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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE COMUNICAO
FERNANDA ALAMINO DO AMARAL
NARRATIVAS FICCIONAIS SERIADAS: UM ESTUDO SOBRE HARRY POTTER
Salvador
2005
2
FERNANDA ALAMINO DO AMARAL
NARRATIVAS FICCIONAIS SERIADAS: UM ESTUDO SOBRE HARRY POTTER
Monografia apresentada ao Curso de graduao em Comunicao com habilitao em Jornalismo, Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Bacharel em Comunicao. Orientadora: Prof. Dr. Maria Carmem Jacob de Souza
Salvador 2005
3
AGRADECIMENTOS
Agradeo as pessoas que se seguem, sem as quais este estudo no teria se concretizado.
professora orientadora Maria Carmem Jacob de Souza pelas indicaes bibliogrficas,
questes discutidas, ateno e dedicao dispensadas durante os encontros.
Aos amigos Patrcia Rosa, Brenno Barbosa e Ana Luz pelo incentivo e apoio fundamental na
anlise do objeto.
A Cristiano Canguu pelo apoio, troca de referncias e, principalmente, pacincia nos
momentos mais difceis.
Aos amigos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Educao Municipal (PRADEM),
que compreenderam a necessidade de isolamento durante a elaborao da monografia.
A Saara Brito e Renivaldo Ribeiro por me apresentarem Harry Potter.
4
[...] talvez se possa narrar, e fazer grandes narrativas, sem
fazer necessariamente o que a sensibilidade moderna
chama de obra de arte. (ECO, 1991, p.151)
5
RESUMO
Este estudo teve como objetivo analisar os aspectos que envolvem a construo
das narrativas ficcionais seriadas de Harry Potter. Nesse sentido, foram contempladas a
questo do pblico destinatrio, o gnero empregado, e os elementos acionados na narrativa:
construo de mundos ficcionais e de personagens. No desenvolvimento desse estudo,
utilizamos as contribuies de Tereza Colomer na caracterizao de literatura infantil; de
Umberto Eco, quanto aos estudos de narratologia e seriao; Tzevetan Todorov na definio
de gneros empregados; e Antnio Cndido e outros autores na construo de personagens.
Palavras-chave:, narrativas ficcionais, processos de seriao, literatura infanto-juvenil
6
SUMRIO
1. INTRODUO ................................................................................................................... 7
2. UM PANORAMA DAS NARRATIVAS LITERRIAS ............................................... 14
2.1 O ACESSO S HISTRIAS ................................................................................ 14
2.2 CRIANAS E JOVENS COMO PBLICO ........................................................ 16
2.3 O FENMENO HARRY POTTER ...................................................................... 19
3. ANLISE DE MUNDOS E PERSONAGENS EM HARRY POTTER ...................... 21
3.1 OS MUNDOS FICCIONAIS ................................................................................ 21
3.2 AS PERSONAGENS ............................................................................................ 25
4. OS ELEMENTOS NA NARRATIVA DE HARRY POTTER ..................................... 29
4.1 UM MOSAICO DE GNEROS ........................................................................... 29
4.2 A SERIAO COMO FORMA ........................................................................... 33
5. HARRY POTTER O HERI ....................................................................................... 39
6. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 43
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 46
7
INTRODUO
Narrar uma ao comum ao ser humano: contamos como foi nosso dia, como
enfrentamos determinados problemas, como foi aquele acontecimento especial. Falar sobre
nossas experincias uma forma de transmitir conhecimentos, preservar a cultura. E, nesse
processo, no so apenas nossas prticas que esto em jogo. Diversas histrias se cruzam, se
enovelam, conformando nossas percepes de mundo.
A metfora do enovelamento representada na mitologia grega pelo mito das
Parcas. Filhas de Zeus e Tmis, as Parcas eram trs irms de aspecto muito severo, que,
embora compartilhassem um nico olho, eram responsveis pelo destino de cada homem. A
mais nova, Cloto, tecia o fio da vida; Lquesis determinava o tamanho do fio, o modo como
seria enovelado, com que outros fios se cruzaria, onde estariam seus ns; e tropos, a mais
velha, responsabilizava-se pelo corte final do fio, extinguindo a vida desse ser. Deusas do
destino, fiavam as personalidades, as intrigas, os relacionamentos dos homens. Todos os fios
juntos davam forma Tapearia do Destino, a qual era guardada no fundo de uma caverna
protegida por essas deusas.
Senhores de suas prprias tapearias, cabe aos autores de narrativas exercerem as
funes das trs deusas quando criam seus mundos ficcionais. Personagens, lugares e intrigas
so por eles fiados, enovelados e cortados em momentos oportunos. E como cada autor tem
um modo de enovelar, de cruzar seus fios, proporcionando a cada tapearia cores e formas
diferentes. Ao contrrio das Parcas, que compartilhavam o nico olho disponvel, o autor, a
8
depender da importncia do trabalho, necessita ampliar a sua viso, reservando-a ora para o
pblico que pretende atingir, ora para os mercados que envolvem a obra, ora para o material
que escreve.
Para quem a histria se destina? De que esse leitor gosta? Para tecer a tapearia da
fico, o apreciador final tem de estar sempre em mente, atento, indicando os caminhos certos
ou menos nebulosos, ou ainda os mais confusos, se esta for a impresso pretendida. O
material produzido, seja um texto, um roteiro de cinema ou de televiso, pauta-se na tica do
apreciador, pois s poder ser avaliado se sua interpretao for possvel, se revelar seu
significado para um leitor habilitado. No se pode escrever uma histria para crianas, por
exemplo, sem considerar os gostos, os conhecimentos, o ritmo que elas apresentam.
Para Chartier (1994, p. 11), um texto s existe se houver um leitor para lhe dar
um significado, sendo que essa interpretao , at certo ponto, prevista pelo autor. Ao
elaborar os fios de sua trama, o autor se vale dos conhecimentos do que acredita constituir a
experincia de seus apreciadores. Tal experincia vai desde o comportamento diante do
suporte escolhido para a narrativa at as expectativas que a obra pode suscitar. Essas
informaes so adquiridas no relacionamento do apreciador com outras narrativas, outras
histrias, outros momentos de envolvimento com a fico. Assim, o leitor sabe que pode
esperar o suspense e o inesperado de uma narrativa que trate do gnero de terror; sabe que
pode aguardar encontros e desencontros dos personagens de um drama romntico; que
encontrar dezenas de pistas, algumas falsas e outras no, dos crimes ocorridos em narrativas
policiais; e que a ao encontrar os personagens das narrativas de aventura, tirando-os do
cotidiano e envolvendo-os em diversos acontecimentos, os quais se do em ritmo crescente,
at que esses personagens se encontrem com os grandes viles das histrias.
Essas expectativas, previses ou mesmo suposies quanto ao desenvolvimento e
desenlace das histrias, so denominadas de regras de compreenso, como define Eco (1994,
9
p.22). A forma como o texto se apresenta informa como o apreciador deve se comportar e
quais as habilidades necessrias. O fio narrativo traz consigo a histria abordada, assim como
as escolhas cabveis para o desenvolvimento da trama.
Eco e Chartier afirmam que o leitor, quando chega a um texto, traz consigo
experincias prvias, sendo muitos desses conhecimentos convocados no processo de leitura.
Seu papel fundamental, pois lhe cabe reconhecer e pr em movimento as normas que
acionam o imaginrio, identificar sinais, preencher lacunas. Ao criar um texto, o autor escolhe
determinados conhecimentos, formas de expresso, temas, enfim, as competncias que
imprimiro significado ao que foi idealizado. Nesse processo, o autor d forma ao que Eco
(1986, p.45) chama de leitor-modelo, ou seja, um leitor ideal, dotado das competncias que
o autor julga serem necessrias apreciao do material. O leitor-modelo se evidencia nas
narrativas sob a forma de estratgias textuais.
Tal hiptese responde, de forma satisfatria, algumas questes que envolvem a
relao entre autor, texto e leitor: como seria possvel a comunicao de um texto complexo
entre um autor e um conjunto de leitores desconhecidos e, por outro lado, o que permite
apontar leituras incompletas e errneas por parte de alguns apreciadores?
Mas, como Eco nos lembra, se o autor concebe um leitor-modelo, criando
estratgias textuais que sero empregadas na narrativa, o leitor emprico tambm capaz de
formular hipteses a respeito do autor quanto ao seu modo de elaborao da narrativa, aos
caminhos que pretende seguir no desenvolvimento de desenlace da histria, entre outras. So
essas hipteses que originam o autor-modelo. O autor-modelo est circunscrito ao que as
estratgias textuais apresentam, ao que o texto traz como informao, sendo
independentemente da vontade do autor emprico.
Contudo, descolar as informaes do autor-modelo da imagem do autor emprico
no se apresenta como uma tarefa fcil, pois as informaes sobre o segundo, divulgadas de
10
diversas maneiras e sobre diversos propsitos entre eles, sem dvidas, os interesses
publicitrios , influenciam na construo desse autor-emprico. Autor e leitor, uma vez
inseridos na tapearia ficcional, partilham das mesmas regras, das mesmas instrues e
esperanas. Enquanto o primeiro tece e enovela seus fios, o segundo acompanha tentando
prever o prximo n.
importante considerar que tambm a concepo de um leitor ideal se faz
presente sob a perspectiva do mercado, quando consideramos as informaes sobre as
preferncias de leitura, de linguagem, de consumo. Quanto mais esse leitor ideal se aproximar
do leitor emprico, mais bem aplicadas sero as intenes do autor, melhor ser a resposta do
pblico ao produto, mais direcionada ser sua divulgao e mais eficiente ser o julgamento
quanto qualidade da produo textual.
