103
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ENFERMAGEM CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM NILDO BATISTA MASCARENHAS PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO Salvador 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ENFERMAGEM

CURSO DE GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM

NILDO BATISTA MASCARENHAS

PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PRÁTICA DO ENFERMEIRO

NA ATENÇÃO PRIMÁRIA: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO

Salvador 2010

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

NILDO BATISTA MASCARENHAS

PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de graduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Enfermagem.

Orientadora: Profª. Drª. Cristina Maria Meira de Melo.

Salvador 2010

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Escola de Enfermagem e Nutrição, SIBI - UFBA.

Mascarenhas, Nildo Batista M395 Promoção da saúde e a prática do enfermeiro na atenção primária:

contribuição ao estudo / Nildo Batista Mascarenhas. – Salvador, 2010. 102 f. Orientadora: Profa. Dra. Cristina Maria Meira de Melo Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade Federal

da Bahia, Escola de Enfermagem, 2010. 1. Enfermagem - Prática. 2. Enfermagem em Saúde Pública. I. Melo,

Cristina Maria Meira de. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Enfermagem. III. Título.

CDU : 616-083:614

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

NILDO BATISTA MASCARENHAS

PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia.

Banca Examinadora

__________________________________________________ Drª. Cristina Maria Meira de Melo- Orientadora

Professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia

__________________________________________________ Msc. Stella Maria Pereira Fernandes de Barros

Professora Emérita da Universidade Federal da Bahia

__________________________________________________ Drª. Heloniza Oliveira Gonçalves Costa

Professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia

Salvador, 12 de Julho de 2010.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

Dedicado aos meus amados pais, Zé e Vilma,

cujo esmero e amor incondicional ultrapassam

o limite da escrita; e a todos aqueles que

acreditam e lutam por um mundo melhor.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho é fruto de uma construção que envolveu encontros, desencontros, descobertas,

inquietações, lutas, envolvimento, reconhecimento... sonhos. No transcorrer deste processo,

pessoas importantes estivaram ao meu lado, o que tornou possível a concretização deste

estudo. Sendo assim, os agradecimentos são fundamentais. Agradeço:

A Deus, pelo dom da vida e pela bela arte do viver;

Aos meus amados pais, Zé e Vilma, pelos exemplos de dedicação, companheirismo,

solidariedade e amor. Vocês são meus maiores estimuladores, meus eternos companheiros,

sempre preocupados, responsáveis, inquietos, zelosos; os legítimos disseminadores do

cuidado. Palavras são pequenas para explicitar algo intangível;

A minha família, especialmente minha irmã, Lidiane, minhas primas Larissa, Lorena e Gisele

e meus tios Nilson, Verbena, Arquimedes, Maísia e Lourdes, pela felicidade nas conquistas

alcançadas, pelo apoio nos momentos difíceis e por acreditar sempre;

A Igo Luz, amigão e companheiro de tantas jornadas, por ter sido um grande incentivador

para a realização deste trabalho, por sempre estar presente e por dignificar um dos mais belos

sentimentos humanos: a amizade;

Às amigas Gabriela, Janine, Leilane e Thianne, pelos momentos compartilhados e pela

amizade de longos anos, que a cada dia se fortalece;

A Márlon, por imprimir um significado particular na minha vida, por compartilhar sonhos e

momentos, pela amizade e pela luta por uma enfermagem comprometida social e

politicamente com o SUS e com a sociedade;

A Professora Cristina Melo, pela disponibilidade em orientar este trabalho, por sua marcante

influência na minha formação política e profissional, por sempre escutar meus anseios,

dúvidas, questionamentos, descobertas. Por acreditar numa Enfermagem e numa sociedade

melhor e por demonstrar que a mudança é possível;

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

A Professora Darci Santa Rosa, pela condução dos meus passos iniciais no mundo da

pesquisa, pelas palavras de incentivo, pela amizade e por sempre acreditar nos meus sonhos;

A Professora Enoy Gusmão, pela amizade, pelo carinho, pelo exemplo de pessoa e

profissional, pelas oportunidades concedidas, pela confiança e pelo incentivo;

Ao Professor José Ricardo Ayres, pela disponibilidade, pelas contribuições, pelos seus

valiosos escritos que tanto me convidaram à reflexão durante a construção deste estudo e por

demonstrar, através de atitudes e palavras, que o cuidado para além de um constructo teórico,

constitui-se numa práxis;

A Giselle Teixeira, querida amiga do mestrado, pelo incentivo e pelos tantos momentos de

alegria e “confabulações” compartilhados;

Aos colegas e amigos de turma, especialmente Andréia, Érida, Igor, Márcia, Paula Mônica,

Paulo Ricardo, Talita Aquira, Thalita Lôbo, Thais e Vanessa, pelos momentos

compartilhados, pelo crescimento juntos e por tornar estes 4 anos e meios de graduação um

marco em minha vida;

Aos companheiros do Diretório Acadêmico de Enfermagem, especialmente Fernanda Mota,

por re-significar a política em minha formação profissional e pessoal, pelo convite à reflexão

e à luta;

À comunidade da Escola de Enfermagem da UFBA, palco de tantas descobertas, por me

acolher nesses anos de graduação;

À equipe do Estágio de Vivências no SUS, pelos momentos de construção e reafirmação da

luta pelo SUS;

Aos usuários do SUS, por dar sentido à luta por uma sociedade justa, solidária e equânime, e

pela oportunidade de aprendizado concedida;

A todos vocês, que acreditam num mundo melhor e que lutam pela consolidação do Sistema

Único de Saúde.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

“Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e

esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto

com esperança, espero” (Paulo Freire)

“Sonhar com o impossível é o primeiro passo para torná-

lo possível” (Confúcio)

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

MASCARENHAS, Nildo Batista. Promoção da saúde e a prática do enfermeiro na atenção primária: contribuição ao estudo. 102f. 2010. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação). Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.

RESUMO

O Sistema Único de Saúde, como a política de saúde do Estado brasileiro pela melhoria da qualidade de vida e pela afirmação do direito à vida e à saúde, dialoga com os constructos da promoção da saúde e da atenção primária à saúde. A atenção primária à saúde pode ser compreendida como o nível de um sistema de serviços de saúde que possibilita a obtenção de respostas para todas as necessidades e problemas, excetuando-se as incomuns e raras. Os cuidados inerentes à atenção primária envolvem a participação da comunidade e são direcionados para a promoção, proteção e melhoria da saúde. A promoção da saúde se caracteriza como uma estratégia promissora para enfrentar os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado, contribuindo para romper a hegemonia do paradigma biomédico e se constituindo em um imperativo ético que pode resgatar valores fundamentais à sociedade. A Enfermagem, compreendida como um campo de prática social, cuja essência abarca uma forte conotação de promoção global da saúde, emerge como um espaço fundamental para a consolidação da promoção da saúde no âmbito da atenção primária. Com isso, esse estudo tem como objetivo geral analisar a produção científica nacional sobre a prática do enfermeiro na promoção da saúde no campo da atenção primária, e como objetivos específicos identificar a produção científica nacional sobre a prática do enfermeiro na promoção da saúde no campo da atenção primária; discutir as concepções sobre promoção da saúde na produção científica nacional; e caracterizar as práticas do enfermeiro na promoção da saúde no campo da atenção primária, segundo a produção científica nacional. Este é um estudo analítico de caráter exploratório, com abordagem qualitativa, que foi realizado em dois momentos: no primeiro discutiu-se a promoção da saúde e a prática do enfermeiro na atenção primária e no segundo realizou-se uma revisão sistemática da literatura. Constatou-se que a prática do enfermeiro, pautada na doença e nos procedimentos técnicos, corrobora a manutenção de uma prática subsidiária à medicina e distante da sua própria essência. Em face disso, é crucial que os enfermeiros valorizem o que caracteriza a profissão: o cuidado. O cuidado, como um modo-de-ser da enfermagem, justifica a importância da profissão para promover a saúde na atenção primária. Destarte, a promoção da saúde é um campo de possibilidades para a atuação do enfermeiro na atenção primária, possibilitando uma prática transformadora e pautada no cuidado, a valorização da prática de enfermagem e a visibilidade social do seu fazer. Com relação à produção científica nacional sobre a temática, verificou-se que essa discussão é pouco explorada no campo da Enfermagem e que a promoção da saúde é confundida com a prática da educação em saúde, persistindo uma concepção limitada e atrelada às práticas desenvolvidas no interior dos serviços de saúde. Conclui-se que é fundamental os enfermeiros reconhecerem a promoção da saúde como subsídio para sair da postura de neutralidade que ainda reveste os cuidados de enfermagem, rumo a um projeto de sociedade que contemple os cuidados de enfermagem valorizados e a profissão engajada nas transformações da sociedade.

Palavras-Chave: Promoção da saúde; Atenção Primária; Enfermagem em Saúde Pública

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10 2 ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS E CONCEPÇÕES ..................................................................................................................... 20

2.1 A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO CONTEXTO INTERNACIONAL .............. 20

2.2 A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO BRASIL ....................................................... 28

3 PROMOÇÃO DA SAÚDE: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E BASE CONCEITUAL ..................................................................................................................... 36

3.1 PROMOÇÃO DA SAÚDE E O DISCURSO PREVENTIVISTA: O QUE OS DISTINGUE? ................................................................................................................... 49 4 PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA ....................................................................................................... 54

4.1 CUIDADO, PRÁTICAS DE SAÚDE E ENFERMAGEM .............................................. 55

4.1.1 O cuidado nas práticas de saúde e na enfermagem ........................................................ 59

4.2 O CUIDADO PARA A PROMOÇÃO DA SAÚDE: ELEMENTOS PARA A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA ............................................... 74

5 PRODUÇÃO CIENTÍFICA NACIONAL SOBRE A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO CAMPO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA ................... 83 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 93 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 96

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

10

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos quarenta anos ocorreram significantes mudanças na conjuntura política e

econômica da sociedade brasileira. Neste período, especialmente na transição da década de

1970 para os anos 1980, diversos segmentos da sociedade mobilizavam-se em prol do fim da

ditadura militar, a qual se manteve no poder por mais de vinte anos. No setor saúde, em

consonância com a luta pela democratização da sociedade, um importante movimento

conformou-se face à crise sanitária, política e econômica instalada no País: a Reforma

Sanitária brasileira (RS).

A Reforma Sanitária brasileira, compreendida como um movimento social, político e

ideológico emergiu como parte da luta pela democracia, com um papel preponderante na

construção da atual política de saúde brasileira, tendo alcançado a garantia constitucional do

direito universal à saúde e a construção institucional do Sistema Único de Saúde (SUS)

(FLEURY, 2009).

O embate político e ideológico proporcionado pelo Movimento da Reforma Sanitária

durante a década de 1980, acrescido da promulgação da Constituição Federal de 1988 e a

institucionalização do SUS em 1990, através das Leis 8.080/90 e 8.142/90, favoreceram a

emergência de discussões acerca da mudança nos modelos de atenção à saúde do Brasil, face

aos princípios e diretrizes da nova política de saúde do país.

De acordo com Paim (2008), modelos assistenciais ou modelos de atenção à saúde

podem ser compreendidos como “combinações de tecnologias estruturadas em função dos

problemas de saúde (danos e riscos) de uma população que, por sua vez, expressam

necessidades sociais, historicamente definidas” (PAIM, 2008, p.571).

No Brasil, devido à conformação histórica do sistema de serviços de saúde, podem ser

identificados dois modelos de atenção hegemônicos, que convivem historicamente de forma

contraditória e/ou complementar: o modelo médico assistencial privatista e o modelo

sanitarista. O primeiro é, em essência, marcado pela base biológica de sustentação, com foco

na intervenção sobre a patologia, e centrado na atenção médica especializada dispensada no

espaço hospitalar. O segundo ilustra a saúde pública institucionalizada no Brasil durante o

século XX, onde as intervenções sobre as necessidades de saúde da população eram realizadas

mediante campanhas, programas especiais, vigilância sanitária e epidemiológica (PAIM,

2008).

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

11

Durante o século XX o sistema de saúde do Brasil transitou do sanitarismo

campanhista (início do século até 1965) para o modelo médico-assistencial privatista, o qual

foi consolidado em 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)

(MENDES, 1996). A partir disso, observa-se que o Estado brasileiro priorizou a atenção

médica especializada e hospitalar, levando a hegemonia das ações curativas e hospitalares e a

consolidação do modelo médico assistencial privatista. Esta lógica de produção das ações de

saúde, além de não responder devidamente às necessidades de saúde da população, resulta na

elevação dos custos com a atenção à saúde para o País e reduz a concepção de saúde à

ausência de doenças, ignorando os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado.

Destarte, no âmbito do processo de construção do SUS, que foi e continua sendo

realizado através de embate político e ideológico, encontram-se o conceito ampliado de saúde;

o imperativo da participação social na construção do sistema e das políticas de saúde; a

impossibilidade do setor saúde responder sozinho à transformação dos determinantes e

condicionantes para garantir opções saudáveis para a população (BRASIL, 2006b); e a

necessidade de organizar o sistema de serviços de saúde e de produzir mudanças na lógica de

atenção à saúde.

O Sistema Único de Saúde, nesse sentido, como a política do Estado brasileiro pela

melhoria da qualidade de vida e pela afirmação do direito à vida e à saúde, dialoga com os

constructos dos movimentos da promoção da saúde (BRASIL, 2006b) e da Atenção Primária

à Saúde (APS), que no Brasil recentemente é denominada de Atenção Básica.

De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), esta se refere a um

“[...] conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a

proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a

manutenção da saúde” (BRASIL, 2006a, p.2). A atenção básica é pautada nos princípios do

SUS, caracterizando-se como um dispositivo do sistema de saúde brasileiro que possibilita,

principalmente, a universalidade, a integralidade e a participação popular (FAUSTO e

MATTA, 2007).

A definição de atenção básica presente na PNAB sofreu influência da concepção de

atenção primária à saúde difundida internacionalmente, assumida como atenção básica

durante o processo de implantação do SUS, momento em que foi essencial para o

cumprimento dos princípios defendidos pelo movimento da Reforma Sanitária, especialmente

para apoiar a operacionalização da universalidade quanto ao acesso aos serviços de saúde, a

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

12

descentralização da gestão do sistema e dos serviços de saúde e a participação social

(HEIMANN E MENDONÇA, 2005).

A promoção da saúde, cujas idéias foram introduzidas no Brasil em meados dos anos

1980, estimuladas pelo debate em torno da Reforma Sanitária (CARVALHO, 2008), pode ser

interpretada, de um lado, como reação à acentuada medicalização da vida social e, de outro,

como uma resposta setorial articuladora de diversos recursos técnicos e posições ideológicas

(BUSS, 2000).

Ela desponta como uma nova concepção internacional de saúde em meados da década

de 1970, resultado do debate na década anterior sobre a determinação social e econômica da

saúde (HEIDMANN et al, 2006). Nesta mesma década, embora o termo tenha sido usado

pelos sanitaristas Hugh Rodney Leavell e Edwin Gurney Clark para caracterizar um nível de

atenção da medicina preventiva, seu significado foi mudando, passando a representar, mais

recentemente, um enfoque político e técnico em torno do processo saúde-doença-cuidado

(BUSS, 2009).

É importante destacar que o conceito de promoção da saúde é multifacetado,

especialmente devido às concepções historicamente construídas que associavam o termo

promoção da saúde às mudanças de comportamentos e às atividades preventivas, conforme

preconizado pelo modelo da “História Natural das Doenças” proposto por Leavell e Clark

(1976). O referido modelo é bastante difundido nos âmbitos nacional e internacional, sendo

criticado por diversos autores, especialmente por Arouca (2003).

Buss (2000, p.167) reitera que:

O conceito de promoção da saúde vem sendo elaborado por diferentes atores técnicos e sociais, em diferentes conjunturas e formações sociais, ao longo dos últimos 25 anos. Inúmeros eventos internacionais, publicações de caráter conceitual e resultados de pesquisas têm contribuído para aproximações a conceitos e práticas mais precisas para este campo.

Nos últimos trinta anos, a promoção da saúde se caracteriza como uma estratégia

promissora para enfrentar os diversos problemas de saúde que afetam as populações humanas.

Ao partir de uma concepção ampliada do processo saúde-doença-cuidado e de seus

determinantes, a promoção da saúde propõe a articulação dos saberes técnicos e dos

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

13

populares, além da mobilização de recursos institucionais e comunitários para seu

enfrentamento e resolução (BUSS, 2000).

De acordo com a Carta de Ottawa, documento oriundo da I Conferência Internacional

sobre Promoção da Saúde, ocorrida em 1986, no Canadá, a promoção da saúde pode ser

compreendida, como um “processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de

sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo”

(OMS, 1986, p.1).

Partindo dessa concepção, pode-se dizer que a promoção da saúde, ao conferir

possibilidades e liberdade aos indivíduos e grupos, parte de uma concepção ampliada de

saúde, a qual deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver; como

um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades

físicas. Sendo assim, a promoção da saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde,

extrapolando um estilo de vida saudável e caminhando em direção a um bem-estar global

(OMS, 1986).

Contudo, para compreender a promoção da saúde como mudança de paradigma, é

preciso enfrentar uma discussão que permita distingui-la da prevenção de doenças (LEFEVRE

e LEFEVRE, 2007), dado que no imaginário social ainda persiste uma confusão conceitual e

paradigmática entre promoção e prevenção, devido à difusão do discurso preventivista

proposto por Leavell e Clark nas décadas de 1960 e 1970.

Em linhas gerais, o discurso preventivista focaliza os aspectos biológicos, identifica

riscos e atua sobre eles. Diferente da promoção da saúde, a prevenção de doenças não

considera a dimensão histórico-social do processo saúde-doença-cuidado e, portanto, não

inclui nas suas ações políticas públicas saudáveis e intersetoriais que consideram os

determinantes sociais, econômicos, políticos, educacionais, ambientais e culturais do processo

saúde-doença-cuidado. Além disso, as ações preventivas não estimulam nas coletividades

processos de ampliação do poder, de tomada de decisão em relação às políticas de saúde para

enfrentamento de seus problemas e a valorização das suas potencialidades, para que as

pessoas estejam implicadas na luta pela melhoria das suas condições de vida e trabalho

(WESTPHAL, 2009).

Assim sendo, tanto numa escala individual quanto coletiva, o termo prevenção deve [...] ser reservado para toda medida que, tomada antes do

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

14

surgimento ou agravamento de uma dada condição mórbida ou de um conjunto dessas condições, vise afastar a doença do doente ou vice-versa, para que tal condição não se manifeste (ou que tenha diminuída a sua probabilidade de ocorrência) ou manifeste-se de forma menos grave ou mais branda nos indivíduos ou nas coletividades (LEFEVRE e LEFEVRE, 2007, p.37).

A promoção da saúde é algo que remete à dimensão social, existencial e ética; ao

engajamento e comprometimento ativo dos sujeitos, envolvendo o fortalecimento da

capacidade individual e coletiva para lidar com a multiplicidade dos determinantes da saúde e

indo além de uma aplicação técnica e normativa. Nessa concepção, compreende-se que não

basta conhecer o funcionamento das doenças e encontrar mecanismos para seu controle; a

promoção diz respeito ao fortalecimento da saúde por meio da construção de capacidade de

escolha (CZERESNIA, 2009); de mediação entre as pessoas e seu ambiente, combinando

escolhas individuais com responsabilidade social pela saúde (BUSS, 2009).

Frente ao exposto, atuar na atenção primária, na perspectiva da promoção da saúde

[...] Configura-se como uma possibilidade de responder a demandas sociais e exige reflexões que perpassam quatro eixos fundamentais: a concepção de saúde, a gestão do processo de trabalho e educação, a formação dos profissionais de saúde, a participação e o controle social. A conjugação dos elementos destes eixos deve direcionar as práticas em saúde, imprimindo a lógica do modelo tecnoassistencial em constante construção e reconstrução (SILVA et al, 2009, p.86).

Os profissionais da saúde, ao atuarem no campo da atenção primária, em consonância

com os pressupostos da promoção da saúde, devem pautar a sua prática em uma concepção

ampliada de saúde, considerando os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado;

devem estimular e promover a participação política da comunidade; devem atuar de modo a

extrapolar os limites dos serviços de saúde, com vistas a adotar ações intersetoriais e criar

ambientes favoráveis à saúde; e devem se engajar na luta pela consolidação de políticas

públicas saudáveis.

Entretanto, apesar da importância inquestionável da incorporação dos pressupostos da

promoção à saúde na prática dos profissionais, Silva et al (2009, p. 87) sinaliza que “as

mudanças nas práticas assistenciais direcionadas à construção da promoção da saúde são

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

15

ainda incipientes e têm pequena visibilidade no cenário das práticas em saúde justificando,

assim, a não percepção desta prática como estratégia para a transformação”.

Seguindo esse caminho, salienta-se que a promoção da saúde ainda não tem a atenção

merecida, especialmente por ainda imperar uma visão simplificada em seu fazer, a qual,

hegemonicamente, resume-se às mudanças do estilo de vida, à educação em saúde e a

prevenção de doenças. Na perspectiva de Heidmann et al (2006), é importante reconhecer que

a maior parte dos profissionais ainda desconhece o significado da promoção da saúde, o que

corrobora a notória confusão conceitual entre promoção e prevenção.

Esta afirmação de Heidmann et al (2006) é confirmada a partir da minha vivência

durante o curso de graduação no campo da atenção primária. As ações da promoção da saúde

são raramente explícitas na prática dos profissionais da saúde, com destaque para os

enfermeiros, restringindo-se constantemente às intervenções de educação em saúde, de

prevenção de doenças e para mudanças de comportamento.

A enfermagem, compreendida como um campo de prática social relacionado com a

estrutura econômica, política e ideológica do país, e cuja essência abarca uma forte conotação

de promoção global da saúde, emerge como um espaço fundamental para a consolidação da

promoção da saúde no âmbito da atenção primária. Mas, considerando a conformação

histórica de sua prática na sociedade e a divisão social e técnica do trabalho em enfermagem,

observa-se que os enfermeiros ainda têm sua prática, na maior parte das vezes, orientada pelo

modelo de atenção biomédico, afastando-se do cuidado, dos princípios e diretrizes da

Reforma Sanitária brasileira, parte deles presentes na política nacional de saúde, e dos

pressupostos da atenção primária à saúde.

Não se pode deixar de considerar que além da prática do enfermeiro, o cuidado em

saúde ainda está hegemonicamente vinculado a uma concepção técnico-científica e

reducionista, o que contribui com a manutenção de uma práxis de intervenção sobre um corpo

biológico, com vistas a eliminar uma doença.

Sendo assim, é urgente e necessário o resgate e a valorização do cuidado humano nas

práticas de saúde para romper com a hegemonia do paradigma biomédico, de modo a atenuar

a crise de legitimidade social que o cuidado em saúde enfrenta e possibilitar a retomada do

sentido principal das ações de saúde: a manutenção, conservação e promoção da vida. A

promoção da saúde, nesse contexto, emerge como uma estratégia fundamental para

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

16

impulsionar mudanças não somente no setor saúde, mas também na sociedade, resgatando o

cuidado nas relações humanas e nas práticas de saúde.

É importante destacar que, apesar da expressão promoção da saúde ser bastante

enunciada por profissionais, gestores e pessoas que atuam no meio acadêmico, o tema desse

estudo ainda é pouco explorado no Brasil. Assim, em face da necessidade de compreender, a

partir de constructos teóricos, como a promoção da saúde é revelada na prática do enfermeiro

na atenção primária, e considerando a concepção defendida pelo autor acerca da atenção

primária e da promoção da saúde como estratégias políticas, sociais e éticas essenciais para a

consolidação do SUS, para o resgate do cuidado e para a transformação das práticas de saúde

e dos modelos de atenção à saúde, emergiram as seguintes perguntas: como a promoção da

saúde é revelada na prática do enfermeiro que atua no campo da atenção primária? Qual é a

produção científica nacional sobre a promoção da saúde na prática do enfermeiro na atenção

primária?

Para suscitar reflexões e contribuir para o debate sobre a temática, traçaram-se os

seguintes objetivos:

• Geral: Analisar a produção científica nacional sobre a promoção da saúde na prática

do enfermeiro no campo da atenção primária.

• Específicos:

� Identificar a produção científica nacional sobre a promoção da saúde na prática do

enfermeiro no campo da atenção primária;

� Discutir as concepções sobre promoção da saúde na produção científica nacional;

� Caracterizar as práticas do enfermeiro para a promoção da saúde no campo da atenção

primária, segundo a produção científica nacional.

Por se tratar de uma temática pouco explorada no País e no intuito de compreender

como a promoção da saúde é revelada na prática de enfermeiros que atuam na atenção

primária, optou-se por desenvolver um estudo analítico de caráter exploratório, com

abordagem qualitativa.

