sendo um deles para o descanso e

outro destinado ao preparo dos alimentos e como depósito de utensílios e produtos agrícolas.

Este espaço, que chamamos de ‘anexo’, configura-se como a parte principal da casa,

em torno da qual se encontra o “pátio” (oka), onde se vive o dia-a-dia, onde se produz e

consome alimentos, se recebe visitas e outras coisas do corriqueiro. A vida social é feita neste

espaço semelhante a um anexo.

Vale ressaltar, portanto, que o fato de os Guarani na atualidade comportarem em seu

espaço habitado, duas obras arquitetônicas, sendo um delas implantada pelos programas de

habitação e outra construída por eles, segundo o estilo tradicional, representa a tentativa de

manutenção, ou adaptação destes espaços às praticas do grupo, ao cotidiano social da família

nuclear. Ou seja, possuir duas construções no mesmo pátio não é consequência da

implantação de políticas habitacionais junto à aldeia, mas sim um reflexo do ‘modo de ser’

Guarani.

Porém, ainda assim, os programas habitacionais implantados no interior da aldeia

interferiram na dinâmica interna do grupo. Cada um a seu modo, sendo mais ou menos

invasivo, porém deixaram suas marcas e alteraram, mesmo que superficialmente, o panorama

do grupo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na estrutura do texto buscou-se antecipar, ao final de cada capítulo, alguns aspectos

conclusivos referentes às temáticas abordadas. De uma forma geral, pode-se considerar que os

grupos Guarani, ao contrário do que muitas vezes se faz crer, continuam vivos e demarcando

suas fronteiras, tanto culturais quanto territoriais, já que o movimento pela aquisição de novos

espaços não cessa. Nesta luta territorial, encontra-se presente também a luta pela manutenção

da etnia e a demonstração da capacidade de adaptação desta coletividade ao processo

evolutivo constante em que passam as sociedades contemporâneas. Talvez este seja um dos

grandes motivos que fizeram dos Guarani, uma das etnias nativas que melhor ‘sobreviveu’ ao

processo de construção das nacionalidades rio-platenses.

Não nos cabe julgar se estes movimentos de reivindicação de territórios são

necessários ou não, porém se considerarmos que o espaço que compreende o atual oeste do

Paraná foi habitado quase que exclusivamente por Guarani em tempos mais remotos, então,

devemos no mínimo considerar a hipótese de que estes movimentos têm algum fundamento.

Ainda assim, é fato que existem grupos Guarani que se encontram bem instalados, gozando de

seus direitos e deveres, desenvolvendo-se enquanto grupo étnico. Isto porque mudanças,

transformações e readaptações são comuns na maioria dos grupos étnicos, de maneira isolada

ou mesmo em contato com culturas envolventes.

Ainda assim, em ambos os casos, é importante lembrarmos que os indivíduos em

contato com o outro fortalecem seus laços coletivos e realçam sua identidade, uma vez que a

necessidade de afirmação e a consequente manutenção das diferenças tornam-se fundamentais

para a manutenção dos grupos étnicos, conforme sinaliza Barth:

As distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrario, frequentemente as próprias

fundações sobre as quais são levantados os sistemas sociais englobantes. A

interação em um sistema social como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem permanecer

apesar do contato interétnico e da dependência dos grupos (BARTH, 1998,

p. 188).

Este aspecto citado por Barth abrange o primeiro item conclusivo desta dissertação,

que reafirma a tese de que estes Guarani se mantém enquanto grupo étnico, mesmo inseridos

em uma sociedade que os distingue enquanto minoria. Possivelmente, esta diferenciação

contribui para a reinvenção da identidade coletiva e, consequentemente, para o fortalecimento

desta coletividade.

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É possível, portanto, afirmar que estas transformações ocorridas em função do contato

com outras sociedades podem ter despertado na consciência coletiva dos Guarani a

necessidade de união e consequente autoafirmação da identidade em função de um

denominador comum, a luta por espaço, tanto territorial quanto social.

