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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO EIXO ACADÊMICO MESTRADO/DOUTORADO EDUARDO VIVIAN DA CUNHA A SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS: PRÁTICAS E DEFINIÇÕES SEGUNDO O MARCO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA Salvador Março/2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃOEIXO ACADÊMICO MESTRADO/DOUTORADO

EDUARDO VIVIAN DA CUNHA

A SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS:PRÁTICAS E DEFINIÇÕES SEGUNDO O MARCO DA ECONOMIA

SOLIDÁRIA

SalvadorMarço/2012

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EDUARDO VIVIAN DA CUNHA

A SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS:

práticas e definições segundo o marco da economia solidária

Tese de doutorado apresentada à banca examinadora na Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, como requisito à obtenção do título de doutorado.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao Murilo, à Lívia e à Fernanda,

que souberam pacientemente conviver com o seu processo de construção.

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AGRADECIMENTOS

De fato o momento de finalização de um trabalho como este é quando temos muito a

agradecer a diversas pessoas que contribuíram para a sua construção. Entretanto, como

alguém que acredita em uma força superior, devo em primeiro agradecer a Deus por todas as

circunstâncias que me levaram a chegar até aqui.

Dentre aqueles que compartilham comigo a caminhada nesta vida, tenho também muitos

nomes a lembrar. Assim, em primeiro lugar, agradeço à minha família, especialmente pela

compreensão das ausências provocadas por um trabalho como este, lembrando minha amada

esposa Fernanda e meus queridos filhos Lívia e Murilo, este último tendo surgido em nossas

vidas quase no final deste trabalho, como que dando sua bênção para a sua conclusão. Devo

agradecer também à minha mãe Eli Odete pela acolhida e amparo decisivos nos momentos

finais deste trabalho, quando o sossego se me fazia necessário. Agradeço também à minha

irmã Luciana, pela revisão do texto, trabalho extenuante mas muito útil para a finalização

desta tese.

Agradeço também de forma especial aos integrantes das ecovilas visitadas, que gentilmente

nos receberam para a realização deste estudo, como Khalyna, Maria, Yla, Mhynana, Joseh,

Josemeire, André, Lucia, João, Tânia, Otávio, dentre muitos outros.

Por fim, agradeço o apoio do meu orientador neste processo, o prof. Genauto França Filho,

alguém com quem a relação supera a simples orientação acadêmica, bem como dos demais

professores do Núcleo de Pós-graduação em Administração e dos colegas de curso. Faço

menção ainda à Dacy e Anaélia, sempre prestativas e eficientes no apoio às nossas “angústias

acadêmicas”.

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A utopia está lá no horizonte. Me

aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho

dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu

caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar

Eduardo Galeano

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RESUMO

O presente trabalho se concentra no fenômeno das ecovilas no contexto brasileiro, tomando

como enfoque as suas práticas de sustentabilidade. Como referenciais teóricos de apoio à

compreensão destas experiências, utilizaram-se os conceitos ligados à ecofilosofia, como o

princípio responsabilidade e a ecologia profunda, bem como os ligados à antropologia e

sociologia econômica, como a economia solidária. Além disto, buscou-se uma significação

sobre a noção de sustentabilidade a partir de debates dados pela economia ecológica, bem

como a conexão com antecedentes históricos ligados à ideia de utopia. Como método de

pesquisa realizou-se um estudo multicasos (três experiências, sendo duas delas ilustrativas e

uma utilizada para contraste), com coletas de dados por meio da observação participante e da

não-participante, a partir da estadia do pesquisador nas experiências, bem como através de

entrevistas e análises documentais. Como resultados, observou-se que as práticas podem ser

entendidas como sendo de economia solidária, por aderirem aos seus princípios. Neste

sentido, elas seriam práticas singulares ao assumirem, enquanto coletivos, características de

empreendimentos econômicos solidários, ao mesmo tempo em que articulam diversos destes

empreendimentos numa estrutura de rede local de economia solidária. Além disto, as

experiências podem ser apropriadamente compreendidas a partir da noção de ecovilas, com

exceção de uma delas. Neste sentido elas possuem em comum nove características principais:

uma efetiva articulação de diversas lógicas econômicas; a combinação da existência de

empreendimentos coletivos e individuais; os vínculos estabelecidos entre os moradores são

escolhidos; trabalham com a noção de saúde integral ou complementar; o trabalho com

educação é central; estímulo para a realização de atividades culturais e espirituais; existência

de espaços e processos democráticos de decisão; presença uma articulação comunitária

relevante; propõem uma redefinição na relação com o meio natural. Como elementos

diferenciadores, vemos que cada experiência desenvolve uma especialidade, com uma das

suas dimensões de atuação mais desenvolvida em função do seu contexto histórico-social. Nas

duas principais experiências observamos que na primeira existe um desenvolvimento maior da

dimensão cultural/espiritual, e na segunda da dimensão técnica/ecológica.

Palavras chaves: ecovilas, economia solidária, sustentabilidade

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ABSTRACT

This work focuses on the phenomenon of ecovillages in the brazilian context, focusing its

sustainability practices. As theoretical reference to support the understanding of these

experiences, were used the concepts related to ecophilosophy, as the principle responsibility

and deep ecology, as well as those related to economic anthropology and sociology, as the

solidarity economy. In addition, was sought a meaning to the concept of sustainability from

the discussions given by ecological economics, as well as the connection with historical

background related to the idea of utopia. As research method it was done a multicase study

(three cases, two of which were used as illustrative and one as contrast), with data collected

through participant and non-participant observation, from the researcher's stay in the

experiences as well as through interviews and documentary analysis. The results showed that

the practices can be understood as solidarity economy, by adhering to its principles. In this

sense, these practices would be singular when assuming, as collectives, characteristics of

solidarity economic enterprises, at the same time that articulate many enterprises in a structure

of local solidarity economy. Moreover, the experiences can be properly understood from the

concept of ecovillages, with the exception of one of them. In this sense they have in common

nine main characteristics: an effective articulation of different economic principles; the

combination of the existence of individual and collective enterprises; the links established

between the residents are chosen; they work with the concept of integral or complementary

health; the work with education is central; existence of a stimulus to the achievement of

cultural and spiritual activities; presence of democratic decision-making processes and spaces;

existence of a relevant community joint; and they propose a redefinition of the relationship

with the natural environment. As differentiating elements, it is noted that each experience

develops a specialty, with some of its dimensions more developed in terms of its socio-

historical context. In the two main experiments it is observed that in the first one, prevail a

development of the cultural / spiritual dimension, and in the second one the technical /

ecological dimension.

Key words: ecovillages, solidarity economy, sustainability

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Mapa com a localização das experiências. Adaptado de http://www.brasil-turismo.com/mapas/mapa-politico.htm.......................................................................................8

Figura 2: Esquema do desenvolvimento teórico-conceitual do trabalho. Fonte: elaboração própria.......................................................................................................................................11

Figura 3: Pico do petróleo. Fonte: Campbell & Laherrère (1998)............................................16

Figura 4: Projeção para o pico do petróleo. Fonte: Campbell & Laherrère (1998)..................17

Figura 5: Simulação das condições futuras num cenário com o dobro dos recursos naturais conhecidos, mantidas as práticas atuais. Fonte: Meadows, Randeres e Meadows (2002)........19

Figura 6: Simulação das condições futuras num cenário com controle populacional, limite na produção industrial e utilização de tecnologias para produção, agricultura e poluição. Fonte: Meadows, Randeres e Meadows (2002)...................................................................................19

Figura 7: Continente da cidade de Atlântida. Fonte Wikimedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Athanasius_Kircher%27s_Atlantis.gif)........................25

Figura 8: Representação artística da cidade de Atlântida. Origem desconhecida.....................25

Figura 9: Utopia........................................................................................................................27

Figura 10: Projeto de New Harmony nos Estados Unidos. Fonte: BRONA (2007 )................36

Figura 11: Palácio social do Falanstério. Figura de domínio público.......................................38

Figura 12: Os três imãs. Fonte: Site Urbanidades (http://urbanidades.arq.br/2009/12/nova-imagem-no-banco-de-imagens)................................................................................................40

Figura 13: Planos da cidade jardim. Acima, contendo toda a área da cidade; abaixo, o recorte dado por dois bulevares. Fonte: http://www.sacred-texts.com/utopia/gcot/.............................42

Figura 14: Flor da Permacultura. Fonte http://escoladepapel.files.wordpress.com/2008/04/flor-da-permacultura.jpg..................................................................................................................51

Figura 15: Residências em Findhorn. Fonte Findhorn (2010)..................................................59

Figura 16: Centro comunitário feito com madeira de barris de Whisky. Fonte: Findhorn (2010)........................................................................................................................................60

Figura 17: Esquema do planejamento da cidade. Fonte: Auroville, 2010................................64

Figura 18: Fundo Central. Fonte: Auroville, 2010....................................................................64

Figura 19: Matrimandir. Fonte: Auroville, 2010.......................................................................65

Figura 20: Ônibus utilizados na "Caravana". Fonte: The Farm, 2010......................................67

Figura 21: Imagem de curso na ecovila. Fonte: The Farm, 2010.............................................68

Figura 22: Leiaute dos lotes e ruas na ecovila. Fonte: Crystal Waters, 2010............................72

Figura 23: Waterbreath Retreat. Fonte: Waterbreath Retreat, 2010..........................................73

Figura 24: Crystal Water Ecocentre. Fonte Genoa (2010)........................................................74

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Figura 25: Enclaves do paradigma paraeconômico. Adaptado de Ramos (1989)...................120

Figura 26: Desenho do campo da economia popular e solidária no Brasil. Fonte França Filho (2006b)....................................................................................................................................130

Figura 27: Esquema da implantação do IPEC no terreno. Adaptado de IPEC (2010b)..........140

Figura 28: Comparativo da paisagem referente ao terreno onde está implantado o Ecocentro. À esquerda, foto tirada antes do início das suas atividades, em 1998. À direita, após, em 2004. Fonte www.ecocentro.org.............................................................................................141

Figura 29: Interior da recepção / Loja Verde. Fonte: autor autor............................................143

Figura 30: Viveiro de plantas. Fonte: autor.............................................................................143

Figura 31: Sanitário Seco. Fonte: autor..................................................................................143

Figura 32: Vila Ecoversitária. Fonte: autor.............................................................................143

Figura 33: Minhocário. Fonte: autor.......................................................................................143

Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: autor....................................................................143

Figura 35: "Toca do Tatu". Fonte: autor..................................................................................143

Figura 36: Casa de cob. Fonte IPEC (2010c)..........................................................................143

Figura 37: Estação Digital. Fonte: autor.................................................................................144

Figura 38: Espaço de eventos. Fonte: autor............................................................................144

Figura 39: Biblioteca. Fonte: autor.........................................................................................144

Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.............................................144

Figura 41: Horta de ervas. Fonte: autor..................................................................................144

Figura 42: Sede administrativa do ecocentro. Fonte autor......................................................144

Figura 43: Cozinha e Restaurante Comunitário. Fonte: autor................................................144

Figura 44: Cozinha Ecoversitária. Fonte: autor......................................................................144

Figura 45: Museu das técnicas construtivas em barro. Fonte: autor.......................................144

Figura 46: Casas em construção na área de transição para a ecovila. Fonte: autor................145

Figura 47: Bacia para recuperação da água dos porcos..........................................................156

Figura 48: Manta para separação do gás natural.....................................................................156

Figura 49: Esquema de um do sistema de tratamento da água da cozinha no IPEC...............157

Figura 50: Painéis solares para aquecimento da água dos chuveiros......................................157

Figura 51: Implantação da FTM. Fonte: Bissolotti (2004).....................................................163

Figura 52: Prédio administrativo da FTM. Fonte: autor.........................................................164

Figura 53: "Casa do Recolhimento". Fonte: autor..................................................................165

Figura 54: Ambiental Terra Mirim. Fonte: autor....................................................................165

Figura 55: Padaria Mirim. Fonte: autor..................................................................................165

Figura 56: Casa das Artes. Fonte: autor..................................................................................165

Figura 57: "Casa da Lua". Fonte: autor...................................................................................165

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Figura 58: Chalés (à esquerda). Sanitários e cozinha (à direita). Fonte: autor.......................165

Figura 59: "Casa dos Mestres". Fonte: autor..........................................................................165

Figura 60: "Casa do Sol". Fonte: autor...................................................................................165

Figura 61: Escola Ecológica. Fonte: autor..............................................................................166

Figura 62: Pomar. Fonte: autor...............................................................................................166

Figura 63: Sharimar. Fonte: autor...........................................................................................166

Figura 64: Templo do Fogo. Fonte: autor...............................................................................166

Figura 65: Templo do Vento. Fonte: autor..............................................................................166

Figura 66: Área de compostagem. Fonte: autor......................................................................166

Figura 67: Parte da área de cultivo nas "Terras de São Francisco". Fonte: autor...................166

Figura 68: Viveiro de mudas de árvores. Fonte: autor............................................................176

Figura 69: Implantação da Ecoovila 1 no terreno...................................................................180

Figura 70: à esquerda, parreiras de duas residências, utilizadas como garagem; à direita bananeiras para o tratamento das águas servidas....................................................................180

Figura 71: Sede administrativa da cooperativa. Fonte: autor..................................................182

Figura 72: Filtro de águas cinzas............................................................................................184

Figura 73: Detalhes do duto de ventilação natural, do painel solar e do telhado verde..........184

Figura 74: Indicador de sustentabilidade plotado por dimensão e por experiência. Fonte: elaboração própria...................................................................................................................219

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Comparação entre os princípios econômicos. Fonte: Machado (2009)..................117

Tabela 2: Proposta de quadro analítico da sustentabilidade. Fonte: elaboração própria.........137

Tabela 3: Composição do indicador da sustentabilidade. Fonte: elaboração própria.............216

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................................................................1

PARTE I: O Que São Ecovilas: Conceito, Histórico e Experiências..................................14

1 UM DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO ATUAL..............................................................................................15

2 ANTECEDENTES: AS SOCIEDADES UTÓPICAS IDEAIS E EXPERIMENTAIS ................................22

2.1 UTOPIA E SOCIALISMO UTÓPICO: PROJETOS DE SOCIEDADE IDEAL......................................................................23

2.1.1 A Atlântida de Platão...........................................................................................................................23

2.1.2 Um país chamado Utopia....................................................................................................................26

2.1.3 A Cidade do Sol....................................................................................................................................29

2.1.4 Nova Atlântida.....................................................................................................................................32

2.1.5 O socialismo utópico............................................................................................................................33

2.2 UM MODELO DE ORGANIZAÇÃO ESPACIAL-SOCIAL: AS CIDADES-JARDIM DE AMANHÃ........................................39

3 O CONCEITO DE ECOVILAS........................................................................................................................43

3.1 COMUNIDADES INTENCIONAIS............................................................................................................................43

3.2 POSSÍVEIS DEFINIÇÕES PARA ECOVILAS.............................................................................................................46

3.3 O QUE NORTEIA AS PRÁTICAS DAS ECOVILAS: ENTENDENDO A PERMACULTURA..................................................49

3.4 LIMITES DAS PRÁTICAS DAS ECOVILAS: UM DEBATE SOBRE O ALCANCE DA MUDANÇA SOCIAL E DA SUA PERTINÊNCIA NO CONTEXTO ATUAL........................................................................................................................55

4 ALGUMAS EXPERIÊNCIAS RELEVANTES NO PLANO INTERNACIONAL.....................................58

4.1 FUNDAÇÃO FINDHORN – ESCÓCIA.....................................................................................................................59

4.2 AUROVILLE – ÍNDIA.........................................................................................................................................62

4.3 THE FARM – ESTADOS UNIDOS.........................................................................................................................67

4.4 CRYSTAL WATERS – AUSTRÁLIA.......................................................................................................................70

PARTE II: Debates e Contexto: A Sustentabilidade Segundo a Lógica da Economia

Solidária Aplicada às Ecovilas...............................................................................................76

5 COMPREENDENDO A SUSTENTABILIDADE...........................................................................................77

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5.1 BREVE HISTÓRICO...........................................................................................................................................80

5.2 ALGUNS DEBATES E DEFINIÇÕES........................................................................................................................83

5.2.1 A Economia Ecológica........................................................................................................................84

5.2.2 A crítica à mensuração da economia a partir do PIB – Produto Interno Bruto...............................92

5.2.3 Considerações “parciais” ou “intermediárias” sobre o debate da sustentabilidade........................95

6 A ECOFILOSOFIA E A DEFINIÇÃO DE VALORES A PARTIR DA ÉTICA ECOLÓGICA.................97

6.1 O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE......................................................................................................................97

6.1.1 O problema da manipulação da natureza e suas implicações para uma ética ecológica.................99

6.2 A ECOLOGIA PROFUNDA.................................................................................................................................102

6.3 OUTROS EXEMPLOS DE UMA ÉTICA ECOLÓGICA: OS CASOS DOS POVOS ANDINOS E DOS POVOS GUARANIS...............105

7 A ORGANIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DO PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA ECONÔMICA...................................................................................................................109

7.1 CRÍTICA AO MERCADO AUTORREGULADO E A DIVERSIDADE DE PRINCÍPIOS ECONÔMICOS...................................109

7.1.1 A visão de Polanyi..............................................................................................................................109

7.1.2 Outras visões: Mauss e Guerreiro Ramos........................................................................................117

7.1.3 Considerações sobre as práticas de sustentabilidade considerando a crítica ao mercado livre.....122

7.2 A ECONOMIA SOLIDÁRIA................................................................................................................................124

7.2.1 Economia e solidariedade.................................................................................................................124

7.2.2 As diferentes concepções da economia solidária..............................................................................125

7.2.3 Os Empreendimentos Econômicos Solidários (EESs).....................................................................130

8 CONSTRUINDO UM MARCO ANALÍTICO PARA SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS...........133

8.1 UMA PROPOSTA DE QUADRO ANALÍTICO............................................................................................................133

PARTE III: O que Sinalizam as Práticas no Contexto Brasileiro....................................139

9 O ECOCENTRO IPEC – INSTITUTO DE PERMACULTURA E ECOVILAS DO CERRADO..........140

9.1 CARACTERIZAÇÃO E HISTÓRICO......................................................................................................................140

9.2 PROGRAMAS, PROJETOS E AÇÕES REALIZADAS...................................................................................................145

9.3 LEITURA CONFORME O MARCO ANALÍTICO DA SUSTENTABILIDADE.......................................................................149

9.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO.......................................................................................................................158

10 A FUNDAÇÃO TERRA MIRIM..................................................................................................................162

10.1 CARACTERIZAÇÃO E HISTÓRICO.....................................................................................................................162

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10.2 PROGRAMAS, PROJETOS E AÇÕES DESENVOLVIDOS PELA FTM..........................................................................167

10.3 LEITURA CONFORME O MARCO ANALÍTICO DA SUSTENTABILIDADE.....................................................................170

10.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO.....................................................................................................................176

11 A ECOOVILA 1 – ARCOO...........................................................................................................................179

11.1 CARACTERIZAÇÃO E HISTÓRICO....................................................................................................................179

11.2 LEITURA CONFORME O MARCO ANALÍTICO DA SUSTENTABILIDADE.....................................................................181

11.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO.....................................................................................................................184

CONCLUSÃO....................................................................................................................................................187

REFERÊNCIAS.................................................................................................................................................202

ANEXO A - UM EXERCÍCIO PARA A POSSÍVEL QUANTIFICAÇÃO DO INDICADOR DE SUSTENTABILIDADE......................................................................................................................................213

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INTRODUÇÃO

Ecovilas são comunidades que surgem a partir da reunião voluntária de indivíduos que

buscam construir um tipo de sociabilidade diferente da comumente encontrada nas sociedades

industriais contemporâneas. As ecovilas envolvem, para além do resgate de um padrão de

convívio mais próximo e harmonizado (o que é comum a muitas comunidades intencionais

criadas na modernidade), uma filosofia de vida que inclui a preocupação com o meio

ambiente nas suas ações.

Embora esses elementos citados acima sejam o que há em comum nestas práticas, as ecovilas

podem variar muito em tamanho e formato, envolvendo desde poucas famílias (como os casos

brasileiros, por exemplo) até centenas de moradores; podem ser mais coletivizadas em termos

da propriedade e do trabalho dos seus membros até mais individualizadas, em que cada um

tem um lote individual no local e a maior parte dos membros realiza suas atividades

profissionais fora deste ambiente; podem ainda ter em comum frequentes atividades

espirituais ou apenas alguns encontros casuais; podem se apoiar intensamente em tecnologias

ambientais e na permacultura ou apenas estar ensaiando estas práticas; podem produzir

localmente diversos dos seus produtos, inclusive alimentos ou comprar quase tudo o que é

necessário para a sobrevivência externamente.

Alguns desafios são também comuns a estas práticas. Muitos são antigos, estando presentes

em quase todas as comunidades intencionalmente criadas, como por exemplo, a construção de

uma sociabilidade harmonizada entre seus integrantes; outros são mais modernos, como a

dificuldade em prosperar em meio a uma cultura a qual ela se coloca como tendo valores

opostos, ou ainda a dificuldade de conciliar contradições provenientes deste conflito de

valores e da necessidade de sobrevivência econômica nesse meio. Talvez um desafio sintetize

todos os demais: o de se firmar enquanto uma prática alternativa viável e acessível,

especialmente considerando-se um eventual contexto de mudança ambiental (e

socioeconômica).

1

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O presente trabalho se propõe à realização de um estudo das práticas das ecovilas, tendo como

recorte empírico experiências em curso no Brasil, e tomando-se em perspectiva algumas que

se dão em âmbito internacional. O esforço de conhecer este tipo de prática está vinculado ao

propósito de demonstrar, ou mais modestamente, tentar perceber a construção de uma “outra

economia” ou de economia solidária que as ecovilas eventualmente experimentam.

Tal esforço, entretanto, não se apresentou fácil. Em primeiro lugar, pela própria característica

das experiências, especialmente no âmbito nacional, que se encontram em fase de

amadurecimento (em comparação a outras internacionais, que contam com processos mais

antigos e com um porte já muito maior), e que apresentam uma grande diversidade, ou seja,

muitas experiências brasileiras são ainda incipientes e se aproximam apenas parcialmente da

prática das ecovilas no âmbito internacional.

Em segundo lugar, a tarefa não é simples pelo desafio apontado a partir dos marcos teórico-

conceituais escolhidos. Este segundo desafio está mais precisamente no fato de que o termo

“sustentabilidade” refere-se a um conceito relativamente largo, o que implica em uma

designação que remete a ideias e práticas múltiplas, além de normalmente não estar associado

ao debate que se dá no campo da economia solidária. Esta noção de sustentabilidade traria

uma complexidade ainda maior pela popularidade a qual o termo foi alçado, sendo possível

encontrá-lo como rótulo de um sem-número de ações.

Tendo isto em vista, e o próprio propósito deste trabalho, o qual foi enunciado logo acima,

poderia causar estranheza a utilização da concepção de sustentabilidade, especialmente com o

destaque que ela recebe neste estudo. Aqui, o que anteriormente se apresentou como um

obstáculo aponta para a justificativa da utilização do termo: é que a sustentabilidade acaba se

tornando uma ideia-força, também, dentro do próprio fenômeno em estudo, o das ecovilas.

Seus discursos (formais ou informais), as publicações do tema (acadêmicas ou não) estão

permeadas largamente por essa noção, de forma que, não utilizá-la aqui, poderia acarretar em

maior prejuízo conceitual, ou pelo menos em maior esforço argumentativo na tentativa de

escapar da sua influência.

A seara a ser empreendida envolveria, então, a concentração de um esforço no sentido de

buscar um refinamento das noções conceituais envolvidas. Isto foi feito a partir da escolha de

debates específicos, que apontassem no sentido desejado, ou seja, que refletissem o tipo de

construção prática emergente do campo em estudo.

Tal forma de conduzir o trabalho, poderia apontar para caracterizá-lo como sendo de natureza

2

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eminentemente hipotético-dedutiva, já que partir-se-ia de um referencial teórico para a

realização da leitura de campo. Acreditamos, entretanto, que esta caracterização é apenas

parcial. O que relativizaria esta percepção (compondo o que seria a característica indutiva e

exploratória-descritiva deste estudo) é o fato de que as próprias práticas estudadas ajudam a

compor o quadro analítico proposto, bem como a formar esta especificação conceitual. Assim

sendo, é um dos propósitos específicos do trabalho construir este quadro de referência para a

sustentabilidade em ecovilas, mas ele não é dado a priori, a partir de um estudo teórico que

mediria a aderência das práticas, sendo mais um produto do próprio estudo final aqui

empreendido, que envolve tanto elementos teóricos quanto empíricos.

As justificativas para a realização deste estudo poderiam ser percebidas a partir de três

argumentos mais gerais: os problemas ambientais hoje vividos, que têm sua origem também

na nossa forma de organização socioeconômica; a particularidade das experiência das

ecovilas, especialmente tendo-se em conta sua proposta de ação frente a estes problemas; e a

relevância acadêmica do estudo, haja visto a pouco exploração do tema nestes espaços de

discussão.

O primeiro argumento será melhor trabalhado no Capítulo 1, em que se fará um breve

diagnóstico sobre os problemas atuais, apontando-se alguns alertas dados por estudiosos do

tema e algumas possíveis causas dos desequilíbrios vividos.

Já no segundo argumento, precisaríamos compreender o papel das ecovilas frente a estas

questões. Evidentemente, essas experiências não são a solução definitiva para todos os

problemas ambientais vividos na contemporaneidade, como se fosse possível haver algum

tipo de solução mágica e indolor para a situação. Para isto, se requer uma ação de base ampla

e imediata, equivalente a uma “mobilização para guerra”, conforme define L. Brown.

Entretanto, as experiências das ecovilas podem apontar caminhos no sentido de como algumas

coisas podem ser feitas e, se for o caso, servirem de exemplo para eventuais replicações.

Um ponto deve ser apontado nas experiências das ecovilas. Refere-se ao debate sobre o tipo

de mudança que se quer realizar. As questões levantadas aqui seriam: se realmente seria

suficiente (ou desejável) realizarmos uma mudança apenas no sentido de obtermos nossa

sobrevivência, e ainda, se essa mudança não poderia ser mais profunda, no sentido de se (re)

construir um outro tipo de vivência, superior à atual.

Neste sentido, a proposição encampada pelas ecovilas caminharia na tentativa de romper

determinadas lógicas, pela reintegração do ser humano à natureza, e pela reconstrução de

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uma sociabilidade e de uma vida econômica mais saudável. Tais experiências partem da

consideração, tomando principalmente as hipóteses da ecologia profunda (GEN, 2009), de

que o meio ambiente é parte integrante do ser humano (ou mais precisamente o contrário, de

que o ser humano estaria integrado a ele), e que por isto o meio natural deve ser sempre

conscientemente considerado nas suas ações. Com isto, essas práticas propõem que a natureza

seja considerada segundo outros padrões, que envolveriam o respeito pelo valor intrínseco que

ela possui. Por outro lado, as práticas das ecovilas tentam definir, ainda, uma forma de

vivência que rompe com a lógica de estratificação social posta em nossa sociedade,

considerando práticas de horizontalidade e de respeito à cada individualidade.

Ao lado da peculiaridade da proposta das ecovilas frente aos modelos tradicionais de

desenvolvimento, outro fator que justifica o olhar sobre as experiências é a relevância que elas

vêm adquirindo, especialmente no contexto internacional. Existem 347 ecovilas

considerando-se o nível mundial, registradas na GEN (Global Ecovillage Network), sendo

147 na sua divisão européia, 48 na sua divisão da Ásia e da Oceania e 152 na americana

(sendo que destes 80 são nos Estados Unidos). Este número pode ser bem maior, chegando a

15.000 iniciativas no mundo se forem considerados parâmetros mais inclusivos (KASPER,

2008). Para se ter uma percepção do alcance das propostas, a ONU aponta estas iniciativas

como “modelo de excelência de vida sustentável” (GEN, 2009).

Por fim, remetendo-nos ao último elemento justificativo do trabalho, vemos que, apesar desta

expressividade do campo, especialmente no contexto internacional (em termos de número e

de visibilidade das práticas) a quantidade de estudos acadêmicos sobre elas é ainda pequeno,

tanto no cenário internacional quanto (e principalmente) no brasileiro. Enquanto no mundo

percebe-se a existência de ainda poucos trabalhos sobre as ecovilas, no Brasil eles são ainda

mais raros, tanto no campo das ciências sociais, quanto no campo específico da

administração, em que eles aparecem principalmente em algumas monografias de graduação.

Acreditamos, em especial, que trabalhos com este tipo de objeto devem ser estimulados no

ambiente acadêmico, pois partimos do pressuposto que o conhecimento deve ser socialmente

relevante, ou seja, cumprir com o papel de tentar responder questões que inquietem nossa

sociedade ao mesmo tempo em que tomam parte das suas possíveis soluções.

Cabe ainda, uma breve explicação sobre a inserção do estudo no campo da administração.

Tradicionalmente, este é um campo reservado à gestão e, mais particularmente, à gestão de

empresas. É inegável que seu perfil está marcado pelo trabalho feito pelos autores clássicos

(como Taylor e Fayol), construindo um perfil mais pragmático em torno do campo. Na

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tentativa de escapar desta determinação, há o desenvolvimento do campo da teoria das

organizações, que vêm assumindo a incumbência de dar um caráter mais científico à

disciplina (embora caiba aqui o debate de que tipo de ciência estamos falando – e com qual

objeto lidamos quando tratamos do tema, nos moldes que fazem alguns autores, como Santos

(2001) e França Filho (2004) por exemplo). Dentro deste campo, as ecovilas entram como um

objeto de estudo, que, por suas particularidades, possuem um atrativo como um tipo de

organização a ser observada sob a ótica da administração.

Por outro lado, sua inserção dentro de um campo da gestão – nomeadamente a gestão social -

também é singular, por ser novo e estar buscando seu espaço dentro da disciplina da

administração. Além da gestão de empresas, esta disciplina é formada também pela gestão

pública, que apesar de não tão presente no meio, também já possui certa tradição, e se difere

da primeira por ser constituída a partir de uma lógica diferente: enquanto na gestão privada

prevalece a racionalidade instrumental, os resultados econômicos e a apropriação individual

(ou de pequenos grupos) da riqueza, a gestão pública deve-se pautar (pelo menos em tese) na

busca pelo bem público e na consecução de diversos objetivos (ligados aos objetivos da

sociedade como um todo) (FRANÇA FILHO, 2003). A primeira se dá essencialmente dentro

das empresas e a segunda no chamado espaço público, especialmente no que se refere ao

aparelho estatal. Entretanto, esses dois tipos de gestão começaram, nos últimos anos a serem

acompanhados por uma terceira forma: a gestão social. Esta surge com o objetivo de dar conta

da complexidade que a atuação no espaço público vêm assumindo, especialmente aquele

espaço não vinculado ao Estado, mas sim às expressões da sociedade civil organizada.

Assim, a gestão social se refere àquelas organizações vinculadas a um tipo de ação que tem

como objetivos principais os sociais, políticos, ambientais, etc, tendo os econômicos mais

como intermediários (FRANÇA FILHO, 2003). A gestão social assume, com isto,

características distintas das duas outras formas citadas: se difere da visão empresarial por não

ter como propósito central as atividades econômicas e o lucro, e da visão pública-estatal por

não estar atuando por dentro do complexo e burocratizado aparelho do Estado, embora, neste

último caso, tenha aproximações significativas em termos de propósito. O tipo de gestão que

as organizações da sociedade civil incitam, entretanto, é diferente também da gestão pública,

justamente pelas diferenças significativas na estrutura da organização a partir do qual ela age.

Dessa forma, mais uma vez as ecovilas se inserem num campo de estudo atendido pela

administração. Neste caso, a compreensão do seu funcionamento pode ampliar o

conhecimento em termos das práticas de gestão das organizações que compõe este setor. Mais

do que isto, o conhecimento permitido pelo estudo das práticas em referência podem apoiar o

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desenvolvimento das duas outras áreas, ajudando a definir e aperfeiçoar práticas de gestão

ambiental que podem ser utilizadas em empresas e dar subsídios para a definição de políticas

públicas sobre o tema.

Objetivos e pressupostos do trabalho

A questão problema deste trabalho se coloca da seguinte forma: em que medida a lógica da

sustentabilidade nas ecovilas se define enquanto economia solidária? Mais do que

simplesmente definir um painel das práticas de sustentabilidade das ecovilas no contexto

brasileiro, a ideia é lê-las a partir de um quadro que as colocam dentro de uma discussão mais

ampla, buscando apreender que tipo de organização socioeconômica surge das ecovilas.

O objetivo geral do trabalho é entender como as ecovilas se organizam em temos

socioeconômicos a partir da leitura das suas práticas de sustentabilidade e como elas se

articulam segundo os marcos desta outra economia. Seus objetivos específicos são:

a) Mapear os marcos teórico-analíticos bem como as práticas relativas ao tema da

economia solidária relacionadas com o objeto em estudo. A intenção é que a partir

desses marcos se possa fazer a aproximação ao fenômeno e fornecer subsídios para o

objetivo geral e o objetivo específico seguinte.

b) Propor uma metodologia para análise da sustentabilidade em ecovilas. Como já foi

referido anteriormente, a ideia é construir um marco analítico a partir de diversos

debates teóricos que tenham relação com o tema, inclusive o das próprias práticas. Este

objetivo, também, se constitui como um resultado intermediário, já que o marco daí

gerado servirá como base para a leitura dos casos selecionados.

c) Compreender e mapear os princípios adotados pelas ecovilas no que toca à questão

da sustentabilidade. Para além das práticas, entender os princípios que embasam a sua

adoção, e também, perceber o que há em comum nas ecovilas estudas, as tendências e

as suas limitações.

d) Definir as práticas de sustentabilidade mais utilizadas pelas experiências pesquisadas.

Tal objetivo permite o desenho mais geral do que se faz nas ecovilas no contexto

brasileiro, procurando-se entender também, qual o nível de sustentabilidade a que

chegam as experiências, tanto de forma específica (relativo a cada experiência) quanto

de forma geral. Este objetivo pressupõe ainda um mapeamento do campo das ecovilas,

apontando as práticas mais significativas no contexto brasileiro.

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Em função destes propósitos, dois são os pressupostos do presente trabalho:

a) Dada a existência da pluralidade de princípios econômicos, de autonomia

institucional, de democracia interna, de uma sociabilidade comunitária (interna e

externa à ecovila), e de uma finalidade multidimensional as ecovilas podem ser

classificadas dentro do marco da economia solidária.

b) Levando-se em consideração que as ecovilas articulam uma multiplicidade de

dimensões no que toca às suas práticas de sustentabilidade (entre o econômico, o

social, o cultural, o político e o ambiental), observa-se variações no modo que cada

experiência a define, em razão da maior ênfase em uma ou outra destas dimensões.

Procedimentos metodológicos

Com relação às escolhas metodológicas, a pesquisa foi realizada com base no método de

multicasos (ou estudos de casos coletivos), que tem como propósito o desenvolvimento ou

validação de uma teoria (STAKE, 2005). Neste estudo, a intenção se alinha mais com o

primeiro propósito do que com o segundo, já que deve-se partir de referenciais conhecidos e

rearranjá-los de forma que eles sejam validados pelo universo sob análise. A utilização de

mais de um caso pretende reduzir em parte as limitações que seriam inerentes a um estudo

deste tipo como a dificuldade de generalização, a baixa preocupação com a validade dos

resultados e a baixa preocupação com a construção de um modelo teórico (GONDIN et alli,

2005). Neste sentido, Gondin e outros (2005) chamam a atenção que a generalização é sempre

teórica, nunca empírica (a menos que seja validado com vários outros casos), já que o caso

não é uma amostra.

O universo do estudo são as ecovilas dentro do contexto brasileiro, especialmente as

vinculadas à GEN (Global Ecovillage Network), o que garantiria uma certa identidade da

prática enquanto ecovila. No Brasil, são sete experiências registradas neste rede (GEN, 2009),

entretanto, por limitação de capacidade de trabalho realizou-se uma seleção de duas destas

experiências para análise sob profundidade.

Os dois casos selecionados para a realização da pesquisa foram a Fundação Terra Mirim, no

município de Simões Filho, BA e o Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado

(IPEC), em Pirenópolis, GO. O critério utilizado para essa escolha foi a relevância do caso no

campo em estudo, medida pela indicação de pesquisas exploratórios que envolveram internet,

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contatos pessoais e as próprias referências bibliográficas deste trabalho1. Elas apontam que

estas práticas estão entre as mais desenvolvidas no Brasil, pelo tempo de constituição,

tamanho e ações implementadas. Inicialmente, a intenção era incluir três casos vinculados à

GEN, mas pela dificuldade obtida junto às ecovilas, inseriu-se nas análises o caso da Ecoovila

1, situado em Porto Alegre, RS. Este caso surgiu de um estudo realizado logo no início da

presente pesquisa, e tinha cunho exploratório. Entretanto, foi considerado no trabalho final

pela contribuição que pode dar na compreensão do tema, principalmente pela comparação das

experiências, já que as conclusões sobre este caso indicam que ele se afasta, em alguns

aspectos da compreensão adotada neste estudo sobre ecovilas. Esta iniciativa foi eleita para

este primeiro estudo com base no critério da conveniência, dada a maior facilidade de acesso

aos dados e à visitação por parte do pesquisador. Apesar desta ecovila não estar associada a

Global Ecovillage Network, sua escolha se justifica também, pelo fato de ela se

autodenominar ecovila, compondo aquelas poucas experiências que assim se designam dentro

do estado do RS (assim como no Brasil, em que o número é relativamente baixo ao se

comparar ao contexto internacional).

Figura 1: Mapa com a localização das experiências. Adaptado de http://www.brasil-turismo.com/mapas/mapa-politico.htm

A estratégia de pesquisa envolveu principalmente a utilização de técnicas qualitativas, já que

1 Especialmente Bissolotti (2004) e Rainho (2006).

IPECPirenópolis

Fundação Terra MirimSimões Filho

Ecoovila 1Porto Alegre

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acredita-se que a natureza deste trabalho demanda uma análise aprofundada de determinados

elementos. Segundo Stake (2005), um estudo de caso demanda uma boa presença e

concentração do pesquisador junto ao objeto estudado. Neste caso, lançou-se mão da

observação participante (preferencialmente) e da não-participante. O pesquisador se alojou

por um período nas ecovilas apontadas, conforme as possibilidades e disponibilidades do local

(nos dois casos citados existem programas de aceitação de participantes de fora da ecovila,

que envolvem estadia, cursos e participação em atividades específicas por um período

determinado).

Na tentativa de realizar a triangulação dos dados, adotou-se também a técnica da análise

documental e a da entrevista. Na primeira situação, a análise se deu no material

disponibilizado voluntariamente nos referidos momentos de observação, bem como

documentos internos das ecovilas aos quais foi possível ao pesquisador ter o acesso. Os

documentos são utilizados aqui mais como material de apoio informativo sobre como

funcionam as experiências, sem a intenção de se avaliar o conteúdo. Estes documentos podem

ser os registros de planejamento, de reuniões internas, de gestão e os históricos, além dos

registros da instituição (estatutos e regimentos), bem como a documentação disponível na

internet. Eles incluem, além de textos escritos, fotos, material de divulgação e outros. Todos

eles seriam mais “oficiais” do que socialmente produzidos (VALLES, 2002), já que foram

coletados junto às próprias experiências.

As entrevistas adotadas foram, especialmente, as em profundidade, que poderiam ser

enquadrados, conforme Valles (2007), em dois tipos: conversacionais informais ou baseadas

em um guia. O procedimento de entrevista informal é visto também como uma forma

importante de aquisição dos dados, já que nem sempre o pesquisador tem condições (ou

dever) de estabelecer um tipo de relação formal de entrevista com o entrevistado (VALLES,

2007). A entrevista informal tornou-se um método frequentemente adotado pelo pesquisador,

visando aproveitar o máximo possível dos momentos de contato com os integrantes das

experiências. As entrevistas do tipo “baseadas em um guia” foram adotadas principalmente

nos momentos de sanar dúvidas ou de tentar aproximar o que era observado e “conversado”

com as discussões teóricas em construção para o trabalho. Devido a esta dinâmica, não se

estabeleceu procedimento de gravação, mas sim de anotação das informações apreendidas

sempre que houve ocasião.

Com relação às atividades, foi realizada uma visita de cerca de um turno na Ecoovila 1, onde

foi também aplicou-se uma entrevista em profundidade e a atividade de observação não

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participante. No Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado, foram realizadas duas

visitas: uma mais rápida, de um turno, onde foram realizadas a observação não participantes e

entrevistas com alguns dos seus moradores (duas entrevistas) e uma segunda de quatro dias,

para a realização de um curso, enquadrando-se em uma proposta oferecida de forma pública

pela ecovila (já que a comunidade não estava recebendo voluntários para o tempo em que o

pesquisador teria disponibilidade – considerado pequeno para o programa de estágio existente

no local). Nesta segunda visita, realizou-se também a observação não participante e a

participante, bem como quatro entrevistas com moradores. Na Fundação Terra Mirim, foi

realizada uma visita de três dias, onde foi possível a realização de observação participante e

de cinco entrevistas com moradores e trabalhadores do local. Neste caso, o pesquisador

hospedou-se na ecovila como voluntário, programa que permite que a pessoa trabalhe

enquanto passa um tempo no local, tendo redução nas tarifas de hospedagem diária.

Do ponto de vista da documentação, foi utilizada aquela disponibilizada na internet e em

publicações próprias. No caso da Fundação Terra Mirim, foi possível o acesso também a

documentos específicos da instituição, como o seu estatuto de constituição.

Estruturação do trabalho

Por fim, o presente trabalho está dividido em três partes principais, contendo ao total dez

capítulos, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, é empreendida tentativa de uma

compreensão mais geral para as práticas de ecovilas, sendo dividida em quatro capítulos, em

que são abordadas as questões históricas e conceituas, além de serem elencadas algumas

experiências internacionais das ecovilas. Além disso, nesta primeira parte são apresentadas

alguns elementos sobre a crise ambiental contemporânea, a fim de compreender o contexto do

surgimento das ecovilas. A este momento chamamos de primeira aproximação ao tema, que

implica na definição do objeto de estudo (conforme pode ser visto no esquema apresentado na

Figura 2). Na segunda parte do trabalho, dividida também em quatro capítulos, são

apresentados alguns debates que cercam o tema em estudo, em que fazemos a segunda

aproximação. Neste ponto é realizado o esforço de articulação de alguns dos referenciais mais

relevantes para o trabalho, como os de sustentabilidade, de socioeconomia (mais precisamente

de economia solidária) e de ecofilosofia, culminando na construção de um marco de análise

para as experiências nacionais em tela. A terceira parte do trabalho conta, então, com dois

capítulos, nos quais são feitas a apresentação e a análise propriamente dita das experiências.

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Figura 2: Esquema do desenvolvimento teórico-conceitual do trabalho. Fonte: elaboração própria

No primeiro capítulo do trabalho é apresentado um panorama dos problemas mundiais ligados

à atual crise ambiental. Nele, são apresentados alguns alertas dados pela comunidade

científica com relação às consequências negativas da ação humana sobre a natureza (tanto na

extração – esgotamento de recursos – quanto na devolução – poluição e mudanças

ambientais), bem como os impactos – presentes e futuros – destas consequências sobre o

próprio ser humano. Também são discutidos neste capítulo algumas possíveis conexões

explicativas entre estas consequências ambientais e os modelos de desenvolvimento

econômicos (e a ética vinculada) atualmente em voga, ligados às discussões que serão

realizadas mais adiante, a partir do Capítulo 5.

No segundo capítulo são apresentados os antecedentes destas práticas, que vão desde os ideais

utópicos até a concretização de comunidades alternativas conforme defendido pelos assim

chamados socialistas utópicos. Pretende-se aqui, identificar os elementos destas sociedades

que eventualmente inspiraram as práticas das ecovilas. Além disso, surgem aqui também

elementos para o debate mais contextual realizado na segunda parte, especialmente os ligados

à sociologia e antropologia econômica.

No terceiro capítulo, é empreendido um esforço de tentar precisar conceitualmente o que são

as práticas das ecovilas. Tal tentativa é feita sobre alguns referenciais já existentes,

especialmente provenientes de estudos anteriores sobre estas práticas. Além disso, neste

capítulo traz-se um contraponto no sentido de buscar o entendimento das limitações destas

práticas, especialmente no que toca ao seu propósito implícito de mudança social.

Já no quarto capítulo (último da primeira parte) são apresentadas algumas experiências no

mundo, a título de ilustração e de início do debate proposto. Estas práticas são apresentadas,

na medida do possível, à luz das discussões realizadas neste trabalho, buscando os elementos

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presentes em cada uma delas que contribuam neste sentido. Neste caso, são buscados aqueles

elementos que ligam estes casos às discussões conceituais, realizadas no capítulo anterior,

assim como aos debates realizados na sequencia, especialmente no Capítulo 8.

Iniciando a segunda parte, o quinto capítulo busca o entendimento em torno do conceito-

âncora da sustentabilidade, tentando identificar os elementos do debate que se alinhariam com

os propósitos deste trabalho. Neste ponto, são apresentadas algumas perspectivas críticas às

concepções econômicas neoclássicas, e que acabaram dando origem ao debate da

sustentabilidade; além disso, o próprio conceito de sustentabilidade é colocado em discussão,

buscando-se uma definição que seja apropriada ao presente estudo.

No sexto capítulo são apontadas algumas discussões em torno da ética ecológica, e como elas

redefinem as relações do ser humano com a natureza, trazendo à tona as implicações deste

debate para o agir humano e para sua organização socioeconômica. Aqui, busca-se apreender

principalmente as noções do princípio responsabilidade e da ecologia profunda de forma

aplicada às discussões realizadas.

Já no sétimo capítulo é trazido o debate da antropologia e sociologia econômica. O foco é

apresentar as suas críticas com relação ao mercado autorregulado, ao mesmo tempo em que se

tenta compreender como algumas vertentes percebem a questão da articulação entre diversos

princípios econômicos, especialmente na esteira do legado de Polanyi. Também, busca-se a

compreensão das implicações que estas questões têm com relação à noção de sustentabilidade

que se discute aqui.

O oitavo capítulo apresenta-se como uma culminância das discussões realizadas nos três

capítulos prévios, fechando a segunda parte do trabalho. A partir da contribuição de três

trabalhos, ligados a estas discussões, é apresentada uma proposta de quadro analítico da

sustentabilidade para as práticas. Este é o quadro que servirá como base para a leitura dos

casos, que se dará nos Capítulos 9, 10 e 11.

Assim, o nono, o décimo e o décimo primeiro capítulos apresentam cada uma das três práticas

estudadas, apontando o seu histórico, uma caracterização geral e as ações, projetos e

programas que cada uma realiza no presente. Além disto é feita, a análise destes casos tendo-

se em vista o referencial desenvolvido e o quadro analítico definido no Capítulo 8. Neste

momento, cada prática é avaliada em todas as dimensões da sustentabilidade propostas,

verificando sua aderência ao quadro e consequentemente o tipo de sustentabilidade que elas

definem. Além disto, se verificará como a prática pode se enquadrar nas definições dadas para

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ecovilas (especialmente a de Gilman) e para economia solidária. Além disto, este será o

momento de considerações mais livres sobre os casos, levando-se em conta, de forma geral, as

discussões apontadas neste trabalho e, de forma específica, as noções fornecidas pelo quadro

analítico principal.

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PARTE I

O Que São Ecovilas: Conceito, Histórico e Experiências

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1 UM DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO ATUAL

Em primeiro lugar, para situar os problemas vividos pela sociedade atual, podemos apresentar

alguns panoramas que definem uma preocupante situação, especialmente pensando nos

cenários que brevemente teremos que enfrentar. Brown (2009) aponta que já estamos

começando a perceber algumas consequências ligadas ao aumento da população, à diminuição

dos recursos hídricos, ao derretimento de geleiras, e ao uso dos grãos para produzir

combustível e proteína animal, e uma das principais é a escassez de alimentos. Entretanto ,

esta escassez não se apresenta de forma sazonal como em outros tempos, mas consistente. Tal

fato está provocando gradualmente o aumento no número de famintos no mundo e talvez, em

algum momento no futuro, o fará em ritmo acelerado. Como consequência disso, ainda, se

inicia uma disputa por terras cultiváveis, o que tem levado países importadores a comprar ou

alugar grandes áreas em outros países (BROWN, 2009).

O referido autor aponta ainda, que é necessário que se haja rapidamente, já que em avaliação

feita em seu livro Plano B (em 2009), três anos após o relatório do IPCC (Painel

Intergovernamental de Mudanças Climáticas, gerido pela ONU), os resultados em termos de

derretimento de geleiras, aumento da temperatura global e a elevação do nível do mar estão

ocorrendo de forma mais acelerada do que o pior cenário previsto neste relatório. Vale

ressaltar que o pior cenário previa a elevação de 6,4oC até o ano de 2100, considerada

catastrófica em termos de impactos globais. Para manter a elevação em 2oC, considerado o

cenário mais otimista (mas mesmo assim com mudanças perigosas), seria necessária uma

redução imediata de 60 a 80% nas emissões de gases do efeito estufa (BROWN, 2009).

Explicando a questão da escassez de alimentos, Brown (2009) divide o argumento em dois

momentos: um deles é o aumento da demanda mundial por grãos e o outra a redução da sua

oferta. O aumento da demanda se dá pelos três fatores: o crescimento da população, aumento

do consumo da proteína animal baseada em grãos (inclusive peixes de criadouros) e o uso de

grãos para abastecer automóveis. Do outro lado, a redução da oferta se dá pela erosão dos

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solos em várias partes do mundo (pela destruição das pastagens, aragem intensiva e o

desflorestamento o que permite o avanço de regiões desérticas), o esvaziamento de aquíferos,

as ondas de calor que afetam as plantações, as camadas de gelos que ao derreterem aumentam

o nível do mar (consumindo deltas produtivos), o derretimento das geleiras das montanhas

que alimentam rios (e sistemas de irrigação) em períodos de seca, a perda de terras cultiváveis

para uso não-agrícola, a transferência da água de irrigação para as cidades e a esperada

redução da oferta do petróleo (grande parte da produção agrícola atual depende dos seus

derivados, no formato de adubos, defensivos e combustível para os equipamentos).

Brown afirma que isto ocorre porque estamos vivendo numa espécie de Esquema Ponzi2

global, numa referência ao esquema de Madoff3 que ruiu durante a crise financeira de 2008.

Este esquema funcionava como uma espécie de pirâmide, em que os ativos de clientes novos

que entravam eram utilizados para pagar altas taxas de remuneração para quem já estava

investindo. Como todo esquema do tipo, o esquema de Madoff ruiu quando diminuiu a

quantidade de novos entrantes, de forma que não foi mais possível manter o pagamento dos

demais. Estamos fazendo isto com a Terra, e segundo dados apresentados por Brown (2009),

em 1980 superamos sua capacidade regenerativa e passamos a consumir seus “ativos”, sendo

que em 2009 já estávamos usando cerca de 30% a mais do que a capacidade dos sistemas

naturais se reporem. Esta informação é muito parecida com a já bastante divulgada estimativa

do WWF, com base nos cálculos da pegada ecológica global, que informa que a sobre-

exploração em nível mundial é de cerca de 25% , sendo que ela chega a 522% (ou seja, mais

de cinco vezes a capacidade de regeneração do planeta) no caso dos Estados Unidos, que é o

índice mais alto do mundo (WWF, 2011).

Um outro elemento que leva a acender a “luz de alerta”

da humanidade é a questão da escassez do petróleo.

Nosso estilo de vida depende basicamente deste

recurso, e a redução no seu fornecimento traria grandes

impactos. Hoje, sabe-se que esta possibilidade não é

abstrata, nem tampouco algo a se realizar num

horizonte longínquo, como fazem crer as companhias e

2 O esquema se refere a Charles Ponzi, que na década de 1920 celebrizou-se por pagar altos dividendos em curto prazo para os seus investidores. Descobriu-se depois que tratava-se de uma fraude com um esquema do tipo pirâmide, ou seja, que pagava os dividendos com o investimento de novos entrantes. Fonte: www.wikipedia.org.

3 Bernard Lawrence Madoff era presidente e fundador de uma sociedade de investimento que funcionava desde os anos 1960. Durante a crise financeira de 2008, descobriu-se que ele mantinha um esquema responsável por uma fraude de mais de US 65 bilhões. Fonte: www.wikipedia.org.

Figura 3: Pico do petróleo. Fonte: Campbell & Laherrère (1998)

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os discursos políticos sobre o tema (que possuem sempre um interesse específico associado).

Estima-se que ainda reste aproximadamente a metade das reservas originais de petróleo (o que

dá em torno de 1 trilhão de barris) (BROWN, 2009), entretanto a sua utilização não deve ser

mais tão simples como a da outra metade. Acontece que há um fenômeno chamado pico do

petróleo, primeiramente descrito por Hubbert (1956), que afirma que todos os poços tem um

pico de produção, a partir do qual a extração vai se tornando gradativamente mais difícil

(Figura 3). O pico dos EUA como um todo (média da produção de todos os seus poços,

incluindo-se as novas descobertas) já foi atingido nos anos 70 e estima-se que o pico global,

nas previsões mais otimistas, será atingido em poucos anos; outros, como os respeitados

consultores do meio C. Campbell e J. Laherrére, prevêem que ele possivelmente já tenha sido

atingido na metade da década passada (ver Figura 4), já que quase todos os grandes poços de

petróleo foram descobertos até os anos 60 (CAMPBELL & LAHERRÈRE, 1998; ASPO,

2011). O que se sabe é que o momento exato do pico só será conhecido após ter se passado

alguns anos, pela análise da série histórica. Campbell, entretanto, em revisão posterior (2008)

mantém suas previsões iniciais.

Figura 4: Projeção para o pico do petróleo. Fonte: Campbell & Laherrère (1998)

A consequência do atingimento deste pico é que se verá uma escalada constante no seu preço,

até que sua utilização da forma como se dá hoje ficará cada vez mais inviável. No limite, para

cada poço, chega-se num ponto em que a energia empregada para a extração e processamento

do petróleo é igual a que pode ser obtida com a sua queima. Ou seja, o petróleo nunca vai

acabar, mas a utilização no ritmo atual estaria com os dias contados. Neste caso, como visto

logo acima, a saída não seria a substituição do petróleo por biocombustíveis. Ela terá de

passar necessariamente pelo repensar dos paradigmas econômicos que dominam a

organização da nossa sociedade, especialmente no que toda a ideia de crescimento ilimitado,

que é financiado pela disponibilidade abundante deste recurso.

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Falando de prognósticos mais gerais para o futuro da humanidade, o relatório que dá

continuidade ao livro “Limites do Crescimento”, editado em 1972, e que atualiza algumas

discussões para 30 anos depois (MEADOWS, RANDERES & MEADOWS, 2002), apresenta

alguns cenários possíveis para nossas sociedades até o final do século XXI. Embora este

relatório possa ser considerado hoje desatualizado (já que tem quase dez anos), pela

velocidade que as mudanças vêm ocorrendo, é interessante ver como alguns de suas previsões

estão se concretizando. De fato, este próprio relatório inicia indicando que muito do que se

previu na sua versão original (1972), e que era desacreditado, acabou por ocorrer.

Baseando-se em análise computacional, alimentadas por dados como população, capital

industrial, poluição persistente e terra cultivável, que fluem conforme algoritmos definidos

pelo programa, foram definidos alguns possíveis cenários otimistas e pessimistas para o nosso

futuro. O programa trabalha com os limites dados pela extração de materiais e energia do

planeta e a sua capacidade de absorver os poluentes gerados pelo uso dos dois primeiros. De

fato, a simulação é considerada como tendo um viés otimista, já que não considera os

problemas gerados pela violência e conflitos, pelas operações militares e de guerra, pela

corrupção, pelos acidentes naturais ou provocados pelos homens, bem como as epidemias.

Também não considera as desigualdades, e os valores utilizados são médios para toda a

população mundial.

O primeiro dos cenários apontados pelo texto é a continuidade de como as coisas vêm sendo

feitas hoje (que os autores chamam de “business as usual”). Neste caso, a população segue

crescendo até cerca de 2030, mas a economia pararia de crescer logo nas primeiras décadas do

século XXI, passando a cair abruptamente. Cria-se um ciclo vicioso: como os recursos se

tornam gradualmente mais difíceis de obter, o capital gradualmente deixa o investimento

industrial, fazendo com que todos os setores da economia decaiam. Com isto, a partir de 2030

a população começa também a cair pela falta de comida e de serviços de saúde. Num cenário

mais otimista, que considera que os recursos seriam, na verdade, o dobro do que se conhece

hoje, este evento seria adiado por cerca de 10 a 20 anos. Entretanto, as práticas industriais

predatórias da atualidade deixariam um legado de poluição inimaginável (Figura 5). Mesmo

um cenário, em que se adote desde já tecnologias mais efetivas no controle da poluição e de

melhor uso da terra, com controle da erosão, haveria em algum momento o colapso

(provavelmente depois de 2070), advindo do custo que se tornaria cada vez maior para a

obtenção dos recursos não-renováveis. No caso da redução drástica da utilização de não-

renováveis, a perda de qualidade de vida seria menos abrupta, porém constante a partir de

2040, pelo aumento também constante dos custos de proteção da população contra os efeitos

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nocivos do processo industrial.

Figura 5: Simulação das condições futuras num cenário com o dobro dos recursos naturais conhecidos, mantidas as práticas atuais. Fonte: Meadows, Randeres e Meadows (2002)

Conforme este modelo, não há como se desenhar um mundo sustentável mantendo-se os

mesmos padrões de vida de hoje. Mesmo num cenário em que houvesse um controle imediato

da população (a partir de 2002, ano do relatório) haveria um momento de colapso,

provavelmente depois de 2040. É de se notar, contudo, que a qualidade de vida seria superior

àquele cenário em que os recursos são considerados em dobro. Adicionar a este cenário um

limite per capita para a produção também não seria suficiente, devendo-se também adotar

decisivamente as tecnologias ambientais, tudo já a partir de 2002 (ver Figura 6).