Julgar a qualidade de um produto significa pensar para quem ele escrito, quais
as suas intenes, o que ele deseja oferecer. Os textos destinados a um grande pblico
padronizado, a um apreciador que necessite de poucos conhecimentos para a compreenso do
texto so classificados como literatura de massa. Trata-se de narrativas de fcil acesso,
destinadas ao entretenimento popular e que, por isso, tm um grande apelo comercial, mas
que nem por isso deixar de oferecer certo prazer durante a leitura, deixam de oferecer uma
experincia, mesmo que seja a de entretenimento. No outro extremo, temos a literatura
erudita, a qual reservada a um pblico letrado, portador de conhecimentos menos acessveis.
Sua elaborao e apreciao se restringem a um universo mais segmentado, o que lhe garante
o status de arte. Na faixa intermediria entre esses dois extremos, encontramos muitas obras
denominadas pelo uso de atributos, adjetivos ou prefixos, que antecedem ou sucedem a
palavra literatura (paraliteratura, subliteratura, literatura de vanguarda, literatura de cordel...),
que funcionam como princpios de classificao. Sabe-se que h outras facetas e nuances de
tais classificaes. Contudo, para este trabalho, interessa apenas uma caracterstica dos textos:
11
o comprometimento com um tipo de pblico, o qual possui determinados interesses e certa
competncia enciclopdica (ECO, 1986, p.2), configurado pelo autor, na sua produo textual,
em um modelo de leitor.
Nessa pesquisa, voltaremos nossa ateno para a indstria do entretenimento, a
qual pretende cair no gosto do consumidor, de cobrir as suas necessidades, ou mesmo cri-las.
Uma vez definido o pblico crianas, adolescentes, adultos ou idosos , conhecidos seus
desejos e vontades, trabalha-se o modo como atingi-lo. A tapearia, antes escondida e
protegida pelas deusas, coloca-se vista por meio de outdoors e anncios comerciais, em
diversos veculos de comunicao. Observa-se, contudo, que alguns desses produtos
apresentam um maior grau de aceitao entre os apreciadores.
Podemos considerar como um produto bem sucedido da indstria cultural de
massa a srie inglesa Harry Potter (Rocco, 2000-????) de Joanne Kathleen Rowling. A
histria do garoto rfo, que descobre ser especial, destinado a devolver a paz ao mundo dos
bruxos e que carrega consigo a marca desse destino a cicatriz em forma de raio conquistou
o pblico de diversos pases, apresentando nmeros espantosos de venda e publicidade1. A
explicao para esse fenmeno literrio parece repousar em uma enorme e complexa
tapearia, em que muitos fios se entrelaam para a revitalizao de personagens e histrias
presentes nos clssicos contos de fadas, at o marketing empregado na indstria editorial,
cinematogrfica, de brinquedos...
A pesquisa que apresentamos elegeu como objeto de anlise um fio dessa
tapearia: os princpios para compreenso da construo da personagem principal. Nesse
sentido, procuramos compreender quais as estratgias textuais empregadas na formao da
personagem central, o modo como essas estratgias so acionadas na composio do heri em
uma narrativa infanto-juvenil que teve a capacidade de ampliar seu pblico apreciador.
1 Essas informaes esto detalhadas no captulo Um panorama das narrativas literrias, no sub-captulo O fenmeno Harry Potter.
12
A escolha da srie Harry Potter como corpus de anlise dessa pesquisa deve-se,
primeiramente, sua grande aceitao pelo pblico, fato que nos permite supor que as
estratgias textuais utilizadas apresentaram efeitos mais expressivos. Recorremos, assim, a
uma narrativa que se articula, com xito, com outros suportes (udio, audiovisual e jogos de
computador) e produtos (materiais escolares, bonecos, entre outros).
Essa discusso tambm se mostra pertinente num momento em que a mquina
mercante por trs da narrativa trabalha a pleno vapor, pois nos encontramos a menos de um
ms para o lanamento do sexto livro da srie e a cinco meses para a estria da adaptao do
quarto livro para o cinema2. Espera-se que, ao compreender os princpios que norteiam o
modo como o heri foi construdo poder-se- visualizar o elemento agregativo dos mercados a
ele associado.
Outro motivo deve ser considerado quanto escolha do objeto: sua estruturao
como material seriado. Esse formato assumido pela narrativa retoma a experincia que o leitor
infanto-juvenil traz do convvio com outros produtos como o cinema, a televiso, as histrias
em quadrinhos. Mais do que isso: o material seriado se apresenta como uma tendncia dos
atuais produtos destinados a essa faixa etria, manifestando-se como um mercado em
expanso3.
Para tanto, nosso corpus de anlise se constituir apenas da obra literria, do
material primrio que motivou as demais produes. O recorte escolhido engloba os trs
primeiros livros da srie Harry Potter e a pedra filosofal, Harry Potter e a cmara secreta e
Harry Potter e o prisioneiro de Askaban , os quais j foram adaptados e exibidos nos
cinemas e transformados em jogos para vdeo game e computadores.
2 Esses prazos tm como base a data de 1 de julho de 2005. 3 Atualmente, esto disponveis no mercado diversas sries destinadas ao pblico infanto-juvenil, como Artemis Fowl (Record, 2000-2003) de Eoin Colfer e Desventuras em Srie (Companhia das Letras, 2001-2004) de Lemony Snicket (pseudnimo de Daniel Handler). Outro fator em comum a conseqente adaptao para o cinema que esse tipo de obra tem apresentado.
13
Nesse caminho, propomos, primeiramente, uma caracterizao do objeto no seu
contexto de indstria de entretenimento, de produto de alta tiragem e grande pblico.
Apresentamos um panorama das narrativas literrias, marcando seu acesso s camadas
populares e o conseqente alcance do pblico infanto-juvenil. Em seguida, particularizaremos
o objeto escolhido, expondo o que Harry Potter representa, hoje, na indstria da cultura
miditica.
O captulo seguinte trata dos processos de construo do mundo ficcional, da
diferenciao entre as narrativas ficcionais e no-ficcionais, mundos possveis verossmeis e
inverossmeis e o modo como analisamos o mundo de aventuras de Harry Potter. Nesse
mesmo captulo, tambm expomos as estratgias de construo de personagens e o modo
como estas foram empregas na srie analisada.
Em seguida, expomos a caracterizao da narrativa de Harry Potter, momento em
que discutiremos o gnero literrio empregado sob a perspectiva de Todorov, e sua
estruturao como material seriado, juntamente com as estratgias narrativas empregadas
nesse intuito.
No captulo Harry Potter o heri, discutimos os tipos de heri que encontramos
nas diversas narrativas, seu processo de construo e o modo como aparecem na srie. As
concluses e os novos questionamentos levantados por essa pesquisa esto registrados em
Consideraes Finais.
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2. UM PANORAMA DAS NARRATIVAS LITERRIAS
2.1 O ACESSO S HISTORIAS
Na pesquisa desenvolvida, enquadramos a srie Harry Potter como um romance
na perspectiva do romance popular, j que a srie se coloca sob apreciao de forma
fragmentada, alm de articular caractersticas de muitos gneros. Para compreender a
classificao atribuda ao objeto, faz-se necessrio, primeiramente, explicar o que
compreendemos por romance.
O termo romance carrega diversas acepes populares referentes a fbulas e
livros. Romance, atualmente, pode nomear narrativas ficcionais extensas, editoradas e
impressas segundo certo padro; pode tambm se referir s histrias que tratam de situaes,
gneros variados e qualidades textuais divergentes, cujo conjunto abarca desde As Brumas de
Avalon (Imago, 1989) e Harry Potter at Viagem ao Centro da Terra (Melhoramentos, 2005)
e O Cdigo Da Vinci (Sextante, 2004).
Ainda tendo o conhecimento popular como base, podemos pensar em romance
como um gnero narrativo destinado ao lazer e entretenimento, presente em livros, rdio,
televiso ou cinema que, muitas vezes, apresenta uma carga emotiva exagerada, histrias de
mocinhos e mocinhas separados por grandes desastres, injustias, respeitosos viles e outras
15
agruras que somente o autor pode lhes reservar. Tal gnero o que se poderia chamar de
drama sentimental ou drama romntico.
Contudo, como explicam Roland Bourneuf e Ral Quellet (1976), durante a Idade
Mdia e at o sculo XVIII, a palavra romance teve seu significado definido em oposio
lngua erudita, o que lhe reservava um teor pejorativo. Romance, e mais tarde o verbo
romancear, era a designao utilizada para qualquer obra que no fosse escrita em latim e (ou)
tivesse carter ficcional, sem bases histricas.
A literatura, e no apenas o romance, tinha um carter elitista, por se destinar a
uma pequena parcela da populao alfabetizada, que dispunha de tempo para apreciar a obra
e dinheiro para custe-la , mas esse quadro comeou a sofrer alteraes entre o final do
sculo XVIII e o incio do sculo XIX, com a difuso dos ideais iluministas, a reforma
protestante, a inveno da imprensa e a constante necessidade de especializao da mo-de-
obra existente. O barateamento da produo de livros e o domnio da lngua escrita
favoreceram o acesso e a apropriao dos materiais literrios disponveis na poca.