No interior deste espaço ideal constantemente buscado pelos Guarani, são definidos os

critérios para o desenvolvimento do grupo, os quais compõem os estatutos étnicos que regem

estas coletividades a fim de manter a ordem, entre outros aspectos. Entre os Guarani este

conjunto de critérios é definido como ‘modo de ser’. Inseridos neste contexto, além das regras

de conduta e práticas religiosas, também se encontram formas de organização espacial, as

quais seguem os critérios praticados tradicionalmente pela etnia. Compreender esta dinâmica

requer metodologias científicas adequadas para atender uma série de elementos que requerem

uma abordagem multidisciplinar, isto porque a organização sociocultural do grupo étnico

compõe-se de diversas formas de apresentação, exigindo do pesquisador um aparato

metodológico dinâmico.

Neste caso, resta aos estudiosos buscar a interdisciplinaridade, no sentido de alcançar

o objeto de estudo, seja no sentido restrito ou de maneira mais ampla. Pode-se afirmar que a

presente dissertação alcançou, em parte, o objetivo proposto em relação à metodologia

baseada na interdisciplinaridade, pois se utilizou da etno-história para desenvolver um estudo

de caso sobre o Tekoha Añetete.

Porém, mesmo sendo um trabalho interdisciplinar, neste ato conclusivo o viés da

história surge com mais veemência, isto porque o sentimento que se tem neste momento é de

que foram agrupadas informações que registram aspectos sobre a trajetória histórica do grupo,

bem como, as características atuais do Tekoha Añetete, supondo, portanto, que esta pesquisa

aborda a história do tempo presente destes indivíduos.

Em relação à arquitetura tradicional guarani propriamente dita, um dos aspectos

identificados durante a pesquisa de campo, foi à constatação de que para estes grupos a casa

enquanto construção arquitetônica é somente uma casca, o elemento que envolve um conjunto

muito maior de significações. O mais importante é a simbologia que reveste o seu uso e revela

a vida do grupo através das práticas culturais, das cerimônias, dos encontros em que o rezador

transmite a palavra e educa a alma.

Esta arquitetura que se pretendeu analisar reflete, portanto, uma arquitetura do

simbólico, da representação e não do material físico. Por isto, não importa quem faz a casa, se

o Guarani, se a Cohapar ou se a Itaipu. O importante é a ‘força do sentido’ que se constrói no

dia-a-dia, na significação que se cria a partir do uso e das práticas cerimoniais realizadas no

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local. É uma arquitetura que transcende o material, é imaterial, é o sagrado, o simbólico que

se cria lentamente através das pessoas, dos ritos, da significação que se incorporam na cultura

através das práticas cotidianas.

Discorrer sobre as casas construídas tanto pela Cohapar quanto pela Itaipu, levando

em consideração os benefícios e malefícios que uma ou outra incorporou ao cotidiano do

grupo, torna-se algo secundário, pois assim o é para os Guarani. Eles associam estas obras ao

seu dia-a-dia – nenhuma destas casas está vazia na aldeia – e ainda criam mecanismos de

adaptação destas ao seu cotidiano. Ou seja, as casas é que são adaptadas a eles e não somente

os Guarani se adaptam às novas formas arquitetônicas.

Afirma-se isto em função de ser evidente, quando em trânsito pelos caminhos

existentes na aldeia, o fato de que as obras implantadas por agentes externos são habitadas,

porém, em sua maioria são acompanhadas de outra edificação, tradicionalmente chamada de

casa do fogo. Esta construção desenvolvida pelos Guarani ao lado das casas da Cohapar e da

Itaipu reflete em grande parte os mecanismos de adaptação das obras externas ao cotidiano do

grupo, sendo incorporada a esta uma obra regida pela arquitetura tradicional, atuando

enquanto elemento complementar e fundamental na composição do espaço habitado. Se

avaliássemos a hipótese de as obras feitas pela Cohapar e Itaipu não serem ‘aceitas’ pelos

Guarani, possivelmente veríamos muitas casas abandonadas no local, situação diferente da

que se presencia.

Mesmo sendo algo secundário, cabe levantar uma reflexão conclusiva sobre estas

obras construídas pela Cohapar e Itaipu. Pode-se afirmar que ambas as instituições

proporcionaram melhorias aos Guarani; ambas tiveram ‘boas intenções’ em relação a eles.