Na perspectiva de Gil (2006a), a pesquisa exploratória tem o objetivo de fornecer uma

visão geral e aproximativa acerca de determinado fato. Ela compõe a primeira etapa de uma

investigação mais ampla sobre um tema, favorecendo, assim, maiores esclarecimentos sobre

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

17

um problema. Richardson et al (1999, p.100) complementam que os estudos que utilizam a

metodologia qualitativa podem

[...] descrever a complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais, contribuir no processo de mudança de determinado grupo e possibilitar em maior nível de profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos.

Essa investigação é constituída por dois momentos. O primeiro discute a promoção da

saúde e a prática do enfermeiro na atenção primária, sendo composto por três capítulos que

discorrem sobre: o contexto histórico-conceitual da atenção primária, no âmbito nacional e

internacional; sobre a trajetória história e as abordagens da promoção da saúde; e sobre a

promoção da saúde e a prática do enfermeiro na atenção primária.

Para nortear a discussão do terceiro capítulo adotaram-se os constructos teóricos sobre

o cuidado humano na perspectiva ontológico-existencial, do professor e médico sanitarista

José Ricardo Ayres (2009b) e do filósofo Leonardo Boff (2008); e sobre o cuidado em saúde

de José Ricardo Ayres (2009b) e da enfermeira Marie-Françoise Collière (1999; 2003). Para

promover o diálogo entre a promoção da saúde e a prática do enfermeiro na atenção primária,

adotou-se a abordagem dos cuidados de enfermagem centrados no desenvolvimento da saúde

discutida por Collière (1999; 2003).

A utilização desses constructos buscou também avançar na discussão do cuidado nas

práticas de saúde, compreendido nesse estudo como “[...] designação de uma atenção à saúde

imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou

mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da

saúde” (AYRES, 2009b, p.89); e do cuidar como uma atitude fundamental à manutenção,

conservação e promoção da vida (COLLIÉRE, 1999; 2003).

No segundo momento realizou-se uma revisão sistemática da literatura, no intuito de

verificar o conhecimento produzido sobre o tema em questão. A revisão sistemática da

literatura é uma forma de síntese das informações disponíveis em dado momento, sobre um

problema específico, de forma objetiva e reproduzível, por meio do método científico (LIMA,

SOARES e BACALTCHUK, 2000). Sampaio e Mancini (2007) complementam que esse tipo

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

18

de investigação disponibiliza um resumo das evidências mediante a aplicação de métodos

explícitos e sistematizados de busca, apreciação crítica e síntese da informação selecionada.

Para operacionalizar esse momento, seguiram-se as etapas descritas por Sampaio e

Mancini (2007):

1. Formulação da pergunta de investigação;

2. Busca das evidências, através da identificação das bases de dados a serem consultadas

e definição das palavras-chaves e estratégias de busca;

3. Estabelecimento de critérios para a seleção dos artigos a partir da busca;

4. Condução da busca nas bases de dados selecionadas e com base na(s) estratégia(s)

escolhidas;

5. Aplicar os critérios na seleção dos artigos;

6. Analisar criticamente e avaliar todos os estudos incluídos na revisão;

7. Preparar um resumo crítico, sintetizando as informações disponibilizadas pelos artigos

que foram incluídos na revisão;

8. Apresentar uma conclusão, informando a evidência.

Em face dessas considerações, definiu-se a seguinte questão: qual a produção

científica nacional sobre a promoção da saúde na prática do enfermeiro na atenção primária?

Através desta busca, procurou-se sintetizar a produção científica nacional sobre a temática em

questão.

Os dados foram coletados no período de abril a junho de 2010, no site da Biblioteca

Virtual em Saúde (BVS), utilizando-se as bases de dados Medical Literature Analysis and

Retrieval System On-line (MEDLINE) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em

Ciências da Saúde (LILACS), além da Scientific Electronic Library Online (SciELO ). Para a

pesquisa nas bases de dados utilizaram-se os seguintes descritores: atenção primária;

enfermagem; enfermagem em saúde pública; prática profissional; programa saúde da família;

promoção da saúde; trabalho.

Os critérios para inclusão dos artigos no estudo foram: que estivessem em português;

que tivessem disponibilidade do texto completo em suporte eletrônico; que os dados tivessem

sido coletados no Brasil; e que tivessem como lócus de estudo a atenção primária e como

sujeitos os enfermeiros.

A análise dos dados ocorreu por meio da leitura exploratória, seletiva e analítica,

considerando as concepções ideológicas da promoção da saúde, da prática do enfermeiro na

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

19

atenção primária e do cuidado. Este processo foi pautado na análise de conteúdo adaptada de

Bardin (2008) e ocorreu em três etapas: a pré-análise, cujo material selecionado foi

organizado, lido e as percepções são registradas; a exploração do material, que consiste na

transformação dos dados brutos, objetivando alcançar o núcleo de compreensão do texto e a

análise final, que visou desvendar o conteúdo trabalhado, considerando as ideologias,

tendências e outras denominações características do evento em análise.

Como esta pesquisa utiliza a abordagem qualitativa, destaca-se que o tratamento de

resultados qualitativos obtidos em uma revisão sistemática pode ser apresentado na forma

narrativa, quantitativa de estatística de achados qualitativos (metassumarização), ou através da

interpretação dos resultados (metassíntese) (SANDELOWSKI e BARROSO, 2003 apud

LOPES e FRACOLLI, 2008).

Considerando a abordagem qualitativa desse estudo, adotar-se-á a metassíntese

qualitativa, que segundo Sandelowski e Barroso (2004, p.774 apud LOPES e FRACOLLI,

2008)

É uma integração interpretativa de resultados qualitativos que são, em si mesmos, a síntese interpretativa de dados, incluindo fenomenologia, etnografia, teoria fundamentada nos dados, bem como outras descrições, coerentes e integradas, ou explanações de determinados fenômenos, eventos, ou de casos que são as marcas características da pesquisa qualitativa.

Esse estudo emerge num momento de diversos questionamentos no interior do setor

saúde e na própria sociedade, onde a reconstrução das práticas de saúde e da enfermagem, o

embate com o paradigma biomédico e o vislumbramento por mudanças ideológicas e práticas

se fazem necessárias para a construção de uma nova conjuntura política e social da produção

de saúde na sociedade brasileira.

Pretende-se trazer contribuições ao campo da Enfermagem e da Saúde Coletiva no que

concerne à promoção da saúde na atenção primária, resgatando o contexto histórico-

conceitual da atenção primária e da promoção da saúde, nos âmbitos nacional e internacional,

e dialogando com os construtos teóricos que versam sobre o cuidado nas práticas de saúde e

na enfermagem.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

20

2 ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS E CONCEPÇÕES

Este capítulo foi construído no intuito de compreender os elementos que caracterizam

a atenção primária à saúde em sua dimensão histórica e ideológica. Para isso, esta construção

pautou-se no entendimento de que a APS, compreendida em sua dimensão abrangente, é

essencial para a estruturação de sistemas de saúde. Isto porque é uma estratégia que possibilita

a intervenção sobre os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado, inerentes a

atenção à saúde da população, além de ser um lócus que, devido a suas peculiaridades,

representa um espaço privilegiado para as ações de promoção da saúde no âmbito do sistema

de serviços. Assim, o delineamento do contexto histórico da APS, ao tempo em que se dialoga

com suas concepções, é fundamental para a compreensão da especificidade deste campo.

Inicialmente, optou-se por uma aproximação com o movimento histórico e as

concepções da APS no contexto internacional, dado que este exerceu influência direta na

conformação da APS na América Latina e, consequentemente, no Brasil. Posteriormente, e

em articulação com o contexto internacional, delineou-se a conformação da APS no Brasil

que, nesse âmbito, foi denominada de Atenção Básica.

2.1 A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO CONTEXTO INTERNACIONAL

A atenção primária à saúde, desde meados do século XX, tem sido fundamental para a

estruturação e organização das ações dos sistemas de saúde em diversos países, conformando-

se de forma singular em cada realidade. A concepção e as práticas de saúde relativas à APS

alteraram-se ao longo do tempo, assim como são distintas as percepções quanto a sua

dimensão para os diversos atores envolvidos no campo da saúde (BAPTISTA, FAUSTO E

CUNHA, 2009).

No campo das definições, a atenção primária à saúde pode ser compreendida como o

nível de um sistema de serviços de saúde que possibilita a obtenção de respostas para todas as

necessidades e problemas. Este nível do sistema de saúde fornece atenção à pessoa no

decorrer do tempo e em todas as suas condições de saúde ou doença, excetuando-se as muito

incomuns e raras, e engloba um conjunto de funções que, combinadas, são exclusivas deste

nível. A abordagem inerente à atenção primária forma a base e determina o trabalho de todos

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

21

os outros níveis do sistema de saúde, de modo a coordenar, racionalizar e direcionar o uso dos

recursos, básicos ou especializados, para a promoção, proteção e melhoria da saúde

(STARFIELD, 2002).

A atenção primária revela-se como uma tendência relativamente recente de se inverter

a priorização das ações de saúde de uma abordagem desintegrada, curativa e centrada no

papel hegemônico do médico, para uma abordagem preventiva e promocional, integrada com

outros níveis de atenção, e construída coletivamente com outros profissionais de saúde

(ANDRADE, BARRETO E BEZERRA, 2007), em prol do desenvolvimento humano, social

e econômico das populações (FAUSTO e MATTA, 2007). Atualmente, no âmbito

internacional, a APS é considerada a base para um novo modelo assistencial em sistemas de

saúde que tenham em seu centro o usuário-cidadão (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008).

A moderna concepção de APS surgiu no Reino Unido em 1920, com a publicação do

Relatório Dawson, “[...] considerado um dos primeiros documentos que sintetizou um modo

específico de pensar políticas públicas de saúde mediante a criação de Sistemas Nacionais”

(CAMPOS, 2006, p.34). A construção desse documento procurou, de um lado, contrapor-se

ao modelo flexineriano norte-americano, que era essencialmente curativo, reducionista e

focado na atenção hospitalar, e de outro, constituir-se em uma referência para a organização

do modelo de atenção à saúde do país, o qual começava a preocupar as autoridades devido ao

elevado custo com a assistência à saúde, à crescente complexidade da atenção médica e à

baixa resolutividade (FAUSTO e MATTA, 2007) das ações em saúde pautadas no modelo

biomédico.

O Relatório Dawson preconizou a organização do sistema de serviços de saúde em três

níveis, descrevendo a função de cada um e as relações que deveriam existir entre eles

(MENDES, 2002). Segundo Fausto e Matta (2007), o modelo de atenção proposto no relatório

era composto por centros de saúde primários e secundários, serviços domiciliares, serviços

suplementares e hospitais de ensino.

Os centros de saúde primários e os serviços domiciliares deveriam ser organizados de

forma regionalizada, onde a maior parte dos problemas de saúde deveria ser resolvida por

médicos com formação generalista. Caso esse profissional não tivesse condições de

solucionar os problemas de saúde da população com os recursos disponíveis nesse âmbito da

atenção, os usuários deveriam ser encaminhados para os centros de atenção secundária, onde

haveria especialistas das mais diversas áreas, ou então para os hospitais, quando existisse

indicação de internação ou cirurgia (FAUSTO e MATTA, 2007).

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

22

Com isso, pode-se afirmar que este relatório constituiu-se no alicerce da

regionalização e hierarquização dos serviços de saúde, os quais deveriam ser organizados em

bases populacionais, influenciando a organização desses sistemas em vários países do mundo

(MENDES, 2002; FAUSTO e MATTA, 2007).

Um marco histórico mundial da APS é a I Conferência Internacional sobre Atenção

Primária em Saúde, ocorrida em 1978, na cidade de Alma-Ata, e organizada pelo Fundo das

Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Esse

evento questionou os modelos verticais de intervenção para o combate às endemias na África

e na América Latina (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008) e teceu duras críticas à

desigualdade existente no estado de saúde dos povos entre os países desenvolvidos e em

desenvolvimento, situação tida como política, social e economicamente inaceitável.

Em termos conceituais pode-se dizer que foi a partir da I Conferência Internacional

sobre Cuidados Primários que se buscou uma definição de APS que englobasse aspectos além

de um primeiro nível de atenção. Tendo por base as várias experiências de cuidados primários

em saúde desenvolvidas em diferentes partes do mundo, a APS, nessa ocasião, foi definida

considerando dois aspectos implícitos ao termo: a APS como estratégia e como nível de

atenção (FAUSTO, 2005; FAUSTO e MATTA, 2007).

Nesse evento foi produzida a declaração de Alma-Ata, um documento que teve

significante impacto na concepção de atenção primária difundida no mundo. Ela sintetizou as

discussões em torno das estratégias que deveriam ser adotadas no contexto mundial, no intuito

de proporcionar uma melhor condição de saúde para todos, independentemente da classe

social do indivíduo, propondo uma nova abordagem na organização e racionalização dos

recursos disponíveis nos cuidados primários à saúde, e introduzindo a participação

comunitária como elemento fundamental desse modelo (ASSIS, ASSIS e CERQUEIRA,

2008).

A referida declaração enfatiza a responsabilidade dos governos sobre a saúde de seus

povos, reitera a saúde como direito humano fundamental e uma das mais importantes metas

sociais mundiais, e define os cuidados primários de saúde como a chave para o alcance desta

meta. No bojo da declaração, os cuidados primários de saúde foram concebidos como:

Cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

23

alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação (OMS, 1978, p.2-3).

À luz da análise anterior, observa-se que os cuidados primários de saúde não são

cuidados primitivos, sem embasamento científico, conforme difundido no discurso dos que

defendem a hiper-especialização da saúde e a alta densidade tecnológica como parâmetros de

qualidade dos serviços de saúde. Os cuidados primários, compreendidos como essenciais ao

desenvolvimento humano, envolvem a participação política da comunidade, a solidariedade, a

qualidade dos serviços prestados e requerem dos atores que atuam nesse âmbito

conhecimento, atitude e habilidade, dada a sua complexidade específica.

A concepção de atenção primária expressa na declaração de Alma-Ata é abrangente,

principalmente por considerar a APS como parte integrante tanto do sistema de saúde dos

países, quanto do desenvolvimento econômico e social global das comunidades, o que

envolve a cooperação de outros setores que estão relacionados com o desenvolvimento

nacional e comunitário. Assim, a APS pressupõe a participação comunitária e individual no

planejamento, organização, operação e controle dos cuidados, além da democratização dos

conhecimentos, contrapondo-se à hegemonia médica (GIOVANELLA e MENDONÇA,

2008).

Nesta direção, a atenção primária à saúde é um elemento essencial na estruturação dos

sistemas nacionais de saúde, especialmente por representar o núcleo destes sistemas,

constituindo-se no primeiro nível de contato dos indivíduos, famílias e comunidades com o

sistema de saúde, os quais devem ser operados o mais próximo possível dos ambientes onde

as pessoas vivem e trabalham. Outrossim, os cuidados dispensados neste nível de atenção

constituem-se no primeiro momento de um processo permanente de assistência à saúde (que

inclui a prevenção, a promoção, a cura e a reabilitação), com foco nos principais problemas de

saúde da comunidade.

Após a difusão mundial dos pressupostos da atenção primária contidos na declaração

de Alma-Ata, o referido documento foi bastante criticado por agências internacionais, com o

argumento principal de ser muito abrangente, pouco propositivo (GIOVANELLA e

MENDONÇA, 2008), tido ainda “[...] como uma concepção idealizada, muito ampla e com

poucas chances de aplicabilidade” (BAPTISTA, FAUSTO e CUNHA, 2009, p. 1011).

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

24

A consideração anterior é fundamental para compreender as concepções que permeiam

a APS após 1979, principalmente ao considerar o poder internacional que agências como o

Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, enquanto expressões de afirmação

do modo de produção capitalista e da supremacia dos países desenvolvidos sobre os países em

desenvolvimento, têm nas decisões no âmbito mundial. Pode-se deduzir que uma concepção

de atenção primária abrangente, que afirma a responsabilidade dos governos sobre a saúde

dos povos, confere autonomia às pessoas/cidadãos e concebe a saúde como direito humano

fundamental emerge como uma proposta contra-hegemônica aos interesses e concepções

defendidos por estas agências.

Esse fato pode ser corroborado ao se constatar que no ano posterior a realização da

Conferência em Alma-Ata, “[...] a Fundação Rockefeller financiou a realização da

Conferência de Bellagio, a partir da qual se disseminou internacionalmente uma noção

seletiva da APS” (BAPTISTA, FAUSTO e CUNHA , 2009, p.1010). A difusão da concepção

de APS seletiva, que contou com o apoio e financiamento de agências e fundações

internacionais, provocou tensão nos discursos durante a década de 1980 e se refletiu na

organização dos serviços de saúde na década seguinte (BAPTISTA, FAUSTO e CUNHA ,

2009). Neste sentido,

Em contexto internacional adverso de baixo crescimento econômico e maior presença de governos conservadores, deu-se seqüencia, nos anos posteriores, a um embate entre a concepção de atenção primária a saúde integral e abrangente e a concepção restrita de atenção primária à saúde, prevalecendo a última (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008, p.580-1).

O embate entre a concepção seletiva e abrangente da atenção primária à saúde

contribuiu para consolidar a diversidade de significados e sentidos adquiridos pela APS ao

longo do tempo, o que coloca importantes desafios para a sua compreensão. De acordo com

Fausto e Matta (2007), os aspectos econômicos, políticos e ideológicos que permeiam as

práticas no campo da saúde contribuem para a produção de distintas interpretações e

abordagens da APS nos diferentes sistemas de saúde.

Sendo assim, pode-se afirmar que a atenção primária à saúde é uma expressão que

envolve distintas interpretações, identificando-se duas concepções predominantes: como porta

de entrada do sistema, prestando cuidados ambulatoriais, e como política de reorganização do

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

25

modelo assistencial de forma seletiva ou ampliada (GIOVANELLA, 2008). Comumente, os

estudiosos da área sugerem três interpretações para a APS, conforme explicitado por Mendes

(2002): a atenção primária seletiva; a atenção primária como o nível primário do sistema de

serviços de saúde e como estratégia de organização dos sistemas nacionais de saúde. Este

mesmo autor afirma que estas três abordagens são encontradas em vários países e podem

conviver dentro de um mesmo país, como no caso brasileiro.

A atenção primária seletiva designa um pacote de intervenções de baixo custo

(também compreendida como uma cesta de serviços básicos selecionados), voltada à

população em situação de extrema pobreza, no intuito de combater as principais doenças em

países pobres. Esta concepção foi hegemônica durante a década de 1980 para agências

internacionais como o Banco Mundial (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008), que pode ser

considerado o principal difusor das idéias de focalização e seletividade das ações dos

governos no campo das políticas sociais, especialmente no setor saúde (FAUSTO e MATTA,

2007).

Dentre os fatores que contribuíram para a disseminação da concepção de atenção

primária seletiva foi o cenário de crise econômica dos anos 80 e a emergência dos governos

neoliberais nos países desenvolvidos, os quais apoiavam projetos de ajuda ao

desenvolvimento de países pobres. Nesse contexto, as políticas de ajuste estrutural e as idéias

sobre reforma do Estado, que tinham como alvo a redução de gastos públicos, influenciaram

na escolha de projetos de baixo valor econômico e de curto prazo a serem financiados

(CUETO, 2003 apud FAUSTO e MATTA, 2007).

Os objetivos dos programas vinculados à concepção seletiva da atenção primária são

restritos e voltados para as populações e regiões pobres, sendo oferecidos, exclusivamente,

por meio de tecnologias simples, providas por pessoal de baixa qualificação profissional, não

garantindo às populações o acesso aos outros níveis de atenção do sistema de saúde

(MENDES, 2002). A APS seletiva também tinha como objetivo estender a cobertura a partir

da oferta de ações de saúde simples e de baixo custo, principalmente em áreas rurais onde a

população não tinha acesso ao sistema de serviços de saúde existente (BAPTISTA, FAUSTO

e CUNHA, 2009).

Giovanella (2008) complementa que a concepção de atenção primária seletiva

corresponde a uma tradução restrita dos objetivos preconizados em Alma-Ata para a

estratégia “Saúde para Todos no Ano 2000”. Esta concepção reflete também uma negligência

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

26

quanto ao pólo democrático/participativo da proposta, exacerbando-se o seu pólo

tecnocrático, com racionalização de práticas e seleção de atividades custo-efetivas.

No que concerne à abordagem da APS como nível primário dos sistemas de serviços

de saúde, pode-se dizer que nesta concepção a atenção primária à saúde é tida como a

prestação de serviços ambulatoriais de primeiro contato, que são integrados a um sistema de

saúde de acesso universal, sendo comumente encontrada nos sistemas de saúde dos países

europeus. Esta concepção de APS é a “[...] de serviços ambulatoriais de primeiro contato do

paciente com o sistema de saúde, não especializados, incluindo amplo espectro de serviços

clínicos e, por vezes, de ações de saúde pública, direcionados a resolver a maioria dos

problemas de saúde de uma população” (GIOVANELLA, 2008, p.22).

O sistema de saúde focado nesta abordagem de APS concebe-a como o modo de

organizar e efetivar o funcionamento da porta de entrada do sistema, enfatizando a função

resolutiva destes serviços sobre os problemas mais comuns de saúde, de modo a minimizar os

custos econômicos e a satisfazer as demandas da população, restritas, porém, às ações de

atenção de primeiro nível (MENDES, 2002).

Na história recente de diversos países, a atenção primária à saúde é adotada com o

intuito de organizar os recursos do sistema de saúde para que respondam de maneira

apropriada às necessidades de suas populações. Essa concepção de APS, como pilar de

estruturação dos sistemas de saúde, tende a superar concepções restritas, que a compreendem

como um meio para ofertar serviços às populações marginalizadas, ou unicamente como mais

um nível de assistência (MENDES, 2002). Assim, a interpretação abrangente de APS

corresponde a uma concepção de modelo assistencial, de reorientação e de organização de um

sistema de saúde integrado, centrado na atenção primária à saúde, com garantia de atenção

integral (GIOVANELLA, 2008).

Os sistemas nacionais de saúde que concebem a APS como elemento-chave na sua

constituição demonstram a capacidade desta de produzir impacto positivo nos indicadores de

saúde, com grande potencial regulador na utilização dos recursos de alta densidade

tecnológica, garantindo o acesso universal aos serviços que tragam reais benefícios à saúde da

população e contrapondo-se aos sistemas concebidos a partir do modelo médico-hegemônico,

os quais têm demonstrado sinais evidentes de esgotamento (CONASS, 2007).

Na perspectiva de Testa (1987, p.161), tendo em vista a constituição de um sistema de

saúde, a atenção primária “é o degrau inicial da cadeia de atenção, onde são resolvidos os

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

27

problemas de menor dificuldade técnica - diagnóstica e terapêutica - e se orientam os restantes

pelos níveis sucessivos da cadeia”. Esta afirmação implica uma rede de serviços interligados

por procedimentos de referência e de transmissão de informação, que ordenam a circulação

dos usuários no interior do sistema. Além disso, implica também num ordenamento territorial

regionalizado e um comportamento social que obedeça, mais ou menos disciplinadamente, às

normas de ingresso e circulação (TESTA, 1987).

Os sistemas de saúde baseados na concepção abrangente de APS estão conformados

por um conjunto central de elementos estruturais e funcionais que garantem à população a

cobertura e o acesso universal a serviços aceitáveis, aumentando deste modo a equidade.

Além disso, oferece cuidados abrangentes, coordenados ao longo do tempo; enfatiza as ações

de promoção da saúde e prevenção de riscos e agravos; planeja suas ações para as famílias e

comunidade; e assegura o cuidado no primeiro atendimento (OPAS, 2008).

Definimos um sistema de saúde com base na APS como uma abordagem abrangente de organização e operação de sistemas de saúde, a qual faz do direito ao mais alto nível possível de saúde sua principal meta, enquanto maximiza a eqüidade e a solidariedade. Tal sistema é guiado pelos princípios da APS de resposta às necessidades de saúde das pessoas, fomento da qualidade, responsabilidade governamental, justiça social, sustentabilidade, participação e intersetorialidade (OPAS, 2008, p.8).

Com essas considerações, observa-se que sistemas de saúde que assumem a concepção

abrangente de atenção primária são conformados também por princípios e valores que

somente esta concepção abarca em sua essência e filosofia. Mendes (2002) chama atenção

que o correto entendimento do conceito de APS dar-se-á pelo conhecimento e

operacionalização de seus princípios ordenadores, conforme explicitado por Starfield (2002)

(primeiro contato, longitudinalidade, integralidade, coordenação, focalização na família e

orientação comunitária), sendo que somente haverá atenção primária à saúde de qualidade

quando esses seis princípios forem obedecidos em sua totalidade.