Assim, a concepo de romance se alterou, ganhando status de literatura, ainda
que acompanhada pelo adjetivo popular. importante colocar que a expresso literatura
popular se refere expanso do pblico leitor, considerao de uma maior fatia da
populao, constituda de apreciadores em potencial. Esse novo modo de ver o romance
acompanhou a hierarquizao da literatura, com base numa dada qualidade de texto, de
tramas, de modo de produo que existe at hoje. No entanto, ainda que essa tenso influencie
os modos de produo e as estratgias de mercado empregadas, ela no ser privilegiada neste
trabalho, uma vez que nosso foco se volta para a anlise da personagem principal em uma
obra que, de fato, no considerada sofisticada, que no composta por textos rebuscados,
que no tem pretenso de se pr como arte, pois se apresenta como um produto massivo
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destinado a entreter um grande pblico, mas que, mesmo assim, no deixa de oferecer uma
experincia esttica, uma leitura prazerosa.
Com o aumento do pblico leitor, tivemos tambm uma expanso dos tipos de
textos, de obras, de interesses. E foram esses fatores que contriburam para uma intensa
segmentao da literatura de acordo com os interesses dos apreciadores. Entre esses textos, o
romance-folhetim se consagrou, no sculo XIX, como um material que divulgava diferentes
narrativas ficcionais, receitas e conselhos destinados, preferencialmente, s mulheres. Esses
materiais tambm foram denominados de romance popular, pois apresentavam uma narrativa
bastante elstica, que utilizava de forma peculiar os gneros ficcionais, articulando-os entre si.
Passamos, ento, a ter obras pensadas para o pblico feminino, para acadmicos, para tantos
outros setores e, mais tarde, para crianas.
2.2 CRIANAS E JOVENS COMO PBLICO
Qualquer pessoa que entre numa livraria reconhece, de imediato, o local reservado
s crianas. As obras destinadas a esse pblico costumam ser expostas em prateleiras no
muito altas, envoltas por imagens de personagens coloridos, capas interessantes e tantas
outras coisas capazes de estimular a curiosidade e o desejo de leitura.
A literatura infanto-juvenil se mostra como um mercado em expanso, buscando
cercar e se apresentar a seus consumidores. Para Ana Maria Machado, autora de histrias
infantis, o conceito literatura infantil uma estratgia de mercado. Sua opinio se baseia na
idia de que, se uma narrativa compreendida e aceita por uma criana, ela tambm pode
dialogar com um adulto.
Se bom, o adulto tem um prazer especial. A recproca pode no ser verdadeira no caso da criana. Ela pode no conseguir ler livro de adulto, ou por ter pginas demais ou por ter palavras difceis sobretudo as abstratas ou porque tem imagens e conceitos muito complexos, que a criana no
17
domina. Literatura infantil aquela de que o jovem se apropria. (MACHADO, 2000, p. 23)
Em ltima instncia, seria possvel considerar a chamada literatura infanto-juvenil
como uma literatura universal, capaz de abranger todos os grupos, por no conter elementos
que dificultem sua leitura. Alm disso, a literatura infanto-juvenil tem sua origem ligada s
narrativas voltadas para o pblico adulto.
O nascimento da literatura infanto-juvenil, no sculo XVIII, se deve, entre outros
fatores, s mudanas no conceito de infncia. Essa noo reconhecia e legitimava, como
explica Colomer (2003, p. 160), algumas necessidades infantis, acrescentando a idia de que
cabia aos adultos pais e professores principalmente a responsabilidade pela aprendizagem
das novas geraes. Os estudos da poca apontavam essa como a principal etapa para a
aprendizagem que a sociedade progressivamente industrializada necessitava.
As primeiras histrias dirigidas a crianas no eram feitas para elas, mas
adaptadas. O autor partia de uma obra j conhecida e filtrava seu contedo, de modo a torn-
la acessvel s competncias que supunha que as crianas possussem. A obra devia apresentar
contedo educativo: princpios morais, definies de papeis sociais e outros. Dessa forma, o
autor visava aceitao entre seus dois destinatrios: as crianas e os adultos por elas
responsveis.
[...] Sua destinao infncia, ou seja, a um setor social em fase de formao e aprendizagem, impe restries de dois tipos a estes textos: em primeiro lugar, a maneira como a obra apresenta, caracteriza e julga o mundo, j que se trata de oferecer aos leitores modelos de conduta e de interpretao social da realidade; e, em segundo lugar, na maneira como se configura a criana leitora implcita, j que se deve atender ao nvel de compreensibilidade dos textos, segundo a competncia literria que nela se pressupe. (COLOMER, 2003, p. 163).
A funo educativa era vista como a principal razo da existncia dessas
narrativas. O carter de entretenimento, na literatura infantil, no era considerado por autores,
professores ou pais que, em ltima instncia, decidiam o que era aceitvel ou no para seus
filhos. O embate entre funo educativa e de entretenimento s vai pender para a segunda
18
opo no sculo XX, quando autores e editoras passam a direcionar seus produtos no intuito
de atender s caractersticas e necessidades desse novo pblico.
importante considerar que, neste trabalho, a expresso literatura infanto-juvenil
no equivalente a um gnero literrio. Esse ponto de vista adotado, uma vez que a noo
de gnero infantil tende a se confundir com as classificaes editoriais, motivadas mais pelo
pblico que se pretende atingir do que pelas caractersticas textuais internas. Segundo Andr
Forastieri (2002, 5), a atual classificao brasileira agrupa desde os livros coloridos feitos
para bebs, at calhamaos de mais de 700 pginas; de clssicos como 1984 (Nacional, 2003)
e A revoluo dos bichos (Globo, 2001) de George Orwell aos clssicos da Disney e as obras
de Monteiro Lobato.
As histrias escritas para crianas e adolescentes, hoje, exibem situaes muito
semelhantes: em geral, apresentam protagonistas com a mesma faixa etria de seus leitores,
que saem do cotidiano para viver aventuras fantsticas, seja com bruxos, bandidos, ou piratas.
O enredo pode envolver uma viagem num foguete, uma fuga de barco, ou um passeio pela
floresta. Esses jovens apreciadores manifestam certos padres de comportamento e gosto.
Forastieri (2002, 6) lembra que eles tm outras necessidades, outros interesses, outro
humor, menos respeito pelo passado, muita curiosidade sobre o futuro, pouca pacincia com
regras que no criaram, imaginao frtil e muita pressa.
Esse pblico fruto de uma sociedade em que a maioria das pessoas
alfabetizada, familiarizada com a linguagem audiovisual, de onde podemos supor que tais
obras infanto-juvenis incorporaram recursos ou traos caractersticos desses meios. Assim,
essas publicaes oferecem uma narrativa rpida, com descries detalhadas dos ambientes e
das aes dos personagens. Trata-se de um pblico que tem acesso a uma grande variedade de
narrativas nacionais e internacionais, as quais discutem, de maneiras diversas, os valores, as
relaes sociais, a passagem da infncia para a adolescncia e dessa para a vida adulta.
19
2.3 O FENMENO HARRY POTTER
Entre as publicaes mais recentes destinadas a crianas e adolescentes que
tiveram grande aceitao junto ao pblico, as aventuras de Harry Potter, de J. K. Rowling
ocupam um lugar de destaque. Esse fenmeno da literatura infanto-juvenil teve incio em
1997, com a publicao do primeiro livro, Harry Potter e a pedra filosofal, na Inglaterra. No
Brasil, os trs primeiros livros da srie chegaram em abril de 2000.
s vsperas de completar dez anos dentro do mercado editorial, a srie Harry
Potter fez do livro infanto-juvenil um dos segmentos mais promissores, totalizando 300
milhes de exemplares vendidos em mais de 55 lnguas (DRIA, 2005, p.49). O sucesso da
srie contraria a tendncia das editoras, que oferecem uma maior variedade de exemplares,
limitando as tiragens. Mas todos os dados contabilizados pela obra so extraordinrios,
principalmente os nmeros de venda (em um nico dia, a Barnes & Noble, rede norte-
americana de livrarias, vendeu 896 mil cpias do livro, uma mdia de 80 por segundo) e os de
publicidade, os quais somam 140 milhes de dlares. O reflexo desse fenmeno tambm pode
ser conferido em outras indstrias que exploram a narrativa, como a cinematogrfica e a de
produtos diversos brinquedos, material escolar, roupas que carregam a marca...
O interesse que a srie provocou to grande, que todos os detalhes circundantes
narrativa so explorados em livros, sites e matrias jornalsticas: o contexto da sua
concepo; a famosa viagem de trem onde a autora pensou pela primeira vez na personagem,
na escola de bruxos; na diviso da narrativa em sete volumes. Mais que isso, a histria da
escritora pobre, desempregada, sem dinheiro para cuidar da filha, e que passava os dias
sentada em uma mesa de bar escrevendo ganhou o mundo nas pginas de livros, artigos de
jornais e entrevistas para a televiso.
Em quase uma dcada, mercado editorial, cinematogrfico e associados
auxiliaram na manuteno das expectativas construdas a cada livro, a cada filme, das formas
20
mais variadas. Boatos ou informaes que estrategicamente vazam sobre o prximo livro,
histrias de personagens secundrios que no couberam nas publicaes anteriores e que so
publicadas no site da autora, imagens dos sets de gravao, atores que iro interpretar
determinados personagens, as capas do prximo livro, todas essas aes impedem que o
garoto bruxo saia de cena, mesmo que o intervalo entre um livro e outro seja de dois anos.