Porém, o resultado prático destas políticas habitacionais demonstra ser Itaipu a instituição que

optou por estratégias e ações que resultaram em métodos mais adequados. Principalmente em

se tratando do material adotado por cada uma delas, uma vez que a alvenaria presente nas

obras da Cohapar é algo distante da realidade Guarani.

Como citado anteriormente, houveram algumas dificuldades relacionadas à

garimpagem das informações perante os Guarani. Isto, possivelmente ocorreu porque a forma

como ‘nós’ definimos alguns conceitos e termos não se adapta ao universo da maioria dos

entrevistados da aldeia, ou seja, falar em arquitetura tradicional, materiais e técnicas

construtivas, simbologias, é tocar em conceitos não totalmente definidos nem partilhados pela

maior parte dos Guarani. Em alguns momentos houve, portanto, a necessidade da substituição

destes termos por outros, mais acessíveis aos entrevistados.

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Em relação à receptividade dos habitantes da aldeia para com esta pesquisadora, pode-

se afirmar que foi das melhores possíveis. Este fato se deve em grande parte à maneira como

as atividades foram desenvolvidas. Na primeira visita para coleta de dados, o Diretor da

Escola Estadual Kua’a Mbo’e, situada no local, chamou os principais representantes Guarani

que atuam como professores para uma apresentação do trabalho. Nesta data foram

apresentados os objetivos da pesquisa e a metodologia a ser adotada. Após esta exposição foi

solicitado permissão aos Guarani para realizar o referido estudo.

De imediato eles concordaram e a partir de então as pesquisas transcorreram sem

maiores problemas. Foram realizadas várias visitas ao Tekoha Añetete para coleta de dados,

entre elas uma em especial quando, a convite do Professor Vicente Vogado, foi possível

participar de cerimônia na casa de rezas de Jerônimo Vogado, pai de Vicente. Esta cerimônia

ocorreu a noite, conforme os rituais realizados cotidianamente nesta casa de reza da aldeia.

A avaliação final que se faz desta pesquisa, embora apresente falhas, lacunas e, talvez,

até algumas divergências – naturais ao processo –, evidenciam aspectos positivos como a

contribuição direta para o grupo no sentido de registrar aspectos históricos e evidências da

aldeia, bem como o registro de discursos relacionados a políticas habitacionais empreendidas

por órgãos externos que resultaram nas obras arquitetônicas presentes no local.

Em determinados momentos, pensou-se muito mais na necessidade eminente perante o

grupo de registrar estas trajetórias e processos, com intuito de situar e diferenciar as formas

arquitetônicas presentes no local, do que propriamente no trabalho de produção científica. Isto

pela relevância do registro para as futuras gerações de Guarani, principalmente para que eles

tenham conhecimento do processo político que gerou estas obras; por que foram feitas, por

quem, quais os objetivos, quais as ações tomadas pelo grupo para incorporá-las ao seu

cotidiano.

Acredita-se que fomentar o conhecimento em relação a estes processos é algo

importante para esta coletividade étnica, tanto para os habitantes mais jovens quanto para as

futuras gerações que povoarão o Añetete e que farão uso destes espaços, ressignificando-os a

partir de suas práticas e valores.

Evidente que esta dissertação não encerra as pesquisas sobre esta temática. Pretende-

se, pelo contrário, que estimule outros trabalhos que tomem como objeto de estudo o Tekoha

Añetete, analisando seus costumes, práticas, valores, arquitetura, objetos. Enfim, espera-se

que inúmeras outras pesquisas aconteçam para que este e outros grupos indígenas sejam

conhecidos e aos poucos ocupem espaço na historiografia regional.

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ANEXOS

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ANEXO I

DOCUMENTAÇÃO DISPONIBILIZADA PELA COMPANHIA DE HABITAÇÃO DO

PARANÁ – COHAPAR

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ANEXO II

DOCUMENTAÇÃO DISPONIBILIZADA PELA ITAIPU BINACIONAL

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