Em síntese, a concepção sobre atenção primária no mundo tem vários sentidos,

abarcando desde o primeiro nível de atenção, passando pela idéia de um tipo de serviços, uma

filosofia de atendimento, até uma estratégia de organização dos sistemas nacionais de saúde

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

28

(SOUSA e HAMANN, 2009). Esta afirmação é sustentada por Vuori (1986, p.401), ao tecer

as seguintes considerações:

How can I call general practitioners enemies of primary health care? Well, it depends on how you interpret the concept, what you emphasize and what you omit. This becomes obvious if we take another look at the four facets of primary health care: as a set of activities, as a level of care, as a strategy and as a philosophy.

O contexto histórico das abordagens sobre atenção primária à saúde sugere que, desde

sua origem, esta foi concebida como um momento da atenção que conjetura a existência de

outros níveis de atenção e, por isso, pressupõe uma rede interligada de serviços de saúde.

Entretanto, os conteúdos político e ideológico que permeiam o termo produzem diversas

interpretações e abordagens nos diferentes sistemas de saúde, os quais são influenciados pelo

contexto político, econômico, social e cultural da realidade local (FAUSTO, 2005).

2.2 ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE NO BRASIL

No Brasil, as proposições da atenção primária à saúde começaram a ser debatidas no

âmbito da Reforma Sanitária, na década de 1970, e acompanhando o movimento

internacional. Contudo, seus antecedentes se localizam na década de 1920, quando são

implantados os primeiros serviços de atenção primária, denominados de Centros de Saúde

(GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008).

O primeiro Centro de Saúde foi criado em 1925, por Geraldo de Paula Souza, em São

Paulo, inspirado de um lado na higiene privada dos norte-americanos e, de outro, nos sistemas

ingleses dawsonianos de base populacional, fazendo um corte nítido entre o campo da saúde

pública e o da atenção médica. Esses centros tinham uma população adscrita, utilizavam como

ação fundamental a educação sanitária, focalizavam a prevenção das doenças e,

posteriormente, foram transformados em centros de saúde-escola (MENDES, 2002).

Assim como em outros países em desenvolvimento, no Brasil difundiu-se um modelo

diferente de centro de saúde, o qual atuava com foco em serviços prioritariamente

preventivos, sendo que quando os pacientes necessitavam de tratamento eram encaminhados

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

29

para ambulatórios de hospitais após comprovarem a sua indigência (GIOVANELLA e

MENDONÇA, 2008).

O primeiro ciclo de expansão da atenção primária à saúde se deu no início de 1940,

com a criação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) (MENDES, 2002). O SESP,

concebido em 1942 através de acordos de cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos,

trouxe contribuições importantes para a formação de idéias referentes à APS no país e “[...]

tinha como um dos seus objetivos centrais proporcionar o apoio médico-sanitário às regiões

de produção de materiais estratégicos que naquela época eram relevantes para o Brasil em

suas relações internacionais, no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial”

(FAUSTO, 2005, p.99).

O espaço de atuação do SESP eram as regiões Norte e Nordeste do País

(GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008), sendo que a Fundação Rockefeller teve papel

preponderante na organização de suas ações até 1960, quando o Ministério da Saúde passou a

exercer maior controle decisório sobre os rumos da instituição (FAUSTO, 2005).

Sob a influência da medicina preventiva norte-americana (GIOVANELLA e

MENDONÇA, 2008; FAUSTO, 2005), as atividades do Serviço Especial de Saúde Pública

podem ser identificadas dentro do marco da atenção primária, elencando em seu campo de

ação um caráter abrangente, articulando atividades coletivas e preventivas à assistência

médica-curativa, respaldadas em desenvolvimento científico e tecnológico limitado

(GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008).

O SESP foi pioneiro na atenção básica domiciliar com uso de pessoal auxiliar e na

implantação de redes hierarquizadas de atenção à saúde, com a execução de serviços

preventivos e curativos, realizando também internação em suas unidades mistas (FAUSTO,

2005). Suas ações tinham como base um programa integrado que conciliava agentes

sanitários, auxiliares de enfermagem, enfermeiros e médicos (FAUSTO e MATTA, 2007).

Do ponto de vista institucional, as ações do SESP limitavam-se às áreas estratégicas e

configuravam-se como ações centralizadas e desarticuladas em relação às outras instituições

de saúde (FAUSTO, 2005).

As atividades do SESP envolviam a prestação de assistência médico-sanitária, uma inovação para aquela época. Sua atuação tinha ênfase nas seguintes ações: controle de doenças transmissíveis, educação sanitária, saneamento (água, dejetos, construção de fossas, higiene da habitação,

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

30

combate à malária, fiscalização de gêneros alimentícios); atividades de assistência médica ao adulto, à mulher, à criança; exames laboratoriais (exames de urina, sangue, fezes, escarro, muco nasal) (FAUSTO, 2005, p.99).

Apesar das contribuições ao campo da atenção primária, inerentes a atuação do SESP

no Brasil, é importante destacar que antes dos anos de 1960 não estavam estabelecidos os

marcos conceituais e nem se utilizava o termo “atenção primária à saúde”, apesar de várias

ações desenvolvidas nesse período sejam identificadas como tal. Estas ações referiam-se às

ações clássicas de saúde pública, as quais eram conduzidas por órgãos responsáveis pelo setor

saúde no Brasil (FAUSTO, 2005).

Ao longo da trajetória da política de saúde brasileira, especialmente após a difusão do

SESP no Brasil, nota-se uma dualidade na organização das ações e serviços do sistema de

saúde. Essa dualidade caracteriza-se pela presença, de um lado, da atuação das instituições

previdenciárias de atenção médica curativa e individual vinculadas ao Ministério da

Previdência e Assistência Social, e de outro, de práticas preventivas desenvolvidas a partir do

modelo de saúde pública adotado pelo Ministério da Saúde, o qual se expressa primeiramente

nas campanhas sanitárias e posteriormente, com um caráter mais abrangente, nas ações

desenvolvidas pelo Serviço Especial de Saúde Pública, conforme ilustrado anteriormente

(FAUSTO, 2005).

No transcorrer da década de 1960 a dicotomia entre serviços de saúde pública e

assistência médica individual e curativa prevalecia, mesmo após a criação do Ministério da

Saúde, em 1953, sendo debatida na 3ª Conferência Nacional de Saúde, quando se tornou

evidente o embate entre duas perspectivas:

Uma era unificadora, estruturada em torno de um conjunto de idéias designadas como sanitarismo desenvolvimentista, que apresentava propostas de descentralização do sistema e soluções médicas e sanitárias mais próximas dos problemas de saúde e outra oriunda do setor secundário, que propunha a ampliação da cobertura populacional da previdência social (GIOVANELLA E MENDONÇA, 2008, p.595).

A última perspectiva citada consolidou-se mediante a criação do Instituto Nacional de

Previdência Social (INPS) em 1966, período em que o regime da ditadura militar já estava

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

31

instalado (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008). Na vigência do regime ditatorial cresce a

prática privativa e empresarial da medicina, levando à consolidação do modelo médico-

assistencial hegemônico no Brasil, conduzindo a um padrão precário de saúde da população e

a uma crise no setor saúde oriunda dos altos custos na produção de ações e serviços.

Neste contexto, emergiram e foram implantadas as primeiras propostas abrangentes de

atenção primária no País, inspiradas no referencial proposto em Alma-Ata, com ênfase nos

determinantes sociais da saúde. Estas foram referências para experiências desenvolvidas por

universidades e em municípios cujos governos locais eram opositores à ditadura militar e

engajados no movimento da Reforma Sanitária (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008).

Em face da crise econômica, política e sanitária, em meados da década de 1970, e com

a emergência do movimento da Reforma Sanitária, a atenção primária ganhou foco como a

principal estratégia para a organização do novo sistema de saúde, e como meio fundamental

para responder as necessidades de saúde da população brasileira, levando em consideração os

determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado. Neste sentido, os princípios da

atenção primária à saúde foram incorporados no modelo de proteção social em saúde

instituído com o SUS (ESCOREL et al, 2007), sendo a atenção primária definida como

atenção básica.

Salienta-se que no período anterior à criação do SUS a atenção primária à saúde

representava um marco referencial para a organização dos serviços, com vistas a produzir

mudanças no modelo de atenção à saúde. Após a criação do SUS e o desenvolvimento de seus

mecanismos financeiros e operacionais, é frequente o uso do termo atenção básica para

designar o primeiro nível de atenção do sistema (GIL, 2006b).

O termo atenção básica à saúde é pouco encontrado na literatura mundial. O conceito

usual para este campo de práticas é atenção primária à saúde (SOUSA e HAMANN, 2009).

Na perspectiva de Narvai (2005), a expressão “atenção básica”, no contexto do sistema de

serviços de saúde, denota uma função essencial da unidade básica de saúde (UBS), a qual é

reconhecida como unidade fundamental do SUS. Esse mesmo autor afirma que atenção

primária ou básica significa atenção primeira e não necessariamente atenção única,

contrapondo-se a uma atenção de baixa qualidade para problemas simples. Sousa e Hamann

(2009) reiteram que, enquanto uma formulação típica do SUS, a atenção básica sustenta-se no

princípio da integralidade, denotando uma articulação de ações de promoção da saúde e

prevenção, tratamento e reabilitação de doenças e agravos.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

32

A preferência brasileira pelo termo atenção básica pode ser atribuída ao contexto

histórico internacional de difusão das propostas de ajuste fiscal do FMI e do Banco Mundial

nos países latino-americanos, os quais mantinham a ênfase em programas de APS seletivos e

focalizados, contrários aos princípios de universalidade e integralidade do SUS

(GIOVANELLA e MENDONÇA, 2008).

É importante destacar que a atenção primária à saúde, no contexto brasileiro, traz

consigo as seqüelas do debate travado no decorrer de 1970, oriundas do seu caráter

racionalizador defendido pelas agências financeiras que preconizavam a redução do

financiamento e gastos em saúde, em detrimento de investimentos para atender as reais

necessidades de saúde das populações dos países periféricos (GIL, 2006b). Assim,

A Atenção Primária à Saúde, por ter sido implementada num contexto no qual a expansão da cobertura veio acompanhada das propostas de contenção do financiamento, teve seus pressupostos estruturantes de um novo modelo (universal, equânime, inclusivo, integral) obscurecidos pelo ideário neoliberal racionalizador (focalização, baixo custo, pacote básico, excludente) (GIL, 2006b, p.1179).

Apesar do contexto adverso em que foi implantada a APS no transcorrer do processo

de construção do SUS, é evidente a importância da atenção primária à saúde para o avanço e

fortalecimento do Sistema Único de Saúde. Escorel et al (2007) afirmam que a partir da

segunda metade da década de 1990 o processo de implantação do SUS caminhou

simultaneamente com a adoção de diversas medidas governamentais, algumas contrárias e

outras voltadas para o fortalecimento da atenção básica à saúde e, dentre elas, destaca-se o

Programa Saúde da Família (PSF).

A implantação do Programa Saúde da Família é um marco na incorporação da atenção

primária na política de saúde do Estado brasileiro. Isto se dá, principalmente, por incorporar

os princípios do SUS e se aproximar das premissas da atenção primária à saúde (primeiro

contato, longitudinalidade, abrangência do cuidado, coordenação e orientação à família e às

comunidades), buscando romper com uma atenção de baixo custo e simplificada (ESCOREL

et al, 2007).

Surgido em 1994 e voltado, inicialmente, para estender a cobertura assistencial em

áreas de maior risco social, o PSF paulatinamente adquiriu um papel central na agenda

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

33

governamental. Desde 1999, o PSF é considerado pelo Ministério da Saúde como uma

estratégia para a reorientação do modelo de atenção à saúde do Brasil (ESCOREL et al,

2007), vislumbrando a reorganização da atenção básica e sendo operacionalizado através de

equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde (BRASIL, 2009).

O Programa Saúde da Família, formulado como programa especial vinculado ao

modelo sanitarista de atenção à saúde, foi posteriormente redefinido como uma estratégia de

mudança do modelo assistencial. Por conta das suas especificidades, o PSF não seria uma

intervenção totalmente vertical e paralela aos serviços de saúde, caracterizando-se como uma

estratégia que possibilitaria a integração e promoveria a organização das atividades em um

território definido (PAIM, 2008). Neste contexto, passou a ser denominado de Estratégia

Saúde da Família (ESF).

De acordo com o Ministério da Saúde (2009), a ESF é um projeto dinamizador do

SUS que, enquanto estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, tem provocado

um importante movimento na reordenação do modelo de atenção no SUS, buscando maior

racionalidade na utilização dos demais níveis assistenciais, apesar dos inúmeros desafios

impostos à sua implantação.

A partir destas considerações observa-se um movimento ideológico e político para

incorporar os princípios da atenção primária balizados por Starfield (2002) no PSF. Porém,

não se pode deixar de lado as raízes históricas e políticas do Brasil no que concerne a atenção

básica, em especial pela evidência da verticalização das ações desenvolvidas neste âmbito e

da presença da concepção de APS seletiva em suas ações.

Associado aos fatos anteriormente citados é importante destacar que durante o período

de implantação e expansão do PSF registrou-se uma massiva publicação de documentos e

portarias objetivando orientar a organização e execução da atenção básica e do PSF. Isto

resultou em expressiva fragmentação normativa, conforme explicitado pelo Conass (2007),

carecendo ainda de uma concepção do que seria esta atenção básica. Isso acarretou na

publicação, em 2006, da Portaria n. 648, de 28 de março, que aprova a Política Nacional de

Atenção Básica (PNAB)

Nesse documento, a atenção básica é caracterizada como um conjunto de ações,

individuais e coletivas, que abarca a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o

diagnóstico e o tratamento de enfermidades, a reabilitação, manutenção e proteção da saúde.

Ela é desenvolvida por meio de práticas sanitárias e gerenciais democráticas e participativas,

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

34

sob a forma do trabalho em equipe, direcionadas às populações de territórios bem delimitados,

sob o qual assume responsabilidade sanitária (BRASIL, 2006).

A unidade básica de saúde, nesse contexto, é considerada a porta de entrada do SUS,

não significando, porém, que a UBS é um lócus de passagem das pessoas em direção a outros

níveis de atenção. Pelo contrário: “[...] em sistemas locais de saúde bem organizados e

dirigidos, a rede básica é responsável pela resolução de mais de 70% dos casos,

desenvolvendo ainda uma série de ações com o objetivo de evitar o aparecimento de doenças

na comunidade” (NARVAI, 2005, p.3).

Entretanto, embora a concepção nacional de atenção básica abarque contribuições da

APS mundialmente difundida,

Identifica-se nos mais de cinco mil municípios brasileiros uma enorme gama de práticas sob a designação de Atenção Básica ou Saúde da Família. Assim, mesmo considerando uma atenção básica ampliada, abrangente e inclusiva, como pensada pelos formuladores de forma tripartite, pode-se ver, em alguns locais, a APS focalizada ou excludente acontecendo, na prática, no país (CONASS, 2007, p.18).

Com isso, percebe-se que diversos desafios se encontram na arena de construção da

atenção primária na política de saúde brasileira. Dentre estes desafios, que devem ser

superados, destaca-se a ambigüidade terminológica da APS no Brasil, o que tem causado falta

de clareza, ausência de consenso em relação ao significado e dimensão da atenção primária à

saúde (FAUSTO, 2005) e uma miscelânea de práticas de APS no interior do SUS, conforme

corroborado pelo Conass (2007).

Na investigação realizada por Baptista, Fausto e Cunha (2009), evidenciou-se que,

apesar do debate sobre APS no Brasil ter lugar na discussão política e acadêmica após a

ascensão e expansão do PSF, há uma tendência dos estudos realizados neste período

reforçarem as diretrizes traçadas pelo Ministério da Saúde, assumindo como foco principal o

discurso da política oficial e deixando subentendido a concepção de APS adotada. Sendo

assim, o aporte conceitual da APS no Brasil persiste comprometido e multifacetado, dado que

“[...] o esforço de consolidação dessa área é muito recente, e por estar atrelado a uma política

governamental, tem sofrido as consequências dessa proximidade, sendo pouco crítico à

realidade e defensor da política oficial” (BAPTISTA, FAUSTO e CUNHA, 2009, p.1023).

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

35

As mesmas autoras chamam atenção para um fato importante que necessita ser

discutido: a APS e o PACS/PSF são tratados como sinônimos na produção identificada por

elas. Apesar de não haver dúvidas que o PSF teve papel essencial no resgate do debate sobre

atenção primária na agenda da política nacional e na produção acadêmica, esta evidência

aponta para uma lacuna na discussão sobre os conceitos e a estruturação da APS no País, cujo

enfoque é o PSF e a reorientação do modelo de atenção à saúde, sem discutir o que embasa o

modelo (BAPTISTA, FAUSTO e CUNHA, 2009, p.1023).

Assim, comunga-se com a seguinte afirmação:

No Brasil, o postulado da APS como estratégia política de governo tem sido colocado em diferentes projetos que tomam como lócus da atenção e como espaço operacional de intervenção estratégica o Programa Saúde da Família (PSF). No entanto é um processo pleno de contradições, permeado por conflitos, consensos e dissensos (ASSIS, ASSIS e CERQUEIRA, 2008, p. 302).

Isto posto, constata-se que no contexto brasileiro é necessário resgatar a essência e o

próprio movimento da atenção primária à saúde iniciado em Alma-Ata; construir práticas

políticas e sociais que possam explorar as potencialidades inerentes à APS; e superar os

desafios crônicos e os dissensos que ainda imperam neste âmbito. A implementação da

atenção básica sustentada nos princípios da atenção primária pode produzir maior impacto na

qualidade de vida da população brasileira e vir a se constituir no núcleo do Sistema Único de

Saúde.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

36

3 PROMOÇÃO DA SAÚDE: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E BASE CONCEITUAL

A promoção da saúde, considerada atualmente um campo conceitual e de práxis, tem

influenciado a organização do sistema de saúde de diversos países e regiões do mundo

(HEIDMANN et al, 2006). Relacionada a um movimento de crítica à medicalização do setor

saúde, o que contribuiu para a necessidade de controlar os custos crescentes da assistência à

saúde (CZERESNIA, 2009), a promoção de saúde propõe uma concepção que não restringe a

saúde à ausência de doença, mas que direciona o seu campo de ação sobre os determinantes

socioambientais do processo saúde-doença-cuidado (SÍCOLI e NASCIMENTO, 2003).

Em sua conformação teórica moderna, a promoção da saúde propõe a atuação sobre as

condições de vida da população; extrapola a prestação de serviços clínico-assistenciais; e

preconiza ações intersetoriais que envolvem a educação, o saneamento básico, a habitação, a

renda, o trabalho, a alimentação, o meio ambiente, o acesso a bens e serviços essenciais, o

lazer, dentre outros determinantes sociais que incidem sobre a produção da saúde e da doença

(SÍCOLI e NASCIMENTO, 2003).

Sendo assim, observa-se que promover a saúde envolve um conjunto de valores como:

a vida, a saúde, a solidariedade, a equidade, a democracia, a cidadania, o desenvolvimento, a

parceria, entre outros. Envolve, também, uma combinação de estratégias, a saber: ações do

Estado (políticas públicas saudáveis), da comunidade (reforço da ação comunitária), de

indivíduos (desenvolvimento de habilidades pessoais), do sistema de saúde (reorientação do

sistema de saúde) e de parcerias intersetoriais (BUSS, 2009).

Promover a saúde, destarte, alcança uma abrangência muito maior do que circunscreve

o campo específico da saúde (CZERESNIA, 2009) e requer uma responsabilização conjunta

dos sujeitos implicados no processo saúde-doença-cuidado, seja pelos problemas, seja pelas

soluções propostas para os mesmos, o que demanda uma ação coordenada entre todas as

partes envolvidas (BUSS, 2009).

À luz destas considerações, pode-se considerar que a promoção da saúde, ao partir de

uma perspectiva contra-hegemônica, configura-se como um movimento ideológico. Na

perspectiva de Arouca (2003), a ideologia pode ser compreendida como o sistema de idéias e

representações que dominam o espírito de um homem ou de um grupo social; e a prática

ideológica compreende as atividades realizadas no sentido de transformar uma dada ideologia

em outra ideologia. Nesse sentido, “(...) um movimento ideológico representa um conjunto de

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

37

atividades visando transformar a ‘visão de mundo’ dos homens em uma nova “visão de

mundo” (AROUCA, 2003, p.36).

Seguindo o pensamento do referido autor, e trazendo as suas contribuições para o

campo da promoção da saúde, verifica-se que o movimento da promoção da saúde vislumbra

mais do que a produção de novos conhecimentos e de mudanças na estrutura da atenção à

saúde. Enquanto um movimento ideológico, a promoção da saúde construiu diversas críticas

às práticas hegemônicas de saúde (as quais foram historicamente construídas e ainda são

pautadas no saber biomédico) e propõe uma mudança baseada na transformação da atenção à

saúde, com projeções para a organização social em que se vive.

Para se sustentar enquanto um movimento ideológico, a promoção da saúde deve

possuir um corpo coerente de idéias, articulado em um duplo aspecto: de um lado, deve

realizar a crítica da ideologia que procura substituir (“saúde como ausência de doença” e

atenção à saúde pautada no paradigma biomédico), demonstrando a sua ineficiência e, por

outro lado, deve afirmar a sua própria eficácia na solução dos problemas apresentados,

apontando a abertura de novas perspectivas não alcançadas pelo movimento anterior

(AROUCA, 2003).

No campo das definições, verifica-se que o conceito contemporâneo de promoção da

saúde é multifacetado e ainda está em construção. Existem numerosas definições e

concepções para a promoção da saúde, as quais dependem das diferentes considerações

políticas, sociais e teóricas dos seus autores (CARVALHO, 2007). Sendo assim, defende-se

neste estudo a perspectiva socioambiental da promoção da saúde, difundida pela OMS a partir

da publicação da Carta de Ottawa, a qual será abordada posteriormente, no transcorrer do

desenvolvimento deste capítulo.

O conceito moderno de promoção da saúde (e a prática decorrente deste conceito)

surgiu e se desenvolveu de forma mais intensa nos últimos trinta anos, particularmente no

Canadá, Estados Unidos e países da Europa Ocidental (BUSS, 2000). Entretanto, suas origens

remontam ao século XIX, quando dois sanitaristas destacaram-se por ampliar a dimensão do

processo saúde-doença: Rudolf Virchow e Thomas McKeown. Eles incluíram ações sobre os

determinantes sociais da saúde, contribuindo assim para a formação do marco referencial da

promoção da saúde.

Virchow, patologista de formação, sanitarista político e considerado o precursor das

estratégias de promoção da saúde utilizadas atualmente, ao estudar a epidemia de tifo, na

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

38

Prússia, em 1847-48, incluiu análises do contexto local nos seus aspectos social e cultural. Os

resultados obtidos orientaram recomendações diferenciadas para a época, principalmente por

ter relacionado saúde à democracia, educação, liberdade e prosperidade da população pobre

que vivia na região estudada (WESTPHAL, 2009).

Thomas McKeown, ao estudar os fatores responsáveis pela mortalidade da população

inglesa, destacou os que mais contribuíram para a melhoria da qualidade de vida desta

população, a saber: desenvolvimento econômico, nutrição, mudança nos níveis de vida da

população e muito menos as intervenções de caráter médico individual (WESTPHAL, 2009).

Suas idéias influenciaram o movimento da medicina social e da epidemiologia social, que

teceram críticas à teoria e prática da Saúde Pública nas décadas de 1960, 1970 e 1980 na

América Latina. Aliado a isso, é importante destacar que seus argumentos, os quais

focalizaram intervenções nos determinantes sociais da saúde, foram considerados importantes

na formação do marco teórico da promoção da saúde (WESTPHAL, 2009).

Nesse sentido, as propostas de ações sobre o processo saúde-doença, levando em

consideração os determinantes sociais da saúde identificados por Rudolf Virchow e Thomas

McKeown, representaram uma mudança e incluíram uma nova perspectiva para o

entendimento do processo saúde–doença que, desde o século II a.C. desenvolveu-se em torno

do paradigma biomédico, primeiro com a generalização do emprego de medicamentos e,

posteriormente, com o desenvolvimento científico e da própria medicina (FERNANDEZ et al,

2008).

Apesar das importantes contribuições dos estudos e propostas de Virchow e McKeown

ao campo da promoção da saúde, este termo foi utilizado pela primeira vez no início do século

XX pelo sanitarista Henry Sigerist, ao conceber as quatro funções da medicina: promoção da

saúde, prevenção de doenças, tratamento dos enfermos e reabilitação. Para Sigerist, a

promoção da saúde significava, de um lado, ações de educação em saúde e, por outro, ações

estruturais do Estado para melhorar as condições de vida (WESTPHAL, 2009). Buss (2009,

p.21) reitera esta idéia ao ratificar que Sigerist:

(...) afirmou que a saúde se promove proporcionando condições de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, cultura física e formas de lazer e descanso, para o que pediu o esforço coordenado de políticos, setores sindicais e empresariais, educadores e médicos. A estes, como especialistas em saúde, caberia definir normas e fixar standarts.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

39

Posteriormente, em meados da década de 1950, outra visão contra-hegemônica do

processo saúde-doença foi observada no trabalho de dois sanitaristas: Hugh Rodney Leavell e

Edwin Gurney Clark (WESTPHAL, 2009), ambos da Harvard School of Public Health. Em

1953 eles propuseram o modelo da História Natural da Doença (HND), que se tornou

referência internacional neste assunto (AYRES, 2009a).