Outro papel importante nesse sentido o desempenhado pelos fs. Pela internet
florescem as pginas que se dedicam a contar as novidades sobre a srie, as datas para os
lanamentos de livros e filmes, as interpretaes individuais de passagens da histria e suas
falhas. Eles alimentam suas expectativas e a de outros fs, especulando em fruns,
comunidades virtuais e encontros presenciais o destino de cada personagem, o desfecho que a
histria ter.
Essa mesma legio de fs tambm se vale do tecido narrativo criado seus
ambientes, personagens e tramas para inventar novas aventuras, completar lacunas da obra,
tentando adivinhar o que vem a seguir. Essas histrias fices de fs ou fan-fics expem
algumas possibilidades de narrativas que esse mundo ficcional e seus personagens carregam.
So esses os temas que sero explorados no captulo seguinte.
21
3. ANALISE DE MUNDOS E PERSONAGENS EM HARRY POTTER
3.1 OS MUNDOS FICCIONAIS
Compreender o ato de narrar como o de contar uma histria, um fato que ocorreu
em determinado lugar, com certos personagens, em uma dada poca, implica em reconhecer
como narrativa tanto a que trata dos acontecimentos reais quanto a que se refere s situaes
imaginadas, inventadas por algum.
As narrativas que tratam de acontecimentos do mundo real, ou seja, daquele
mundo que tomamos por referncia (ECO, 1986, p.111), so denominadas de narrativas no-
ficcionais. Como exemplo desses textos, podemos citar as reportagens de jornais e telejornais
ou os documentrios. Esses textos podem ser classificados como verdadeiros ou falsos:
podemos considerar que o contedo apresentado em determinada matria do caderno de
poltica falsa por apresentar dados inverdicos, ou ainda, que corresponde realidade, por ter
ouvido todas as partes e ter nos informado tudo que deveria.
Por outro lado, no julgamos se uma narrativa ficcional verdadeira ou falsa. As
narrativas ficcionais podem ser classificadas como verossmeis ou inverossmeis. A verdade,
dentro de um mundo criado, numa estrutura ficcional, s se valida se ir de acordo com as
regras desse mundo possvel (ECO, 1994, p. 93). Tais cursos possveis so previamente
estruturados pelas competncias evocadas pela narrativa.
22
Atribuir ao texto as potencialidades de uma obra ficcional ou no-ficcional uma
deciso que o leitor toma baseado, primeiramente, em dados extratextuais. A narrativa pode
estar em um jornal, um filme, uma novela, um livro ou qualquer outro suporte, mas a
experincia do apreciador diz que os contedos expostos em jornais tendem, em maior
nmero de ocasies, a se referir ao mundo real, enquanto que os outros citados tendem a se
referir a um mundo possvel. A presena de atores representando determinada pessoa tambm
influencia o julgamento do apreciador. Quando vemos a imagem do presidente no
acreditamos que ele seja um ator e tratamos o contedo anunciado como verdadeiro. Por outro
lado, se num filme nos informam que determinado ator interpreta o presidente atribumos ao
enunciado a verossimilhana que este solicita do apreciador.
Para essa deciso, tambm contribuem a discrepncia das informaes
apresentadas entre aquelas pertencentes ao mundo possvel em questo e as que se apresentam
como somatrio de nossas experincias e conhecimentos.
Dado que o texto pe em jogo alguns indivduos (pessoas, coisas, conceitos) dotados de algumas propriedades (entre as quais aquelas de realizar certas aes: e temos um indivduo que pratica aes tambm na expresso |hoje chove|), o leitor levado a ativar ndices referenciais. Mas, enquanto o texto no for melhor atualizado, deixa-se em suspenso uma deciso definitiva sobre a pertinncia destes indivduos a um mundo definido, real ou possvel. Assim o leitor, como primeiro movimento para poder aplicar a informao que lhe foi fornecida pelos cdigos e subcdigos, assume transitoriamente uma identidade entre o mundo a que o enunciado se refere e o mundo da prpria experincia, tal qual refletido pelo dicionrio de base.
Se, a medida que a atualizao procede, se descobrem discrepncias entre esse mundo da experincia e aquele do enunciado, ento o leitor realizar operaes extencionais mais complexas. (ECO, 1986, p. 59)
Tais discrepncias podem se apresentar de modo sutil, construindo, assim, um
mundo ficcional possvel muito prximo ao que tomamos como real. Nesse tipo de narrativa,
as disparidades costumam estar relacionadas aos personagens envolvidos e as aes que
praticam. Cidades dos Homens (S.I., 2003-2005) um seriado que constri, junto ao pblico,
esse mundo possvel prximo: a histria se passa num Rio de Janeiro muito semelhante
23
quele que caracterizamos como pertencente ao mundo real, tambm possui morros, praias,
traficantes, desigualdade social e outras tantas coisas que possibilitam o reconhecimento.
Contudo, o apreciador que tenha um mnimo de experincia na compreenso de seriados sabe
que no se trata de um caso especfico, registrado do mesmo modo e na mesma medida que os
ocorridos na cidade real. Sabemos que os personagens apresentados so construdos com
extrema proximidade aos que encontramos no nosso mundo de base e que essas aes se
desenvolvem dentro de um mundo possvel.
Por outro lado, h mundos possveis cujas dissonncias so muito maiores, em
que a diferenciao entre o mundo real e o possvel extremamente marcada. Embarcamos
para outras terras, outras cidades, muitas vezes at outros planetas e galxias, mas, mesmos
nesses casos, ainda temos o mundo real como referncia.
[...] temos de admitir que, para nos impressionar, nos perturbar, nos assustar ou nos comover at com o mais impossvel dos mundos, contamos com os nossos conhecimentos do mundo real. Em outras palavras, precisamos adotar o mundo real como pano de fundo. (ECO, 1994, p. 89)
As narrativas maravilhosas costumam construir, junto ao leitor, essas grandes
discrepncias entre mundo real e possvel. o caso, por exemplo, de O Senhor dos Anis
(Martins Fontes, 2002). Tolkien, em sua obra, constri um novo mundo, no qual homens
convivem com hobits, orcs, elfos, anes e trolls. Nessas interaes, conhecimentos como o dia
e a noite, a lei da gravidade ou ainda os sentimentos como amor, amizade, coragem e medo
so os mesmos que os aplicados ao mundo real. A realidade ficcional, nesse tipo de obra,
criou uma relao de dependncia com nosso mundo de base.
Harry Potter, por sua vez, nos apresenta um mundo possvel hbrido. Nele, temos
uma parte da narrativa que se constri de modo verossmil Londres do nosso mundo, uma
cidade cheia de carros e pedestre, com casas, prdios comerciais, zoolgico, metr... Contudo,
para os que possuem dons mgicos, essa apenas uma parte da cidade. A outra parte pode
estar por trs de um muro de tijolos ou de uma lareira.
24
O mundo em Harry Potter se baseia no conhecimento comum sobre bruxos
difundido nos contos de fadas. Nesse mundo, os bruxos preparam poes em caldeires, voam
em vassouras, vestem roupas negras e utilizam varinhas mgicas. A bruxaria retratada no se
remete a uma religio ou seita, mas a um modo de vida possvel aos eleitos, aos que possuem
poderes mgicos. Esse modo de vida traz marcas culturais datadas entre os sculos XVIII e
XIX, quando ainda se utilizava penas e tinteiros para escrever e candelabros para iluminar os
ambientes. A modernidade parece estar reservada ao mundo dos no-mgicos (tambm
conhecidos na srie como trouxas).
O mundo que nos exposto constantemente comparado ao mundo real que
conhecemos. No apenas o leitor faz essa comparao, mas o prprio heri traz para a
narrativa essas impresses. J no primeiro livro, a sensao de estranheza diante dessa nova
realidade se apresenta sob diversas formas, como deslumbramento, medo e incmodo.
Grande parte da histria se passa dentro dos terrenos da escola. Esta se mostra
como um local fascinante, a primeira vista, mas tambm ideal para o desenvolvimento do
conflito, para os problemas que, sabemos, iro aparecer.
Havia cento e quarenta e duas escadas em Hogwarts: largas e imponentes; estreitas e precrias; umas que levavam a um lugar diferente s sextas-feiras; outras com um degrau no meio que desaparecia e a pessoa tinha que se lembrar de saltar por cima. Alm disso, haviam portas que no abriam a no ser que a pessoa pedisse por favor, ou fizesse ccegas nelas no lugar certo, e portas que no eram bem portas, mas paredes slidas que fingiam ser portas. Era tambm muito difcil lembrar onde ficavam as coisas, porque tudo parecia mudar freqentemente de lugar. As pessoas nos retratos saiam para se visitar e Harry tinha certeza de que os brases andavam. (ROWLING, 2000a, p. 116)
Ao avanarmos pelos livros que compem a srie, percebemos que alm dessas
discordncias serem expressas na narrativa sob a forma de hesitao em Harry, que no sabe
como se portar diante da situao, temos tambm o uso de dilogo que comporta a surpresa do
heri, diante dos estranhos eventos que presencia, e de outros personagens, que conferem a
naturalidade do fato para aquele mundo.
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Ento este Dumbledore! exclamou Harry.
No me diga que voc nunca ouviu falar de Dumbledore! [...]
Harry virou de novo o carto e viu, para seu espanto, que o rosto de Dumbledore havia desaparecido.
Ele desapareceu!