Figura 6: Simulação das condições futuras num cenário com controle populacional, limite na produção industrial e utilização de tecnologias para produção, agricultura e poluição. Fonte: Meadows, Randeres e Meadows (2002)

Os autores apontam dois insights que surgem destas análises: o primeiro deles é que a demora

na introdução destas mudanças reduz as escolhas no futuro; e o segundo é que não é possível

um cenário sustentável com mais de 7 bilhões de pessoas no planeta, mesmo com metas de

limitação da produção industrial e da adoção de tecnologias ambientais (MEADOWS,

RANDERES & MEADOWS, 2002).

Trazendo para mais perto dos debates que serão realizados no presente trabalho, poderíamos

compreender os problemas apontados a partir de três elementos explicativos. Todos elas

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dizem respeito, de alguma maneira, à influência do modelo criado pela revolução industrial

associada à disseminação de um mercado livre (ou autorregulado ou capitalista, conforme a

referência utilizada). Como veremos adiante, muitos outros elementos poderiam ser

referenciados, mas a citação destes pontos não é arbitrária, e está ligada aos argumentos

mobilizados para a construção da noção de economia solidária utilizada nesse trabalho.

O primeiro destes elementos é a noção de infinitude e de dominação da natureza contida nos

pressupostos dos desenvolvimentos tecnológicos e industriais da modernidade (JONAS,

2005). Tendo como norte a busca pela ampliação do conforto e do bem estar material da

sociedade, a primeira ideia contida nestes pressupostos é a de contenção da natureza,

considerada agressiva e selvagem, ou seja, a evolução da sociedade passaria pela dominação

cada vez maior das forças naturais, que seriam usadas, sem considerações dos custos

(especialmente os ambientais), em favor do próprio ser humano e dos seus objetivos

materiais. Alia-se a isto a noção de que os recursos naturais seriam ilimitados, e que eles

poderiam dar conta de uma ampliação indefinida do consumo, espalhando estes benefícios a

uma parcela cada vez maior da população4. Já vem surgindo, de fato, uma conscientização

sobre o erro contido nestas concepções, pela constatação da finitude concreta dos recursos do

planeta, já que o esgotamento de muitos insumos naturais se avizinha cada vez mais. As duas

reações mais comuns a isto, entretanto, tem sido, por um lado, a não-mudança, proveniente de

uma crença otimista de que a própria evolução tecnológica (apoiada pelo mercado) daria

conta da resolução deste problema e, por outro, a adoção de medidas superficiais, que não

alteram de forma significativa a cultura do consumo e esta perspectiva de crescimento

ilimitado. Esta última tende a ser muito perigosa pela absorção dos discursos críticos e pela

sensação consequente de que se está fazendo o possível (e o suficiente) com relação ao tema.

A questão da ilimitação do crescimento leva à segunda consideração, que se refere às políticas

desenvolvimentistas adotadas pela maioria dos países do mundo, principalmente a partir do

final da Segunda Guerra Mundial. A partir deste marco histórico, a tônica das políticas para o

desenvolvimento era buscar uma aproximação dos países subdesenvolvidos aos desenvolvidos

por meio do crescimento econômico acelerado, replicando o que estes vinham então fazendo.

Eram projetos do tipo top-down development, traçados e implementadas por agências

tecnocráticas nacionais e internacionais (SANTOS e RODRIGUES, 2002). O que estes

projetos fizeram, foi, de fato, aumentar o fosso entre ricos e pobres (dado que cristalizavam as

4 Esta é a ideia por trás do chamado “efeito cascata” ou “trick in down” (VEIGA, 2005), que pressupõe, como sugere o nome, que o crescimento teria como resultado automático a distribuição da riqueza por parcelas cada vez maiores da população, mesmo que se parta de uma camada pequena desta.

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condições de industrialização e produção dos países), distanciando as nações ditas

desenvolvidas das ditas subdesenvolvidas e ampliando as desigualdades sociais e econômicas

dentro de cada país, além de promover uma espécie de devastação cultural em diversas

regiões do globo. A contribuição destas políticas de desenvolvimento, nas questões aqui

tratadas foi a de justamente negar no seu debate a questão ambiental (ou considerá-lo apenas

de forma marginal) e ampliar as desigualdades, que empurrariam homens a atuarem de forma

ainda mais afastada da relação com a natureza.

O terceiro elemento pode ser tomado como sendo fundante dos outros dois, especialmente se

tomarmos em conta os argumentos das correntes críticas da sociologia e da antropologia

econômica. É a onipresença (ou a busca da) dos chamados mercado autorregulados ou

mercados capitalistas. A sua lógica intrínseca tende a transformar tudo em mercadoria e

eliminar os limites éticos e morais da ação humana, normalmente (fora do regime do

mercado) determinados pelas relações sociais. Dotado de uma ideia de expansão irrefreável

(e considerada necessária, dado que os economistas ortodoxos apontam que este sistema só

pode se estabilizar em movimento de crescimento, de preferência acelerado), permitida pela

eliminação de tais limites, o mercado capitalista faz-nos deparar hoje com riscos que parecem

se multiplicar diariamente. Brown (2009) chama a atenção ainda pelo fato de o mercado, além

de não conhecer os limites físicos da sua atuação, também tem outro grave problema, que é o

de não apresentar o custo real do produtos. O baixo preço da gasolina nos EUA, por exemplo,

não considera as mudanças climáticas, os pesados subsídios para a indústria petrolífera

(existe, nos Estados Unidos, a chamada “cota de exaustão” do petróleo americano), os

altíssimos custos militares diretos para proteger os poços no Oriente Médio e os custos da

saúde para tratar de doenças respiratórias causadas pela poluição.

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2 ANTECEDENTES: AS SOCIEDADES UTÓPICAS IDEAIS E EXPERIMENTAIS

O propósito do presente capítulo é identificar nas “utopias” históricas os elementos que

inspiram as práticas das ecovilas ou os quais elas têm uma maior identidade. Isto porque é

recorrente a referência às ecovilas como parte de uma utopia. A tentativa aqui é a de vincular

o surgimento das ecovilas às ideias de sociedades ideais, especialmente naqueles contos que

marcaram as sociedades ocidentais no período da modernidade e, em certa medida, da pré-

modernidade5.

Neste contexto, podem ser situadas as noções de utopia de Thomas More, Tommaso

Campannela, Platão e Francis Bacon, bem como as sociedades idealizadas pelos socialistas

utópicos, especialmente Owen e Fourier, o conceito de cidade-jardim de Howard e, mais

recentemente, as práticas de comunidades intencionais criadas a partir dos movimentos da

contracultura. Enquanto os autores de “utopias” anteriores ao séculos XIX se preocupam mais

com a crítica social e com a descrição abstrata de sociedades ideais (ou seja, que nunca

existiram ou não tiveram existência comprovada), os demais projetos, além de incorporarem

esses pontos procuram avançar na experimentação, assumindo uma perspectiva mais prática.

Os primeiros tipos têm em comum a apresentação de um Estado idealizado, organizado como

uma república (respeitando detalhes divergentes entre eles). Além disso, todos apresentam

sociedades igualitárias e sem propriedade privada (a exceção de Nova Atlântida, como se verá

logo mais); nestas nações idealizadas todos os cidadão são felizes, já que os males sociais

estão extintos (ou reduzidos significativamente), e as paixões e comportamentos destrutivos

do ponto de vista individual e social contidos.

Um ponto a destacar nestas construções, quando realizamos a aproximação com as ecovilas é

que a questão ambiental não é trazida para o centro das discussões, o que pode ser explicado

5 De fato a noção de “sociedade ideais” se considerarmos o termo da forma mais genérica possível perpassa praticamente todas as culturas, nas diversas noções de paraíso e de lugares perfeitos que elas constroem. Por isto, tal restrição de tempo só faz sentido a partir dos referenciais da civilização ocidental.

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pelo fato de que as discussões hoje em voga se originaram especialmente a partir da metade

do século XX6. Na maioria dos casos, a preocupação é mais no sentido de manter o contato

com a natureza, como algo bom para a saúde do ser humano; no caso dos socialistas utópicos

e de Howard, há um outro elemento que surge quando se fala em meio ambiente: busca-se um

“retorno à natureza”, pela perda que existiu com o processo de industrialização e

consequentemente a expulsão do homem do campo em direção à cidade.

2.1 Utopia E Socialismo Utópico: Projetos De Sociedade Ideal

2.1.1 A Atlântida de Platão

Atlântida é reportada por Platão (2011)7 como sendo uma cidade, componente de uma nação,

que existiu a cerca de nove mil anos antes da sua época8 e cuja descrição teria sobrevivido a

partir de uma transcrição oral que se iniciou com seus sobreviventes. Esta nação era formada

por uma confederação de reis e ficava situada em uma ilha9 no Oceano Atlântico, além das

“Colunas de Hércules” (Estreito de Gibraltar), e que submergiu em um dia e uma noite devido

a um terremoto.

Sobre a estrutura física da cidade, Platão informa que

[Posídon] desfez num círculo o monte em que ela [Leucipe] habitava, e construiu à volta anéis de terra alternados com outros de mar, uns maiores, uns mais pequenos – dois de terra e três de mar, no total, torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos, para que fosse inacessível aos homens . (Idem, p.230).

6 Embora seja um fato conhecido que muitas cidades e civilizações colapsaram no passado devido ao desgaste ambiental local, conforme citado por Brown (2010).

7 Estima-se que a data provável em que a obra foi escrita é entre os anos 430 e 425 aC (LOPES apud PLATÃO, 2011).

8 Ou seja, cerca de 11.500 anos atrás.9 De fato, a descrição de Platão faz crer que o local seria mais apropriadamente um continente, pelas suas

dimensões. “era maior do que a Líbia e a Ásia juntas, a partir da qual havia acesso para os homens daquele tempo irem às outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o território continental que se encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano ” (PLATÃO, 2011, p. 88). Segundo nota no mesmo livro, “a Líbia corresponde, actualmente, a todo o Norte de África, e a Ásia ao território que se estende desde a Península Arábica até ao Norte da Índia. ” (PLATÃO, 2011, p. 220).

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Esta estrutura foi continuamente melhorada com o tempo:

Primeiro, fizeram pontes sobre os anéis de mar que estavam à volta da metrópole antiga, criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real. Esta zona real, fizeram-na logo de princípio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados.

(…) Escavaram um canal com três pletros10 de largura, cem pés11 de profundidade e cinquenta estádios12 de comprimento, que começaram a partir do mar até ao anel mais exterior, e naquele local construíram uma via de acesso do mar àquele ponto, como a um porto; também abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito grandes. Também abriram os anéis de terra, que separavam os de mar, obedecendo à direcção e das pontes, de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma só trirreme, e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo; é que as bordas dos anéis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar.

Ainda, segundo Platão, havia uma muralha que revestia todo o perímetro externo da cidade,

coberta de cobre pelo exterior e de estanho pela parte interna. O seu centro continha diversos

edifícios suntuosos, como templos, hipódromo e outros edifícios. A cidade possuía ainda

fontes naturais frias e quentes, que serviam a diversos propósitos.

A zona exterior à cidade era formada por quadriláteros circundados por canais feitos à mão,

por onde eram transportadas a madeira e demais produtos por barco até a cidade. Toda a

região era dividida por distritos de dez por dez estádios, totalizando 60.000 distritos, sendo

que todos eles deveriam contribuir com um número específico de homens e equipamentos em

caso de guerra.

10 88,8m11 29,6m12 8880m

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Figura 7: Continente da cidade de Atlântida. Fonte Wikimedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Athanasius_Kircher%27s_Atlantis.gif)

Figura 8: Representação artística da cidade de Atlântida. Origem desconhecida.

O país era dividido em dez regiões, cada uma governada por um rei, sendo um deles o

soberano. Eles governavam com um poder absoluto:

Cada um dos dez reis, na sua região e na sua cidade, detinha um poder absoluto sobre as leis e sobre os homens, pois castigava e condenava à morte quem quer que quisesse. Por outro lado, a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relações mútuas dependiam das determinações de Posídon, tal como lhes transmitira a lei que havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco, que se encontrava no centro da ilha num templo de Posídon. Nesse local, os reis reuniam-se de cinco em cinco e de seis em seis anos, alternadamente, distribuindo assim equitativamente ciclos de anos pares e ímpares; durante essas reuniões, deliberavam

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sobre assuntos de interesse comum, verificavam se algum deles tinha transgredido alguma norma e julgavam-no (PLATÃO, 2011, p. 241).

Cabia aos reis seguirem, ainda outras leis:

nunca, em circunstância alguma, lutarem entre si; ajudarem-se todos uns aos outros, caso algum deles tentasse alguma vez destituir a família real numa cidade; e, tal como os antepassados, deliberar em comunhão as resoluções respeitantes à guerra e a outros assuntos, atribuindo o comando à estirpe de Atla13s. Não era lícito que um rei determinasse a morte de nenhum membro da sua família, se não tivesse o voto de metade dos dez reis (PLATÃO, 2011, p. 244).

Este país possuía uma sociedade dividida em castas, separadas pelas funções que cada

indivíduo exercia. A mais alta era a dos sacerdotes, seguida pelos trabalhadores (também

separados entre si conforme o ofício) e os guerreiros (que exerciam esta atividade de forma

exclusiva). Segundo Platão, essa era uma sociedade muito evoluída, dominando os

conhecimentos sobre astronomia e medicina e a arte da guerra. Tinha ainda muitas riquezas, e

um tipo específico de minério, que só dava na ilha e que revestia as muralhas centrais da

cidade. Além disto, tudo era produzido em abundância, e havia uma grande riqueza animal e

vegetal, além de belíssimas paisagens compostas por montanhas e vales.

Conta Platão em seu diálogo de Crítias que o exército de Atlântida tentou, em certa ocasião,

subjugar de um só golpe toda a Grécia, tendo Atenas triunfado no confronto e ainda libertado

todos os demais povos que haviam sido derrotados, até o limite do Estreito de Gibraltar.

A queda de Atlântida se deu por um castigo de Zeus, já que o seu povo estava se desviando da

virtude e da obediência aos deuses.

Platão não informa mais detalhes sobe a organização social e econômica da cidade. Muitos

textos especulam sobre estes detalhes, já que Atlântida assumiu uma posição de mito na

cultura ocidental. Com isto, sobre sua existência real recaem muitas hipóteses e especulações,

em diversos ramos do conhecimento, científico ou não.

2.1.2 Um país chamado Utopia

Utopia, segundo Thomas More14, é uma ilha hipotética situada em um oceano ou mar

13 Soberano de Atlântida, designado por Posídon.14 A referência utilizada não contém a data de publicação, entretanto o original de Utopia, segundo referências

internas do próprio texto foi escrito em 1516.

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indeterminado. Em termos geográficos, se fecha em um semicírculo de forma que é formada

uma enseada em seu interior (ver Figura 7). Tem cinquenta e quatro cidades, contendo cerca

de 6.000 famílias cada e uma capital, Amaurota, que está situada no centro da ilha.

Mais do que a beleza natural e arquitetônica que o autor procura destacar no seu país

hipotético, chama a atenção a forma de organização sociopolítica e socioeconômica que lá

prevalecem. De fato, a Utopia de Tomar More pode ser considerada como precursora do

comunismo, já que ele propõe uma sociedade sem propriedade privada e sem classes sociais

(pelos menos não associadas às condições econômicas, embora possa haver ali uma

estratificação em função de atribuições políticas, a maioria delas acessível a todos).

Dentro das suas cidades, todas com um

significativo espaço para o cultivo agrícola, o

trabalho mais pesado é equitativamente

distribuído. Todos os habitantes das cidades

habitam na zona agrícola por dois anos, em

grupos familiares compostos por “pelo menos

quarenta pessoas, homens e mulheres, sem

contar dois criados” (MORE, n/d, p. 53). A

cada ano, metade do grupo é trocado, em um

sistema de rodízio e nas épocas de colheiras,

uma força tarefa é feita com moradores da

área urbana. Dentro desta última área são

realizados os demais ofícios (tecelão, padeiro,

pedreiro, ferreiro, carpinteiro, além da

produção das próprias roupas),

especificamente no âmbito doméstico. Apesar

disso, pode-se mudar de profissão, e se o pretendente a tal mudança for uma criança, pode

“ser adotada” por outra família para tal. Entretanto, quem organiza as necessidades produtivas

é o Estado, que estipula que nenhum trabalhador deve ter uma jornada de trabalho maior do

que de seis horas (a menos que assim o queira), e que pode ser reduzida, para toda a

população, se a produção atingir um certo nível de excedente; outrossim, os filarcas assumem

a função de vigiar os trabalhadores para que dediquem-se efetivamente ao trabalho.

A parte do trabalho mais pesado é feito por escravos, que são compostos por presos de guerra,

condenados a morte de outros países (que seriam comprados por Utopia) e, principalmente,

Figura 9: Utopia

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por cidadãos que infringiram as leis e perderam sua liberdade. Uma outra classe de escravos

são os cidadãos de outros países que se apresentam voluntariamente, e que são, por isto,

melhor tratados do que os demais, podendo ter sua liberdade restituída quando assim o

quiserem. Dentre as atribuições dos escravos está o abate de animais e os trabalhos mais

pesados nas cozinhas comunitárias.

Estão liberados do trabalho braçal todas as pessoas que assumem os cargos políticos, os

sacerdotes e aqueles considerados dedicados aos estudos. Estes últimos são dispensados para

esta função por indicação de filarcas e sacerdotes e por referendo popular, sendo geralmente

os que assumem, futuramente, os cargos políticos. Por voto direto são escolhidos, ainda, os

sacerdotes.

A economia de Utopia é não-monetária, todos levam os resultados da sua produção para um

centro de distribuição e lá cada chefe de família solicita o que necessita. Há ainda um

processo de redistribuição de excedentes entre as cidades, organizado pelo senado.

Enquanto sistema político, ele é definido a partir da ideia de representação. Cada grupo

familiar, conta com um homem e uma mulher, que servem como “pai” e “mãe” deste grupo.

Cada trinta grupos familiares elegem um “filarca”, que cuida dos seus interesses. Na cidade,

esta figura é denominada magistrado, também eleito por um grupo de trinta famílias. Cada

dez filarcas elegem, então um protofilarca e o conjunto dos filarcas de uma cidade elegem o

príncipe a partir de uma lista de quatro nomes indicados pelo povo. Todos os cargos têm

mandato de um ano, exceto o príncipe, cuja função é vitalícia. O príncipe governa junto com

um conselho formado pelos protofilarcas, bem como presta contas a um senado, que é

composto a partir do encontro anual em assembleia de três anciãos enviados por cada cidade à

capital.

A vida social dos utopianos é ocupada com recreações diárias ao final do dia, em praças ou

salões públicos. Apoiam a realização de prazeres, desde que sejam sóbrios e sem excessos.

Também realizam suas refeições de forma coletiva na área urbana, em refeitórios

administrados pelos filarcas, com capacidade para agrupar as trinta famílias sob sua

responsabilidade. As mulheres preparam as refeições e os adolescentes servem a mesa. Conta-

se que a refeição, especialmente o jantar é sempre um momento animado de convívio social, e

nunca falta uma música e outros agrados para companhá-la.

Em Utopia, são permitidos a eutanásia (que seria recomendada em certos casos) e o divórcio

(entretanto apenas em certas circunstâncias e aprovado pelo senado). O adultério, todavia, é

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considerado crime. Não existem penas definidas de antemão para as infrações, cada caso é

analisado pelo senado, sendo a pena mais comum a da escravidão, além daquelas a serem

aplicadas no âmbito doméstico. A pena de morte é aplicada somente nos casos de revolta do

condenado.

No entanto, existem práticas em Utopia que provavelmente seriam condenadas em nosso

tempo. Um deles é a justificação da colonização de terras exteriores, mesmo com o uso da

força sobre índios (a possibilidade de ocupação de terras “civilizadas” ou “já ocupadas”,

como o texto se refere, estaria fora de cogitação), para reduzir a pressão populacional sobre

dada cidade. Outro seria a uniformização cultural dada pela imposição de normas gerais,

expressos, por exemplo na vestimenta padronizada dos habitantes. Neste caso, ressalta no

texto uma crítica do autor à frivolidade das aparências e à diferenciação social demarcada

pelo preço dos trajes de determinado indivíduo. Um terceiro ponto seria também a restrição à

liberdade de locomoção dos habitantes, o que poderia ser visto como uma afronta do direito

de ir e vir, presente em diversas constituições nacionais. Aqui, contudo, subjaz outra crítica: a

da malemolência ao trabalho, já que o controle da movimentação teria como principal

objetivo evitar que alguém escape das suas obrigações: neste caso, a viagem até seria

permitida, desde que o viajante pudesse prestar algum serviço no seu destino.

2.1.3 A Cidade do Sol

A cidade descrita por Tommaso Campanella (2011)15 se encontra em um lugar ermo, numa

floresta perto de Taprobana16. Sua descrição aponta que ela está situada numa vasta planície e

é composta por sete círculos concêntricos protegidos por muralhas sobre uma elevação,

perfazendo um diâmetro externo de pelo menos duas milhas. Os muros, extensamente

adornados com pinturas representando as ciências, fornecem a proteção para a cidade,

juntamente com equipamentos de guerra e proteção. No centro da cidade, que compreende

uma planície, encontra-se um extenso e suntuoso templo.

O supremo regente da cidade é um sacerdote, denominado Hoh (ou Metafísico), que detém

autoridade absoluta, tanto do ponto de vista espiritual quanto temporal, exercendo o cargo

vitaliciamente. Ele é apoiado por três chefes: Pon (ou Potência), Sin (ou Sabedoria) e Mor (ou

15 A obra original foi publicada em 1623.16 Ilha do Mar das Índias, atualmente Ceilão.

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Amor), que também exercem esta função de forma vitalícia. O primeiro está encarregado dos

assuntos de paz e guerra, o segundo das artes, ciências, dos doutores, dos magistrados e da

educação e o terceiro à geração (uniões amorosas), a agricultura, a pecuária, a farmácia, ao

vestuário, a preparação dos alimentos e a educação das crianças. Estes são, entretanto, como

que cargos executivos, a colocarem em práticas as decisões tomadas a partir de discussões em

assembleias gerais quinzenais, das quais podem participar quaisquer cidadãos com mais de

vinte anos (CAMPANELLA, 2001).

Campanella (2001) ainda informa que na Cidade do Sol, não existe propriedade privada e

tudo é comum, inclusive as “dignidades e os prazeres” e “casas, filhos e mulheres”, cabendo

aos magistrados regular esta igualdade. Com isto, o próprio conceito de família é redefinido,

sendo todos como que pertencentes a uma única família.

A vestimenta, que é feita de forma que esteja preparada para guerra, também é uniforme,

apenas com pequenas diferenças entre homens e mulheres.

Os magistrados são escolhidos com base no destaque de aptidões individuais. As crianças são

educadas desde uma tenra idade, quando começam também a praticar exercícios físicos. Eles

passam por oficinas, em que aprendem todos os ofícios, assim como por aulas de outras

ciências (matemática, medicina e outras), sendo que os que apresentarem mais destaques em

todas estas artes são os que futuramente exercerão esta função. Os demais funcionários

(denominados mestres) são eleitos em assembleia dos magistrados mais os quatro regentes, e

esta eleição se dá com base nos seus conhecimentos, especialmente sobre a arte que irá se

consagrar, bem como na sua idoneidade. Assim também, se dá a escolha do próximo Hoh, que

deve ter mais de trinta e cinco anos e ter todas estas qualidades no mais elevado grau.

Segundo o autor, ainda, a execução dos ofícios tem apenas pequenas diferenças entre os

homens e as mulheres, ficando os primeiros em geral com os trabalhos mais pesados (arar,

semear, colher frutas, trabalhar na vindima, trabalhar com madeira e ferro, etc) e as últimas

com os mais delicados (ordenhar o gado, fazer o queijo, cultivar e colher legumes, tecer, fiar,

cortar cabelo e barba, preparar remédios, etc), bem como ao exercício da música, que também

pode ser feito por crianças. Todos devem conhecer três artes fundamentais: guerra, agricultura

e pecuária. Todas elas são elaboradas com base nos conhecimentos elaborados sobre as

atividades. As atividades mais pesadas da agricultura são realizadas em mutirão, por boa parte

dos moradores da cidade, no período apropriado. Aos jovens (menores que vinte anos)

também competem atribuições específicas, como os serviços da mesa. Eles ainda devem

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servir aos que passaram dos quarenta anos, além de se servir reciprocamente.

Cada círculo da cidade tem sua própria cozinha e despensas próprias, e são presididos por um

“velho” e uma “velha”. Estes se encarregam de castigar ou ordenar o castigo quando ocorre

alguma falta, além de observar as aptidões de destaque de cada menino ou menina. Não há

prisões na Cidade do Sol, e as principais punições podem ser o exílio, a agressão física, a

privação da mesa comum, a interdição ao templo, a proibição das mulheres e, nos casos mais

graves, a pena de morte. O condenado pode, entretanto, recorrer às estâncias superiores, até a

Hoh, único que pode eventualmente perdoar a falta.

O jantar é sempre feito em silêncio, exceto em dias de festa, quando é acompanhado de canto

e música. O magistrado normalmente recebe uma porção maior e melhor do alimento, que é

dividida com aqueles que mais se destacaram na atividade do dia. A hora do jantar é também

o momento de prestar as homenagens aos heróis e heroínas da cidade, com presentes como

grinaldas, alimentos agradáveis, roupas elegantes, e outros.

O tempo de trabalho diário é de, no máximo quatro horas, ficando o resto do tempo ao estudo,

à leitura, a discussões científicas, à escrita, à conversação, além de outras atividades

consideradas úteis ao corpo e à mente. Os cidadãos não se dedicam a jogos que mantenham o

corpo parado, como xadrez, dados e outros, mas preferem aqueles mais movimentados.

Aqueles que possuem algum tipo de limitação também tem ocupação útil na Cidade do Sol:

nenhum defeito é bastante para manter os homens na ociosidade, salvo em idade decrépita, na qual ainda são úteis dando conselhos. Assim, o coxo serve de vigia empregando os olhos sãos; o cego, com as mãos, desfia a lã e prepara plumas para encher leitos e travesseiros; quem é privado de olhos e de mãos serve a república empregando os ouvidos e a voz; finalmente, o que só possui um membro emprega-o do melhor modo possível (CAMPANELLA, 2011, p. 13)

A economia é essencialmente não-monetária, embora as moedas sejam utilizadas para o

comércio exterior. Este comércio, que se dá basicamente com produtos supérfluo (já que o

essencial é produzido na cidade), é realizado nos portos, para que não haja corrupção dos

costumes da cidade pelos estrangeiros. Entretanto, qualquer forasteiro é bem recebido

localmente, e pode tornar-se morador se provar por dois meses, em vivência experimental, sua

real vontade.

Quanto à religião, se afiliam à crença em Jesus e seus apóstolos, mas adotam práticas e

algumas crenças diferentes de quaisquer práticas cristãs. Os sacerdotes principais são os

próprios governantes, e no templo central são realizadas as principais cerimônias. Em dado

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momento do ano é realizado um sacrifício humano, com uma pessoa que voluntariamente fica

isolada na abóbada do templo por trinta a quarenta dias com parca alimentação, com o

propósito de purificar a república. Há ainda o sacrifício perpétuo, ou seja, um homem comum

reza por uma hora sendo sempre substituído por outro. No alto do templo habitam vinte e

quatro sacerdotes, que se aplicam a cantar salmos a Deus, realizar quatro orações diárias e

estudar astrologia, aplicando-a para orientar os destinos da cidade. Há ainda outras festas

religiosas e os corpos são cremados depois da morte (CAMPANELLA, 2011).

2.1.4 Nova Atlântida

Em Nova Atlântida (ou Bensalem), Francis Bacon (2011)17 apresenta um país distante,

perdido em alguma ilha no meio do Oceano Pacífico. Na aventura narrada pelo autor, um

grupo de navegadores encontra a cidade acidentalmente, após perderem-se no caminho entre o

Peru e a China.

No seu texto, Bacon dedica grande espaço para descrever como o país recebe os estrangeiros

(sempre muito raros) e as cerimônias para celebrar a paternidade. No primeiro caso, os

visitantes são sempre recebidos com cortesia e dignidade, mas são estabelecidas regras para

estadia e para o intercâmbio com o exterior, com o fim de se manter o isolamento (ou a

ignorância por parte do resto do mundo) da cidade. Neste sentido, o único intercâmbio

realizado é o de conhecimentos, quando emissários vivem secretamente em outros países para

aprender sobre outros costumes e ciências, além de trazer tudo o que lá pode ser valioso com

relação a este tema. Sobre a celebração da paternidade, cada homem que atinge mais de trinta

descendentes recebe uma honraria especial em formato de uma cerimônia e festa, na qual está

presente o próprio governador da cidade, e onde recebe, também, títulos, privilégios e rendas.

Um espaço muito importante da cidade é a Casa de Salomão, local muito antigo dedicado ao

conhecimento e às ciências, da qual são integrantes notórios cidadãos. Esta casa, segundo

Bacon, tinha por objetivo “el conocimiento de las causas y movimientos secretos de las cosas,

así como la ampliación de los límites del imperio humano para hacer posibles todas las cosas”

(BACON, 2011, p. 37).

A Casa de Salomão é responsável, assim, pela realização e aplicação dos conhecimentos

17 O original foi publicado em 1627.

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científicos na cidade. Esta instituição tinha tal importância que podia tomar decisões a revelia

do Estado, como não revelar determinada descoberta. Bacon utiliza boa parte do texto para

citar as invenções e aplicações da Casa, apontando diversos inventos que se assemelham aos

que hoje dispomos (como o telefone, o submarino, a manipulação genética, o microscópio, o

telescópio, a engenharia de materiais, dentre outros).

Nova Atlântida se difere das demais utopias descritas por não apresentar uma descrição mais

detalhada dos sistemas econômicos, sociais ou políticos, além de conter elementos que

indicam a existência da propriedade privada (omo observa Meneguello (2001)) e da função de

servo, o que aponta para uma sociedade de classes no sentido mais marxista. Um dos pontos

principais, entretanto, do texto é o domínio do ser humano sobre a natureza, questão que é

tomada como um dos pontos de partida para as críticas de Jonas (2006) ao pensamento

científico-tecnológico moderno, consubstanciado no que o autor chama de “ideal baconiano”,

como se verá mais adiante

2.1.5 O socialismo utópico

a) Robert Owen

Owen (2010), em seus principais ensaios, propõe uma forma alternativa de organizar a

sociedade que tem na educação um dos seus elementos centrais. Ele chega a esta proposta a

partir da ideia de que somos seres plásticos, ou seja, temos a personalidade em grande parte

definida pelo meio. A educação proposta por Owen, estaria, então, fortemente relacionada

com as emoções e com a moral, em que o “certo” e o “errado” se refeririam ao bem estar e a

felicidade proporcionada a si mesmo e aos outros pela ação individual, bem como aos males

evitados. Esta educação, que deveria se iniciar já nos primeiros momentos de vida seria

também crítica, fornecendo ao indivíduo a capacidade de fazer seus próprios julgamentos

relativos às consequências destas ações.

Com base nestes mesmos princípios (construídas a partir da sua própria experiência pessoal,

especialmente em New Lanarck), Owen defendia ainda que, um tratamento adequado aos

operários traria um resultado positivo, no sentido da construção de uma vida social mais

harmonizada e feliz. Este tratamento incluiria atender os indivíduos nas suas necessidades e

induzi-los a se comportar de forma solidária aos demais. Tal prática, pela sua superioridade

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em termos de resultados (de melhor bem estar para todos), acabaria por naturalmente esgotar

todos os maus comportamentos. Com isto, não seriam necessárias punições (prática que Owen

criticava justamente pela ineficácia e implícita falta de compreensão do comportamento

humano), apenas orientações para aquelas situações não solucionadas pela mudança de

tratamento proposta.

Do ponto de vista da superestrutura, Owen propõe uma alteração radical na legislação e no

aparelho do Estado com vista a colocar em prática os princípios que propõe. O autor criticava

fortemente as leis dos pobres em vigor na época, que na sua visão, destruía a autoestima desta

classe e a empurrava a realizar muitas práticas que a lei buscava combater (roubo, embriaguez

e indolência), além de afastar os indivíduos das práticas de caridade que ele considerava

fundamental na construção da harmonia social. Assim, a primeira e a mais importante destas

mudanças está ligada justamente à educação, que Owen propõe que seja universalizada nos

moldes que ele ajudara a implantar em New Lanarck, através da criação de um sistema de

educação relevante e uniforme. Além disto, seria imprescindível uma aliança entre os poderes

executivos e legislativos do Reino Unido, do povo e da Igreja (embora esta última seja alvo de

intensas críticas do autor). Por fim, o autor propõe ainda uma política de geração de emprego,

por meio da formação e controle da oferta e da demanda de trabalho do país.

Entretanto Piozzi (1999) enxerga na experiência owensista em New Lanarck os gérmens de

uma proposta anarquista: “Este reordenamento do espaço e do tempo na vida produtiva e

social, junto com a reformulação das condições ambientais e a pedagogia inovadora, constitui

a base da ordem "anárquica" owenista, onde governos e leis tornar-se-iam dispensáveis”

(p.14). Utilizando as palavras do reformador, coloca anda que "numa sociedade racionalmente

constituída, baseada e construída consistentemente nas Ciências Sociais, as leis humanas não

só não seriam necessárias, mas até altamente injuriosas" (OWEN apud PIOZZI, 1999, p. 14).

Apesar de a experiência de New Lanarck ser a mais significativa de Owen, e de ele não

concentrar sua proposta de mudança social na luta de classes, o socialismo comunitário era

um dos elementos centrais que ele advogava (MENEGUELLO, 2001). Ainda segundo

Meneguello (2001), a comunidade ideal de Owen seria o paralelogramo (ou a aldeia de

cooperação), conforme divulgado em jornais londrinos no ano de 1817:

a comunidade ideal de Owen se distribuiria em prédios que abrigariam cerca de 1200 pessoas, rodeados por cerca de 1000 acres, divididos em paralelogramos. O prédio central possuiria, à direita, a cozinha geral, refeitórios, escolas para crianças pequenas, gabinetes de leitura e local para cultos. À esquerda, haveria a escola para as crianças mais velhas e salas para adultos, além da biblioteca. Os três lados de

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cada um dos quadrados habitados seriam alojamentos para casados, obrigatoriamente com quatro cômodos (para o casal e duas crianças que, conforme indicavam os relatos médicos da época, deveriam dormir separados se fossem de sexos diferentes). O quarto lado do quadrado abrigaria crianças com mais de três anos que excedessem o número de dois filhos em uma família. Em uma extremidade ficaria a enfermaria e, na outra, um prédio para forasteiros que viessem visitar a família ou os amigos (MENEGUELLO, 2001, p. 190).

Meneguello segue na descrição da proposta owenista, agora no que diz respeito à estrutura

organizativa:

Nesse sistema, as funções estavam também divididas por sexo: as crianças deveriam comer no refeitório e dormir em seus próprios dormitórios “sendo que os pais podem, é claro, vê-las e falar com elas durante as refeições e em outros momentos apropriados (...), pois as crianças devem ser instruídas a não adquirir os maus hábitos de seus pais”. As mulheres deveriam, em primeiro lugar, cuidar das crianças; em seguida, cultivar as hortas; poderiam trabalhar na manufatura, mas não mais do que quatro a cinco horas por dia; por fim, deveriam fazer as roupas, cuidar da cozinha e dos dormitórios e supervisionar a educação das crianças na escola. As cri-anças mais velhas teriam funções semelhantes (Idem) .

Com isso, sob sua influência direta ou indireta dessas ideias, sugiram, após New Lanarck,

diversas sociedades cooperativas, em que os indivíduos morariam e produziriam em regime

coletivo de apoio mútuo. Segundo ainda Meneguello (2001), nos Estados Unidos, surgiram

sete comunidades (e mais três comparticipação incidental de owenistas), das quais New

Harmony, no estado de Indiana (ver Figura 10) é a mais conhecida delas, sendo que as demais

possuem documentação muito escassa. Todas estas comunidades terminaram em poucos anos,

e mesmo em New Harmony chegou-se a produzir os tijolos para a construção, mas ela não foi

erguida conforme o projeto. Entretanto, o impulso owenista retomou sua força a partir dos

anos 40 (quando muitas comunidades passaram também a ter uma influência fourierista),

chegando a mais de 130 comunidades antes da Guerra Civil americana (MENEGUELLO,

2001).

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Figura 10: Projeto de New Harmony nos Estados Unidos. Fonte: BRONA (2007 )

Já na Inglaterra, surgiram diversas sociedades cooperativas, como uma formada por gráficos

em Londres, em 1821, e outra em Motherwell, em 1822, que não chegou a ter início. Outras

experiências relevantes foram a Orbiston Comunity, de 1825 a 1827, na Inglaterra, e na cidade

de Talahine, na Irlanda, entre 1831 e 1833, na Irlanda. O esforço considerado mais relevante,

contudo, envolve a comunidade Harmony Hall em East Tytherly, Hampshire, de 1839 a 1845

(MENEGUELLO, 2001).

b) Charles Fourier

Da mesma forma que Owen, Fourier (2010) propõe uma reorganização da sociedade com o

objetivo de vencer os problemas sociais criados pela revolução industrial, e também não

trabalha com a ideia de luta de classes, tendo como um dos pontos importantes a educação,

que deveria começar desde a tenra infância.

Fourier, todavia, critica ferozmente Owen, especialmente devido a três fatores que este último

defendia em jornais europeus da época: a abolição dos cultos e dos padres, a posse

comunitária dos bens e o fim do casamento, fatores que ele considerava “monstruosidades

políticas”, apesar de ele próprio repensar também a noção tradicional de família, considerada

muitas vezes monótona e opressiva. Além do mais, suas considerações para as mudanças de

comportamento dos indivíduos estão mais voltadas para as paixões humanas. Fourier

considera que estas deveriam ser ordenadas no sentido de produzir bens úteis à sociedade,

voltando-se, especialmente, ao trabalho, ou melhor, ao ser humano deveria ser dada a

condição de amar ao seu trabalho.

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Fourier é também um forte crítico da sociedade industrial, sendo o seu modelo ideal de

organização o que ele chama de Harmonia. Para Fourier, o trabalho (ou a sociedade

industrial), deveria conter, em essência, quatro elementos atrativos principais: a) bem estar de

subsistência, ou luxo corporal interno, ligado principalmente à alimentação; b) bem estar em

vestimentas, habitação e transporte, ou luxo corporal externo; c) estilo de vida alegre,

vencendo o que seria a monotonia corriqueira da vida familiar a partir da ampliação do seu

núcleo, combinado com outros da comunidade; e d) participação, em que cada classe (rica,

pobre ou média) poderia combinar aqueles prazeres que são tipicamente seus com os

proporcionados pelas demais.

De fato, uma das diferenças mais significativas entre Fourier e Owen parece ser a forma como

estes encaram a sociedade industrial. Enquanto o segundo caminha no sentido de reformar o

modelo, mantendo, contudo, a noção mais geral de industrialização e do seu trabalho típico,

Fourier recusa a noção de indústria como ela existia: Segundo o autor,

O industrialismo é a mais recente de nossas quimeras científicas; é a mania de produzir confusamente, sem nenhum método em retribuição proporcional, sem nenhuma garantia para o produtor ou assalariado de participar do crescimento da riqueza; também vemos que as regiões industriais são tão cheias, talvez mais repletas de mendigos do que as regiões indiferentes a este gênero de progresso (FOURIER apud ABORNOZ, 2007, p. 10).

Harmonia seria organizada a partir da associação de séries passionais, tendo como base uma

lei universal da atração que levaria os seres humanos a se aproximar e agir segundo as suas

paixões. Para Fourier, esta lei seria uma manifestação específica da lei geral de atração do

universo, manifestada, neste caso, como atração passional entre seres humanos.

(ALBORNOZ, 2007). Harmonia, teria, assim, características totalmente diversas do

industrialismo vigente:

Importa dissipar desde o prefácio as ilusões do industrialismo ou abuso da indústria, porque são o regime mais oposto à política societária, que tem por base: a atração industrial, a repartição proporcional, a economia de recursos, o equilíbrio da população, e outras regras das quais em todo sentido se distancia o sistema industrialista, produção desordenada, sem garantia de justiça distributiva (FOURIER apud ALBORNOZ, 2006, p.10).

As séries passionais são grupos de atividades organizadas conforme os talentos e paixões dos

indivíduos. Estas séries não são permanentes, mas mudam, já que estariam também sujeitos à

variação, outra lei definida por Fourier, destinada a tornar as atividades ainda mais atraentes.

Outra consequência direta desta organização seria o próprio aumento na produtividade e na

prosperidade geral (ALBANOZ, 2007).

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No entanto, Harmonia não seria uma conquista imediata, mas sim resultado da evolução da

humanidade segundo nove estágios (FOURIER, 2010, p. 11)18: a) “Bastardo, sem homem”, b)

“Primitivo, pequena cultura” e c) “Selvageria ou inércia”, compondo o grupo do “Estado

Bruto, anterior à grande cultura”; d) “Patriarcado, média cultura”, e) “Barbárie, grande

cultura” e f) “Civilização, ciência e arte”, compondo o grupo do “estado falso, cultura

dividida e repugnante”; g) “Garantismo, semi-associação”, h) “Sociantismo, associação

simples” e, finalmente i) “Harmonismo, associação completa”, compondo o que seria o

“estado verdadeiro, cultura combinada e atraente”.

O projeto social de Fourier que materializa estas propostas seriam os falanstérios (ver Figura

11), que segundo Albornoz (2007) podem ser entendidos como um:

gigantesco conjunto habitacional coletivo revolucionário planejado obsessivamente até o nível dos detalhes numéricos, onde a vida social encontraria a sua harmonia pela organização em falanges e séries passionais, em que os indivíduos saberiam aproveitar e combinar ao máximo suas inclinações para sua felicidade pessoal, harmonia social e riqueza econômica, pois a produção coletiva de indivíduos bem situados a fazer o que lhes apaixona redundaria naturalmente em produção abundante. (Idem, p.4).

Figura 11: Palácio social do Falanstério. Figura de domínio público.

Os falanstérios seriam instalações próximas à natureza, comportando as atividades agrícolas e

os espaços de socialização (neste ponto, de forma similar às aldeias de cooperação de Owen).

A produção industrial seria realizada de forma artística ou artesanal, conforme os talentos e a

atração passional dos indivíduos (ALBANOZ, 2007).

18 Tradução livre.

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2.2 Um Modelo De Organização Espacial-Social: As Cidades-Jardim De Amanhã

Ebenezer Howard (1996) com sua proposta das cidades-jardins inaugura um movimento, que

tenta redefinir as cidades na tentativa da realização de uma ocupação mais harmonizada do

espaço físico e da constituição de um espaço mais saudável e atrativo para a vivência humana.

O referido autor, com base no cenário da Inglaterra do final do século XIX, de intenso êxodo

rural e inchamento descontrolado das grandes metrópoles (especialmente Londres), propõe

um conceito de cidade que superaria a separação urbano-rural, por meio de um planejamento

que colocaria, em um só espaço, o que seriam os atrativos (que ele chama de imãs) de cada

um destes ambientes, e eliminaria, ao mesmo tempo, as suas desvantagens. Ao construir um

novo espaço, a cidade-jardim, segundo estes parâmetros, o seu imã seria atrativo o suficiente

para tornar este tipo de organização (ou outros que tenham um princípio semelhante)

predominante frente aos demais (Figura 12). Sendo assim, Howard foge ainda da ideia de

“levar o homem de volta ao campo”, julgado impróprio por ele, já que o fato de vir à cidade

está vinculado aos atrativos que ela ofereceria.

A cidade não teria lotes privados, mas sim concessões para utilização. A sua propriedade seria

da municipalidade, e ela seria administrada por um conselho deliberativo e estruturas

administrativas constituídas para tal. O arranjo proposto pelo autor é similar ao de uma

cooperativa, com a diferença de que toda a terra poderia ser previamente comprada por

investidores privados que teriam o seu investimento restituído a uma dada taxa de retorno.

Nesta situação, na cidade conviveriam tanto investidores privados, interessados nos seus

negócios quanto operários, profissionais liberais e agricultores, além daqueles

empreendimentos públicos administrados pela municipalidade.

Neste arranjo, a principal (e exclusiva) fonte de receita da cidade seria a renda fundiária,

depois de pagos os juros e a parcela de amortização do investimento. O principal objetivo

deste formato é o de evitar a especulação imobiliária e manter atrativa a ocupação da área

rural, já que o custo de distribuição (o que inclui atravessadores) poderia ser

consideravelmente reduzido e, com o planejamento adequado, aumentar a fertilidade do solo

(ver logo adiante). Assim, todo o recurso que seria pago para o proprietário privado do lote, o

qual aumenta com a sua valorização e vira apropriação privada, seria também, utilizado para

investimento no bem estar da cidade. Um efeito direto disso, seria a redução do custo de cada

morador, que ficaria liberado de outras taxas municipais.

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Figura 12: Os três imãs. Fonte: Site Urbanidades (http://urbanidades.arq.br/2009/12/nova-imagem-no-banco-de-imagens)

Howard (1996) prevê ainda, que a cidade seria mais harmonizada com o seu entorno, além de

ser mais agradável e saudável para os seus moradores. Dentro de uma ideia que poderia ser

considerada visionária para a época (o livro foi escrito em 1896), o autor propõe que o lixo da

cidade seja utilizado nas parcelas agrícolas, além de prever a reconstituição dos ciclos naturais

na água:

o plano proposto abarca um sistema de coleta de esgotos que restituirá ao solo, de forma transmutada, muitos daqueles produtos cujo crescimento, exaurindo a fertilidade natural da terra, exigem em outras áreas o uso de fertilizantes tão caros que o sitiante às vezes fica cego para com sua necessidade (HOWARD, 1996, p. 124).

Do ponto de vista do planejamento físico, as cidades jardins seriam compostas por núcleos

urbanizados, construídos de forma circular, com todos os equipamentos comumente vistos na

zona urbana, circundados por uma região rural (ver Figura 13). A área total da cidade, que

poderia abrigar até 32.000 habitantes, seria de 2400 hectares, sendo 2000 dedicados à zona

rural e o restante compondo o núcleo urbano. A cidade circular seria dividida por bulevares

arborizados de 36m de largura em seis setores e seria circundada por ferrovias que ligariam às

demais cidades. No centro haveria um grande parque, equipado com sanitários e espaços de

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recreação, e contendo no seu interior os espaços públicos (administração, museu, teatro,

bibliotecas, hospital, etc). O parque seria imediatamente circundado pelo Palácio de Cristal e

a Quinta Avenida. O palácio seria ao mesmo tempo um espaço de comercialização e um

jardim de inverno, ou seja, um espaço coberto para utilização coletiva. Uma outra avenida

com 128 m de largura com duas linhas de tráfego e um largo canteiro circundaria a cidade

num ponto médio entre o centro e a ferrovia. Ele seria um parque adicional com 40 hectares,

além de conter escolas e templos conforme as expressões locais. No anel externo e junto à

ferrovia, estariam localizadas as fábricas, os armazéns, os laticínios e as outras indústrias, de

forma a se evitar a circulação pesada dentro da zona urbana. Por fim, haveriam jardins e

pomares extra-muros para que os habitantes pudessem usufruir de passeios saudáveis ao ar

livre e pudessem obter seu sustento (HOWARD, 1996).

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Figura 13: Planos da cidade jardim. Acima, contendo toda a área da cidade; abaixo, o recorte dado por dois bulevares. Fonte: http://www.sacred-texts.com/utopia/gcot/

Ao buscar os elementos em comum das experiências aqui elencadas com o fenômeno

ecovilas, que justificariam a aproximação (ou o entendimento das ecovilas como uma utopia)

teríamos:

a) a busca da convivência harmoniosa entre os indivíduos;

b) a participação dos indivíduos nas decisões que lhe impactam (embora os processos

democráticos descritos nas utopias não coincidam com os contemporâneos);

c) uma vida econômica (ou socioeconômica) não baseada em dinheiro;

d) a ideia da vida constituída sobre o consumo do suficiente (ou seja sem a noção de acúmulo

ou consumo excessivo).

Evidentemente, alguns desses elementos se aproximam na condição de princípio ou de

intenção das ecovilas, nem sempre sendo verificados em situações concretas. De fato, o

descolamento entre intenção e a ação concreta é um dos desafios vividos pelas ecovilas

(GARDEN, 2006).

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3 O CONCEITO DE ECOVILAS

3.1 Comunidades Intencionais

O conceito de comunidade intencional está ligado a todas as práticas experimentais ou

tentativas de comunidades que surgem de forma não espontânea com relação aos padrões

sociais (instituições) dominantes de uma dada sociedade, e podem referir-se tanto às práticas

mais ancestrais, como as comunidades cristãs na Roma Antiga quanto as mais recentes, como

as comunidades hippies e as ecovilas, por exemplo.

Segundo Metcalf e Christian (2003), comunidades intencionais são “formadas quando grupos

de pessoas escolhem viver juntas ou próximas o suficiente para buscar um estilo de vida

compartilhado com um propósito comum”19. A chave principal que une uma comunidade

intencional seria justamente a intenção, a escolha do estilo de vida, mais do que simplesmente

o compartilhamento do lugar comum.

Além disso, as comunidades intencionais podem apresentar uma diversidade muito grande

dos valores comuns, que podem ser tanto econômicos, sociais, espirituais, políticos e/ou

ecológicos. (CHRISTIAN apud METCALF & CHRISTIAN, 2003).

Um dos coautores define, em outro texto, questões como o número de pessoas, que teria que

ser acima de cinco e em mais de uma família, além de colocar em evidência o fato de que eles

dividem diversos aspectos das suas vidas, sendo caracterizados por uma consciência coletiva

(“we-consciouness”). Eles se enxergariam como um grupo contínuo, porém separados e

melhores, sob muitos aspectos, da sociedade de onde vieram (METCALF apud METCALF &

19 Tradução livre. Do original “[intencional communities] are formed when groups of people choose to live with or near enough to each other to carry out a shared lifestyle with a common purpose” (METCALF & CHRISTIAN, 2003).

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CHRISTIAN, 2003).

Segundo esses critérios, comunidades indígenas (e outros tipos de comunidades tradicionais)

não representariam comunidades intencionais, a despeito da sua vida comunal, pois esta

organização social é sua norma, e não uma escolha. Da mesma forma, prisioneiros e outros

formas de vida comunal forçada não são comunidades intencionais, visto que não são reflexos

das escolhas dos seus indivíduos (METCALF & CHRISTIAN, 2003).

As comunidades intencionais podem ser de diversos tipos, sendo sua classificação difícil por

causa dessa diversidade, que pode variar conforme todas as dimensões citadas acima; elas

podem ser seculares ou religiosas, mais coletivistas ou individualistas, tanto no aspecto da

propriedade quando da renda; do pondo de vista político, podem ser mais radicais, liberais ou

conservadoras ou mesmo nenhum deles; umas podem dar um valor muito alto à questão

ambiental (mesmo observá-la com um fervor religioso), enquanto outras ignorar este aspecto;

elas podem nem mesmo ser contrárias à cultura dominante, mas apenas trabalhar aspectos que

sejam complementares a esta. As comunidades intencionais podem ainda ser auto-

organizadas, organizadas pelo Estado (como na Dinamarca, na Austrália, em Nova Zelândia e

em Israel) ou por alguma instituição em particular (a igreja, por exemplo); elas podem estar

situadas em regiões urbanas (como o exemplo do cohousing, assim como as que promovem

um ativismo político) ou rurais; podem estar mais isoladas ou organizadas em grandes redes e

confederações (como as comunidades Yamagishi, do Japão, que também estão presentes no

Brasil) (METCALF & CHRISTIAN, 2003).

Ecovilas (assim como cohousings) são manifestações relativamente recentes de comunidades

intencionais. Entretanto, o fenômeno das comunidades intencionais remonta de longa data,

como a comunidade Homakoeion, fundada por Pitágoras em torno do ano 52 aC. Sabe-se,

contudo, de comunidades intencionais ainda mais antigas, como a dos essênios, onde acredita-

se que Jesus Cristo tenha vivido (METCALF & CHRISTIAN, 2003). Há relatos de

comunidades na Índia antiga fundadas por seguidores do Buda (os sanghas, cerca de 500 aC)

e de ashrams (comunidades espirituais) que teriam sido criadas em torno de 1500 aC

(MOHANTY, 2003). Muitas outras foram criadas ao longo deste tempo até o presente, como a

dos cristãos primitivos, os conventos, na Idade Média (e até o presente), grupos protestantes

radicais, no século XVI, e as comunidades dos socialistas utópicos, no século XIX, já citadas

anteriormente, apenas para trazer alguns exemplos A maioria delas tem vida curta, mas

algumas duraram muitas gerações (METCALF & CHRISTIAN, 2003).

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Santos Júnior (2006) aponta que as ecovilas têm um laço histórico mais estreito com as

comunidades que surgiram principalmente após a segunda guerra mundial, nos países

centrais, e tinham como características o fato de serem movimentos “contestatórios e

libertários que visavam questionar todos os setores constituídos da sociedade da época:

hábitos, ideias, corporeidade, arte, organização política, espiritualidade, estrutura produtiva e

social, tecnologia” (SANTOS JÚNIOR, 2006, p.3), o que implicava também em uma

mudança de valores e na forma de relacionamento com a natureza. Diversos movimentos

representavam esta forma de agir e pensar, ficando conhecidos genericamente como

contracultura, e incluíam temas como ecologismo, feminismo, pacifismo, movimento negro,

hippies, etc.

Metcalf e Christian (2003) apontam ainda algumas questões relevantes que atualmente a

maioria das comunidades intencionais tem de enfrentar: o primeiro dos aspectos é a

governança, em que algumas comunidades são governadas por líderes carismáticos

fundadores. Enquanto, outras são teocráticas e outras ainda por líderes eleitos; outra questão é

a resolução de conflitos, já que as comunidades devem aprender a resolver conflitos

produtivamente. Toca-se ainda na questão das finanças, que pode variar desde aquelas

comunidades em que o indivíduo é suportado pelo coletivo (quando há coletivização geral)

até aquelas em que o indivíduo suporta o coletivo. Outro ponto é o recrutamento, em que o

desafio é conciliar as propostas da comunidade com a intenção do novo membro; a

socialização, que está ligada ao item anterior, se refere ao processo de fazer o novo membro

se tornar “um de nós” ao invés de “um deles”. Há ainda, a preocupação com o

comprometimento, que é algo que se requer de todos os membros; um outro aspecto é a

mistura de idades, desafio para muitas comunidades, já que a maioria dos jovens tendem a

não permanecer residentes, pondo em risco a continuação da experiência. Um ponto tocado

ainda pelos autores é a relação com o governo e a vizinhança, já brevemente comentada, que

pode ir desde a contraposição até o apoio, neste caso, os autores apontam que normalmente a

posição da grande mídia é de animosidade, quadro que tem sofrido alterações com o tempo. O

grau de comunalismo é outro aspecto evidenciado, em que as atividades da comunidade

podem ser realizadas mais ou menos coletivamente; os autores colocam as ecovilas dentro

desta característica como relativamente pouco comunal. A tecnologia (ou seu uso) é também

um aspecto apresentado, sendo relevante a forma como a comunidade se apropria das

soluções tecnológicas ou se as rechaça; por fim, os autores se referem à questão dos visitantes,

em que muitas comunidades incentivam a presença, pois representam também uma fonte de

renda.

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3.2 Possíveis Definições Para Ecovilas

Santos Júnior (2006) defende que, apesar de as ecovilas serem herdeiras das comunidades

intencionais surgidas após a metade do século XX, continuando algumas de suas

características, elas produzem uma síntese de um amplo leque de experiências, que abarca

muito da história das comunidades intencionais, e que tiveram, em sua época, igualmente um

caráter de contestação e de tentativa de definição de um outro tipo de vivência em sociedade,

como o exemplo do socialismo utópico, ou do movimento quilombola, que ensejou a

construção de quilombos com uma grande longevidade (muitos perduram até hoje).

Esta síntese definiu, segundo Santos Júnior (2006), o formato específico das ecovilas, que se

apresentou mais claramente nos anos 90. Elas se assentam, dessa forma, no debate que

envolve as questões de esgotamento da natureza, por um lado e os crescentes desníveis sociais

a se propagarem pelo mundo, por outro. Esses dois pontos fundam alguns dos propósitos nos

quais se assentam as ecovilas: de um lado, uma transformação na forma do relacionamento

com a natureza, que implica fundamentalmente numa mudança na maneira como ela é

percebida – deixando de ser um “pano de fundo”, com todas as implicações que isto têm, e

passando a ter um papel central nas atividades humanas – que deveriam se integrar a ela como

num sistema, adotando-se uma forma de viver com baixo impacto ambiental. De outro lado,

busca-se a definição de um novo formato de estruturação social que superaria a “dicotomia

entre os assentamentos rurais e urbanos” (SVENSSON apud SANTOS JÚNIOR, 2006, p.8), e

que se estabeleceria sobre valores comunitários, implicando em, por exemplo, respeito à

diversidade, a cooperação, a solidariedade, a autonomia, a liberdade, e novamente, o profundo

respeito à natureza; numa perspectiva está em foco a vivência em harmonia com a natureza,

na outra a vivência em harmonia com os outros. Tais características fazem com que as

ecovilas sejam singulares em cada uma de suas iniciativas, tendo, entretanto uma unificação a

partir do fato de elas serem, ao mesmo tempo, intencionais e sustentáveis (SANTOS

JÚNIOR, 2006).

Em complemento a esta definição mais abrangente, podemos tomar a definição que Gilman

(1991) dá às ecovilas, experiências que ele aponta como sendo uma expressão da tentativa de

concretização de um sonho de vivência harmoniosa. Ele propõe uma caracterização que

engloba cinco pontos principais: são assentamentos em escala humana, completos, nos quais

as atividades humanas são integradas sem danos ao meio natural, de uma forma que se

permita o desenvolvimento humano saudável e que possa ser continuada com sucesso no

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futuro20. Interessante notar que na definição de Gilman, não está presente o debate sobre a

intencionalidade da comunidade, o que poderia levar a uma ampliação do leque de possíveis

comunidades que teriam as características apontadas.