O conceito de Leavell e Clark começou a ser difundido no Brasil na década de 1970,

especialmente após a publicação do livro texto dos autores, intitulado Medicina Preventiva,

que foi traduzido por Cecília Donnangelo, Moisés Goldbaum e Uraci Ramos, professores do

Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São

Paulo (AYRES, 2009a). O modelo da HND:

Compreende todas as inter-relações do agente, do hospedeiro e do meio ambiente que afetam o processo global e seu desenvolvimento, desde as primeiras forças que criam o estímulo patológico no meio ambiente ou em qualquer outro lugar, passando pela resposta do homem ao estímulo, até as alterações que levam a um defeito, invalidez, recuperação ou morte (LEAVELL e CLARK, 1976, p.15).

Neste modelo, é possível distinguir dois períodos envolvidos na gênese e

desenvolvimento das doenças: o período pré-patogênico, que se refere aos determinantes que

potencializam o surgimento da doença; e o período patogênico, que diz respeito às evoluções

possíveis de uma doença que se encontra em curso (AYRES, 2009a). Em sua geometrização,

a História Natural das Doenças está baseada em um esquema cartesiano onde no eixo da

abscissa tem-se o tempo e o eixo da ordenada divide dois espaços (momentos ou períodos),

segundo a presença ou não de enfermidade (AROUCA, 2003).

No período pré-patogênico, a ocorrência da doença está relacionada à interação prévia

entre o agente etiológico, o indivíduo e/ou população e o meio ambiente (LEAVELL e

CLARK, 1976). Este componente do modelo refere-se ao momento em que a doença não está

instalada em indivíduos e populações, mas existem diversas condições para que ela possa se

desenvolver, devendo, portanto, identificar-se os aspectos que podem estar relacionados à sua

ocorrência (AYRES, 2009a). Rouquayrol e Goldbaum (2003) complementam que a inter-

relação entre os fatores inerentes ao indivíduo susceptível (como por exemplo, herança

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

40

genética, idade, sexo, alimentação, hábitos de vida e etc) e os condicionantes sócio-ambientais

pode conformar um contexto favorável à instalação da doença.

Nesta direção, Arouca (2003) reforça que o primeiro momento do modelo da HND

ocorre em um espaço de tempo qualquer, em que o hospedeiro está submetido a fatores

determinantes de enfermidades e envolvido pela capa misteriosa do ambiente. Com isso, o

aparecimento das doenças é determinado, nesse primeiro momento, pela relação estabelecida

entre três elementos: o homem, o ambiente e os fatores determinantes das doenças, sendo que

“(...) essas relações são entendidas pelos autores dentre de um enfoque nitidamente

mecanicista, onde os homens e os agentes são vistos como os pratos de uma balança e o

ambiente como fiel desta, interferindo em que sentido a balança inclinará” (AROUCA, 2003,

p.167).

O período patogênico refere-se ao momento em que as primeiras alterações funcionais

e morfológicas são detectadas até seus possíveis desfechos. Este período pode ser dividido em

dois subcomponentes: no primeiro, após a ação dos agentes patogênicos sobre o organismo,

existe algum tipo de alteração patológica em curso (histológica, fisiológica ou celular) antes

de serem observados sinais e/ou sintomas (período patogênico pré-clínico); no segundo, a

doença já é perceptível pelo indivíduo ou por terceiros, com sinais e sintomas que

caracterizam um quadro clínico (patologia precoce) (AYRES, 2009a).

Após a identificação dos sinais e/ou dos sintomas, identifica-se a síndrome

característica de uma doença, momento este denominado período patogênico clínico. Como

toda doença caminha para um desfecho, ela poderá evoluir para uma remissão, controle,

cronificação ou óbito (AYRES, 2009a). Resumidamente, o período patogênico é

Marcado pela evolução de um distúrbio no homem, desde a primeira interação com estímulos que provocam a doença até as mudanças de forma e função que daí resultam, antes que o equilíbrio seja alcançado ou restabelecido, ou até que se produza um defeito, invalidez ou morte (LEAVELL e CLARK, 1976, p.15).

Postas estas considerações sobre a HND, é importante compreender que esse modelo é

um esboço esquemático da complexidade dos fenômenos do processo saúde-doença, que tem

o benefício de orientar uma propedêutica especificamente voltada para identificar

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

41

oportunidades e ações de prevenção, seja no âmbito individual e/ou coletivo (AYRES,

2009a).

Rouquayrol e Goldbaum (2003) reiteram que a história natural das doenças, por ser

um esquema geral, é apenas uma aproximação da realidade que pode auxiliar na descrição de

múltiplas e diferentes enfermidades, sendo que “sua utilidade maior é apontar os diferentes

métodos de prevenção e controle, servindo de base para a compreensão de situações reais e

específicas, tornando operacionais as medidas de prevenção” (ROUQUAYROL e

GOLDBAUM, 2003, p.20).

Atrelado ao modelo da HND, Leavell e Clark propuseram os níveis de prevenção que

seriam adequados a cada momento de evolução da doença. Estes níveis foram denominados

prevenção primária, prevenção secundária e prevenção terciária. Vale destacar que dentro

destes três níveis da prevenção, existem, pelo menos, cinco níveis distintos, nos quais se

podem aplicar medidas preventivas, a depender do conhecimento da HND (LEAVELL e

CLARK, 1976).

A prevenção primária pode ser compreendida como o nível de prevenção cujas ações

baseiam-se nos determinantes de adoecimentos ou agravos, que incidem sobre indivíduos e

comunidades, com o objetivo de impedir o início de processos patogênicos (AYRES, 2009a).

As medidas de prevenção primária destinam-se a desenvolver uma melhor saúde geral,

mediante a utilização da proteção específica do indivíduo contra agentes patológicos e/ou pelo

estabelecimento de barreiras contra os agentes do meio ambiente (LEAVELL e CLARK,

1976).

A prevenção primária subdivide-se em dois níveis: a promoção da saúde e a proteção

específica (AYRES, 2009a). A promoção da saúde “[...] refere-se a ações que incidem sobre

melhorias gerais nas condições de vida de indivíduos, famílias e comunidades, beneficiando a

saúde e a qualidade de vida de modo geral, obstaculizando um grande número de diferentes

processos patogênicos” (AYRES, 2009a, p. 442).

As medidas adotadas para este nível da prevenção primária não se dirigiriam à

determinada doença ou desordem (BUSS, 2009) e corresponderia a:

Medidas gerais, educativas, que objetivam melhorar a resistência e o bem-estar geral dos indivíduos (comportamentos alimentares, não-ingestão de drogas, tabaco, exercício físico e repouso, contenção do estresse), para que resistam às agressões dos agentes. Estes mesmos indivíduos devem receber orientações para cuidar do ambiente para que este não favoreça o

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

42

desenvolvimento de agentes etiológicos (comportamentos higiênicos relacionados à habitação e entornos) (WESTPHAL, 2009, p.641).

A proteção específica pode ser entendida como a prevenção em seu sentido

convencional, compreendendo medidas que são aplicadas a uma enfermidade ou grupo de

enfermidades específicas, visando intervir sobre as causas das mesmas, antes que elas atinjam

os indivíduos e/ou populações (LEAVELL e CLARK, 1976).

Como exemplos de ações de proteção específica, citam-se: a imunização dos

indivíduos contra um agente infeccioso, através da vacinação; o combate aos criadouros

domiciliares do aedes egypti para o controle da dengue; a fluoração da água para o combate à

cárie dentária; adição de iodo ao sal para combate do bócio endêmico; a distribuição de

camisinhas para a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis; fornecimento de

material de injeção descartável a usuários de drogas para reduzir a transmissão de AIDS e

hepatites, dentre outras diversas medidas (AYRES, 2009a).

A prevenção secundária aplica-se no período patogênico, ou seja, nas situações onde o

processo saúde-doença já está instalado (AYRES, 2009a). Neste contexto, Leavell e Clark

(1976) explicitam que face à detecção do processo patológico deve-se realizar a prevenção

secundária, através do diagnóstico precoce e tratamento imediato e adequado. Caso o

processo de patogênese tenha progredido e a doença avançado além de seus estágios, este

nível da prevenção deverá ser continuado através de tratamento adequado, de modo a evitar

seqüelas e limitar a invalidez.

Complementarmente, Ayres (2009a) afirma que a prevenção secundária tem dois

objetivos: um deles visa favorecer uma melhor evolução clínica para os indivíduos afetados,

de modo a conduzir o processo patogênico para melhores desfechos e, assim, evitar a

transposição do horizonte clínico ou, pelo menos, minimizar a sintomatologia; o outro

objetivo visa interromper ou reduzir a disseminação do problema para outras pessoas.

A prevenção terciária refere-se “[...] ao momento em que o processo saúde-doença

alcançou um termo final ou uma forma estável de longo prazo, a cura com seqüelas ou a

cronificação, as quais também reclamam cuidados preventivos específicos” (AYRES, 2009a,

p.444). As intervenções, neste âmbito, visam prevenir a incapacidade total do indivíduo após

a estabilização das alterações anatômicas e fisiológicas oriundas da interrupção de um

processo patológico (LEAVELL e CLARK, 1976). Essas intervenções objetivam reduzir os

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

43

prejuízos no cotidiano e na qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades afetadas

(AYRES, 2009a).

Com base nessas considerações, pode-se dizer que o modelo da História Natural das

Doenças e o campo de ação inerente à proposta dos níveis de prevenção significaram um

avanço, dado que os modelos de prevenção existentes anteriormente propuseram ações

somente sobre os aspectos biológicos do ser humano (WESTPHAL, 2009). Essa mesma

autora argumenta ainda que Leavell e Clark inovaram ao incluir nas medidas de prevenção

ações educativas, comunicacionais e ambientais às já existentes (laboratoriais, clínicas e

terapêuticas), no intuito de complementar e reforçar a estratégia proposta, chamando a

atenção dos profissionais de saúde sobre a importância das ações no ambiente e sobre os

estilos de vida para a prevenção de doenças.

No entanto, vale salientar que no modelo da HND proposto por Leavell e Clark

(...) o homem é colocado com seus atributos em um ponto; não é o homem como ser histórico em sua relação com a natureza através do trabalho, em que esta passa também a ser histórica, não é o homem constituído pelo conjunto de suas relações sociais, enfim, não é o homem que fala, produz e vive, mas o conjunto de seus atributos que se transformam em fatores de morbidade (AROUCA, 2003, p.173).

Com relação ao enfoque da promoção da saúde vinculado ao modelo da história

natural das doenças, observa-se que sua abordagem é centrada no indivíduo, com projeção,

dentro de certos limites, para a família ou grupos (BUSS, 2009). O limite desta concepção de

promoção da saúde com a prevenção de doenças é bastante tênue e até hoje influencia o

entendimento dos profissionais da saúde e da própria sociedade acerca da promoção da saúde.

Para Heidmann et al (2006), ainda persiste a visão da promoção à saúde referente às

mudanças de estilos de vida e sinônima da prevenção de doenças.

Após a difusão internacional do modelo proposto por Leavell & Clark instalou-se uma

tensão nas concepções de saúde e na sua determinação e causalidade. Em meados do final da

década de 1960 e no transcorrer da década de 1970 observou-se a emergência de diversas

críticas às propostas de Leavell e Clark, vinculadas às vertentes da Medicina Social e da

Saúde Coletiva. Uma justificativa utilizada era que o modelo da HND não considerava as

condições de vida e trabalho das pessoas e a inserção social dos indivíduos nos níveis de

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

44

saúde da população. Estes elementos, quando considerados, propiciaram a criação de outros

modelos explicativos e de intervenção sobre o processo saúde-doença-cuidado. Estas críticas

foram apoiadas em estudos que focalizaram a determinação social do processo saúde-doença-

cuidado, o que também colocou em pauta a democratização do processo de decisão em saúde

(WESTPHAL, 2009).

Destarte, a partir da década de 1970, tornaram-se evidentes as discussões sobre a

promoção da saúde no sentido de questionar a hegemonia do paradigma biomédico no setor

saúde, especialmente após a divulgação, em maio de 1974, no Canadá, do documento A New

Perspective on the Health of Canadians, também conhecido como Informe Lalonde

(FERNANDEZ et al, 2008).

O informe Lalonde consistiu em críticas ao modelo de atenção à saúde vigente no

Canadá, que foi considerado muito dispendioso e pouco eficaz na melhoria das condições de

saúde da população (AYRES, 2009a). O responsável pela sua criação, o Ministro da Saúde

Marc Lalonde, argumentava que, em face da diminuição da morbi-mortalidade por doenças

infecciosas, do envelhecimento da população e do aumento das enfermidades crônico-

degenerativas, as ações de saúde deveriam ter como objetivo adicionar anos à vida e também

acrescentar vida aos anos, de forma a permitir que o ser humano possa usufruir de

oportunidades oriundas da crescente melhoria do quadro econômico (CARVALHO, 2007).

Os fundamentos do informe Lalonde foram baseados no conceito de “campo da

saúde”, o qual reúne os chamados “determinantes da saúde”. Este conceito contempla a

decomposição do campo da saúde em quatro amplos componentes (BUSS, 2009): “[...]

ambiente (estrutural e social), estilo de vida (comportamento individual que afeta a saúde),

biologia humana (genética e função humana) e organização dos serviços de saúde”

(CARVALHO, 2007, p.46).

Com a publicação do referido documento inicia-se o movimento moderno da

promoção da saúde (BUSS, 2000), além de se formalizar a corrente behaviorista ou

comportamentalista da promoção da saúde, “[...] cujo eixo estratégico é formado por um

conjunto de intervenções que buscam transformar os comportamentos individuais não-

saudáveis” (CARVALHO, 2007, p.41).

Segundo Carvalho (2007), a corrente behaviorista da promoção da saúde procura

romper com o modelo biomédico e sugere uma perspectiva holística da saúde, movendo-se

um pouco além do enfoque da história natural da doença. Dentre as suas metas destacam-se:

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

45

mudar o foco das ações sanitárias do sistema de atenção à saúde para ações de promoção;

romper com a percepção de que a saúde é resultante de cuidados médicos e conscientizar a

população do desequilíbrio nos gastos setoriais.

Em princípio as metas definidas parecem interessantes e sugerem um avanço.

Contudo, com relação às estratégias da corrente behaviorista da promoção da saúde, pode-se

dizer que elas preconizam intervenções sobre o “estilo de vida” (compreendido no documento

como um agregado de decisões individuais que afetam a saúde e sobre o qual as pessoas têm

maior ou menor decisão), defendendo que decisões pessoais e maus hábitos criam riscos auto-

impostos (CARVALHO, 2007).

A motivação central para a construção e publicação do informe Lalonde foi

considerada como política, técnica e econômica, pois visava enfrentar os custos crescentes da

assistência médica. Ayres (2009a, p.445) concorda com esta afirmação ao argumentar que

“[...] as principais conclusões do Informe eram que as ações de saúde estavam excessivamente

centradas na prática hospitalar e nos determinantes biológicos do adoecimento e que maior

atenção deveria ser dada ao meio ambiente e aos estilos de vida”. Ao mesmo tempo, esse

documento questionava a abordagem exclusivamente médica para as doenças crônicas,

sinalizando o impacto pouco significativo desta abordagem (BUSS, 2009).

Apesar da evolução conceitual, a abordagem contida no informe Lalonde voltava-se

para a mudança dos estilos de vida, com foco na atenção individual, adotando-se uma

perspectiva comportamental e preventivista (HEIDMANN et al, 2006).

Em 1978 foi realizada na cidade de Alma-Ata a I Conferência Internacional sobre

Cuidados Primários de Saúde que, como já abordado, adota um novo enfoque no campo da

saúde, ao reconhecer, pela primeira vez, a saúde como um direito humano fundamental;

considerar as desigualdades inexistentes inaceitáveis; reafirmar a responsabilidade dos

governos sobre a saúde dos povos e explicitar o direito da população em participar nas

decisões no campo da saúde.

Nesse evento, lançaram-se as bases e a concepção abrangente para a Atenção Primária

à Saúde e traçou-se a meta “Saúde para Todos no Ano 2000”. Na perspectiva de Buss (2000)

as recomendações e conclusões dessa Conferência constituíram-se num importante reforço

para os defensores da promoção da saúde, o que culminou na realização da I Conferência

Internacional sobre Promoção da Saúde, em Ottawa, Canadá, em 1986.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

46

Antes de discorrer sobre a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, é

importante pontuar que na década de 1980 os limites teóricos e práticos da corrente

behaviorista estimularam o surgimento da perspectiva sócio-ambiental da promoção da saúde,

denominada por alguns estudiosos de “Nova Promoção da Saúde”. Esta perspectiva partilha

com a corrente behaviorista a crítica ao paradigma biomédico e a necessidade de ampliar a

compreensão acerca do processo saúde-doença-cuidado. Contrapõe-se, porém, à ênfase na

intervenção que visa transformar hábitos de vida e de culpar os indivíduos por

comportamentos cujas causas se encontram no entorno social (CARVALHO, 2007).

A I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde definiu um novo marco de

referência em âmbito internacional (FERNANDEZ et al, 2008), sendo considerada um dos

mais importantes eventos ocorridos na década para o campo da promoção da saúde. Ela teve

como produto a Carta de Ottawa, que se tornou uma referência essencial para o

desenvolvimento de idéias da promoção da saúde em todo o mundo (BUSS, 2000), além de

ser considerado o marco conceitual mais importante da promoção da saúde na

contemporaneidade.

A Carta de Ottawa apresenta um conceito amplo de saúde e reafirma a importância da

promoção da saúde, apontando a influência dos aspectos sociais sobre a saúde dos indivíduos

e da população (HEIDMANN et al, 2006). A promoção da saúde, neste âmbito, é concebida

como o “processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de

vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo” (OMS, 1986, p.1).

Inscreve-se, desta forma, um conceito amplo, reforçando a responsabilidade e os direitos dos

indivíduos e da comunidade pela sua própria saúde (BUSS, 2000).

Ao partir de uma concepção positiva da saúde, no referido documento argumenta-se

que a saúde deixa de ser um objetivo a ser alcançado e passa a ser considerada um recurso

para o desenvolvimento da vida. Além disso, ela propõe cinco campos de ação centrais:

elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis; criação de ambientes favoráveis

à saúde; reforço da ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais e reorientação

do sistema de saúde.

As proposições presentes na Carta de Ottawa foram reforçadas com a divulgação e

contribuição das conferências internacionais e regionais que sucederam a I Conferência

Internacional sobre Promoção da Saúde (HEIDMANN et al, 2006), com destaque para a

Conferência de Adelaide, em 1988; a de Sundsval, em 1991; a de Santa Fé de Bogotá, em

1992; e a de Jacarta, em 1997.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

47

À luz das considerações anteriores, pode-se dizer que os diversos conceitos

formulados sobre promoção da saúde podem ser reunidos em dois grandes grupos

(SUTHERLAND & FULTON, 1992 apud BUSS, 2009). No primeiro, as ações de promoção

da saúde direcionam-se às mudanças dos comportamentos dos indivíduos, enfatizando nos

seus estilos de vida e localizando-os no contexto das famílias e, no máximo, no ambiente da

comunidade em que se encontram. Nesta abordagem, fugiriam do âmbito da promoção da

saúde todos os fatores que estivessem fora do controle dos indivíduos (BUSS, 2009). Além

disso,

Os programas ou atividades de promoção da saúde tendem a concentrar-se em componentes educativos, primariamente relacionados com riscos comportamentais passíveis de mudanças, que estariam, pelo menos em parte, sob o controle dos próprios indivíduos. Por exemplo, o hábito de fumar, a dieta, as atividades físicas, a direção perigosa no trânsito. Nessa abordagem, fugiriam do âmbito da promoção da saúde todos os fatores que estivessem fora do controle dos indivíduos (BUSS, 2009, p.22-3).

O segundo grupo considera a importância dos determinantes sócio-ambientais sobre as

condições de saúde, o que caracteriza a promoção da saúde no contexto contemporâneo. Este

grupo de conceitos sustenta-se na compreensão de que a saúde é produto de uma vasta gama

de fatores relacionados com a qualidade de vida, incluindo “[...] um padrão adequado de

alimentação e nutrição, de habitação e saneamento, boas condições de trabalho, oportunidades

de educação ao longo da vida, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos,

estilo de vida responsável e um espectro adequado de cuidados de saúde” (BUSS, 2009, p.23).

Nesse grupo, o campo de ação da promoção da saúde está voltado ao coletivo de

indivíduos e ao ambiente, compreendido num sentido amplo, sendo sustentadas através de

políticas públicas e de condições favoráveis ao desenvolvimento da saúde e do reforço

(empowerment) da capacidade dos indivíduos e das comunidades (BUSS, 2009).

Em suas nuances atuais, o movimento da promoção da saúde visa assegurar a

igualdade de oportunidades e “proporcionar os meios (capacitação)” que permitam todas as

pessoas realizar o seu potencial de saúde, o que denota a necessidade de indivíduos e

comunidades terem a oportunidade de conhecer e controlar os fatores determinantes da sua

saúde, mediante a criação de importantes elementos como ambientes favoráveis, acesso à

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

48

informação, habilidades para viver melhor, bem como oportunidades para fazer escolhas mais

saudáveis (BUSS, 2009).

Esse mesmo autor argumenta ainda que a equidade em saúde, cujas ações visam

reduzir as diferenças no estado de saúde da população e no acesso a recursos diversos para

uma vida mais saudável, e a valorização do conhecimento popular e da participação social

conseqüente a este conhecimento, está na base de formulação conceitual e na perspectiva

atual da promoção da saúde.

Nesse sentido, é imprescindível reforçar que a abordagem da promoção da saúde se

constitui num modo ampliado de atuar no processo saúde-doença-cuidado, podendo trazer

contribuições relevantes para romper a hegemonia do modelo biomédico. Com esta

consideração, observa-se a necessidade de intensificar as ações e estratégias de promoção no

cotidiano dos serviços de saúde, além de promover a autonomia das pessoas, indivíduos e

profissionais para que, conjuntamente, possam compreender a saúde como resultante das

condições de vida e propiciar um desenvolvimento social mais eqüitativo (HEIDMANN et al,

2006).

A promoção da saúde, para além de sua formulação teórica, constitui-se também em

um imperativo ético que, através do seu campo de ação, pode promover o resgate de valores

fundamentais à organização social em que se vive. Sendo assim,

Promover saúde é promover a vida. É compartilhar possibilidades para que todos possam viver seus potenciais de forma plena. É perceber a interdependência entre indivíduos, organizações e grupos populacionais e os conflitos decorrentes desta interação. É reconhecer que a cooperação, solidariedade e transparência, como práticas sociais correntes entre sujeitos, precisam ser, urgentemente, resgatadas. Promover a saúde é uma imposição das circunstâncias atuais que apontam para a necessidade imperiosa de novos caminhos éticos para a sociedade (AKERMAN, MENDES e BÓGUS, 2004, p. 609).

Caminhar na perspectiva anterior, em especial no contexto latino-americano, requer

uma mudança radical no cenário de desigualdade social, buscando a superação das

iniqüidades sociais e de saúde, e o reforço da luta pela melhoria da qualidade de vida dos

cidadãos. Deste modo, formular soluções para o enfretamento destes problemas que ainda

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

49

persistem na sociedade, especialmente na brasileira, surge como um desafio e contribuição

que a promoção da saúde pode elencar em suas ações.

Os profissionais de saúde, neste sentido, têm um papel preponderante nesse processo,

em especial ao conhecer o conjunto das premissas da promoção da saúde; promover o diálogo

com a comunidade e estimular a sua participação na elaboração de estratégias que visam

melhorar as condições de vida e saúde; além de buscar ações intersetoriais para atuarem sobre

os diversos condicionantes e determinantes que interferem na produção da saúde e da doença.

3.1 PROMOÇÃO DA SAÚDE E O DISCURSO PREVENTIVISTA: O QUE OS

DISTINGUE?

Neste momento, é essencial fazer uma distinção entre promoção e prevenção,

especialmente ao considerar que as diferenças entre ambas as práticas no interior da saúde

pública e no imaginário social ainda é controvertida e pouco explorada. Para isso, é

importante iniciar esta discussão pontuando que no debate contemporâneo sobre promoção da

saúde um ponto crítico que ainda persiste é o embate entre ambos os enfoques.

Buss (2009) considera que a promoção da saúde e a prevenção de doenças são

enfoques complementares no processo saúde-doença, tanto no plano individual quanto no

plano coletivo. Entretanto, observa-se que, com frequencia, o conteúdo teórico entre ambos se

diferencia com mais precisão do que as respectivas práticas.