Ora, voc no pode esperar que ele fique a o dia todo. Depois ele volta. [...]
Mas, sabe, no mundo dos trouxas, as pessoas ficam paradas nas fotos.
Ficam? O que, eles no se mexem? Rony parecia surpreso. Que coisa esquisita! (p. 92)
A narrativa explora o quo estranho se mostram ambos os mundos, real e
ficcional, a depender de qual deles tomamos por base. Nessas comparaes, Rowling d
preferncia s conversas entre Harry e Rony, que nasceu e viveu no mundo dos bruxos e que,
por conseqncia, no conhece nada do mundo no-mgico.
Ao demarcar as diferenas e possibilidades que essa novo mundo oferece,
Rowling tambm define a condio de existncia tanto do heri quanto dos demais
personagens: Harry e os outros vivem enquanto esse mundo possvel permitir aes e estas,
por sua vez, suscitarem no leitor o prazer e (ou) curiosidade pela leitura. A entrada para o
mundo mgico, repleto de coisas a conhecer e a enfrentar, abre tambm novos tipos de
peripcias e conflitos que sero vivenciados por essas personagens, os quais sero analisados
a seguir.
3.2 AS PERSONAGENS
As personagens de qualquer narrativa so elementos que s se validam se
estiverem associados a seus mundos ficcionais. Esta relao se constitui, em certa medida,
num ciclo vicioso: as personagens, para existir, necessitam de ao, precisam vivenciar
conflitos que as faam crer nesses mundos possveis; tais mundos, no entanto, no podem se
constituir como possveis a menos que apresentem s personagens estruturas que as faam
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crer em suas existncias, que s faam explor-los, colocando em movimento todas as intrigas
elaboradas.
Segundo os estudos de Forster (citado por CANDIDO, 1968, p.62) as personagens
de uma narrativa podem ser classificadas em dois tipos: esfricas ou planas. As primeiras so
aquelas cuja organizao traz maior complexidade e que, por isso, so capazes de surpreender
o leitor. Carregam em si a imprevisibilidade da vida. As personagens planas, por sua vez, so
constitudas em torno de uma nica idia ou qualidade e, assim, so facilmente lembradas e
reconhecidas pelo leitor. importante observar que no necessria a presena de ambos os
tipos de personagens. As narrativas podem ser desenvolvidas utilizando personagens esfricas
e planas concomitantemente ou apenas de um tipo.
As narrativas infanto-juvenis costumam ser elaboradas somente com a utilizao
de personagens planas: personagens bondosas tm suas caractersticas apresentadas e
mantidas durante todos os eventos, assim como as maldosas. O leitor no se surpreende, na
evoluo da narrativa, quanto s atitudes que as personagens tomaro. O inesperado se reserva
ao modo como os problemas aparecero e sero solucionados.
A caracterizao das personagens planas pode ser apresentada tanto pelos traos
fsicos que possuem, quanto pelo modo como pensam.
[...] as personagens, ao falarem [...], revelam-se de um modo bem mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram disfarar a sua opinio verdadeira. [...] Esta fraqueza quase total da fala e essa transparncia do prprio disfarce so ndices evidentes da oniscincia ficcional. (ROSENFELD, 1968, p 29)
O apreciador sabe o que esperar de cada personagem, sabe porque a personagem
lhe foi apresentada com esse propsito. Essas personagens so constitudas de modo a
manterem-se coerentes por toda a narrativa, mesmo que esta seja concebida de modo seriado.
fundamental que essas atitudes sejam preservadas, pois o apreciador precisa ter a certeza
dos papis de cada personagem para retomar a histria na publicao seguinte.
27
Alm do modo como agem, a caracterizao de personagens se encontra envolta
em uma rede de valores de ordem moral, religiosa e poltico-social, que guiaro as atitudes
desempenhadas na narrativa, garantindo a coerncia interna dessas relaes. Na srie
analisada, Voldemort o vilo da histria porque um assassino, porque despreza a vida de
todos aqueles que no so seus aliados. Seu modo de agir e pensar so os mesmos do incio ao
fim do livro.
A apresentao dessas informaes ao leitor tambm pode se dar independente de
uma cena, uma ao. A personagem pode ser marcada pelos valores que nortearo seu modo
de agir desde as caractersticas fsicas que a comporo (como comentamos anteriormente), at
pelo nome que receber. Draco Malfoy (um dos desafetos do heri), por exemplo, foi batizado
por Rowling com um sobrenome que em francs significa M-f. Em sua primeira apario na
srie, a personagem descrita de modo a gerar antipatia junto ao leitor.
No fundo da loja, um garoto de rosto plido e pontudo estava de p em cima de um banquinho [...]
Tinha uma voz de tdio, arrastada. (ROWLING, 2000a, p.70)
medida que acompanhamos as publicaes da srie, ficamos sabendo de
informaes, obtidas pelos dilogos e atitudes da personagem, que reafirmam seu modo de
agir: preconceituoso, egosta, vingativo e encrenqueiro caractersticas compartilhadas por
seus amigos da escola.
Observa-se que o comportamento das personagens da srie Harry Potter
marcadamente maniquesta. Temos personagens caracterizadas pela vilania, mas tambm pela
bondade. Estas personagens, por sua vez, apresentam traos individuais que auxiliam a
jornada do heri, complementando suas habilidades. Como exemplo, podemos citar a
inteligncia de Hermione, a presteza de Rony ou ainda os conhecimentos de Dumbledore, que
so convocados a cada problema que parece superar as capacidades de Harry. Contudo, sejam
28
viles ou amigos, estes personagens so empregados de modo a favorecer o reconhecimento,
a construo e a afirmao do heri.
A narrativa, ao apresentar o modo de agir de cada personagem, fornece tambm
focos possveis de intrigas, os conflitos potencialmente capazes de surgir. Esse mesmo
processo contribui para gerar e conservar a expectativa, no apreciador, quanto ao
desenvolvimento da trama. Tal gerao de expectativas est ancorada no prprio tecido
narrativo: como os autores de sries de mistrio j sabem h tempo considervel, a
administrao de informaes dadas ao espectador, a distribuio de aes dos personagens e,
em especial, a diviso da obra em episdios delimitados em momentos-chave contribuem para
a gerao de curiosidade do espectador, encorajando-o a voltar s obras em busca de pistas do
desenrolar da histria, ou de detalhes que perderam nos primeiros textos e que poderiam ter
explicado um acontecimento que no puderam prever anteriormente.
So esses pontos que sero apresentados no captulo seguinte.
29
4. OS ELEMENTOS NA NARRATIVA DE HARRY POTTER
4.1 UM MOSAICO DE GNEROS
Como afirmamos anteriormente, a srie Harry Potter tem, entre os fatores que
compem seu quadro de sucesso, a capacidade da narrativa de gerar e manter expectativas
entre seu pblico. Essas expectativas se refletem sob diversas formas: notcias constantes
sobre a autora, sobre os atores das adaptaes flmicas, sobre os livros... Mas importante
considerar tambm as discusses travadas em salas de bate-papo, fruns, comunidades
virtuais, encontros presenciais e as narrativas ficcionais escritas por fs, as quais esto
condicionadas s propriedades que o gnero narrativo empregado aciona.
Ao longo da histria dos estudos sobre narrativas, diversos autores buscaram uma
definio para o termo gnero. Entre esses, destacaram-se os estudos de Tzvetan Todorov,
cuja noo de gnero consiste em uma seleo de propriedades discursivas, as quais tendem a
ser codificadas e solicitadas obrigatoriamente, ou seja,
Como todos sabem, toda classe de objetos pode ser convertida numa srie de propriedades, graas passagem da extenso compreenso. [...] Numa sociedade, institucionaliza-se a recorrncia de certas propriedades discursivas, e os textos individuais so produzidos e percebidos em relao norma que esta codificao constitui. Um gnero, literrio ou no, nada mais do que essa codificao de propriedades discursivas. (TODOROV, 1978, p.48).
Todorov entende por propriedades discursivas qualquer atributo que possibilite a
diferenciao entre os gneros. Essa variao pode se dar a partir de caractersticas fonticas,
30
como as empregadas nos sonetos, que, assim, diferenciam-se das baladas; ou caractersticas
temticas, as quais se manifestam nas intrigas ou motivaes a que esto sujeitos os
personagens a partir do gnero escolhido. Para o autor, essa oposio funciona num sistema,
como um modo de escritura e um horizonte de expectativas.
Estas so, com efeito, duas vertentes da existncia dos gneros [...] Por um lado os autores escrevem em funo do (o que no quer dizer de acordo com o) sistema genrico existente, e escrevem aquilo que eles podem testemunhar no texto, fora dele ou mesmo, de certa maneira, entre os dois [...] Por outro lado, os leitores lem em funo do sistema genrico, que conhecem em funo da crtica da escola, do sistema de difuso do livro, ou simplesmente por ouvir dizer; no , no entanto, necessrio que estejam conscientes desse sistema. (TODOROV, 1978, p. 52)
Nesse sentido, Todorov apresenta o gnero como um elemento de conexo e
mediao entre autor, texto e leitor, em constante transformao. Tais propriedades
discursivas que compem um gnero podem ter diversas naturezas, receber influncias ou
mesmo influenciar outros tipos de gnero, incorporando as transformaes de cada poca, o
que torna difcil uma definio restrita do termo.