Estas cinco características podem ser assim descritas:

a) “escala humana”: refere-se ao tamanho adequado para que as pessoas possam conhecer e

ser conhecidas por outras numa comunidade, e no qual as pessoas percebam que podem

influenciar na sua direção. Gilman (1991) aponta que este número gira em torno de 500

pessoas, podendo ser maior (em comunidades isoladas) ou menor (em sociedades industriais

modernas).

b) assentamentos “completos”: neste caso, estariam presentes, em proporções adequadas,

diversos tipos de atividades que satisfaçam as necessidades dos moradores, desde produção de

alimentos, algumas manufaturas até a vida social e o comércio, como uma espécie de

“microcosmo” da sociedade. Isto não significa que as ecovilas devam ser totalmente

autossuficientes ou isoladas do entorno, até porque muitos dos seus moradores trabalham fora

e outros ainda empregam em suas atividades pessoas que não residem na comunidade. Além

disso, diversos serviços não podem ser alocados em cada ecovila, pela sua escala. Neste caso,

poder-se-ia haver uma cooperação entre várias delas, num processo de planejamento conjunto

da produção em grandes escalas.

c) atividades humanas integradas ao mundo natural sem danos: uma ideia importante aqui é a

da igualdade entre os seres humanos e outras formas de vida, em que o ser humano busca o

seu lugar na natureza, ao invés de dominá-la. Outra questão relevante é a utilização cíclica dos

recursos, ao invés da linear que predomina na sociedade industrial, o que aponta para

utilização de fontes alternativas de energia e reutilização/reciclagem de resíduos ao máximo

nível possível.

d) permitem um “desenvolvimento humano saudável”: isto envolveria o desenvolvimento

integrado de todos os aspectos da vida humana: físico, emocional, mental e espiritual,

devendo ser expresso tanto na vida individual quanto na comunitária.

e) podem ser continuadas com sucesso num futuro indefinido: é o princípio da

20 Tradução livre. Do original: a) "A human-scale...; b) “...full-featured settlement...”; c) “...in which human activities are harmlessly integrated into the natural world...”; d) “...in a way that is supportive of healthy human development...” e e)” ...and can be successfully continued into the indefinite future”. (GILMANN, 1991)

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sustentabilidade das ecovilas. Gilman (1991) reconhece, entretanto, que hoje dificilmente uma

ecovila alcance um status de plena sustentabilidade, pois suas atividades tendem sempre a

depender de outras “insustentáveis” em outros lugares, mesmo que se consiga internamente

alcançá-la num nível elevado.

Uma terceira definição que é relevante também apresentarmos aqui é aquela dada pelo Global

Ecovillage Network (GEN, 2010). Esta rede define ecovilas como sendo

comunidades urbanas ou rurais de pessoas que lutam para integrar um meio ambiente apoiado no social com um modo de vida de baixo impacto. Para alcançar tal intento, elas integram vários aspectos do design ecológico, permacultura, construção ecológica, produção verde, energias alternativas, práticas de construção comunitária e muito mais21.

Com base também na noção de comunidades intencionais, a GEN (2010) aponta que a

motivação para a constituição das ecovilas está na escolha (e no compromisso) de reverter os

problemas atuais do nosso planeta, provocados pelas práticas destrutivas que se dão nas

esferas sociais, culturais e ambientais. Neste sentido, a rede aponta que, de fato, sempre

existiram pessoas que viveram (e algumas ainda tentam sobreviver) em comunidades ligadas

à natureza e com estruturas sociais mais adequadas, e que hoje as ecovilas são “criadas

intencionalmente, de forma que as pessoas podem ainda mais uma vez viver em comunidades

conectadas com a Terra de uma forma que permita o bem-viver de todas as formas num futuro

indefinido”22.

Apesar da força desta ideia de que as ecovilas são herdeiras de práticas tradicionais, Gilman

(1991) defende que elas representam, na verdade, um tipo de prática nova. Por um lado,

porque as comunidades agrícolas tradicionais tem alguns problemas do ponto de vista

ambiental e social (pelo menos segundo os parâmetros modernos). Elas dependem, pelos tipos

de tecnologias utilizadas na agricultura, de uma baixa densidade populacional, além de

utilizarem muitas técnicas que também são ambientalmente agressivas. Além disso, estas vilas

tradicionais nem sempre são um espaço para a convivência humana harmoniosa, uma vez que

são frequentemente patriarcais, havendo “enfeudamentos” e desconfianças entre vizinhos e

com o mundo em volta.

21 Tradução livre. Do original “Ecovillages are urban or rural communities of people, who strive to integrate a supportive social environment with a low-impact way of life. To achieve this, they integrate various aspects of ecological design, permaculture, ecological building, green production, alternative energy, community building practices, and much more.” (GEN, 2010)

22 Tradução livre. Do original “Ecovillages are now being created intentionally, so people can once more live in communities that are connected to the Earth in a way that ensures the well-being of all life-forms into the indefinite future.” (GEN, 2010).

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Por outro lado, o autor aponta que ecovilas “verdadeiras” são um fenômeno “pós-industrial” e

mesmo “pós-agrícola”, que tira das experiências humanas lições para constituir suas práticas.

Elas surgem num contexto diferente destas práticas tradicionais, pois: existem novas

constrições ecológicas (alta população e nova capacidade tecnológica); elas defrontam-se com

novas técnicas e tecnologias, o que implica desde mais conhecimento sobre os ecossistemas

até novas formas de comunicação, ou ainda tecnologias mais eficientes para os recursos

renováveis e novas formas de organização humanas e; há um outro nível de consciência e

cautela, especialmente considerando-se nosso posicionamento na história da Terra e a sua

finitude física.

Todas as definições aqui apontadas trazem alguns elementos em comum: a) a ideia de que as

práticas representam uma nova forma de relação do ser humano com a natureza, baseada em

valores diferentes dos predominantes nas sociedades industriais modernas, ou seja, num

sentido de integração, de valorização e respeito, em contraposição às ideias de separação,

utilitarismo e não-reconhecimento de um valor próprio para natureza; b) a noção de que as

ecovilas constituem práticas que vão além da questão ambiental ou ecológica, e avançam

sobre a questão social e econômica, buscando a valorização ou a reconstituição de um tipo de

relação humana mais harmonizada e c) que, apesar de serem herdeiras de diversas práticas

tradicionais constituem um tipo de prática nova. Neste último ponto há uma certa variação nas

percepções, desde a ideia de que elas se diferenciam principalmente com relação à

intencionalidade (GEN, 2010) até a noção de que elas constituem uma síntese nova,

principalmente em função do contexto dado pela sociedade moderna e industrial.

3.3 O Que Norteia As Práticas Das Ecovilas: Entendendo A Permacultura

Outros conceitos relevantes para o entendimento das ecovilas são os de permacultura e seus

derivados23, já que eles aparecem com frequência em textos e discursos ligados às práticas24.

Dentro da ideia de permacultura, estão também estabelecidas (como nas discussões sobre

sustentabilidade apresentadas no Capítulo 6) críticas aos modelos de desenvolvimento

23 Como bioconstrução, alguns tipos de aproveitamento cíclico de recursos, a policultura, hortas em mandala, etc. Nem todos são derivados diretamente da ideia da permacultura, mas são normalmente utilizados em seu nome, devido à convergência conceitual.

24 Ver GEN (2010), ENA(2009), IPEC (2010), RAINHO (2006), BISSOLOTTI (2004), apenas para citarmos alguns exemplos.

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dominantes. Holmgren (2007) aponta que vivemos em uma cultura dominada pelo

consumismo, e que é impulsionada por medidas econômicas equivocadas de bem-estar e

progresso. Estas medidas criam distorções, fazendo com que, para a maioria da população

mundial, a renda real seja baixa com relação ao custo das necessidades básicas, ao contrário

de uma parcela mais privilegiada, especialmente do Norte, em que estes custos são baixos e

mesmo decrescentes com relação à renda. Isto tem dois efeitos, simultaneamente para cada

uma destas parcelas da população: no primeiro caso, convive-se com cada vez mais

dificuldades de manter ou encontrar meios mais diretos e sob o próprio controle para

satisfazer suas necessidades, devido à exaustão dos recursos naturais, conflitos étnicos,

exploração de governos e empresas, gerando pressões para a mudança do campo para a

cidade, por exemplo. No segundo caso, há um isolamento dos consumidores dos sinais de

esgotamento ambiental, fazendo com que estes não percebam a necessidade do

desenvolvimento de estilos de vida mais sustentáveis e arrefeçam a busca por políticas

públicas neste sentido. Com isto, estas políticas e estes hábitos tendem somente a

desenvolver-se e crescer em sentido contrário; ironicamente, os indicadores de bem-estar e

capital social caem constantemente desde o pico dos anos 70 (HOLMGREN, 2007), o que

pode ser explicado, em grande parte, pelos cortes nos gastos públicos em educação e saúde e

outros serviços básicos por conta dos ajustes estruturais impostos por organismos como FMI e

Banco Mundial.

Numa definição mais atual de permacultura, HOLMGREN (2009) aponta para a noção de:

“paisagens conscientemente desenhadas que reproduzem padrões e relações encontradas na

natureza e que, ao mesmo tempo, produzem alimentos, fibras e energia em abundância e

suficientes para prover as necessidades locais” (p.xix)25, o que envolve as pessoas, a forma

como se organizam e suas edificações. Este conceito, segundo o autor citado, representa uma

evolução com relação à sua designação inicial (cunhada pelo autor em parceria com Bill

Mollison), passando da ideia de uma “agricultura permanente ou sustentável” para uma

“cultura permanente e sustentável”.

O conceito de permacultura tem suas bases na ciência ecológica e no pensamento sistêmico.

Com isto, ela se constitui sobre cinco hipóteses principais: a) embora o ser humano seja

distinto do meio natural, ele está sujeito às mesmas leis que o regulam, incluindo as trocas de

energia e evolução da vida; b) a extração de combustíveis fósseis é a principal causa do

25 Tradução livre. Do original em inglês: “consciously designed landscapes wich mimic the patterns and relationships found in nature, while yielding an abundance of food, fiber and energy for provision of local needs”

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crescimento populacional, da tecnologia e de cada nova característica da sociedade moderna;

c) a crise ambiental é real e provocará profundas modificações na sociedade global industrial

moderna, ameaçando o bem-estar e mesmo a sobrevivência da população mundial; d) os

impactos humanos na biodiversidade hoje e no futuro são maiores do que as mudanças dos

últimos séculos; e) o fatal esgotamento dos combustíveis fósseis resultará num retorno

gradativo aos “princípios de design de sistemas existentes nas sociedades antigas e na

natureza, tipicamente dependentes de recursos e energias renováveis. Isto implica numa

inevitável redução do consumo de energia e recursos e, consequentemente, da população

humana.

A permacultura se constitui a partir de uma orientação eminentemente prática, com a

definição de princípios e de uma ética a partir destes pressupostos e das ideias gerais

apontadas. As suas práticas se desenvolvem a partir de sete campos principais, conforme pode

ser visualizado na Figura 14, logo abaixo.

Figura 14: Flor da Permacultura. Fonte http://escoladepapel.files.wordpress.com/2008/04/flor-da-permacultura.jpg

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Os princípios da permacultura, por sua vez, partem da ideia de que é possível a derivação de

regras gerais a partir do conhecimento do mundo natural ou de sociedades sustentáveis da era

pré-industrial. Eles são pensados em termos de aplicabilidade universal, para diversos

contextos, embora os métodos específicos de aplicação possam ter uma grande variação em

função das características dos locais da sua utilização. Segundo Holmgren (2009), os

princípios podem ser pensados como slogans ou check lists para pensar o design e evolução

de sistemas de suporte ecológico.

De forma geral, estes princípios podem ser divididos em dois grupos: os éticos e os de design,

sendo este segundo tipo os que se ajustam mais especificamente às características citadas logo

acima e que por isto são apresentados de forma mais detalhada no livro em referência. Os

primeiros podem, então, ser genericamente agrupados em três principais: a) cuidado com a

Terra (solos, florestas e água); b) cuidado com as pessoas (consigo mesmo, com parentes e

com comunidades) e c) partilha justa (limites para consumo e reprodução e redistribuição do

excedente). Já os segundos são apresentados a partir de doze princípios fundamentais, listados

a seguir:

a) Observe e interaja: aqui entra em prática a ideia da criação de pensamento de longo prazo e

independente, mais do que a duplicação de soluções já desenvolvidas em outros lugares, dado

que modelos externos tem menos chances de aplicação, por questões culturais e podem ser

menos eficientes devido às particularidades locais. Tal fato não elimina a possibilidade do que

Holmgren (2009) denomina de “fertilização cruzada”, que é a influenciação e aprendizado

mútuo entre técnicas aplicadas em locais distintos.

b) Capte e armazene energia: a ideia aqui é repensar o uso excessivo de energia não-

renovável, além de aprender a economizar a energia consumida e desperdiçada. Estas fontes

incluiriam sol, vento e escoamento superficial de água, além dos recursos desperdiçados nas

atividades agrícolas, comerciais e industriais. O estoque para o futuro envolveria questões

como solo com alto teor de húmus, sistemas de vegetação perene, corpos e tanques de água e

edificações com a utilização passiva da energia solar.

c) Obtenha rendimento: o que se propõe é que qualquer sistema ou processo seja pensado para

ser produtivo, desde os prazos mais curtos. Em paisagens urbanas, por exemplo, evitar-se-ia a

utilização de plantas meramente ornamentais, de forma a se criar sistemas funcionais e

produtivos. Tal princípio iria contra à ideia disseminada de desenvolvimento que tende a

afastar as pessoas da necessidade de se manter um tipo de ambiente como este, funcional e

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produtivo, o que é resultado da cultura do assalariamento, em especial. Holmgren (2009)

sugere que um pensamento como este se assemelharia com a de um empresário, no sentido de

que o acúmulo de um “capital natural” produziria ciclicamente um acúmulo nos resultados

positivos que eles oferecem.

d) Pratique a autorregulação e aceite o “feed back”: a busca de sistemas autorregulados é

tida como um dos horizontes de trabalho mais importantes da permacultura, embora ele seja

dificilmente alcançável de forma plena. A ideia é aprender com os feed backs negativos,

minimizando seus efeitos (mesmo que eles não possam ou não devam ser totalmente

eliminados) e criando os mecanismos que propiciarão esta autorregulação. A base deste

princípio está na própria noção de que a Terra é, em si, um sistema autorregulado, o que pode

ser percebido pela sua grande homeostase26 e pelas discussões da Hipótese Gaia27.

e) Use e valorize os serviços e recursos renováveis: o autor faz, novamente, um paralelo da

natureza com a contabilidade: da mesma forma que não é possível indefinidamente se

consumir o capital principal de uma empresa, não se pode consumir os recursos não

renováveis do planeta sem consequências futuras. A utilização dos recursos renováveis

representaria, então, o consumo adequado, porque seria simbolicamente o da renda (juros)

sobre o valor principal. A situação ideal, de fato, seria ainda aquela em que não se consome o

recurso, como a utilização da sombra de uma árvore ou do serviço de um animal.

f) Não produza desperdícios: este princípio contrapõe-se ao modelo de consumo humano, que

está estruturado na forma “consumo-excreção”, ou seja, pior do que desperdiçar é gerar

poluição, um tipo de resíduo que não é reaproveitável de forma produtiva por outras partes do

sistema. A ideia é constituir sistemas que possam fazer uso dos produtos e subprodutos

internamente, além de definir estratégias para o aproveitamento de “abundâncias

indesejadas”, geradas por desequilíbrios nos sistemas.

g) Design partindo de padrões para chegar aos detalhes: com este princípio, passa-se à

leitura do sistema a partir das características mais gerais (padrões). Parte-se da ideia de que

existem traços comuns observáveis na natureza e que podem ser úteis para aplicações em

diversas situações. Além disso, supõe-se também que a percepção de novas experiências pode

26 Homeostase se refere à capacidade de um sistema aberto manter uma condição interna estável para a manutenção da vida, mesmo com mudanças exteriores.

27 A Hipótese Gaia aponta que a Terra possui comportamentos autoregulatórios que podem ser comparados ao de um ser vivo qualquer. Dada que esta é uma das principais características que fazem com que a vida se mantenha, ela seria, assim, um superorganismo, dos quais seriam parte importante tanto os organismos que nela habitam, como todos os seus elementos inanimados.

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permitir o surgimento de novas soluções àqueles que se encontram demasiadamente

submersos na cultura local.

h) Integrar ao invés de segregar: o foco aqui é a relação e a conexão entre os diversos

elementos. Então, pesam duas premissas principais: a de que cada elemento exerce muitas

funções e a de que cada função é importante para vários elementos. Outrossim, propõe-se que

seja dada prioridade à constituição de relações cooperativas ou simbióticas, frente às

competitivas e às predatórias, já que as primeiras seriam mais robustas às mudanças externas.

i) Use soluções pequenas e lentas: considera-se que a escala adequada para os processos seja

a da capacidade humana, conforme já anteriormente defendido por Schumacher (apud

HOLMGREN, 2007). Este aspecto refere-se a pequenas atividades domésticas até a compra

de pequenos comerciantes locais. Por outro lado, questiona-se a velocidade cada vez maior

das sociedades modernas, tidas como positivas em si. O exemplo disto é que as plantas de

crescimento rápido muitas vezes tem vida curta, ou a adubação com componentes de

absorção mais lenta são as que tornam as plantas mais saudáveis.

j) Use e valorize a diversidade: por trás deste princípio está a ideia de que a diversidade

permite o equilíbrio dos sistemas ecológicos e que, por exemplo, a adoção de monoculturas

tem sido a causa da grande vulnerabilidade às pragas e às doenças, requerendo um uso cada

vez maior de agrotóxicos e outras tecnologias de cultivo não-sustentáveis. Esta ideia é

extrapolada para a cultura humana, pressupondo-se que a sua variedade também é vital para a

manutenção do equilíbrio sistêmico.

k) Use as bordas e valorize os elementos marginais: a ideia aqui é valorizar aqueles espaços

relegados pelo cultivo humano, que são as bordas ou interfaces entre subsistemas. Exemplos

disso são os espaços de transição entre área cultivada e floresta, rio e mares, demarcações do

espaço urbano, etc. Supõe-se ainda que o melhor aproveitamento (e ampliação) destes espaços

possa aumentar a produtividade a a estabilidade dos sistemas.

l) Use criativamente e responda às mudanças: parte-se do pressuposto de que a mudança é

uma característica inerente da natureza, apoiando, aparentemente de forma paradoxal a sua

estabilidade sistêmica. Com isto, sugere-se a adoção de sistemas transitórios de cultivo,

plantas que exercem uma função auxiliar ao cultivo de outras e que podem, após cumprir este

papel ter um outro destino. A flexibilidade e a mudança, ao invés de ser evitada, segundo este

princípio deve ser estimulada.

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3.4 Limites Das Práticas Das Ecovilas: Um Debate Sobre O Alcance Da Mudança

Social E Da Sua Pertinência No Contexto Atual

Um interessante debate sobre o alcance das práticas das ecovilas se deu no âmbito da revista

“The International Journal of Inclusive Democracy”, entre os anos de 1998 e 2006, a partir

de uma série de artigos assinados por Fotopoulos (1998, 2000, 2002, 2006), criticando a

prática e Trainer (2000, 2002 e 2006), ainda com a participação de Garden (2006a, 2006b). A

questão central deste debate era se as ecovilas podem ou não representar um modelo ou uma

prática que promoveriam uma mudança socioeconômica em escala significativa.

Segundo Fotopoulos (2000), o movimento das ecovilas seria falho, porque se foca mais na

questão da mudança de valores do que na mudança da estrutura. Uma mudança apenas nos

valores seria ineficaz, pois poderia ser contida ou cooptada pelas estruturas de poder

dominantes, como o ocorre em muitos casos. Mesmo que a mudança de valor fosse uma tática

efetiva, Fotopoulos (2000) diz que as ecovilas não estariam credenciadas para realizá-la, já

que estas práticas não se constituem efetivamente como um movimento. Isto porque lhes

faltariam objetivos e estratégias comuns, além de serem mais uma aglutinação de indivíduos

de classe média com interesses próprios: “Many eco-villages simply involve people in trying

to build better circumstances for themselves, often within the rich world in quite self-

indulgent ways”.

Além disso, as ecovilas são consideradas apolíticas, ou seja, não se envolveriam em nenhuma

proposta direcionada de mudança, fato que pode ser ilustrado pela aproximação com a ONU e

que pode ser observado diretamente em diversas práticas, que envolvem relações de

dependência com o estado e com o sistema econômico atual (FOTOPOULOS, 2006). De fato,

Fotopoulos acusa as práticas de monotemáticas, já que se focariam apenas na questão

ambiental. Esta questão é considerado pelo autor um fato grave, visto que apenas uma

mudança de comportamento de alguns indivíduos, sem estar acompanhada por uma mudança

institucional (nos mecanismos de poder e decisão) não seria efetiva.

Um outro problema é que elas seriam práticas baseadas em um irracionalismo, já que teriam

por base princípios espirituais. Com isto, ele sentencia:

The conclusion is that the activities of the anti-globalisation movement, like those of the ecovillage movement, have no chance of functioning as transitional strategies for systemic change, unless they become an integral part of a programmatic political mass movement for such a change.

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Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

(…) Such activities could include both direct action and life-style activities, as well as other forms of action aiming at creating alternative institutions at a significant social scale through, for instance, the taking over of local authorities. The condition for such activities to be characterised as confronting the system is that they are an integral part of a mass political movement for systemic change. (FOTOPOULOS, 2000)

A partir disso, as ecovilas não seriam mesmo parte da solução, mas sim do problema a ser

enfrentado:

So, to the extent that the eco-village movement is a single-issue movement dominated by irrational philosophies, it is very much part of the problem of transition to a new society rather than its solution, given that it disorients people with respect to the causes and possible ways out of the systemic crisis (FOTOPOULOS, 2006).

Trainer (2006), por outro lado, ao defender a prática das ecovilas, defende que sua posição

não difere tanto da de Fotopoulos (conquanto o último discorde disto), pois também acredita

que deve haver uma mudança estrutural. Todavia, o autor afirma que esta crítica é pouco

produtiva, já que, ao ser formulada, não apresenta nenhuma alternativa viável para a mudança,

ao contrário das ecovilas.

My main difference with Takis [Fotopoulos] is that he gives us no help regarding the ways we might begin the required political movement. It is precisely that problem that I am claiming that the eco-village vision and the formation of Community Development Cooperatives addresses (p. 3)

Além disso, Trainer diz que o tipo de mudança requerido, envolvendo uma redução drástica

no nível de consumo não pode ser realizada apenas com mudanças técnicas, mas sim com

uma mudança radical no estilo de vida e nos valores, no sentido de adoção de uma espécie de

“Modo mais Simples”28 de vida, em que se adote um estilo de vida frugal e autossuficiente,

em economias essencialmente pequenas e fortemente localizadas, autossuficientes,

cooperativas e sob controle social (não determinadas pelo mercado e pelo lucro) e sem

crescimento econômico. Estas condições, segundo o autor, seriam atendidas principalmente

pelas ecovilas (TRAINER, 2006).

O autor segue ainda apontando um caminho possível para esta transformação:

This is not salvation through the creation of eco-villages in the sense of intentional communities made up of people who come together with the right vision to form a new society on a new patch of ground. It is about beginning with existing settlements and gradually converting them into eco-villages of a kind, not necessarily with common ownership of most property. What matters in the middle distance future is the establishment of sufficient collective property and spirit

28 “Simpler Way”

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Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

(TRAINER, 2006, p.2)

O que Trainer (2006) sustenta é que se houver uma grande crise em breve, a janela de

oportunidade provavelmente será pequena, e se não houver nenhuma experiência efetiva para

um processo de transição, em que as pessoas tenham alguma proposta de ação, o que se verá é

uma resposta das elites, no sentido de se reorganizarem para a manutenção do status quo.

Trainer acredita que poderá haver uma resposta a partir de um “solavanco” em que a

população perceberá que não pode mais ser atendida da maneira habitual, o que a forçará a

buscar uma solução local, situação que é contestada por Fotopoulos (2006) por acreditar que

as elites já vêm de fato se preparando para a escassez através de medidas de contenção do

consumo dos mais pobres, e que isto iria se intensificar na mesma medida do agravamento da

crise.

Trainer (2006) concorda que deve haver uma mudança política, mas que não se deve esperar

por ela. Neste caso, o melhor que se pode fazer é dar às pessoas uma motivação positiva para

a mudança, o que ele considera única força possível para uma mudança

The new economies can only work if people are motivated by positive forces, by desire to run things, cooperate, share, care for each other, build good systems. People must be willing to go to working bees and committees, because they are enjoyable, and because they provide a satisfying sense of empowerment, worthwhile activity, security, camaraderie and collectivism (TRAINER, 2006).

O autor defende ainda que, a solução não esta em tomar o poder estatal nem tampouco lutar

diretamente contra o capitalismo, o que seria um “jogo mortal”. A mudança se daria pela sua

morte lenta, a partir da aderência dos indivíduos ao novo modelo.

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Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

4 ALGUMAS EXPERIÊNCIAS RELEVANTES NO PLANO INTERNACIONAL

O propósito deste capítulo está ligado à apresentação de alguns casos internacionais, a título

de ilustração das discussões realizadas neste trabalho. Os elementos selecionados para

apresentação estão ligados, na medida do possível (disponibilidade de informação) à

discussão conceitual realizada até aqui, bem como ao debate e elementos da sustentabilidade

que veremos mais adiante neste trabalho. Isto servirá ao propósito de minimamente contrastar

estas experiências com os casos nacionais.

As ecovilas se organizam, em nível mundial, em uma rede denominada Global Ecovillage

Network (GEN), já citada anteriormente neste trabalho. Criada em 1995, a partir da reunião de

líderes de oito ecovilas, congregava, já em 2002, 15.000 associados pelo mundo

(BISSOLOTTI, 2004), entre ecovilas e pessoas que se alinham com os seus propósitos (GEN,

2010). Seus integrantes podem ser desde grandes redes (como Sarvodaya no Sri Lanka),

ecocidades como Auroville, no sul da Índia, pequenas comunidades rurais como a Gaia

Associación, na Argentina, projetos de “rejuvenescimento” urbano, como a Los Angeles

EcoVillage; sítios de permacultura, como é o caso do Crystal Waters na Australia e algumas

experiências no Brasil ou ainda centros educacionais como a Fundação Findhorn, na Escócia.

A rede está articulada em escritórios regionais que cobrem todos os continentes. Nas

Américas ela se chama Ecovillage Network of Américas (ENA), e possui sede nos Estados

Unidos; na Oceania e na Ásia tem a denominação de Global Ecovillage Network Oceania e

Asia Inc. (GENOA) e, por fim, o escritório que cobre a Europa, a África e o Oriente Médio,

denominado European Ecovillage Network (GEN Europe). Esta rede vem adquirindo um

forte peso político na articulação global, tendo assumido, frente a ONU, um status consultivo

e tendo sido incluída na lista das 100 melhores práticas da ONU em 1998 (GEN, 2010).

O painel apresentado traz quatro experiências internacionais vinculadas a esta rede, escolhidas

entre aquelas com uma presença relvante na literatura sobre o tema.

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Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

4.1 Fundação Findhorn – Escócia29

Localizada em local de clima temperado e ventos fortes e gelados vindos do Mar do Norte, a

ecovila de Findhorn, na Escócia, foi uma das primeiras a ser fundada no mundo. O seu início

remonta a 1962, quando o casal de fundadores Peter e Eileen Caddy, seus três filhos e

Dorothy MacLean foram morar no acampamento de trailers na Baía de Findhorn. A

aglutinação de pessoas, que começou a ocorrer pela identidade com o estilo de vida que os

pioneiros adotavam (como o cultivo orgânico de alimentos, adquirido após um árduo trabalho

para tornar o solo produtivo, proposta de desenvolvimento espiritual, harmonia com a

natureza), fez com que a ecovila crescesse nos anos seguintes.

Nos primeiros anos, todos os moradores ainda moravam em trailers e bangalôs, entretanto

ainda nos anos 60, foram sendo construídas as primeiras edificações, como o Santuário da

Natureza e o Centro Comunitário. Nos anos 70, foram inaugurados o Universal Hall (que

contém um moderno teatro), a sala de concertos, a sala de computadores, o café e o estúdio

fotográfico, de dança e de gravação. Os anos 70 e 80, foram marcados por diversas

aquisições, inclusive o Parque de Trailers onde estavam instalados e o hotel em que

originalmente trabalhavam os primeiros moradores. Tais fatos ampliaram significativamente o

patrimônio e o trabalho da Fundação, que foi instituída enquanto tal em 1972,

responsabilizando-se pelas questões organizativas da comunidade, bem como as de educação

e difusão internacional da sua concepção sobre a vivência humana.

No início a experiência se apresentava mais como um ashram, ou seja, era uma comunidade

espiritual, que tinha como foco a transformação da consciência por meio de práticas

meditativas. A metamorfose veio com os anos, e as preocupações ambientais mudaram o

perfil do local, que, no entanto, não abandonou

sua proposta inicial (DAWSON, 2009).

Com isto, a experiência, hoje se apresenta como

multicêntrica, se colocando para além da

questão ambiental. Ela é designada como uma

“comunidade espiritual, centro educacional e

uma ecovila” (FUNDAÇÃO FINDHORN,

2010). Com isto, a comunidade tem como

29 Grande parte das informações referentes à Fundação Findhorn foram obtidas do site da experiência (FUNDAÇÃO FINDHORN, 2010), salvo quando informado a referência.

Figura 15: Residências em Findhorn. Fonte Findhorn (2010)

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Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

propósito realizar a experimentação de práticas alternativas, mas também difundi-la

internacionalmente. Além disso, a ideia da espiritualidade é precedente à própria proposta da

ecovila, sendo mesmo fundante das suas bases, já que ela contemplava a questão de viver em

harmonia com a natureza.

A visão ecológica (pelo menos a aplicação de práticas de sustentabilidade) surgiu

posteriormente a sua fundação nos anos 80. A partir deste período, foram implantados

localmente métodos construtivos alternativos (principalmente utilizando-se madeira

reaproveitada de barris de whisky, palhas, pedras, pneus usados, bem como técnicas como

telhados verdes e orientação solar adequada). Dentre estes, podem ser citados o processo de

gestão da água (que envolve a utilização da “living machine”, que é uma sequência de

tratamentos biológicos, para tratamento das águas servidas e a captação da água da chuva, que

são utilizadas para regar os jardins), a geração própria de energia (que envolve a energia

eólica, solar e da queima de lenha), que hoje garante o abastecimento de toda a comunidade,

com um excedente de 40% que é redirecionado para a rede pública de abastecimento. A

geração de energia envolve ainda a utilização de geradores de biomassa e o aquecimento solar

da água. São tratados também o tratamento dos resídios orgânicos, que são transformados em

adubo. Ainda do ponto de vista ambiental, a comunidade apresenta outro dado interessante

que é o valor da sua pegada ecológica. Ela é calculada em 2,56 Global Hectares por pessoa

(gHa), o menor já medido para um assentamento no mundo industrializado (DAWSON,

2009), representando menos que a metade do valor da Escócia (5,37) ou do Reino Unido

(5,40).

Além disto, foi feito um trabalho específico de recuperação da vegetação local, com posterior

reflorestamento, sendo a iniciativa mesmo premiada pelo governo escocês pelos seus esforços

(BRAUN, 2001). Atualmente, o design da ecovila é, em essência, baseado na permacultura.

Vivem atualmente na comunidade cerca de 500 pessoas, parte delas administrando e

trabalhando em mais de 30 organizações locais,

entre administrativas, culturais, sociais e

econômicas, que se integram, de alguma forma,

à ecovila (as organizações econômicas formam,

inclusive uma instituição paralela: a NFA – New

Findhorn Association). Na ecovila são

produzidos, por exemplo, painéis solares,

produtos cerâmicos, artesanatos, essências de Figura 16: Centro comunitário feito com madeira de barris de Whisky. Fonte: Findhorn (2010)

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flores, entre outros, que são também vendidos para outras regiões do Reino Unido. Além

desses, podem ser encontrados lojas diversas, cafés, editora, gráfica, além de produtores de

queijos orgânicos, vinhos, frutas, hortaliças, prestadores de serviço de saúde alternativa,

cursos e outros, o que denota uma vitalidade econômica muito grande no local (DAWSON,

2006; FINDHORN FUNDATION, 2010)30. Isto mostra a convivência de diversos tipos de

empreendimentos, tanto de iniciativa individual quanto comunitária (promovidos pela

Fundação). Com isto, o número de empregos criados quase equivalente ao tamanho da

população da ecovila (DAWSON, 2004).

A comunidade constituiu uma cooperativa local, responsável pelo investimento dos recursos

poupados por seus membros (que chegam a um montante de 600.000 libras). Esta cooperativa

tem sido responsável pelo investimento no seu parque eólico, melhoria nas casas e a

constituição da loja comunitária. Também há no local uma moeda própria (denominada Eko e

paritária com a moeda local), instituída num circuito econômico local complementar31

(DAWSON, 2009). Este sistema é organizado por um banco local, gerenciado pela

comunidade, que realiza também operações de microcrédito e aconselhamento técnico com o

objetivo de fomentar a atividade econômica da ecovila. As políticas e investimentos mais

gerais do banco são orientadas conforme um planejamento anual, que procura perceber o que

a comunidade ainda compra fora, no sentido de fomentar empreendimentos nas áreas ainda

deficitárias (DAWSON, 2004). Findhorn adota ainda um sistema LETS – local exchange

trading system (BRAUN, 2001), o que, junto com o banco comunitário e de moeda social

denota a existência de uma extensa articulação entre as diferentes lógicas econômicas.

Além destas questões, há um acordo feito com produtores rurais (que utilizam manejo

orgânico) no sentido de garantir o fornecimento dos alimentos, aumentando a taxa de

consumo dos produtos do local.

Há, aparentemente, uma estabilidade na população da ecovila, o que denota algum vínculo

entre os moradores, já que trata-se de uma comunidade intencional. Relatos informais dão

conta também de que as relações sociais são um item fortemente valorizado em Findhorn32.

Há também forte ênfase na questão da educação, pela oferta constante de cursos no local, com

diversos formatos e durações. Ocorre um afluxo muito grande de visitantes que buscam os

30 Dawson (2004) informa que um estudo sobre o impacto econômica da comundiade de Findhorn na região aponta que a experiência cria 400 empregos e movimenta mais de 5 milhões de libras em negócios por ano.

31 Segundo Dawson (2004), no primeiro ano foram emitidos cerca de 38.500 Ekos, sendo registrada uma circulação local de $150.000 neste mesmo ano.

32 Segundo depoimento de um antigo morador da comunidade, em conversa informal realizada a partir de uma visita sua ao Brasil.

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Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

cursos, cerca de 14.000 por ano, de forma que pelo menos dois prédios (um antigo hotel e

uma antiga escola) são destinados a estas atividades (BRAUN, 2001).

Do ponto de vista cultural, a ecovila conta com espaços que atraem muitas pessoas das

redondezas para as peças de teatro, concertos e sessões de cinema (DAWSON, 2006b).

A articulação externa é um dos pontos fortes da experiência. A GEN surgiu, em grande parte,

pela articulação feita a partir da Fundação Findhorn. Isto é tão significativo que a grande

quantidade de viagens realizadas por seus moradores é considerado um dos pontos

problemáticos no cálculo da sua pegada ecológica (DAWSON, 2009). Além disto, há também

influência da experiência no âmbito de programas das Nações Unidas.

4.2 Auroville – Índia33

Auroville é uma comunidade, que pelas suas dimensões, vem se constituindo como uma

ecocidade. Habitam em seu espaço cerca de 2.160 pessoas, de diversas idades (mas com uma

média geral de 30 anos) e de 45 nacionalidades, sendo cerca de um terço indianos. Ela tem

como meta, entretanto, abrigar cerca de 50.000 pessoas, de todas as nacionalidades do mundo.

Por esta diversidade, e pelos propósitos que encampa (dentre eles buscar a Unidade Humana)

é considerada pelo governo indiano e pela Unesco uma cidade internacional e universal.

Ela carrega em seus propósitos, ser referência na construção de uma nova humanidade, e vale

citar as quatro assertivas definidas pela “Mãe” desde a sua fundação:

1. Auroville belongs to nobody in particular. Auroville belongs to humanity as a whole. But to live in Auroville one must be a willing servitor of the Divine Consciousness.

2. Auroville will be the place of an unending education, of constant progress and a youth that never ages.

3. Auroville wants to be the bridge between the past and the future. Taking advantage of all discoveries from without and from within, Auroville will boldly spring towards future realisations.

33 A maior parte das informações desta seção são, salvo quando informado, tem como fonte o site da ecovila (AUROVILLE, 2010).

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Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

4. Auroville will be a site of material and spiritual researches for a living embodiment of an actual Human Unity. (ALLAIN G., 2000, p. 2).

A experiência está instalada no sul da Índia, na baía de Bengal, com a maior parte da área no

estado de Tamil Nadu, um local de clima seco. Foi iniciada em 1968, a partir de uma reunião

de cerca de 5.000 pessoas no que viria a ser o centro da comunidade, estando representadas

124 nações, incluindo todos os estados indianos. O processo de constituição da comunidade

teve influência decisiva da “Mãe”, importante guia espiritual de origem francesa (que morava

no local e era seguidora de Sri Aurobindo – o que inspirou o nome da localidade). Este foi

resultado de um longo trabalho, já que a guia espiritual vinha trabalhando no conceito da

Auroville desde os anos 1930.

De fato, as questões espirituais revelam muito da vocação do lugar. Auroville é um local de

peregrinação de iogues do mundo inteiro, já que Sri Aurobindo é considerado um importante

mestre espiritual por muitos praticantes desta doutrina, e “a Mãe” a sua continuadora. A

própria fundação da comunidade reforçou estes elementos, que estão marcados na sua

trajetória. De fato, a força de atração que estas figuras exercem explica em grande parte o

crescimento e o sucesso da comunidade, que é provavelmente a maior ecovila do mundo.

Enquanto área geográfica, o projeto de Auroville compreende aproximadamente um círculo

de 5 km de diâmetro (ver Figura 17). Dentro deste círculo estão a Zona Industrial, com área

de 109 hectares, onde ficam situados os pequenos e médios “negócios verdes”, do tipo

industrial, focados principalmente no autossustento da cidade, os centros de treinamentos, os

artesanatos e as artes e a administração da cidade. A Zona Internacional, com 74 hectares que

abriga pavilhões nacionais e culturais, agrupados por continentes, que procuram demonstrar a

união humana na diversidade, a partir da contribuição de cada nação para a humanidade. A

Zona Cultural, situada numa área de 93 hectares que contém espaços para atividades culturais,

artísticas e esportivas e onde dedica-se também espaço ao desenvolvimento e pesquisas

artísticas e culturais. A Zona Residencial, com 189 hectares, que contém um planejamento

urbano cuidadoso para uma boa distribuição do tráfego e o equilíbrio entre vivência individual

e coletiva, assim como da harmonia com a natureza, devendo ser utilizada apenas 45% da sua

área para prédios construídos, sendo ainda cercada por parques. A Área da Paz, no centro da

cidade, onde está construída a Matrimandir (casa mãe - Figura 19), seus jardins, o anfiteatro e

um lago para ajudar na harmonização do ambiente. Por fim, há o Cinturão Verde, com 1,25

km de largura e 405 hectares (com planos de ser ampliado em mais 800 hectares), uma área

extensamente reflorestada, que contou com o plantio de mais de dois milhões de mudas, onde

estão situadas fazendas orgânicas, produção de leite, bem como áreas selvagens, além de

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Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

servir também como fonte de madeira, remédios e espaço para recreação.

Figura 17: Esquema do planejamento da cidade. Fonte: Auroville, 2010

Do ponto de vista econômico, a comunidade tem como princípio básico a busca de uma

economia interna autossustentável de base não-monetária. Neste sentido, as atividades se

organizam de três formas distintas: segundo uma economia coletiva, que se dá a partir de um

planejamento realizado por um Fundo Central (Figura 18) ou da realização de atividades não-

lucrativas (ou ambas). São realizadas, neste sentido, atividades rurais, preparação e

distribuição de alimentos, provisão de eletricidade, água e telefone, estradas e cuidados

pessoais de saúde, roupas ou de cabeleireiros. Dentro da ideia de constituir uma economia não

monetária, a comunidade conta já com uma loja gratuita (ou seja, os moradores apenas tomam

o que precisam), havendo a intenção de se inaugurar outras. Há também uma economia

comercial, dedicada à produção principalmente

de artesanato orientado para vendas externas.

Nestes casos, as atividades não são baseadas na

ideia de propriedade individual, mas sim numa

espécie de curadoria, em que os

empreendimentos dão também sua contribuição

para o equilíbrio do Fundo Central, de forma

proporcional ao seu tamanho, ou seja, os Figura 18: Fundo Central. Fonte: Auroville, 2010

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Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

menores empreendimentos contribuem com quantidades também menores (estes

empreendimentos têm também uma comercialização mais interna à ecovila). Por fim, há uma

economia dita “em espécie”34, que representa as trocas diretas e informais, que ocorrem em

paralelo às outras atividades econômicas, e são consideradas fundamentais para a própria

manutenção e o desenvolvimento da comunidade. Especialmente esta última “economia” é a

que mais dinamiza as próprias comunidades do entorno de Auroville, através das trocas

diretas de serviços entre moradores e não-moradores da comunidade. Além destas fontes de

recursos (consideradas próprias), a comunidade é mantida a partir de doações de residentes ou

de fontes internacionais.

Estima-se que a experiência empregue cerca de 5.000 pessoas da região, embora uma

limitação seja de que boa parte é, ainda, de trabalhos considerados mais servis (SOBO &

HOBERG, 2010). Além disso, por princípio, há a intenção da utilização da maior quantidade

possível de insumos locais. Há uma intensa produção agrícola, e muitos serviços e produtos

são realizados na própria comunidade.

Existem empreendimentos de diversos tipos no local. Aparentemente, a maioria é organizada

pelos próprios moradores, tanto coletiva quanto individualmente, exceto aquelas atividades da

“economia coletiva” que são as questões mais ligadas às necessidades básicas, organizadas

pelo Fundo Central. Entretanto, todos eles estão de alguma forma conectados à comunidade e

não há propriedade individual dentro da área de Auroville.

Na ecovila existem ainda vinte e três centros de

pesquisa, voltados para questões como

tecnologias renováveis e arquitetura, cultura e

artes, “nova economia e sociedade”, relações

ocidente-oriente, educação, saúde, agricultura e

silvicultura, evolução e consciência. Além

destes centros, há uma prática expressiva de

experimentação individual. Muitos destes

centros produzem publicações e fornecem programas de treinamentos, com o objetivo de

divulgar seus resultados a estudantes do local, da Índia e do exterior. Há, também, um centro

de cura, um programa de artes marciais, um centro de estudos indianos, um centro de idiomas,

incluindo o Sânscrito e um laboratório de pesquisas de transformação da consciência. Existe

um grande número de empreendimentos e iniciativas econômicas (cerca de 100, de diversos

34 Tradução livre. Do original “An 'in kind' economy” (AUROVILLE, 2010).

Figura 19: Matrimandir. Fonte: Auroville, 2010

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Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

tamanhos), fruto da liberdade local e do espírito criado no sentido de empreender e buscar as

atividades à qual cada um tem afinidade.

A educação é componente fortemente valorizado no local. Além de cursos para visitantes, o

que chama a atenção é que há também um programa local completo de educação de jovens,

baseado em metologias alternativas se considerarmos as práticas ocidentais (e provavelmente

também as indianas).35

Com relação ao elemento político, Auroville, a partir do seu princípio “de não pertencer a

ninguém em particular e ser, ao mesmo tempo da humanidade”, e apesar das fortes referências

espirituais, não tem hoje nenhum indivíduo como guia. Há um comitê de planejamento, de

forma que as principais decisões são coletivas. Além disto, muitas outras decisões são

tomadas de forma descentralizada, dentro de um dos 18 setores responsáveis por diversas

atividades na localidade (SOBO & HOBERG, 2010). Estes processos participativos e

descentralizados são valorizados desde a constituição da comunidade, o que provavelmente

explica o sucesso da continuidade da experiência.

Além disto, há uma relevante interação da ecovila com o entorno, que Dawson (2006b) chama

a atenção como sendo das mais relevantes em termos das práticas das ecovilas. Os moradores

do entorno tomam parte da vida econômica da cidade, especialmente no tipo de economia

considerada “em espécie”. Entretanto, ao que parece, é uma relação que não se dá

absolutamente sem tensão, haja visto as diferenças culturais e de propósitos que se

estabelecem.

Em Auroville há também uma extensa utilização de tecnologias ambientais, muitas

desenvolvidas no próprio local. Inclusive têm introduzido a prática da veículos elétricos leves

para locomoções internas em maiores distâncias. A produção orgânica predomina, e todas as

atividades cuidam, por princípio, do ambiente. Os esquemas de reciclagem são adotados,

tanto de materiais orgânicos quando de secos. Entretanto, ainda resta o desafio (assim como a

todas as tecnologias ambientais) da utilização extensiva a todos os moradores e residências do

local (LLORET, MARTIN, SARKHOT, 2002). A água consumida é toda tratada, em sistemas

descentralizados (tanto a água preta quanto a cinza) (SOBO & HOBERG, 2010).

35 Segundo informações do site da experiência (AUROVILE, 2010), as escolas são organizadas sem níveis, e sem quaisquer tipos de exames ou provas, além de os estudantes serem totalmente livres, o que lembra o estilo de educação adotado em tribos guaranis. Interessantemente, aparecem no site depoimentos informando que alguns jovens buscam algo diferente do que é oferecido localmente, tanto em termos de método de ensino quanto de vivência pessoal. A justificativa seria a atração que a forma de vida ocidental exerce pelos meios que chegam aos jovens do local.

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A ecovila ainda depende do fornecimento de energia da rede elétrica, entretanto, a energia

solar é largamente utilizada, tanto para gerar eletricidade (cerca de 400 prédios a utilizam de

forma autossuficiente) quanto para gerar água aquecida (a cozinha comunitária, que serve

cerca de 1.000 refeições por dia utiliza um fogão solar). Todas as formas são melhoradas e

adaptadas localmente (SOBO & HOBERG, 2010). Além disto, as técnicas construtivas se

baseiam na utilização de material local (especialmente solo), também sofrendo adaptações

pelos centros de pesquisa locais. Também há um certo nível de utilização de cimento.

4.3 The Farm – Estados Unidos36

A ecovila The Farm está localizada na costa leste dos Estados Unidos, Estado do Tennessee,

próximo à cidade de Nashville, sua capital. A região tem um clima temperado, com

precipitação pluviométrica abundante durante todo o ano.

A origem da comunidade está muito ligada aos movimentos hippie dos anos 60. Ela surgiu a

partir da “Caravana”, uma jornada realizada por cerca de 320 pessoas lideradas por Stephen

Gaskin, que percorreu boa parte do território dos Estados Unidos em cerca de 60 ônibus

escolares, tentando deixar uma mensagem de paz por onde passava. Ao aportar, em 1971, no

local onde hoje é a ecovila, os “caravaneiros” resolveram se estabelecer e formar ali uma

comunidade alternativa. Compraram, então, 200 acres de terra com recursos próprios e

iniciaram o processo de organização do local, a partir dos trabalhos de cultivo da terra e

morando inicialmente nos próprios ônibus.

Nos anos seguintes a comunidade se ampliou significativamente, tendo atingido a

autossuficiência alimentar em quatro anos, quando passou rapidamente a desenvolver sua

36 A maior parte das informações sobre a ecovila forma extraídas do site da experiência (THE FARM, 2010).

Figura 20: Ônibus utilizados na "Caravana". Fonte: The Farm, 2010

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infraestrutura. Logo em seguida, foram comprados mais 750 acres de terra e o número de

habitantes chegou a 750 em 1975 e a perto de 1500 no início dos anos 80. Devido à muitas

dificuldades encontradas nos anos posteriores, principalmente com relação à agricultura, a

comunidade passou por uma forte retração, tendo muitos de seus moradores se retirado já a

partir de 1983, até se chegar ao seu número atual, que é de em torno de 250 moradores. A área

ocupada hoje é de 4000 acres (sendo a maior parte dela adquirida com o único fim de realizar

reflorestamento e preservação ambiental), e a experiência passa por um momento de

estabilidade e crescimento planejado e ordenado, restando da aventura inicial principalmente

os princípios que fundaram a comunidade.

No início, a vida era totalmente comunal, mas atualmente os moradores tem a opção de se

tornar simples membros ou de participar mais efetivamente da coletividade. Com isto, todos

os moradores fazem parte da Fundação, instituição que representa a experiência, mas a

chamada “Segunda Fundação”, que é a experimentação coletiva, é opcional.

As moradias evoluíram dos antigos ônibus para casas construídas a partir de técnicas de

bioconstrução, envolvendo madeira, pedra, palha e argila, que são os materiais localmente

disponíveis. Já as tecnologias ambientais utilizadas envolvem a geração de energia a partir

utilização de painéis solares (para aquecimento da água e geração de energia elétrica), que

foram desenvolvidos e são produzidos na própria

comunidade, geradores eólicos e biomassa, bem

como o tratamento biológico das águas servidas e a

captação da água da chuva. Outras práticas

realizadas são o cultivo orgânico de alimentos e o

vegetarianismo, o planejamento da ocupação do

espaço (utilizando-se dos princípios da

permacultura), e a gestão democrática e igualitária.

A comunidade oferece ao público externo uma

visitação aberta com opções de estadia, cursos nas

diversas áreas de atuação da ecovila (como

permacultura, cultivo orgânico, bioconstrução,

energias alternativas e design de ecovilas),

vivências, palestras e tours. Ela conta, ainda, com

diversos empreendimentos individuais ou coletivos

que a servem internamente, como mercearia, clínica

68

Figura 21: Imagem de curso na ecovila. Fonte: The Farm, 2010

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

médica, posto de gasolina, escolas, farmácia, correios, editora, centro de mídia, lojas,

fabricação de leite de soja, produção e venda de matrizes de cogumelos para cultivos. Conta

ainda com serviço de advogado, escavação de terras (com máquinas), plantio e processamento

de soja, produção de cogumelo, painéis solares, produção de catálogos, loja, estúdio de yoga,

produção de tempeh, guia turístico, restauração e pintura, fabricação de contador Gaiger,

produção multimídia, produção de workshops, tratamentos de saúde holístico, além dos

diversos projetos não-lucrativos como a Swan Trust (que tem o propósito de realizar a

recuperação da bacia do Rio Swan, pela compra da maior área de terra possível), além de

dezenas de outras iniciativas econômicas, sócioculturais ou ambientais. Por fim, a produção

de alimentos local pode atender toda a comunidade. No início dos anos 90 eram em torno de

30 iniciativas (GILMAN & GILMAN, 1991).

Estes produtos e serviços são divididos entre lucrativos e não-lucrativos. Normalmente os

primeiros são iniciativas dos moradores de forma individual ou associada, que acabam

servindo o mercado nacional e, que produzem, por exemplo, contadores Gaiger com uma

tecnologia própria, painéis solares, dentre a miríade de empreendimentos referida. Os

considerados não-lucrativos são mais iniciativas institucionais da comunidade, como o centro

de treinamento, a escola, o centro de conferência, o programa de conservação e a restauração

das florestas nativas, dentre outros.

A manutenção do local se dá pelos recursos adquiridos a partir de serviços oferecidos ao

público externo e pela contribuição individual dos moradores, na medida das suas

possibilidades, já que cerca de um terço dos moradores adultos trabalha fora da comunidade.

A maioria, entretanto (os outros dois terços), trabalha nas atividades internas, tanto nas

organizações administrativas quanto nas produtivas (como os empreendimentos citados no

parágrafo anterior). Além disto, a ecovila mantem um fundo interno que realiza pequenos

empréstimos aos moradores para aplicarem nas suas casas, além de assumir o custo da

infraestrutura para novos moradores.

Do ponto de vista da sua organização social, a comunidade já passou por muitos altos e

baixos, chegando a ter muito mais moradores do que atualmente. No entanto, vive uma

situação de estabilidade, aparentemente com algo nível de “enraizamento” dos moradores

com relação à experiência. A identidade hippie é relembrada no local pela inauguração de um

museu com a história da ecovila.

No local são realizadas também, atividades ligadas a práticas espirituais, que ocorrem,

69

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

aparentemente, de forma regular, já que a comunidade se identifica como sendo também

espiritual. Registre-se também, que a origem da comunidade estava ligada ao elementos

espirituais, através da figura do seu líder à época da fundação, Stephen Gaskin.

Do ponto de vista político, uma diretoria eleita pelos moradores governa a ecovila por três

anos. Há também um comitê de membros, eleitos por dois anos, que se encarregam da

mediação de conflitos e da entrada de novos moradores. Existem ainda outros comitês,

assumidos voluntariamente pelos moradores, que se encarregam de outras questões, como uso

da terra e finanças.

A sua interação com o entorno se dá pela pela participação de estudantes das cercanias na sua

escola. Além disso, são realizados também projetos com as crianças e adolescentes, com o

tema da educação ecológica. Percebe-se que as práticas de educação são fortemente

desenvolvidas na localidade, com programas de educação regular e de formação específica

para visitantes.

Do ponto de vista técnico/ambiental, a tecnologia utilizada é em grande parte adaptada ou

desenvolvida localmente. Além das técnicas de bioconstrução, é prática comum a reciclagem,

e existem sistemas de captação de água da chuva e tratamento biológico das águas cinzas.

Quanto à energia, ainda é utilizada predominantemente a da rede convencional, porém tem

parte fornecida por painéis solares.

4.4 Crystal Waters – Austrália37

Crystal Waters Permaculture Village é uma comunidade rural localizada no Vale do Rio

Mary, na Costa Sunshine, interior do estado de Queensland, Austrália. Está situada em uma

região de clima temperado, com precipitação pluviométrica concentrada principalmente nos

primeiros meses do ano. É considerada a “primeira vila intencional permacultural”

(ATKISSON, 1991).

A ecovila surgiu em 1986, a partir do projeto de Max Lindegger, Robert Tap, Barry Goodman

e Geoff Young. O lugar escolhido para o estabelecimento da inciativa encontrava-se, na

época, fortemente degradado, com vastas áreas sofrendo pelo processo de exploração de

37 A maior parte da informação aqui apresentadas foram colhidas no site da experiência (CRYSTAL WATERS, 2010).

70

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

madeira. Hoje, entretanto, a experiência é reconhecida pelo World Habitat Award38 .

Um outro problema na origem da ecovila, que preocupava os seus 7 moradores inciais, era de

ordem legal. Na região do seu estabelecimento, por ser definida como área rural, eram

permitidas subdivisões (loteamentos) de terras com no mínimo 40 acres, o que apontava para

a irregularidade do assentamento realizado. Através de um processo de negociação política

com as autoridades governamentais do local, viabilizou-se a aprovação do plano da ecovila, o

que foi apoiado pela constituição de uma cooperativa dos moradores, detentora, então, da

maior parte do terreno e administradora do projeto.

Inicialmente, a proposta não contava com qualquer tipo de financiamento, o que levou à

aquisição da terra por meio de uma permuta com o seu proprietário, que ficou com 10 lotes do

projeto permacultural realizado. Além deste, cada um dos designers da ecovila ficou com 3

lotes como pagamento pelos seus serviços. A construção da infraestrutura foi viabilizada após

a venda dos primeiros lotes, cujo excedente, administrado pela cooperativa, foi empregado

para a construção de alguns equipamentos públicos.

38 O World Habitat Awards é uma premiação ligada ao programa HABITAT da ONU, que, a cada ano, distribui, além de um troféu e um título, um prêmio de L$10.000 para dois projetos considerados referência em “boas práticas de habitat”. A Crystal Waters foi finalista da premiação no ano de 1996 (WORLD HABITAT AWARDS, 2010).

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Figura 22: Leiaute dos lotes e ruas na ecovila. Fonte: Crystal Waters, 2010

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A comunidade tem hoje cerca de 200 moradores, distribuídos em 83 lotes individuais

(privados) de 1 acre cada. O loteamento realizado conta ainda com mais dois lotes do mesmo

tamanho destinados às atividades comerciais. Contudo, 80% da área total de 259 ha

(considerada a melhor parte) é de propriedade coletiva, ou seja, da cooperativa (ver Figura

22).

Crystal Waters conta ainda com diversos

empreendimentos instalados, tanto nos lotes

comerciais (espaços reservados para os

empreendimentos e para a parte comercial da

ecovila) quanto no Village Centre (centro

adminsitrativo da ecovila). Eles envolvem

comércio, indústria leve, turismo e atividades

educacionais. O local possui ainda um café (que

se apresenta como ponto de referência para

encontros sócioculturais, envolvendo música, yoga, permacultura, esportes, teatro e discussão

sobre os assuntos comunitários); muitos moradores cultivam, em seu espaço doméstico, hortas

e pomares, galinhas, mel, vacas, ovelhas, porcos, gansos, etc (entretanto não há produção de

alimentos de forma coletiva). A ecovila conta ainda com webdesigners, serviços de

consultoria, educação e capacitação (em diversas áreas), tratamento biológico de pragas;

produção de instrumentos musicais; pintores artísticos; serviços de acomodação no parque,

que dão direito a estadia e ao turismo local; acomodação em pousadas que oferecem serviços

de saúde alternativa e bem estar inclusos (ver Figura 23); com o Crystal Water Ecocentre (ver

Figura 24), espaço educativo que serve também ao GENOA; além de outros serviços e

atividades comerciais e culturais. Além disso, os moradores que empreendem procuram

empregar prioritariamente outros moradores nas suas inciativas.

Além dos diversos empreendimentos voltados para o mercado, a cooperativa administra os

recursos coletivos e presta os serviços mais gerais de manutenção e investimento, além de

organizar as atividades de recepção dos visitantes, com uma cozinha cooperativa e espaços

organizados para este intento. O fundo tem também o objetivo de fomentar os

empreendimentos locais.

Sob o lema “Care of the Earth; Care of the People; and Dispersal of that which is surplus to

our needs" (ATKISSON, 1991), os moradores contam com normas gerais que definem, por

exemplo, que cada um deve responsabilizar-se pela satisfação de suas necessidades e pelos

Figura 23: Waterbreath Retreat. Fonte: Waterbreath Retreat, 2010.