Sendo assim, na maior parte das vezes, não se distinguem claramente as práticas de

promoção das práticas preventivas tradicionais, emergindo, nesse contexto, dificuldades para

operacionalizar as práticas de promoção da saúde (CZERESNIA, 2009). Estas dificuldades,

em diferenciar as práticas de promoção e prevenção

[...] Estão relacionadas a uma questão nuclear à própria emergência da medicina moderna e da saúde pública. O desenvolvimento da racionalidade científica, em geral, e da medicina, em particular, exerceu significativo poder no sentido de construir representações da realidade, desconsiderando um aspecto fundamental: o limite dos conceitos na relação com o real, em particular para a questão da saúde, o limite dos conceitos de saúde e da doença referentes à experiência concreta da saúde e do adoecer (CZERESNIA, 2009, p.44).

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

50

Ao considerar que a ciência moderna se desenvolveu sob o paradigma das ciências

exatas e positivas; baseada em métodos e técnicas precisos, bem fundamentados do ponto de

vista da lógica formal e com apoio essencial dos resultados obtidos com a aplicação de

tecnologias derivadas destas ciências (TESTA, 1987), a medicina e consequentemente a saúde

pública, a qual consolidou seu conhecimento e institucionalizou a sua prática articulados à

medicina (CZERESNIA, 2009), adotou a sua prática como científica, conformando-a em

torno da doença e do paradigma positivista oriundo das ciências exatas. Assim, o discurso

científico e a organização institucional das práticas em saúde circunscreveram-se a partir de

conceitos objetivos não de saúde, mas de doença (CZERESNIA, 2009).

Isto posto, é importante destacar que as práticas de saúde apresentam-se como técnica

essencialmente científica, onde o objeto da clínica, historicamente, é a doença em sua

expressão individual, fazendo com que o discurso médico-científico não contemple a

dimensão ampliada da saúde e da doença, dado que a saúde e o adoecer não são objetos que se

possa delimitar ou traduzir a partir do conhecimento científico (CZERESNIA, 2009).

Essa mesma autora argumenta que o desenvolvimento histórico da medicina tendeu

hegemonicamente a identificar-se com a crença da onipotência de uma técnica baseada na

ciência. Nesse sentido, não houve o reconhecimento do hiato entre a vivência singular da

saúde e da doença, o que produziu um problema considerável na forma como se configurou,

historicamente, a utilização de conceitos científicos nas práticas de saúde, dado que a verdade

científica se tornou predominante na construção das representações acerca da realidade.

Ao se refletir sobre a conformação histórica das práticas de saúde pode-se deduzir que

estas desconsideraram em seu desenvolvimento a complexidade do processo saúde-doença-

cuidado em sua dimensão individual e coletiva. O paradigma biomédico, com sua concepção

mecanicista e fragmentada em torno do ser humano, influenciou significantemente as ciências

da saúde e a própria saúde pública, a qual conformou (e, na maioria das vezes, ainda

conforma) suas práticas em torno deste paradigma e focalizando a doença como norte das

suas ações.

Sendo assim, um dos entraves que ainda persiste no âmbito das práticas de promoção

da saúde é a hegemonia do paradigma biomédico no cuidado em saúde, o que implica na

miscelânea conceitual e prática entre prevenção e promoção. Além disso, destaca-se que as

práticas preventivas foram conformadas, historicamente, em torno do conceito de doença, e

não de saúde, adequando-se ao modo de produção capitalista e a própria prática da medicina e

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

51

da saúde pública. Esta situação coloca a promoção da saúde frente a um embate político e

ideológico contra a hegemonia do paradigma biomédico.

Deste modo, qual seria a diferença conceitual entre promoção da saúde e prevenção de

agravos?

Promoção da saúde define-se, tradicionalmente, de maneira bem mais ampla que

prevenção, inclusive no modelo proposto por Leavell e Clark (1976), ao afirmar que “as

medidas adotadas para a promoção da saúde não se dirigem à determinada doença ou

desordem, mas servem para aumentar a saúde e o bem-estar gerais” (LEAVELL e CLARK,

1976, p.19).

As práticas de promoção da saúde buscam modificar condições de vida, de modo que

elas sejam dignas e adequadas, além de atuar na perspectiva da transformação dos processos

individuais de tomada de decisão, para que sejam favoráveis à qualidade de vida e à saúde. A

promoção, nesse contexto, tem seu foco na saúde propriamente dita, propondo abordagens

inclusive por fora do setor saúde e que visam manter e melhorar os níveis de saúde existentes.

(BUSS, 2009).

As ações de prevenção, diferente das de promoção, orientam-se para a detecção e

controle dos fatores de risco ou fatores causais de grupos de enfermidades ou de uma

enfermidade específica. Seu foco é a doença e os mecanismos para intervir sobre ela (BUSS,

2009). A base do discurso preventivista é o conhecimento epidemiológico moderno,

objetivando o controle da transmissão de doenças infecciosas e a redução do risco de doenças

degenerativas ou outros agravos específicos (CZERESNIA, 2009).

A prevenção de riscos e agravos exige uma ação antecipada, a fim de evitar o

progresso posterior da doença, com vistas a eliminar as causas das mesmas antes que elas

atinjam o homem (LEAVELL e CLARK, 1976). As práticas preventivas estruturam-se

mediante a divulgação da informação científica e de recomendações normativas de mudanças

de hábitos (CZERESNIA, 2009). Além disso, o discurso preventivista fundamenta suas

proposições no modelo da história natural das doenças, no conceito ecológico de

saúde/doença e na teoria da multicausalidade (CARVALHO, 2007).

A partir das considerações anteriores, observa-se que o conceito e a prática de

promoção da saúde são mais amplos e abrangentes. Ela visa identificar e enfrentar os

macrodeterminantes do processo saúde-doença-cuidado e transformá-los favoravelmente na

direção da saúde, tendo como objetivo contínuo atingir um nível ótimo de vida e saúde. Como

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

52

o objetivo central das ações preventivas é evitar a enfermidade, pode-se dizer que a ausência

de doença seria um resultado suficiente (BUSS, 2009).

Em sua conformação contemporânea, a estratégia da promoção da saúde é claramente

social, política e cultural (BUSS, 2009), estando vinculada a uma visão holística e

socioambiental do processo saúde-doença-cuidado, colocando-se como uma prática

emancipatória e um imperativo ético. A prevenção de doenças é vinculada a uma visão

biologicista e comportamentalista do processo saúde-doença (WESTPHAL, 2009), cujo

objetivo é tornar os indivíduos isentos das doenças.

Na perspectiva da promoção da saúde, como a saúde não é ausência de enfermidades,

os indivíduos sem evidências clínicas poderiam progredir a estados de maior capacidade

funcional e maiores sensações subjetivas de bem-estar (BUSS, 2009), fato este não presente

no discurso preventivista. O quadro abaixo explicita, esquematicamente, as diferenças entre

promoção da saúde e prevenção de agravos.

Quadro 1- Diferenças esquemáticas entre promoção e prevenção

CATEGORIAS PROMOÇÃO DA SAÚDE PREVENÇÃO DE DOENÇAS Conceito de saúde Positivo e multidimensional Ausência de doença

Modelo de intervenção Participativo Médico Alvo Toda a população, no seu

ambiente total Principalmente os grupos de alto

risco da população Incumbência Redes de temas da saúde Patologia específica Estratégias Diversas e complementares Geralmente única Abordagens Facilitação e capacitação Direcionadoras e persuasivas

Direcionamento das medidas

Oferecidas à população Impostas a grupos-alvo

Objetivos dos programas

Mudanças na situação dos indivíduos e de seu ambiente

Focam principalmente em indivíduos e grupos de pessoas

Executores dos

programas

Organizações não profissionais, movimentos sociais, governos locais, municipais, regionais e

nacionais etc.

Profissionais da saúde

Fonte: adaptado de Stachtchencko e Jenicek (1990) apud Buss (2009).

Em linhas gerais, pode-se dizer que boa parte da confusão entre promoção e prevenção

é oriunda da ênfase que as práticas de promoção da saúde ainda conferem às modificações de

comportamento individual e do foco quase exclusivo na redução de fatores de riscos para

determinadas doenças (BUSS 2009).

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

53

Czeresnia (2009) concorda com essa afirmação ao afirmar que os projetos e práticas de

promoção da saúde utilizam os conceitos tradicionais que orientam a produção do

conhecimento específico, pautados na transmissão e risco, do discurso preventivo. Este

enfoque sobre o indivíduo e seu comportamento tem origem na tradição da intervenção clínica

e no paradigma biomédico que, em ambos, o lócus de responsabilidade e a unidade de análise

são o indivíduo, o qual é visto como o responsável único por seu estado de saúde (BUSS

2009).

Deve-se reconhecer ainda que as abordagens metodológicas na promoção da saúde,

por ser um campo de conhecimento e prática recente, estão menos consolidadas do que os

métodos epidemiológicos de planejamento, intervenção e avaliação dos programas de

prevenção de doenças (BUSS, 2009). Esta situação pode agravar a confusão e indiferenciação

entre ambas as práticas, em especial ao considerar que a diferença radical entre prevenção e

promoção raramente é explicitada (CZERESNIA, 2009).

É fundamental, assim, compreendermos os consensos e dissensos que são inerentes ao

embate entre promoção e prevenção na contemporaneidade. Isso faz com que seja necessário

romper a estagnação que persiste neste debate e promover mudanças essencialmente práticas,

que almejem a consolidação da promoção da saúde como estratégia política, social e ética tão

necessária no setor saúde e na sociedade.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

54

4 PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA

Neste capítulo, busca-se refletir sobre a relação entre a promoção da saúde e a prática

do enfermeiro na atenção primária. Ao refletir sobre esta relação, deparou-se com a seguinte

indagação: dado que a concepção de promoção da saúde assumida neste estudo é abrangente e

envolve a intervenção sobre os determinantes sociais do processo saúde-doença-cuidado, sob

qual perspectiva irá ser abordada a promoção da saúde na prática do enfermeiro no campo da

atenção primária?

Após leituras e reflexões, adotou-se o cuidado como categoria central para promover

este diálogo. E porque cuidado? Apesar da palavra cuidado assumir várias conotações em

nossa sociedade e no setor saúde, neste momento buscar-se-á romper com a concepção de

cuidado em saúde vinculada a um conjunto de procedimentos técnicos fundamentados

cientificamente, com vistas a obter o êxito de um determinado tratamento. Esta concepção

tornou-se hegemônica após o advento do capitalismo e reduziu as práticas de saúde a um fazer

técnico-científico de intervenção sobre o corpo, com vistas ao combate da doença e à

restituição da força de trabalho.

Sendo assim, considerando a conjuntura de sociedade em que se vive e a crise de

legitimidade social vivenciada pelas práticas de saúde (acentuada pela tecnicidade, hiper-

especialização e impessoalidade no cuidado em saúde), a retomada do cuidado como

constructo filosófico; como categoria ontológica; como essência da Enfermagem; e como

atitude fundamental à manutenção e promoção da vida, fornece diversos elementos que

contribuem para a aproximação da promoção da saúde com a prática do enfermeiro na

atenção primária.

Para construir esta discussão foi necessário dividir este capítulo em dois tópicos. O

primeiro, denominado Cuidado, práticas de saúde e enfermagem visa, num primeiro

momento, identificar os elementos inerentes ao cuidado, em sua dimensão ontológica,

dialogando com a perspectiva de Ayres (2009b), Colliére (1999; 2003) e Boff (2008).

No segundo momento, efetuou-se um resgate histórico das práticas de saúde, com o

intuito de compreender como se deu a evolução do cuidado em saúde e de enfermagem na

sociedade. No transcorrer deste processo, buscou-se identificar os elementos que compõe o

cuidado prestado pelo enfermeiro.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

55

O segundo tópico denomina-se O cuidado para a promoção da saúde: elementos para

a prática do enfermeiro na atenção primária e articula os elementos abordados no tópico

anterior à promoção da saúde na prática do enfermeiro na atenção primária.

4.1 CUIDADO, PRÁTICAS DE SAÚDE E ENFERMAGEM

Cuidado: expressão que envolve uma diversidade de significados no imaginário social.

Comumente, o cuidado é utilizado como uma expressão que denota precaução ou prevenção

de riscos (CUIDADO!); na área da saúde, quando se fala “cuidado em saúde” ou “cuidado de

saúde”, normalmente remete-se ao sentido já consagrado no senso comum: “[...] o de um

conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um certo tratamento”

(AYRES, 2009b, p.42); outras vezes esta palavra é utilizada no sentido de “tomar conta”

(você pode tomar conta do meu filho enquanto viajo?); e no âmbito da Enfermagem, esta é

uma das palavras mais utilizadas.

Como se pode perceber, o cuidado é uma palavra que pode ser compreendida sob

vários prismas. Por conta desta pluralidade, esta discussão situa, inicialmente, o cuidado em

saúde como constructo filosófico, ou seja, como uma categoria filosófica que, na perspectiva

de Ayres (2009b, p.42), quer designar simultaneamente,

[...] Uma compreensão filosófica e uma atitude prática frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas situações em que se reclama uma ação terapêutica, isto é, uma interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade.

Em outras palavras, considerando que as ações de saúde envolvem a interação

dialógica entre dois ou mais sujeitos, os quais estão imersos em um universo cultural,

familiar, e social peculiar, pode-se dizer que a compreensão do cuidado como construto

filosófico pode subsidiar o entendimento e produzir atitudes práticas em face da pluralidade

de significados que o cuidado em saúde adquire nas diversas situações em que é necessária

uma ação terapêutica ou para se promover a saúde, contrapondo-se à explicação puramente

técnica e científica das práticas de saúde.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

56

Para iniciar esta discussão, destaca-se a Fábula de Higino, retirada do livro Saber

Cuidar: ética do humano - compaixão pela terra, de Leonardo Boff (2008, p.46).

Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando esta criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

A leitura e análise desta fábula destacam importantes elementos para a compreensão

do cuidado como categoria ontológica1, isto é, como essência inerente à natureza do ser

humano. Logo em seu início identifica-se que o cuidado é anterior à criação do ser. Boff

(2008) argumenta que o cuidado é tão essencial que é anterior ao espírito concedido por

Júpiter e ao corpo fornecido pela Terra, pois foi com cuidado que o personagem Cuidado

moldou a criatura.

O movimento constitui, também, num dos primeiros elementos presentes na fábula.

Este aspecto pode ser percebido pois foi se movendo pelo rio que Cuidado percebeu a argila.

Isto é, a argila não vai ao seu encontro ou ele vai buscá-la; é a partir do movimento de

travessia do rio que surge o interesse de Cuidado em moldar o Ser com o pedaço de argila.

Sendo assim, este elemento aponta para um aspecto fundamental da construção da identidade

do ser humano: esta identidade vai sendo construída no e pelo ato de viver; através do

movimento pelo mundo (AYRES, 2009b).

Outro aspecto fundamental presente na fábula é a temporalidade do cuidado em

relação ao ser humano. Quando Saturno delegou para Cuidado a responsabilidade por cuidar 1 Segundo Boff (2008), ontológico tem a ver com a essência, com a identidade profunda, com a natureza de um ser, como, por exemplo, o cuidado essencial com referência ao ser humano.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

57

do homem durante a sua existência, depreende-se que o cuidado “acompanha” o ser humano

durante toda a sua vida. Sob esta ótica, Ayres (2009b) complementa que o cuidado tem a

“posse” do ser vivente enquanto este estiver vivo; porquanto e enquanto sustentar a sua

existência (matéria/ forma/ espírito) contra a dissolução. Como o cuidado não é um objeto ou

algo tangível, isso remete à afirmação de que ele é inerente à constituição do ser humano; é

uma essência intrínseca a homens e mulheres.

Outros elementos também podem ser percebidos no transcorrer da fábula, como a

interação, que permeia e constrói toda a trama, e a responsabilidade, que emerge como um

subsídio fundamental à existência do ser humano (AYRES, 2009b). Logo, “[...] que estranho

personagem, então, é o cuidado! Ele não é o Ser, mas sem ele não há Ser; ele não é a matéria

nem o espírito, mas sem ele a matéria não está para o espírito nem o espírito para a matéria;

ele é uma dádiva do tempo, mas o tempo deve a ele sua existência” (AYRES, 2009b, p. 47).

Isto posto, pode-se dizer que o cuidado é um modo-de-ser do humano. Sem ele

deixamos de ser humanos; definhamos, perdemos o sentido e morremos. Na perspectiva de

Heidegger (1995), o cuidado está presente antes de e em toda atividade humana, o que implica

afirmar que ele se encontra na raiz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa

(BOFF, 2008). Em suma, o Ser do humano é em essência o cuidado (AYRES, 2009b), o qual

pode ser reconhecido como um modo-de-ser essencial, sempre presente (BOFF, 2008).

Assim,

[...] o cuidado é mais do que um ato singular ou uma virtude ao lado de outras. É um modo de ser, isto é, a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: é um modo de ser-no-mundo que funda as relações que se estabelecem com todas as coisas (BOFF, 2008, p.91).

Em face da discussão anterior, e considerando o cuidado como um modo-de-ser

essencial do humano, o que caracteriza a ação do cuidado, ou seja, o cuidar? Primeiramente, é

importante destacar que a busca por respostas para esta indagação suscita inúmeras

explicações. Por conta disso, nesse momento, a perspectiva de Marie-Fraçoise Collière,

através das suas obras Promover a Vida e Cuidar... A primeira arte da vida pode trazer

importantes elementos para elucidar esta questão.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

58

De acordo com Collière (1999), o cuidado existe desde que há vida humana, já que é

necessário tomar conta (cuidar) da vida para que ela possa permanecer e se desenvolver.

Desde os primórdios

Era necessário tomar conta de mulheres em trabalho de parto, tomar conta das crianças, e tomar conta dos vivos, mas também dos mortos. Tudo isto implicava também tomar conta do fogo para que este não se apagasse, das plantas, dos instrumentos de caça, das peles e, mais tarde, das colheitas, dos animais domésticos, etc (COLLIÈRE, 2003, p.287).

O ato de cuidar, nesse sentido, é primeiro e antes de tudo, um ato de vida, que está na

origem de todas as culturas, e que tem como finalidade permitir a vida continuar,

desenvolver-se, e assim lutar contra a morte. Este foi e será o fundamento de todos os

cuidados (COLLIÈRE, 1999).

Seguindo esse caminho, observa-se que a história do cuidado se constrói sob duas

orientações complementares e que se geram mutuamente: cuidar para garantir a vida e cuidar

para recuar a morte (COLLIÈRE, 1999). Isso nos faz pensar que na defesa da vida, cuidar

também faz recuar a morte (COELHO e FONSECA, 2005).

Desde a origem da humanidade, o cuidar tem estruturado as interações do ser humano

com o universo que o circunda. Este fato denota a íntima relação do cuidar com a

complexidade da vida e, consequentemente, com a morte. Considerando o cuidado como uma

essência e um modo-de-ser da espécie humana, e o cuidar como ação indispensável à

manutenção da vida, pode-se dizer que “(...) o cuidar situa-se na encruzilhada do que faz viver

e do que faz morrer, do que permite viver e do que compromete a vida” (COLLIÈRE, 2003,

p.58).

Assim, o ato de tomar conta da vida é observado desde o início da história do ser

humano. Com a finalidade de garantir a continuidade da vida do grupo e da espécie e afastar a

morte, homens e mulheres se esforçavam para explorar o universo que os envolvia, com vistas

a torná-lo um aliado, buscando tudo o que era indispensável para a manutenção das funções

vitais, como: alimentação, abrigo para descansar, dormir, proteger-se, refugiar-se; vestuário;

etc (COLLIÈRE, 2003).

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

59

Foi a partir dessa necessidade de cuidar da vida, através da prestação de cuidados

individuais e coletivos, indispensáveis à sobrevivência, que se construíram e propagaram, no

transcorrer do tempo, os primeiros saberes, os quais originaram todo um conjunto de práticas,

como: as práticas alimentares, as práticas de cuidados ao corpo, as práticas sexuais, as práticas

relativas ao vestuário, as práticas do habitat. Segundo Collière (2003), estas práticas

produziram modos de fazer e costumes que, ao se organizarem e se ritualizarem, geraram

tradições, crenças e modos de organização social.

Salienta-se que cuidar da vida para que ela possa continuar e se desenvolver não é uma

tarefa simples. Para dar conta desta complexa arte, é necessário assegurar a satisfação de um

conjunto de necessidades indispensáveis à vida, mas que são diversificadas nas suas

manifestações (COLLIÈRE, 2003). Como a relação construída por homens e mulheres com o

mundo é particular, as diferentes possibilidades de resposta a necessidades da vida fazem

nascer e instaurar hábitos de vida próprios de cada grupo.

E o que caracteriza o cuidar no âmbito das relações humanas? De modo geral, o cuidar

somente surge quando a existência de alguém tem importância para outro, significando

solicitude, zelo, atenção, bom trato, preocupação, inquietação e sentido de responsabilidade

(BOFF, 2008). Ele se concretiza no contexto da vida em sociedade e implica colocar-se no

lugar do outro, em situações diversas, seja na dimensão pessoal ou social (SOUZA et al,

2005). Esses mesmos autores destacam que cuidar é “[...] um modo de estar com o outro, no

que se refere às questões especiais da vida dos cidadãos e de suas relações sociais, dentre

estas o nascimento, a promoção e a recuperação da saúde e a própria morte” (SOUZA et al,

2005, p.267).

Com essa discussão inicial foi possível elucidar a importância do cuidado na e para a

existência humana. Sem o cuidado, a vida não continua e, muito menos, se desenvolve. Com

ele, encontramos a plenitude do Ser do humano, crescemos, nos desenvolvemos, temos saúde,

temos vida. Eis aí uma característica primordial proporcionada pelo cuidar: a promoção da

vida e da saúde!

4.1.1 O cuidado nas práticas de saúde e na enfermagem

Historicamente, o desenvolvimento das práticas de saúde está intimamente atrelado à

estrutura de sociedade das diferentes nações. A trajetória do cuidado em saúde, destarte, é

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

60

influenciada pela conjuntura socioeconômica, política, cultural e religiosa de cada período

histórico.

Considerando a historicidade das práticas de saúde e sua relação com o cuidado

humano é importante discorrer sobre a evolução das práticas de saúde, com o intuito de

auxiliar na compreensão do cuidado em saúde e, mais especificamente, do cuidado em

enfermagem.

Para realizar essa retrospectiva histórica, subdividiu-se a evolução das práticas de

saúde nos mundos primitivo, medieval e moderno em: instintivas, mágico-sacerdotais, no

alvorecer da ciência, monástico-medievais pós-monásticas e no mundo moderno

(GEOVANINI, 2002).

As práticas de saúde instintivas, que correspondem à prática do cuidar nos grupos

nômades primitivos, consistiam em ações que garantiam aos seres humanos a manutenção de

sua sobrevivência, estando, na sua origem, associadas ao trabalho feminino. Este trabalho

feminino é oriundo da divisão social do trabalho na estrutura familiar dos grupos primitivos,

que atribuiu à mulher como responsável pelo cuidado com as crianças, velhos e doentes

(GEOVANINI, 2002).

As práticas de saúde são tão antigas quanto o surgimento da humanidade. Inerentes à

condição de sobrevivência da espécie humana, elas estão relacionadas desde os primórdios ao

que Collière (1999) concebe como o cuidar, ou seja, a noção de que é preciso cuidar, “tomar

conta” da vida para que ela possa permanecer e se desenvolver e, assim, garantir a

continuidade da vida do grupo e da espécie.

Nesse ínterim, um detalhe merece ser destacado: durante milhares de anos, as práticas

de saúde e o cuidado não estiveram associados a um ofício ou a uma profissão, dado que

ambos se referiam “[...] a qualquer pessoa que ajudava qualquer outra a garantir o que lhe era

necessário para continuar sua vida, em relação com a vida do grupo” (COLLIÉRE, 1999, p.

27).

Com o transcorrer do tempo, e em articulação com as estruturas sociais das diferentes

civilizações, as práticas de saúde foram se diferenciando, sendo que é a partir da Grécia

Clássica que se encontram dados relevantes para a compreensão da sua evolução.

Do ponto de vista econômico, a Grécia contava com relativo desenvolvimento

marítimo, estimulado pela presença do mar. O trabalho artesanal era difuso e evoluiu

juntamente com a indústria e o comércio. A religião interferia diretamente na vida política do

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

61

Estado, sendo que o teor dogmático e mitológico predominante correspondia às expectativas

dos governantes (GEOVANINI, 2002).

Mas, apesar da ligação entre a religião e o Estado, ela não correspondia aos anseios da

população, a qual mantinha cultos populares repletos de magia e superstição. Essa religião

correspondia às necessidades individuais de sobrevivência do povo que almejava a felicidade

material, a saúde do corpo e a imortalidade da alma. De acordo com Geovanini (2002, p. 8),

nesse período as práticas de saúde associavam-se “[...] à prática religiosa, numa luta de

milagres e encantamentos contra demônios causadores dos males do corpo e do espírito”.