Em seus estudos, Todorov retoma a definio de Lessing, que define os gneros
opondo suas caractersticas essenciais. Por essa concepo, a diferena entre o gnero
fantstico, o estranho e o maravilhoso, por exemplo, se d pelo comportamento oposto
esperado para o leitor durante a apreciao de tais obras, ainda que elas explorem um mesmo
ponto, o sobrenatural (Todorov, 1960, p. 147).
A narrativa fantstica coloca o leitor em permanente estado de dvida ou
hesitao quanto origem do acontecimento. Um bom exemplo desse gnero so os casos
enfrentados pelos agentes Fox Mulder e Dana Scully no seriado Arquivo X (Fox, 1993-2002).
A explicao para os eventos apresentados pode estar tanto na existncia de seres de outros
planetas como em fenmenos paranormais, ou mesmo nos avanos cientficos.
Por sua vez, as narrativas que exploram o sobrenatural, dentro da perspectiva do
estranho, desmistificam, ao final da obra, o fenmeno abordado, refutando qualquer
31
explicao extraordinria. Esse , por exemplo, o gnero empregado no desenho animado
Scooby Doo (Hanna-Barbera Cartoons Inc., 1969-2004). Embora os inimigos sejam
apresentados, primeira vista, como monstros, fantasmas ou bruxos, personagens e pblico
descobrem, ao final do episdio, que essas criaturas assustadoras no passavam de pessoas
fantasiadas, que se valiam do medo de suas vtimas para conseguir o que queriam.
J o leitor de narrativas maravilhosas assimila aquele mundo ficcional como uma
realidade possvel. Ele no hesita quanto origem dos acontecimentos: aceita-os.
No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais no provocam qualquer reao particular nem nas personagens nem no leitor implcito. No uma atitude para com o acontecimento contado que caracteriza o maravilhoso, mas a prpria natureza desses acontecimentos. (TODOROV, 1960, p.160)
Podemos, portanto, caracterizar a srie Harry Potter dentro do gnero
maravilhoso, pois nela aceitamos que certas capacidades e acontecimentos so possveis.
Acreditamos, nessa obra, que humanos possam voar sobre vassouras, que possam se
transformar em diferentes animais, que as imagens em fotografias se mexam e que as pessoas
retratadas em quadros possam sair para passear entre outras molduras, conversar entre si e at
mesmo dar conselhos quanto situao narrada.
Podemos, assim, uma vez concebido o gnero na perspectiva de Todorov uma
estrutura aberta, cujas fronteiras com os demais gneros podem ser borradas, deixando-os
fluir pensar na srie Harry Potter como um mosaico de gneros. Se o maravilhoso nos
ambienta como mundo ficcional, podemos dizer que o gnero de aventura se constitui no
ritmo, na motivao das personagens.
A narrativa de aventura, segundo Tadi (citado por Borelli, 1996, p. 189), deve
trazer tona os sentimentos humanos elementares, como medo, angstia, coragem, morte...
A aventura a irrupo do acaso, ou do destino, na vida cotidiana, nela introduzindo uma reviravolta que torna a morte possvel, provvel, presente at o desenlace, em que vencida quando no vence. [...] a aventura o dilogo entre a morte e a liberdade. (TADI, 1982, p. 5 citado por BORELLI, 1996, p. 190)
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Enquadrando essa definio de aventura noo de gnero de Todorov, ou seja,
por oposio a outra estrutura, podemos compar-la tragdia clssica de Aristteles na
Potica. Na tragdia, o protagonista se coloca diante de uma situao grave, que o leve do
fortnio ao infortnio, ou vice-versa (ARISTTELES, 1450b 1451a). Essa mudana de um
para outro o que determina a durao da obra. Considerando-se que o objetivo de tal gnero
seja provocar os sentimentos de terror e compaixo (1452b 1453a) e que a boa tragdia os
provoque atravs da disposio dos acontecimentos na narrativa (1453a 1454a), conclui-se,
aqui, que essa mudana grave seja uma situao-limite, cujas conseqncias sejam capazes de
gerar no apreciador os sentimentos prprios do gnero.
Enquanto na tragdia a durao da narrativa d-se por uma virada entre fortnio e
o infortnio, na aventura h muitas possibilidades de mudanas, ora concretizadas, ora no. A
personagem principal sofre reveses, assiste morte ou desgraa daqueles que fazem parte da
sua rede de relaes, mantendo o leitor em dvida quanto ao seu futuro. No gnero de
aventura, sinais de um fim terrvel ou desejvel podem estar presentes para gerar expectativa e
tenso no apreciador, porm no so inevitveis. Podem se concretizar ou no, e a
manuteno do apreciador nesse estado um fator importante.
A narrativa em Harry Potter nos apresenta os temores da personagem principal
desde o incio. Ao apresentar o heri, Rowling (2000a) procurou frisar o que o ingresso nessa
aventura oferecia personagem: ser uma pessoa famosa, respeitada; ter a possibilidade de
fazer amizades; de descobrir a sua verdadeira histria. E so esses mesmos ganhos que do
base a seus receios: ser expulso de Hogwarts, que se torna sua verdadeira casa; perder as
amizades que conquistou, as quais so encaradas como a nova famlia do heri; ser morto
pelos inimigos que descobre ter.
Os acontecimentos derivados desses sentimentos da personagem principal esto
por toda a obra, repetindo-se de diversas formas, contados de diferentes maneiras. O garoto
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bruxo apresentado, mas tambm nos apresenta a um novo mundo que se abre em potncias e
desafios que se apresentam de forma fragmentada.
4.2 A SERIAO COMO FORMA
difcil acreditar que algum nunca tenha assistido, ouvido ou lido uma histria
fragmentada, que nunca tenha se tornado refm de determinado horrio da televiso ou
mesmo de uma banca de jornal. Quadrinhos, novelas, livros de bolso, seriados em vdeo,
aventuras seriadas em livros... So diversas as histrias e suportes que exibem a narrativa de
modo seriado.
Esse emaranhado de modos de contar a narrativa de forma seriada, como
dissemos anteriormente, j estava presente no romance-folhetim, ainda no sculo XIX.
Tratava-se de uma narrativa de entretenimento, qual, primeiramente, coube a funo de
ocupar os rodaps dos jornais, mas que logo se mostrou como o espao da novidade, da
variedade, da literatura voltada ao grande pblico. A diversidade de gneros contribuiu para o
atendimento dos variados gostos do pblico consumidor, fazendo com que essas narrativas
que tratavam de historias policiais, de horror, sentimentais e outras passassem a ter
chamadas nas capas dos jornais, uma vez que influenciavam as vendas.
Tais narrativas, a partir do sucesso de pblico e venda que apresentaram,
migraram para outros suportes, assumindo diferentes formatos, como novelas, radionovelas,
seriados para a televiso, minissries, revistas em quadrinhos, livros... Esses suportes, apesar
das diferenas que constituem seu modo de feitura, apresentam uma caracterstica comum:
uma estrutura unitria compreensvel, que pode ser representada por um episdio
(denominao mais empregada em materiais de udio ou audiovisuais) ou uma edio ou
volume (denominao mais empregada em revistas ou livros), mas essa estrutura unitria deve
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se remeter a uma estrutura maior, trama principal, intriga fundamental que se constitui
como motivao para as demais.
Episdios ou volumes, apesar de se anunciarem como o desenvolvimento de uma
ao posterior, uma nova aventura, um novo fato, trazem em si uma estrutura comum, um
padro de acontecimentos, uma rotina de aes que contribuem para a construo das
expectativas do pblico. No se trata de um refazer montono (ECO, 1991, 122), mas repetir
a mesma coisa, de modo a parecer novidade. Esse modo de contar de novo dividido por Eco
em cinco categorias: a retomada, o decalque, a saga, o dialogismo intertextual e a srie.
A retomada se constitui, para Eco, na continuao de uma narrativa que, a
princpio, no fora pensada de modo fragmentado. Essa estratgia de continuao se d por
decises comerciais, sendo ocasional a qualidade de um ser superior a do outro (p. 123). So
exemplos do autor: Star Wars (20th Century Fox, 1977, 1980 e 1983) e Super-homem
(Warner Brothers, 1978).
As narrativas pensadas na perspectiva do decalque consistem numa reformulao
de uma histria de sucesso, sendo que essa nova formulao pode ou no ser informada ao
apreciador. Nos casos em que informada, essa narrativa chamada de remake (p.123).
Como exemplos dessa categoria, podemos citar Lois e Clark: as novas aventuras do
Superman (Warner Brothers, 1993-1997) e Smallville (Warner Brothers, 2001-????),
narrativas que revivem a histria da personagem criada por Jerry Sigel e Joe Suster,
contextualizada, contudo, para os anos noventa.
A saga se constitui como uma seqncia de acontecimentos, cuja ligao se d
pela genealogia da personagem. Acompanhamos uma personagem desde seu nascimento, at
a morte, depois seus filhos e netos, em uma seqncia que pode nunca chegar a um fim (p.
125). Essa a estrutura apresentada no anim Dragon Ball (Toei Animation, 1986), no qual
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acompanhamos a vida do personagem Goku, depois a de seus filhos Gohan e Goten e, mais
tarde, de sua neta Pan.
Por dialogismo intertextual Eco compreende a citao de um texto, uma cena, um
modo de narrar que seja especfico de uma obra j conhecida. Esse tipo de repetio se
constitui, muitas vezes, sobre a forma de pardia, homenagem ou mesmo de jogo irnico (p.