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Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

resíduos gerados, que devem ser dispostos adequadamente. Ainda com relação à questão

ambiental, a ecovila preza pela qualidade das águas servidas (eventualmente testes

independentes são realizados para assegurar esta qualidade), que são reutilizadas localmente;

pela captação da água da chuva; pela construção das casas, que utilizam madeira reciclada,

terra e evitam a utilização de materiais tóxicos; pelo reflorestamento da área, visando também

ao fornecimento de madeira localmente; pela economia de energia elétrica, por meio da

utilização de um cabo de baixa tensão e com uma meta máxima de consumo por residência.

Ainda com relação à energia, é utilizado o princípio da orientação solar passiva e do

aproveitamento da circulação por gravidade (que estão entre as práticas de permacultura).

A ecovila tem como lema também a “ativa

interação social” (CRYSTAL WATERS, 2010).

Assim, a disposição das casas é em formato de

clusters (as casas são agrupadas em pequenos

núcleos com algumas residências, conforme

pode ser visto na Figura 22), de forma que se

permita a constituição de pequenos núcleos de

convivência social. Por fim, a comunicação na

ecovila é priorizada pela circulação de

periódicos locais (informativos) e pela

distribuição local de livros e manuais produzidos pela ecovila orientando os moradores em

algumas práticas. Além disto, existe um processo de resolução de conflitos instituído, que

consiste na mediação de um “conselho de anciãos” eleitos pela comunidade quando

necessário (ATKISSON, 1991).

As atividades culturais e espirituais são organizadas livremente pelos moradores. Os grupos se

formam tanto para “chás pela manhã”, quanto para trabalhos ocasionais (comparável aos

“mutirões” da cultura brasileira), para realizar meditação, aikidô, etc (ATKISSON, 1991).

Entretanto, diferentemente das demais iniciativas citadas nesta seção, Crystal Waters não

possui uma orientação espiritual como base direta da sua constituição. Entretanto, tem como

princípio, a liberdade de crença espiritual.

Da mesma forma que nas outra experiências apresentadas, existe um importante enfoque na

questão da educação, com a presença de um ecocentro no local. Não é observado, contudo, a

existência de escola para a formação regular dos moradores e comunidade do entorno

(especialmente os mais jovens).

74

Figura 24: Crystal Water Ecocentre. Fonte Genoa (2010).

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Com relação à questão política, existem espaços de debates instituídos na comunidade, onde

as posições são sempre negociadas. Com isto, embora existam regras, não existem

mecanismos institucionalizados de coerção direta sobre os moradores, que neste espaço

acertam suas dificuldades. (ATKISSON, 1991).

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PARTE II

Debates e Contexto: A Sustentabilidade Segundo a Lógica da Economia Solidária

Aplicada às Ecovilas

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5 COMPREENDENDO A SUSTENTABILIDADE

Como já dissemos em outra parte do trabalho, definir sustentabilidade não é algo simples.

Uma das razões para isto é que o termo normalmente se coloca na posição de adjetivo:

desenvolvimento sustentável, empresa sustentável, ações sustentáveis, etc. Sustentável passa a

ser, assim, uma forma de especificar algo, dando-lhe características especiais. O dicionário

Aurélio define a palavra mais ou menos nestes mesmos termos: “adj. Que se pode sustentar,

manter; suportável: peso que não é sustentável. / Defensável: opinião sustentável.”

Entretanto, outros elementos, que vão além da questão semântica dificultam ainda mais o

processo de entendimento do conceito: primeiro, ser sustentável passou a ser algo bom;

muitos querem, de alguma maneira, portar esta característica; segundo, não há uma

especificação mais precisa sobre o que é ser sustentável, ou seja, não existem normas nem

definições genericamente convergentes e operacionais para o termo.

Assim, o termo apresenta diversas utilizações diferentes, geralmente no formato de auto-

qualificação. Dentre estas podemos citar o uso:

a) em empresas ou outras organizações que adotam uma política de gestão ambiental

b) em práticas que, genericamente, se qualificam como duráveis

c) em políticas de desenvolvimento que, de alguma forma, adotam medidas que levam

em consideração (ou intencionam) o meio ambiente

Em todos os casos, ressalta-se a adoção acrítica e indiscriminada do termo. Claramente a

auto-qualificação traz dificuldades de ordem prática e limitações de ordem política, já que é

feita em nome de interesses específicos. Ao se inaugurar uma discussão sobre sustentabilidade

quer se fazer frente a um problema concreto, ligado a já referida crise ambiental. Quando este

termo é desqualificado, ele perde sua força e o próprio debate é desqualificado, postergando a

mudança necessária. Vejamos mais detalhadamente cada uma das utilizações citadas acima.

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Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

No primeiro e terceiro casos, prevalece a lógica de construção de uma imagem positiva

perante o público. Mais do que as ações efetivas, interessa a percepção das pessoas sobre o

que está sendo feito39. Assim, percebe-se que muitas empresas, somente com o lançamento de

um programa de gestão ambiental já se apresentam largamente como sustentáveis. Deixando

de lado as práticas de greenwashing40, podemos elencar exemplos daquilo que seria uma

prática de sustentabilidade do meio empresarial: neste caso, tomemos a Vale do Rio Doce, por

ser considerada um modelo de sustentabilidade dentro dos padrões criados para avaliar a

gestão ambiental no âmbito das empresas. Ela faz parte do ISE (Índice de Sustentabilidade

Empresarial) da Bovespa41, e tem um relatório de sustentabilidade considerado com tendo

nível de transparência “A+” conforme o Global Reporting Iniciative (VALE, 2012).

No seu “Relatório de Sustentabilidade de 2010” (VALE, 2012) percebe-se o esforço da

companhia em adotar algumas boas práticas. Mas as contradições seguem inerentes se

levarmos em conta a noção básica de sustentabilidade enquanto permanência. Como exemplo,

a empresa relata a redução em 0,69% no consumo de água para a extração de minério de

ferro, que, entretanto teve um volume de produção 29,5% maior considerando-se o período de

um ano, ou seja, o consumo de um recurso não renovável (ferro) e de outro extremamente

importante e cada vez mais escasso teve um significativo aumento como resultado das suas

operações. Além disso, a empresa informa ter investido 1,136 bilhões de reais em ações de

responsabilidade social corporativa. Contudo, isto representa cerca de 6,5% do seu lucro

líquido (que foi de 21,7 bilhões de reais em 2010). Este investimento não é detalhado, mas

envolve desde aquele que é feito nas suas próprias operações até os realizados em projetos de

produção cultural e outros que fazem parte de leis nacionais de incentivo (ou seja, que

retornam o investimento da empresa na forma de abatimento de impostos), passando ainda

pelos pesados investimentos na publicidade destas ações. Outrossim, a concentração de renda

proporcionada pela distribuição de dividendos nesta ordem também não parece ser uma

prática plenamente adequada à ideia de sustentabilidade, especialmente se tomada em

contraste com os salários pagos aos cerca de 174 mil funcionários, que totalizam 2,9 bilhões

de reais (o próprio relatório relata a greve realizada em uma de suas unidades no ano de

2010).

39 Segundo pesquisa realizada pela empresa de consultoria Ernst e Young, O Radical Greening (ou esverdeamento radical, que se refere à mudança de comportamento do consumidor em direção à busca de produtos ambientalmente saudáveis) é apontado como um dos 10 principais riscos para os negócios em 2010.(ERNST E YOUNG, 2011).

40 Espécie de “maquiagem verde” realizada por empresas ao comunicarem mais ações ambientais (ou socioambientais) do que efetivamente realizam.

41 Indicador de Sustentabilidade criado pela Bolsa de Valores de São Paulo para verificar a atuação das empresas no âmbito da gestão ambiental.

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Na segunda categoria, podemos citar o exemplo do relatório do Banco Mundial denominado

“The Growth Report: Strategies for Sustained Growth and Inclusive Development”

(COMISSION, 2008), elaborado por um grupo instituído pelo banco denominado “Comissão

Sobre o Crescimento e Desenvolvimento”, composta por notáveis membros como integrantes

de governos (ministros e ex-ministros), conselheiros de grandes bancos e laureados

economistas. Neste relatório, o termo sustentável se refere muito pouco à questão ambiental,

mas sim às condições necessárias para que o crescimento possa continuar de forma indefinida

num futuro também indefinido. O tema do meio ambiente entra apenas de forma marginal no

relatório, já que ocupa apenas 5 páginas em 198, e o único problema tratado é o do

aquecimento global. O relatório assume que a manutenção do nível de crescimento pode

conduzir a níveis perigosos de emissão de CO2, mas tal questão é vista apenas como um

problema de tecnologia (e eventualmente de uma política de estímulo a ela e de compensação

entre os países):

What these calculations make clear is that technology is the key to accommodating developing country and global growth. We need to lower the costs of mitigation. Put differently, we need to build more economic value on top of a limited energy base. For that we need new knowledge.

No que toca ao terceiro tipo de uso, percebe-se que é onde está a gênese do debate sobre o

tema, como se verá logo adiante. No entanto, o uso do termo sustentabilidade aqui não é

menos indiscriminado e implica também em diversos tipos de práticas contraditórias. No caso

brasileiro existem, hoje, programas como o “desenvolvimento rural sustentável”, bem como a

adoção de princípios como a “prudência”, que significa “entender que várias atividades

humanas podem ter consequências desconhecidas e potencialmente perigosas na natureza e,

diante disso, agir de maneira equilibrada para minimizar esses efeitos” (PORTAL BRASIL,

2012), mas que entram em contradição com outras práticas que visam o crescimento

econômico. Tal fato leva a práticas como o estímulo ao consumo (como por exemplo o de

carros, que apresentam altos impactos ambientais) e à construção de obras com impactos

ambientais e humanitários pouco esclarecidos, como a usina de Belo Monte (PINTO, 2011).

Sérgio Abranches (2011), ao citar diversas contradições que permeiam as políticas do governo

(que envolvem também BNDES, o Banco da Amazônia e Banco do Brasil) destaca estas

contradições:

Temos legislação ambiental bastante efetiva na letra, mas desobedecida urbi et orbi, inclusive pelos governos. Temos um compromisso internacional de redução de gases de efeito estufa, mas as políticas industrial, de energia e de transportes do Brasil dão prioridade a atividades de alto carbono, logo alta emissão. Temos metas de redução do desmatamento, mas agentes federais sistematicamente financiam empresas que

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contribuem para o desmatamento. Programas federais prioritários, todos no PAC, são, hoje, os maiores vetores de desmatamento na Amazônia: estradas e grandes hidrelétricas. A política energética dá mais espaço a termelétricas que a usinas eólicas e despreza a energia solar (Idem).

Rigorosamente, nenhuma destas utilizações atende ao que seria efetivamente uma prática

sustentável, pelo menos não nos moldes que este conceito vem sendo desenhado, e que será

visto logo adiante, no histórico sobre o tema. Parece que, no final das contas, a

sustentabilidade deva ser vista mais como um processo, uma ideia que direciona as ações em

um sentido específico. Porém, mesmo esta utilização não deve ser tomada de uma forma

descuidada e vinculada a um interesse mais na imagem do que no fundo das ações.

É na busca deste sentido que as próximas seções deste capítulo (que deve ser complementado

pelos demais) se direciona: como a sustentabilidade deve ser qualificada, tendo em vista a

necessidade de constituição de uma prática que conduza efetivamente a uma mudança com

relação ao tratamento das questões ambientais?

5.1 Breve Histórico

O surgimento do debate sobre a sustentabilidade pode ser percebido na evolução da discussão

em torno do tema desenvolvimento, a partir da inserção das questões ambientais no seu

escopo. Dada a própria natureza destas discussões (em torno do desenvolvimento), observa-se

que mais do que um conceito científico, a noção de sustentabilidade é forjada na arena das

discussões políticas, especialmente no cenário internacional.

O marco inicial desta inserção pode ser considerado o início dos anos 70, quando as políticas

desenvolvimentistas predominantes desde o pós-guerra, focadas no crescimento econômico e

na multiplicação de modelos tecnocráticos, começaram a ser questionadas mais seriamente.

Este questionamento vinha, especialmente, de movimentos de contestação ambientalistas e

feministas, que nesta época se ampliaram em número e em tamanho, passando a agir cada vez

mais globalmente (SANTOS e RODRIGUÉZ, 2002). Estes movimentos adquiriram espaço

principalmente em função do questionamento dos resultados que estas políticas tradicionais

vinham então produzindo, especialmente com a geração cada vez mais ampliada de

degradação ambiental e de desigualdades de diversos tipos.

Um dos primeiros eventos relevantes deste movimento foi a criação do Clube de Roma, em

80

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1968. O Clube foi fundado e ainda é composto por profissionais de diversas áreas, como

diplomatas, industriais e acadêmicos, com o propósito de refletir sobre as consequências do

consumo exacerbado dos recursos naturais, assim como a integração internacional (THE

CLUB OF ROME, 2011). Em 1972, este clube divulgou seu primeiro relatório, denominado

“Os Limites do Crescimento”. Num ataque frontal às teorias econômicas dominantes, este

relatório mostrava, como sugere o seu próprio nome, que haveria um limite efetivo para o

crescimento econômico a ser atingido em menos de um século, e que o atingimento deste

limite traria resultados catastróficos. Como saída, o texto propunha um congelamento tanto do

crescimento da população humana como do capital industrial.

Os alertas veiculados por este relatório influenciaram os debates da própria Conferência das

Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972 (que ficou mais conhecida como

Conferência de Estocolmo), outro momento importante do debate internacional sobre o tema.

Esta conferência foi precedida ainda pelo encontro de Founex (Suíça), que definiu 26

princípios com relação ao meio ambiente a serem seguidos pelo ser humano. Depois, em

1975, surgiu o relatório relatório What Now, sendo resultado de uma negociação entre as

posições extremas de defesa do meio ambiente, por um lado e das necessidades que haveria

de crescimento econômico, por outro (VAN BELLEN, 2006).

Os anos 80 contaram com a instituição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento (CMMAD), que culminou com a publicação, em 1987, do relatório “Nosso

Futuro Comum” (ou Relatório de Brundtland). Este relatório marcou mais fortemente as

necessidades de revisão do conceito de desenvolvimento, dando ensejo a uma ampliação do

espaço dos debates sobre a questão ambiental e a limitação dos modelos de desenvolvimento

então dominantes. Surgiu deste momento a definição de desenvolvimento sustentável que é

provavelmente a mais conhecida, que afirma que “o desenvolvimento sustentável é o que

atende às necessidades das gerações presentes sem comprometer a possibilidade das gerações

futuras atenderem suas próprias necessidades” (VAN BELLEN, 2006). Isto marca, mais

acentuadamente, a questão da responsabilização intergeracional, conforme discussões que já

vinham sendo trazidas por vertentes da ecofilosofia, dentro da noção do “princípio

responsabilidade” (JONAS, 2005).

A ampliação e a afirmação dos debates ambientais na agenda internacional se seguiram nos

anos 1990 e 2000. Em 1992, a aprovação da Agenda 21, no encontro que ficou conhecido

como “Rio 92”, marcou especialmente a noção multidimensional da sustentabilidade, para

além da questão ambiental:

81

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Neste momento a noção de sustentabilidade, ao articular mais claramente as agendas ambiental e social, ganha novos contornos, implicando também na capacidade dos agrupamentos humanos garantirem a gestão de seu próprio desenvolvimento, em termos econômicos, políticos, cultural, institucional, além da dimensão ecológica e ambiental (Ministério do Meio Ambiente, 2000 apud MOURA et alli, 2002, P. 2)

Este encontro contou com a pactuação dos oito objetivos do milênio e das 18 metas

relacionadas, a serem cumpridas até 2015. Dez anos depois, em 2002, ocorreu a conferência

de Joanesburgo, que reafirmou os objetivos e metas do milênio, gerando ainda a “Declaração

de Joanesburgo” e o “Plano de Implementação”, que propunham concretamente ações a serem

realizadas com o objetivo de preservação dos recursos naturais.

Em decorrência destas conferências, foi assinado em 1997 o protocolo de Quioto (do qual os

Estados Unidos não foram signatários) e que entrou em vigor em 2005, devendo expirar em

2012. As diversas conferências que aconteceram depois desta data, tinham como preocupação

central o fortalecimento deste mecanismo, bem como a busca de um substituto apropriado

após a sua expiração.

Por fim, vale citar a ocorrência da 15a Seções da Conferência das Partes (COP-15), em 2009,

que foi outro nome dado para a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança

Climática (UNFCCC42), ocorrida em Copenhague/Dinamarca. Esta conferência (assim como a

posterior, a COP-16, em 2010, realizada em Cancún/México) foi cercada de expectativas

antes da sua ocorrência, pela percepção da necessidade de ações cada vez mais urgentes dada

pelas informações da comunidade científica (especialmente a partir do relatório do IPCC em

2007) e pela massiva participação dos países membros da ONU (192 em 2009 e 194 em

2010). Entretanto, os resultados de cada um destes encontros (especialmente o COP-15) foi

considerado insuficiente pela imprensa internacional43, já que não criaram compromissos

vinculantes e teve um documento assinado às pressas por apenas 20 países (COPENHAGEN

ACCORD, 2009). A COP-15 parece ter inaugurado uma nova série de rodadas de negociações

relacionadas ao meio ambiente, dentro do âmbito da ONU, dada pela urgência em se alcançar

uma solução efetiva para os problemas do aquecimento global e das mudanças climáticas,

além da construção de uma geopolítica internacional um pouco diferente, com maior

relevância dos países ditos “emergentes”.

42 United Nations Framework Convention on Climate Change43 Como pode ser amplamente observado pela cobertura do evento dada pela mídia.

82

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5.2 Alguns Debates E Definições

Na busca por parâmetros que possam definir que práticas poderiam ser classificadas como

“sustentáveis”, podemos tentar perceber como alguns debates vêm colocando a questão. Nesta

seção, veremos algumas vertentes que podem lançar alguma luz no debate e orientar a

construção de um marco que defina a sustentabilidade, para além da necessidade de um rigor

metodológico de análise.

Lester Brown (2009), em função do desgaste do termo, chega a propor que a discussão não

deva mais se dar em torno da noção da sustentabilidade, mas sim da “salvação da civilização”,

que seria uma ideia mais precisa e mobilizadora. Neste sentido, não haveriam classificações

para a ideia de sustentabilidade, mas sim uma série de ações a serem adotadas com este fim

(salvar a civilização). Como já vimos no primeiro capítulo deste trabalho, ele aponta

concisamente os diversos problemas ambientais (atuais e potenciais) enfrentados pelas

sociedades modernas, enfatizando soluções que implicam, evidentemente, em mudanças no

chamado “business as usual”. Entretanto, como o autor passa ao largo de uma discussão mais

conceitual sobre o papel do mercado e seus mecanismos de regulação para a definição de uma

sociedade melhor, é bem possível que muitos dos vícios da sociedade atual se mantivessem na

sua concepção implícita de “sociedade sustentável”44.

Para buscarmos a compreensão dos debates em torno do tema, podemos tomar como ponto de

partida a noção mais geral para a definição das práticas de sustentabilidade trazida por Sachs

(2002). Partindo da ideia de desenvolvimento, o autor aponta que a sua diversidade de

concepções poderia ser classificada dentro de um campo que variaria entre dois polos

extremos: um que o entende como crescimento econômico e outro que o nega absolutamente.

A solução apontada por Sachs é que se deveria seguir por uma espécie de “caminho do meio”,

que estaria identificado com os conceitos de ecodesenvolvimento ou desenvolvimento

sustentável. Esta abordagem se coloca de forma crítica ao crescimento selvagem (ou

perverso), que traz junto sempre altos custos sociais e ambientais, sem descartar

absolutamente, a necessidade do crescimento. Nesta noção, está presente ainda a ideia de que

o jogo do mercado livre não é compatível com a noção de desenvolvimento sustentável,

principalmente porque só consegue enxergar o curto prazo, a busca de lucro e da eficiência na

alocação de recursos.

44 De fato, o autor não problematiza o que seria esta sociedade futura, apenas aponta os problemas atuais ligados à ação humana e um possível caminho para sair da difícil situação em que nos encontramos hoje.

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Sachs traz esta definição provavelmente tentando conciliar os debates que confrontam a teoria

econômica neoclássica do crescimento estabelecida nos últimos anos, especialmente a partir

dos anos 70 e que ganharam mais força nos anos 90. No entanto, ela revela apenas parte da

complexidade da questão, por ignorar elementos não resolvidos no debate, bem como não

levar em conta outras possibilidades da discussão (embora não acreditemos que Sachs as

ignore ou tenha uma visão simplista da questão).

5.2.1 A Economia Ecológica

Os debates provocados pela assim chamada vertente da economia ecológica (ou bioeconomia)

tem como eixo central a crítica ao modelo de crescimento neoclássico, especialmente na sua

representação contemporânea dada por R. Solow e J. Stiglitz45. Esta crítica parte da ignorância

destes modelos acerca das leis da termodinâmica (especialmente da Segunda Lei – a Lei da

Entropia) e dos limites materiais do planeta. Georgescu-Roegen, considerado um dos “pais”

da economia ecológica (juntamente com Herman Daly) defendia que a economia era, de fato,

parte de um “sistema vivo e atuante”, e não um processo isolado da natureza (CECHIN e

VEIGA, 2010).

Cechin e Veiga (2010) informam que os modelos econômicos, desde a origem da disciplina da

economia, carregam dois pressupostos fundamentais problemáticos para a compreensão da

disciplina a partir dos limites da natureza: o primeiro é a ideia de interdependência entre os

processo produtivos, ligados à noção de equilíbrio do sistema econômico, e o segundo é a

forma que é feita a representação das trocas econômicas, ou seja, a partir de fluxos circulares

e fechados que envolvem bens e dinheiro entre os vários setores da economia. Na mesma

linha, e carregando um pouco mais na tinta, Cavalcanti e outros (1994), afirmam que há uma

errada noção de que “natureza se percebe como uma cornucópia fornecedora inexaurível de

recursos e, ao mesmo tempo, como um esgoto de infinita capacidade de absorção de dejetos”

(Idem, p. 8).

Em função disto, o modelo matemático proposto por Solow (modelo de Solow-Swan), tem

45 Robert Merton Solow é um influente economista que desenvolveu um dos principais modelos econômicos (Solow-Swan) para o crescimento, tendo sido assessor e consultor econômico do governo norte-americano. Foi ainda ganhador do “Prêmio Nobel de Economia”; Joseph Eugene Stiglitz também outro importante economista, foi também assessor do governo americano e economista chefe do Banco Mundial, além de ter também ganhando um “Prêmio Nobel”. Apesar de ser considerado um economista menos ortodoxo (é crítico ao mercado livre), apoia suas teorias de desenvolvimento na tese do crescimento econômico.

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uma representação do desenvolvimento (que aqui é entendido como crescimento) a partir de

duas variáveis: capital e trabalho46. Ele institui que a produção está positivamente

correlacionada a estes dois elementos (isto explica a ênfase nas políticas de desenvolvimento

na ideia de aumento da poupança interna), que seriam mutuamente substituíveis. Além disso,

os próprios recursos naturais seriam substituíveis pelo capital ou o trabalho, mediante

desenvolvimento tecnológico47, o que permitiria que o crescimento continuasse mesmo numa

situação de escassez de recursos naturais. Entretanto Daly (1997a), com base nas ideias de

Georgescu-Roegen aponta que o fato de os recursos não entrarem na equação provocam

inconsistências no modelo. Isto se explica pelo fato de que a entrada desta variável invalidaria

a teoria, pois o conceito de “produção marginal” não mais poderia ser verificado

matematicamente e haveria um limite máximo para a produção, fazendo ruir toda a

construção teórica que mantém este paradigma (DALY, 1997a).

A justificativa para esta ausência, segundo Solow (1997) é que o elemento não muda em nada

a resposta que o modelo propõe ao problema de quanto crescimento é possível obter no futuro

(ou no presente) dadas as condições atuais dos recursos. Solow, também, considera que os

recursos podem ser substituídos, notadamente pelo fator capital (a partir da evolução

tecnológica); que a questão do balanço de massa mais geral não entra nas considerações das

atividades econômicas por escaparem do seu escopo; considera também, implicitamente, que

o meio ambiente é um subsistema da economia e não o contrário (DALY, 1997b) e que a lei

da entropia, conquanto válida, não tem aplicação prática para as análises no âmbito em que a

economia se propõe a trabalhar.

No entanto, estes argumentos não respondem às criticas formuladas desde o início por

Georgescu-Roegen e outros economistas ecológicos. Um deles é que os fatores do modelo

não podem substituir os recursos, por serem qualitativamente diferentes. Além disso, o

aumento da produção não pode ocorrer só com base do aumento de valor agregado e seria

uma abstração considerar que estes processos poderiam prescindir de recursos materiais. Em

suma, tal ação é uma substituição que não pode se dar senão em proporções muito pequenas e

46 De fato, a redução de todos os fatores econômicos a estes dois remonta ao século XIX e é considerada uma das bases das considerações da economia neoclássica nos seus moldes atuais. Também é tido como um elemento chave na história da ciência econômica, em que se estabelece a exclusão do meio natural das suas considerações (LATOUCHE, 1999).

47 Chechin e Veiga (2010) fornecem alguns exemplos deste argumento. Um deles é a suposta substituibilidade, por exemplo, da atividade agrícola dos EUA, cuja economia seria pouco afetada pelo aquecimento global e eventual perda na sua safra, já que este setor não representa mais do que 3% do seu PIB. Isto evidentemente desconsidera o caráter primário deste tipo de atividade e os impactos diretos e indiretos e toda a economia (e toda a sociedade) que a sua eliminação traria. O mesmo argumento é utilizado para dizer que a quebra da indústria de petróleo seria pouco significativa em nível global, já que ela representa menos de 1% do PIB global e menos de 5% dos custos industriais.

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sob condições muito específicas (DALY, 1997a). Tal abstração, embora possa ser útil em

determinadas situações, como defende Solow (1997), se apresenta como extremamente

perigosa, já que o seu horizonte de utilização (limite de aplicação) nunca parece tão claro, e é

sempre empurrado para frente (CECHIN e VEIGA, 2010). Não considerar, desde o início, a

questão dos limites da exploração da natureza pode levar a uma depredação irreversível dos

recursos mesmo quando a ameaça não se apresente concreta. Não devemos desconsiderar que

os processos ecológicos funcionam sobre mecanismos de equilíbrios específicos e, em alguns

casos ainda não completamente conhecidos pelo ser humano.

Um outro elemento é o dado pela consideração da Segunda Lei da Termodinâmica. Esta lei

estabelece que a entropia de dado sistema isolado tende a aumentar com o tempo até atingir

um máximo. É também conhecida como lei da desordem, que postula que o universo tende a

esta desordem ou caos. Ou seja, enquanto a primeira lei estabelece que a energia se conserva

em uma transformação qualquer, esta define qual o sentido em que ela ocorre e que condições

são necessárias para que ela se dê.

Ao não incorporar este conhecimento, as teorias econômicas deixam de fora duas questões

importantes: a primeira é a explicação de como os sistemas econômicos se complexificam

(aumentam a ordem, ou seja, diminuem a entropia), o que é impossível de ocorrer em

sistemas fechados e estáveis, e a segunda, ligada à primeira é que desconsideram o fato de que

a economia é um sistema aberto interagindo continuamento com o meio que o cerca, isto é,

que ela é um subsistema do meio ambiente, limitado pelas suas condições (DALY, 2009), e

não o contrário, como estabelecem as visões neoclássicas.

Esta limitação define até onde os processos econômicos podem ir. Cavalcanti (1994) ao

considerar estes limites afirma que “tal visão de um fluxo entre dois infinitos, o que implica

que sua vazão possa crescer ilimitadamente (Lutzemberger, 1984) é incompatível com o

modelo dos ciclos de materiais do ecossistema, regidos pela bússola da homeostase e por

predicados frugais” (Idem, p.8). Ou seja, tal consideração põe em revisão a noção de

economia enquanto ciclo fechado, rompendo com a lógica mecanicista da economia herdada

do século XIX, para defini-la como um processo aberto e irreversível.

O que torna a utilização dos modelos econômicos neoclássicos um tanto mais grave é que a

abordagem convencional não considera na sua contabilidade a “descapitalização” do planeta

(perda de recursos naturais), mas ao contrário, a toma como um fator positivo na conta da

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riqueza48 (DOWBOR, 2010). Esta ciência se concentra no curto prazo, sendo míope para estes

e diversos outros custos do modelo adotado (como a polarização entre ricos e pobres, o

desperdício generalizado de recursos e a desarticulação social).

Além disso, a possibilidade de reciclagem completa, num cenário de utilização nula de

recursos não-renováveis também seria impossível, segundo Georgescu-Roegen (1975, 1979).

Isto porque o processo produtivo nunca seria suficiente sem um fluxo de entrada de materiais

sem ferir a Segunda Lei da Termodinâmica. Tal caso se constituiria num perpetuum mobile de

segunda espécie, ou seja, uma máquina capaz de trabalhar infinitamente sem o consumo de

energia adicional. Este fato equivaleria a dizer que os processos deveriam operar com 100%

de eficiência e total reversibilidade o que é, segundo a termodinâmica, impossível.

Com isto, surge um outro problema: a utilização de recursos não-renováveis (além da geração

de resíduos) traz necessariamente consequências negativas para a qualidade de vida das

gerações futuras. Este problema também não pode ser resolvido pelos paradigmas econômicos

dominantes, que não consideram a questão temporal (GEORGESCU-ROEGEN, 1975). Todos

estas falhas e simplificações feitas nos modelos neoclássicos (e, em especial o de Solow-

Swan) levaram Georgescu-Roegen a afirmar que eles modelam o “Jardim do Éden”, ao invés

do mundo real. De qualquer forma, a utilização dos recursos não renováveis da Terra seria

algo sem sentido, já que a quantidade total de energia estocada sob esta forma é equivalente a

menos de duas semanas da energia do sol que atinge a superfície do planeta (Idem).

Em função destes elementos, Goergescu-Roegen (1975) propõe que um programa

bioeconômico deveria conter os seguintes elementos:

1. Deveria ser proibida completamente a produção de qualquer instrumento de guerra.

Além do benefício da diminuição das guerras e das milhares de vítimas que elas

continuamente produzem, haveria a liberação de uma enorme força produtiva para

outros fins da humanidade;

2. Toda esta força produtiva, além de outras adicionais deveriam ser utilizadas para a

melhoria na qualidade de vida dos países subdesenvolvidos; além disso, seria necessário

um esforço no sentido da redução na polarização entre os países;

3. A população mundial deveria ser reduzida até um ponto em que ela pudesse ser

completamente sustentada somente pela agricultura orgânica;

48 Argumento que se aproxima muito da crítica ao PIB, como veremos na seção seguinte.

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4. Enquanto o uso direto da energia solar não for amplamente aplicada ou a utilização

da energia proveniente da fusão nuclear não for realidade, toda a perda de energia

deveria ser evitada ou fortemente regulada;

5. A humanidade deveria se curar do “mórbido desejo” pelas engenhocas extravagantes

(simbolizada pelo autor pelo carrinho de golfe) e pelos carros desnecessariamente

grandes (“esplendorosos mamutes que ocupam duas garagens”);

6. Teríamos que nos livrar da moda, no sentido de utilizarmos os produtos enquanto eles

cumprem o fim a que foi destinado;

7. Relacionado ao item anterior, deveriam ser desenvolvidos produtos com vida longa e

passíveis de serem reparados;

8. Trabalhar em um estilo de vida que valorizasse mais o tempo livre, diminuindo a

escravidão do trabalho, especialmente o do que o ator chama de “círculo vicioso do

aparelho de barbear”, em que temos aparelhos que fazem a barba cada vez mais rápido

para que tenhamos mais tempo para desenvolver aparelhos que façam a barba de forma

ainda mais rápida.

Uma questão que se coloca neste debate e que vem assumindo um aspecto um tanto central é

sobre a postura a ser assumida com relação à questão do crescimento econômico: neste caso,

existem as noções de “economia do estado-estacionário” e de “decrescimento econômico”.

Georgescu-Roegen afirma que qualquer tipo de economia humana que se utilize de recursos

naturais, num ambiente finito está fadada ao colapso, segundo o que define a Segunda Lei da

Termodinâmica. A grande questão é o tempo que isto levaria, e somente numa economia de

decrescimento é que a duração poderia ser muito longa; ao contrário, numa economia de

crescimento, o colapso se daria muito em breve (Idem, 1975). Observemos que o autor faz

esta advertência num cenário com uma população de cerca de 4 bilhões de habitantes, com

um consumo de recursos naturais per capita inferior ao de hoje e com um nível de poluição

também muito menor do que o que temos atualmente.

Daly (1974) aponta, entretanto, que uma economia de decrescimento (assim como de

crescimento) deveriam ser apenas estágios temporários entre diferentes “estados

estacionários”, a serem utilizados apenas em momentos específicos mediantes acordos

coletivos balizados por questões éticas e ambientais. Evidentemente que, utilizando dos

argumentos de Georgescu-Rogen, Daly condena a ideia de crescimento permanente das

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teorias neoclássicas, definindo-a como um tipo de anomalia (growthmania). Assim, o autor

define a economia do estado-estacionário como sendo

constant stocks of physical wealth (artifacts) and a constant population, each maintained at some chosen, desirable level by a low rate of throughput-i.e., by low birth rates equal to low death rates and by low physical production rates equal to low physical depreciation rates, so that longevity of people and durability of physical stocks are high (DALY, 1974; p. 15).

Este estado, não representa, no entanto um estado estático. Embora, a proposta preveja a

existência de um “estoque” (tanto de pessoas quanto artefatos) constante, este deve ser

mantido por um fluxo econômico. Este fluxo pode mudar com o tempo, e uma maior

eficiência envolveria a tentativa de minimizá-lo para um dado estoque desejado (parte-se do

pressuposto de que os estoques é que trazem o bem-estar e não a sua crescente reposição

numa lógica de consumo estimulado). Outra forma de aumentar a eficiência seria fornecer

mais serviços para um dado nível de estoque (DALY, 1974). Contra o argumento de que esta

situação seria pouco aplicável, Daly diz que inevitavelmente, num sistema estacionário aberto

como parece ser a Terra, inevitavelmente a economia atingiria este ponto, e podemos

acrescentar, com base nos argumentos desta seção, que a partir do qual fatalmente decairia a

qualidade de vida geral dos indivíduos. A noção de que a tecnologia exponencialmente

crescente poderia substituir os processos naturais, mantendo o crescimento também

exponencial da economia (como está implícito no modelo de substituibilidade ligados às

noções neoclássicas) não daria conta de resolver este problema, pois além de ir contra o senso

comum fere também os princípios da física, como já vimos logo acima.

Tal economia, segundo Daly (1979), deveria dispor de mecanismos que dispusessem de um

controle social com o mínimo sacrifício possível da liberdade pessoal e que garantissem a

estabilidade no nível macro enquanto permitem a variabilidade no nível micro (ou seja, ao

mesmo tempo uma macroestática e uma microdinâmica). Além disso, deveria ser adotado o

princípio de manter uma folga entre a capacidade máxima da natureza em suportar a

exploração e sua efetiva utilização, de forma a permitir que os ciclos se regulem

automaticamente (já que, conforme lembra Daly, não teríamos nem capacidade nem

conhecimento para assumir um controle muito detalhado de todos os processos do planeta).

Um terceiro princípio seria partir das condições atuais (ao invés de um abstrato e impreciso

estado “mais limpo”) e o quarto seria trabalhar gradualmente para constranger as condições de

exploração.

Daly (1979) propõe ainda a existência de três instituições para regular um tal sistema

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econômico: uma para estabilizar a população, uma segunda para estabilizar o bem-estar físico

e manter o fluxo material abaixo do limite ecológico e uma terceira para limitar o grau de

desigualdade na distribuição dos estoques constantes entre uma população constante (já que o

crescimento não mais seria a solução para esta demanda). Tais instituições seriam baseadas

nos mecanismos de definição de preço de mercado, por meio de quotas agregadas que se

relacionam com cada um dos elementos a serem controlados. Com relação aos recursos, Daly

propõe que o seu controle se dê na extração e não no final da cadeia produtiva (ao contrário

do hoje vigente mercado de carbono, por exemplo).

Em função deste debate, Serageldin e Steer (1994) classificam as possíveis concepções de

sustentabilidade em quatro níveis, a partir da noção ampliada sobre estoque de capital. No seu

ponto de vista, esta concepção envolve quatro tipos de estoques: de capital “feito pelo

homem”, como construções, máquinas, fábricas e infraestrutura; de capital natural, que são

todos aqueles ativos da natureza que fornecem serviços e bens ao ser humano; de capital

humano, que está ligado à formação dos indivíduos e à sua saúde49 e de capital social, que se

refere a existência de uma comunidade cívica forte, ligada a instituições que permitem uma

boa governança, nos moldes dos estudos realizados por Putnam na Itália.

A relação entre estes diferentes tipos de capital é o que definiria o tipo de sustentabilidade

envolvido. Neste caso, ela seria colocada nos termos “da manutenção destes quatro tipos de

capital, enquanto são produzidos fluxos crescentes de benefícios para indivíduos e sociedade

como um todo”50 (SERAGELDIN & STEER, 1994, p. 31). Assim, a sustentabilidade que se

obteria poderia ser de quatro tipos: a) fraca, que é quando os capitais são totalmente

intercambiáveis, sendo importante apenas o capital total (soma dos quatro tipos); b) sensível,

que se dá quando há um nível mínimo para cada um dos capitais, ou seja a existência de todos

é importante; c) forte, quando é requerida a manutenção de alguns subcomponentes de capital

intactos e d) absurdamente forte, que não aceitaria a redução do que quer que seja; recursos

não renováveis, por exemplo, não poderiam ser usados de forma alguma. De certa forma, as

duas primeiras se aproximariam mais da visão de Solow e Stiglitz e as duas últimas da de

Goergescu-Roegen.

49 Um debate atualmente em voga é sobre a dimensão do desenvolvimento humano nas concepções do desenvolvimento (crescimento econômico). Stiglitz (2010) afirma que o principal vetor para o crescimento econômico é o aumento do conhecimento. De fato, ao fazer isto, Stiglitz critica também o modelo neoclássico que atribui o crescimento à alocação eficiente de recursos e ao aumento do capital. Entretanto, seu modelo não questiona o mercado em si, mas pressupõe uma regulação feita pelo Estado.

50 Tradução livre. Do original “of the maintenance of these types of capital while producing an increasing stream of benefits to individuals and society as a whole”.

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Uma questão que parece faltar neste debate e que se nos apresenta um tanto central é se o

mecanismo do mercado pode dar conta das mudanças em direção à sustentabilidade. Dito de

outra forma, se a regulação deste mecanismo, via implantação de uma política de não

crescimento (ou de estado-estacionário), seria suportável pela sua dinâmica e de uma maneira

que fosse adequada para a maior parte da população.

Neste sentido, e lançando uma luz sobre a questão, Dowbor (2010) propõe que a problemática

ambiental está vinculada à questão dos valores (que se referem ao sentido do que fazemos) e

da ética, o que implicaria em repensar elementos dos paradigmas econômicos que nos afastam

dos objetivos desejados. Este seria o caso do estímulo à competição, que leva à depredação do

recursos e à perda da otimização na sua utilização, especialmente quando se refere à gestão

dos bens comuns51. O autor aponta que, em muitos casos, uma forma colaborativa e

comunitária de gestão trariam melhores resultados. Usando as palavras de Daly, Dowbor

(2010) afirma que:

a incapacidade do mercado em resolver o problema da justa distribuição é amplamente reconhecido, mas a sua semelhante incapacidade de resolver o problema de manter uma escala ótima ou pelo menos sustentável não é tão amplamente levada em conta”. Assim, “as decisões que afetam o desenvolvimento sustentável deveriam ser abertas e permitir a participação informada das partes afetadas e interessadas (DALY apud DOWBOR, 2010, p. 79)

51 Para ilustrar isto o autor cita o exemplo da utilização da água. Segundo à teoria econômica convencional, os bens escassos tem mais valor, sendo que a contaminação da água favoreceria, por exemplo, o aumento dos lucros empresariais.

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5.2.2 A crítica à mensuração da economia a partir do PIB – Produto Interno Bruto

Seguindo a linha argumentativa de Daly, Van Bellen (2006) coloca que não existem indícios

de que a simples restrição ao crescimento ou a ampliação da regulação do mercado

conduziriam, necessariamente, à sustentabilidade. Neste caso, o autor tem a mesma posição,

de que considerar a sustentabilidade apenas no sentido de manter e prolongar a existência

humana, sem levar em conta a questão dos valores, pode trazer resultados catastróficos. Basta

que consideremos hipoteticamente o prolongamento das tendências atuais, assumindo que as

práticas passem a restringir a carga total sobre o planeta, levando-se em conta a sua

capacidade de regeneração. O que se veria seria uma cristalização das desigualdades já que

muitos deveriam se manter privados do consumo para que poucos usufruíssem. Somando-se a

isto, a orientação para a exploração limítrofe da capacidade ambiental, se veria reforçada a

ideia de exploração utilitária da natureza, degradando-a e deformando-a cada vez mais, o que

daria espaço para a criação de um sistema social, psicológico e culturalmente insustentável.

Para além do foco sobre a questão do crescimento, há um campo de discussão que propõe que

a questão está na validade de se utilizar estes modelos econômicos – e a sua mensuração

comumente utilizada, conhecida como Produto Interno Bruto (PIB) – para a avaliação do

desenvolvimento de determinada região. Neste caso, o debate se concentra na questão de

“qual o desenvolvimento desejável”, e como ele se definiria a partir da adoção de práticas

efetivamente sustentáveis, e provavelmente não em torno de “que nível de crescimento do

PIB é mais adequado”. Isto implicaria numa mudança substancial na forma como o

desenvolvimento é medido.

De fato, esta discussão não está completamente desconectada da anterior, e já é trazida

também por Daly (2008), que propõe que o PIB não é adequado para medir a riqueza, pois

conta como positiva aquelas atividades “deseconômicas”, ou seja, que contribuem

negativamente para o bem-estar da população ou que levam a uma depleção dos recursos

acima do suportado pela natureza.

Podemos utilizar dois exemplos em que esta construção em torno da ideia do produto interno

bruto (e a ideia de desenvolvimento subjacente) é posta em cheque: a primeira delas se refere

ao movimento da ecologia profunda e a segunda ao indicador da Felicidade Interna Bruta

(FIB). O primeiro caso (cujas características serão apontadas com mais detalhes mais adiante

neste trabalho), se refere a uma mudança na postura com relação ao meio ambiente, que

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implica em outro tipo de relacionamento do ser humano com a natureza, que passaria a estar

pautado pela consideração do seu valor intrínseco. Naess (1989), uma das referências mais

importantes sobre este tema, aponta que o crescimento econômico conforme concebido e

implementado hoje pelos estados industriais não é compatível justamente com o

“florescimento da vida na Terra como valor intrínseco” (p. 29) e com o necessário

decrescimento populacional, uma das premissas do movimento. O autor elenca nove

argumentos para ignorar52 a ideia de PIB: a) a ideia do crescimento do PIB tem valor apenas

em contextos históricos específicos, mais precisamente no do pós-guerra (II Guerra Mundial),

em que as economias precisavam voltar a “andar”; além disso, este crescimento incluiu (e

inclui) todo o tipo de atividade econômica, não apenas aquelas que aumentam a qualidade de

vida da população; b) o PIB não é uma medida de bem-estar, porque 1. envolve poucas

mercadorias que as pessoas de fato usam, 2. o peso de cada componente na medição não

corresponde ao efeito de bem estar que ele proporciona, 3. o resultado diz nada sobre a

distribuição dos bens entre as pessoas e 4. o PIB apenas reflete as atividades em andamento,

sem dar informações sobre suas consequências futuras; dando exemplos sobre estes pontos, o

autor aponta que o acréscimo de gasto de $1.000 em uma campanha antifumo que resulte em

$10.000 em redução de vendas, ou ainda a mudança de hábito de almoçar em restaurantes

para almoçar com a família, ou muitos outros exemplos que pudessem ser reputados como

mudanças para práticas “saudáveis” resultariam sempre em um “lamentável” decrescimento

do PIB, ao passo que o aumento do consumo de pílulas antidepressivas provocariam uma

aumento neste indicador; c) o PIB cresce mais rapidamente sobre tecnologias “duras” (hard

technology) e que requerem longos tempos e distâncias de transporte, de acordo com a ideia

de ampliação de lucros e de atividades econômicas; d) o crescimento favorece desejos

(superfluidades), não necessidades; de fato, a lógica de expansão indefinida do mercado e a

sua justificação está baseada na ideia de ilimitação dos desejos; e) a medida do PIB discrimina

quem trabalha em casa de forma não-remunerada; f) o crescimento do PIB apoia o consumo

irresponsável e não-solidário de recursos e a poluição global, já que o compartilhamento de

tecnologias não contribui para este incremento; g) o crescimento econômico não é relevante,

justamente porque o foco de uma política econômica está em cada entrada que forma um

único número, especialmente neste caso, que mede o tamanho agregado (contribuição

específica para o PIB, em termos de valor) de quase tudo. Assim sendo, defender o

crescimento, estabilidade ou decrescimento deste número não é importante; h) As tentativas

de salvar (reformas) o PIB são perdidas, porque é necessária uma mudança mais profunda,

que inclua os sistemas de valores envolvidos em cada caso; e i) a relação entre crescimento e

52 “Arguments for ignoring GNP in the industrial countries” (p. 111). Grifo nosso.

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emprego nem sempre é satisfeita; se houver uma política econômica que estimule a produção

trabalho-intensiva ao invés de capital-intensiva, haveria uma parada no crescimento

econômico ou mesmo uma retração no PIB.

O segundo exemplo citado, o da Felicidade Interna Bruta (FIB), diz respeito a uma ideia

criada e inicialmente adotada pelo governo do Butão, um pequeno país com 634.982

habitantes e com regime de governo monárquico parlamentarista, situado no Himalaia, entre a

China e a Índia (NATIONAL PORTAL OF BUTHAN, 201053). Segundo esta referência, o

país é o único no mundo a adotar oficialmente o FIB como forma de medida de riqueza, ao

invés do PIB, sendo esta política efetivamente implantada a partir de 2008 (embora as

discussões e preparativos remontem aos anos 70). A ideia do FIB54 é que ele seja definido a

partir de diversos itens que possam medir o bem-estar (e a felicidade mesma) efetivo da

população, sendo composto a partir de nove dimensões básicas que se desdobram, por sua

vez, em diversos indicadores (GROSS NATIONAL HAPINESS, 2010): a) bem-estar

psicológico, que inclui indicadores gerais de angústias psicológicas, das emoções

prevalecentes e da espiritualidade; b) uso do tempo, em que se inclui com especial relevância

o tempo de não-trabalho e o tempo de trabalho não remunerado (como cuidado com crianças e

atividades domésticas); c) vitalidade comunitária, que envolve questões como vitalidade da

família, segurança, reciprocidade, confiança, apoio social, sociabilidade e densidade de

parentesco; d) cultura, que envolve indicadores que buscam perceber sua diversidade, como

utilização de dialetos, existência de atividades tradicionais, festivais comunitários,

transmissão de valores; e) saúde, que compreende a avaliação do estado de saúde, os

conhecimentos apropriados pela população (adoção de práticas consideradas saudáveis) e o

acesso à saúde; f) educação, que envolve a formação adquirida, o conhecimento da literatura

folclórica e histórica e o conhecimento da língua local; g) diversidade ecológica e resiliência,

que inclui indicadores de degradação ambiental, de conhecimento sobre o meio ambiente, e de

desmatamento; h) padrão de vida, que envolve a leitura de questões como renda, condições de

moradia, segurança alimentar, e medição dos níveis de privação; i) boa governança, que inclui

a avaliação da performance do governo, da liberdade e da confiança institucional.

Por fim, há a perspectiva que percebe a sustentabilidade a partir da relação ética entre os seres

humanos e a natureza. Neste caso, é possível a construção de uma ponte entre as discussões

53 Para evitar a repetição exaustiva da longa referência, todos os dados referentes ao Butão e ao seu governo foram extraídos da referência citada (NATIONAL PORTAL OF BUTHAN, 2010).

54 GNH – Gross National Happiness – em inglês, em similitude com GNP – Gross National Product. A tradução para o português guarda esta similaridade, o que faz referência à intenção da substituição do tradicional indicador de produto interno bruto (em português a mudança seria de PIB para FIB)

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realizadas neste capítulo e que serão continuadas no capítulo seguinte. Uma exemplo que

pode ser aqui referido é Capra (2002), que parte da consideração de que nós fazemos parte de

duas comunidades, considerando em nível planetário: a raça humana e a biosfera global.

Assim, deveríamos nos comportar como os demais moradores do “oikos” ou “casa Terra” - as

plantas, os animais e os micro-organismos – que formam uma vasta rede global, denominada

pelo autor como “teia da vida”. Destas considerações surge a concepção de sustentabilidade

de Capra:

Essa rede viva global desenvolveu-se, evoluiu e diversificou-se no decorrer dos últimos três bilhões de anos sem jamais se romper. A característica marcante da "casa Terra" é a sua capacidade intrínseca de sustentar a vida. Na qualidade de membros da comunidade global de seres vivos, temos a obrigação de nos comportar de maneira a não prejudicar essa capacidade intrínseca. Esse é o sentido essencial da sustentabilidade ecológica. O que é sustentado numa comunidade sustentável não é o crescimento econômico nem o desenvolvimento, mas toda a teia da vida da qual depende, a longo prazo, a nossa própria sobrevivência. A comunidade sustentável é feita de tal forma que seus modos de vida, seus negócios, sua economia, suas estruturas físicas e suas tecnologias não se oponham à capacidade intrínseca da natureza de sustentar a vida. (CAPRA, 2002, p.212)

5.2.3 Considerações “parciais” ou “intermediárias” sobre o debate da sustentabilidade

Tomando-se como referência as discussões apresentadas neste capítulo, parece-nos que um

tipo de classificação mais adequada aos tipos de prática de sustentabilidade deveria enquadrá-

la dentro de uma marco que identificasse o grau de “radicalismo” da proposta, ou seja, de

quanto ela se aproxima das concepções dadas por estas críticas ou o quanto elas estão presas

aos paradigmas dominantes, que é o que ocorre quando vemos as utilizações citadas logo no

início deste capítulo. Uma classificação como esta poderia separar, de fato, as propostas que

tentam uma mudança efetiva nas ações e políticas daquelas que tendem a mudar pouco,

preocupando-se mais com a imagem da mudança do que com a sua profundidade. Tal

diferenciação facilitaria o debate em torno do tema e evitaria apropriações que tendem a

esvaziar principalmente aquelas propostas que seriam consideradas mais “radicais”.

Vale ressaltar que a utilização do termo radical aqui tem a ver com a ideia de ir “à raiz” das

questões, nos temos propostos por Giddens (2001). Neste sentido, uma classificação como

esta deveria fazer vir à tona não somente as normas propostas por cada corrente ideológica,

mas também os valores que as definem. Além do entendimento de como elas percebem as

questões do crescimento econômico ou da atuação do mercado, é preciso também que se

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compreenda sobre que bases eles se constituem, o que definirá os seus próprios limites, além

de abrir espaço para a discussão das possibilidades e o alcance de novas formas de

organização socioeconômica que aparecem no seio da nossa sociedade, como é o caso das

ecovilas. Neste sentido, a discussão do capítulo seguinte procurará compreender que tipo de

ética pode dar conta do entendimento de práticas como estas, bem como da necessidade de

redefinir alguns paradigmas sobre os quais se assentam a noção de sustentabilidade.

Além disso, algumas visões apontadas neste capítulo carecem de um olhar mais crítico com

relação ao mercado e de um sentido mais claro da busca da construção de alternativas

econômicas que o superem. De fato, a maioria delas ou trabalha isto de forma implícita, ou

este elemento é consequência diretas das suas colocações, mas elas trazem isto de maneira

pouco sistemática. Tendo isto em vista, esta questão será trabalhada com maior

aprofundamento no capítulo 7.

Por fim, uma noção a se reter sobre a sustentabilidade é que ela não representa um fenômeno

unidimensional, ou seja, somente relativo ao meio ambiente. A própria evolução do seu

debate, como vimos nos histórico, indica que uma ação sustentável deve considerar diversas

dimensões da vida social do ser humano. Hoje fala-se muito do “tripé da sustentabilidade”,

que envolve as dimensões econômica, social e ambiental, considerando-se que o fenômeno

vai efetivamente muito além da questão ambiental (SACHS, 2002).

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6 A ECOFILOSOFIA E A DEFINIÇÃO DE VALORES A PARTIR DA ÉTICA ECOLÓGICA

Este capítulo representa o esforço de entendimento da relação do ser humano com a natureza,

buscando a compreensão de como ela se dá atualmente, quais suas limitações e que

implicações isto teria para as noções de sustentabilidade em discussão. Isto é especialmente

importante, tomando-se como perspectiva o objeto de estudo deste trabalho, que está

vinculado à tentativa de definição de uma outra relação do ser humano com o seu meio.

As discussões no âmbito da filosofia ecológica (ou ecofilosofia) aqui empreendidas dão

destaque às questões referentes aos princípios que norteiam a relação do ser humano com a

natureza e os seus reflexos nas relações sociais. Neste capítulo, partiremos por um lado da

discussão sobre uma ética que tem a natureza como ente a ser considerado na definição das

ações humanas, associada principalmente à noção do princípio responsabilidade; por outro,

buscaremos os referenciais que conduzem a uma percepção do ser humano como integrado ao

meio ambiente como condição natural (ontológica), dada principalmente pela concepção da

ecologia profunda. Ambas as visões se colocam em contraposição às ideias dominantes,

definidoras de um antropocentrismo, que considera o ser humano, simultaneamente,

compromissado (eticamente) apenas com outros iguais, e como separado da natureza que o

cerca.

6.1 O Princípio Responsabilidade

Hans Jonas (2006) considera que as formas tradicionais de postular a ética não dão mais conta

da natureza do comportamento humano, modificado principalmente em função do imperativo

da tecnologia presente nas sociedades modernas. Segundo Jonas (2006), cinco foram as

características do agir humano (nas sociedades pré-modernas) que definiram a ética em

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vigência e que não se verificariam mais na atualidade: a) todo o trato com o mundo extra-

humano era eticamente neutro, pois não afetava significativamente a natureza das coisas e as

habilidades humanas (techne) eram consideradas um meio e não um fim como hoje; b) a ética

era antropocêntrica, ou seja, dizia respeito da relação do ser humano com o ser humano ou

com ele mesmo; c) na ação ética, o ser humano era considerado constante quanto a sua

essência, sem se reconfigurar pela techne; d) o bem ou o mal da ação humana tinha um

alcance limitado, tanto no tempo quanto no espaço; isto é os critérios do comportamento

correto eram relativos a ações imediatas, assim como sua consecução e a ética era a do “aqui e

agora”; e) em função disso, o saber requerido para a prática da moral era facilmente acessível

a quaisquer indivíduos, portanto todos sabiam “o que deveria ser feito”; as consequências

futuras de dado ato (fora do curto prazo) não eram postas em julgamento.

O que há de novo em termos da definição de uma nova ética é que a ação humana adquiriu

uma capacidade de intervenção no meio externo que pode romper com os equilíbrios

ecológicos estabelecidos e, no limite, provocar a destruição da sua própria espécie por meio

da destruição da natureza que supre suas necessidades. Com isso, o autor estabelece uma ética

vinculada à responsabilidade, ao introduzir uma nova forma de pensar a ética, vinculada ao

presente e ao futuro, ao contrário de outros filósofos clássicos (KUIAVA, 2006).

Jonas (2006) considera que mesmo que os valores éticos construídos num contexto não mais

prevalecente (a ética “do próximo” - relacionados à justiça, misericórdia, honradez, etc) ainda

continuem válidos, especialmente para a esfera mais próxima, cotidiana, estes fatos novos

apontam uma outra dimensão até então inédita à ética: a responsabilidade. Isto amplia os

horizontes espaço-temporais dos atos humanos que deveriam ser avaliados segundo

postulados éticos, passando-se a considerar tanto os reflexos das suas ações sobre as gerações

futuras quanto sobre o meio ambiente:

Por meio de seus efeitos, ela [a descoberta da vulnerabilidade da natureza] nos revela que a natureza da ação humana foi modifica de facto, e que um objeto de ordem inteiramente nova, nada menos que a biosfera inteira do planeta, acresceu-se àquilo pelo qual temos de ser responsáveis, pois sobre ela detemos poder. Um objeto de uma magnitude tão impressionante, diante da qual todos os antigos objetos da ação humana parecem minúsculos! A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada. (JONAS, 2009, p. 39)

Assim, a nova ética teria seus imperativos da ação mais relacionados com a política pública,

ao contrário do imperativo kantiano55, ligado à conduta privada. Enquanto neste segundo não

55 “Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral” (JONAS, 2005, p. 47)

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interessam as consequências reais, ou as responsabilidades objetivas, mas sim a constituição

subjetiva dada pela autodeterminação, no primeiro caso a preocupação estaria ligada aos

efeitos concretos da ação coletiva sobre a continuidade da vida humana.

Os esforços teóricos e práticos envolveriam ainda a construção do que seria uma “ética do

futuro”. Neste caso, deveria haver uma “ciência do futuro”, que envolveria uma capacidade

de apontar cenários futuros do ser humano no mundo. Isto implicaria, por um lado na adoção

de uma postura mental correspondente, assumindo-se que o malum imaginado seria

equivalente a um malum experimentado, adotando-se uma postura adequada a um

“sentimento mobilizador” (JONAS, 2005). Por outro lado, a efetivação de tal ética deveria ter

como ponto de partida a escolha do mau prognóstico sobre o bom, e as justificativas seriam

que apostas altas envolvem riscos altos (por isto a natureza faz pequenas apostas e seleciona

dentre elas as exitosas) e que a tecnologia tem um alto poder de autonomização, ou seja,

assim que colocada em movimento assume uma dinâmica de crescimento compulsivo e

muitas vezes irreversível, dificultando a realização de correções56. Jonas (2005) admite a

existência de dificuldades que a aplicação destas posturas teriam no ambiente prático-político,

em função de que a sua adoção certamente implicaria no abandono de políticas com impactos

de curto prazo.