A concepção de saúde e de doença vinculada às práticas de saúde mágico-sacerdotais

era relacionada à dualidade do que é bom e mau. Esta concepção partia do pressuposto de que

a doença era resultante da ação de forças externas ao organismo, as quais eram responsáveis

pela introdução do pecado ou a maldição nele (SCLIAR, 2007). A cura, desse modo, era uma

relação entre a natureza e a doença, sendo que o xamã e, posteriormente, os sacerdotes/padres

eram encarregados de combater este malefício (a doença) e reintegrar o doente ao universo

que ele pertence, isto é, restabelecer o equilíbrio com a natureza.

Segundo Scliar (2007), o xamã era encarregado de, através de rituais, expulsar os

maus espíritos que tinham se apoderado da pessoa e causado a doença. Já os padres exerciam

o papel de intérprete dos deuses e aliados da natureza contra a doença (GEOVANINI, 2002).

É importante destacar que ambos tinham o mesmo encargo: ser o mediador entre as forças

benéficas e maléficas, além de interpretar e decidir o que é bom ou mau (COLLIÈRE, 1999).

Em síntese, o mediador das forças benéficas e maléficas (xamã e/ou padre) intercedia e

tentava expulsar o mal

[...] Velando para assegurar as forças benéficas por rituais de oferendas, de encantamentos e de sacrifícios. Mas, pelo seu poder de mediação, ele torna-se também naquele que denuncia o mal e que, por isso mesmo, adquire progressivamente o direito de designar e de cortar do grupo qualquer suspeito que seja portador de mal: seja porque têm marcas tangíveis (leproso) ou por que, sem sinais aparentes, alguns se tornam os bodes expiatórios de uma perturbação econômica e social da ordem estabelecida, atestando um mal pernicioso oculto (ciganos, judeus, heréticos, feiticeiras, vagabundos, mendigos, loucos ...) (COLLIÉRE, 1999, p. 30).

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

62

No alvorecer da ciência, período correspondente ao final do século V a princípio do

século IV a.C., a evolução das práticas de saúde estava relacionada ao surgimento da filosofia

e ao progresso da ciência. Nesse momento, o mundo grego contou com diversas

transformações, destacando-se os avanços da ciência e da filosofia, que resultaram no

afastamento das crenças místicas.

As práticas de saúde, antes místicas e sacerdotais, passaram a ser baseadas na

experiência, no conhecimento da natureza e no raciocínio lógico, o que desencadeou uma

relação de causa e efeito para as doenças. Esse período é considerado pela medicina grega

como período hipocrático, destacando-se a figura de Hipócrates (GEOVANINI, 2002).

Hipócrates propôs uma nova concepção de saúde, dissociando a arte do curar dos

preceitos místicos e sacerdotais através do método indutivo da inspeção e da observação,

corroborando a importância do diagnóstico, do prognóstico e da terapêutica como processos a

serem desenvolvidos a partir da observação cuidadosa do doente. Segundo Scliar (2007), os

escritos de Hipócrates traduziram uma visão racional da medicina, bastante distinta da

concepção mágico-religiosa descrita anteriormente.

A partir da racionalidade hipocrática nas práticas de saúde, e mais especificamente na

prática da medicina, começa-se a valorizar uma concepção de saúde baseada nos sinais,

sintomas e outras alterações detectadas no indivíduo doente, o que contribuiu para uma

progressiva restrição do cuidado em saúde à intervenção sobre o corpo.

No período monástico-medieval (século V ao XIII) as práticas de saúde foram bastante

influenciadas pela ideologia do cristianismo e dos fatores sociais, políticos e econômicos da

sociedade feudal. No período retratado, registraram-se grandes epidemias de sífilis, lepra e

outros flagelos que afetaram a vida política e social. Além disso, registraram-se também

terremotos e inundações que, conjuntamente e apoiadas na ignorância coletiva, reforçaram as

superstições e crendices.

Nesse contexto, “a necessidade de auxílio e de redenção aos sofrimentos, aliada à

sensibilidade mística do povo, encontra expressão na religião cristã que começa a progredir”

(GEOVANINI, 2002, p.13). Assim, reforça a autora, a igreja passou a deter o monopólio

moral, intelectual e financeiro, difundindo o dogmatismo cristão através da autoridade e da

hegemonia eclesiástica.

Os conhecimentos de saúde, nesse período, eram restritos ao clero, os quais eram

influenciados pelo ceticismo, confluindo-se para uma prática dogmática desenvolvida, quase

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

63

que exclusivamente sob a sombra dos claustros (GEOVANINI, 2002). Nesse período, devido

à influência da religião cristã, manteve-se a concepção da doença como resultado do pecado e

a cura como questão de fé (SCLIAR, 2007). Coelho e Fonseca (2005, p.215) complementam

que

Quando a Igreja católica apropriou-se do poder de discernir entre o bem e o mal, desprezou as práticas tradicionais de cuidado, rompendo a unidade corpo e espírito em relação com o universo. Começava a se afirmar uma concepção de cuidado que dava supremacia ao espírito e considerava o corpo fonte de impureza, fornicação e malefício, nascendo um saber inspirado na doutrina dos padres e clérigos. Iniciava-se, então, uma medicina que não ousava contradizer as doutrinas eclesiásticas e, por muito tempo, os homens da Igreja foram os seus alunos.

Considerando a marcante efervescência religiosa desse período, muitos leigos

dedicaram-se às práticas de caridade, assistindo aos pobres e enfermos por determinação

própria. De acordo com Geovanini (2002), este fato contribuiu para a criação de inúmeras

congregações e ordens seculares que, com o seu desenvolvimento, fortaleceu a associação da

assistência religiosa com a assistência à saúde.

Nessa época, hospitais foram construídos próximos aos mosteiros e igrejas, sendo

concebidos como um lugar não de cura, mas de conforto e abrigo para os doentes (SCLIAR,

2007). Estes hospitais eram dirigidos por ordens e congregações religiosas e a assistência

prestada neles tinha uma conotação estritamente religiosa, cujos enfermos e trabalhadores

buscavam a salvação da alma.

Com o advento das ordens seculares, no século XIII, houve a introdução da

enfermagem nos hospitais, através das religiosas, cujo trabalho era revestido de amor ao

próximo (MELO, 1986). Muitas mulheres, motivadas pela fé cristã, dedicaram-se à caridade,

a proteção e assistência aos enfermos, o que conformou uma prática de Enfermagem que por

muitos séculos

[...] Foi praticada dessa maneira pelas mãos de religiosas e abnegadas mulheres que dedicavam suas vidas à assistência aos pobres e aos doentes. As atividades eram centradas no fazer manual e os conhecimentos eram transmitidos por informações acerca das práticas vivenciadas.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

64

Predominavam ações de saúde caseiras e populares, com forte conotação mística, sob a indução dos sentimentos de amor ao próximo e de caridade cristã (GEOVANINI, 2002, p. 15).

Essa concepção da enfermagem permaneceu, por muitos séculos, exercida por

religiosas que não possuíam conhecimentos próprios que pudessem fundamentar suas

atividades (MELO, 1986). Vale destacar que nesse mesmo século, o caráter das atividades

médicas transformou-se em prática técnico-profissional, fato que não aconteceu com a

enfermagem (MELO, 1986), a qual permaneceu enclausurada nos hospitais religiosos

desenvolvendo uma prática empírica e desarticulada (GEOVANINI, 2002).

O legado deste período para a Enfermagem engloba uma série de valores e uma prática

com forte conotação sacerdotal e não profissional que, com o passar do tempo, foram

legitimados na sociedade como características próprias da profissão.

Passaram-se os séculos e após atingir o auge do seu desenvolvimento, o regime feudal

iniciou sua decadência, oriunda do progresso contínuo das grandes cidades e do comércio

com o Oriente, o que gerou grandes mudanças na economia. Nesse período, o Atlântico

passou a ser o eixo econômico do mundo moderno; a tipografia, recém-descoberta,

possibilitou a divulgação de obras raras e, consequentemente, a divulgação do conhecimento,

antes restrito ao clero (GEOVANINI, 2002).

A Renascença surgiu na Itália, imprimindo novos significados à arte, através da

intensa renovação artístico-intelectual, e trazendo muitas contribuições ao pensamento

científico. Com o humanismo do movimento Renascentista

As práticas de saúde avançaram para a objetividade da observação e da experimentação, voltando-se mais para o cliente que para os ensinamentos literários. Dessa forma, priorizou-se o estudo do organismo humano, seu comportamento e suas doenças. Acompanhando as recentes descobertas anatômicas, a cirurgia também faz notáveis progressos (GEOVANINI, 2002, p. 16).

Em consequência, a complexidade do cuidado em saúde passou a ser substituída pelo

mecanicismo do paradigma biomédico que, nesse período, começou a despontar e a contribuir

para a perda da dimensão subjetiva nas práticas de saúde. A investigação pormenorizada do

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

65

corpo humano, associada à objetividade da observação e do empirismo, restringiu ainda mais

o foco das práticas de saúde, o que contribuiu para que o corpo, gradativamente, fosse

compreendido como um objeto de intervenção para o combate da doença e produção de

saúde.

No século XVI dá-se a Reforma Protestante, movimento que separou a Igreja católica

Ocidental e estabeleceu as Igrejas nacionais, em lugar da Igreja universal e única (MELO,

1986). Geovanini (2002) complementa que esse movimento não foi exclusivamente religioso,

já que envolvia interesses políticos e econômicos da nobreza e do clero.

Para além das questões socioeconômicas, políticas e religiosas, a Reforma Protestante

trouxe grandes conseqüências para a enfermagem, sendo conhecido como o seu “período

negro”. Nesse período, houve o fechamento de inúmeros hospitais, a expulsão das religiosas

que aí atuavam e a perseguição às mulheres curandeiras por parte da Santa Inquisição, cuja

acusação maior era o conhecimento sobre a arte de curar, o qual era monopólio da Igreja

(MELO, 1986).

Com a expulsão das religiosas dos hospitais, passou-se a recrutar pessoal leigo e

remunerado, como mulheres marginalizadas, para prestar serviços variados e, dentre eles, o

cuidado aos doentes (MELO, 1986). É importante destacar que “a utilização de mulheres para

desempenharem este papel reflete a ideologia de uma sociedade onde o trabalho manual era

menosprezado e, como tal, relegado à categoria considerada inferior” (MELO, 1986, p.35).

Observa-se que no transcorrer dos períodos históricos destacados o campo de ação das

práticas de saúde e da prática do enfermeiro convergiu para o combate à doença, sem

evidenciar ações que pudessem promover a saúde. Este fato será reforçado nos períodos

posteriores, especialmente após as transformações socioeconômicas e políticas oriundas do

mundo moderno.

A era moderna foi marcada por uma filosofia econômico-política que produziu

profundas transformações na sociedade. Nesse período, assistiu-se à queda definitiva do

regime feudal e a emergência da Revolução Industrial que, iniciada na Inglaterra em 1760,

alastrou-se por todo o mundo e consolidou uma nova ordem mundial: o modo de produção

capitalista.

Esta conjuntura foi impulsionada por todo um processo de acumulação prévia de

capital (MELO, 1986), decorrente do surgimento de novos mercados. Essa situação está

relacionada à descoberta e colonização da América; à circunavegação da África; aos

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

66

mercados com a Índia e com a China; e ao comércio com as colônias, o que acarretou no

aumento dos meios de troca e do volume de mercadorias (MARX e ENGELS, 2008).

Esses mesmos autores argumentam que esse conjunto de fatores trouxe uma

prosperidade até então desconhecida pelo comércio, navegação e indústria, contribuindo ainda

mais para a desintegração da sociedade feudal e para o aumento do capital e do poder político

da burguesia ascendente.

Com a expansão do mercado, oriunda do aumento da divisão do trabalho e da

produtividade, junto ao crescimento demográfico (MELO, 1986), observa-se que o

funcionamento da indústria, nos moldes da sociedade feudal ou corporativa, não atendia às

necessidades de mercado crescentes. Esse fato alavancou o surgimento da máquina e do

vapor, que aliado aos avanços técnico-científicos favoráveis ao desenvolvimento do sistema

de produção, revolucionou a produção industrial e lançou as bases para o que se denominou

de Revolução Industrial.

Na perspectiva de Kantorski (1997), a Revolução Industrial, além de produzir diversas

transformações no sistema de produção, significou essencialmente uma revolução social,

impulsionando a passagem da sociedade agrária para a industrial e o surgimento de novas

classes sociais antagônicas: a burguesia e o proletariado.

Para elucidar esta afirmação, Melo (1986) complementa que a Inglaterra iniciou o

século XIX com características que contribuíam para o desenvolvimento de uma sociedade

capitalista, dividida em duas classes básicas: a burguesia, proprietária dos meios de produção,

e o proletário, classe assalariada que, para sobreviver, vende o único bem que lhe resta; a

força de trabalho.

Face aos avanços alcançados pela revolução industrial, especialmente pela produção

em larga escala de capital e o conseqüente enriquecimento da classe burguesa, registrou-se

um expressivo progresso econômico. Em contrapartida, a nova ordem social capitalista trouxe

poucos benefícios à população trabalhadora.

Após a fase de expansão do capitalismo liberal, tornaram-se visíveis os prejuízos da

nova ordem, considerando que a grande massa de população nas cidades, oriundas do campo,

estava submetida a condições precárias de vida, aprofundadas pelas desigualdades

econômicas e pela exploração do trabalho, inclusive de mulheres e crianças.

Com essa situação, muitas transformações na saúde ocorreram. Com o aumento da

concentração de pessoas nas cidades alterou-se o perfil nosológico da população,

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

67

especialmente devido ao aumento dos casos de doenças infecto-contagiosas ligadas às

precárias condições sanitárias (KANTORSKI, 1997), como tuberculose e tifo. Sendo assim,

Geovanini (2002, p.22) complementa que

A doença torna-se um obstáculo à força produtiva do trabalhador e representa, não só a diminuição da produção, como também transtornos econômicos e políticos. Existe interesse em manter a saúde, não como uma necessidade básica do indivíduo, mas como um modo de manutenção da produtividade.

Esse fato, associado aos anseios da sociedade capitalista, contribuiu para que a saúde

começasse a ser vista como objeto de consumo e fonte de lucros, o que a caracterizou como

um instrumento de manutenção e reprodução da força de trabalho, com vistas a fortalecer a

produção de capital.

Com o advento do capitalismo, assistiu-se também uma transformação do hospital e

do processo de trabalho em saúde. O hospital no período feudal caracterizava-se como

instituição de caridade destinada a abrigar pobres, velhos, loucos, entre outros. Mas, sob a

égide do capitalismo, ele se tornou um espaço privilegiado para a investigação da doença, de

terapias e de cura, assumindo uma função importante na manutenção e reprodução da força de

trabalho a ser utilizada para a produção industrial e, portanto, para a consolidação do

capitalismo.

Collière (1999, p.124) complementa que de maneira comparável ao setor industrial, os

serviços contidos nos hospitais

Organizam-se em torno dos grandes “barões” e dos seus assistentes que dão as directivas, prescrevem as tarefas a desempenhar. A distribuição dos doentes e o destino das acomodações, estabelecem-se em torno da investigação e da reparação da mecânica orgânica [...] É, de facto, em torno das tecnologias de investigação e de reparação da doença bem como da sua forma de utilização, que é elaborada uma configuração social do hospital determinando formas de relações sociais entre os que tratam e os que são tratados.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

68

Essa reorganização do espaço hospitalar alavancou transformações no processo de

trabalho em saúde. Isto se dá, principalmente, pela projeção do trabalho médico, considerado

como prática social e associado à esfera produtiva e que, reforçado pelos conhecimentos

científicos e tecnológicos, apresentou-se como responsável pelo diagnóstico e pela

terapêutica. A enfermagem, nesse contexto, surgiu como uma profissão/ocupação paramédica,

conformando-se como prática assalariada e submetida no interior do processo de trabalho em

saúde à prática médica (KANTORSKI, 1997).

Nesse ínterim, é dentro deste novo espaço hospitalar, especializado por conta dos

avanços alcançados pela medicina, que ocorre a reforma da enfermagem, consubstanciada na

separação da prática religiosa da prática técnico-profissional (MELO, 1986). A prática em

enfermagem, em face destas mudanças, começa a se distanciar dos valores morais e religiosos

herdados do passado e vai, gradativamente, adotando o modelo biomédico e valorizando a

tecnicidade no desenvolvimento de suas ações (COLLIÈRE, 1999). Isto ocorreu não somente

com a Enfermagem, mas também com todo o setor saúde.

Observa-se que os resultados das transformações ocorridas com o advento do

capitalismo, especialmente os avanços técnico-científicos na medicina, trouxeram muitas

contribuições para o setor saúde. Em contrapartida, no transcorrer dos séculos XIX e XX,

estes mesmos avanços produziram retrocessos nas relações do homem com o mundo e no

cuidado em saúde.

Com efeito, o cuidado profissional na saúde transformou-se em um cuidado para

recuperação de corpos produtivos, distanciando-se da manutenção e promoção global da vida.

Em face disso, presencia-se uma hiper-valorização da racionalidade científica e da técnica

como formas de produzir saúde, aliadas à impessoalidade, individualismo e distanciamento

tão marcantes na atenção à saúde da população.

Collière (2003) argumenta que a evolução das tecnologias de investigação e de

tratamentos desencadeia uma nova mudança na concepção de cuidados que passam a ser o

tratamento das doenças. Ayres (2009b), citando Foucault (2001), complementa que na

contemporaneidade é sobre o corpo dos indivíduos que as tecnologias são aplicadas,

disciplinando-os, regulando-os e potencializando-os como força produtiva.

Esse conjunto de fatores contribui para a persistência do caráter individual-

universalista do cuidado em saúde, a qual tem provocado uma progressiva incapacidade das

ações de cuidado à saúde de se manterem como prática racional, de se mostrarem sensíveis às

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

69

necessidades de saúde da população e de se conscientizarem dos seus próprios limites

(AYRES, 2009). Isso contribui para acentuar o que esse mesmo autor denominou de “crise de

legitimidade das formas de organização do cuidado em saúde”, isto é, a falta de confiança nos

seus alcances técnicos e éticos, decorrente do gradual afastamento da prática tecnocientífica

da medicina em relação aos projetos existenciais que lhe cobram participação e lhe conferem

sentido.

Em outras palavras, é como se as ações de saúde estivessem perdendo seu interesse

pela vida e, mais especificamente, estivessem perdendo o elo entre seus procedimentos

técnicos e os contextos e finalidades práticos que os originam e justificam: o alívio do

sofrimento e a promoção da vida.

Essa é uma contradição que persiste até os dias atuais, inclusive na enfermagem. Isso

nos faz questionar: como a Enfermagem, que tem como essência o cuidado, sustenta esta

contradição em sua prática? Para elucidar esta indagação, buscaremos uma definição de

Enfermagem e os elementos que compõe o cuidado específico da profissão.

De acordo com Rocha e Almeida (2000), a Enfermagem é uma das profissões da área

da saúde cuja essência é o cuidado ao ser humano, individual e coletivamente, desenvolvendo

atividades de promoção da saúde, prevenção de doenças, recuperação, reabilitação, proteção e

manutenção da saúde, com atuação em equipes. Lima (2005, p.27) complementa que

A enfermagem é uma ciência humana, de pessoas e de experiências, voltada ao cuidado dos seres humanos, cujo campo de conhecimento, fundamentações e práticas abrange desde o estado de saúde até os estados de doença e é mediado por transações pessoais, profissionais, científicas, estéticas, éticas e políticas.

Compreendida como prática social, a Enfermagem é uma profissão dinâmica, sujeita a

transformações permanentes, cuja prática profissional está atrelada à estrutura econômica,

política e ideológica da sociedade, o que a caracteriza como trabalho.

Por conta da tensão histórica entre a prática médica e a prática do enfermeiro, Lima

(2005) chama atenção ao que Florence Nightingale, a precursora da Enfermagem moderna,

concebeu como essência da prática em enfermagem: “Quando a função de um órgão está

impedida, a medicina ajuda a natureza a remover a obstrução e nada mais além disso,

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

70

enquanto a enfermagem mantém a pessoa nas melhores condições possíveis, a fim de que a

natureza possa atuar sobre ela” (LIMA, 2005, p.31). Isto é: a prática do enfermeiro deve ser

pautada no cuidado ao ser humano, mobilizando as condições possíveis para conservar e

promover a vida e não restringir sua prática à intervenção sobre um corpo puramente

biológico.

A autora supracitada argumenta que o ato de cuidar como ação terapêutica em

enfermagem envolve aspectos relacionados à preservação e manutenção da vida, necessitando

que os enfermeiros compreendam as concepções de saúde e de doença em uma dimensão

ampliada.

Eis o problema: na área da saúde e na enfermagem ainda são hegemônicas as

concepções de saúde e de cuidado ligadas aos saberes estritamente técnico-científicos, cuja

finalidade única é o tratamento de doenças e a possível cura, o que contribui para a

manutenção de uma prática alienada e distanciada do cuidado essencial ao ser humano.

Em vista disso, é fundamental chamar atenção para o seguinte aspecto: cuidar não é

sinônimo de tratar. Historicamente, como pudemos perceber, o cuidado em saúde foi

perdendo a sua conotação principal, que é a manutenção e promoção da vida, sendo

substituída pela concepção de tratamento com vistas à cura. Entretanto, “[...] tratar nunca

poderá suprir toda esta mobilização das capacidades de vida que representa o cuidar”

(COLLIÈRE, 2003, p.287).

Nas instituições de saúde, seja no âmbito hospitalar ou nos serviços de atenção

primária, a concepção do cuidar como sinônimo de tratar se reproduz hegemonicamente, de

modo que o cuidado em saúde abrange prioritariamente o que é de domínio do tratamento, da

reparação, subjugando-se os cuidados costumeiros e habituais, essenciais para manter a vida

cotidiana. Esses cuidados essenciais são bastante desvalorizados e desprezados, ao tempo em

que apenas são reconhecidas e valorizadas as técnicas para o reparo de doenças, o que reduz a

prática de cuidar à aplicação e vigilância de tratamentos. Em contrapartida, não se pode deixar

de enfatizar que os cuidados de manutenção da vida possibilitam a luta contra a doença,

constituindo-se, assim, num substrato essencial para qualquer tratamento (COLLIÈRE, 2003).

O discernimento entre cuidar e tratar leva a considerar os cuidados habituais ou de

conservação e manutenção da vida (denominados care em inglês) e os cuidados de

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

71

recuperação ou tratamento2 (denominado cure em inglês) de naturezas diferentes e

complementares (COLLIÈRE, 2003).

Os cuidados de manutenção da vida têm como função primordial assegurar o

indispensável ao viver. Eles estão ligados, de um lado, a um conjunto de atividades que

asseguram a continuidade da vida, como comer, beber, evacuar, levantar-se, mover-se, etc, e

de outro, aos cuidados que contribuem para o desenvolvimento da vida das pessoas,

alimentando a razão de existir e mobilizando a sua rede relacional (COLLIÈRE, 2003).

Os cuidados de recuperação ou tratamento têm por objetivo limitar a doença e sua

progressão; lutar contra ela e atacar as suas causas. Eles só têm sentido e efeito quando se

juntam e agem de forma complementar aos cuidados de apoio à vida, os quais nunca devem

ser substituídos, corroborando a afirmação que nenhum tratamento, seja ele o mais sofisticado

possível, pode substituir os cuidados de manutenção da vida (COLLIÈRE, 2003).

Mediante essas considerações, observa-se que o cuidado profissional em enfermagem

situa-se na encruzilhada do paradigma científico e da concepção de cuidado em seu sentido

ontológico-existencial, o que se constitui no campo dos saberes, como uma capacidade prática

que se aprende com a experiência.

Após o advento do capitalismo, especialmente no transcorrer do século XX, busca-se a

cientificização do saber em Enfermagem, de modo a acompanhar as transformações da prática

médica. Em conseqüência da divisão técnica do trabalho, a prática em enfermagem fica

restrita ao domínio dos procedimentos técnicos e do aparato tecnológico.

Salienta-se que embora se necessite construir o conhecimento no campo da

Enfermagem baseado na ciência, a pedra angular da construção dos seus saberes e do seu

fazer deve ser o cuidado (COLLIÈRE, 2003). Ou seja, o cuidado de enfermagem não deve ser

construído estritamente sob a ótica dos conhecimentos técnico-científicos; esta construção

deve contemplar os cuidados vitais para a existência humana, já que o processo saúde-doença-

cuidado, no qual a enfermagem atua, é tão dinâmico e complexo quanto à noção de vida.