125). Tal tipo de aluso, porm, s funciona se o apreciador compartilhar do conhecimento
solicitado pelo autor, se conhecer os lugares originais (p. 126). Eco exemplifica essa
categoria com o filme Bananas (S.I., 1971), de Woody Allen, onde encontramos uma citao
da cena da escadaria de Odessa, presente originalmente em outro filme: O Encouraado
Potemkin (S.I., 1925), de Eiseinstein.
A srie, por sua vez, no pode ser pensada como um procedimento estilstico, mas
como uma estrutura narrativa, um modo de contar histrias que prima pela repetio de um
ncleo de personagens e situaes, mas que, ainda assim, confere ao apreciador uma sensao
de novidade e de expectativa.
Temos uma situao fixa e um certo nmero de personagens principais da mesma forma fixos, em torno dos quais giram personagens secundrios que mudam, exatamente para dar a impresso de que a histria seguinte diferente da histria anterior. [...].
A srie consola o leitor porque premia a sua capacidade de prever; ele fica feliz porque se descobre capaz de adivinhar o que acontecer, e porque saboreia o retorno ao esperado. (ECO, 1991, p. 123 e 124)
A srie Harry Potter tambm apresentar caractersticas presentes na saga, uma vez
que acompanhamos o crescimento do jovem bruxo durante sua luta contra um vilo
responsvel pela morte de seus pais. O leitor acompanha esse crescimento, livro a livro,
dentro de uma estrutura de acontecimento que se repete constantemente. Essa estrutura pode
ser sintetizada da seguinte forma:
1) Harry tirado de seu cotidiano por algum fato estranho.
2) Esse fato informa que a vida de Harry est em perigo.
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3) No caminho ou na chegada Hogwarts, Harry conhece novos personagens que faro parte
do problema apresentado ou da sua soluo.
4) Vrios eventos confirmam o fato de que a vida de Harry est em perigo e que o problema
apresentado se remete, de alguma forma, ao grande vilo da srie: Voldemort.
5) Harry e seus amigos fixos (com ou sem as personagens agregadas pelo episdio) vo
combater o problema apresentado.
6) Os companheiros de Harry vo ficando para trs, como conseqncia das provas de
resistncia e coragem que encontram para resolver o problema.
7) Harry se v sozinho diante do problema e o derrota. Essa vitria se constitui como mais um
atraso nos planos de Voldemort e uma reafirmao da fora e poder do heri.
A estrutura de seriao da narrativa de Harry Potter j pensada de modo a
manter as expectativas de seu pblico, mesmo diante do grande intervalo de tempo que
decorre entre uma publicao e outra. O desfecho de um livro, ao retardar o ataque do vilo,
informa que uma nova investida vir, que novos acontecimentos desviaro Harry do cotidiano
e que novos personagens ajudaro ou prejudicaro o heri nos prximos eventos.
Essa expectativa tambm est presente entre os captulos que constituem o livro,
mantendo a ateno do leitor para as muitas possibilidades de mudanas que a histria
apresenta. Na narrativa, ficamos sabendo que o hipogrifo criado por Hagrid pode ou no ser
condenado morte (Rowling, 2000c, p. 179), e isso constantemente reiterado ao leitor, que
s saber o desenlace desse evento avanando entre os muitos captulos da obra.
A estrutura seriada tambm pensada de modo a relembrar passagens importantes
da narrativa para o leitor que no leu ou no assistiu aos acontecimentos anteriores ou aos
apreciadores mais distrados. Essa estratgia auxilia o apreciador a compreender os eventos
seguintes mesmo que no tenha seguido a seqncia de publicao das obras, mas tambm faz
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com que ele mantenha aquele fato sempre em mente, conferindo importncia a um dado que
poderia passar despercebido.
Essa estratgia encontra-se presente em vrios pontos dos livros analisados. Em
Harry Potter e a cmara secreta, Hermione, Rony e Harry comeam a investigar a causa dos
estranhos acontecimentos em Hogwarts. Esse fato parece estar ligado a uma antiga lenda da
escola, que fala sobre a existncia de uma cmara secreta, na qual se esconderia um monstro.
Mas, a certa altura dos eventos, Harry descobre, por meio do elfo domstico Dobby, que a
cmara j fora aberta antes:
[...]E agora, em Hogwarts, coisas terrveis vo acontecer, talvez j estejam acontecendo, e Dobby no pode deixar Harry Potter ficar aqui, agora que a histria vai se repetir, agora que a Cmara Secreta foi reaberta... (ROWLING, 2000b, 154)
Essa descoberta se d durante uma conversa entre o heri e Dobby. Contudo, se o
leitor distraidamente passou pela informao, no dando a devida ateno, ela recuperada
mais a frente, em outro dilogo, no qual Harry Potter apenas escuta ao fundo da sala. Esse
dilogo se passa entre os professores Alvo Dumbledore e Minerva McGonagall, aps mais um
ataque aos alunos de Hogwarts.
O que significa isso, Alvo? perguntou pressurosa a Prof McGonagall.
Significa que de fato a Cmara Secreta foi reaberta. (p. 156)
Essa mesma informao pode ser reiterada de outras formas. No nosso exemplo,
uma das formas escolhidas pela autora para repetir o fato de a Cmara Secreta j ter sido
aberta o dilogo com outros personagens no caso, Hermione e Rony, que no estavam nas
cenas anteriores.
Mas h outra coisa disse Harry, observando Hermione picar feixes de sanguinrias e jog-los na poo. Dobby veio me visitar no meio da noite.
Rony e Hermione ergueram a cabea, espantados. Harry contou tudo que Dobby dissera ou deixara de contar a ele. Os dois escutaram boquiabertos.
A Cmara Secreta j foi aberta antes? exclamou Hermione. p. 158)
38
Outra forma se realiza pelo acrscimo de uma nova informao ao fato reiterado,
tambm durante um dilogo. Dessa vez, a conversa ocorre entre Draco e Harry, que se
encontra disfarado de Goyle, amigo de Draco.
Voc deve ter uma idia de quem est por trs disso tudo...
Voc sabe que no tenho, Goyle. Quantas vezes preciso lhe dizer isso? retrucou Draco com maus modos. E meu pai no quer me contar nada sobre a ltima vez que a Cmara foi aberta, tampouco. claro, foi h cinqenta anos, antes do tempo dele, mas ele sabe tudo que aconteceu e diz que o caso foi abafado e que vai levantar suspeitas se eu souber de muita coisa. Mas uma coisa eu sei, a ltima vez que a Cmara Secreta foi aberta, uma sangue-ruim morreu... (p. 191)
Esse recurso de repetir informaes, recuperando dados e (ou) atribuindo-lhes
importncia, vital para a compreenso dos eventos seguinte, para a conduo da narrativa.
Por isso mesmo, a autora o utiliza ao incio de cada livro da srie, reapresentando informaes
importantes tratadas nos livros anteriores dando nfase, principalmente, quelas presentes
no primeiro livro aos novos leitores, ou mesmo relembrando esses acontecimentos aos
leitores assduos.
importante lembrar, porm, que a estrutura de seriao, sintetizada, que
apresentamos para a narrativa de Harry Potter no atende perfeitamente ao primeiro livro da
srie: Harry Potter e a Pedra Filosofal. Uma provvel justificativa para isso o fato de o
primeiro livro dedicar os eventos relatados para: 1) expor uma nova realidade, uma nova
ordenao de mundo, que desconhecida pelo heri e pelo apreciador; 2) apresentar os
personagens fixos, o heri, sua histria, seu comportamento dentro desse mundo. E sobre o
heri que trataremos no captulo seguinte.
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5. HARRY POTTER O HERI
Estamos acostumados a pensar na figura do heri associado-a ao protagonismo
das narrativas. O heri aquele que realiza grandes feitos, que por algum motivo centro das
atenes. Flvio Kothe (1987, p.7) prope que pensemos no heri como um princpio de
organizao, um fator que agrega e direciona situaes e personagens, pois ele quem separa
as personagens boas das personagens ruins, atribuindo os papeis de vilo e amigo s
personagens que partilham de um mesmo mundo ficcional. Nesse sentido, o autor aponta para
trs tipos de organizao: a do heri trgico, a do pico e a do trivial.
Segundo a tipologia de Kothe, o que fundamenta o heri trgico a reviso de
seus atos e o conseqente arrependimento, que ocorrem no momento da reviravolta. A
decada na grandiosidade dos feitos resulta no crescimento em humanidade do heri. A
caracterizao do heri pico, por sua vez, constitui-se de modo contrrio.
Ainda que passe por grandes dificuldades e provaes, e ainda que venha a constituir boa parte de sua grandeza atravs de uma srie de baixezas (matar, mentir, tripudiar cadveres, enganar [...]) a narrativa pica clssica, adotando o ponto de vista do heri, trata de metamorfosear a negatividade em positividade, e o heri pico tem, por isso, um percurso fundamentalmente mais pelo elevado do que o heri trgico, cujo percurso o da queda. [...] a queda do heri trgico o que lhe possibilita resplandecer em sua grandeza, assim como as baixezas do heri pico que o elevam. (KOTHE, 1987, p.12)
O heri trivial no apresenta uma reviravolta em seu modo de agir. Trata-se de
uma personagem linear (ou plana pela definio de Forster) caracterizada em oposio ao
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vilo da histria. A narrativa costuma ser marcadamente maniquesta, exibindo as grandezas e
virtudes do heri ao mesmo tempo em que as compara aos atos execrveis do vilo. A disputa
travada entre heri e vilo, nesse tipo de narrativa, no produz mudanas em nenhuma das
personagens: o heri reafirma as suas qualidades ao mesmo tempo em que certifica o mal
caratismo do vilo. A narrativa desenvolvida para o heri trivial poderia ser representada,
assim, pela figura do crculo, j que a jornada desse heri se apresenta como uma tentativa de
restaurar o equilbrio, de voltar ao ponto de distrbio. Essa restaurao, por sua vez, nunca
completa, pois as aventuras, perigos e decises que so vivenciadas e cobradas do heri lhe
proporcionam um conhecimento maior dele mesmo e daquelas personagens que com ele
partilharam dessa trajetria; e um crescimento como pessoa, como heri.