6.1.1 O problema da manipulação da natureza e suas implicações para uma ética ecológica

Jonas (2005) concentra seus argumentos na definição da relação dos seres humanos com

outros seres humanos (que estão, neste caso, em um tempo futuro). Entretanto, ele não ignora

as implicações que tal definição traria para a forma com que o ser humano se relaciona com o

meio ambiente. Neste caso, o dever para com o futuro da humanidade envolveria também um

dever para com a natureza, já que a sobrevivência do segundo seria condição sine qua non

para a do primeiro. Esta sobrevivência, entretanto, não deveria ser perseguida a qualquer

custo, mas a própria natureza deveria ser preservada na sua dignidade, já que a própria

dignidade do ser humano também guardaria relação direta com a da natureza.

56 De fato, o autor apresenta e trabalha posteriormente um outro argumento para justificar a ação cautelosa: a de que a “aniquilação de toda humanidade” nunca poderia ser objeto de aposta (já que qualquer decisão implica em uma aposta, com menor ou maior risco), em quaisquer circunstâncias, especialmente porque não é possível supor que a humanidade futura concordaria com tal decisão. Esta consideração leva ao postulamento do que seria o primeiro princípio ético fundamental dentro do método proposto: “a existência ou a essência do homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir” (JONAS, 2005, p. 86), no que seria uma inversão do princípio cartesiano da dúvida.

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O autor considera, porém, que estas duas obrigações (com o futuro da humanidade e com a

natureza) estão implícitas no que seria o “dever para com o ser humano”. Na relação com a

natureza, o ser humano teria uma espécie de “direito maior”, que se manifestaria quando da

necessidade de uma escolha entre um e outro. Tal supremacia poderia ser justificada pelo

egoísmo das espécies e pela própria condição natural que há de uma espécie se alimentar da

outra e de intervir em dados ambientes, o que representa uma contínua interferência no

equilíbrio existente.

Contudo isso, não exclui a solidariedade existente entre o ser humano e a natureza, bem como

a própria obrigação (dever) do primeiro em preservar a dignidade do segundo. Na definição

do que seria este dever, tem-se como premissa de que o ser humano não mais se adéqua ao

equilíbrio geral que é sempre mantido por limitações contidas nas leis da ecologia. Este

desajuste passou a se definir com mais evidência a partir do século XX, com a aceleração do

desenvolvimento científico longamente gestado. Com isto, o dever do ser humano com a

própria existência incluiria um outro dever: “que ela seja humana”, ou seja, que ela exista em

um ambiente satisfatório. No final das contas, este seria um dever negativo: “não ao não-ser”,

especialmente ao “não-ser” do ser humano, que designa a obrigação de não destruir as

condições que tornam a existência do ser humano digna, o que incluiria a própria natureza.

Existem outros autores que dão destaque mais central aos argumentos que definiriam uma

ética ambiental a partir da relação do ser humano com a natureza. Thielen (2001), por

exemplo, aponta que a ética poderia ser construída a partir da ideia de um “ser outro” da

natureza, passível de ser respeitado na sua dignidade, ou seja, sem expectativa de qualquer

utilidade. Esta ideia é construída, por um lado, a partir das contribuições da teoria crítica

(especialmente Adorno), que se baseia na ideia de que a natureza, enquanto objeto não-

idêntico, não é passível da opressão que o ser humano usualmente realiza. Por outro lado, o

seu argumento baseia-se na “Hipótese Gaia”57, em que a Terra seria um quasi-sujeito,

merecedora, por isso, de respeito e de um tratamento ético que se daria a um sujeito.

A contradição que surgiria nesta dupla consideração (já que a primeira trata a natureza como

objeto e a segunda como sujeito), segundo Thielen (2001), seria apenas aparente, já que

ambas perseguem o mesmo objetivo (“salvar a natureza da opressão, da danificação e da

destruição”, Idem, p.30). Além disso, a relação sujeito/objeto que surge na primeira delas tem

um sentido heterodoxo, ou seja, não indica submissão.

57 A Hipótese Gaia foi formulada, inicialmente, por James Loverlock, ao observar que os processos químicos e biológicos da Terra tem um comportamento autopoiético, e portanto similar a dos organismos vivos. O nome surge da mitologia grega, que considera a divindade Gaia como sendo o espírito da Terra.

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A questão de considerar, no entanto, a natureza como sujeito (que é vista como a ideia mais

forte das duas por Thielen) coloca um problema que é o da negação da possibilidade, em tese,

do seu uso por parte do ser humano. Thielen (2001), todavia, coloca que esta situação deve ser

considerada mais como uma abstração para a contenção da dominação humana na natureza

dentro de limites o mais estreitos possíveis. Com isso, uma contradição básica e inevitável a

qual o ser humano deveria suportar estaria nesta tensão entre o explorar e o não explorar a

natureza: “uma dominação básica da natureza é conditio sine qua non da não-dominação”

(Idem, 2001, p. 32). Portanto, a realização de um tipo de intervenção fortemente regulada,

limitada e planejada da natureza evitaria os processos de degradação que podem ser hoje

testemunhados em função da ação humana.

O desenvolvimento sustentável, segundo esta lógica, se basearia em três objetivos gerais

(THIELEN, 2001): o desenvolvimento do ser humano, da natureza e da relação entre eles. O

primeiro, deve ser físico (saúde física), psíquico (saúde psiquicomental), social (relações

sociais mais igualitárias cidadania efetiva que permitam o desenvolvimento do ser humano) e

cultural (criatividade livre e viável); o segundo tem quatro pressupostos / características

principais: um estético (“valorização da grandiosidade e beleza da natureza como conjunto de

qualidades” (THIELEN, 2001, p. 38)), um ético (respeito e amor à natureza como um

semelhante), um ecológico (natureza contendo um conjunto de propriedades especiais –

ecossistema de ecossistemas altamente complexos; ecologia enquanto ciência exata

(multidisciplinar) e um religioso (que envolve a ideia da criação considerada sobre diversas

culturas e da experiência da relação com a natureza, entendida especialmente nos seus

aspectos insondáveis sob a perspetiva da visão científica)58. O terceiro item correlaciona as

questões dos dois anteriores. Cabe ressaltar, nesse aspecto, a ideia do desenvolvimento da

vida humana enquanto “natural-cultural”, isto é, de que o propósito existencial não é somente

realizar uma “sobrevivência física”, mas sim construir uma relação cultural com a natureza.

Branco (1995) considera, por outro lado, que uma ética ecológica (ou ambiental) somente

pode existir como referência à própria sociedade humana, ou seja, a ideia de preservação

ambiental só faz sentido se vinculada à noção da sobrevivência do ser humano (deveres para

com o ser humano ao invés de para com a natureza). Isto porque a ideia de considerar os

demais seres vivos como portadores de um “estatuto jurídico” próprio traria dificuldades de

ordem prática, pela dúvida de se saber que espécies deveriam ser prioritariamente protegidas

58 Apesar de o autor utilizar a palavra religioso, o sentido que ele parece dar ao termo tem maior relação com o atualmente mais usual “espiritual”, ou seja contendo os elementos simbólicos e místicos da experiência individual, que neste caso envolve também sua relação com a natureza.

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(já que o autor parte da premissa de qualquer ação humana traz impactos ambientais), o que

envolve um forte grau de subjetividade. Além disso, a necessidade de redução de populações

(com vista ao controle de desequilíbrios populacionais), bem como a existência de espécies

incompatíveis (mesmo nocivas) com (ao) ser humano levariam sempre inevitavelmente à

morte provocada.

Uma concepção como esta poderia, entretanto, abrir o precedente para a manipulação

desmedida da natureza, já que o pré-requisito fundamental é a sobrevivência do ser humano (e

do equilíbrio ecológico, aqui compreendido no sentido de manter as funções úteis ao ser

humano, embora seja perfeitamente discutível se do ponto de vista ecossistêmico isto seria

viável). O desenvolvimento tecnológico poderia suprimir partes ou processos inteiros da

natureza, desde que se mantivesse o referido pré-requisito fundamental. Mesmo que, neste

caso, o autor aponte para a abrangência que a visão do equilíbrio ecológico tenha com a

diversidade da natureza, ou seja, uma certa integridade da natureza seria considerada também

nesta visão, o esvaziamento do elemento místico-idealista na relação do ser humano com o

meio ambiente (segundo defende o autor) poderia deixar um campo aberto para o

prevalecimento da visão utilitária de exploração e subjugação da natureza.

Parece que a necessidade da existência de algum nível de manipulação na natureza é uma

condição inelutável da ação humana, já que não há como evitar os impactos que o ser humano

causa na natureza, especialmente os negativos. Isto é decorrente, segundo Branco (1995), do

fato de o ser humano ter adotado uma busca que vai além da simples sobrevivência: a do

conforto (mais individual) e a do desenvolvimento (mais social), no que Jonas (2005) aponta

ser uma herança do “ideal baconiano”. Dessa forma, o ser humano tem suas necessidades

muito ampliadas em relação a outras espécies, fazendo, consequentemente, um uso mais

intensivo dos recursos naturais. Branco (1995) aponta que, de fato, o ser humano não participa

mais dos ciclos naturais em equilíbrio dinâmico, apenas interfere neles, logo o ser humano se

afasta da natureza e dela utiliza apenas os fluxos de energia e de massa, redirecionados e

reprocessados.

6.2 A Ecologia Profunda

Enquanto Jonas (2005) direciona suas preocupações para o relacionamento do ser humano

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com as gerações vindouras, a ecologia profunda concentra seus argumentos na tentativa da

definição de uma outra forma de relacionamento deste ser humano com a natureza,

aproximando-se do que foi colocado especialmente a partir de Thielen (2001). Neste sentido,

Naess (1989) tem como ponto de partida a consideração de que a definição das ações do ser

humano e da referida relação são definidas necessariamente sobre uma base de valores, sejam

eles consciente ou inconscientemente definidos. O autor procura desconstruir a noção de que

o paradigma do desenvolvimento e do progresso dominantes na modernidade sejam neutros e

que, dada esta constatação, deve vir à tona um debate sobre os valores e as normas que mais

adequadamente se definiriam enquanto necessidades e aspirações da humanidade.

Naess (1989) parte ainda da consideração de que a relação com a natureza não se dá a partir

de um objetivismo, nem de um subjetivismo, mas sim de um processo fenomenológico. Por

um lado, as definições objetivas da natureza não estão somente nela, já que os referenciais a

partir dos quais ela é lida são definidas pelo ser humano, mais ou menos arbitrariamente; por

outro lado, as impressões despertadas pelo contato com a natureza não são apenas uma

experiência do ser humano, mas típicas do contato e da relação estabelecida. Isto define,

necessariamente, um valor intrínseco para a natureza, dada pela sua própria existência e

superando qualquer relação instrumental.

O relacionamento com a natureza, se daria, então, a partir de uma identidade existencial do

próprio ser humano com ela. O primeiro se colocaria como parte da segunda, reconhecendo

sua pequenez perante ela e, por isso mesmo sentido-se parte da sua grandeza. Isto aponta

fortemente para o elemento intuitivo na composição da percepção da natureza; além disso

essa integração seria definida a partir de uma experienciação individual (embora não isolada)

de cada um com o todo (NAES, 1989).

Conquanto a filosofia proposta por Naess tenha bases precisas – constituindo uma

ecofilosofia – ela daria ensejo à definição de uma ecosofia, ou de ecosofias, que são sistemas

individuais de visão de mundo, articulados de uma “maneira filosófica” e que conduziriam a

uma mesma base – aquela da ecologia profunda. Com isto, o próprio autor define um destes

sistemas, batizado de Ecosofia T59, e que é apresentado com detalhes no seu livro (Idem).

Para Naess (1989), portanto, a ecologia profunda seria, ao mesmo tempo, um sistema

filosófico e um movimento político, por trazer um corpo de ideias coerente e lógico que

59 Nome que faz referência à montanha Tvergastein (que cruza as pedras, na tradução para o português), inspiradora de algumas de suas ideias; além disso, o nome remete à noção de que muitas outras ecosofias poderiam existir (A, B, C...)

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procura apontar para o entendimento da natureza humana e por permitir inspirações para a

ação prática. Enquanto movimento político, ela estaria assentada em oito premissas básicas

(NAESS, 1989, p. 29)60:

1) O florescimento de vida humana e não-humana na Terra tem valor intrínseco. O valor das formas não-humanas de vida é independente da utilidade que elas podem ter para os estreitos propósitos humanos;

2) Riqueza e diversidade das formas de vida tem valor por si e contribuem para o florescimento da vida humana e não-humana na Terra;

3) Os seres humanos não tem o direito de reduzir esta riqueza e diversidade exceto para satisfazer necessidades vitais;

4) A interferência humana atual no mundo não-humano é excessiva, e a situação está piorando rapidamente;

5) O florescimento da vida e da cultura humana é compatível com uma redução substancial da população humana. O florescimento da vida não-humana requer este decrescimento;

6) Mudanças significativas das condições de vida para melhor requerem mudança nas políticas. Isto afeta as bases da economia, da tenologia e das estruturas ideológicas;

7) A mudança ideológica é principalmente em direção à apreciação de qualidade de vida (viver em situações de valor intrínseco) ao invés de alto padrão de vida. Haverá uma profunda sensibilização da diferença entre grande e grandioso.

8) Aqueles que aderem aos pontos anteriores tem uma obrigação direta ou indireta de participar do esforço de implementar as mudanças necessárias.

Por sua vez Capra (1996), a partir das ideias da ecologia profunda, articuladas com conceitos

da física, da biologia e da psicologia (como teoria dos sistemas, ecologia, equilíbrio dinâmico,

autopoiese e processos cognitivos), procura precisar o que seriam as bases científicas da

relação do ser humano com a natureza. O autor define a constituição da vida a partir de três

elementos básicos: padrão de organização, estrutura e processo vital, estreitamente

interligados de forma que a sua existência só tem sentido em conjunto. Assim, o padrão da

vida seria a autopoiese (conforme definida por Maturana e Varela), a estrutura dos sistemas

vivos seria estrutura dissipativa (conforme Prigogine) e o processo da vida como sendo a

cognição (nos moldes apontados por Gregory Bateson e mais recentemente por Maturana e

Varela).

Segundo Capra (1996), a estrutura dissipativa é um tipo de organização mantida em equilíbrio

dinâmico com o seu entorno, ou seja, com um intenso fluxo de matéria e energia atravessando

continuamente um dado sistema. Ele é mantido estável pela autopoiese, em que a atuação

60 Tradução livre.

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complexa de diversos elementos em conjunto regula os processos frente às interferências e às

mudanças externas. A cognição perpassa estes dois elementos, de fato sendo estabelecida

como “a incorporação continuada de um padrão de organização autopoiético numa estrutura

dissipativa” (CAPRA, 1996, p.144). Assim, as próprias interações do organismo vivo com o

seu entorno seriam processos mentais ou cognitivos. Ou dito de outra forma, cognição e vida

tornam-se inseparáveis.

Dado que, segundo esta concepção, a condição básica para a existência da vida é o fluxo

incessante de matéria e energia, organizadas pela autopoiese através de processos cognitivos,

estamos intimamente ligados a todas as formas de vida e ao ambiente que nos cerca. A nossa

natureza (humana) está inextricavelmente ligada ao meio que nos cerca, desde o mais

próximo até o mais distante, principalmente se partirmos da noção de que o meio ambiente (e

o planeta terra, de forma mais abrangente) se organiza também segundo um padrão

autopoiético (o que fortalece a hipótese Gaia).

Tal argumentação fornece-nos ainda outra base para compreendermos a noção de Naess de

conhecimento intuitivo da natureza. O sentimento de fazer parte do que nos cerca seria uma

ressonância da nossa própria condição de integração viva com o sistema natural. Esta situação

pode ter o poder de infundir o profundo respeito, admiração, sentimento de pertença e de

amor pela natureza como um todo, conforme já sugerido por Thielen (2001). Tais sentimentos

conduziriam, por sua vez, a uma sacralização e a uma relação de certa forma mística com a

natureza, levando à ideia de preservação, ou antes disto, de coexistência profundamente

harmonizada.

6.3 Outros Exemplos De Uma Ética Ecológica: Os Casos Dos Povos Andinos E Dos

Povos Guaranis

Uma visão muito parecida com a da ecologia profunda (e de fato muito anterior a sua

sistematização) são as desenvolvidas por diversos povos tradicionais, especialmente

indígenas, a exemplo de povos da América d Sul e dos Andes como os Guaranis, Aymaras e

os Quechuos.

Os Quechuos e Aymaras constroem um tipo de cosmovisão que está inserido dentro do que é

conhecido como “pensamento andino”. Esta cosmovisão define seus pressupostos em torno

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das ideias do respeito à natureza e da integração do ser humano no seu contexto. Sobre elas,

Hidalgo (2006), com base em Quiroga, assim se refere:

O homem não está acima dos demais; talvez ao centro esteja a terra. O homem está convivendo. A melhor sabedoria do homem originário é conhecer a lei da natureza e respeitar essa lei porque através disso ele sobrevive. E é por isso que esta cosmovisão fez que as únicas sociedades realmente com possibilidades de sobrevivência no futuro sejam as sociedades dos indígenas. Porque nós sabemos, surgiram grandes impérios, na Antigüidade: o império romano, grandes civilizações que desapareceram, mas estas sociedades indígenas baseadas nesta cosmo-visão ainda sobrevivem. É a esperança de que através desta cosmo-visão nós possamos sobreviver no futuro. Possamos enfrentar a depredação da sociedade do livre mercado e de consumo. (QUIROGA apud HIDALGO, 2006, p.104).

Um elemento central na compreensão do pensamento e dos códigos de conduta andino é o

pacha. Esta é uma palavra que contém um significado complexo, envolvendo um tipo de

conhecimento acessível principalmente pela intuição e pela tradição, o que torna difícil sua

tradução. Segundo Hidalgo (2006),

A pacha como tempo e espaço é uma categoria do pensamento andino que expressa a dimensão global da vida e não-vida no universo. [...]. Pacha expressa que o tempo e o espaço são infinito e finito ao mesmo tempo, onde o tempo não tem princípio nem fim, senão é uma constante volta conhecida com o nome de kutipacha, é como o universo, um infinito em ordem . Daí que se afirma que a pacha é cíclica e esferoidal, como o pensamento andino. (p. 104).

Hidalgo (2006) aponta que a partir da dimensão humana do pacha61, o ser humano define-se,

ao mesmo tempo como semelhante (pela sua condição natural e cósmica) e diferente (por

causa da sua racionalidade e consciência) à natureza e ao cosmo. Este seria em si uma

totalidade, não se concebendo mundos isolados em quaisquer dos seus componentes, seja o

ser humano ou os outros seres vivos. A partir desta identidade, a ação do homem andino se

daria de forma integrada ao meio natural: Ele “procura a complementação com tudo,

identifica-se com cada um dos elementos naturais e cósmicos e suas ações respondem como

se tivessem sido aprovadas em consenso com a natureza e seu cosmos” (HIDALGO, 2006, p.

105).

Dentro desta concepção, o comportamento predominante tinha como princípios o coletivismo

e o comunitarismo, ligados às práticas de redistribuição e à reciprocidade. Além disso, a

natureza assume um caráter educativo, frente a qual o ser humano se colocaria na condição de

aprendiz: “No pensamento andino, a natureza transmite ou revela ao ser humano cada um de

seus processos, que são assimilados para o bom uso e prática no mundo humano e suas

61 Hidalgo (2006) aponta que o pacha seria composto de três dimensões: a humana (concepção de ser humano), a natural (definição da relação do ser humano com a natureza) e a cósmica (espaço – enquanto firmamento – e tempo).

106

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relações sociais e individuais” (HIDALGO, 2006, p. 106).

No plano organizativo, a consequência deste sistema de valores é que não há noção de

propriedade relacionada com a natureza, a não ser a noção de uso de espaços de terra para

cultivo e moradia, que podem ser mais individuais (de fato familiares), coletivos ou

semicoletivos. O sistema de governo se dá a partir de representantes em diversos níveis (desde

o Ayllu, que representa a célula familiar, passando pelo Marka (conjunto de Ayllu), o Laya

(vários Markas) e Suyu (território com vários Layas)). Além disso, ele envolve práticas de

democracia, com alternabilidade (yanapaña) e reciprocidade (yanapasiña), o que implica em

e mecanismos de escuta das demandas locais e de construção de consenso.

Já no caso dos povos guaranis, embora não haja o mesmo nível de organização em um

extenso território, muitos de seus valores e práticas são equivalentes ao dos povos andinos.

Assim como estes, os guaranis não se consideravam donos do território ou da floresta, já que

esta última seria cuidada pelos seus espíritos guardiões. Um exemplo a respeito disso é, por

exemplo, a tradição dos índios Guarani/Kaiowá62 pedirem licença ao “dono da floresta” para

poder retirar a madeira ou entrar na mata com outros fins (COLMAN & BRAND, 2010).

A ligação do ser humano com a natureza também pode ser tida, em certos aspectos como

similar ao dos andinos. Colman e Brand (2010) colhem ainda um depoimento significativo

neste sentido, que reflete a relação com a natureza e justifica o fato de os Guaranis serem

conhecidos como os povos do mato (ka'aguy): “nós mesmos somos os do mato, nós somos o

mato. Olha, antigamente, nós éramos do mato, fazemos parte, com os bichos, com o meio

ambiente, nós somos o meio ambiente, o mato” (Idem, p.5).

O próprio cultivo agrícola é realizado de forma itinerante, ou seja, escolhia-se uma área, que

era derrubada, queimada e cultivada, e depois de um período ela era deixada para descansar,

de forma que pudesse se refazer. Estas migrações estão ligadas, de fato a duas outras questões:

em primeiro lugar ao mito da Terra Sem Males, e as constantes viagens para encontrar

parentes, especialmente vista no caso dos Mbyas, que as realizavam em um amplo território,

inclusive cruzando a fronteira entre os países do sul da América do Sul, visitas estas que estão

vinculadas a um tradicional impulso recíprocitário deste povo. Isto tem levado a constantes

migrações destas comunidades mesmo nos tempos atuais e a locais fora de reservas (ZANIN,

2006)).

62 Os Kaiowá são considerados também como pertencentes ao tronco Guarani, que ocupava a região que hoje é o Brasil, Paraguai, Argentina e parte da Bolívia , entretanto esta denominação é utilizada para referenciar especificamente o povo que habita a porção meridional do Estado do Mato Grosso do Sul (COLMAN & BRAND, 2010).

107

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As implicações que este debate tem para nossa discussão mais geral e definição dos critérios

de análise podem ser resumidas em dois pontos:

a) rompimento com a visão tecnicista da ideia de sustentabilidade: a solução não passa

necessariamente pelo desenvolvimento tecnológico (adoção de tecnologias mais eficientes),

mas sim pela mudança de práticas que definem a relação com a natureza, que pode significar

mesmo uma redução no uso da tecnologia (ou uma migração para outros tipos de tecnologias

– como as tecnologias sociais). Se o pressuposto da relação homem-natureza proposto na

ecologia profunda é verdadeiro, então o caminho a ser adotado passaria por redefinir como

estabelecemos esta relação coletivamente e individualmente, reconfigurando canais de contato

e interação com o meio natural.

b) a sustentabilidade, sob este ponto de vista, implicaria em ir além da noção de simples

preservação da natureza, por meio de mecanismos que pudessem permitir o seu

funcionamento e a continuidade dos serviços que ela presta ao ser humano, numa visão

utilitária – passaria, ao contrário, à ideia de respeito a sua identidade: nesse caso, são

importantes, além destes serviços, a noção de preservação de elementos como a sua

biodiversidade e todas as características que a definiriam na sua inteireza. Esta mudança

sintetiza a mudança de visão de um antropocentrismo para uma espécie de ecocentrismo, em

que a importância da existência do ser humano é dividida com a do meio que o cerca.

108

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7 A ORGANIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA DO PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA ECONÔMICA

Complementando as discussões iniciadas no Capítulo 5, o propósito neste capítulo é apontar

as limitações de concepções econômicas dominantes, especialmente considerando-se a crítica

e a proposta contidas na sociologia e antropologia econômica, para então indicar elementos

que ajudariam a constituir o marco analítico-conceitual do presente trabalho.

Assim, o capítulo passa pela discussão sobre a pluralidade de princípios econômicos e sua

respectiva crítica ao mercado, apresentada especialmente por Karl Polanyi, e pontuada, em

alguns aspectos por duas outras referências: Marcel Mauss e Guerreiro Ramos. Por fim, são

apresentadas as discussões da economia solidária, em que se procura alinhar as principais

vertentes e discussões dentro do campo.

7.1 Crítica Ao Mercado Autorregulado E A Diversidade De Princípios Econômicos

7.1.1 A visão de Polanyi

Dentro do propósito aqui levantado, os debates que se colocam em evidência são aqueles

trazidos pela chamada sociologia e/ou antropologia econômica. Dentro destes, são relevantes

as discussões que tiveram origem com Karl Polanyi, especialmente com o seu livro de 1944

“The Great Transformation – The Political and Economics Origins of Our Time” (POLANYI,

2001). Apesar de ser apontado como um autor historicamente pouco explorado dentro campo

da sociologia econômica, cuja obra passou muitos anos na obscuridade, seu trabalho é

reconhecido pela consistente crítica que apresenta ao mercado autorregulado (BLOCK, 2003),

109

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o que envolve as noções de mercadorias fictícias, de encastramento da economia na

sociedade (e do movimento duplo) e da pluralidade de princípios econômicos.

Para construir sua tese e sua leitura do surgimento e desenvolvimento do capitalismo (ou mais

precisamente, do mercado autorregulado, já que o autor utiliza pouco este termo no seu livro,

mas há uma certa indissociabilidade entre ambos), Polanyi desenvolve dois tipos de

argumentos complementares: um histórico e outro antropológico (MARTINS, 2007). No

primeiro caso, o desenvolvimento das suas ideias se baseia em dados da Inglaterra entre o

final do século XVIII e início do século XIX, focando o contexto e os fenômenos que fizeram

surgir o mercado autorregulado. No segundo, é feita também uma pesquisa histórica,

entretanto ela assume um caráter antropológico na medida em que Polanyi procura revelar

algo sobre a natureza humana e das suas relações a partir da análise de sociedades pré-

modernas. O autor percebe, neste sentido, um ponto importante desta natureza que seria a

“não modificação do homem como ser social”63, e que, neste caso, a imbricação da economia

na sociedade (ou das atividades econômicas nas relações sociais) seria um traço do

comportamento humano que aparece em toda a sua história em sociedade.

Do ponto de vista da origem do mercado autorregulado, Polanyi identifica, numa série de leis

adotadas na Inglaterra no período citado, as condições que foram sendo dadas para o seu

estabelecimento (ou pela tentativa de, já que em contrapartida, Polanyi mostra também as

constantes reações da sociedade contra este intento, no que ele chamou de movimento duplo).

O movimento que precedeu tudo foi a Revolução Industrial e os chamados enclosures, que

representavam o fechamento dos campos e a sua transformação em pastagens. Este

movimento (que envolveu também a violência física), no final das contas, acabou por

transformar boa parte dos campos em propriedade de mercadores e de ricos agricultores

(POLANYI, 2001).

A criação das fábricas tinha que ser acompanhada por toda uma reorganização social, de

forma que pudessem ser garantidos os requisitos para o seu funcionamento: era preciso a

existência ampla de um mercado autorregulado, de forma que cada fábrica tivesse de quem

comprar e para quem vender, de forma regular; era necessário que a obtenção do lucro fosse

garantida, já que os novos equipamentos, mais complexos, despendiam um grande

investimento para serem adquiridos. A partir daí, toda a vida em sociedade não estaria mais

ligada à subsistência, mas seria necessário que todos dependessem da troca monetária para

63 “the changelessness of man as a social being” (POLANYI, 2001, p. 48)

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viver (MACHADO, 2009, POLANYI, 2001):

The transformation to this system from the earlier economy is so complete that it resembles more the metamorphosis of the caterpillar than any alteration that can be expressed in terms of continuous growth and development. Contrast, for example, the merchant-producer's selling activities with his buying activities; his sales concern only artifacts; whether he succeeds or not in finding purchasers, the fabric of society need not be affected. But what he fowys is raw materials and labor—nature and man. Machine production in a commercial society involves, in effect, no less a transformation than that of the natural and human substance of society into commodities. The conclusion, though weird, is inevitable; nothing less will serve the purpose: obviously, the dislocation caused by such devices must disjoint man's relationships and threaten his natural habitat with annihilation. (POLANYI, 2001, p. 44).

Com os problemas apontados pelas mudanças socioeconômicas em curso, surgiram leis que

buscavam frear em parte seu movimento, na tentativa de conter a dissolução social

generalizada. Destaca-se, neste caso, a Speenhamland, introduzida em 1795, que apesar do

seu caráter protecionista, que ajudou a retardar a implantação do mercado de trabalho livre,

teria promovido sérios danos morais às diversas classes trabalhadores do país. Esta lei criava

um sistema de abonos, que na verdade eram adiantamentos tabelados de salários, dada aos

pobres pelo governo, garantindo um ganho mínimo às famílias. Nas palavras de Polanyi

(2001, p.82), a lei “introduziu não menos do que uma inovação social e econômica que o

“direito de viver”, e até ser abolida, em 1834, ela efetivamente evitou o estabelecimento de

um mercado de trabalho competitivo”64. Entretanto, a lei acabava subsidiando os fazendeiros

empregadores, já que o governo complementava os baixos salários pagos, e só o fazia se o

trabalhador estivesse empregado ou provasse a não existência de trabalho. Além disso, esta lei

reforçava um sistema paternalista herdado dos Stuarts e Tudors: acordos eram estabelecidos

com os empregados em troca de favores, já que o rendimento não dependia do trabalho, mas

do “emprego”, muitas vezes de fachada, fornecido por estes administradores (POLANYI,

2001).

No final das contas, do ponto de vista da implantação de um sistema capitalista, existia uma

contradição intrínseca: enquanto os demais fatores continuavam sob o mesmo status de

mercadoria, visto que a terra continuava sendo comercializada, o trabalho não estava

submetido a estas regras livres do mercado. Mesmo que fosse possível expulsar o trabalhador

da terra, com a sua mercantilização, através da speenhamland ele ficava de certa forma

assegurado contra o jogo do mercado de trabalho. Os resultados deste processo

demonstravam que o mercado autorregulado não podia prescindir do mercado de trabalho.

64 Tradução livre. Do original: “it introduced no less a social and economic innovation than the "right to live," and until abolished in 1834, it effectively prevented the establishment of a competitive labor market. ”

111

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Assim, o Poor Law Reform Act, instituído em 1834, foi um marco decisivo no

estabelecimento deste mercado de forma livre na Inglaterra, por derrubar todas estas práticas

anteriormente estabelecidas. Um dos problemas deste processo abrupto foi que, devido aos

vícios da Speehamland, o valor do trabalho no mercado estava completamente destruído, e a

retirada do subsídio jogou uma massa de trabalhadores e suas respectivas famílias na

indigência. Este é considerado por Polanyi um dos atos de reforma social mais rudes da

história moderna, realizado sob a alegação de que a assistência criava vícios como a preguiça,

e que era mesmo necessário certos níveis de tortura psicológica sobre os pobres para que eles

produzissem adequadamente. Assim, o que se deu depois da criação da Poor Law Reform Act

inaugurou, na sua visão, problemas ainda mais profundos do que a pressão dos burocratas

sobre esta classe: a própria opressão do mercado livre. A continuidade deste pesadelo se deu

até aproximadamente 1870, que foi a terceira fase do processo de instituição do mercado de

trabalho na Inglaterra, quando os trabalhadores puderam se organizar coletivamente para

revindicar seus direitos (POLANYI, 2001).

O mercado livre então criado (no século XIX) incluía o trabalho e a terra como mercadorias e

adotava o padrão ouro como referência dos sistemas monetários, desbloqueando o processo de

criação de preços de maneira abstrata, que passaria a ser definido na esfera (internacional) de

um comércio livre. Com isto, foram criadas o que Polanyi chamou de mercadorias fictícias.

Dentro da reorganização social demandada pela ideia de mercado autorregulado, tudo deveria

se tornar mercadoria, ou seja, ser comercializado em um mercado com base numa regulação

automática dos preços, oferta e demanda. A transformação destes elementos foi vital para a

consolidação do sistema socioeconômico que se desenvolvia. Entretanto, Polanyi via uma

problema na essência desta definição, já que estes três elementos (trabalho, terra e dinheiro)

não têm a mesma natureza que as mercadorias “convencionais” transacionadas na lógica de

mercado:

The crucial point is this: labor, land, and money are essential elements of industry; they also must be organized in markets; in fact, these markets form an absolutely vital part of the economic system. But labor, land, and money are obviously not commodities; the postulate that anything that is bought and sold must have been produced for sale is emphatically untrue in regard to them. In other words, according to the empirical definition of a commodity they are not commodities. Labor is only another name for a human activity which goes with life itself, which in its turn is not produced for sale but for entirely different reasons, nor can that activity be detached from the rest of life, be stored or mobilized; land is only another name for nature, which is not produced by man; actual money, finally, is merely a token of purchasing power which, as a rule, is not produced at all, but comes into being through the mechanism of banking or state finance. None of them is produced for sale. The commodity description of labor, land, and money is entirely fictitious. (POLANYI, 2001, p. 77).

112

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Polanyi via que esta forma de organizar estes elementos tenderiam a provocar o

desmoronamento da sociedade. Já que o portador do trabalho é um ser humano ao “dispor da

força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade

física, psicológica e moral do 'homem' ligado a essa etiqueta ”65 (POLANYI, 2001, p. 76),

levando-o a sucumbir ao abandono social; a própria natureza tenderia a ser explorada até o

limite, aniquilando-se sua capacidade produtiva. Nem as empresas suportariam as injunções

destruidoras do mercado, provocadas pelo excesso ou escassez que o manejo do dinheiro na

lógica do mercado livre traria.

Na outra parte do seu trabalho, em que Polanyi realiza o esforço de reconceituar a economia,

o foco são as sociedades antigas. Neste caso, Polanyi defende uma outra definição de

economia, a substantiva. Ela se coloca em contraponto ao que seria uma definição formalista,

que estaria mais ligada aos conceitos neoclássicos da economia, baseados na alocação de

recursos raros para fins alternativos, e seria aplicável apenas ao contexto moderno, ou seja, de

mercado. Já a definição substantiva percebe a economia enquanto processo de interação entre

o ser humano e o seu ambiente, com o propósito de gerar uma oferta de meios materiais para

satisfazer suas necessidades, e é considerada como tendo um caráter mais universal

(LAVILLE, 2003; MACHADO, 2009; POLANYI, 2001).

Esta definição substantiva está ligada a uma forma de análise, nomeadamente a institucional.

A análise institucional se dá pela observação de padrões que emergem dos arranjos sociais

concretos. Assim, com base nesta forma de análise, o registro etnográfico mostra que a

economia tem sido organizada nas sociedades humanas apenas por um conjunto reduzido de

padrões (MACHADO, 2009).

A partir deste ferramental conceitual e metodológico, Polanyi percebe a existência de três

princípios básicos que norteariam as atividades econômicas em quaisquer sociedades: a

reciprocidade, a redistribuição e a troca mercantil. Na primeira situação, predominam as

relações de simetria, através da retribuição dos bens ou serviços prestados, geralmente

baseados pelo circuito da dádiva (MAUSS, 2001). Normalmente ela se dá de forma

dominante nas chamadas sociedades tribais (embora nelas também ocorra a redistribuição).

No segundo tipo há uma autoridade central que salvaguardava aqueles que, em dado

momento, não têm condições de se sustentar, que se responsabiliza por uma reserva coletiva a

ser utilizada em momentos específicos, ou em cerimoniais. Neste tipo de organização deve

65 Do original: “In disposing of a man's labor power the system would, incidentally, dispose of the physical, psychological, and moral entity "man" attached to that tag.”

113

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haver uma centralidade nas relações, ao contrário da reciprocidade, em que o que deve

predominar é a simetria. Além disso, este formato predomina nas chamadas sociedades

arcaicas, que podem apresentar também certo grau de troca mercantil ou de reciprocidade. O

terceiro tipo de relação econômica é a troca mercantil, que se dá mediante um movimento

bidirecional entre dois participantes , orientada pelo ganho individual. Ela apenas ocorre

quando há um apoio institucional que permita a formação de preços. (POLANYI, 2001).

Normalmente, na troca mercantil, ao contrário dos outros sistemas, que são formadores do

laço social, a relação se encerra com a própria troca (GOUDBOUT, 1999, CAIULLÉ, 2001).

Em comparação com o modelo de mercado, as duas primeiras instituições não tinham a

motivação pelo ganho individual (lucro), pelo trabalho remunerado e pelo princípio do

“mínimo esforço”, e principalmente, não tinham uma instituição separada e distinta baseada

em motivações exclusivamente econômicas (POLANYI, 2001, p. 49).

Além dessas três formas, há um quarto princípio econômico, a “domesticidade”, que se dá em

famílias alargadas que viviam de maneira relativamente autossuficiente. Esta é considerada

quase uma forma “anômala” no esquema de Polanyi. Assim, ela pode ser entendida não como

um mecanismo do mesmo tipo dos outros três, mas sim estar integrada a algum (ou alguns)

dele(s). Por exemplo, dentro do espaço doméstico normalmente operam a redistribuição e a

reciprocidade (MACHADO, 2009).

Ressalta-se que a predominância de determinado tipo de princípio econômico está mais ligado

à presença de arranjos institucionais do que a práticas individuais:

Assim, o comportamento de reciprocidade entre os indivíduos integra a economia apenas se existirem estruturas simetricamente organizadas, tais como um sistema simétrico de grupos de parentesco (kinship). Contudo, um sistema de parentesco nunca deve a sua origem ao mero comportamento “reciprocativo” ao nível individual. O mesmo se passa com a redistribuição: esta pressupõe a presença de um centro afectador (allocative) de recursos na comunidade, mas, em contrapartida, a organização e a validação de tal centro não surge apenas como a mera consequência de actos frequentes de partilha entre os indivíduos. Finalmente, o mesmo é válido para o sistema de mercado: actos de troca (exchange) ao nível pessoal apenas produzem preços se ocorrerem no âmbito de um sistema de mercados formadores de preços, um quadro institucional que não pode nunca ser criado por meros actos aleatórios de troca (exchange). Em suma, as estruturas de apoio, a sua organização básica e a sua validação derivam da esfera societal ou, por outras palavras, o factor validativo e organizador deriva da acção colectiva das pessoas em situações estruturadas. (POLANYI, 1968a:150; POLANYI, 1977c: 37 apud MACHADO, 2009).

Vale ressaltar que os diferentes princípios não representam estágios evolutivos de uma dada

sociedade, nem comportam uma classificação numa escala temporal. Todas elas aparecem em

momentos distintos da humanidade e das sociedades. Mesmo os mercados já assumiram

114

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algum papel em momentos da história. A novidade de hoje é que ele nunca havia assumido

um espaço tão preponderante e tão abrangente.

Neste sentido, Polanyi reforça que a organização econômica das sociedades antigas não

incluíam necessariamente, nem predominantemente a instituição do mercado. Quando ele

existia, normalmente ali se dispunha apenas os excedentes da produção que não eram trocados

segundo os outros princípios econômicos. De fato, a presença ou a ausência de mercado não

implicava em diferença significativa no modelo econômico de uma sociedade primitiva, o que

vai contra o argumento liberal de que a invenção da moeda levou ao inevitável surgimento e

expansão do mercado, da divisão do trabalho e da realização da propensão natural para

negociar (POLANY, 2001, p. 61).

Nas sociedades pré-modernas o mercado ocupava um espaço circunscrito, podendo ser

externo ou interno. Ele era mais um ponto de encontro para realização de uma troca (de longa

distância ou local), e não era necessariamente competitivo, o que significa que não havia

pressão pela criação de um comércio territorial. Segundo Polanyi (2001), esta prática não foi a

responsável pela criação do chamado mercado interno ou nacional.

A instituição de um mercado em escala nacional somente foi possível com a intervenção dos

Estados nacionais. Este processo foi consolidado com a tomada do poder político pela classe

burguesa, que ao remover as barreiras culturais das tradições e costumes locais, conseguiu

instituir o mercado livre. A sua criação não foi resultado de um processo natural, que envolvia

a expansão de mercados locais. Ao contrário, ela se deu a partir da criação artificial de um

sistema econômico sobreposto à sociedade, movimento que foi fortalecido (e eventualmente

viabilizado) por outro fenômeno artificial: a produção em fábricas.

Assim, para Polanyi, o mercado autorregulado seria uma inovação da modernidade. A esta

inovação está ligado, além da ideia da intervenção externa e orientada para sua constituição, o

fato de ela não cumprir uma função específica na constituição da sociedade, como os outros

princípios econômicos (reciprocidade, redistribuição e domesticidade). Além disso, nenhuma

forma de organização social anterior havia criado um sistema econômico distinto, ao contrário

do que se deu com o advento do mercado capitalista.

Todos esses fatores, que criaram atividades estranhas às relações sociais então existentes, e

que geraram diversas consequências negativas, como o rompimento das relações sociais, a

perda da autoestima, a perda da identidade do ser humano com a terra (principalmente os

trabalhadores do campo), além de todos os problemas laborais relacionados com a indústria,

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acabaram provocando uma resposta da sociedade, assumindo o que Polanyi designa como

“duplo-movimento”. Ele seria caracterizado por um jogo de forças em que se enfrentam, por

um lado, a intenção de criar o mercado livre e por outro, a defesa da sociedade, no sentido de

proteger o próprio ser humano e a natureza:

Let us return to what we have called the double movement. It can be personified as the action of two organizing principles in society, each of them setting itself specific institutional aims, having the support of definite social forces and using its own distinctive methods. The one was the principle of economic liberalism, aiming at the establishment of a self-regulating market, relying on the support of the trading classes, and using largely laissez-faire and free trade as its methods; the other was the principle of social protection aiming at the conservation of man and nature as well as productive organization, relying on the varying support of those most immediately affected by the deleterious action of the market —primarily, but not exclusively, the working and the landed classes — and using protective legislation, restrictive associations, and other instruments of intervention as its methods. (POLANYI, 2001, p. 139).

Este contra-movimento, constante e até certo ponto efetivo, é o que permite a manutenção das

bases da sociedade. Polanyi chega a prever que o mercado autorregulado nunca poderia se

estabelecer de fato, pois, no limite, ele representaria o total desencastramento da economia da

sociedade (precisamente pelo fato de as novas mercadorias que ele cria – trabalho, terra e

moeda – serem fictícias, segundo Block (2003)), o que implicaria inclusive na própria

degradação física do ser humano e do meio ambiente. Polanyi mostra ainda que em apenas

alguns momentos pontuais ele se deu próximo a sua forma “ideal”, não sem consequências

desastrosas e sem retornar para algum controle em seguida. Block (2003) defende que estes

controles agiriam como uma espécie de “reencastramento” da economia na sociedade, o que

acaba sendo, paradoxalmente, uma condição necessária para a própria existência do modelo

de mercado.

Retomemos um elemento que nos interessa fundamentalmente na abordagem polanyiana, que

é a pluralidade de princípios econômicos. Machado (2009) apresenta um quadro síntese, que

permite a comparação entre as três formas econômicas (formas de integração) que se

desenvolveram no percurso histórico da humanidade (Tabela 1).

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Tabela 1: Comparação entre os princípios econômicos. Fonte: Machado (2009)

7.1.2 Outras visões: Mauss e Guerreiro Ramos

Mauss (2001), por outro lado, parece estar preocupado mais com as questões sociológicas do

que as socioeconômicas, se tomarmos seu trabalho de forma comparada a Polanyi66. No

entanto, como este último, desenvolve a noção de que as sociedade ancestrais tinham sistemas

econômicos baseados numa lógica muito diversa daquela do mercado. Estes sistemas

poderiam ser generalizados a partir da ideia da reciprocidade construída a partir do sistema da

dádiva, que compõe o circuito dar-receber-retribuir. As diferenças de um sistema da dádiva

para as trocas mercantis residiriam, em primeiro lugar, no fato de que o “dar” constituir-se-ia

em uma obrigação, sob pena de provocar uma guerra (SABOURIN, 2008). Estas obrigações

criariam, assim, um laço espiritual entre os atores da dádiva, o que os forçaria à retribuição e à

criação do circuito referido, que nunca se fecharia. Em segundo lugar, não seriam os

indivíduos, mas sim as coletividades que manteriam estas obrigações recíprocas, num

processo em que se misturariam “almas e coisas”, riquezas materiais e espirituais, ao contrário

das sociedades modernas, em que estas questões estão muito bem separadas (SABOURIN,

2008). Além disso, as trocas não seriam apenas entre coisas “úteis” economicamente, mas

66 Embora possa se considerar uma indissociabilidade entre ambas as questões, parece evidente que as preocupações com Mauss se direcionam mais ao entendimento do processo da troca em si (dádiva), ao contrário de Polanyi, que foca suas atenções numa crítica ao mercado auto-regulado e procura desmitificar algumas de suas “verdades” econômicas a partir de dados antropológicos e sociológicos.

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entre diversos elementos simbólicos da relação, em que o mercado seria apenas uma parte

circunscrita (MAUSS, 2001)67.

Com isto, enquanto Polanyi se refere a existência de três outros princípios econômicos

anteriores ao mercado autorregulado (reciprocidade, redistribuição e familiaridade), Laville

(2003) aponta que em Marcel Mauss é possível perceber que as sociedades modernas não se

sustentam com base em uma só organização econômica, ou em um sistema unificado. Ao

contrário, existiria um conjunto de formas de produção e repartição coexistentes, de forma

que só faria sentido qualificar a sociedade atual como predominantemente capitalista,

composta por “um sistema econômico (que) se compõe de mecanismos institucionais

contraditórios, irredutíveis uns aos outros” (MAUSS apud LAVILLE, 2003, p. 240)68, em que

o capitalismo seria apenas umas das formas (mesmo que a mais relevante) presentes.

A partir disso, Mauss chega a sugerir, com o fim de se reduzir as desigualdades estabelecidas

pela troca mercantil nas sociedades modernas, que se estimulasse mais as formas de trocas

tipicamente ligadas à dádiva, não com o propósito de substituir imediatamente o capitalismo,

porém na intenção de que as primeiras se sobrepusessem gradualmente às segundas (LANNA,

2000), definindo um novo sistema econômico.

Por fim, poderíamos destacar aqui também brevemente a contribuição de Guerreiro Ramos

(1989). O autor não segue o mesmo caminho apontado pelos dois anteriores, no sentido de

definir uma economia plural, mas constrói a noção de multiplicidade de sistemas sociais, cuja

análise se conformaria segundo a ideia do “paradigma paraeconômico” (RAMOS, 1989).

Além disso, o autor está alinhado no que diz respeito à crítica do mercado autorregulado,

trazendo, evidentemente, outra ordem de argumentos, já que ele tem como ponto de partida as

organizações e a constituição de uma nova teoria das organizações.

Guerreiro Ramos se filia a um tipo de abordagem sociológica que se propõe crítica aos

padrões desta ciência social contemporânea. Ele combate a ideia de uma educação e uma

ciência baseada nos “pressupostos de uma sociedade de mercado”, defendendo que

hoje é necessário um modelo alternativo de pensamento, ainda não articulado em

67 De plus, ce qu'ils échangent, ce n'est pas exclusivement des biens et des richesses, des meubles et des immeubles, des choses utiles économiquement. Ce sont avant tout des politesses, des festins, des rites, des services militaires, des femmes, des enfants, des danses, des fêtes, des foires dont le marché n'est qu'un des moments et où la circulation des richesses n'est qu'un des termes d'un contrat beaucoup plus général et beaucoup plus permanent. (MAUSS, 2001, p. 9).

68 Tradução livre. Do original “un système économique se compose de mécanismes institutionnels contradictoires, irréductibles les uns aux autres”.

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termos sistemáticos, porque a sociedade centrada em mercado, mais de 200 anos depois de seu aparecimento, está mostrando agora suas limitações e sua influência desfiguradora da vida humana como um todo” (RAMOS, 1989, p XI).

Sua crítica à teoria social se baseia na crítica à razão nela implícita, propondo um alargamento

do conceito de forma que possa ser incluída a noção de racionalidade substantiva, já presente

em alguns autores, como Max Weber e nas noção de economia substantiva de Polanyi.

Propõe, com isto, a restauração de uma “teoria substantiva da vida humana associada”. Esta

teoria (que não se confunde com o conceito de economia substantiva de Polanyi), subverte

algumas noções ligadas a um conceito mais formalista69.

O autor estende ainda sua crítica à sociedade centrada no mercado ao que ele chama de

“síndrome psicológica”. Esta síndrome, que é também denominada no texto de

“comportamentalista” teria como traços principais a fluidez da individualidade, o

perspectivismo, o formalismo e o operacionalismo. Com esta crítica o autor quer combater a

visão desenvolvida pelas teorias das organizações correntes do ser humano como sendo

essencialmente utilitário. Ele defende que este tipo de pensamento é apenas uma transferência

conceitual, já que este comportamento é característico de determinadas organizações, e que é

assimilado, na maioria das vezes de forma inconsciente e inadvertida, por indivíduos nela

inseridos.

Guerreiro Ramos parte, então para a definição do que seria um sistema social mais apropriado

para a expressão de uma teoria substantiva. Assim, o seu conceito de paraeconomia pode ser

compreendido, a partir de três argumentos articulados (FRANÇA FILHO, 2010): o primeiro

deles seria uma teoria da delimitação dos sistemas sociais, em que a sociedade seria composta

de diversos enclaves, e o mercado seria apenas um deles; estes enclaves teriam como função

permitir aos indivíduos o desenvolvimento de atividades substantivas (o que o mercado, em si

não permitiria). Vale ressaltar, que com base nos pressupostos levantados acima, Guerreiro

Ramos aponta que, mesmo no espaço social que, neste esquema, seria ocupado pelo mercado,

“só incidentalmente o indivíduo é um maximizador da utilidade e seu esforço básico é no

sentido da ordenação de sua existência de acordo com as próprias necessidades de atualização

pessoal” (RAMOS, 1989, p.141), o que é condizente com a sua percepção da natureza

humana.

Com isso, Guerreiro Ramos define seis enclaves, enquadrados segundo duas dimensões

69 Ramos (1989) aponta cinco traços gerais que marcam esta diferenciação, que são: a) os critérios para ordenação das associações humanas, b) a condição fundamental da ordem social, c) a relação entre valor e fatos, d) a apreensão do sentido da história e e) a relação epistemológica com as ciências naturais.

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(orientação individual vs comunitária, de um lado e prescrição vs ausência de normas de

outro). São eles: anomia, que se refere a indivíduos com baixo senso social e desprovidos de

normas, sendo considerado, na verdade, um espaço patológico; motim, que seriam as

coletividades desprovidas de normas e com baixo senso de ordem social, também

representando uma espécie de patologia, mas agora de ordem mais coletiva; isonomia, que se

refere a organizações compostas por membros em condição de igualdade e livremente

associados; as prescrições seriam poucas, e quando implementadas, seriam feitas a partir do

consenso da coletividade envolvida; os intercâmbios seriam definidos especialmente a partir

de relações de reciprocidade e dádiva; fenonomia, que se refere a um sistema mais incidental,

articulado por um ou poucos indivíduos com pouca sujeição a prescrições formais; este seria,

por isso, o espaço mais apropriado para liberação da criatividade, composto por indivíduos

automotivados. A fenonomia não representaria um isolamento ou abandono da sociedade, mas

sim um espaço protegido do mercado e que, pela natureza dos seus integrantes, buscaria o

envolvimento voluntário de outros indivíduos; isolado, que, representa indivíduos que se

submetem às normas do sistema mas sem aceitá-las, não sendo por isso exatamente um

sistema social. Por fim, economia, que seria o espaço de atuação do mercado, que deveria

agir, diferentemente da concepção dominante hoje, sob forte regulação. Portanto, Guerreiro

Ramos não propõe a abolição do mercado, mas sim “a preservação somente das capacidades

sem precedentes que o mesmo criou, ainda que pelas razões erradas” (RAMOS, 1989, p. 155).

Figura 25: Enclaves do paradigma paraeconômico. Adaptado de Ramos (1989)

O segundo argumento de Guerreiro Ramos diz respeito aos requisitos adequados para cada

um dos sistemas sociais apresentados. Refere-se às dimensões e às respectivas características

que definiriam cada um destes sistemas. A primeira delas seria a tecnologia, em que o autor

faz referência a uma “adequação aos objetivos do sistema”. Entretanto, este aspecto não é

Economia

Motim

Ison

omia

Isolado

Anomia

Fen

onom

ia

Prescrição

Ausência de normas

Ori

enta

ção

Ind

ivid

ual

Ori

enta

ção

co

mu

nit

ária

120

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muito trabalhado no seu texto, e o autor assume que este é um assunto resolvido, quando há

um relevante debate em curso sobre o papel da tecnologia na determinação de sistemas

sociais; fala-se, por exemplo, em tecnologia social como o formato mais adequado para as

organizações de economia solidária (DAGNINO, 2004), que por exemplo, o autor

provavelmente enquadraria no campo da isonomia. Uma segunda dimensão seria o tamanho,

em que deve ser levado em conta, de que a intensidade das relações diretas tende a diminuir

com o seu aumento, e que cada sistema tem um limite mínimo e máximo adequado para sua

eficiência. A terceira é a cognição, já que a forma do conhecimento também variaria conforme

o sistema social, ou seja, eles podem ser classificados de acordo com seus interesses

dominantes, segundo informa Guerreiro Ramos com base em Habermas. O espaço, é a quarta

delas, e deveria ser planejado conforme as necessidades dos ambientes sociais. Neste caso, o

trabalho nesta dimensão teria como missão conter a predominância do mercado, que moldou

os cenários das cidades contemporâneas e que é intrinsecamente “sócio-afastador”. Por fim,

tem-se a dimensão tempo, que está conectada com a dimensão espaço. Considera-se que nem

sempre ele é linear ou serial em outras esferas sociais que não o mercado, podendo ser

convivial (baseado nas relações e típico da isonomia), de salto (baseado na criatividade e

típico da fenonomia) ou errante (de direção inconsciente, típicos de anomias).

Finalmente, no terceiro argumento, Guerreiro Ramos apresenta sua preocupação no sentido da

aplicação de tal sistema, tratando da questão da alocação de recursos. O autor considera que a

paraeconomia pode ser percebida também como “proporcionadora da estrutura de uma teoria

política substantiva de alocação de recursos e de relacionamentos funcionais entre enclaves

sociais, necessários à estimulação qualitativa da vida social dos cidadãos” (RAMOS, 1989,

p.177). Como nem todos os enclaves funcionam baseados na troca, mas são relevantes para a

qualidade, deveria haver um sistema de subvenções, lembrando a ideia de redistribuição que

aparece em Polanyi. Guerreiro Ramos critica, com isto, a noção de obrigatoriedade da geração

própria de recursos, típica da lógica de mercado, que tende a considerar válido somente aquilo

que se torna mercadoria (ou seja, que participa do circuito de compra e venda). Sendo assim, a

produção é equivalente à venda e o consumo se equipara à compra, ficando de lado várias

formas de produção de riqueza, que não são consideradas nas estatísticas, por não estarem

submetidas a esta lógica, como por exemplo as diversas formas de prestação de serviço e

produção doméstica, além dos serviços de proximidade. Esta argumentação se aproxima

muito da crítica de Naess (1989) faz à lógica predominante de desenvolvimento, baseada no

crescimento do PIB (conforme discutido no Capítulo 5).

Percebe-se que o modelo de Guerreiro Ramos é eminentemente prescritivo, ou seja, a partir

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das críticas das ciências sociais e do modelo contemporâneo de organização da sociedade, e

da observação de práticas que emergem neste contexto, o autor chega a um formato de

organização socioeconômica que, segundo sua visão, daria conta das necessidades humanas e

da sua natureza. Além disso, o autor considera que este modelo, um tipo de sociedade pós-

industrial, não é uma extrapolação de uma sociedade centrada no mercado, já que ele

considera mais provável que uma extrapolação deste tipo contribua antes para um maior

desconforto da humanidade atual, conforme apontado na obra (RAMOS, 1989, p. 155). Por

fim, a aplicação de um tal modelo requereria algumas condições, em especial o envolvimento

decisivo de cidadãos que desejem a mudança:

a sociedade pós-industrial visualizada no paradigma paraeconômico só poderá vir a existir como resultado de vigorosa oposição por parte dos agentes cujo projeto pessoal consiste em resistir às tendências intrínsecas da sociedade centrada no mercado (…).

A sociedade multicêntrica é um empreendimento intencional. Envolve planejamento e implementação de um novo tipo de estado, com o poder de formular e pôr em prática diretrizes distributivas de apoio não apenas de objetivos orientados para o mercado, mas também de cenários sociais adequados à atualização pessoal, a relacionamentos de convivência e a atividades comunitárias dos cidadãos. Uma sociedade assim requer também iniciativas partidas dos cidadãos, que estarão saindo da sociedade de mercado sob sua própria responsabilidade e o seu próprio risco. (RAMOS, 1989, p. 155).

7.1.3 Considerações sobre as práticas de sustentabilidade considerando a crítica ao mercado livre

Retendo aqui as críticas estabelecidas à noção de mercado, de forma geral, e à

mercantilização forçada de diversos elementos da vida humana, podemos tentar fazer uma

leitura de algumas práticas de gestão ambiental (ou mais genericamente de sustentabilidade)

em termos similares. Aqui vemos com as tentativas de solução dos problemas ambientais

permanecem prisioneiros desta lógica de mercantilização generalizada.

Um dos artifícios criados para a contenção do aumento da emissão de gases do efeito estufa

(cujo mais importante é o CO2) são os mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL), cujo

principal operador é o chamado “mercado de carbono” (VENTURA, 2008). Tal mecanismo,

ao estipular uma lógica de mercado, cria a possibilidade de desresponsabilização direta

daqueles países poluentes, que podem “comprar” cotas de poluição em outros lugares (no

formato de redução dos gases do efeito estufa). Além disso, ao ser organizado segundo um

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“mercado”, a “mercadoria”, ou seja o crédito de carbono, somente se torna atrativa a

determinados níveis de preço. A “oferta” e a “procura” podem ter oscilações que

eventualmente se descolam das emissões reais de poluentes e das necessidades de sua

redução. Não devemos desconsiderar que os mercados “reais” são imperfeitos (STIGLITZ,

2011).