Sendo assim, o que caracteriza o cuidado profissional em enfermagem? Segundo

Souza et al (2005), o cuidado em enfermagem pertence a duas esferas: uma objetiva, que diz

respeito ao desenvolvimento de técnicas e procedimentos, e uma subjetiva, que se baseia em

2 A autora reforça que é preferível não utilizar a palavra cuidados de reparação- como muitas vezes se faz para designar os tratamentos, o que contribui para manter um equívoco- mas utilizar a palavra tratamento pelo que ela realmente significa.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

72

sensibilidade, criatividade e intuição para interagir e cuidar de outro ser. Essas duas esferas,

mesmo parecendo distintas, necessitam ser interligadas no processo de cuidar.

Cuidar em enfermagem consiste em esforços transpessoais de um ser humano para

outro, visando proteger, promover e preservar a humanidade, contribuindo para que as

pessoas encontrem significados não somente nos momentos de doença e sofrimento, mas

também na sua existência (SOUZA et al, 2005). Deste modo, prestar cuidado na dimensão

pessoal e/ou social é uma virtude que integra os valores identificadores da enfermagem,

significando comprometimento e engajamento político-social (SOUZA et al, 2005). Nesse

sentido,

O cuidado de enfermagem promove e restaura o bem-estar físico, o psíquico e o social e amplia as possibilidades de viver e prosperar, bem como as capacidades para associar diferentes possibilidades de funcionamento factíveis para a pessoa. [...] Nesta linha de raciocínio, o cuidado de enfermagem baseia-se em ações que se estendem ao longo da construção da cidadania, porque potencializa a expressão do cidadão em sua existência social. O cuidado ao longo da vida social fomenta a autonomia e dignifica o ser, e ao readquirir a autonomia do ponto de vista do estar saudável, a enfermagem promove e se insere na humanização da vida (SOUZA et al, 2005, p. 268-9).

Esta dimensão, não restrita ao procedimento técnico do cuidado de enfermagem,

necessita ser resgatada. Apesar de inúmeros avanços alcançados no século XX, especialmente

com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia na área da saúde, observa-se que o cuidado

em enfermagem ainda é restrito à abordagem técnica fragmentada e distante do ser humano,

sendo reproduzido, inclusive, nos espaços de formação do enfermeiro. Esta situação gera

contradições que persistem em toda a saúde, fazendo com que os profissionais de saúde e,

dentre eles os enfermeiros, construam suas práticas no sentido contrário ao do cuidado.

Apesar dessas contradições evidenciadas no cuidado em saúde terem impulsionado a

emergência de novos olhares sobre a atenção à saúde, em vista da necessidade de renovar as

práticas sanitárias, destacando-se a promoção da saúde, Ayres (2009b) chama atenção que a

consolidação desses novos olhares dependerá de transformações bastante radicais no modo de

pensar e fazer saúde.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

73

O resgate do cuidado nas práticas de saúde, compreendido em sua dimensão

ontológico-existencial, emerge como possibilidade de promover mudanças imperiosas e éticas

na prática do enfermeiro. Para isso, Collière (2003) reforça que é necessário: reencontrar o

sentido original dos cuidados; demonstrar que os cuidados de apoio à vida são indispensáveis;

restituir aos cuidados um poder libertador3; distanciar-se das condutas inspiradas em modelos,

de modo a permitir que os enfermeiros construam o seu próprio saber, elabore o seu próprio

pensamento e descubra o que dá sentido, significado e orientação aos cuidados de

enfermagem que têm de assegurar.

Aliando a estas considerações, Ayres (2009b) chama atenção para os seguintes fatos:

- é preciso ter claro que nem tudo que é importante para o alcance do bem estar pode ser

imediatamente traduzido e operado como conhecimento técnico;

- no momento da assistência à saúde, é preciso se atentar que mesmo estando na condição de

profissionais, nossa presença na frente do outro não se resume ao papel de simples aplicador

de conhecimentos;

- a ação de saúde não pode se restringir à aplicação de tecnologias; nossa intervenção técnica

tem que se articular com outros aspectos não tecnológicos;

- não se pode limitar a arte de assistir apenas à criação e manipulação de “objetos”. É

necessário que no cuidado em saúde se participe da construção de projetos humanos, de

projetos de felicidade. Para isso é fundamental, quando se cuida, saber qual é o projeto de

felicidade das pessoas, isto é, que concepção de vida bem sucedida orienta os projetos

existenciais dos sujeitos a quem prestamos assistência.

Outro aspecto pontuado por Ayres (2009b) é a necessidade de revalorizar a dignidade

da sabedoria prática que emerge do ato de cuidar. Isso se constitui em uma tarefa e

compromisso fundamental dos sujeitos quando se quer cuidar. Entretanto, destaca o autor,

isso nem sempre é fácil, dado que frequentemente os saberes não técnicos são tidos como

obscuros; como um atraso.

Com base nessas considerações, é fundamentalmente aí que está a importância do

cuidar nas práticas de saúde: o desenvolvimento de atitudes e espaços de genuíno encontro

intersubjetivo, de exercício de uma sabedoria prática para a saúde, apoiados na tecnologia,

3 Um poder é libertador cada vez que, apoiando-se nas forças e nas capacidades em presença, liberta outras possibilidades ou permite às capacidades existentes desenvolverem-se ou simplesmente ser utilizadas. O poder veiculado pelos cuidados de enfermagem é libertador sempre que: permitir aos utentes dos cuidados desenvolver capacidades para se cuidarem, mas também para cuidarem; reconhecer o saber das pessoas cuidadas, conferir ou aumentar um poder de ser, de autonomia; permitir aos utentes utilizar o poder que lhes resta (COLLIÈRE, 2003)

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

74

mas sem resumir a ação em saúde a ela (AYRES, 2009b). Sendo assim, mais que tratar de um

objeto

[...] a intervenção técnica se articula verdadeiramente com um Cuidar quando o sentido da intervenção passa a ser não apenas o alcance de um estado de saúde visado de antemão, nem somente a aplicação mecânica das tecnologias disponíveis para alcançar este estado, mas o exame da relação entre finalidades e meios, e seu sentido prático para o paciente, conforme um diálogo o mais simétrico possível entre profissional e paciente (AYRES, 2009b, p. 86).

No contexto de sociedade em que se vive e em face da necessidade de reconstruir as

práticas de saúde sob a ótica do cuidado, é essencial reencontrar os cuidados portadores de

vida, cuidados vivificantes tanto para os usuários dos serviços de saúde como para os

profissionais (COLLIÈRE, 2003). Este é um dos grandes desafios do nosso tempo, que pode

começar a ser pensado a partir da promoção da saúde.

4.2 O CUIDADO PARA A PROMOÇÃO DA SAÚDE: ELEMENTOS PARA A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA

As numerosas descobertas realizadas desde o início do século XIX, especialmente nos

campos da química e da física, construíram novos rumos para a área da saúde. Neste período,

a medicina incorporou à sua prática uma tecnologia de precisão crescente, o que acentuou a

separação do corpo e do espírito, a doença do doente, e reforçou a fragmentação do corpo em

regiões anatômicas. Esses fatos contribuíram para que a atuação da medicina fosse restrita à

intervenção sobre um corpo portador de uma doença a ser identificada, no intuito de reparar a

mecânica do corpo doente. A doença, assim, passou a constituir o objeto de investigação e

intervenção da prática médica, sendo que o sujeito que convive com a doença torna-se um

“epifenómeno” (COLLIÈRE, 1999).

A aplicação desses avanços técnico-científicos no processo do cuidar resultou em

profunda transformação no processo de trabalho em saúde, em especial na prática dos

cuidados de enfermagem. Esta situação decorreu, principalmente, da gradativa reorganização

do trabalho em saúde em torno da prática médica que “[...] preside a um conjunto de tarefas a

assegurar para permitir a detecção e a reparação da doença” (COLLIÈRE, 1999, p. 124).

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

75

De acordo com a mesma autora, a prática em enfermagem começou a se organizar em

torno das diferentes tarefas prescritas pelo médico, para investigar, tratar e vigiar a doença.

Isso nos leva a afirmar que o fio condutor das ações desenvolvidas na Enfermagem, que dá

sentido às tarefas a realizar, inclusive na contemporaneidade, é a doença.

A doença, tida como o norte do trabalho em enfermagem, exerce influência direta na

seleção e elaboração dos conhecimentos necessários para fundamentar a sua prática. Esses

conhecimentos, que pautam a prática em enfermagem, organizam-se em dois domínios

principais: a doença e a técnica. Destarte, os cuidados aos doentes passam a ser “a técnica” e,

posteriormente, os “cuidados técnicos”, os quais são determinados e orientados pela doença

(COLLIÈRE, 1999).

Na realidade brasileira, observa-se que a prática do enfermeiro não foi conformada

diferentemente do pontuado por Marie-Françoise Collière. Desde as suas origens, ela esteve

vinculada ao modo de produção capitalista, para o atendimento dos interesses do mercado e

das políticas de saúde do Estado, conformando-se, no decorrer do século XX, como

subsidiária da prática médica e com foco no procedimento técnico e na patologia.

Os profissionais de enfermagem, exercendo o papel auxiliar do médico e com suas

ações focadas hegemonicamente na cura e na doença, distanciam-se da essência inerente ao

cuidado, reproduzindo o modelo biomédico em sua totalidade, inclusive no espaço onde o

cuidado tem forte conotação holística e política: a atenção primária à saúde.

A partir do final da década de 1970, com a emergência dos movimentos pela

democratização da saúde, os quais incorporaram diversas críticas relativas ao modelo médico-

privatista, configurou-se um novo espaço para a redefinição das práticas exercidas pelos

profissionais da saúde. Com a organização do Sistema Único de Saúde, os serviços de saúde

tornaram-se um espaço propício para impulsionar ações de caráter coletivo, com foco em

ações preventivas e de promoção da saúde.

Nascimento e Nascimento (2005) argumentam que o processo de construção do SUS

tem propiciado mudanças no âmbito dos serviços de saúde e do modelo de atenção à saúde. A

prática do enfermeiro, nesse contexto de mudanças, passa por uma série de transformações,

deslocando a sua atuação profissional predominantemente da área curativa, individualizada,

focalizada nos procedimentos técnicos e na patologia, e vinculada às instituições hospitalares,

para a produção de serviços em unidades básicas de saúde, com ênfase em ações de bases

coletivas.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

76

O enfermeiro, ao atuar em consonância com os pilares da atenção primária e com uma

concepção ampliada do processo saúde-doença-cuidado, considerando a determinação social

da saúde, aproxima-se dos pressupostos da promoção da saúde. Ao atuar na atenção primária,

incorporando a promoção da saúde como uma estratégia de transformação social e política da

saúde da comunidade, esse profissional encontra um campo aberto de possibilidades,

potencializando as ações desenvolvidas na atenção primária e projetando uma prática

autônoma, consoante com o conceito ampliado de saúde e com o cuidado holístico,

condizente com as necessidades de saúde da população e com os princípios do SUS.

Com essa aproximação inicial ao tema, é importante nesse momento resgatar os

elementos que compõem os cuidados desenvolvidos na atenção primária, denominados de

cuidados primários de saúde, e as características dos cuidados de enfermagem na atenção

primária na perspectiva do desenvolvimento da saúde, de modo a compreender mais

claramente como os enfermeiros podem promover a saúde na atenção primária.

Os cuidados primários de saúde, compreendidos em sua dimensão abrangente, são

relacionados a um movimento de crítica à abordagem médico-hospitalar dos problemas de

saúde representando uma proposta, e ao mesmo tempo, uma práxis ideológica, política e

social que tem o intuito de alavancar mudanças no enfretamento dos problemas de saúde da

população, sendo considerados essenciais para o alcance de um nível aceitável de saúde.

Esses cuidados baseiam-se numa concepção ampliada do processo saúde-doença-

cuidado, a qual considera os fatores biológicos, culturais, econômicos, políticos e sociais na

produção de saúde. Sendo assim, observa-se que essa concepção está ligada às condições de

vida das famílias e dos grupos sociais, o que evidencia a dimensão social da saúde e a

importância dos cuidados primários de saúde para o desenvolvimento social e econômico das

nações (COLLIÈRE, 2003).

Considerando que os serviços de APS estão inseridos em uma comunidade, os

cuidados primários de saúde somente têm sentido se desenvolvidos com a participação direta

e ativa dos membros da comunidade. A comunidade, assim, constitui-se num espaço

privilegiado para o desenvolvimento da responsabilidade dos indivíduos e das famílias sobre a

saúde, individual e coletiva, de modo a promover a autonomia das pessoas e atuar

conjuntamente pelas melhorias das condições de vida e saúde e na construção, gestão e

avaliação de políticas de saúde.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

77

De acordo com Collière (2003), os cuidados primários de saúde propõem-se a

responder às necessidades de saúde mais comuns da população, seja no domínio do

desenvolvimento da saúde, da reparação ou readaptação, de modo a integrar cuidados

preventivos, curativos, de reparação e de promoção da saúde em função das necessidades das

famílias e dos grupos. Nesta perspectiva, esse cuidados ultrapassam o setor saúde, sendo

necessário articular ações intersetoriais para responder de modo adequado às necessidade de

saúde da população.

As características dos cuidados inerentes à atenção primária impulsionam a construção

de uma práxis profissional diferenciada, que remete à responsabilização múltipla pelos

problemas de saúde, à construção de saídas coletivas para o enfrentamento dos problemas de

saúde, à intervenção sobre os determinantes socioambientais do processo saúde-doença-

cuidado e à construção de sujeitos sociais e políticos implicados com as melhorias das

condições de vida e saúde da população.

Collière (2003) enfatiza que os cuidados primários de saúde implicam em mudança

ideológica, cultural, social, tecnológica e econômica da função do cuidado. Eis que a

promoção da saúde emerge como possibilidade de responder a estas demandas e impelir

mudanças necessárias no enfrentamento dos problemas de saúde.

Em vista dessas considerações sobre os cuidados primários de saúde, observa-se que a

atuação do enfermeiro neste cenário contempla diversos elementos para a promoção da saúde.

Contudo, é importante destacar que a projeção de um cuidado pautado no desenvolvimento da

saúde4 na APS ainda é pouco evidente e se constitui num desafio para o número reduzido de

enfermeiros que vislumbram uma prática transformadora e que atue com e na comunidade,

com vistas a romper a hegemonia do paradigma biomédico em suas ações.

Isso se dá, principalmente, porque ainda é prevalente a abordagem normativa/

comportamentalista dos cuidados de enfermagem na atenção primária. Collière (2003)

complementa que a eficácia deste tipo de ação não é duradora, pois após atingir um

determinado patamar, os cuidados pautados nessa concepção caem na rotina e mostram-se

pouco eficazes para a resolução dos problemas de saúde da população, já que permanecem

centrados no controle e erradicação da doença, ao invés de centrar esforços sobre as

dificuldades da vida encontradas pelas pessoas, famílias e comunidade, e em desenvolver as

suas capacidades para o enfretamento dos problemas de saúde e da vida (COLLIÈRE, 2003).

4 Quando se fala em desenvolvimento da saúde, refere-se à prática de cuidados de enfermagem pautados na promoção da saúde.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

78

Nesta direção, essa mesma autora enfatiza que os cuidados de enfermagem na atenção

primária já não podem ser praticados na ignorância de todo o contributo das ciências

biológicas e psicossociais. Para atuar em consonância com os pressupostos da atenção

primária, é essencial considerar e interrogar-se sobre tudo o que vai influenciar o futuro da

pessoa e da sociedade, já que a saúde das pessoas está ligada às condições de vida que estas

encontram e encontrarão.

Por conta disso, alerta a autora, para os cuidados de enfermagem na atenção primária

não se manterem no arcaísmo, os enfermeiros precisam rever a orientação que embasa a sua

prática nesse âmbito, de modo a alcançar uma abordagem ampla e os meios apropriados para

melhor intervir no processo saúde-doença-cuidado. Isso se deve, principalmente, ao seguinte

fato: para cuidar da pessoa humana em sua plenitude, e não somente focar no seu problema de

saúde, é necessário considerá-la como membro de uma família e de uma coletividade. Eis o

problema: este é um fato que precisa ser valorizado socialmente.

Para elucidar esta afirmação, cita-se o estudo realizado por Ermel e Fracolli (2006) em

unidades de Saúde da Família da cidade de Marília/SP, cujo objetivo foi caracterizar o

processo de trabalho da enfermeira no PSF, identificando o objeto, a finalidade, os meios e

instrumentos do mesmo. Com a realização do estudo, verificou-se que o objeto de trabalho

das enfermeiras era o corpo individual, tendo como finalidade a intervenção nos perfis de

desgaste dos grupos sociais, distanciando-se da dimensão social da saúde e adotando uma

postura prescritiva e focada na doença.

Essas autoras chamaram atenção para o seguinte aspecto: nas visitas domiciliares e nas

consultas de enfermagem a família era abordada como alguém que podia contribuir para a

terapêutica, não buscando identificar a dinâmica familiar e discutir as mudanças na vida da

família, face ao problema de saúde de um dos seus membros. Além disso, nas consultas de

enfermagem “[...] as enfermeiras costumam transferir para o indivíduo a culpa por não

executar o tratamento adequadamente, sendo que o social e o econômico não são discutidos

enquanto determinantes do processo saúde-doença dessa família” (ERMEL e FRACOLLI,

2006, p.537).

Outros resultados da investigação foram: as enfermeiras operam o seu processo de

trabalho mediante a utilização de instrumentos tradicionais da saúde pública, tais como a

consulta de enfermagem e a visita domiciliária e, no exercício da sua prática no PSF, elas

reiteram a lógica da prática clínica, individual e curativa, tomando como referência a teoria da

multicausalidade do processo saúde-doença.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

79

Apesar desses achados corresponderem a uma determinada realidade, observa-se que

eles ainda são constatados no processo de trabalho do enfermeiro na atenção primária . Em

face disso, é necessário suscitar mudanças na prática do enfermeiro na APS, de modo a

superar práticas individualistas e focadas na hegemonia biomédica, com foco na doença, e

produzir uma práxis pautada no desenvolvimento da saúde e que corresponda a essência da

profissão: o cuidado. Para isso, é urgente e necessário resgatar a verdadeira essência da

prática do enfermeiro na saúde pública e, mais especificamente, na atenção primária à saúde.

De acordo com Collière (1999), os cuidados profissionais de enfermagem na atenção

primária têm como objetivo central controlar os principais problemas de saúde da

comunidade, desenvolvendo ações de prevenção, de cuidados curativos, de readaptação e de

promoção da saúde. Esses cuidados, reforça a autora, têm uma dimensão social e uma

dimensão de desenvolvimento de pessoas e dos grupos.

Ermel e Fracolli (2006) complementam que o trabalho do enfermeiro na atenção

primária constitui-se no monitoramento das condições de saúde, como núcleo da atenção de

enfermagem, seja no atendimento individual ou no atendimento grupal; no levantamento e

monitoramento de problemas de saúde, sendo que estes deverão estar articulados à

intervenção nos agravos de ordem patológica (e, portanto, pautados no saber da clínica); e no

exercício de uma prática de enfermagem comunicativa, no sentido dialógico e emancipatório,

buscando a ampliação da autonomia dos sujeitos.

Destaca-se que a natureza do trabalho em enfermagem na atenção primária dependerá

da forma como a sua prática é concebida: como uma prática normativa, desenvolvendo ações

sistemáticas de controle e educação sanitária, ou como uma prática que desenvolve interesse

em compreender os principais problemas de saúde das pessoas, a partir das suas condições de

vida (COLLIÈRE, 1999); ou seja, uma prática pautada no desenvolvimento da saúde. A

segunda perspectiva mostra-se crucial para que enfermeiros promovam a saúde na atenção

primária.

Ao discorrer sobre os elementos inerentes à prática do enfermeiro na atenção primária

à luz da promoção da saúde, Collière (2003) afirma que os cuidados de enfermagem nessa

perspectiva têm por objetivo desenvolver a capacidade dos indivíduos, das famílias e da

comunidade para identificar as suas necessidades de saúde e participar, conjuntamente, na

busca por soluções para elas, tendo em vista as possibilidades ao seu alcance.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

80

Os cuidados de enfermagem, sob a ótica da promoção da saúde, “[...] exigem

conhecimento das necessidades de saúde, a partir da descoberta das pessoas e do seu meio de

vida, estabelecendo um laço entre a manifestação da necessidade e do problema de saúde e as

condições de vida como a habitação, o trabalho, o transporte” (COLLIÈRE, 1999, p.172).

Nesse ínterim, os enfermeiros para promoverem a saúde na atenção primária devem

participar ativamente de tudo o que podem contribuir para desenvolver o potencial de vida das

pessoas, considerando que elas estão inseridas em uma rede familiar e social (COLLIÈRE,

2003). Quando há doença ou limitação, os cuidados de enfermagem devem estimular o que

resta de potencial de vida, de autonomia, de modo a explorar tecnologias de compensação que

visem recuperar uma autonomia parcial ou total (COLLIÈRE, 1999).

Essa orientação, baseada em tudo o que existe ou tudo o que resta de capacidades para

enfrentar os problemas de saúde, difere radicalmente da perspectiva que se centra unicamente

na doença, para prevenir e/ou tratar (COLLIÈRE, 2003). A prática do enfermeiro centrada no

desenvolvimento da saúde possibilita a utilização de tecnologias simples, que podem ser

compreendidas e utilizadas pelas pessoas, bem como as tecnologias apropriadas, que se

adaptam às necessidades e recursos das pessoas, contrapondo-se à utilização de tecnologias

pesadas (COLLIÈRE, 1999), as quais geram um alto valor econômico para o sistema de saúde

e para a sociedade.

A autora reforça que para atuar nessa perspectiva é essencial: procurar tudo o que pode

ser desenvolvido; suscitar e estimular o desenvolvimento das capacidades físicas, mentais e

sociais, com vistas a fortalecer o que existe ou o que resta de autonomia; discernir sobre o que

deve ser compensado; além de estimular e libertar as capacidades potenciais.

Sendo assim, essa perspectiva ampliada dos cuidados de enfermagem em saúde

pública caracteriza-se, essencialmente, pelos seguintes aspectos: parte de uma visão global da

situação; considera a pessoa e a família como detentoras dos elementos fundamentais que

regem a situação; é questionadora, buscando conhecer e identificar as necessidades e os

problemas de saúde, levando em consideração as capacidades e os recursos existentes

(COLLIÈRE, 2003).

Observa-se, destarte, que os cuidados de enfermagem desenvolvidos na perspectiva da

promoção da saúde se aproximam dos pressupostos da atenção primária e se apresentam como

elemento fundamental para subsidiar a prática da promoção global da saúde na APS. Esse fato

se deve, principalmente, à proximidade do cuidado de enfermagem com a promoção da vida,

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

81

devendo os enfermeiros vislumbrar esse potencial inerente à profissão e projetar uma prática

consoante com o cuidado. Isso nos faz pensar que o tratamento de doenças não deve ser

hegemônico na atuação do enfermeiro, já que historicamente, este é um constructo inerente à

prática médica.

A prática da enfermagem, pautada na doença e no procedimento técnico, corrobora a

manutenção de uma prática subsidiária à medicina e distante da sua própria essência. Essa é

uma contradição que ainda persiste na Enfermagem, sendo crucial que os enfermeiros

assumam o seu núcleo de competência e responsabilidade que caracteriza a profissão: o

cuidado.

O cuidado, conforme discutimos, é um modo-de-ser do humano, cuja ação gera zelo,

atenção, inquietação, preocupação, movimento, construção, responsabilidade. Estes são

elementos essenciais para se promover a saúde, o que nos leva à seguinte constatação: sem o

cuidado é inviável promover a saúde. O cuidado, como essência e um modo-de-ser da

enfermagem, justifica o papel crucial da profissão para se promover a saúde na atenção

primária.

A promoção da saúde, nesse contexto, emerge como um campo aberto de

possibilidades para a atuação do enfermeiro no campo da atenção primária, rompendo com a

hegemonia da doença nas ações de saúde e possibilitando uma prática de enfermagem

transformadora e pautada no cuidado. Além disso, a promoção da saúde, no campo da atenção

primária, possibilita aos enfermeiros (COLLIÈRE, 1999):

- apreender a relatividade da saúde e compreender a doença como resultado de um conjunto

de fenômenos sociais;

- uma valorização indiscutível da prática de enfermagem, dado que esta intervém sobre os

fatores que incidem no processo saúde-doença-cuidado;

- a reinserção dos cuidados no tecido social e econômico da vida cotidiana, procurando

resolver as dificuldades e as preocupações que se apresentam às famílias, antes que se tornem

grandes problemas;

- ampliar o campo de conhecimentos dos enfermeiros, já que promover a saúde implica em se

aproximar à infinidade de fenômenos da vida, integrando novos saberes na prática de

cuidados;

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

82

- a retomada de um valor de troca, em que o pessoal de enfermagem é um agente motor do

desenvolvimento dos cuidados, deixando às famílias a sua iniciativa, estimulando-as e

ajudando-as a reencontrar a sua capacidade de se tratar;

- desenvolver ideologias ligadas aos cuidados de manutenção da vida e revitalizando as

tecnologias de reparação, bem como limitando a sua utilização ao que é apropriado à natureza

da agressão da doença ou à limitação da pessoa tratada;

- o estímulo à criatividade e à invenção, tanto das pessoas que recebem os cuidados como do

pessoal que os presta, fazendo com que cada um se sentindo implicado/responsável por fazer

sua parte no processo saúde-doença;

- a quebra da pseudo-neutralidade da ação do tratar, tornando usuários e enfermeiros

conscientes daquilo que orienta o projeto de cuidado;

- visibilidade social dos cuidados profissionais de enfermagem, já que esta abordagem

interessa diretamente aos utilizadores dos cuidados e às famílias, que descobrem a

contribuição do enfermeiro na manutenção da saúde e atribuindo, assim, ao trabalho de

enfermagem, um valor social.