Seguindo a tipologia de Kothe, Harry Potter se configura como um heri trivial.
As atitudes de Harry, bem como a de seus inimigos, mantm-se no desenvolvimento da
narrativa, nas publicaes seguintes. As vitrias do protagonista no resultam em mudanas
comportamentais ou de valores em nenhuma das partes envolvidas, mas proporcionam um
conhecimento sobre si mesmo, sobre esse mundo que agora seu, sobre sua histria
individual.
Na srie, Harry construdo sempre em oposio (fsica e psicolgica) aos seus
algozes: ele no gordo nem mimado como seu primo Duda Dunsley; loiro nem alto, egosta
nem mau-carter como Draco Malfoy; nem um assassino como Voldemort.
exatamente essa ltima caracterstica que livra Harry de ser um heri pico. A
violncia de suas atitudes se apresenta de forma passiva ou como uma casualidade. Nas trs
obras analisadas, Harry derrota seus inimigos ao final da histria, levando dois deles morte.
Sob essa perspectiva, Harry to assassino quanto seu inimigo, j que e este ttulo atribudo
a qualquer pessoa que ponha fim a vida de outra, independente do nmero de vtimas.
Contudo, o desenlace da narrativa elaborado de forma a extirpar-lhe a culpa. No primeiro
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livro da srie, Harry enfrenta o professor de Defesa contra as Artes das Trevas, Quirrell, que
compartilhava seu corpo com Voldemort. Durante a luta, o heri percebe que ao ser tocado
pelo inimigo, este se fere. Durante uma investida de Quirrell, Harry se defende e acaba por
matar o professor. Esse desenlace tira de Harry a responsabilidade pela morte do professor, j
que o prprio heri desconhecia a existncia de uma magia que o protege. A explicao para o
ocorrido dada j no fim da histria, por Dumbledore.
Mas por que Quirrell no podia me tocar?
Sua me morreu para salvar voc. [...] Ele no entende que um amor forte como o de sua me por voc deixa uma marca prpria. [...] ter sido amado to profundamente, mesmo que a pessoa que nos amou j tenha morrido, nos confere uma proteo eterna. [...] Por isso Quirrell, cheio de dio, avareza e ambio, compartindo a alma com Voldemort, no podia toc-lo. (ROWLING, 2000a, p.255)
Em Harry Potter e a cmara secreta, o vilo derrotado, Tom Riddle, no
propriamente uma pessoa, mas uma lembrana personificada. A destruio do inimigo ocorre
de modo indireto. Ele no golpeia a lembrana, mas o local onde esta foi preservada: um
dirio.
Ento, sem pensar, sem raciocinar, como se tivesse pretendido fazer isso o tempo todo, Harry agarrou a presa do basilisco no cho ao lado dele e enterrou-a direto no centro do livro.
Ouviu-se um grito longo e cortante. Um rio de tinta jorrou do dirio, escorreu pelas mo de Harry, inundou o cho. Riddle estrebuchava e se contorcia, gritando e se debatendo e ento...
Desapareceu. (ROWLING, 2000b, p.271)
O heri, em Harry Potter e o prisioneiro de Askaban, no enfrenta pessoas, mas
criaturas monstruosas. Ainda assim, ele no as destri, apenas as afasta para poder salvar seu
padrinho. Neste livro, no h exatamente um vilo a ser combatido no final, somente estas
criaturas que perseguem Harry durante todo o livro.
importante considerar os valores que regem a construo de Harry Potter como
heri. Suas aes so pautadas na amizade e no respeito aos outros. Suas vitrias, portanto,
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so resultados da conduta que prega. Harry Potter, por ser uma criana comum, mas tambm
um heri, permite uma maior identificao e admirao junto ao pblico-alvo.
[...] no o triunfo da virtude o que impressiona a criana [...] mas a possibilidade de identificar-se com o heri no desenrolar das peripcias e contrariedades que sofre, a possibilidade de participar de suas atribulaes e de sentir o triunfo como seu, quando o heri triunfa. A grande lio moral dos contos de fadas o convencimento de que sempre se pode chegar ao final de todas as dificuldades. (MANILA, 1982; citado por COLOMER, 2003, p.64)
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6. CONSIDERAES FINAIS
Tecer uma narrativa ficcional pressupe conhecer o material que dar origem ao
fio, bem como fi-lo com destreza. Implica em atender e conhecer os gostos do pblico, que
se pretende atingir, assim como as experincias j adquiridas. A elaborao dessa narrativa
deve priorizar estruturas que auxiliem na apreciao e na memorizao de fatos e personagens
presentes na obra.
Nesse sentido, a srie Harry Potter se apresenta como uma narrativa de grande
xito, onde seus nmeros, de venda e publicidade, reafirmam esse sucesso. Os fatores que
fazem dessa srie um fenmeno contemporneo so mltiplos. Nesse estudo, especificamente,
contemplamos apenas um dos fatores que colaboram para o entendimento da repercusso de
Harry Potter, redimensionando a srie de uma perspectiva meramente editorial para uma
compreenso tambm voltada para o campo da narrativa e da formao do leitor: os princpios
para a compreenso da construo do heri.
Cabe nesse ponto nos perguntarmos: como um menino de culos, magricela, de
cabelos despenteados, um aluno medocre com uma cicatriz no meio da testa pode se
constituir como heri? Pela descrio, seria mais provvel que se constitusse num anti-heri.
Mas, ento, o que o faz tomar o caminho contrrio?
Primeiramente, devemos considerar que esses mesmos fatores podem ser usados
como mecanismos de adeso, de aproximao e identificao entre leitor e obra, como se em
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algum momento da leitura a aparncia e o comportamento normal do heri se constitussem
como especial aos olhos do apreciador.
Podemos observar na prpria trajetria de Harry algumas singularidades que o
aproximam do pblico leitor. Nosso protagonista, ao contrrio de outros, no constri seu
status de heri ao longo do percurso, por meio de feitos e conquistas. Harry caminha
rapidamente, da noite para o dia, do status de menino estranho e rejeitado para a condio de
heri, salvador de um mundo desconhecido que o adota, alimentando a fantasia e, em alguns
casos, o desejo do mesmo acontecer a outros garotos. nesse mundo que Harry encontra
possibilidades de justificar, aos olhos dos outros, e ao mesmo tempo construir sua fama.
Como qualquer heri, Harry Potter defende ou prega um tipo de valor, uma idia,
uma crena, uma cultura: neste caso, seu foco a comunidade de bruxos. Seus esforos para
preservar esse modo de vida se baseiam principalmente no reconhecimento desse mundo
como seu verdadeiro lar, no lugar onde a histria da sua vida adquire significado, onde ele
pretende, de fato, viver. Esse desejo se expressa em diversas passagens do livro, quando
questiona a necessidade de sempre retornar ao mundo no-mgico.
A defesa dessa comunidade se constri com a derrota de viles, com a superao
de situaes perigosas, com a quebra de regras. Tais acontecimentos, que poderiam ser
classificados como brbaros, so amortizados pelo modo como so apresentados ao leitor:
casualidade, sem que a culpa lhe seja atribuda. Nessa construo, Harry um heri capaz de
levar morte inimigos terrveis, mas sem que isso afete a sua condio exemplar de conduta.
Nota-se que nesse processo de construo, o uso de personagens lineares
(conforme a denominao de Kothe) ou planas (como as chamaria Forster) auxilia na
memorizao dos papeis dessas personagens, bem como na construo das expectativas.
Aliado a isso, temos tambm o uso de uma estrutura seriada, a qual prima pela repetio,
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reiterando no apenas as posies e valores dos indivduos retratados na narrativa, mas
tambm reafirmando o heri como um modelo tico, digno de identificao.
Esta interao entre leitor e texto, essa teia fantstica que tecida apenas quando
surge entre objeto e apreciador um sistemas de identificao, aponta questes no
contempladas nesse estudo como as influncias da estruturas de composio do heri nos
processos de adaptao cinematogrfica; a construo do vilo, que aparenta se opor ao
protagonista; ou ainda, as possibilidades de utilizao da obra, enquanto um recurso didtico e
de incentivo leitura que podero ser exploradas em outras investigaes.
Vale, por fim, retomar uma das crticas destinadas srie Harry Potter, e que
ainda hoje persiste, que a de se tratar de uma leitura simplista, sem profundidade, incapaz de
gerar questionamentos mais consistentes acerca das relaes e hierarquias entre os
personagens, organizao de mundos, do uso imprprio de lendas e mitos europeus. Contudo,
o texto no se prope a ser condizente a nenhum desses argumentos. Inclina-se muito mais
para a perspectiva do entretenimento, para o divertimento de crianas e jovens trazendo um
novo parmetro para os contos de fadas. E nisso ele bem sucedido.
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