Uma outra consequência, ainda mais cruel do sistema é que os créditos são estabelecidos com

base em projetos que sequestram carbono da atmosfera. Por ser um mecanismo de mercado,

este sequestro é definido por critérios de custo, e uma floresta de eucaliptos ou pinheiros, por

exemplo, pode ser plantada para este fim, desde que seja a solução economicamente mais

viável70. O que aparece aqui é um conflito entre as necessidades econômicas e a relevância de

determinado projeto do ponto de vista sistêmico com relação ao meio ambiente. As ações são

realizadas unicamente com um fim instrumental, de obtenção do lucro e de um serviço

específico para o ser humano, sem considerar as especificidades do que seria uma restauração

ecológica mais adequada, mais focada nos resultados de longo prazo e dificilmente

mensuráveis economicamente. A grande questão que fica é: seria o mercado capaz de definir

quais processos devem ser adotados e qual a prioridade de investimento, considerando as

necessidades ambientais? A resposta mais imediata é que, evidentemente, existem diversos

elementos “antieconômicos” do pondo de vista do mercado que devem ser levados a cabo se

se quer uma solução efetiva para o problema ambiental.

Um outro problema relacionado a esta concepção é a crença na regulação do mercado para as

práticas socioambientais das empresas. Há um entendimento de que o mercado consumidor

demanda das empresas estas práticas, de forma que estas organizações se viriam obrigadas a

adotá-las. O discurso corrente é o de que “aquelas empresas que não a adotarem estão fadadas

ao fracasso”. Este princípio parece ter, contudo, uma efetividade limitada, já que, por um lado,

as práticas socioambientais não são realmente observadas pela maioria das empresas e, por

outro, a preocupação daquelas que as realizam está muito mais direcionada para a construção

de uma imagem de responsabilidade socioambiental do que para os resultados efetivos destas.

No final das contas, as decisões relacionadas às questões socioambientais estão sempre

subordinadas às determinações econômicas das empresas: elas são adotadas na medida em

que não ferem o seu resultado em termos de margem de lucro mínimo.

De fato, esta injunção está presente de forma geral nas práticas de sustentabilidade. Conforme

se pode depreender da análise feita no início do Capítulo 5, as práticas de desenvolvimento

70 Ver por exemplo o caso do Grupo Plantar (www.plantar.com.br)

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que se definem como sustentáveis também acabam subordinadas às determinações

econômicas/mercadológicas. Da mesma forma, mesmo que as questões ambientas sejam

consideradas importantes, esta importância é sempre relativizada na medida em que a maior

meta das políticas é o crescimento econômico.

7.2 A Economia Solidária

A economia solidária pode ser tida como um conceito privilegiado para se pensar a ideia de

uma outra economia e para a leitura de práticas econômicas alternativas. Isto pode ser

percebido no trecho referido no início do capítulo 8, mas se fundamenta também em outras

questões. Percebe-se, ao se tomar os verbetes do Dicionário Internacional da Outra

Economia71 (HESPANHA et alli, 2009), que uma parte dele se refere a discussões que

poderiam ser consideradas mais gerais (inclusive com um escopo mais abrangente), que

teriam mais o papel de ajudar na leitura do contexto ou na construção do embasamento teórico

do debate, como altermundialização, antiutilitarismo, associativismo, cidadania, emancipação

social, dádiva, solidariedade, capital social, políticas públicas, entre outros. Outra parte tem

uma discussão que poderia ser considerada derivada ou abarcada pela economia solidária,

como por exemplo, autogestão, cadeias solidárias, comércio justo, bancos comunitários,

economia do trabalho, incubação, microcrédito, redes de colaboração solidária. Por fim,

outros, se inseririam na categoria de práticas que se dão dentro de um outro tipo de contexto,

ou seja, de organizações imersas nas práticas capitalistas, como conselhos de empresa e

responsabilidade social empresarial, que não interessam a este trabalho.

7.2.1 Economia e solidariedade

Do ponto de vista do entendimento de economia enquanto estudo do mercado (ciência

econômica tradicional), associar ambos os termos – economia e solidariedade – seria uma

contradição, ou no mínimo uma artificialidade, já que conceitos como competição e egoísmo

se tornaram prevalecentes nestas teorias. Entretanto, isto só se apresenta desta forma na

71 Foi utilizada aqui esta referência como única na construção deste argumento pela percepção de que esta obra abarca grande parte das discussões que são realizadas em torno do tema. Com isto, buscar a exaustão de possibilidades aqui geraria um trabalho exponencialmente maior para um resultado similar.

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modernidade, devido a já referida desvinculação da economia da sociedade provocada pelo

mercado capitalista. Santana Júnior (2006) sublinha este fato ao observar que a contradição

entre os conceitos estaria presente porque as teorias tradicionais pretendem um purismo da

esfera econômica, desvinculando-a de outras manifestações da vida humana.

O papel da adjetivação dada seria, então, o de marcar um “princípio de democratização da

sociedade resultante de ações coletivas” (LAVILLE, 2003, p. 241). Isto formaria um tipo de

“solidariedade democrática”, com dois aspectos principais:

une face réciprocitaire qui désigne le lien social volontaire entre citoyens libres et égaux; une face redistributive qui pointe les normes et les prestations de l’État pour renforcer la cohésion sociale et corriger les inégalités. (Idem, p. 241).

Este formato (o da solidariedade democrática) tenderia a unir os cidadãos iguais em direito,

em contraste com o da caridade e o da filantropia, em que se pressupõem uma desigualdade,

geradora de um tipo de “dádiva sem reciprocidade” (LAVILLE, 2003), e com o da

solidariedade do tipo orgânica, considerada muito vinculada ao Estado (SANTANA JUNIOR,

2006). Ele implicaria, ao contrário, numa prática escolhida, voltada para o bem comum,

assumindo um formato mais democrático e alicerçado em princípios ecológicos e éticos, bem

como na pluralidade da ação econômica (SANTANA JUNIOR, 2006).

Dando ênfase à questão ecológica, Dagnino e Dagnino (2007) enfatizam uma abordagem que

integraria os conceitos de economia, ecologia e solidariedade: a eco-solidariedade. Isto

implica no dever de a solidariedade, segundo a visão da economia solidária, ter de se estender

para o próprio planeta como um todo. No entanto, os autores apontam que as práticas ligadas

a este fenômeno ainda não tem contemplado suficientemente as preocupações associadas

“com o planejamento da casa ou dos recursos do planeta”, por ela estar ainda muito

“institucionalizada e impregnada pelo pragmatismo” (DAGNINO e DAGNINO, 2007).

7.2.2 As diferentes concepções da economia solidária

Apesar de a economia solidária, de forma geral, conter em sua essência a discussão e a

formulação de novos propostas, principalmente em torno de uma revisão do fazer econômico,

a sua concepção teórica comporta algumas abordagens diferentes. Vieira (2005) aponta que,

neste caso, as ideias se formam mais por sobreposição do que por superação, compondo o que

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seriam perspectivas diferenciadas sobre o mesmo tema.

Exemplos destes enfoques são o aporte do paradigma antropológico da dádiva por França

Filho (2004), que acaba seguindo a linha de discussão dada pela primeira parte deste capítulo.

A definição mais humanista de Arruda (2000, 2004), entendendo a economia solidária dentro

de um movimento de amorização e de feminização da economia; o reavivamento das

discussões sobre um “novo socialismo” a partir de formas organizativas inovadoras dos

trabalhadores, em termos de produção e de comercialização (SINGER 1999; GAIGER 2000,

2004); e a “economia do trabalho” de Coraggio (2003). Podemos citar ainda o enfoque que

Vieira (2005) chama de racionalista, da abordagem de Mance (2001), que procura definir a

economia solidária (na verdade ele trabalha com o conceito de redes de colaboração solidária)

a partir do seu potencial organizativo, com base nas noções de emergência e de autopoiese.

Para uma visão conceitual mais abrangente, podemos tomar a definição que Costa (2003) traz

sobre a questão que, embora não seja exaustiva, pode representar uma caracterização possível

do que há em comum envolvendo o conceito de economia solidária:

um fenômeno complexo, de iniciativas de geração de trabalho e renda que, além de sua dimensão econômica, comporta uma dimensão sócio-política que implica em que a resposta oferecida ao desemprego e à exclusão inspire um novo modo de regulação social que articule essas dimensões (p. 38).

De par com esta diversidade de enfoques, existe uma ampla gama de experiências que são

enquadradas segundo a denominação de economia solidária. Em função destes dois elementos

(diversidade de práticas e de enfoques teóricos), propomos um agrupamento destes enfoques

da economia solidária a partir de três dimensões: ela seria ao mesmo tempo uma economia

que privilegia os laços sociais, uma economia plural e uma prática sociopolítica.

a) Uma economia que privilegia os laços sociais

Entender a questão da sociabilidade humana pode ajudar a desvendar alguns fatores

relacionados à “escolha solidária” referida mais acima. Dois elementos inter-relacionados

podem ajudar nesta reflexão: a perspectiva da motivação das ações humanas, segundo as

reflexões feitas por Arruda (2000, 2004) e o aporte do paradigma sociológico da dádiva

(MAUSS, 2001).

Arruda (2004) afirma que um fator ontológico para o surgimento da economia solidária é “o

profundo desejo de felicidade, que não pode existir sem autorrespeito, respeito mútuo e laços

de amor entre as pessoas” (p. 1). Os conceitos em que ele se inspira são aqueles de Theilard

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de Chardin, em que as tendências de evolução do ser humano apontam na direção à sua

amorização e espiritualização, o que faz com que a economia solidária seja entendida dentro

de um movimento de amorização e feminização das ações humanas. A economia solidária

seria então uma ferramenta para a construção de um projeto maior, conforme podemos ver no

trecho a seguir:

Nós falamos de uma solidariedade consciente, construída como parte de um projeto teleológico. Portanto, que envolve fins que nós lançamos em nossa ação; um projeto para iluminar a nossa ação. Essa é a concepção de Amor como lei natural de convergência, como uma tendência natural da humanidade (ARRUDA, 2000, p. 208).

O amor pode ser entendido aí tanto como um sentimento que parte de um processo

autorreferente do indivíduo (ou seja, pode ser desenvolvido de forma individual), como

quanto um parâmetro para a atuação numa dinâmica relacional. Isto se torna mais evidente

quando se percebe que para Arruda, o direcionamento da construção da economia solidária

aponta para o desenvolvimento individual ao mesmo tempo em que se dá o coletivo.

O sentido de completude da ação humana pode ser dado ainda a partir do entendimento do

paradigma antropológico da dádiva (MAUSS, 2001; GOUDBOUT, 1999; CAILLÉ, 2001),

que vincula o impulso da troca ao da própria formação do laço social. O circuito do dar,

receber e retribuir, ao ser alimentado é o que reforçaria este laço social. Isto se daria numa

articulação entre interesse e desinteresse, obrigação e liberdade, pares indissociáveis que não

permitem a redução da ação humana como exclusivamente movida pelo interesse e pelo

cálculo.

A economia solidária estaria baseada nestes elementos das trocas tradicionais, que envolve o

circuito da dádiva. Observa-se, por exemplo, que as relações comunitárias não se dissociam

do processo de troca econômica realizada por um empreendimento solidário. Em função

disso, França Filho (2006b) observa que “o processo produtivo não tem condições de existir

independente do próprio tecido da vida social entre as pessoas” (p. 73), asserção polanyiana

que se reflete nas práticas da economia solidária.

b) Uma economia plural

Assim, França Filho e Laville (2004), apoiados em Polanyi, caracterizam as práticas de

economia solidária como sendo constituídas a partir de três lógicas econômicas distintas,

articuladas e convivendo no mesmo espaço (porém não necessariamente livres de tensão): as

mercantis, as não-mercantis e as não-monetárias. Do ponto de vista da aquisição de recursos

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para a sua manutenção, um empreendimento solidário pode, portanto, combinar diversas

fontes, como as públicas, os trabalhos voluntários, as dinâmicas de trocas (utilizando-se

moedas sociais, por exemplo) e o mercado. Sob esta perspectiva, a manutenção econômica de

um empreendimento solidário é percebida a partir de uma noção ampliada, considerando-se

relevantes os recursos que não estejam necessariamente vinculados à lógica de mercado. O

tipo de lógica não-monetária remete à discussão anterior, pois ela é fundada principalmente na

noção de reciprocidade.

A noção de economia plural é ainda reforçada por dois outros fatores: a construção conjunta

da oferta e da demanda (ANDION, 2001; FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004; MANCE

2001) e a constituição de redes (ARRUDA, 2000, FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004;

MANCE 2001). Ambas as práticas surgem com o objetivo de articular as relações entre

empreendimentos solidários, e entre estes e consumidores, criando uma demanda efetiva que

asseguraria a sua viabilidade e rompendo com a lógica do mercado autorregulado (ou seja,

que equilibra abstratamente a oferta e a procura). Com estas práticas, o que se assiste é a um

desenvolvimento do caráter democrático das experiências, num processo de articulação entre

atores locais. Elas ainda teriam como papel o fomento a práticas integradas, que se articulam

para o desenvolvimento local. As redes de economia solidária podem atingir grande

amplitude, chegando a níveis globais, como é o caso do chamado Fair Trade (ou Comércio

Justo).

c) Uma prática sociopolítica

Dois elementos se destacam na leitura do aspecto político da economia solidária: a articulação

de sujeitos para a solução de problemas que afetam a sua própria vida e a luta pela mudança

social. Estes dois aspectos estão fortemente entrelaçados, e a rigor, o segundo poderia ser

incluído no primeiro. Destacamos esta questão pelas particularidades que ela assume.

Sobre o primeiro elemento, parece apropriado entender as práticas da economia solidária

como essencialmente surgidas a partir de movimentos da sociedade, como pode ser atestado

pelos antecedentes históricos. Por um lado, tem-se o surgimento do socialismo utópico e as

movimentações populares de organização de um sistema alternativo ao capitalismo (SINGER,

1999) e por outro o associativismo operário da primeira metade do século XIX, com destaque

para o caso francês, em que ele emergia não apenas tendo em vista a resolução de problemas

comuns, mas também para “intervir na construção da economia” (FRANÇA FILHO e

LAVILLE, 2004, p. 42).

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De qualquer forma, o que marcaria a economia solidária é a existência de uma forte

articulação política. Muitas práticas surgem da mobilização comunitária, que enseja a criação

de organizações que tem como propósito essencial a ação pública (extrapolando o interesse

individual dos seus componentes), sendo pautadas pelo controle democrático. Estas práticas

se diferenciariam daquelas do movimento associativista tradicional por trabalhar um número

maior de questões que estão implicadas em um território, ou seja, construindo soluções que

envolvam a organização econômica, política e social do local.

A leitura do segundo aspecto pode ser entendida especialmente a partir do entendimento das

práticas da economia solidária segundo uma visão mais inspirada na tradição marxista,

conforme o faz, por exemplo, Paul Singer. Neste caso, a leitura é mais próxima da tradicional

lutas de classes, que opõe o trabalhador ao capital, identificando na economia solidária um

novo modo de produção:

Para compreender a lógica da economia solidária é fundamental considerar a crítica operária e socialista ao capitalismo. O que ela condena no capitalismo é antes de tudo a ditadura do capital na empresa, o poder ilimitado que o direito de propriedade proporciona ao dono dos meios de produção (SINGER, 2003, P. 14).

Vale ressaltar que uma lógica de análise não exclui a outra, já que temos no segundo caso,

uma leitura especialmente de dinâmicas associadas aos empreendimentos, no que toca às

questões de gestão e propriedade dos meios de produção, ao passo que no primeiro temos uma

leitura da articulação comunitária, mais externa às organizações. Esta leitura não deve reduzir,

porém, a perspectiva da segunda lógica a uma simples mudança confinada às organizações,

pois a efetivação destas mudanças implicariam na articulação destas organizações em diversos

níveis (fóruns e redes), e nas suas próprias comunidades.

129

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7.2.3 Os Empreendimentos Econômicos Solidários (EESs)

Os chamados empreendimentos econômicos solidários (EESs) são as organizações típicas da

economia solidária, a partir das quais se dá a conformação deste campo. Eles compõem um

grupo de práticas, que inclui também as entidades de apoio e fomento (EAFs) e o poder

público (considerado o tripé fundamental do movimento da economia solidária). Este campo

também se auto-organiza politicamente, a partir da constituição de fóruns e redes (em

diversos níveis, desde municípios até entidades nacionais), além de contar com um Conselho

Nacional de Economia Solidária (CNES). Além disso, os EESs podem se expressar de

diversas formas, que incluem associações produtivas, cooperativas populares, empresas

recuperadas, clubes de trocas, bancos comunitários, dentre outros (ver Figura 26). Como

veremos mais adiante, e antecipando algumas argumentações, tentaremos verificar se as

ecovilas poderiam também compor este campo pelas suas características particulares.

Figura 26: Desenho do campo da economia popular e solidária no Brasil. Fonte França Filho (2006b)

130

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Os empreendimentos de economia solidária podem ser caracterizadas segundo alguns traços,

cuja descrição varia conforme o autor utilizado como referência. Gaiger (2004), por exemplo,

apresenta um conceito que envolve a interlocução entre solidarismo e empreendedorismo,

gerando um tipo de eficiência muito própria e baseada ideia de cooperação, que seria uma

espécie de diferencial destas organizações e que definiria uma nova racionalidade

socioeconômica. Para este autor, as propriedades de um EES se centrariam em oito princípios:

autogestão, democracia, participação, igualitarismo, cooperação, autossustentação,

desenvolvimento humano e responsabilidade social.

A Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), ligada ao governo federal por meio

do Ministério do Trabalho e Emprego, também possui sua própria definição para os EESs,

que podemos considerar como relevante por ser adotada na definição de políticas para o setor.

Para esta secretaria um empreendimento deste tipo deve ter cinco características principais

(SENAES, 2011): a) são grupos coletivos e suprafamiliares, com trabalhos urbanos ou rurais,

em que está presente a prática da autogestão; b) são permanentes (não eventuais); c)

independem de registro legal, ou seja, prevalece a existência real (e não formal) da

organização; d) as atividades econômicas devem ser permanentes e centrais no

empreendimento, podendo ser de diversos tipos (produção de bens, prestação de serviços,

fundos de crédito, de comercialização ou de consumo solidário) e e) podem ser singulares ou

complexas, ou seja, podem ter diferentes graus ou níveis (podem ser centrais de associação ou

de cooperativas, complexos cooperativos, redes de empreendimentos ou outros).

França Filho e Laville (2004), por sua vez, apresentam as organizações de economia solidária

a partir de cinco elementos mais gerais. Este é o modelo que adotaremos para analisar as

práticas em estudo, por se alinhar, do ponto de vista epistemológico, às demais discussões

desta parte (II) do trabalho. As características podem ser assim descritas:

a) Pluralidade de princípios econômicos, que seria a tendência das práticas de economia

solidária de articular diversas fontes de recursos, que seriam as mercantis; não mercantis e as

não monetárias;

b) Autonomia institucional, representando a independência das organizações solidárias em

relação a outras instituições, libertando-se, assim, de controle externo (o que não significa

ausência de interdependência) e assumindo uma gestão mais autônoma;

c) Democratização dos processos decisórios, que diz respeito a coletivização dos mecanismos

de decisão, ou seja, com a participação de todos os associados;

131

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d) Sociabilidade comunitário-pública, fazendo referência à combinação, nestes

empreendimentos, das práticas profissionais com os padrões comunitários de trabalho;

e) Finalidade multidimensional. Por esta característica, entende-se que um empreendimento

solidário tem na sua dimensão econômica apenas um dos fatores, que participa, ao lado das

questões sociais, culturais, ecológicas e políticas (projeção no espaço público) dos seus

objetivos.

Do ponto de vista conceitual, parece que não há dificuldade em conciliar os conceitos de

ecovilas e de economia solidária, embora o primeiro parece ser mais abrangente do que o

segundo, ou seja, uma ecovila poderia ser um uma prática de economia solidária, embora não

possa ser designada exatamente como um empreendimento econômico solidário já que tem

características que extrapolam esta definição. Neste caso, ela seria mais uma rede de EESs,

geralmente integrado por uma organização mais centralizada que também poderia ser um

empreendimento do tipo. Resta saber se na prática (observando as características de algumas

ecovilas) isto se daria efetivamente.

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8 CONSTRUINDO UM MARCO ANALÍTICO PARA SUSTENTABILIDADE EM ECOVILAS

8.1 Uma Proposta De Quadro Analítico

Nesta seção, o intuito é apresentar uma proposta no sentido de operacionalizar o conceito da

sustentabilidade, construindo um quadro analítico para a sustentabilidade das ecovilas,

considerada a partir do marco da economia solidária. Isto, de alguma forma, implica em

“medir” esta sustentabilidade, mesmo que esta discussão não resulte necessariamente em uma

quantificação deste conceito, que neste caso, seria um indicador. Antes disso, nosso propósito

aqui é entendê-lo no referido contexto e submetido aos marcos que o limitam e o definem

mais precisamente.

Assim, todas as discussões apresentadas nos capítulos anteriores devem convergir

coerentemente para um marco conceitual mais abrangente, aglutinados por meio da ideia de

sustentabilidade. O propósito, então, é que deste processo emerjam elementos que permitam

a leitura do campo empírico, por meio da definição de indicadores e variáveis que apontem as

limitações e as possibilidades referentes ao nosso objeto em estudo.

Uma noção chave que mobilizaremos aqui é a já referida da sustentabilidade como um

fenômeno multidimensional, que vem tendo importante adesão em diversas correntes de

pensamento relacionadas ao tema. Ela pode ser observada nas próprias discussões políticas

em torno da sustentabilidade (conforme Capítulo 5), ou nas discussões e definições em torno

dos indicadores sobre desenvolvimento sustentável, tanto em nível nacional como em regional

(VAN BELLEN, 2006; SACHS, 2002); ou ainda em alguns estudos sobre ecovilas, como o de

Bissoloti (2004) que propõe uma forma de medição para a sustentabilidade destas iniciativas.

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Esta perspectiva de multidimensionalidade pode ser, de alguma forma, estranha às ideias de

indivisibilidade das esferas da vida social, como aquela de imbricação da economia na

sociedade, em Polanyi (2010), ou da dádiva como fenômeno total em Mauss (2001), ou ainda

da sociedade (e da economia) integrada (e seguindo os ditames) ao meio natural, como se

observa em Naess (1989). Mesmo considerando esses casos, a utilização desta visão parece

ser oportuna justamente pela possibilidade de delimitação analítica referente ao campo da

economia tradicional, que, de fato, recebe críticas de todas as correntes citadas justamente por

considerar que as atividades econômicas (entendidas aqui como mercado capitalista) se

sobrepõe a todas as demais esferas de forma devastadora.

Para a construção deste quadro, lançar-se-á mão de três proposições conectadas com os

debates acima e que definem a sustentabilidade a partir desta concepção multidimensional. O

intendo, com isso, é tomar estas contribuições como pontos de partida, já que elas definem

uma estrutura geral de análise que podem fornecer uma “moldura” para o quadro analítico,

que deve ser complementado, então, pelas contribuições dos debates apresentados até aqui.

Estas três proposições podem ser assim identificadas

a) a de Sachs (2002), considerada seminal nas discussões realizadas historicamente no que

toca ao debate em torno da sustentabilidade. Suas contribuições a esta noção remontam aos

anos 70, por ter participado da preparação da reunião de Estocolmo em 1972, e se seguiu com

o apoio também à realização da reunião da ONU no Rio de Janeiro, em 1992 (SACHS, 2004).

b) a da economia solidária, representada por um trabalho de França Filho e Santana Júnior

(2007), em que são aglutinadas algumas contribuições do campo; neste caso o marco

apresentado pelos autores é fortemente influenciado pela discussão da socioeconomia e da

antropologia econômica baseadas em Polanyi, mais ou menos nos moldes aqui realizados;

c) a proposta a partir da leitura das ecovilas, como pode ser observado em Jackson e Swenson

(apud BISSOLOTTI, 2002), que incorpora a parte dos debates especialmente relacionados à

ecologia profunda e à permacultura.

Assim, a primeira das proposições (SACHS, 2002) apresenta o conceito como composto de

seis dimensões principais: social, ambiental, cultural, territorial, econômica e política

(nacional e internacional). Na visão de Sachs (2002), a sustentabilidade social assume uma

posição prioritária, subordinando as demais, já que deve ser o objetivo mesmo do

desenvolvimento e pela probabilidade de que um colapso social preceda uma catástrofe

ambiental. Na sua visão, “a parte mais importante da revolução ambiental no pensamento que

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ocorreu nos anos de 1970 foi a percepção de que não se pode dissociar a problemática

ambiental da social” (SACHS, 2004; p. 359). As dimensões culturais e ambientais são

consideradas uma decorrência, além da distribuição territorial mais equilibrada. Já a

sustentabilidade econômica é vista como uma necessidade, mas não condição para a

existência das demais, pois ela pode ser uma grande desestabilizadora das outras dimensões.

Finalmente, Sachs aponta a sustentabilidade política nacional (no âmbito da governabilidade)

e internacional, olhando o tema a partir da perspectiva da manutenção da paz, já que as

guerras modernas seriam também “ecocidas”.

A segunda discussão (FRANÇA FILHO e SANTANA JÚNIOR, 2007) engloba cinco

dimensões principais: a econômica, a social, a cultural, a política e a ambiental. Os autores

enfatizam a inter-relação e a importância de cada uma, o que supõe “um equilíbrio dinâmico

entre as várias dimensões que atravessam a vida das pessoas” (p. 7). A caracterização destas

dimensões se daria da seguinte forma:

a) dimensão econômica: distribuição de renda promovida pela experiência (número de

postos de trabalhados criados, rendimentos proporcionados, utilização de insumos do

território e dinâmica do consumo local); articulação entre diferentes lógicas : mercantis, não

mercantis e não monetárias (produção para autoconsumo, intercâmbios de produtos e

serviços não monetarizados, mecanismos de subsidiariedade para produção e consumo nas

relações com os poderes públicos, utilização coletiva de recursos e diferentes formas de

finanças solidárias, entre outras).

b) dimensão social: coesão social entre as pessoas envolvidas, expresso em questões como o

tipo de sociabilidade vivido no território, o grau de confiança e a natureza do vínculo na

relação entre as pessoas.

c) dimensão cultural: grau de afirmação identitária, grau de identificação das pessoas com

sua história, o que envolve o sentimento de pertencimento das pessoas em relação ao

seu território, práticas e valores comuns compartilhados; grau de enraizamento das

atividades empreendidas no tecido da vida cultural local.

d) dimensão política: tem um triplo aspecto: grau de autonomia dos grupos locais no

processo de gestão da experiência (considerando-se o grau de democratização das relações e

o nível de participação das pessoas); capacidade da experiência em fomentar um modo de

ação pública no território; nível de articulação da experiência, tanto em redes no âmbito da

própria sociedade civil, quanto no estabelecimento de pactos ou interações com poderes

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públicos, preservando sua autonomia.

e) dimensão ambiental: grau de vinculação da experiência em relação às características

ambientais próprias num território, observando-se o manejo dos recursos ambientais através

das atividades desenvolvidas, avaliando o tipo de tecnologia empregada (originalidade e

referência social ou se adaptada de outras realidades ou se ela é convencional, sem

considerar as especificidades do território). Avalia-se ainda se são utilizados insumos ou

recursos próprios do seu território, se eles têm efeito poluidor; se as fontes energéticas

utilizadas são de base renovável; e nível de geração de resíduos e seu modo de

tratamento. É avaliado, ainda, o grau de centralidade do ser humano em relação aos

processos utilizados e a reeducação dos envolvidos nos processos de consumo.

Por fim, os conceitos de Jackson e Swenson (apud BISSOLOTTI, 2004) envolvem a leitura

da sustentabilidade a partir de três dimensões: a ecológica, a social/comunitária e a

cultural/espiritual, que são consideradas também os três tipos de “colas” das ecovilas,

conceitos que aparecem também em outros trabalhos da área (RAINHO, 2006; SANTOS

JUNIOR, 2006). A ênfase em cada uma destas dimensões tende a variar segundo a

experiência, o que dá a identidade a cada uma delas, há uma ênfase de que todas devem se

fazer presente em favor da “harmonia dos assentamentos” (JACKSON E SWENSON apud

BISSOLOTTI, 2004, p. 39). Estas dimensões podem ser assim descritas:

a) dimensão ecológica: envolve o senso de local e lugar (conexão com o local em que vivem

e convivência harmônica com o sistema ecológico); produção e distribuição de alimentos (de

forma orgânica e biodinâmica); esquemas de reciclagem (e reutilização); cuidado com a água

(principalmente com as fontes e efluentes, que devem ter qualidade igual ou melhor do que

antes da utilização); utilização de sistemas de energia renovável; restauração ecológica (que

envolve a utilização da permacultura e da bioconstrução).

b) dimensão social/comunitária: acessibilidade dos cuidados de saúde e integração entre

medicina ortodoxa e complementar; economia – prioridade economia local, partilhando

excedentes, estímulo à criação de negócios que não gerem poluição e não explorem recursos

humanos ou naturais; utilização de sistemas alternativos de trocas e visão com relação à

finitude de recursos; no aspecto político, tamanho adequado para a participação de todos, e

tomada de decisão democrática, com liderança circular; formas educacionais implantadas, que

valorizem o crescimento pessoal; desenvolvimento de habilidades comunicativas.

c) dimensão cultural/espiritual: existência de atividades artísticas próprias, celebrações,

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festivais e encontros; união entre as gerações; reflexo da cultura na arquitetura e no design da

ecovila; abertura para manifestações espirituais individuais e práticas comunitárias neste

âmbito.

Destas três abordagens (em que se percebe, aliás, diversos elementos similares), combinadas

com as contribuições dos debates apresentados, surge a Tabela 2, que sintetiza as variáveis

propostas, agrupadas por componentes e dimensões.

Tabela 2: Proposta de quadro analítico da sustentabilidade. Fonte: elaboração própria

Dimensão Componentes Variáveis

Econômica

Impacto gerado na distribuição de renda do local

- Postos de trabalho criados- Rendimentos proporcionados- Utilização de insumos locais

Articulação entre diferentes lógicas econômicas (mercantis, não-mercantis e não-monetárias)

- Utilizações alternativas de recursos, além dos mercantis: autoprodução, trocas, utilizações coletivas (finanças solidárias), fontes governamentais, etc.

Formato dos empreendimentos- Tipo de empreendimentos (individuais, ou coletivos)- Forma de distribuição dos excedentes

Produção local

- Nível de atendimento das demandas internas pela produção local- Tipo de produção e prestação de serviços existentes no local

Social / Comunitária

Coesão social entre os moradores

- Tipo de sociabilidade existente- Existência de confiança entre as pessoas- Natureza dos vínculos estabelecidos- Nível de reconhecimento entre os moradores

Saúde- Acessibilidade aos tratamentos de saúde- Existência de integração entre tratamentos ortodoxos e complementares

Educação - Existência de práticas de educação, especialmente ligados à questão ecológica

Cultural / Espiritual

Identidade das pessoas com a experiência

- Grau de enraizamento dos moradores com as atividades realizadas (identidade cultural)

Atividades culturais - Tipos de atividades artísticas/culturais existentes

Expressões culturais materiais- Reflexos da cultura na arquitetura e desenho da ecovila

Manifestações espirituais- Existência e forma de realização das práticas (abertura para diferentes tipos, realização comunitária, etc)

Política Participação dos moradores - Nível e tipo de participação dos moradores (tomada de decisão democrática)- Estilo de liderança existente

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Tipo de ação pública no território- Processos de discussão ampliada (fora da ecovila) existentes- Convivência com comunidades do entorno

Articulações externas

- Articulação com redes do movimento de ecovilas ou outras pertinentes (meio ambiente, economia solidária, assistência social, etc...)- Tipo de interação com o poder público e com políticas públicas

Técnica / Ecológica

Uso de tecnologia social

- Tipo de tecnologia empregada (originalidade e se é socialmente referenciada ou adaptada de outro local ou convencional)- Origem dos recursos

Uso de tecnologia ambiental

- Existência de produção orgânica- Cuidados com relação ao meio ambiente nas atividades de produção ou prestação de serviços

Identidade ecológica - Tipo de convivência com o sistema ecológico do entorno;

Esquemas de reciclagem- Tipos de sistemas de reciclagem (e reutilização) existentes

Utilização da água- Como a água é captada e descartada (efluentes)- Nível tratamento e reciclo

Utilização de energia- Fonte da energia utilizada- Nível de utilização de tecnologia renovável

Tipo de técnicas construtivas adotadas

- Tipos de técnicas construtivas utilizadas- Participação de materiais locais na construção- Nível de utilização de materiais tóxicos

Restauração ecológica- Adoção de técnicas de recuperação ecológica ou de permacultura ou outros similares

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PARTE III

O que Sinalizam as Práticas no Contexto Brasileiro

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9 O ECOCENTRO IPEC – INSTITUTO DE PERMACULTURA E ECOVILAS DO CERRADO

9.1 Caracterização E Histórico

O Ecocentro IPEC está situado na zona rural da cidade de Pirenópolis/GO, município turístico

que dista 160 km de Brasília, próximo a uma rodovia que faz rota entre a capital federal e

Goiânia. Mais precisamente, tem como endereço Rodovia GO 338, Km 47, Fazenda Mar e

Guerra. Sua área total é de 25 ha, sendo que destes são utilizados 5 ha para o ecocentro

propriamente dito (onde se encontra o centro de referência e todas as construções

relacionadas, conforme pode ser observado na Figura 27, e onde atualmente ficam instalados

os moradores) e 20 ha para as futuras instalações dos atuais e novos moradores.

Estes 20 ha deverão abrigar o que os moradores chamam efetivamente de ecovila, pois será

um local destinado para moradia mais definitiva, ao contrário da área do IPEC que é

principalmente destinada para as atividades de educação e desenvolvimento das tecnologias

ambientais.

Figura 27: Esquema da implantação do IPEC no terreno. Adaptado de IPEC (2010b)

140

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Atualmente, estes (os moradores permanentes) são em número em quinze, sendo que desses,

três são casais (dois com filhos). Eles compõem a população total da ecovila com mais sete

voluntários, em sua maior parte estrangeiros.

A origem do Ecocentro remonta à aquisição da sua área pelo casal de fundadores – Lucia

Leagan e André Soares – ainda nos anos 80. Na época, esta era uma região degradada, com a

cobertura vegetal quase totalmente extinta. A partir do interesse desse casal, com as condições

dadas pela posse da terra e com o apoio de outras pessoas, em 1998, foi fundando, então, o

Ecocentro IPEC.

Um dos primeiros trabalhos realizados pelo instituto, e que continua até o presente, é o

processo de reflorestamento da área. Já foram plantadas cerca de 20.000 mudas de árvores,

dentro e fora da área do Ecocentro, o que vêm alterando a paisagem da região (ver Figura 28).

Figura 28: Comparativo da paisagem referente ao terreno onde está implantado o Ecocentro. À esquerda, foto tirada antes do início das suas atividades, em 1998. À direita, após, em 2004. Fonte www.ecocentro.org

Em 1999, iniciou-se sua construção na área, sendo realizado, no mesmo ano um curso de

capacitação, Design de Ecovilas, Permacultura e Uso sustentável da Água. Os cursos

seguiram sendo a tônica do local, sendo realizados todos os anos diversos dos seus módulos, e

tendo se expandido pela parceria com outras instituições como a Gaia University. Segundo

Lucia, nos primeiros anos, os participantes dos cursos ficavam todos acomodados na única

casa do local ou então em barracas, sendo o espaço transformado em um grande camping

improvisado.

Já no ano de 2000, o Ecocentro IPEC, juntamente com Sarvodhaya no Sri Lanka e Eco Yoff,

no Senegal são reconhecidos como “Centros de Capacitação internacional da Rede Global de

Ecovilas” denotando um reconhecimento para o trabalho realizado. Além desse, o Ecocentro

recebeu ainda outros prêmios e distinções na sua trajetória: o Prêmio Planeta Casa de

Arquitetura Social, em 2004; uma Menção Honrosa no prêmio Casa Cláudia pelo seu projeto

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"Casa Sustentável" em 2005, ano que recebe também uma menção honrosa do CREA-GO; a

certificação como tecnologias sociais pela Fundação Banco do Brasil das tecnologias

superadobe, biorremediação, húmus sapiens e captação e armazenamento de água da chuva

em 2005, sendo no mesmo ano as tecnologias húmus sapiens e captação e armazenamento de

água da chuva finalistas do prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social; o prêmio

"Global Harmony Award" 2007, oferecido pela ONU, pela "distinta contribuição para

construção de uma comunidade harmoniosa e ecológica"; vencedora da região centro-oeste do

Prêmio FINEP de Inovação Tecnológica com a tecnologia húmus sapiens, tornando-se

finalista nacional do mesmo Prêmio, em 2007. Neste mesmo ano, a Fundação Banco do Brasil

certifica a tecnologia social "Habitats - Sua Escola Sustentável"; André Soares, diretor do

Ecocentro IPEC, é um dos 6 finalistas do prêmio Empreendedor Social, em 2007.

Em 2001, se inicia o curso estendido de capacitação que ocorre até hoje, denominado

“Ecoversidade”. Neste mesmo ano, iniciam-se também os convênios do IPEC com

universidades para créditos e reconhecimento profissional. O primeiro caso foi o da

Universidade da Cataluña, mas que depois se deram com a Universidade de Massachusetts,

Estados Unidos (em 2004), especialmente para contar créditos para o programa americano

Living Routes, e com a Universidade de Brasília, também em 2004, contando com créditos em

diversos dos seus cursos.

Em 2000, o espaço abriga um evento internacional de Arquitetura Ecológica, denominado

BioConstruindo. As atividades internacionais seguem o a capacitação de estudantes da Etiópia

e do Haiti para dar início ao trabalho de permacultura em seus países. Em 2003, no ano

seguinte, estabelece um convênio para a construção de um ecocentro neste mesmo país

(Haiti). Em 2006, o Ecocentro faz a consultoria e planejamento ambiental do maior festival

trance da Europa, o Boom Festival; em 2007 promove seu primeiro curso de permacultura em

Portugal; nesse mesmo ano, sedia a “8ª Conferência Internacional de Permacultura” (IPC8),

em que estiveram presentes personalidades da permacultura e desenvolvimento sustentável de

todo o mundo; também em 2007, é formada a segunda turma em permacultura em Portugal,

onde acontece também o primeiro curso de ecovilas.

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Na área do ecocentro são encontradas as seguintes construções (que podem ser localizadas na

Figura 27): recepção, onde fica também fica a “Loja Verde”, espaço de exposição e vendas de

produtos relacionados ao Ecocentro (Figura 29), inclusive as publicações da editora

+Calango; a primeira casa do local, única preexistente, e que serve atualmente de alojamento

de estudantes e voluntários; a praça de alimentação; quatro sanitários secos (Figura 31); um

sanitário com água; dois viveiros de plantas (Figura 30); um minhocário (Figura 33); uma

área de chuveiros e lavanderia; uma casa de taipa e madeira (Figura 34); uma casa construída

com a técnica do cob (Figura 36); uma casa de fardos de palha; a Vila Ecoversitária (Figura

32), acompanhada da Cozinha Ecoversitária (Figura 44); a “Toca do Tatu” , espaço educativo

e demonstrativo sobre a vida do solo e subsolo (Figura 35); a “Estação Digital”, que abriga

também um centro de educação (Figura 37); um espaço de eventos e formação, em formato de

cúpula - “Centro Molisson de Estudos Sustentáveis” (Figura 38); uma biblioteca (Figura 39);

uma casa para voluntários, que é também a casa central do projeto “sítio sustentável” (Figura

Figura 31: Sanitário Seco. Fonte: autor

Figura 29: Interior da recepção / Loja Verde. Fonte: autor autor

Figura 30: Viveiro de plantas. Fonte: autor

Figura 33: Minhocário. Fonte: autorFigura 32: Vila Ecoversitária. Fonte:

autor

Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: autor

Figura 35: "Toca do Tatu". Fonte: autor

Figura 36: Casa de cob. Fonte IPEC (2010c)

143

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

40); uma construção que serve como sede administrativa (Figura 42); o Museu das Técnicas

de Construção em barro (Figura 45), a “Casa do Mel” e a cozinha/restaurante comunitário

(Figura 43).

Além destes prédios, o Ecocentro conta com áreas como a “Praça do Amor”; um canteiro de

ervas (Figura 41); uma horta; um galinheiro; um chiqueiro; o anfiteatro da mangueira; uma

cozinha comunitária para eventos; as agroflorestas e, por fim, o “Sítio Sustentável”.

O ecocentro está construindo, ainda uma espécie de “área de transição” para o futuro espaço

da ecovila. Nesta área estão sendo construídas quatro residências todas aproximadamente com

o mesmo tamanho, com dois quartos, banheiro, sala e cozinha, e que adotam todas as

tecnologias ambientais aplicadas e desenvolvidas no ecocentro. Estas casas servirão para que

as pessoas que tenham a intenção de morar na ecovila possam alugá-las temporariamente e

vivenciar a experiência antes de tomar a sua decisão final.

Figura 37: Estação Digital. Fonte: autor

Figura 39: Biblioteca. Fonte: autor Figura 38: Espaço de eventos. Fonte: autor

Figura 41: Horta de ervas. Fonte: autor

Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor

Figura 42: Sede administrativa do ecocentro. Fonte autor

Figura 45: Museu das técnicas construtivas em barro. Fonte: autor Figura 44: Cozinha Ecoversitária.

Fonte: autorFigura 43: Cozinha e Restaurante

Comunitário. Fonte: autor

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Figura 46: Casas em construção na área de transição para a ecovila. Fonte: autor

9.2 Programas, Projetos E Ações Realizadas

Como missão, a organização a define explicitamente como sendo “estabelecer soluções

apropriadas, demonstrando a viabilidade de uma cultura sustentável, oportunizando

experiências educativas e disseminando modelos” (ECOCENTRO IPEC, 2010).

Esta missão é estabelecida a partir de cinco focos principais: água, alimentação, abrigo

(habitação), energia e saneamento. Para cada uma delas, são experimentadas e estabelecidas

soluções concretas e ligadas à ideia de sustentabilidade, que se desdobram em diversas das

ações citadas acima e que serão melhor detalhadas na seção seguinte. Estas ações, por sua

vez, convergem em quatro elementos componentes da estrutura organizativa do Ecocentro: as

atividades de consultoria, uma ONG, o projeto Habitats e os mininegócios. Estes elementos

podem ser assim descritos:

a) Consultoria: atividade realizada por membros do ecocentro, que tem como proposta

realizar a replicabilidade das ações e tecnologias desenvolvidas internamente. Normalmente,

suas ações se dão a partir de demandas externas colocadas por outras organizações ou

indivíduos. Um exemplo deste trabalho, é a realização de construção de cisternas de

ferrocimento, sanitários secos e superadobe, e capacitação técnica realizada no Vale do

Jequetinhonha, projeto com diversas ações realizado em 2006.

b) ONG: tendo formato de uma associação, fornece o respaldo jurídico para algumas ações

realizadas pela comunidade. Permite a realização de diversos contratos, ficando responsável

especialmente pela captação de recursos para os projetos locais. Entretanto, por decisão

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estratégica local, com o objetivo de se ter uma maior autonomia e reduzir as atividades

burocráticas do IPEC está reduzindo-se esta fonte de financiamento e focando-se mais nas

atividades dos cursos e das consultorias. Isto é respaldado pelo sucesso de participação obtido

nos cursos (desde 2006 eles normalmente funcionam com todas as vagas preenchidas), o que

os torna largamente a principal fonte de receita do espaço.

c) Projeto Socioambientais: é um dos canais de interação do IPEC com suas comunidades

do entorno. Representam ações também destinadas a difundir as tecnologias desenvolvidas

pelo IPEC, porém, diferentemente das consultorias, neste caso a demanda é construída em

conjunto com as comunidades envolvidas, sendo traduzidas no formato de projetos

socioambientais. Dentre estes, se destacam os seguintes:

• Programa Habitats: iniciou-se em 2004, se dá em escolas públicas e tem entre seus

objetivos, difundir as tecnologias e propostas do ecocentro através do contato com os

estudantes e professores das escolas públicas da região e de diversos locais do Brasil, a

partir de parcerias estabelecidas com órgãos governamentais de outros estados

(secretarias estaduais de educação) ou com as próprias escolas, o que faz com que um

número muito grande de escolas já tenha sido atendido. Parte da premissa de que a

melhor educação é a que se dá em contato com a natureza, trabalhando o pátio ou

outros ambientes da escola que “se torna um laboratório vivo, que ajuda os estudantes

a compreenderem a temática básica do currículo em suas lições de ciências,

matemática, português e estudos sociais” (ECOCENTRO IPEC, 2010c). O programa

conta com duas etapas principais: a primeira envolve um treinamento com duração de

30 horas, e a segunda a implantação do “Habitat”, escolhido dentre quatro

possibilidades (que são os tipos de arranjos ecológicos realizados): Habitat Água,

Habitat Silvestre, Habitat Alimentação e Habitat Tecnologias Sociais. Ao final da

implantação, que geralmente se dá em regime de mutirão, com estudantes, professores

e técnicos do IPEC, cada habitat tem um momento de integração com os estudantes de

três dias. O programa tem como metas, no final do primeiro ano, em cada escola:

reduzir a produção de lixo em 50%; reduzir a sujeira jogada no chão do pátio em 50%;

reduzir o desperdício e o uso de água em 15%; reduzir o gasto de energia em 10%;

expansão a área de jardins em 20% e promover um aumento da biodiversidade na

escola em 50%. Atualmente, o programa conta com um projeto financiado pelo

Instituto HSBC Solidariedade, o que ocorre desde 2008, quando é selecionado pelo

programa "desenvolvimento de tecnologias de energia limpa e renovável, de baixo

custo, para comunidades de baixa renda", promovido pelo instituto.

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• Sítio Sustentável: iniciado efetivamente em 2007, a partir de uma parceria com a

empresa Amanco, é um projeto que emula uma propriedade rural familiar de um

hectare, dentro do espaço do Ecocentro. A sua proposta é demonstrar que é possível

para uma família de cinco integrantes viver de forma sustentável e com qualidade de

vida com apenas esta área de terra. Neste sítio, todos os processos, dos ciclos da água

(inclusive saneamento) aos ciclos energéticos são fechados ou controlados. Assim, ele

conta com tecnologias como cisternas de ferro cimento e canteiro biossético

(desenvolvidos pelo IPEC), bem como sistemas de cultivo como o Pais (Produção

Agroecológica Integrada Sustentável), desenvolvido pelo SEBRAE para o cultivo de

hortas orgânicas, além de outros, como construção ecológica da casa principal (feita

de adobe in loco), criação de porcos e galinhas em sistema de rodízio de piquetes (para

adubar e preparar o solo), geração de energia a partir de biogás decomposto da matéria

orgânica gerada no sítio (fezes dos porcos, restos de comidas e outros).

• A Estação Digital: inaugurado em 2008, é um projeto realizado em parceria com a

Fundação Banco do Brasil, e possibilitou a instalação de 10 computadores com acesso

à internet em uma sala da sede do Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado. O

local é de acesso público e gratuito a todos os moradores do Vale Mar e Guerra (cerca

de 140 famílias), ficando aberto todos os dias úteis da semana em horários

determinados.

d) Mininegócios: são responsáveis pelas entradas de recursos ao ecocentro por meio da oferta

de produtos e serviços próprios (juntamente com as consultorias) e de seus membros de forma

individual. Estes últimos seguem diretrizes mais gerais da ecovila, o chamado “DNA

Sustentável”, existente desde 2007. Destacam-se, neste caso, a Mampiara Alimentos,

dedicado a produzir e comercializar plantas medicinais e a Planta Viva Produtos Conscientes.

Com relação aos mais ligados coletivamente ao Ecocentro, destacam-se os seguintes

mininegócios:

• Editora Mais Calango: publica as produções do Ecocentro, que vão de cartilhas a

livros. Tem na coleção “Soluções Sustentáveis” uma de suas principais publicações.

• Loja Verde: existente desde 2006, vende as publicações da editora Mais Calango e

outros livros relacionados com os temas do meio ambiente e sustentabilidade. Possui

um espaço físico na sede do Ecocentro e uma loja virtual, onde podem ser comprados

os títulos referidos. Na loja virtual podem ser adquiridos, ainda, os cursos oferecidos

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pelo IPEC. Por sua vez, na loja física são também vendidos produtos artesanais do

Ecocentro e das comunidades com as quais o instituto tem relação.

• Cozinha comunitária – Terra Nutri: refere-se ao espaço, onde é preparada a

alimentação da comunidade, assim como as refeições para os eventos realizados. A

dieta local é, na sua maior parte, ovo-lacto-vegetariana, entretanto alguns moradores

realizam alimentação onívora, que é preparada a partir de animais criados e abatidos

localmente pelas próprias pessoas que deles se alimentam.

• Visitações públicas: que ocorrem, atualmente, em grupos em quaisquer dias da semana

e individualmente apenas aos domingos (agrupados conforme os participantes

presentes). Podem se dar (apenas os coletivos), segundo programações que variam de

períodos mais curtos, de duas horas, até mais longos, quando envolvem um dia inteiro.

• Estadia: se dá na Vila Ecoversitária, e normalmente ocorre em função de outros

eventos, como os cursos oferecidos no local. Também, ficam abrigados na Vila

estudantes das escolas envolvidos com ações do projeto Habitats que se dão no espaço

do Ecocentro.

• Cursos: dentre estes destacam-se o PDC (Permacultura – Design e Consultoria), em

que são tratadas noções de permacultura e de planejamento permacultural de terrenos;

o BioConstruindo, que ensina diversas técnicas de ecológicas de bioconstrução,

podendo ser ainda desmembrado em diversos módulos ministrados separadamente; o

Ecovilas – Design e Implementação, que trata das questões relacionadas ao

planejamento e execução destes assentamentos humanos, e o Ecoversidade, curso de

tempo mais extenso e por isto mais completo sobre os temas relacionados à

permacultura e aos outros conteúdos tratados pelo Ecocentro nos outros cursos e ações

que realiza. Estes são, em sua maioria, realizados na própria sede do Ecocentro,

podendo, entretanto, ser realizados em outros locais, como pode ser verificado na

descrição histórica realizada anteriormente. Estes cursos tem duração que pode ir de

algumas horas até 3 meses, como é o caso do Ecoversidade. Além desses, já foram

realizados cursos em parcerias com outras organizações, com turmas fechadas, como o

caso do Exército Brasileiro, do SEBRAE (agentes do programa PAIS) e da Caixa

Econômica Federal.

Outras atividades que se destacam no IPEC estão relacionadas com a interação com as

comunidades vizinhas, especialmente do vale do córrego Mar e Guerra. Neste sentido, no

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final de 2005 iniciou-se um mutirão em conjunto com os moradores para recuperação deste

córrego. Além dessa ação, existe um processo de interação contínuo que envolve a realização

de oficinas junto com moradores, em que são abordadas muitas das tecnologias aplicadas pelo

IPEC, bem como a participação destes em muitos eventos realizados pelo próprio Ecocentro.

9.3 Leitura Conforme O Marco Analítico Da Sustentabilidade

a) Dimensão econômica

Sobre o impacto gerado na distribuição de renda do local, as atividades realizadas pelo IPEC

geram postos de trabalho tanto internamente quanto externamente à ecovila. Internamente,

eles são criados especialmente pelos serviços prestados, já que o IPEC é um ecocentro, e tem

vocação para realização de consultorias, cursos e outras atividades similares. Neste sentido,

quase todos os seus moradores realizam alguma destas atividades, exceto aqueles que

trabalham na manutenção do local. De fato, o IPEC não se caracteriza como uma ecovila que

conta com moradores que trabalham fora e dedicam apenas parte do seu tempo para o local,

tendo apenas um morador nesta condição.

Do ponto de vista externo, um dos tipos de trabalho gerado está associado com o consumo dos

moradores da vila. No caso dos alimentos, ele é, em sua maior parte, produzido localmente

ou comprado nas cercanias (comunidade Mar e Guerra). Neste sentido, o ecocentro conta com

produtores orgânicos que suprem suas necessidades, numa espécie de contrato que garante o

fornecimento e a compra por um dado período.

Outro tipo de trabalho demandado está associado à utilização de serviços de pedreiros da

região, para construção das habitações e equipamentos do local, bem como os insumos para a

construção, que são locais (da comunidade, como a terra, por exemplo) ou da região

(município, como pedras). Neste sentido, são também empregadas pessoas com o

conhecimento nas técnicas tradicionais (como adobe, por exemplo). Além desses também são

contratados profissionais liberais que prestam alguma assessoria específica (como jurídica ou

contábil, por exemplo), além de haver três profissionais contratados pelo instituto que

trabalham ali em tempo integral embora morem fora do local (uma no setor administrativo e

duas na cozinha).

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Alguns destes produtores se articulam para vender também seus produtos na cidade (zona

urbana de Pirenópolis, já que o IPEC fica na zona rural), tendo aprendido e desenvolvido suas

técnicas junto ao próprio IPEC, através de projetos específicos e de cursos realizados com as

comunidades do entorno.

Com relação à articulação entre as diferentes lógicas econômicas, o IPEC se utiliza das três

formas referidas (mercantis, não-mercantis e não-monetárias). As trocas mercantis se dão por

meio dos serviços prestados, dos cursos oferecidos, da Loja Verde e da Editora +Calango. As

formas não-mercantis, se dão por meio de convênios com governo e outros financiadores

privados (HSBC e Sebrae, por exemplo) para realização de projetos específicos. As formas

não-monetárias se realizam na produção local de alimentos, das habitações e da infraestrutura.

Do ponto de vista financeiro, atualmente, a principal fonte de recursos provém das formas

mercantis. Esta participação deve ainda aumentar com o tempo, em função da mencionada

decisão estratégica do Ecocentro de depender mais de recursos próprios (serviços oferecidos

ao mercado) do que de convênios, pelas razões já expostas no capítulo anterior. Entretanto, se

considerarmos o aspecto econômico como um todo, ou seja, para além da questão

financeira/monetária, percebe-se que o trabalho realizado no local com relação aos três

elementos referidos compõe um importante fator de sustentabilidade da ecovila. O caso das

habitações e da infraestrutura, em especial, recebem importante incremento periodicamente,

pela ação dos voluntários e cursistas. De fato, boa parte das edificações existentes no local

foram realizadas por meio deste trabalho ou com uma grande participação dele em

determinado momento do processo de construção.

Já o formato dos empreendimentos locais assume uma característica de diversificação. O

próprio IPEC é um grande empreendimento, criado para trabalhar com a difusão e o

desenvolvimento de tecnologias ambientais. Neste caso, muitos moradores são remunerados

pela organização (ONG) IPEC, pela prestação de serviços internos (manutenção da ecovila)

ou externos (cursos e outros). No entanto, é permitido (mesmo estimulado) que os moradores

desenvolvam outras atividades. Surgem algumas iniciativas (como referido no ítem 9.2),

porém não continuam ligadas à ecovila devido à saída de seus integrantes. Além disso,

algumas atividades de consultoria ou de prestação de serviço são realizadas individualmente

pelos seus integrantes. Nestes casos, os empreendedores são individuais.

Sobre a produção local, o ecocentro conta com uma cozinha comunitária, em que trabalham

três pessoas (uma moradora da ecovila) que serve a alimentação para todos os moradores e

visitantes. A alimentação é composta, como já referido, de insumos externos e internos à

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ecovila. Não foi possível obter a fração exata de participação da produção interna de

alimentos, já que esta pode variar muito, contudo, segundo relato de um morador, numa

eventualidade seria possível suprir toda a demanda de consumo (em termos quantitativo) com

a produção interna. O que se reduziria, nesta hipótese, é a variedade de alimentos atualmente

utilizada. Outro serviço atendido internamente é a manutenção (exceto quando se requer

algum serviço específico), bem com as construções (com o apoio de mão de obra externa,

conforme já referido).

b) Dimensão social/comunitária

Percebe-se um alto nível de coesão entre os moradores, que pode ser observado no trato

cordial e na aparente amizade entre os indivíduos no local. Isto se reflete, por exemplo, nos

momentos de despedida, quando um morador vai embora. Segundo relato dos moradores, este

é um momento marcado por lágrimas: “é um sofrimento muito grande”, relata uma moradora.

“Mas depois de um tempo a gente aprende a lidar com isto”, continua ela. Isto porque há uma

certa rotatividade entre os moradores da ecovila, permanecendo, desde a sua fundação,

basicamente o casal fundador e sua filha. A população formada por estrangeiros ou brasileiros

em estágio, que normalmente é temporário, é o que forma a maior parte dos moradores. Há

ainda outros que vivem por um período no local e depois mudam-se, por razões diversas,

como o final de um período previamente determinado para executar um projeto pessoal ligado

ao Ecocentro, além de mudanças na vida pessoal (como um casamento) ou ainda a busca de

formas de trabalho diferentes. Um morador mais antigo afirma que “o processo de mudança é

natural e a maioria vai embora depois de algum tempo”; ainda outra trabalhadora diz que

“normalmente as pessoas vêm para passar o tempo de uma proposta de trabalho e depois vão

embora., outros acabam ficando, mas depois de um tempo também vão”. Segundo a mesma

trabalhadora, há os que ainda permanecem sem previsão de saída desde que chegaram.

Vale ressaltar que há, no local, uma preocupação com a resolução de conflitos. Sempre que

eles surgem são tratados. Existem, para isto, e para todos os encaminhamentos diários,

reuniões frequentes (as chamadas “rodas”), todas as manhãs, às 8 horas e todas às tardes, às

18 horas. Além disso, quando surge uma questão mais importante, a roda é mediada por outro

morador junto aos envolvidos.

Sobre a questão da saúde na comunidade, ela é percebida como integral, ou seja, passa por

questões mais “físicas”, como alimentação saudável (orgânica), tratamento adequado de

resíduos, moradia adequada (neste caso, bioconstruída), contato com a natureza, até as mais

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“mentais”, através da prática da meditação (que alguns moradores realizam), do trabalho com

significado e da própria resolução de conflitos. Alguns moradores fazem uso de medicina

natural, com ervas plantadas no próprio local. Entretanto, isto não parece ser uma prática

institucionalizada na comunidade. Com relação aos tratamentos convencionais, os moradores

os buscam individualmente fora da comunidade.

A educação é, provavelmente, o elemento mais desenvolvido no IPEC, pela sua própria

natureza (propósito). Os cursos são um elemento frequente, sendo oferecidos para o público

externo em diversos módulos durante o ano. A maior parte da comunicação do ecocentro é no

sentido de divulgar seus cursos e atrair o público participante. Parece não haver, contudo, uma

formação específica para o público interno, os moradores da ecovila. Entretanto, estes

participam, em sua fase de formação, dos cursos oferecidos para o público externo. Além

disso, a própria vivência na comunidade pode ser considerada uma formação, porém mais

ligadas à prática.

c) Dimensão cultural/espiritual

Pode-se dizer que a experiência é multicultural, no sentido de que congrega pessoas de

culturas muito diferentes e promove também práticas diversificadas. Neste aspecto, nenhum

dos moradores é proveniente da região em que a comunidade está instalada, mas foram para lá

por uma escolha individual.

As atividades artístico-culturais realizadas estão, de certa forma, relacionadas com a própria

construção do local. Parece que este próprio processo faz parte dos momentos culturais,

através dos elementos arquitetônicos e da sua decoração, que reflete, nas pinturas, trabalhos

artísticos e na sua construção a participação de uma diversidade de gostos e preferências, em

que percebe-se as diversas referências utilizadas. Neste sentido, pode-se considerar que este

elemento faz parte de uma lógica de expressão cultural, já que ele assume um caráter de

processo, em constante realização. Nas palavras do diretor local, referindo-se especialmente à

questão material do local, “o IPEC está constantemente em construção”.

A vivência na ecovila obedece ainda certos rituais, além dos já citados. Um deles é relativo

aos horários das atividades. Antes das refeições e sempre nos mesmos horários, soa um sinal

informando aos moradores e visitantes o momento em que ela se encontra disponível.

Algumas atividades contêm recomendações diretas, como o tempo de banho, a lavagem da

louça (realizada individualmente por todos), a utilização da água e a forma de uso dos

sanitários compostáveis, questões ligadas ao propósito da instituição. Existem ainda rituais de

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sociabilização, realizados eventualmente, como jantares com novos visitantes e encontro em

torno de uma fogueira.

Além destes rituais, existem no local atividades mais ligadas à espiritualidade, como prática

matinal de yoga e de meditação ao final do dia, sempre em horários determinados, e realizada

voluntariamente por alguns moradores e visitantes. Não há, entretanto, uma orientação,

propósito ou referência geral na comunidade com relação ao aspecto espiritual, como se

observa em outros casos.

d) Dimensão Política

Como relação à participação dos moradores, conforme já referido, existe a “roda” diária em

que são discutidos os problemas e fatos que ocorrem cotidianamente no IPEC. Neste

momento são também tomadas decisões conjuntas e realizados encaminhamentos sobre

eventuais conflitos e demandas.

Algumas decisões estratégicas do IPEC são tomadas, porém, em foro reduzido. Uma das

justificativas para isto é a referida rotatividade dos moradores, o que gera um relativamente

baixo envolvimento com as questões de longo prazo. Segundo depoimento do casal de líderes

do local, é desejo que novas lideranças surjam e que compartilhem mais responsabilidades

sobre o ecocentro. Neste sentido, há a intenção declarada de um dia afastarem-se das

atividades do local, para que ela possa florescer com mais participação dos demais

integrantes.

Neste sentido, a liderança exercida, apesar de conter elementos de centralização, apresenta

diversos pontos democráticos, como delegação de atividades e decisões importantes e um

processo de escuta aos demais (que se concretiza em implantação efetiva das demandas), bem

como um estímulo constante à participação.

Quanto à ação pública no território, percebe-se que há uma relação com a comunidade em

que o ecocentro está inserido. Isto se reflete em elementos como as já referidas compras locais

de alimentos, além dos projetos realizados com as comunidades vizinhas, como o

desenvolvimento de métodos de cultivo orgânicos, trabalho com hortas mandalas, fomento à

organização local, trabalhos de restauração ambiental, além de projetos como o Habitats,

realizado nas escolas públicas do município.

Com relação às articulações externas, o IPEC procura participar das ações públicas

relacionadas ao governo municipal. Entretanto, segundo depoimento do diretor local, a

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instituição normalmente não é convidada para participar das discussões sobre as políticas

locais, o que, segundo sua percepção, se deve ao posicionamento político do IPEC,

considerado “radical” com relação às concepções dominantes localmente. O instituto,

contudo, não se furta em buscar a participação nas discussões, apresentando-se sempre aos

governantes locais e se fazendo presente em encontros e reuniões quando possível. De

qualquer forma, o governo municipal tem convidado o ecocentro à participação em eventos

públicos, como festas e feiras temáticas (sobre a questão ambiental). A hipótese para esta

participação seletiva, ainda segundo o mesmo depoimento seria a “vocação do IPEC para a

realização de eventos” (que já ajudou na organização de eventos internacionais, como o SWU,

por exemplo72).

O IPEC possui, ainda, relacionamento com a rede global de ecovilas (GEN), desde a sua

fundação, assim como participa de discussões internacionais sobre o tema, apesar de divergir

em alguns pontos com relação às definições e políticas desta, como por exemplo a forma

como se define uma ecovila. Neste caso, a divergência seria no fato da GEN considerar

ecovila apenas aquelas comunidades definidas como “intencionais”, deixando de fora uma

série de experiências que poderiam ser exemplares para o campo ou que poderiam se

beneficiar das articulações políticas da rede.

Além disso, o Ecocentro se articula ainda com outras instituições que trabalham com

permacultura e ecovilas no Brasil, embora esta não se dê de forma institucionalizada como no

primeiro caso.

e) Dimensão Técnica/Ecológica

Com relação à questão tecnológica, percebe-se que a tecnologia utilizada pelo IPEC possui

características que a permitem definir como social. Primeiro, com relação ao seu uso, já que

elas são desenhadas para terem baixo custo e fácil aplicação, o que a torna facilmente

aplicável em qualquer meio social. Além disso, as suas origens estão fortemente relacionadas

às referências locais ou populares, mesmo quando adaptadas de outros locais. Este é o caso,

por exemplo, das técnicas construtivas baseadas no barro, como o adobe ou a taipa, que é uma

técnica tipicamente utilizada na região (bem como em diversas regiões do Brasil). Outras

técnicas mais recentes, como o superadobe, o canteiro biosséptico, o painel solar de baixo

72 Starts With You, organização que congrega personalidades em torno da militância em favor da sustentabilidade. Organiza festivais de massa com artistas com base no princípio de baixo impacto ambiental. Fonte: www.swu.com.br.

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custo, dentre outros73, apesar de não ter a origem local ou não serem adaptações de técnicas

tradicionais, tem o mesmo princípio de replicação simples e de baixo custo. Esta definição é

apoiada ainda pelo reconhecimento dado às práticas por instituições como a Fundação Banco

do Brasil, que fomenta a ideia de tecnologia social no Brasil

Estas tecnologias tem um forte cuidado com relação à questão ambiental. Citam-se como

exemplo o cultivo dos alimentos, que é feito de maneira orgânica e com adubo produzido

localmente (a partir da compostagem e de outros processos), o controle na utilização da água

potável, obtida a partir da reserva em cisternas, e o controle no uso da energia (o aquecimento

de água é todo realizado por painéis solares). A produção de resíduos é minimizada pela

reutilização da água (toda água é tratada antes de ser devolvida ao meio ambiente), pela já

referida compostagem e pela minimização do uso de embalagens.

Com relação à identidade ecológica, observa-se que ela se manifesta em ações como o

reflorestamento já realizado na área da ecovila e a revitalização e a limpeza das margens do

córrego Mar e Guerra que cruza a propriedade mas que vai além dela. Na comunidade,

também, não são permitidos animais de estimação, com o objetivo de não afugentar a fauna

local. Fica evidente, nas ações da ecovila que a preocupação ecológica se estende além dos

limites locais.

Com relação aos esquemas de reciclagem, o principal deles é o processo de compostagem de

alimentos. Não se percebe a reutilização de outros materiais recicláveis, entretanto sua

utilização é reduzida para o mínimo possível. Um esquema de reciclagem que vale citar é o

proposto pelo sítio sustentável, que se apresenta no formato de projeto e não estava em

funcionamento na segunda visita ao local, devido ao término deste projeto que o financiava.

O esquema de reciclagem consiste no aproveitamento do esterco de porco para produção de

energia residencial. Inicialmente, a água utilizada na lavagem dos porcos e chiqueiros vai para

um reservatório circular de ferrocimento (Figura 47). O esterco recolhido vai para uma área

de tratamento anaeróbico (Figura 48), de onde o gás é recolhido para utilização na residência

como fonte de aquecimento (pode ser utilizado também para geração de eletricidade mediante

a implantação de tecnologia adequada). O processo gera um biofertilizante como subproduto,

que é utilizado como adubo.

73 Estas técnicas serão melhor detalhadas na sequência.

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Com relação à utilização da água, diversos processos com preocupação ambiental são

utilizados. O primeiro que podemos citar é a lavagem da louça. Cada morador e visitante é

responsável pela sua própria louça, e este processo é realizado com três bacias em série, ou

seja, sem a utilização de água corrente. Uma segunda, é a utilização da água das pias dos

banheiros secos, que são esgotadas próximas a cada sanitário, em pequenos jardins. O terceiro

é a própria não utilização da água nos sanitários, que são compostáveis. Ainda ligada a esta

questão, está o fato de os sanitários e os chuveiros serem de utilização coletiva. Uma quinta

prática é a utilização de cisternas de ferrocimento, que estão presentes junto a maior parte dos

telhados das construções locais. Sobre esta questão, vale ressaltar que existe cerca de 230.000

litros de capacidade de armazenamento na comunidade. Esta fonte é utilizada

preferencialmente às outras, que são um poço semiartesiano e uma fonte natural, que não é

utilizada como fonte de água potável.

Um sexto processo é o tratamento biológico, aplicado à água da cozinha e dos chuveiros. Ele

tem por objetivo a devolução da água no estado captado, ou seja, próximo à potabilidade. Um

esquema deste processo, utilizado para a água da cozinha, pode ser visualizado a seguir, na

Figura 49. O tamanho e as fases deste sistema foram definidos em função da meta da

qualidade da água ao final. Assim mesmo, depois de construído, o sistema foi aumentado em

dois tanques de filtros aquáticos para se atingir a qualidade desejada.

Figura 48: Manta para separação do gás natural

Figura 47: Bacia para recuperação da água dos porcos

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Figura 49: Esquema de um do sistema de tratamento da água da cozinha no IPEC.

Com relação à utilização de energia, a maior fonte é a própria rede de distribuição. Outras

fontes utilizadas são o aquecimento solar da água dos banhos, pela adoção da técnica do

Aquecedor Solar de Baixo Custo (ASBC)74, conforme pode ser observado na Figura 50. Outra

forma de utilização de energia é o aproveitamento da gravidade para o escoamento de água,

como é o caso dos sistemas de tratamento dos efluentes.

Figura 50: Painéis solares para aquecimento da água dos chuveiros.

74 Técnica desenvolvida pela Sociedade do Sol, que consiste na confecção de painéis solares a partir de forro e tubos de pvc. Fonte: www.sociedadedosol.com.br

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Com relação às técnicas construtivas adotadas, todas elas se baseiam na ideia da

bioconstrução. No local, existem casas construídas com as técnicas do adobe (blocos de barro

e palha secos ao sol), superadobe (sacos ou bobinas de ráfia enchidos com terra), cob (técnica

que mistura barro e palha que são moldados diretamente na parede), taipa leve (formado a

partir de paredes de barro e palha montados previamente), taipa de pilão (mistura de barro e

palha socados numa forma montada no local em que será a parede), adobe in loco (blocos de

adobe montados diretamente no local da parede), blocos de solo-cimento (tijolos feitos a

partir da prensagem mecânica de uma mistura de terra e cimento), bem como com pedras e

madeira da região. Há ainda alguma utilização de cimento nas edificações, especialmente nos

alicerces e elementos que ficam em contato com a água (sanitários e fossas, por exemplo).

Utiliza-se também a técnica de ferrocimento em algumas construções, como na biblioteca e na

cozinha ecoversitária.

Com relação à restauração ecológica, foi realizado, como já referido, um processo de

reflorestamento local que envolveu, até o presente, o plantio de cerca de 20.000 mudas. Além

disto, os processos de recuperação local, especialmente dos córregos, é realizado com uma

certa frequência por meio de projetos envolvendo a comunidade em que o ecocentro está

inserido. Por fim, as técnicas de permacultura perpassam todos os processos do local, o que

contribui para a restauração e preservação ecológica do meio que cerca a ecovila.

9.4 Considerações Sobre O Caso

Para tentar perceber o enquadramento da iniciativa no conceito de ecovila, podemos retomar

os elementos principais de Gilman (1991)75: a) assentamentos em escala humana, b)

completos, c) nos quais as atividades humanas são integradas sem danos ao meio natural, d)

de uma forma que se permita o desenvolvimento humano saudável e e) que possa ser

continuada com sucesso no futuro.

Com relação ao primeiro ponto, a experiência em análise tem perfeitamente as dimensões

para que as pessoas se conheçam (como de fato se dá), já que conta com uma população que

gira em torno de vinte pessoas. Além disso, todas elas podem potencialmente influenciar na

direção da ecovila, uma condição colocada por Gilman (1991), como efetivamente o fazem

75 Optamos por discutir sobre esta definição em função de ele apresentar uma discussão e classificação mais detalhada sobre

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nos momentos de reuniões e de encontros (como nas referidas rodas diárias).

Já no que se refere ao segundo elemento, não se pode dizer que o IPEC seja “completo”,

embora esta definição seja um tanto difusa, já que o próprio autor (Gilman) afirma que não se

espera (e mesmo não é desejável) que tudo seja produzido localmente. Entretanto, observa-se

uma potencial76 autossuficiência no que se refere à alimentação (em todo o processo, desde o

cultivo até o descarte do não utilizado, passando pela sua preparação), construção de moradias

e suprimento e tratamento de água.

No que diz respeito à integração sem danos ao meio natural, este é de fato um dos princípios

que pela observação, se percebe que norteia as práticas locais. Procura-se definir todos os

processos de forma cíclica, como pode-se notar pelas descrições realizadas neste capítulo,

mas não podemos considerar que as atividades não ocorrem absolutamente “sem danos”,

justamente porque se conectam com processos externos que nem sempre tem estas

características. Se considerarmos, no entanto, a prática a partir das experiências dadas pela

modernidade (de onde excluiríamos as comunidades tradicionais indígenas, por exemplo),

certamente elas estão entre aquelas que ocorrem como o “menor dano possível”.

O desenvolvimento humano saudável (outro conceito que pode ser problemático, já que

poderia ser avaliado a partir de diferentes perspectivas culturais ou pessoais) pode ser também

facilmente observado pelas diversas práticas adotadas no local, que envolvem a dimensão

espiritual, social e simbólica, além dos aspectos físicos dada por um estilo de vida que

envolve uma alimentação e um trabalho mais saudáveis.

Por fim, com relação ao último aspecto, é difícil concluir sobre se a experiência pode ser

continuada indefinidamente. Do ponto de vista material parece que sim, já que, como dito

logo acima, muitos processos poderiam continuar mesmo se não houvesse relação com o

exterior (embora provavelmente sem a mesma “qualidade”). Entretanto, parece que este não é

o único fator a ser considerado para se pensar na continuidade da existência da ecovila.

Assim, do ponto de vista político e social, existem algumas restrições que fazem com que, em

caso de mudanças externas, a experiência hoje não seguiria sem grandes abalos. Estas

restrições são a liderança ainda um tanto concentrada no casal fundador (cuja afastamento

definitivo traria, certamente, dificuldades para o funcionamento da experiência) e a relativa

rotatividade de boa parte dos moradores do local que indica uma vinculação mais de caráter

76 Potencial porque nenhum dos elementos exemplificados se realiza totalmente na ecovila. Todos possuem algum nível de intercâmbio com o exterior, mas dada a expertise observada no local e a disponibilidade dos insumos utilizados (ou seus substitutos), percebe-se que poderia haver uma continuidade no seu fornecimento mesmo numa eventual interrupção deste intercâmbio.

159

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temporário desta parcela da população, o que seria uma fragilidade do ponto de vista desta

continuidade.

Vale ressaltar sobre o enquadramento da experiência como ecovila, que alguns moradores não

a entendem como tal. Uma diretora do local afirma que, a ecovila não pode ser considerada

assim pelas suas dimensões, ou seja, é pequena demais se for comparada com as experiências

fora do Brasil. Uma outra trabalhadora diz que o IPEC é “mais um centro de referência, uma

ONG; as pessoas vêm até aqui mais para trabalhar e vivenciar uma experiência".

Ao se considerar as características de um EES, podemos tentar, também, perceber a

experiência a partir do marco mais específico da economia solidária. Retomando as cinco

características principais, temos (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004): a) pluralidade de

princípios econômicos, b) autonomia institucional; c) democratização dos processos

decisórios; d) sociabilidade comunitário-pública e e) finalidade multidimensional. Todas estas

características são facilmente observadas na prática em discussão. A experiência utiliza os

diversos princípios econômicos, conforme descrito na seção que fala sobre sua dimensão

econômica da sustentabilidade; há uma clara autonomia institucional, amparada por uma

decisão política de ter a maior participação possível na receita de fontes de recursos próprias;

existem processos democráticos de decisão, embora algumas delas acabam se concentrando

na liderança local, mas que são contrabalançadas pelo estímulo à participação de todos, como

as já citadas rodas diárias de conversas. Há também, uma clara interação da organização com

a comunidade onde ela está inserida, embora haja aqui uma limitação dada pelo fato de o

IPEC ser composto por indivíduos com origem e com propósitos (ligados à organização)

muito distintos dos demais moradores do seu entorno (embora esta interação tenha também

influenciado alguns moradores da região com relação às suas próprias práticas). Por fim, a

finalidade multidimensional é observada pelo fato de as atividades econômicas do IPEC

serem claramente apenas meios para se atingir seus objetivos principais, ligados à questão

ambiental.

Com relação ao quadro analítico, de forma geral percebe-se que a experiência possui uma

grande aderência à noção de sustentabilidade proposta. Ela apresenta resultados que

contemplam a maior parte das variáveis levantadas, perpassando todas as dimensões. É

possível, perceber, entretanto, que há uma grande ênfase na dimensão técnica/ecológica, que

se traduz no esforço por desenvolver e implementar soluções que se expressariam na lógica

das tecnologias sociais, como já afirmado anteriormente. Esta seria a “cola” da experiência,

ou seja, o elemento de maior atração, tanto para os moradores quanto para os visitantes. As

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dimensões que apresentariam as maiores dificuldades, de forma comparativa as demais (já

que também apresentam expressões relevantes) são as duas já referidas quando apontávamos

a definição de ecovila: a social e a política, pelas razões também já expostas. Como veremos

adiante, na análise das outras experiências, estes são os elementos com as maiores

dificuldades de desenvolvimento em experiências desse tipo.

161

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10 A FUNDAÇÃO TERRA MIRIM

10.1 Caracterização E Histórico

A FTM está situada no município de Simões Filho, região metropolitana de Salvador/BA.

Localiza-se na sub-bacia do rio Itamboatá, afluente do rio Joanes, no Km 07 da Rodovia BA

093 (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2010). Seu espaço compreende uma área de 2,5 ha (sede

da instituição, de propriedade da pessoa jurídica FTM), que é rodeada de outras duas áreas:

uma delas compreende as casas de alguns moradores da ecovila (de propriedade destes), e

outra é composta de uma faixa de terra de 2 ha destinada ao cultivo de alimentos (área

também de propriedade da FTM), denominada “Terras de São Francisco”. As duas primeiras

podem ser visualizadas na Figura 51.

A ecovila conta com sete funcionários, que são monitorados especialmente pelos sete

moradores da ecovila que estão instalados na propriedade da fundação, e que trabalham

principalmente nas suas atividades internas (embora na maioria dos casos não

exclusivamente). Estes, com outras 18 pessoas (residentes fora da área de propriedade da

instituição) compõem a população total do local de 25 moradores.

Sobre a população total, observa-se que a maioria é de mulheres (72%), com uma idade média

de 39 anos, com idades desde recém-nascido até 65 anos. A maior parte das pessoas é

proveniente de Salvador (60%), mas a população é composta de indivíduos de diversas

origens (dentro da Bahia e de outros estados e países). Além disto, predomina o nível superior

(76% do total), sendo que 8% dos moradores estão fora da idade escolar.

A profissão dos moradores varia muito, sendo que se repete duas vezes a de pedagogia e a de

psicologia, e quatro vezes a de estudante. O tempo médio de moradia na comunidade é de

162

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cerca de 8 anos e meio, sendo que os moradores mais antigos (3 deles) estão há entre 18 e 19

anos estabelecidos no local.

Figura 51: Implantação da FTM. Fonte: Bissolotti (2004)

No seu percurso histórico, observa-se que a Fundação começa a tomar a sua forma atual a

partir da realização das primeiras atividades de vivências coletivas realizadas no local, em

1989, promovidas pela principal liderança do local (cuja família era então proprietária das

terras), guia espiritual e uma das peças fundamentais para a estruturação da instituição e para

a compreensão de muitos elementos do seu funcionamento.

Em 1992, a Fundação77 foi formalmente constituída, passando a denominar-se, então

“Fundação Terra Mirim – Centro de Luz”. Nesta ocasião, a propriedade em que se encontram

77 O formato de fundação foi o escolhido para regulamentar a comunidade então em formação por ser o mais apropriado as suas intenções no momento, já que ela possui, ao mesmo tempo, um interesse público e a propriedade desvinculada dos seus eventuais sócios ou gestores.

163

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os espaços comuns (citados anteriormente) foi doada e passou a se incorporar ao seu

patrimônio. Até 1994, entretanto, a comunidade de moradores ainda não havia se instalado,

sendo todas as atividades da instituição realizadas por voluntários e funcionários que residiam

em Salvador e se locomoviam até o local quando requeridos.

Nesta ocasião, os moradores se instalaram na casa em que hoje fica a administração. Nos anos

seguintes foram sendo construídas a Casa de Recolhimento, os chalés, além de algumas casas

individuais (nos condomínios que cercam a área da Fundação), tendo todos os moradores se

acomodado nestas novas construções e liberado a construção original para as funções que hoje

ela cumpre.

O trabalho social (ligado para as comunidades do entorno) começa no ano 2000, com o

projeto Águas Puras, que visava a limpeza do Rio Itamboatá e a recuperação das suas

margens. A partir daí, estes trabalhos se ampliaram em escopo e em abrangência das

comunidades atingidas, sendo que hoje são realizados trabalhos com as ervateiras da região,

com a recuperação da Fonte da Guia, o plantio de mudas de árvores, dentre outros, conforme

será detalhado mais adiante.

A área da Fundação é cortada pelo Rio Itamboatá, conforme pode ser visto na Figura 51. Da

sua entrada principal até a margem do rio, podem ser visualizados os seguintes prédios: uma

construção preexistente abriga atualmente a parte administrativa da instituição (Figura 52),

bem como uma biblioteca, cozinha e refeitório; contíguo

a este prédio (dividindo uma varanda) encontra-se a sede

da Editora Calango; atrás encontra-se um espaço que

abriga a padaria, e uma varanda com mesas e cadeiras

para usos diversos (Figura 55); são observados ainda o

prédio da Ambiental Terra Mirim (Figura 54), onde fica

sediado o departamento que cuida das questões relativas

ao meio ambiente; a lavanderia; um pequeno templo para

meditação; a “Casa das Artes”, espaço para

apresentações artístico-culturais (Figura 56); a “Casa do Recolhimento” (ao lado da Casa das

Artes), local de alojamento com quartos individuais, onde residem alguns moradores

permanentes e voluntários (Figura 53); uma casa de manutenção, onde ficam guardadas

ferramentas e equipamentos; um galinheiro; uma área com chalés para hóspedes, que é

ladeado por uma construção com cozinha e sanitários (Figura 58); e a “Casa da Lua”, local de

pequenas reuniões, meditações, práticas de yoga e outras atividades (Figura 57).

Figura 52: Prédio administrativo da FTM. Fonte: autor

164

Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

Do outro lado da margem do rio existem as seguintes construções:

a “Casa dos Mestres”, pequeno local de recolhimento e meditação

(Figura 59); a “Casa do Sol”, espaço para eventos, cursos e aulas

de yoga e meditação (Figura 60); e a Sharimar (Figura 63). Há

ainda a “Escola Ecológica” adiante do lago com relação à entrada

da instituição (Figura 61).

Além dessas construções, compõem a ecovila áreas de pomar

(Figura 62); jardins ornamentais; um jardim de ervas em formato

de mandala; uma horta (desativada no momento da visita); uma

área de compostagem (Figura 66); um espaço para o

minhocário; um viveiro de plantas e, por fim, os templos

da Água, do Fogo (Figura 64), do Vento (Figura 65) e da

Terra.

Figura 60: "Casa do Sol". Fonte: autor

Figura 59: "Casa dos Mestres". Fonte: autor

Figura 53: "Casa do Recolhimento". Fonte: autor

Figura 58: Chalés (à esquerda). Sanitários e cozinha (à direita).

Fonte: autor

Figura 57: "Casa da Lua". Fonte: autor

Figura 54: Ambiental Terra Mirim. Fonte: autor

Figura 56: Casa das Artes. Fonte: autor

Figura 55: Padaria Mirim. Fonte: autor

165

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Nas “Terras de São Francisco”, são realizados o cultivo de diversos tipos de alimento e de

plantas medicinais. O propósito da utilização deste espaço é de, além de produzir estes

gêneros para consumo interno (da ecovila) e eventualmente venda, que ele possa servir como

um local para a realização de atividades de educação ambiental.

Em termos organizativo, a FTM se organiza a partir de

setores de trabalho (ou gerências, conforme dispõe o seu

estatuto): Educação, Administrativo-financeiro, Arte e

Cultura, Nutrição e Ambiental, cada um contando com

um responsável entre os colaboradores da ecovila. Ainda

com relação a organização da gestão, destaca-se a

singularidade da experiência, que contempla

estatutariamente uma instância supra-administração,

composta pela Mestre Espiritual, que tem por finalidade

ser o “balizador das ações e da administração da FTM-CL, entendendo-se como dimensão

espiritual a materialização de princípios e valores como ética, honestidade, transparência,

dentre outros.” (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2003, p.10). Além disso, o Mestre Espiritual

exerce seu cargo em caráter permanente e vitalício, sendo ainda o presidente do conselho

curador.

A estrutura de gestão é ainda composta pelos órgãos estratégicos que são o conselho curador,

Figura 63: Sharimar. Fonte: autor Figura 62: Pomar. Fonte: autor

Figura 66: Área de compostagem. Fonte: autor

Figura 65: Templo do Vento. Fonte: autor

Figura 64: Templo do Fogo. Fonte: autor

Figura 67: Parte da área de cultivo nas "Terras de São Francisco". Fonte: autor

Figura 61: Escola Ecológica. Fonte: autor

166

Page 181: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … Final... · Figura 34: Casa de taipa e madeira. Fonte: ... Figura 40: Casa dos voluntários (em construção). Fonte: autor.....144 Figura

o Conselho Fiscal e os Órgãos Executivos, em que estão a superintendência, a diretoria e as

referidas gerências.

10.2 Programas, Projetos E Ações Desenvolvidos Pela FTM

No início das suas atividades, a Terra Mirim concentrava suas ações em torno das vivências

promovidas pela Xamã, o que foi consolidando a ocupação do local. Com o desenvolvimento

da organização da comunidade, e a divisão nos setores de trabalho, a maioria das atividades

passaram a ser organizadas no formato de programas e projetos, compondo todas as ações

realizadas. A maioria destas atividades é financiada a partir de quatro fontes principais:

doações, especialmente de parceiros internacionais, contribuição mensal dos moradores,

serviços prestados e convênios/parcerias para execução de projetos específicos.

Os serviços prestados se situam especialmente dentro do “Programa Acolhimento

Participativo”, que tem como propósito “acolher pessoas e grupos que busquem o

desenvolvimento pessoal e comunitário e que respeitem as Tradições Sagradas especialmente

o Xamanismo, a fim de proporcionar Bem Estar e Integração com a Natureza gerando receita

e sustentabilidade para a Fundação Terra Mirim” (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2010). Este

programa inclui nos serviços questões como alimentação lacto-vegetariana, estadia nos chalés

ou quartos individuais (Casa do Recolhimento), participação nas atividades diárias de

meditação (conforme a ocorrência regular no período) e colaboração nas oficinas junto às

comunidades e em outros eventos que estiverem ocorrendo, caminhadas livres junto à

natureza, utilização da biblioteca e do acesso à internet sem fio. Há ainda os serviços

opcionais como massagens, rituais xamânicos, limpeza energética com benzedeiras da região,

orientação alimentar, aulas de capoeira, percussão, vilão e outros. O acolhimento participativo

pode se dar também em função de eventos em datas especiais, como carnaval, páscoa e

outras. Este programa funciona como um serviço, no qual seu demandante paga uma taxa

pelos serviços. Também há a opção da estadia livre, ou seja, sem estar vinculada aos

momentos do acolhimento. Esta pode-se dar em qualquer época, com a utilização dos espaços

disponíveis no local.

Já dentre os principais programas e projetos executados pela fundação, poderiam ser

destacados:

167

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a) Escola Ecológica: realização de educação complementar para crianças e adolescentes da

região, tendo se iniciado em 1999 com dez educandos. Hoje, esse projeto conta com cerca de

cem alunos que participam de atividades de contraturno escolar, envolvendo oficinas

artísticas, de esportes, de educação sobre ecologia integrativa, de informática e outros. Este

projeto é mantido especialmente por meio de doações internacionais. A localização da escola

na comunidade pode ser vista na Figura 51.

b) Projeto Ser Adolescente: atividades realizadas com jovens das comunidades do entorno,

que envolvem vivências e momentos de reflexão sobre as questões da adolescência e sobre

outros temas, como meio ambiente.

c) Projeto Águas Puras: iniciado no ano de 2000, previa o reflorestamento de 13,5 hectares

de Matas Ciliares do Rio Itamboatá, bem como a limpeza e restauração das suas margens,

tendo já sido realizado o plantio de 10.000 mudas de árvores nativas. Para isto, foram

realizadas ações de educação ambiental nas escolas municipais, além de diversos mutirões

ecológicos de limpeza, envolvendo a participação de centenas de moradores das comunidades

vizinhas. O projeto conta ainda com a formação contínua de professores, que funcionam,

como uma espécie de multiplicadores nas escolas. Este projeto recebeu financiamento do

Fundo Nacional do Meio Ambiente para o período de 2001 a 2003 (fase I), e novamente para

o período atual, que corresponde à sua segunda fase.

d) Projeto Arte e Sustentabilidade: envolve a realização de oficinas de artesanato com

mulheres e adolescentes da região tendo em vista a produção e a comercialização dos

produtos em feiras populares.

e) Projeto Sharimar: produção de óleos vegetais, essências, hidrolatos, travesseiros

aromáticos, máscaras faciais, águas perfumadas e outros produtos originários de ervas da

região. O projeto compreende um trabalho com as ervateiras também da região, visando ao

estímulo e ao reforço de uma tradição da cultura local, que é o extrativismo de ervas para

consumo e comercialização. O projeto foi apoiado por um edital a fundo perdido do

SEBRAE, em 2008, e continua no presente a partir da constituição de uma microempresa

(denominada Sharimar), de propriedade de uma das integrantes da FTM, e que realiza as suas

atividades comerciais, de compra das plantas das ervateiras e de venda dos produtos

originários dos processos de beneficiamento das ervas.

f) Projeto de Recuperação da Fonte da Guia: atividade assumida pela instituição que prevê a

recuperação de uma fonte em terra contígua, de propriedade de uma olaria, atualmente

168

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desativada. A fonte estava degradada e assoreada, tendo sido restaurada, limpa recuperada na

sua vegetação de entorno. Por ser considerada importante elemento natural e cultural do

município (era antigo destino de romeiros), recentemente sua área foi considerada como

“Unidade de Conservação e Reserva Biológica Fonte Nossa Senhora da Guia”, primeira de

Simões Filho, depois de mobilização popular que envolveu participação ativa da Fundação e

que colocou esta demanda ao poder público local (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2010).

g) Programa de Voluntários: A Fundação mantém um programa contínuo de recepção de

colaboradores para atuação em diversas atividades. Este tem um duplo sentido: atuar na

manutenção da instituição e propiciar momentos formativos para os próprios voluntários. Os

voluntários podem trabalhar em diversos períodos, desde poucos dias, até meses, conforme

sua disponibilidade e o interesse da fundação. Geralmente, há uma taxa de manutenção paga

pelo voluntário pelo período de estadia, entretanto este programa não foi classificado como

“serviço prestado”, pois valor recolhido tem o principal propósito de apoiar nas próprias

despesas do voluntário.

h) Semana do Meio Ambiente e Gincana Ambiental do Vale do Itamboatá: se encontram, em

2010, na sua segunda edição e serão realizadas junto a cinco escolas municipais e estaduais do

Vale. São articuladas por moradores da região, que recebem formação para serem

mobilizadores comunitários.

Além desses programas e projetos, há ainda a ocorrência de diversos eventos, periódicos ou

esporádicos, como o: Ecoart, que ocorre anualmente e tem como objetivo realizar debates e

discussões sobre meio ambiente, economia solidária e cidadania e o Natal Feliz, que tem o

propósito de celebrar o natal junto às comunidades do Itamboatá.

A Fundação realiza ainda ações que não parecem se enquadrar no formato de programas ou

projetos, que estão vinculados principalmente aos trabalhos com as comunidades do entorno.

O primeiro conjunto destas ações estão associadas a atividades de organização dos produtores

das comunidades vizinhas. Neste sentido, vêm sendo estimulada a constituição de uma

Associação no Oiteiro (comunidade do Vale), bem como de um conselho de anciãos da

região. Além disso, são constituídas diversas oficinas sobre plantio e outros temas de interesse

dos produtores rurais, muitas vezes ministradas por membros da própria comunidade.

Outro conjunto de ações é aquele realizado visando o desenvolvimento da região nos seus

diversos aspectos (ambientais, sociais, culturais, econômicos, etc). Similarmente ao projeto de

recuperação da Fonte da Guia, foram realizadas ações para definir condicionantes para a

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instalação do Condomínio Fazenda Real, em construção na região. Este condomínio,

considerado de alto padrão, isolará extensa área de floresta com muros, dificultando a

locomoção dos trabalhadores rurais e isolando áreas de coletas de ervas, além de promover

desmatamentos em algumas áreas, o que trará prejuízos de diversos tipos às comunidades e ao

meio ambiente. Com isso, a construção deste condomínio deverá prever acesso às áreas

isoladas pelas ervateiras, além de prever áreas específicas que os trabalhadores poderão ter

acesso para cultivo.

Por fim, a Fundação já tem realizado diversos levantamentos da região, como o diagnóstico

socioeconômico do Vale do Itamboatá, o Diagnóstico Ambiental da hidrodinâmica do Rio

Itamboatá, ligado ao Projeto Águas Puras, o Diagnóstico Ambiental apoiado por professores

do Curso de Direito Ambiental Comunitário, o Levantamento e Proposições das Associações e

lideranças comunitárias do Vale do Itamboatá e a Agenda Socioambiental do Vale do

Itamboatá (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 200x).

Com estes trabalhos referidos, há interação direta com seis comunidades do Vale: Convel,

Jardim Renatão, Oiteiro, Santa Rosa, Dandá (quilombola), Palmares e Pitanga de Palmares

(FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 200x).

10.3 Leitura Conforme O Marco Analítico Da Sustentabilidade

a) Dimensão econômica

Sobre o impacto gerado na distribuição de renda do local, as atividades da Terra Mirim

podem ser divididas em dois tipos: a geração de renda local, pelo emprego de algumas

pessoas (sete) nas atividades de manutenção interna (cozinha, escola ecológica, manutenção

do local e atendimento aos visitantes) e externo, pela articulação de projetos junto às

comunidades vizinhas, como é o caso do trabalho com as ervateiras da região para o

processamento e comercialização dos produtos coletados ou ainda do trabalho de organização

e capacitação dos produtores do entorno. Diferentemente da situação citada no caso anterior, a

maior parte dos moradores trabalha fora da comunidade, e a ajuda financeiramente, mediante

o pagamento de uma mensalidade. Quanto aos insumos, a maior parte não são provenientes

do local, exceto alguns gêneros alimentícios, que tem origem no próprio município (feira

local). Como as edificações não são bioconstruídas, os materiais empregados também são na

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sua maior parte de fora, embora se observe a utilização de elementos (como partes das

estruturas de madeira) provenientes do local.

A articulação entre as diferentes lógicas econômicas, também é observada, embora com

menor participação das formas não-monetárias. As trocas mercantis se dão por meio dos

serviços prestados, como hospedagens e tratamentos terapêuticos e da Editora Calango. As

não-mercantis ocorrem por meio de convênios com governo, vinculados à execução dos

projetos e programas já referidos. As formas não-monetárias se dão através do trabalho

voluntário realizado especialmente por visitantes do local, na realização de intercâmbios ou

nos momentos de estadia (pode-se optar por esta modalidade no momento da entrada na

comunidade).

Os empreendimentos estabelecidos no local podem estar ligados à própria fundação, como a

editora, a cozinha e a escola. Podem também ser de seus moradores, como é o caso da

Sharimar ou da prestação de serviços específicos (por exemplo, atendimentos dado pela Xamã

ou por outros, não necessariamente moradores, que aplicam massagens e tratamento com

ervas). Funciona, ainda, uma padaria no local, tocada por duas pessoas, mas ainda em caráter

incipiente. Também ocorre na Terra Mirim a remuneração, por esta instituição, de alguns

moradores, por meio dos projetos que ela executa ou como retribuição por serviços prestados

na sua manutenção.

Sobre a produção local, existe a cozinha comunitária, em que trabalham duas pessoas, sendo

coordenada por duas moradoras do local. A manutenção também é outro serviço atendido

internamente, porém com a contratação de serviços externos.

b) Dimensão social/comunitária

Percebe-se um alto nível de coesão entre os moradores, com uma sociabilidade primária e um

alto grau de confiança entre os indivíduos. Alguns moradores (três deles) estão presentes

desde a constituição da comunidade (em 1994), tendo vínculos mesmo anteriores a este

momento. Outros já estão também a muitos anos morando e convivendo no local (mais de

40% morá lá a mais de 12 anos), o que faz com que seja apresentado um forte laço, que

lembra o de uma família. O nível de reconhecimento entre os moradores também é

satisfatório, já que eles são em pequeno número. Vale ressaltar, sobre estes aspectos, o fato de

ter sido observada apenas a interação de parte dos moradores, já que alguns deles não tomam

parte das atividades diárias da fundação, mesmo morando na comunidade. Este aspecto

apresenta um diferencial em relação ao caso anterior: enquanto no IPEC a relação com a

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ecovila está fortemente vinculada à questão trabalho, na FTM a maior parte dos moradores

tem mais uma relação de moradia e um envolvimento menor nas suas atividades diárias,

relacionadas aos projetos, programas e serviços prestados, e apenas um morador tem maior

parte da sua renda proveniente do local. De qualquer forma, todos se envolvem em alguma

atividade administrativa ou de apoio à fundação.

Destaque-se que este formato é similar ao que pretende ser seguido pelo IPEC na constituição

de um espaço de moradia na área externa ao do instituto. Assim, como na FTM, haveria uma

divisão entre a propriedade da organização, com seus propósitos bem definidos, e a dos

moradores.

Com relação à questão da saúde, percebe-se o acesso dos moradores aos tratamentos, quando

requerido. Neste aspecto, destaca-se a preocupação da comunidade com a utilização de

tratamentos complementares, com a utilização de ervas medicinais e de terapias alternativas,

apresentando-se mesmo como uma das vocações do local.

No que diz respeito à educação, tem-se também outro dos elementos centrais da ecovila, cujas

ações ocorrem com especial destaque, sendo inclusive previstas estatutariamente dentro dos

objetivos gerais da instituição. Neste caso, existe a Escola Ecológica, que apoia a educação

dos jovens da região, bem como os cursos de capacitação e sensibilização para os temas

trabalhados na instituição para os moradores da região. Aparece aqui outra diferença do caso

em destaque com relação ao anterior: na Terra Mirim, as atividades da educação estão mais

voltadas para o público do entorno onde ela está inserida. Já no IPEC, mesmo que exista este

elemento, grande parte das atividades de formação se inserem no formato de cursos para o

público mais distante, sendo a maioria de outras cidades e estados do Brasil e mesmo de

outros países.

c) Dimensão cultural/espiritual

Um elemento que chama a atenção é a vinculação dos moradores à experiência por sua

proposta filosófica de vivência. Isto está presente na maioria dos discursos, onde se percebe,

por um lado, o engajamento dos moradores nesta proposta, e por outro, a escolha intencional

por este estilo de vida, mesmo com eventuais “custos emocionais” que tal mudança enseja.

Conforme depoimento de uma moradora, eram pessoas acostumadas com uma forma de vida

urbana e que resolveram trocar este estilo por um outro que contemplasse também outros

tipos de atividades. Outro dado que reforça o laço escolhido é que cerca da metade dos

moradores (48%) não possuem qualquer relação de parentesco entre si na ecovila, e em 24%

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estes laços são o de união conjugal. Assim, percebe-se que existe uma identidade dos

moradores com a proposta da comunidade, mais do que com o local.

A comunidade formada pela Terra Mirim assume ainda um caráter multicultural, já que é

constituída por indivíduos de origens diversas. Entretanto, a maior parte dos moradores é da

Região Metropolitana de Salvador, e a grande maioria dos moradores adultos possui nivel

superior.

As atividades culturais são também valorizadas no local. Num espaço próprio para a

realização de eventos (ver Figura 56), em que especialmente os jovens da região acorrem, são

promovidas ações de desenvolvimento e expressão da cultura local. Os tipos de atividade que

ocorrem envolvem dança, teatro, música e outros.

Com relação às expressões materiais da cultura, observa-se alguns detalhes que marcam as

características locais, como a existência de construções circulares (especialmente as

destinadas à meditação e a encontros), os telhados de palha, as pinturas decorativas em

algumas edificações e as decorações da Casa das Artes com motivos regionais (bambu e

tecidos de chita). A noção de construção circular tem a ver com os princípios do local: “o

círculo permite uma maior circulação da energia, além de aproximar as pessoas”, conforme

explica uma moradora. O círculo daria ainda a noção de horizontalidade (todos se tornam

mais iguais no formato circular, não há posição de destaque, se formos tomar em comparação

com outros formatos). Além disso, o desenho dos templos refletem a integração mística com

os elementos da natureza.

No que toca às manifestações espirituais, as atividades da FTM são fortemente marcadas

pelos rituais xamânicos liderados pela mestra espiritual. Estes não são, entretanto, os únicos

(nem exclusivos) e mesmo estatutariamente a organização não pode promover nenhum tipo de

segregação religiosa. Além destes, a comunidade realiza rotineiramente atividades de yoga

pela manhã, além de estimular as manifestações individuais, como momentos meditativos nos

templos distribuídos pelo local.

A comunidade apresenta relativamente poucas restrições individuais, e algumas delas são a

observância aos horários estabelecidos para as refeições. Além disso, um princípio adotado (a

semelhança do IPEC) é que a louça individual deve ser sempre lavada por quem a utilizou.

d) Dimensão Política

No que se refere à participação dos moradores, a prática corrente é que todos participam das

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decisões, normalmente tomadas de forma colegiada. O próprio estatuto prevê que no conselho

curador seja composto por 1/3 de voluntários da fundação e que os outros 2/3 sejam

escolhidos pelos envolvidos na organização (incluindo gerências, voluntários, diretores, e

superintendente). A tomada de decisão acaba sendo também descentralizada, com cada

gerência tendo uma certa autonomia dentro da sua esfera de atuação. A liderança espiritual é

uma referência marcante, sendo uma instância de aconselhamento e, em alguns casos, de

decisão final, pela posição de respeito que goza entre os moradores. No entanto, é sempre

fomentado um processo de discussão e decisão horizontalizada.

Quanto à atuação pública no território, a Terra Mirim tem atuação mais relevante

especialmente no âmbito local, em temas que tocam à defesa das questões ambientais e

tradicionais da região. A instituição participa regularmente de conselhos sobre o assunto, além

de articular mobilizações em torno de temas de interesse público local. Neste sentido, teve,

por exemplo, papel importante na constituição, em junho de 2010, da Unidade de

Conservação e Reserva Biológica Fonte Nossa Senhora da Guia, primeira do tipo aprovada na

Câmara Municipal de Simões Filho, formada a partir de extensa articulação com as

comunidades do entorno. Nesta ocasião, uma moradora relata que houve um explosivo

processo de mobilização: “as comunidades foram chamadas e compareceram em massa nas

audiências públicas e na seção da câmara de vereadores”. Assim, a Fundação procura interagir

com as comunidades do entorno de diversas formas (realizando oficinas, mutirões, conversas,

encontros, etc), além de chamar o poder público local quando pertinente, no intuito de

fomentar a consciência cidadã na região.. Ainda no que se refere à articulação com as

comunidades do entorno, poderíamos apontar aqui novamente o trabalho realizado junto à

oito delas (conforme citadas na seção de descrição da experiência), especialmente direcionado

ao apoio a sua organização política e produtiva. Uma das metas desta articulação é a

constituição de um “conselho de anciãos” na região, conforme relato obtido na comunidade.

No que diz respeito às articulações externas, vemos que a FTM foi umas primeiras iniciativas

a se filiarem a GEN. Entretanto, ela não tem uma atuação muito ativa nesta rede, e se percebe

no discurso dos moradores que a ideia de ecovila não é presente nas discussões internas.

Parece que não existe uma oposição elaborada ou alguma restrição com relação a este

movimento, mas apenas uma ausência de participação nele. Também não há atuação junto ao

movimento da economia solidária, embora também este conceito não seja desconhecido dos

moradores. Neste caso, o posicionamento parece muito similar ao com relação ao movimento

das ecovilas, em que se percebe uma forte articulação externa, como já apontado, é nas ações

de defesa ambiental que se referem diretamente à região. Neste sentido a atuação junto ao

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poder público é sempre na busca do diálogo (ou da pressão, quando necessário) com vistas a

definir as melhores políticas para a localidade.

e) Dimensão Técnica/Ecológica

Esta é provavelmente a dimensão menos desenvolvida na experiência em análise,

principalmente tomando-se em conta a primeira parte dela ou seja o aspecto técnico.

Entretanto, existem diversos elementos que merecem ser destacados. Assim, com relação à

questão tecnológica, percebe-se, de forma geral uma baixa utilização de tecnologia social,

apesar de aparecer no que se refere aos tratamentos medicinais tradicionais, feitos a base de

ervas. Este conhecimento é utilizado no desenvolvimento de produtos da Sharimar e em

serviços prestados na Terra Mirim, por exemplo. Neste caso, a colheita dos produtos é feito

com base nos conhecimentos tradicionais das ervateiras da região.

Além disso, há uma forte identidade ecológica com o entorno da ecovila. Os moradores

assumem a defesa do ambiente mais próximo, protegendo-o e recuperando em ocasiões

específicas (ver o caso do Projeto Águas Puras e da luta pela criação da reserva, por

exemplo). Isto se dá porque existe um princípio que perpassa à comunidade e que busca

estabelecer uma intensa relação com o meio ambiente, estando também definida

estatutariamente. Esta relação tem suas bases na própria espiritualidade vivenciada no local, e

estabelece que deve haver uma relação de respeito e proteção “ao meio ambiente, à vida

vegetal, animal e mineral” (FUNDAÇÃO TERRA MIRIM, 2003, p. 3), devendo haver ainda

um “equilíbrio harmônico da ecologia, da vida comunitária e do trabalho” (Idem, p. 3).

Dentro da filosofia defendida na comunidade, entende-se que há uma identidade entre a

própria natureza humana e o meio que o cerca, de forma que se estabelece uma relação

mística e profunda entre estes, o que define, por fim, um dos propósito “firmes e

permanentes” da FTM: “colaborar para o desenvolvimento de uma ecologia integrativa em

que a natureza interna ao ser humano e natureza externa são consideradas interdependentes

(...)” (Idem, p. 2).

O principal esquema de reciclagem existente na comunidade é o da reutilização de resíduos

orgânicos, que são convertidos em composto após o seu descarte. A água utilizada tem

origem em poço artesiano, e não possui sistema de reaproveitamento ou tratamento, sendo

descartada em fossas convencionais (sumidouros). A energia que é consumida na ecovila é

toda proveniente da rede elétrica, e as técnicas construtivas utilizadas são, em sua maior parte

de base convencional. Neste caso, existem alguns elementos de técnicas alternativas, como é

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o caso de alguns telhados, feitos de palha e de partes de construção feitas de madeira local,

como já referido. Isto, entretanto, não representa um uso sistemático ou pautados pela ideia de

bioconstrução.

Por fim, a restauração ecológica é um elemento presente na FTM, como já apresentado na

seção anterior. Já foram realizados diversos processos de recuperação, tanto das matas da

região, quanto do Rio Itamboatá ou da Fonte da Guia. A Terra Mirim mantém, inclusive, um

viveiro com mudas de plantas para estas atividades (Figura 68). Não há, contudo, a adoção

sistemática de técnicas de permacultura (de fato este conceito parece também não estar

presente nas discussões internas da ecovila).

Figura 68: Viveiro de mudas de árvores. Fonte: autor

10.4 Considerações Sobre O Caso

Tomando-se os cinco elementos de Gilman (1991) que tipificam as ecovilas, temos para o

caso a seguinte situação: a) a comunidade do Terra Mirim possui uma escala humana, pelo

número de moradores e pelo fato de todos se reconhecerem e de poderem influenciar a

direção da comunidade; b) a experiência não pode ser considerada completa, nem mesmo

parcialmente, já que, como visto, ela tem poucos elementos que indiquem uma produção local

que atenda a demandas locais, restringindo-se à cozinha e à manutenção interna; c) com

relação a integração sem danos ao meio natural, a FTM tem algumas preocupações neste

sentido, entretanto parece ter ainda algum percurso a trilhar, especialmente se considerarmos

os ciclos da água e da energia, bem como as construções. O cuidado que existe com relação

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ao meio ambiente, baseado na lógica de integração e não de dominação, questão considerada

importante por Gilman (1991), entretanto, cria um bom precedente neste aspecto. Parece que

o que falta é mais uma instrumentação adequada para que se dê um efetivo uso das

tecnologias ambientais, já que os princípios da sua utilização já estão largamente presentes; d)

o desenvolvimento humano saudável parece ocorrer também nesta iniciativa, ao menos busca-

se o desenvolvimento nas diversas dimensões do ser humano. Inclusive, do ponto de vista

físico, a alimentação adotada é ovo-lacto-vegetariana, considerada mais saudável.

Com relação ao quinto ponto (e) da classificação do caso em discussão, a continuação da

experiência também deve ser pensada de maneira relativizada. As restrições, neste caso,

seriam um pouco diferentes do anterior, e estariam mais ligadas à questão técnica/ecológica

(especialmente à primeira parte dela, pela não presença de alguns elementos tecnológicos

ambientais), e, em parte, à dimensão política, pela liderança centralizada na figura da Mestre

Espiritual.

Uma informação que pode ser relevante nesta discussão, especialmente para se destacar o

perfil da sustentabilidade ambiental da Terra Mirim (embora não tenha entrado no marco

analítico pelas informações a mais que demandaria para o seu cálculo), é a sua “Pegada

Ecológica”. Este indicador foi calculado num trabalho de monografia da Escola de

Administração da UFBA (MELLER, 2010) e aponta que a comunidade Terra Mirim apresenta

um valor de 1,7 gha/ano, muito inferior ao valor médio brasileiro (2,9 gha/ano), ao mundial

(2,7 gha/ano), além de estar, também, abaixo do nível máximo para a regeneração da Terra

(1,8 gha/ano) o que indica que as práticas adotadas são muito mais adequadas que a média

geral em se tratando da dimensão ambiental.

Com relação à leitura a partir do quadro da economia solidária, podemos perceber que a) o

caso em estudo apresenta expressões dos três princípios econômicos, conforme apontado na

dimensão econômica; b) existe autonomia institucional, especialmente considerando-se que

grande parte da receita é proveniente de contribuições dos moradores; c) os moradores e

voluntários participam dos processos decisórios; mas há uma papel preponderante da

liderança espiritual; d) a FTM interage fortemente com as comunidade do entorno; e) a

finalidade multidimensional se dá pelo fato de a comunidade ter outros objetivos para além

dos econômicos (esta dimensão é até, em certos momentos, deficitária, sendo um dos grandes

desafios da organização o seu desenvolvimento).

De forma geral, o caso aqui apresentado possui também uma boa aderência à sustentabilidade

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conforme estamos aqui discutindo. Diferentemente do caso anterior, a ênfase da comunidade

Terra Mirim estão mais nas dimensões social/comunitária e cultura/espiritual, o que é

resultante dos propósitos e princípios definidos na sua fundação. De fato, a “cola” da

comunidade parece estar mais no segundo elemento citado. As demais dimensões, entretanto,

não são negligenciáveis, pois mesmo não havendo um desenvolvimento do aspecto técnico-

ambiental, por exemplo, a dimensão ecológica é contemplada em parte pelos princípios e

diversas práticas desenvolvidas no sentido de se obter uma efetiva integração à natureza.

Além disso, a questão econômica, apesar de ser considerada um dos pontos fracos da

experiência pelos seus moradores, possui elementos importantes na análise, especialmente se

considerarmos que as fontes mercadológicas não são as únicas fontes econômicas legítimas.

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11 A ECOOVILA 1 – ARCOO

11.1 Caracterização E Histórico

A constituição da Ecoovila 1 foi precedida pela fundação da Arcoo, em 1992. Esta última é

uma cooperativa de trabalho fundada por um grupo de profissionais que se interessavam pelo

tema de construções sustentáveis, e que atuam em campos como planejamento urbano e

condominial, decoração e outros correlatos. A ideia da ecovila começou a se concretizar

efetivamente a partir da criação do setor de habitação na cooperativa, em 2001. Nesta fase de

operação a cooperativa passou a abrir a possibilidade de ingresso a todos interessados em

participar da proposta, a partir da ideia de que os moradores da ecovila fossem também

associados da cooperativa.

O ingresso na cooperativa passou a se dar, então, a partir de planos de poupança, que

representavam integralizações de cota, com o objetivo de adquirir o terreno para as

construções, urbanizá-lo, elaborar os projetos técnicos e construir as residências individuais e

as coletivas previamente estipuladas.

O terreno pôde ser adquirido no primeiro ano da criação do setor habitação, já que o valor

integralizado pelos sócios que haviam entrado até então já representava o montante necessário

para a compra. O plano urbanístico foi também realizado em seguida, restando a construção

das unidades individuais, que seria realizada conforme a disponibilidade financeira de cada

associado.

O terreno adquirido tem 26.000 m², e é situado na zona sul da cidade de Porto Alegre (bairro

Vila Nova), na Estrada João Passuelo. É uma região da cidade com urbanização recente, em

que se observa ainda uma baixa taxa de ocupação de terrenos, contendo ainda alguma

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vegetação nativa, porém esparsa.

O plano proposto para o assentamento pode ser visto na Figura 69. Ele prevê a instituição de

uma área de jardim individual de 200 m² e outra de 18.000 m² para uso coletivo, sendo 8.000

m² destes reservados para o bosque nativo, preexistente no local.

Figura 69: Implantação da Ecoovila 1 no terreno

A construção das casas se deu no transcurso dos anos seguintes, sendo que atualmente 23 das

28 casas individuais inicialmente previstas já foram construídas. Os projetos seguem um

padrão, tendo, entretanto, itens customizáveis, procurando equilibrar as propostas de

construção segundo os pré-requisitos ambientais definidos e as necessidades de cada família.

Alguns detalhes das construções podem ser vistas na Figura 70.

Figura 70: à esquerda, parreiras de duas residências, utilizadas como garagem; à direita bananeiras para o tratamento das águas servidas

Para a execução dos trabalhos (produção das habitações), foi definido um subsetor de

trabalho, dentro do setor de habitação da cooperativa, através do qual todos os trabalhadores

que atuaram na construção foram também associados à cooperativa. Isto cumpriu uma dupla

função: o amparo legal aos trabalhadores e a sua integração aos princípios adotados pela

cooperativa.

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A cooperativa, desde 2005 vem, entretanto, passando por dificuldades de gestão devido a

conflitos internos, sendo que algumas propostas iniciais não foram colocadas em prática,

devido a uma certa paralisação em suas atividades. As propostas hoje adotadas (e as previstas)

serão apresentadas na seção seguinte, ao se analisar o caso, segundo o modelo de leitura

proposto. Além disso, alguns elementos ligados à questão ambiental também tiveram

dificuldade de implantação, em função de imposições dadas pelo poder público municipal por

ocasião da liberação dos projetos, como por exemplo, os sistemas de tratamento da água.

Os conflitos surgiram a partir das divergências com relação ao uso do recurso financeiro

acumulado pelos sócios. Houveram desconfianças com relação à sua administração, de forma

que um processo de troca de acusações fez com que minasse os processos políticos de

construção coletiva da proposta. Tal conflito deu origem, inclusive, a litígios judiciais, que se

arrastavam até o momento da realização desta pesquisa.

11.2 Leitura Conforme O Marco Analítico Da Sustentabilidade

a) Dimensão econômica

A iniciativa permitiu a geração de trabalho e renda de duas formas: pela geração de cerca de

40 postos na construção das casas e pela compra de materiais para as construções no próprio

bairro. O número de pessoas trabalhando diretamente na construção das casas variou durante

todo o processo pelo próprio ritmo das obras, e atualmente apenas uma casa encontra-se em

construção, com um número muito mais reduzido de trabalhadores.

Os recursos utilizados para os elementos em comum da ecovila são essencialmente da

poupança coletiva, ou seja, das cotas integralizadas por cada um dos associados da

cooperativa, o que representa uma forma que se insere num tipo de lógica não-mercantil.

Todos os associados devem contribuir com um valor mínimo (embora não necessariamente no

mesmo momento) de forma a se constituírem os recursos suficientes para construir todos os

espaços comuns do local, como os elementos da infraestrutura (além da compra do terreno).

Quanto aos empreendimentos gerados na iniciativa, existe, em primeiro lugar, a própria

cooperativa de trabalho, preexistente à ecovila, que abriga profissionais da área da habitação

(arquitetos, engenheiros, pedreiros, etc). Uma segunda iniciativa prevista é a própria gestão da

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ecovila, que deveria gerar outros postos de trabalho. Seguindo a ideia de redução dos custos

condominiais, cada casa deveria cultivar no espaço reservado para o estacionamento dos

carros uma parreira de uvas (Figura 70), cuja produção deveria cobrir os custos desta

manutenção. Além destas iniciativas, também estava previsto um espiral de ervas em cada

residência, a ser utilizado a critério de cada família para o seu consumo próprio. Estas

iniciativas foram parcialmente implantadas (a parreira de uvas e a espiral de ervas estão

produzindo em diversas residências), porém não foi colocada ainda em prática a utilização da

produção de uvas com o propósito da geração de recursos para a manutenção condominial.

A proposta da ecovila incluía ainda a construção de um espaço de serviços dentro da ecovila,

a ser utilizado por diversos profissionais (engenheiros, médicos, fotógrafos, etc), além de sede

administrativa do local e da cooperativa e de servir de espaço para educação ambiental (ver

Figura 71). Este espaço se encontra, entretanto, desativado atualmente, pelo desmantelamento

das propostas de ação coletiva dadas pelos conflitos que surgiram no local.

Figura 71: Sede administrativa da cooperativa. Fonte: autor

b) Dimensão social/comunitária

Não se percebe uma coesão social forte na ecovila, pelo menos no presente. Tal fato pode ter

sido gerado pelos conflitos que ocorreram no interior da cooperativa, já citados previamente,

que dividiram e afastaram os moradores. As reuniões periódicas para discussão dos propósitos

comuns, que existiam na ecovila até a intensificação dos conflitos, não existem mais. Isto

provocou a decisão de converter a administração da ecovila aos moldes comuns adotados

pelos condomínios, em prejuízo da proposta de organização coletiva inicial.

Sobre esta dimensão, pode-se dizer que havia ainda, no projeto original, uma proposta de

utilização do Bosque do Silêncio para educação ambiental e arrecadação de fundos para

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manutenção da ecovila, função que atualmente não está sendo utilizada, já que as intenções de

educação ecológica também não foram coladas em prática.

c) Dimensão cultural/espiritual

A dimensão cultural pode ser evidenciada na proposta de urbanização e de construção das

casas, cujos elementos se inspiram na identidade cultural italiana, já que esta é identificada

como parte dos moradores. Isto é marcado especialmente pelas parreiras de uva em frente às

casas. Fora estas traços, não foram identificadas atividades culturais ou espirituais coletivas

ou comunitárias na ecovila.

d) Dimensão política

A dimensão política é um dos traços marcantes da experiência, já que ela surgiu a partir da

forma organizativa de uma cooperativa, que envolveram discussões e articulações com todos

os membros da ecovila. Este elemento, entretanto, representou o centro da própria

desarticulação da construção coletiva a partir do momento em que os moradores passaram a

divergir mais seriamente sobre algumas questões específicas.

A experiência não se articula com outras similares (no movimento de ecovilas, por exemplo),

embora houvesse a intenção na sua fundação (prevista estatutariamente) em se vincular às

redes internacionais.

e) Dimensão ambiental/ecológica

Esta dimensão é provavelmente a mais desenvolvida na ecovila estudada, ou pelo menos a

mais cuidadosamente planejada. Muitas tecnologias adotadas foram baseadas na

permacultura, e envolvem a utilização de: tratamento dos efluentes cloacais e de água cinza de

forma separada, com filtros naturais de palha e brita e absorção da água com bananeiras (ver

Figura 72); utilização de telhados verdes (com exceção de duas casas) e dutos de circulação

natural para climatização da residência, que toma o ar da área externa, proveniente do espiral

de ervas (ver Figura 73); painel solar (em algumas residências) para aquecimento de água;

orientação solar adequada para aproveitamento da luz e do calor natural, amplas aberturas,

paredes e vidros duplos e lareira com cinco atuações, inclusive com aproveitamento do calor

no inverno. A espiral de ervas e a parreira de uvas também complementam a proposta

ambiental, com a já referida produção orgânica de alguns alimentos.

O projeto previa também a utilização de composteiras individuais (tratamento do lixo

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orgânico) e captação das águas pluviais. Estas estratégias não foram adotadas, assim como

parte do esgoto também não está recebendo ainda tratamento conforme descrito acima.

Figura 72: Filtro de águas cinzas

Figura 73: Detalhes do duto de ventilação natural, do painel solar e do telhado verde

11.3 Considerações Sobre O Caso

A experiência estudada é facilmente classificada, enquanto intenção, como uma ecovila,

segundo seus dois propósitos básicos, que são o de buscar uma outra forma de relacionamento

com a natureza, mais integrada e o de constituir uma forma de convivência humana também

sobre bases diferenciadas, mais comunitária e cooperativa.

A experiência, ao ser posta junto as demais pode servir como um caso de contraste. Isto

porque, ao analisarmos a prática observa-se que, no momento atual, a Ecoovila 1 não

consegue experienciar todas as dimensões da sustentabilidade, mesmo que muitos de seus

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elementos tivessem sido previstos e de fato tentados na sua constituição. As dimensões mais

intensamente desenvolvidas nesta experiência foram a política e a ambiental. Além de ambas

serem as intencionalmente mais trabalhadas, temos, de um lado, o fato de a ecovila surgir

justamente de uma proposta advinda da articulação em torno de uma cooperativa de trabalho

(e habitação) e de outro, a questão de, no seu planejamento, serem inclusas cuidadosamente

diversas soluções ambientais de baixo impacto e integradas ao meio ambiente.

Em que pese a maior ênfase nesta duas dimensões, destaca-se que a econômica e a social

também tiveram atividades planejadas, como as questões de geração de renda, compra local e

a preocupação com a educação ambiental. Alguns elementos da dimensão econômica

puderam ser colocados em prática na construção da ecovila, mas esta dimensão apresenta hoje

poucas atividades sendo realizadas. Já a dimensão social/comunitária apresentou poucos

elementos em ação, desde o início das atividades, e não se observou uma vivência

comunitária mais intensa entre os moradores.

A dimensão cultural/espiritual se apresenta na inserção de elementos da cultura italiana na

experiência. Entretanto, não há a presença do elemento espiritual, o que por si só não deve ser

considerado como desqualificador, dada constatação de que algumas ecovilas reconhecidas

como tais também não enfatizarem esta questão.

Fato que chama atenção e que não pode deixar de ser destacado é o processo de

desarticulação vivido na cooperativa, por conta dos conflitos internos que surgiram. Tal

situação contribuiu fundamentalmente para a depreciação de algumas propostas, nas diversas

dimensões citadas. Com isso, embora nem todas as ações apontadas nos indicadores tivessem

sido previstas, boa parte delas era contemplada no planejamento inicial da ecovila.

Além disso, e provavelmente em função destas questões, a prática, hoje, não pode ser

plenamente entendida como sendo de economia solidária. Mais uma vez, enquanto proposta

havia uma aproximação maior com todos os critérios apontados. Embora, não haja uma

classificação rigidamente marcada para as práticas de economia solidária, algumas

características importantes não são mais observadas, como a sociabilidade comunitário-

política e a pluralidade dos princípios econômicos.

Estas considerações não afastam totalmente a experiência do quadro analítico traçado,

especialmente se considerarmos as diversas modificações que ela consegue construir frente ao

modo de viver e de pensar da sociedade contemporânea. É uma experiência que se concretiza

materialmente enquanto local de viver diferenciado, especialmente nos aspectos ambientais e

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políticos. Pode até haver (embora em reduzidíssimo número no RS e provavelmente sem

todas as soluções ambientais apontadas) empreendimentos que procurem se harmonizar com o

ambiente, mas nenhum deles (excetuando-se os casos de outras ecovilas em estágio de

constituição no estado) se constrói politicamente articulado como neste caso, em que cada

morador se envolve no processo e em que os custos e dividendos são distribuídos, de alguma

forma, entre os envolvidos.

Devido a estes elementos, podemos concluir que esta é uma experiência que fornece um

grande espaço para o aprendizado, permitindo, com isto, a aquisição de conhecimentos para o

refinamento do quadro analítico proposto neste trabalho.

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CONCLUSÃO

Apontamos como questão problema deste trabalho a seguinte pergunta: “em que medida a

lógica da sustentabilidade nas ecovilas se define enquanto economia solidária?”, o que

implicava no seguinte objetivo geral: “entender como as ecovilas se organizam em temos

socioeconômicos a partir da leitura das suas práticas de sustentabilidade e como elas se

articulam segundo os marcos desta outra economia.”

Este objetivo geral se desdobrou em quatro específicos, a fim de ajudar a operacionalizar a

pesquisa. Em uma breve avaliação, podemos tentar perceber até que ponto cada um destes

objetivos foram atendidos:

a) Mapear os marcos teórico-analíticos bem como as práticas relativas ao tema da economia

solidária relacionadas com o objeto em estudo. Tal objetivo se definiu a partir dos

referenciais teóricos elencados, que se mostraram, ao final (como se verá logo mais),

pertinentes ao objeto de estudo. Buscou-se, no contexto nacional, uma pesquisa exaustiva

sobre as práticas do tema ecovilas, especialmente no material acadêmico disponível online.

No contexto internacional, esta exaustão foi menos possível devido às limitações de acesso ao

material disponível. Além disso, o que se observou foi a inexistência de trabalhos em

economia solidária que remetessem ao objeto de estudo. De qualquer forma, em qualquer um

dos contextos (nacional e internacional), observa-se uma incidência baixa de trabalhos

acadêmicos associados aos termo ecovila (ecovillage) e aos nomes conhecidos das ecovilas.

b) Propor uma metodologia para análise da sustentabilidade em ecovilas. Esta metodologia

surgiu como resultado das discussões apontadas em função do objetivo anterior, da

observação das práticas, bem como de elementos do debate que se dá em torno do tema

sustentabilidade. Foi possível definir um quadro analítico a partir daí, que serviu para realizar

a leitura de práticas na esfera nacional e uma tentativa de leitura de práticas na esfera

internacional (já que, neste caso, não se dispunha de todos os dados, muitos apenas passíveis

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de obter por meio uma pesquisa direta).

c) Compreender e mapear os princípios adotados pelas ecovilas no que toca à questão da

sustentabilidade. Estes puderam ser observado na pesquisa, e estão conectados com os

debates realizados; alguns deles (como os relacionados com a ética ecológica e, mais

especificamente, com a ecologia profunda) são mesmo utilizadas como referências pelas

próprias práticas;

d) Definir as práticas de sustentabilidade mais utilizadas pelas experiências pesquisadas.

Este ponto está intimamente ligado ao anterior, de forma que os dois acabam sendo

observados em conjunto. As práticas analisadas foram classificadas conforme o marco teórico

utilizado. Pode-se perceber que há um elenco de práticas e princípios comuns adotados pelas

ecovilas, como também se verá logo adiante.

Em função destes propósitos, dois foram os pressupostos definidos para o presente trabalho.

Começaremos por analisar o segundo, que permitirá a utilização de uma cadeia de argumentos

mais fluida até se chegar ao primeiro:

Pressuposto 2: levando-se em consideração que as ecovilas articulam uma

multiplicidade de dimensões no que toca às suas práticas de sustentabilidade (entre o

econômico, o social, o cultural, o político e o ambiental), observa-se variações no

modo que cada experiência a define, em razão da maior ênfase em uma ou outra destas

dimensões.

Este pressuposto nos remete ao exercício de procurar definir o que há em comum entre as

práticas e o que as distingue. Dentre os elementos em comum, pontuando-se a observação das

experiências nacionais com os dados das internacionais, podemos evidenciar nove traços

gerais:

a) Há uma efetiva articulação de diversas lógicas econômicas em cada experiência. Nos

casos estudados, a lógica não-mercantil se dá pela utilização de recursos público-estatais,

através de convênios de descentralização de recursos dos governos, num reconhecimento de

que as práticas articulam ações de interesse público, além de recursos provenientes de

institutos e fundações privadas que trabalham com a noção de responsabilidade

socioambiental. Há ainda alguma redistribuição por meio de reaplicação de recursos

individuais (taxas) em benefícios da comunidade (como é o caso da FTM). No cenário

internacional, uma prática comum é a utilização de fundos coletivos que investem na melhoria

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das condições de infraestrutura local e, em alguns casos, no financiamento de

empreendimentos locais, caracterizando práticas de finanças solidárias. A lógica não-

monetária se manifesta em todas as experiências por meio da prática de trabalho voluntário. Já

a lógica mercantil está presente tanto nos serviços prestados coletivamente pelas comunidades

(cursos, assessorias, estadias, etc) quanto nos pequenos negócios que surgem em cada uma

delas. A distribuição entre os três tipos de fontes de recurso varia conforme o caso, entretanto,

percebe-se uma predominância do terceiro tipo ou seja, o mercadológico. No entanto, mesmo

a utilização da lógica de mercado, aqui, assume algumas singularidades, dada pela regulação

comunitária do seu funcionamento: ela tem que estar submetidas às normas locais, como é o

caso do “DNA sustentável” no caso do IPEC, ou estabelecer uma parceria formal com a

instituição que regula a comunidade, como no caso da FTM. Assim, estes empreendimentos

passam a estar conectados também aos interesses coletivos de forma direta, e não abstrata

como pressupõe a ideia econômica clássica78.

b) As experiências combinam a existência de empreendimentos coletivos e individuais. Há

quase sempre um alto grau de empreendedorismo em cada experiência. Esta prática é

normalmente fomentada por princípio, já que se busca que todos os moradores estejam ao

máximo possível empregados localmente e que haja uma conexão entre a produção e o

consumo local. Aqui, há uma certa diversidade, em que as práticas poderiam ser classificadas

desde as que articulam mais empreendimentos individuais (como Crystal Waters, por

exemplo) até aquelas com o maior número de empreendimentos coletivos (como Auroville,

em que não há propriedade privada e todo investimento privado reverte no coletivo, mesmo

que temporariamente ele seja mais usufruído no âmbito mais individual). Os casos aqui

estudados se colocariam mais num nível intermediário, com os moradores combinando suas

atividades individuais com o trabalho ligado à ecovila. Há, em todos os casos, uma

interessante combinação da liberdade individual para empreender com compromisso destes

empreendimentos a um interesse maior, ligado à comunidade. O empreendedorismo

individual está aqui dissociado da ideia de acúmulo e de exploração do trabalho alheio,

mesmo no caso em que há empregados contratados. Além disso, ele geralmente está ligado a

temas que revertem em benefícios tanto de outros indivíduos quanto do coletivo79.

78 A de que cada indivíduo, no jogo de mercado ao buscar a satisfação do seu interesse egoísta estaria satisfazendo automaticamente aos interesses de outros indivíduos.

79 Aqui não vale a contra-argumentação tipicamente liberal de que “qualquer atividade de mercado traz em si benefícios, traduzidos no interesse de compra de alguém”. Primeiro, porque há muitos produtos em que isto poderia ser colocado claramente em dúvida, como o consumo de cigarros, por exemplo. Segundo, e mais importante, é porque o que se quer frisar, neste caso, é que a decisão normalmente tem um cunho mais substantivo, ou seja, não está baseado na lógica de “oportunidade de mercado”, embora esta possa ser avaliada antes da decisão de empreender.

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Neste sentido, os empreendimentos suportam uma certa diversidade, mas estão mais ligados à

prestação de serviços (conquanto apareçam produtos como a confecção de painéis solares –

fotovoltaicos inclusive), que vão desde assessorias até tratamentos de saúde (geralmente na

lógica holística), passando por serviços ligados à área de TI e de manutenção e jardinagem. É

interessante notar também que, apesar da orientação para a autossuficiência local, a maioria

destes serviços acaba atendendo mais ao público externo da ecovila, seja ele de visitantes ou

não.

Como muitas vezes a vinculação entre a produção e o consumo local acaba não sendo

atendida espontaneamente pelas iniciativas individuais, os empreendimentos coletivos

encampados pela comunidade acabam, estrategicamente, assumindo alguns papéis neste

processo. Este é o caso, por exemplo, da produção de alimentos local, das cozinhas

comunitárias, dos serviços de manutenção e dos fundos financeiros coletivos. Além desses,

geralmente também são de responsabilidade coletiva os centro de formação e os sistemas de

acomodação (com algumas exceções, que aparecem também por iniciativas de indivíduos).

Muitos destes empreendimentos aparentemente só podem ser organizados assim

(comunitariamente), pela sua natureza ou pela necessidade de legitimação. Por fim, todos

estes elementos estão presentes em todos os casos estudados, exceto o cultivo de alimento

organizado coletivamente, que não se dá em Terra Mirim (embora já tenha sido feito e há um

espaço reservado para esta prática, conforme planos da comunidade) e em Crystal Waters,

que, aparentemente conta com a produção de alimentos apenas no contexto

familiar/doméstico.

c) Os vínculos estabelecidos entre os moradores são escolhidos. De fato, isto não apresentaria

novidade, já que poderia ser tomado como um traço típico de uma comunidade intencional.

Entretanto, quando se analisa esta questão, deve-se compreender o propósito das pessoas em

aderir a uma ecovila: neste caso, ele não está só ligado à questão ambiental, mas também, à

social. Normalmente (como indicam os depoimentos colhidos), a intenção está ligada à

possibilidade de (re)construção de laços sociocomunitários, ou seja, da (re)definição de

vínculos perdidos pela forma de vida formada pela sociedade de mercado. Além disso, a

busca é por uma vida “integral”, ou seja, com a experimentação saudável nas diversas

dimensões da vida humana, o que incluiria também a questão espiritual. Isto não torna,

necessariamente, a convivência social mais simples, já que se observa que uma das limitações

das ecovilas está justamente na certa rotatividade e flutuação das suas populações (as

experiências do IPEC e da FTM já passaram por diversas dificuldades do tipo, estando,

aparentemente a população da FTM mais estabilizada no momento). No entanto, este fato faz

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com que a questão da sociabilidade seja trabalhada de forma consciente nas ecovilas. Reflexo

disto, é que geralmente são instituídos processos de resolução local de conflitos, nos mais

diversos formatos.

d) As ecovilas trabalham sempre com a noção de saúde integral ou complementar. Em todas

as experiências estudadas está presente esta ideia, em maior ou menor grau. Normalmente,

naquelas com uma dimensão espiritual mais desenvolvida, esta questão também se apresenta

mais instituída. Entretanto, todas tem, ao menos, práticas de utilização de remédios

alternativos (ervas medicinais), e a concepção da vinculação da saúde a uma prática diária que

inclua melhor alimentação, meditação, trabalho significante, ligação com a natureza, água

apropriadamente tratada, cultura e convivência social desenvolvidas, moradia apropriada,

apoio mútuo, etc.

e) O trabalho com educação é central nas ecovilas. Todas as ecovilas contam com instituições

internas constituídas com este propósito (geralmente são denominados ecocentros, centros de

educação ecológica ou similares). Grande parte do tempo e dos recursos são despedidos em

torno destas atividades que são, por outro lado, uma de suas principais fontes de recursos. São

ofertados, de forma mais ou menos contínua, diversos tipos de cursos, que variam tanto em

tempo de duração, nível de imersão ou temas tratados. A maioria dos temas está relacionado

com a questão ecológica, espiritualidade, permacultura e outros associados à questão das

ecovilas. Nos casos sob estudo, uma prática comum é a também a oferta de cursos para as

comunidades do entorno, especialmente no sentido de promover a disseminação das práticas

agroecológicas, mas também no de realizar a autodesenvolvimento destas comunidades. No

caso da FTM, há ainda outra particularidade, que é a constituição de uma escola com

educação complementar para os jovens das comunidades do seu entorno. Neste caso, existem

práticas similares, como a da ecovilla Crystal Waters, por exemplo. Aqui aparece um

elemento de orientação para o exterior, dentro do que seria uma das vocações das experiências

e quem sabe um dos seus serviços mais relevantes prestados à sociedade como um todo.

f) Há um estímulo para a realização de atividades culturais e espirituais. Aqui há também

certo grau de variação, já que algumas ecovilas são mais centradas nas atividades ligadas à

espiritualidade, e promovem, com certa frequência, eventos como vivências e encontros. No

entanto, todas tem algum nível de atividade ligada a este ponto, mesmo que seja expresso

individualmente ou em pequenos grupos. No que toca à questão cultural, os encontros são

aparentemente ainda mais generalizados quando se olha para as experiências como um todo.

Importante destacar, que todos estes tipos de práticas são realizadas com base numa noção de

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universalidade (a maioria das experiências coloca isto de maneira formal, inclusive).

Nenhuma experiência é vinculada à doutrina religiosa específica, de forma que cada um possa

se expressar livremente, desde que isto não fira as regras de convivência coletiva definidas no

local. Dentro deste espírito de não sectarismo, é interessante notar que, nas ecovilas visitadas,

as pessoas geralmente não se referem diretamente as suas religiões, mas sim sobre suas

práticas espirituais.

g) O sistema de governança é definido sempre pela existência de espaços e processos

democráticos de decisão, que normalmente são tomadas a partir do consenso. Todas as

experiências instituem estes espaços e a algumas elegem os dirigentes por voto direto por um

mandato específico. Nos casos analisados, chama a atenção a existência de figuras fortes de

liderança, que se mantém mais à frente do processo. Entretanto, para além disto, os espaços de

decisão compartilhada são sempre presentes, e estão abertos para a participação de todos os

envolvidos diretamente na experiência. É prática comum também a descentralização de

atividades e delegação das decisões para o nível dos grupos de trabalhos (ou segmentos) das

experiências, como por exemplo responsáveis pelo “cultivo de alimentos”, ou pelo

“desenvolvimento e aplicação tecnológica” ou ainda pelos “cursos e capacitação”, etc.

Interessante é perceber que mesmo naquelas experiências constituídas pela força de uma

liderança específica este processo também ocorre. Um dos casos mais emblemáticos neste

sentido, pela longevidade e pela dimensão é Auroville. A comunidade foi criada pela

influência de uma significativa liderança espiritual, o que de certa forma segue uma tradição

do país (Índia), mas sobreviveu com muita vivacidade à sua morte, sem porém, continuar o

legado de liderança centrado em um indivíduo. O governo do local está institucionalizado nos

processos democráticos estabelecidos, que promovem a integração da experiência, e que

sobrevivem às trocas de indivíduos. De fato, é difícil encontrar uma referência a nomes de

dirigentes nos materiais escritos sobre a experiência, exceto de um ou outro responsável por

um programa específico dentro da ecovila, o que parece remeter a um formato anárquico de

gestão que mereceria um estudo aprofundado. As experiências que analisamos no contexto

brasileiro, também, com a existência de lideranças que são fortes referências para as

comunidades, e que ajudam a promover estes espaços de construção democrática. Entretanto,

pela vida relativamente mais curta destas comunidades é difícil inferir sobre sua continuidade

para além da influência destas lideranças.

h) São experiências marcadas pela existência de uma articulação comunitária relevante,

especialmente no contexto em estudo (não se pode afirmar sobre as experiências

internacionais, já que não existem dados acadêmicos facilmente disponíveis sobre este

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assunto); todavia, elas parecem receber críticas com relação a este aspecto (ver Fotopoulos

(2000), Garden (2006a) e Dawson (2009)). Dawson (2009) afirma que este elemento é

considerado vital nos processos de consolidação e continuidade das ecovilas, especialmente

frente a um contexto de mudanças sociais severas que provavelmente virá em breve. Isto

porque, somente com o apoio das comunidades do entorno, que se dará mediante uma

interdependência recíproca é que a sobrevivência da ecovila poderá se dar.

Esta articulação comunitária varia em extensão e intensidade. Embora as ecovilas tenham um

perfil diferenciado com relação ao seu entorno (e nos casos em esutdo, sejam oriundos

também, de grupos sociais distintos), é perceptível a articulação de práticas conjuntas.

Normalmente, as ecovilas interagem com estes grupos a partir de cursos e projetos

específicos, com o intuito de apoiar a sua organização e articulação interna. Também são

organizados mutirões conjuntos com o propósito de realizar a restauração ecológica do

entorno. Além disso, as ecovilas participam de muitos processos políticos (especialmente

locais, na esfera municipal) onde estão inseridas, procurando influenciar as políticas públicas

vinculadas à região. A dificuldade parece ser maior quando esta articulação deve se dar em

outros níveis, como por exemplo, com o poder público estadual ou federal.

i) Há uma redefinição na relação com o meio natural, tanto em termos de postura (valores e

práticas individuais), quanto em termos tecnológicos e comunitários. Isto está presente em

elevado grau, até onde se pode perceber, em todas as experiências apontadas. Aqui vale

destacar que prevalece mais a noção de consideração pela natureza pela seu valor intrínseco,

ou seja, como um ente que merece respeito e um tratamento digno, como um sujeito,

definindo-se uma relação, em muitos casos, mística com o meio natural, numa lógica que

mais se aproxima da ecologia profunda. Tal visão prevalece sobre aquela que trata de uma

ética intergeracional, no sentido da garantia dos direitos da geração futura, nos moldes das

definições tradicionais do desenvolvimento sustentável e das discussões sobre o princípio

responsabilidade. Isto se traduz nas práticas de restauração ecológica e de conservação da

biodiversidade do entorno, bem como no uso de tecnologias ambientais. Estas tecnologias tem

o viés de tecnologias sociais, ou seja, apresentam baixo impacto, tem baixo custo, e são de

simples confecção e aplicação. Geralmente elas são também socialmente referenciadas e

desenvolvida para e a partir das especificidades locais, o que permite sua fácil disseminação.

Uma exceção com relação às tecnologias é a comunidade do Terra Mirim, posto que, utilize

algumas técnicas, como reciclagem e compostagem, além de cultivo orgânico ainda não

apresenta um uso disseminado destas tecnologias.

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A partir destes nove traços mais gerais, poderíamos buscar uma definição mais concisa para as

ecovilas. Tomaremos a definição de Gilman (1991) como ponto de partida, redefinindo alguns

de seus elementos. Em primeiro lugar, devemos relembrar as limitações de alguns dos pontos

elencados pelo autor. O primeiro deles se refere à definição de “assentamento completo”. Este

é um conceito que apresenta alguma dificuldade para ser utilizado como distintivo de uma

prática de ecovila, já que uma comunidade nunca conseguirá ser completa; mesmo na

hipótese de ela adquirir certa autossuficiência e se fechar para a troca com o mundo exterior,

provavelmente haveria grandes prejuízos ao modo de vida dos seus moradores. O próprio

Gilman assume que isto não seria desejável. Poder-se-ia afirmar, então, que este é um

conceito a ser relativizado, mas até que ponto? Autossuficiência em produção de alimento é

suficiente, ou precisaria algo mais? O que seria este algo mais? Seria necessário um parâmetro

para definir este elemento, pois a grande maioria dos assentamentos humanos (sendo ele

ecovila ou qualquer outro), a partir de um certo tamanho conta com uma série de serviços

oferecidos localmente. Parece que mais importante do que a quantidade de serviços e

produtos seria o como eles se organizam e como eles se inserem na dinâmica da comunidade

como um todo.

Neste sentido, deveríamos considerar que as ecovilas, sob este aspecto, redefinem (ou

superam) o paradigma econômico dominante: há o rompimento com a lógica reducionista de

mercado, pela definição de uma economia plural, que inclui outros princípios (que implicam

em outras práticas, como as ligadas à ideia de redistribuição e reciprocidade já citadas) e que

restringe o mercado a certos espaços e atividades e o submete, no âmbito local, a outros

imperativos, realizando uma “reimbricação da economia na sociedade”, se fôssemos utilizar a

linguagem polanyiana. Estes outros imperativos estariam ligados às questões comunitárias e

ambientais, o que levaria ao fato de os empreendimentos estarem, por um lado, ligados aos

interesses da comunidade e, por outro, submetidos às determinações das questões ambientais.

Neste caso, o meio ambiente não seria só mais uma variável a mais a ser considerada na

equação da viabilidade ou das definições de investimento80, mas sim um imperativo

categórico.

Outro ponto que merece uma análise mais aprofundada é o que se refere ao “desenvolvimento

humano saudável”. O problema deste tipo de consideração é que “desenvolvimento humano

saudável” é uma assertiva por natureza carregada de valor. Cada cultura e, talvez, cada ecovila

80 As decisões de investimento relativizam sempre a variável ambiental quando os prováveis benefícios econômicos superam os prováveis impactos ambientais negativos. Isto é especialmente válido em decisões que envolvem empreendimentos de grandes proporções.

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pode ter sua própria consideração sobre o que seria saudável ou não. É claro que alguns

elementos provavelmente seriam universais, especialmente se considerarmos a saúde física.

Entretanto, a definição comporta uma dimensão substantiva, nos moldes apontados por

Guerreiro Ramos.

Com relação ainda a este ponto, uma limitação que consideramos importante é que apesar da

definição tocar na questão do desenvolvimento humano, não fala nada sobre os indivíduos nas

ecovilas. Teríamos ainda que levar em conta a questão da intenção, conforme comentado

acima (item c). Aderir a uma ecovila significa abrir mão de práticas comuns e mesmo

estimuladas pela sociedade moderna, como o consumo exagerado e a busca pelo conforto sem

levar em consideração as consequências desta busca. Chega um momento, no entanto, que a

renúncia a estas questões não é mais um custo, mas uma necessidade individual.

O último elemento da definição de Gilman também mereceria certa especificação. A

“continuação num futuro indefinido” remete à noção de sustentabilidade, que não deve ser

considerada apenas no seu aspecto ambiental. Não adianta uma comunidade estar

perfeitamente “azeitada” ao que se refere às práticas ambientais, se o grupo não tem uma

interação social que permita a continuidade da experiência, ou se não existir uma

institucionalidade política que permita a continuidade dos processos de gestão e de articulação

da proposta.

Por fim, há um elemento que consideramos relevante numa definição de ecovila, e que não

aparece na definição de Gilman. É o fato de estas práticas serem orientadas para fora, ou

seja, realiza ações voltadas também para a sociedade como um todo, pelo menos no contexto

das experiências que analisamos. Isto é o oposto do que ocorria com a maioria das

comunidades hippies dos anos 60 e 70 ou das comunidades ligadas ao socialismo utópico do

século XIX, que estavam mais voltadas para si e buscavam o isolamento da sociedade da

época, na tentativa de, a partir do seu movimento, construir uma sociedade melhor. As

ecovilas estão conectadas com o mundo de diversas formas (algumas delas indesejáveis,

através do consumo de embalagens ou combustível fóssil, por exemplo), quer por meio das

suas práticas de educação sobre as questões ambientais, sempre muito concorridas em termos

de participação, quer por meio da prestação de serviços diversos (tanto a partir dos seus

empreendimentos individuais quanto a partir dos empreendimentos comunitários) ou quer

ainda por meio da articulação com as comunidades do entorno e com alguns espaços políticos

(consideradas as ressalvas já feitas pouco acima). Tudo isto se dá sem o descuido dos

processos internos (especialmente os políticos e sociais). Parece que as ecovilas vem

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buscando encontrar o ponto ideal entre as duas questões: deve voltar-se para fora, ao mesmo

tempo em que tenta-se preservar seus princípios de constituição.

Sobre a questão da diferenciação entre as práticas, vemos que a noção de “colas” dentro da

ecovila faz sentido apenas até certo ponto. Fica evidente, nas análises dos casos, que não é

apenas um elemento que promove a coesão dentro da experiência, mas a combinação de quase

tudo o que se faz na comunidade, numa relação complexa entre diversos fatores. Assim, por

exemplo, é difícil afirmar que a questão técnico/ecológica ou a questão espiritual é o que

principalmente mantém a pessoa dentro da experiência. O que se dá é que a vivência integral

do indivíduo, em tudo o que ela oferece, é que cumpre esse papel. Isto porque as próprias

experiências das ecovilas vêm atuando na construção deste holismo, já que trabalham,

simultaneamente e com muito cuidado, as questões sociais, comunitárias e espirituais em

conjunto com a questão ambiental.

Neste sentido, não se quer afirmar aqui, que as práticas são uniformes. Ao contrário, a história

de cada comunidade acaba definindo uma (ou mais) expertise, em função dos eventos ligados

à sua fundação, dos membros fundadores e do perfil dos moradores que vão se agregando a

ela. A diferença é que aqui não estaríamos trabalhando mais com a noção de diferenciação

pela forma de coesão social, mas sim pela especialidade criada em função deste contexto

histórico-social.

Tomando-se isto como ponto de partida, verifica-se uma diferença importante entre as duas

principais práticas analisadas no presente trabalho: enquanto na Fundação Terra Mirim,

existe um desenvolvimento maior da dimensão cultural/espiritual, no Instituto de

Permacultura e Ecovilas do Cerrado a dimensão técnica/ecológica se apresenta em

evidência. No primeiro caso, isto pode ser explicado pelo perfil da experiência dado a partir

da sua fundação, ligado à ideia de desenvolvimento espiritual e de uma relação mística com a

natureza. No segundo, pela intenção, também declarada desde a fundação, de trabalhar

fortemente a questão das tecnologias ambientais com base na permacultura, bem como a sua

difusão.

Em função destas colocações, podemos partir para a discussão do primeiro pressuposto do

trabalho:

Pressuposto 1: Dada a existência da pluralidade de princípios econômicos, de

autonomia institucional, de democracia interna, de uma sociabilidade comunitária

(interna e externa à ecovila), e de uma finalidade multidimensional as ecovilas podem

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ser classificadas dentro do marco da economia solidária.

Este pressuposto remete à questão principal deste estudo e procura perceber se as ecovilas

seriam, de fato, práticas de economia solidária. De uma forma muito simples pudemos

perceber, que as práticas brasileiras (especialmente IPEC e FTM) cumprem as cinco

características básicas que definem um empreendimento de economia solidária, e que são

apresentadas no enunciado do pressuposto. Também as práticas internacionais seriam

enquadradas nesta classificação provavelmente com muito poucas restrições.

Vale ressaltar, que as definições dadas para os empreendimentos econômicos solidários, de

fato, estão embutidas numa definição de ecovilas, mais ampla. Assim, uma ecovila poderia ser

um tipo de EES, mas não é qualquer EES que poderia ser uma ecovila, já que lhe faltariam

alguns dos atributos que caracterizam esta última, e o primeiro e mais básico deles é ser uma

comunidade (assentamento). Entretanto, a complexidade da experiência demanda que esta

classificação seja melhor trabalhada. Uma ecovila pode mais precisamente ser tida como uma

“rede de economia solidária”, que congrega diversos empreendimentos. Ela, também, de

forma mais abrangente e coletivamente compreende um (ou alguns) empreendimento(s), que

seria responsável pela sua organização mais geral. Este empreendimento organiza, por

exemplo, o centro de educação, a produção de alimentos e todas as outras atividades

comunitárias. Além disso, muitos empreendimentos que estão dentro do espaço de atuação

desta rede organizada pela ecovila são individuais, o que os faria escapar de uma definição

mais rigorosa de economia solidária (já que a maioria dos autores do campo considera isto um

elemento delineador das prática). No entanto, o fato destes empreendimentos estarem

conectados sob uma outra lógica que segue os mesmos princípios da economia solidária

(como por exemplo as características de um EES citadas por Franca Filho e Laville (2004))

podem levar a um enquadramento neste campo.

Outras considerações que cabem neste espaço de conclusão é sobre como podemos perceber

as ecovilas a partir da ideia de utopia. Se formos considerar as utopias até o século XVI (que

chamamos de “ideais”), o que há em comum com algumas delas é basicamente o sonho de

uma sociedade mais perfeita. Neste caso, as cidades utópicas estavam sempre em lugares não

conhecidos81, distantes no espaço ou no tempo, o que levou a criação do senso comum de que

utopia seria um sonho, uma fantasia, algo não realizável, conquanto bom.

As ecovilas não podem ser entendidas desta forma, porque já são expressões concretas

81 Conforme indica a própria palavra criadas por More: u-topia signfica o não-lugar

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(embora com suas limitações) de grupos de pessoas. Dizemos isto, não por um purismo

conceitual, que tornaria o comentário evidentemente dispensável, mas pela constatação da

criação de mecanismos que vêm permitindo a experimentação de alguns elementos do que

seria este “sonho”. Assim, cabe discutir se o projeto de sociedade defendido e tentado pelas

ecovilas deveria ou não ser rotulado como “não-alcançável”.

Uma crítica que se faz às descrições de sociedades utópicas é que elas seriam irrealizáveis

porque estariam desconectadas dos processos sócio-históricos da humanidade. Esta é,

entretanto, uma crítica que não cabe às experiências ora em análise, assim como, em certa

medida às ligadas ao socialismo utópico. Sobre estas, entretanto, pesaria uma outra: a da

ineficácia do tipo de ação escolhida para uma mudança social ampla. Esta crítica, por sua vez

poderia ser dividida em outras duas: uma mais “externa”, que considera a inevitabilidade e o

determinismo da lógica de mercado e outra mais “interna”, que aponta que as ecovilas não

teriam os elementos suficientes para promover uma mudança nos paradigmas que sustentam

atualmente o sistema capitalista.

A primeira delas está ligada àquela noção liberal dominante desde o século XIX e atualmente

reforçada pela adesão da esquerda à chamada “terceira via” (GIDDENS, 2005), que diz que

por terem todas as demais alternativas fracassadas resta somente aceitar a dominação do

mercado e da globalização econômica; neste caso, o máximo que poderia ser feito seria

ajustar um ou outro elemento de imperfeição. Qualquer outra tentativa seria mera utopia ou

irrealismo. A esta crítica responderíamos a partir do argumento de Polanyi (2010), de que o

mercado não é uma instituição decorrente da natureza humana, nem tampouco o estágio final

de um processo evolutivo, mas é politicamente instituído, cuja dominação se estabelece com

base num conjunto de normas e instrumentos de coerção que o mantém válido; como tal, ele

pode ser transformado ou substituído por mudanças institucionais equivalentes.

Oporíamos, ainda a este argumento, um outro, que diz que esta visão está repleta do

irrealismo do qual acusa as suas alternativas: Polanyi (2010) já afirmava que uma sociedade

com base no mercado autorregulado seria inescapavelmente uma utopia, pois um tal sistema

implica na desimbricação total da sociedade, o que não é possível, pois representaria a

dissolução desta última. A este argumento, adicionaríamos um outro, mais atual, que

confronta este sistema com os limites ecológicos do planeta: neste caso, uma continuação

forçada dos processos de competição e acumulação frente às profundas crises que se

avizinham de esgotamento recursos (especialmente petróleo), redução na produção de

alimentos e de mudança climáticas conduziriam a um cenário distópico ao estilo já desenhado

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em Mad Max ou em Waterworld82.

O segundo tipo de crítica, a mais interna, já que proveniente daqueles que acreditam que a

mudança radical no sistema sócioeconômico é possível, pode ser exemplificada àquela já

apresentada no capítulo 3.

As críticas de Fotopoulos apresentadas naquele capítulo merecem ser tomadas em

consideração pelas práticas das ecovilas. Entretanto, sua afirmação sobre o caráter dos

indivíduos que compõe a experiência não se confirma, pelo menos não no cenário nacional.

Além disso, não parecem práticas ligadas a um tipo de irracionalismo, que seria dada pela

prática espiritual. Por irracionalismo, entendemos, com base no autor, que as considerações

num processo de interação democrática não partiriam dos fatos e da sua análise racional, mas

sim de elementos dados pelas determinações espirituais. Não é isto, contudo, que se observa,

novamente nos casos em tela. A prática espiritual, de forma geral, assume mais um caráter

individual e funciona como um delineador dos valores a serem adotados pelo indivíduo na sua

prática diária, inclusive nos momentos de interlocução com o outro. Seria de se perguntar,

neste caso, se um indivíduo qualquer pode se despir dos seus valores na ação comunicativa

com os outros.

Não devemos deixar de considerar que existe realmente uma limitação mais ou menos

evidente nas práticas, que é a sua articulação, tanto interna (do movimento), quanto externa,

na sua interação com outros em movimentos de mudança social. No primeiro caso, percebe-se

que, no Brasil, as experiências não se “conversam”, e, embora eventualmente alguém de uma

já tenha ouvido falar de outra, elas pouco se conhecem. Assim, forçoso é concordar em parte

com Fotopoulos (2000), já que não existe uma agenda comum com pelos menos alguns

objetivos e estratégias compartilhados. A formação (ou o fortalecimento) de uma rede

nacional poderia contribuir muito para o avanço das práticas, especialmente no sentido de

construção desta agenda e da busca da articulação com a sociedade e com o poder público em

diversos níveis.

A limitação da articulação externa está ligada, justamente, com esta pouca interação com o

poder público, especialmente na formulação das políticas públicas em níveis estaduais e

federais, e que se observa também no nível de cada experiência. Tal deficiência faz com que

não sejam aproveitados os recursos do Estado para o desenvolvimento do campo.

82 Ficções apresentadas no cinema nos anos 80 (Mad Max) e 90 (Waterworld), os dois filmes apresentam um cenário pós apocalíptico em que grupos brigam em um mundo sem lei pela posse de escassos recursos, tendo como centro a disputa pela principal fonte de energia disponível – a gasolina.

199

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Neste caso, uma aproximação de cada experiência e do conjunto das ecovilas de forma

articulada com outros movimentos, como o da economia solidária, poderia ser benéfico em

duplo sentido. Num primeiro, as ecovilas poderiam aproveitar a inserção que vem sendo

conquistada por este movimento, garantindo os recursos a que nos referíamos; num segundo

sentido, há uma perspectiva de sustentabilidade nas ecovilas que envolve uma mudança

radical que traria benefícios para a proposta encampada pelo movimento da economia

solidária. A identidade de propósitos evidenciada indica que esta junção de forças poderiam

aumentar a massa crítica que se movimenta em direção à desejada mudança.

De forma geral, sintetizaríamos as limitações das práticas analisadas em quatro aspectos

principais:

a) Uma rotatividade relativamente grande dos moradores, o que implica numa dificuldade de

estabilização das práticas; há uma pequena diferença entre os casos apresentados, mas é um

problema presente em ambos, assim como nas experiências internacionais (GARDEN,

2006b).

b) Dificuldade de interação entre as práticas, no sentido da constituição de um movimento das

ecovilas;

c) Dificuldade de interação com movimentos sociais, de forma geral e com o poder público,

especialmente nos níveis mais ampliados (estados e união);

d) Limitações relacionadas a escala, especialmente nos casos estudados, já que a pequena

população não consegue dar conta das demandas mais presentes em uma ecovila; de qualquer

forma, no contexto internacional, mesmo nas experiências maiores, onde há um nível de

produção muito mais elevado, há um problema compartilhado com os casos brasileiros que é

a dificuldade de conciliar a produção com o consumo local, pelo perfil dos produtos e

serviços prestados.

Finalmente, como limitação do presente estudo vemos que conhecer mais o campo no Brasil

permitiria reforçar (ou talvez revisar) algumas conclusões, especialmente referente às

características das ecovilas neste contexto. Já que um dos seus propósitos é o

desenvolvimento teórico do campo, um painel mais ampliado das propostas poderia

consolidar esta construção.

Dentre os estudos futuros que este trabalho suscitaria, podemos citar:

200

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– Em função da colocação anterior, seria pertinente ampliar o estudo para mais casos no

contexto nacional, inclusive indo para além das experiências vinculadas à GEN.

– Aprofundar a análise das práticas internacionais, no sentido de buscar a construção de

um panorama e um marco mais abrangente das experiências das ecovilas; diversas

similidades já puderam ser observadas, entretanto de forma relativamente superficial.

Uma análise comparativa confirmaria ou refutaria a noção da construção de um campo

de experiências internacionais que se enquadram sob o mesmo referencial (o das

ecovilas).

– Concentrar atenção na questão dos indicadores de sustentabilidade. Já existem

trabalhos no âmbito internacional neste sentido. Entretanto, poderia fazer sentido a

construção de referências nacionais para o tema, especialmente considerando-se as

perspectivas apontadas por este trabalho (ampliação do conceito de sustentabilidade e

de economia).

– As experiências apontaram diversos elementos que não puderam ser aprofundados

neste trabalho, pelo seu escopo. Assim, poder-se-ia realizar um estudo mais

direcionado para alguns aspectos específicos das experiências, como, por exemplo, sua

relação com o entorno (especialmente as comunidades); a manifestação da pluralidade

econômica nas ecovilas; a definição da sociabilidade nestas comunidades e os aspectos

de liderança e democracia (governança).

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212

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ANEXO A - UM EXERCÍCIO PARA A POSSÍVEL QUANTIFICAÇÃO DO INDICADOR DE SUSTENTABILIDADE

Como não é um propósito central do trabalho, que está mais ligado à análise de experiências

com relação a uma possível noção de sustentabilidade (e as discussões teóricas que tal noção

suscitaria), nesta seção apresentaremos um exercício para a construção de indicadores

quantitativos para a sustentabilidade dentro dos marcos propostos. Este exercício terá como

propósito, além de esboçar o caminho na direção de um indicador que atende à discussão

realizada, o de ajudar na comparação das experiências apresentadas.

De fato, já existem indicadores para a sustentabilidade, como o ecological footprint method, o

dashboard of sustainability e o barometer of sustainability, considerados como os mais

importantes ou promissores da área por especialistas (VAN BELLEN, 2006). Cada um deles

apresenta vantagens relevantes, entretanto eles não contemplam plenamente a proposta deste

trabalho (o terceiro deles – barometer of sustainability – é o que mais se aproxima destas

discussões). De forma geral (ou seja, sem entrar nas especificidades de cada indicador, que

apresentariam limitações próprias), isto se dá ou pelos indicadores apresentarem uma visão

mais específica, focada na questão ambiental ou por não darem conta do debate sobre a

questão da organização socioeconômica, sem problematizar as formas atuais.

Apresentamos, desde já, algumas limitações que este sistema de indicadores apresentados

teria:

a) Ele é calculado em cima de uma “sustentabilidade ideal”. Não sabemos exatamente onde

ela está na escala das variáveis, e a determinação deste ponto demandaria diversos estudos

adicionais, em cada uma das dimensões. Convencionalmente, para se resolver esta questão,

faz-se uma parametrização em que a melhor prática existente representa o valor máximo

possível da escala. Entretanto, este máximo nem sempre é o mais desejável ou o mais

conveniente, tendo-se em conta as necessidades humanas e ambientais.

213

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b) Assumidamente cada dimensão tem peso igual. Tal definição é, de certa forma, arbitrária, e

parece que a definição da relação de importância entre as dimensões passaria por uma

“escolha” de uma dada sociedade, com base nos seus próprios parâmetros de avaliação do que

é adequado ou não.

c) A própria definição de algumas variáveis deveria passar por processo parecido, já que

também demandam julgamento valorativo (de fato, isto representaria também uma conexão

com a limitação colocada no primeiro item). As que foram escolhidas para este trabalho

baseiam-se nos debates em curso sobre as práticas de ecovilas e de economia solidária, neste

último especialmente levando-se em conta o contexto brasileiro.

d) A definição dos valores das variáveis deveria ter um resultado dado a partir da análise de

mais de um avaliador, melhorando a validade aos dados.

A construção do indicador parte do agrupamento das variáveis apresentadas no quadro

analítico deste trabalho (Capítulo 8). Assim, as variáveis são avaliadas e, para cada uma delas,

arbitra-se um valor de 0 a 1, conforme pode ser visto na Tabela 3 com base nos dados

disponíveis. O valor máximo para cada variável é “1”, que corresponde ao maior valor

possível (ou desejável) que ela pode assumir. Nas segunda e terceiras colunas da Tabela 3

estão indicadas as condições que determinam a aproximação de 0 (itens em vermelho) ou de 1

(itens em verde) para cada variável.

Por exemplo, tomemos a variável 26 – “Tipo de tecnologia empregada (originalidade e se é

socialmente referenciada ou adaptada de outro local ou convencional)”. Se as tecnologias

utilizadas forem totalmente convencionais e exógenas, o valor da variável para a experiência é

zero. Se ela foram totalmente sociais e apropriadas pelo local, então a variável assume um

valor 1. Analisando-se os casos, percebe-se que o IPEC é o que mais assume a utilização de

tecnologias sociais, seguido pela Ecoovila 1 e, por fim, a FTM. Dessa, forma o primeiro caso

recebe o maior valor relativo e a FTM o menor. O valor 1 só é atribuído quando a expressão

da variável é a maior possível ou desejável nesta situação, da mesma forma que o 0 só se dá

quando absolutamente nada desta variável é observada.

Todos os agrupamentos são realizados com base em médias simples, ou seja, sem conferir

maior peso a dado algum (conforme descrito na limitação “a”). Eles foram reagrupados nos

componentes e, então, nas dimensões, seguindo o critério citado, independente do número de

variáveis que cada um dos componentes e dimensões têm.

214

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O resultado é ainda apresentado de forma comparativa, com as três experiências nacionais

descritas inseridas na mesma tabela. Ressalta-se que as experiências internacionais não foram

elencadas nesta tarefa, pois havia uma certa quantidade de informações incompletas ou com

algum grau de dúvida sobre sua validade. O resultado dos indicadores pode ser observado na

sequência (Tabela 3):

215

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Tabela 3: Composição do indicador da sustentabilidade. Fonte: elaboração própria

Parâmetros para mensuração

Avaliação

0 1 IPEC FTM Ecoovila 1Dimensão Econômica 0,71 0,60 0,31

Impacto gerada na distribuição de renda do local 0,73 0,50 0,40

1 Postos de trabalho criados Nenhum

Para todos moradores/

comunidades do entorno

0,8 0,5 0,4

2 Rendimentos proporcionados Baixos Altos 0,6 0,5 0,33 Utilização de insumos locais Baixa Alta 0,8 0,5 0,5

Articulação entre diferentes lógicas econômicas (mercantis, não-mercantis e não-monetárias) 0,90 0,90 0,30

4Utilizações alternativas de recursos, além dos mercantis: auto-produção, trocas, utilizações coletivas (finanças solidárias), fontes governamentais, etc.

Apenas mercantil

Equilíbrio entre

alternativas0,9 0,9 0,3

Formato dos empreendimentos 0,70 0,70 0,55

5 Tipo de empreendimentos (individuais, ou coletivos)Somente

individuaisSomente coletivos 0,7 0,7 0,5

6 Forma de distribuição dos excedentes Apropriação individual

Distribuição total

0,7 0,7 0,6

Produção local 0,50 0,30 0,007 Nível de atendimento das demandas internas pela produção local Baixa Alta 0,5 0,3 0,08 Tipo de produção e prestação de serviços existentes no local Descritivo

Dimensão Social/Comunitária 0,81 0,86 0,30Coesão social entre os moradores Coesão social entre os moradores 0,88 0,93 0,25

9 Tipo de sociabilidade existente Secundária Primária 0,9 0,9 0,210 Existência de confiança entre as pessoas Baixa Alta 0,8 0,9 0,111 Natureza dos vínculos estabelecidos Fracos Fortes 0,8 0,9 0,212 Nível de reconhecimento entre os moradores Nenhum Pleno 1,0 1,0 0,5Saúde 0,65 0,75 0,4513 Acessibilidade aos tratamentos de saúde Nenhum Pleno 0,7 0,6 0,814 Existência de integração entre tratamentos ortodoxos e complementares Nenhum Pleno 0,6 0,9 0,1Educação 0,90 0,90 0,2015 Existência de práticas de educação, especialmente ligados à questão ecológica Nenhuma Frequente 0,9 0,9 0,2

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Parâmetros para mensuração

Avaliação

0 1 IPEC FTM Ecoovila 1Dimensão Cultural/Espiritual 0,70 0,80 0,23

Identidade das pessoas com a experiência 0,60 0,80 0,3016 Grau de enraizamento dos moradores com as atividades realizadas (identidade cultural) Baixo Alto 0,6 0,8 0,3Atividades culturais17 Tipos de atividades artísticas/culturais existentes DescritivoExpressões culturais materiais 0,80 0,70 0,4018 Reflexos da cultura na arquitetura e desenho da ecovila Baixo Alto 0,8 0,7 0,4Manifestações espirituais 0,70 0,90 0,00

19 Existência e forma de realização das práticas (abertura para diferentes tipos, realização comunitária, etc) Nenhuma Frequente 0,7 0,9 0,0

Dimensão Política 0,67 0,72 0,32Participação dos moradores 0,70 0,80 0,6520 Nível e tipo de participação dos moradores (tomada de decisão democrática) Baixa Alta 0,8 0,9 0,6

21 Estilo de liderança existenteCentralizado, autocrático

Descentralizado,

democrático0,6 0,7 0,7

Tipo de ação pública no território 0,70 0,75 0,1522 Processos de discussão ampliada (fora da ecovila) existentes Fracos Fortes 0,8 0,8 0,123 Convivência com comunidades do entorno Baixa Alta 0,6 0,7 0,2Articulações externas 0,60 0,60 0,15

24Articulação com redes do movimento de ecovilas ou outras pertinentes (meio ambiente, economia solidária, assistência social, etc...) Fraca Forte 0,6 0,6 0,1

25 Tipo de interação com o poder público e com políticas públicas Fraca Forte 0,6 0,6 0,2Dimensão Técnica/Ecológica 0,82 0,48 0,40

Uso de tecnologia social 0,90 0,45 0,65

26 Tipo de tecnologia empregada (originalidade e se é socialmente referenciada ou adaptada de outro local ou convencional)

Totalmente convencional

Totalmente social

0,9 0,4 0,6

27 Origem dos recursosTotalmente

externoTotalmente

local 0,9 0,5 0,7

Uso de tecnologia ambiental 0,75 0,35 0,2028 Existência de produção orgânica Inexistente Suficiente 0,6 0,0 0,029 Cuidados com relação ao meio ambiente nas atividades de produção ou prestação de serviços Fracos Fortes 0,9 0,7 0,4Identidade ecológica 0,90 0,80 0,5030 Tipo de convivência com o sistema ecológico do entorno Predatória Integrada 0,9 0,8 0,5

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Parâmetros para mensuração

Avaliação

0 1 IPEC FTM Ecoovila 1Esquemas de reciclagem 0,80 0,40 0,3031 Tipos de sistemas de reciclagem (e reutilização) existentes Inexistentes Plenos 0,8 0,4 0,3Utilização da água 0,90 0,40 0,3032 Como a água é captada e descartada (efluentes) Descritivo33 Nível de tratamento e reciclo Baixo Alto 0,9 0,4 0,3Utilização de energia 0,70 0,50 0,5034 Fonte da energia utilizada Descritivo35 Nível de utilização de tecnologia renovável Baixo Alto 0,7 0,5 0,5Tipo de técnicas construtivas adotadas 0,60 0,37 0,43

36 Tipos de técnicas construtivas utilizadasTotalmente alternativas

Totalmente convencionai

s0,9 0,4 0,6

37 Participação de materiais locais na construção Baixa Alta 0,8 0,5 0,539 Nível de utilização de materiais tóxicos Alta Baixa 0,1 0,2 0,2Restauração ecológica 1,00 0,60 0,3040 Adoção de técnicas de recuperação ecológica ou de permacultura ou outros similares Baixa Alta 1,0 0,6 0,3

Média Geral 0,74 0,69 0,31

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Para melhor visualização, os resultados foram plotados num gráfico do tipo rede, em que é

possível a comparação das três experiências em cada uma das dimensões de forma

simultânea. Cada dimensão varia de 0 a 1, e o gráfico posiciona cada experiência em cada

uma das dimensões (ver Figura 74):

Figura 74: Indicador de sustentabilidade plotado por dimensão e por experiência. Fonte: elaboração própria

Pelo gráfico percebe-se que o IPEC apresenta-se como o caso mais desenvolvido na dimensão

técnica/ecológica, como já havia sido colocado anteriormente. Apresenta, ainda, algumas

práticas mais consolidadas também na dimensão econômica, o que pode ser justificado

especialmente pelo fato de que consegue obter, enquanto organização, recursos mais estáveis.

Já nas dimensões cultural/espiritual, social/comunitária e política, percebe-se que a FTM

apresenta práticas um pouco mais avançadas no sentido da sustentabilidade proposto. Como

também pode ser explicado pelas colocações das seções anteriores, observa-se que esta

experiência define de forma mais clara suas práticas culturais e espirituais, além de apresentar

uma base social mais sólida pela relação mais consolidada que um número maior de seus

moradores têm com a experiência, em comparação aos outros dois casos. Tal identidade pode

justificar ainda a diferença na dimensão política, que faz com que seus moradores tomem

mais parte dos processos decisórios locais, já que ambas as experiências (IPEC e FTM)

apresentam uma relação com o seu entorno muito similar. Por fim, situando a experiência da

Ecoovila 1, observa-se que ela apresenta todas as dimensões menos desenvolvidas, o que é

Econômica

Social / Comunitária

Cultural / Espiritual Política

Técnica / Ecológica

0,00

0,50

1,00

IPECTerra MirimEcoovila 1

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condizente com a análise e a apresentação de resultados feitas na seção anterior. Neste caso, a

dimensão de maior destaque, como também pôde-se perceber anteriormente é a

técnica/ecológica, pelas soluções implantadas no âmbito das tecnologias ambientais.

Seguindo no mesmo exercício, se fôssemos definir um indicador mais geral (que no nosso ver

teria menos validade em termos de análise, pois não permite ver as singularidades como a

visualização por dimensões ainda permite, além de considerar todas as dimensões como peso

igual), o IPEC apresentaria um índice de 0,74, a FTM de 0,69 e a Ecoovila 1 de 0,31. A

diferença que se apresenta entre os dois casos mais desenvolvidos é justamente o destaque na

dimensão técnica/ecológica obtida pelo IPEC, que não é compensado pela pouca diferença a

mais que a FTM tem nas outras três dimensões.