Após essas considerações, é importante sinalizar que as mudanças impelidas pela

prática da promoção da saúde é um processo lento, que envolve o embate político e

ideológico contra a hegemonia do paradigma biomédico no setor saúde e na sociedade.

Entretanto, diversos movimentos na saúde têm apontado a necessidade de uma nova forma de

conceber e fazer a saúde, em face da complexidade de resolução dos problemas de saúde na

contemporaneidade e do esgotamento dos modelos de atenção à saúde, pautados na doença,

que mais respondem aos anseios do modo de produção capitalista e provocam danos aos

sistemas de saúde e às pessoas, do que realmente produz saúde.

Se nós, profissionais da saúde, nos colocamos como integrantes do setor saúde, e não

da doença, precisamos romper com a hegemonia de um modelo centrado na doença e resgatar

o cuidado em nossas ações, de modo a intervir na doença, mas produzir saúde em larga escala.

Ou seja, precisamos cuidar no sentido de agir em prol da vida; precisamos promover a saúde,

afinal, cuidar é promover a saúde e promover a saúde é cuidar!

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

83

5 PRODUÇÃO CIENTÍFICA NACIONAL SOBRE A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO CAMPO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA

Inicialmente, a busca realizada nas três bases de dados evidenciou um número

considerável de produções, conforme explicitado na tabela 1.

Tabela 1. Produção científica identificada nas bases de dados, relacionada ao tema em questão. Salvador, 2010.

BASE DE DADOS n PRODUÇÕES EM TEXTO

COMPLETO %

MEDLINE

1829

94

5,1

LILACS

314

129

41

SciELO

36

36

100

Total 2179 259 -

Dentre a produção disponível em texto completo identificaram-se cento e quarenta e

nove (149) artigos em português, cem (100) em inglês, oito (8) em espanhol e dois (2) em

francês. Deste total e excluindo as repetições, selecionaram-se dez artigos que atenderam aos

critérios de inclusão no estudo, perfazendo um porcentual de 4%.

O baixo porcentual de artigos demonstra que, apesar da promoção da saúde ser

bastante enunciada por enfermeiros que atuam na atenção primária, a produção científica da

temática em questão, no Brasil, ainda é emergente e pouco explorada no campo da

enfermagem. Essa constatação é reforçada quando se considera o período de publicação dos

artigos (tabela 2).

Tabela 2. Produção científica, segundo período em que foi publicada. Salvador, 2010.

ANO n % 2000 2 20 2001 1 10 2002 - - 2003 - - 2004 2 20 2005 - - 2006 - - 2007 2 20 2008 - - 2009 3 30 Total 10 100

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

84

Apesar da promoção da saúde e da atenção primária serem discutidas há mais de trinta

anos no âmbito internacional, Lira et al (2009) salientam que, no Brasil, as discussões sobre a

promoção da saúde ainda se encontra em difusão, o que pode justificar a pouca produção

encontrada nesse estudo.

Sendo assim, com vistas à socialização do conhecimento e ao fortalecimento das ações

no campo da promoção da saúde, a Política Nacional de Promoção da Saúde enfatiza a

necessidade de articular ações intersetoriais e entre as esferas de governo para a difusão de

experiências exitosas e de processos avaliativos nesse campo (BRASIL, 2006b). Isso

corrobora a importância de enfermeiros produzirem conhecimento sobre a prática da

promoção da saúde na atenção primária.

Quanto aos periódicos onde os artigos foram publicados, a tabela 3 evidencia que os

periódicos diretamente relacionados à área de Enfermagem concentraram 80% da produção.

Tabela 3. Produção científica, segundo periódico em que foi publicada. Salvador, 2010.

PERIÓDICO n % Revista da Escola de Enfermagem da USP

2

20

Revista Enfermagem UERJ

2 20

Revista Gaúcha de Enfermagem

2 20

Cogitare Enfermagem

1 10

Revista Brasileira de Enfermagem

1 10

Cadernos de Saúde Pública

1 10

Interface- Comunicação, Saúde, Educação

1 10

Total 10 100

Com relação às abordagens dos estudos, prevaleceram os relatos de experiência

(50%), seguidos pelos estudos empíricos (30%), por uma revisão bibliográfica (10%) e por

um estudo teórico de reflexão (10%). A análise dos objetivos dos artigos evidenciou um fato

que merece ser discutido: 80% da produção (oito artigos) versou sobre a prática do enfermeiro

na educação em saúde.

Conceitualmente, a educação em saúde pode ser compreendida como um campo de

práticas que ocorrem no âmbito das relações sociais estabelecidas pelos profissionais de

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

85

saúde, entre si, com a instituição e, sobretudo, com o usuário, no desenvolvimento cotidiano

de suas atividades (L´ABBATE, 1994). Alves (2005) complementa que a educação em saúde

pode ser entendida, também, como uma estratégia por meio da qual o conhecimento científico

produzido no campo da saúde, intermediado por profissionais de saúde, atinge o cotidiano das

pessoas.

Seguindo esse caminho, Brasil (2009b) destaca que a educação em saúde favorece o

aumento da autonomia das pessoas no seu cuidado e potencializa o exercício da cidadania

através do controle social sobre as políticas e serviços de saúde, contribuindo assim para a

gestão social da saúde.

Historicamente, a ideologia e a prática da educação em saúde estão vinculadas aos

interesses do Estado e às relações de poder entre as classes sociais. É importante

compreender, destarte, que a educação em saúde tem, enquanto uma prática social, propósitos

ideológicos, políticos e econômicos (ALVES, 2005). Para elucidar esta afirmação, essa autora

destaca que na segunda metade do século XIX as precárias condições de vida e saúde da

grande massa de trabalhadores europeus, oriundas das conseqüências do processo de

industrialização, configuraram uma ameaça aos interesses das classes dominantes. Esta

situação provocou uma reação do Estado no sentido de disciplinar as classes populares,

através da difusão de regras de higiene e de condutas morais.

Desta maneira, “mediante um discurso higienista e moralista, o Estado exerceria sua

função de civilizar e moralizar a grande massa da população a fim de assegurar o

desenvolvimento das forças produtivas” (ALVES, 2005, 44). Destaca-se que este discurso

estava em conformidade com os interesses das classes dominantes do Estado, objetivando o

controle social das classes sociais menos favorecidas.

No Brasil, a difusão da ideologia da educação em saúde iniciou-se no século XIX, sob

a influência da moralidade e disciplinarização higiênica. Do final do século XIX para início

do século XX observa-se que, em virtude da necessidade de controlar as epidemias de

doenças infecto-contagiosas que assolavam a população, como a varíola, a febre amarela e a

tuberculose, as práticas de educação em saúde eram voltadas para as classes menos

favorecidas, caracterizando-se pelo autoritarismo e a imposição de normas e medidas de

saneamento (ALVES, 2005).

Estas práticas eram orientadas por um discurso biologicista, que reduzia a

determinação do processo saúde-doença-cuidado à dimensão individual e desprezava as

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

86

implicações políticas e sociais nas condições de vida e de saúde da população. Assim,

concebia-se que os problemas de saúde da população eram decorrentes da não observância

das normas de higiene pelos indivíduos, sendo que a mudança de atitudes e comportamentos

garantiria a resolução dos problemas de saúde. Esse discurso foi predominante no campo da

educação em saúde e ainda hoje pode ser encontrado como orientador das práticas educativas

(ALVES, 2005).

A partir da década de 1940 esse modelo, estritamente culpabilizante, começou a ser

criticado, verificando-se algumas transformações nesse campo. Contudo, observa-se que foi

com a emergência do movimento da Educação Popular em Saúde, na década de 1970, que se

conformou uma nova maneira de conceber a prática da educação em saúde.

Com isso, pode-se dizer que, atualmente, a educação em saúde é agrupada em dois

modelos: o modelo tradicional e o modelo dialógico (SOUZA et al, 2005b). A educação em

saúde tradicional, também chamada de preventiva, é historicamente hegemônica, tendo como

foco a doença e a intervenção curativa, e como embasamento teórico-prático o referencial

biologicista do processo saúde-doença-cuidado (ALVES, 2005).

Baseado nos pressupostos da antiga saúde pública, o modelo tradicional da educação

em saúde objetiva prevenir enfermidades e mudar comportamentos desfavoráveis à saúde.

Seu enfoque é individual e normativo, baseando-se na ideologia comportamentalista, onde o

indivíduo é o único responsável pelas suas condições de saúde e, assim, ignorando os fatores

socioculturais e econômicos (SOUZA et al, 2005b).

Nesse modelo, privilegiam-se as informações verticalizadas, que ditam

comportamentos a serem adotados para a manutenção da saúde; os usuários são vistos como

pessoas carentes de informação; a relação estabelecida entre profissionais e usuários é

assimétrica, dado que os profissionais detêm um saber técnico-científico, com status de

verdade, enquanto o outro precisa ser informado; e a relação profissional-usuário é marcada

pelo caráter estritamente informativo, no qual o primeiro assume uma postura paternalista,

explicitando hábitos e comportamentos saudáveis (ALVES, 2005).

O modelo dialógico da educação em saúde, também conhecido como emergente,

considera as raízes dos problemas de saúde e assume como objetivo geral promover a saúde.

Para o alcance desse objetivo, pressupõe-se a promoção de reflexões e a conscientização

crítica sobre os aspectos da realidade pessoal e coletiva, visando desenvolver planos de

transformação da realidade (SOUZA et al, 2005b).

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

87

Os pressupostos desse modelo são baseados nos constructos do pedagogo Paulo Freire,

o qual destaca a importância do desenvolvimento da consciência crítica das pessoas. Essa

perspectiva auxilia tanto na análise coletiva dos problemas vivenciados pelos indivíduos como

na busca de soluções conjuntas para a mudança da realidade (SOUZA et al, 2005b). Alves

(2005) complementa que esse modelo pode ser referido como o modelo dialógico por ser o

diálogo seu instrumento essencial, onde o sujeito é reconhecido como portador de um saber,

que embora diferente do saber técnico-científico, não é deslegitimado pelos serviços.

O objetivo da educação dialógica não é o de informar para saúde, mas de transformar

os saberes existentes. A prática educativa, nesta perspectiva, visa o desenvolvimento da

autonomia e da responsabilidade dos indivíduos e da coletividade no cuidado com a saúde,

não mais pela imposição de um saber técnico-científico restrito ao profissional de saúde, mas

pelo desenvolvimento da compreensão da situação de saúde. A prática da educação em saúde,

assim, mostra-se emancipatória e sensível às necessidades de saúde dos usuários (ALVES,

2005).

A partir do diálogo e intercâmbio de saberes técnico-científicos e populares, profissionais e usuários podem construir de forma compartilhada um saber sobre o processo saúde-doença. Este compromisso e vinculação com os usuários possibilita o fortalecimento da confiança nos serviços. Por esta circunstância, o modelo dialógico tem sido associado a mudanças duradouras de hábitos e de comportamentos para a saúde, visto serem ocasionados não pela persuasão ou autoridade do profissional, mas pela construção de novos sentidos e significados individuais e coletivos sobre o processo saúde-doença-cuidado (ALVES, 2005, p.48).

Em face dessas considerações, destaca-se que 40% dos artigos que abordaram a

educação em saúde enfatizaram-na como uma ferramenta para aconselhar, informar e mudar

comportamentos e hábitos de vida, visando prevenir riscos à saúde. Dentre esses, dois artigos

descreveram a educação em saúde com grupos de adolescentes, com vistas a mudar

comportamentos e aconselhar o grupo sobre temas de interesse dos profissionais de saúde.

Um destes a considerou como estratégia para prevenir riscos à saúde de um grupo de

tabagistas; e outro a restringiu às orientações sobre a prática do aleitamento materno.

Salienta-se que o trabalho de grupo voltado para a difusão de informações e

aconselhamentos, objetivando mudanças de comportamentos, é importante para a prevenção

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

88

de riscos e agravos à saúde. Contudo, conforme destaca Souza et al (2005), os profissionais de

saúde que fornecem informações em saúde a indivíduos ou a grupos tendem a acreditar que os

sujeitos possam e devam seguir as orientações recebidas, ignorando as crenças, valores e

representações sobre o processo saúde-doença-cuidado dos indivíduos.

Sendo assim, a educação em saúde não pode ser concebida como um modo de levar à

comunidade as compreensões e soluções corretas dos profissionais conhecedores das ciências,

de maneira que as pessoas modifiquem os seus comportamentos considerados prejudiciais à

saúde. É preciso compreender que a falta de higiene e o não seguimento de muitas

recomendações profissionais, por exemplo, ocorre por causas muito mais complexas do que a

falta de conhecimento e/ou a falta de motivação pessoal (VASCONCELOS, 1997), como o

contexto socioeconômico e cultural onde o indivíduo está imerso.

Desenvolver trabalho de grupo na comunidade se constitui numa importante estratégia

para o desenvolvimento da consciência crítica dos indivíduos a respeito do seu meio social e

de suas condições de vida e saúde, o que possibilita o compartilhamento de conhecimentos

que advém das experiências, além de potencializar processos coletivos para organizar e

concretizar ações de mudança (SOUZA et al, 2005b). Desta maneira, a educação em saúde

deve ser realizada de modo que as pessoas possam identificar as causas primordiais de seus

problemas, para poderem encontrar as soluções, a partir do diálogo/troca de saberes entre os

profissionais de saúde e a própria comunidade (VASCONCELOS, 1997).

Contrapondo-se à perspectiva tradicional da educação em saúde abordada pelos quatro

artigos anteriores, observou-se que os demais artigos sobre educação em saúde pautaram-se

no modelo dialógico, evidenciando a preocupação em ampliar a abordagem do trabalho de

grupo e a atuação do enfermeiro nesse âmbito. Foi consenso nos artigos que as práticas

educativas devem ir além de uma perspectiva preventiva, ampliando-se para uma práxis

construtiva pautada no desenvolvimento da cidadania e do diálogo.

Um elemento comum a esses artigos foi a concepção de educação em saúde como uma

estratégia que pode promover o vínculo e a horizontalização das relações entre profissionais e

usuários, além de se constituir numa ferramenta essencial para a troca de saberes entre os

sujeitos, com vistas a romper a hegemonia do conhecimento técnico-científico nessa relação;

estimular a participação popular e aumentar autonomia dos sujeitos para que estes possam

responsabilizar-se, conjuntamente, pela busca de soluções para os problemas individuais e

coletivos e de novos meios para caminhar a vida.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

89

Esses achados corroboram que no cotidiano dos serviços de saúde há uma

sobreposição das abordagens tradicional e dialógica da educação em saúde, provavelmente

por conta da complexidade do modelo emergente e da dificuldade de se colocar em prática os

seus pressupostos inovadores (SOUZA et al, 2005b).

Essas dificuldades podem ser pensadas sob dois argumentos: o primeiro se refere à

hegemonia do paradigma biomédico nas ações de saúde, as quais são desenvolvidas sob a

ótica biologicista, por profissionais desmotivados e em tempo insuficiente; o segundo

argumento refere-se à medicalização da saúde, fato que atribui ao profissional da área a

responsabilidade por atuar sobre o infindável número de doenças e problemas clínicos que

surgem (VASCONCELOS, 1997), o que restringe a concepção de saúde à ausência de

enfermidades.

Outros achados oriundos da análise desses artigos referem-se às evidências da

preocupação com a construção de novas práticas sanitárias, contrárias à abordagem puramente

preventivista e biologicista, convergindo para um modo ampliado de intervir no processo

saúde-doença-cuidado e para a construção de práticas transformadoras e coletivas. Além

disso, dois estudos reconheceram o enfermeiro como um agente capaz de atuar pela melhoria

das condições de vida e saúde da população, cuja profissão oferece subsídios essenciais para a

construção de práticas em saúde pautadas no modelo não tradicional da educação em saúde e

na promoção da saúde.

Em um dos artigos chamou atenção, no relato dos autores, a preocupação dos mesmos

em conhecer as condições de vida e saúde das pessoas pertencentes ao grupo que eles estavam

trabalhando. Isso pode ser percebido no momento em que eles buscaram conhecer as relações

sociais e os recursos disponíveis dos sujeitos, durante as visitas domiciliares, para a

proposição de intervenções contextualizadas com a realidade das pessoas. Além disso, no

transcorrer do relato, os autores reforçaram a necessidade de problematizar a realidade e

explorar melhor os espaços tradicionais de atuação do enfermeiro, como as visitas

domiciliares e as consultas ambulatoriais de enfermagem, que na perspectiva deles, reveste-se

por um caráter assistencial, educativo e dialógico.

Depreende-se com essas considerações que o modelo dialógico da educação em saúde

oferece diversos subsídios para a prática do enfermeiro na promoção da saúde. Entretanto,

dentre os oito artigos que versaram sobre a educação em saúde, apenas um a reconheceu

como uma estratégia a ser utilizada para o alcance da promoção da saúde. Os demais artigos

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

90

apenas citam a promoção da saúde, como se a educação em saúde e a promoção da saúde

fossem sinônimas.

Com isso, para procurar elementos que contribuíssem na compreensão da concepção

de promoção da saúde que estava norteando os estudos, foi necessário analisar o referencial

teórico que embasou os artigos. Nesse processo, observou-se que apenas um artigo utilizou os

conceitos da promoção da saúde, limitando-se a defini-la sem estabelecer um limite entre

ambas. Esse aspecto demonstra que a promoção da saúde ainda é confundida com a prática da

educação em saúde, persistindo uma concepção limitada e atrelada às práticas de saúde

desenvolvidas no interior dos serviços de saúde.

Para elucidar essa discussão, destaca-se a consideração de Candeias (1997, p.210):

Na prática, a educação em saúde constitui apenas uma fração das atividades [...] voltadas para a saúde, prendendo-se especificamente à habilidade de organizar logicamente o componente educativo de programas que se desenvolvem em quatro diferentes ambientes: a escola, o local de trabalho, o ambiente clínico, em seus diferentes níveis de atuação, e a comunidade, compreendida aqui como contendo populações-alvo que não se encontram normalmente nas três outras dimensões. Por constituir apenas uma parte de um conjunto de atividades, é óbvio tratar-se de uma atividade-meio.

Ou seja, a educação em saúde se constitui numa estratégia que contribui para o alcance

da promoção da saúde. Nesse sentido, é importante compreender que as ações concernentes à

promoção da saúde são mais amplas que as ações de educação em saúde, dado que seus

objetivos se afastam das pressões cotidianas do aqui e agora dos programas de saúde pública,

buscando a participação de outros sujeitos cuja atuação se dá fora do espaço tradicional onde

os programas são implementados (CANDEIAS, 1997).

Nesse ínterim, as ações de educação em saúde, em sua perspectiva dialógica,

procuram desencadear mudanças no comportamento individual, enquanto que as ações de

promoção da saúde, embora comumente incluam a educação em saúde em seu campo de ação,

visa provocar mudanças no âmbito organizacional, capazes de beneficiar as condições de vida

e saúde das camadas mais amplas da população (CANDEIAS, 1997).

Essa discussão reporta aos dois outros artigos incluídos no estudo. Um deles reitera a

importância de se articular ações intersetoriais às práticas desenvolvidas por enfermeiros nas

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

91

USF, como forma de responder adequadamente às complexas necessidades de saúde da

população e como uma ferramenta à promoção da saúde. Nesse estudo, ao analisar as

concepções de enfermeiros sobre a intersetorialidade, concluiu-se que não há uma

compreensão correta do que seria esta intersetorialidade, a qual é confundida com

interdisciplinaridade. Esse fato faz com que seja necessário alavancar discussões sobre este

tema.

Um outro artigo, ao analisar as práticas do enfermeiro na atenção primária, concluiu

que as intervenções do enfermeiro nesse âmbito continuam centradas nas consultas

ambulatoriais, com pequena ênfase às atividades coletivas e de promoção da saúde. Nesse

sentido, Nascimento e Nascimento (2005, p.334) destacam que

Ao longo do tempo, a prática da enfermeira tem se constituído na organização do processo de trabalho de enfermagem no modelo clínico de atenção, tendo como objeto de trabalho a cura dos corpos individuais por meio do cuidado, com processo semelhante ao trabalho do médico, pautado no modelo liberal privatista. Este materializa-se em distintas formas de organização do trabalho que vão desde o consultório ao ambulatório, cujo ápice da hierarquização tecnológica é o hospital.

Com base nas evidências pontuadas, depreende-se que a promoção da saúde ainda é

pouco evidente na prática do enfermeiro no campo da atenção primária. Nota-se que a

indissociabilidade, ainda hegemônica, entre a promoção da saúde e a educação em saúde

corrobora a persistência de uma compreensão limitada acerca da ideologia e,

consequentemente, da práxis da promoção da saúde.

Não se pode deixar de destacar que os profissionais de saúde, e dentre eles os

enfermeiros, são desafiados a todo o momento em sua prática cotidiana nos serviços de

atenção primária. Isso acontece, principalmente, devido aos inúmeros problemas da gestão do

sistema, da medicalização da saúde, da hegemonia do paradigma biomédico na sociedade e,

especialmente, pela falta de compreensão por parte dos profissionais de saúde quanto à

amplitude da sua prática.

Destarte, considerando que a promoção da saúde é capaz de responder aos complexos

problemas de saúde inerentes a atenção à saúde da população, é crucial nesse momento que os

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

92

enfermeiros da atenção primária comecem a pensar na promoção da saúde como um campo

de práxis capaz de transformar a realidade social e a própria prática da enfermagem.

É fundamental também avançar no debate sobre essa temática no interior da

enfermagem, pois a partir das evidências aqui pontuadas, foi possível perceber que este é um

tema pouco discutido e explorado pelos membros da profissão. Isso nos leva a considerar que,

se quisermos projetar os cuidados de enfermagem na sociedade, é preciso pensar na promoção

da saúde como um campo aberto de possibilidades para a profissão.

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

93

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo, ao analisar a produção científica nacional sobre a promoção da saúde na

prática do enfermeiro no campo da atenção primária, identificou que a promoção da saúde é

pouco revelada na prática de enfermeiros que atuam no contexto da atenção primária à saúde.

O baixo porcentual (4%) de artigos incluídos no estudo sinaliza que a produção de

conhecimento sobre a promoção da saúde na atenção primária, pela enfermagem brasileira, é

incipiente e pouco explorada.

Com relação às práticas do enfermeiro na promoção da saúde, verificou-se que estas

ainda são confundidas com as práticas preventivas e de educação em saúde. Como

consequência, persiste-se uma indiferenciação e desconhecimento da ideologia e da prática de

promoção da saúde no âmbito da atenção primária. Esta constatação contrapõe-se à essência

dos movimentos da promoção da saúde e da atenção primária.

Isto posto, é importante compreender que a promoção e a prevenção são enfoques

complementares no processo saúde-doença-cuidado, sendo que suas abordagens e objetivos

são distintos. A concepção que norteia as ações de promoção da saúde estrutura-se em torno

da complexidade da saúde e da vida; já a concepção das ações preventivas tem como norte a

doença e os mecanismos para combatê-la. Com relação à educação em saúde, é preciso

compreendê-la como uma estratégia que possibilita o alcance da promoção da saúde.

No que concerne ao movimento da promoção da saúde, depreende-se que suas

proposições são essenciais para responder às inúmeras e complexas necessidades de saúde da

população. Através do seu arcabouço teórico, que em essência propõe a atuação sobre os

macrodeterminantes sociais do processo saúde-doença-cuidado, identificou-se que a

promoção da saúde se constitui, também, num imperativo ético que, em conjunto com as

premissas da atenção primária, possibilita o resgate de valores essenciais para a construção de

novas relações sociais pautadas no respeito, na ética, na solidariedade, e no cuidado.

A atenção primária à saúde revelou-se como uma proposta, e ao mesmo tempo como

uma práxis política e social capaz de estruturar os sistemas nacionais de saúde, conduzir o

processo de trabalho dos profissionais desse sistema e possibilitar o alcance de níveis

aceitáveis de saúde. Sendo assim, devido as suas particularidades, a atenção primária é um

lugar privilegiado para elencar ações de promoção da saúde em sua dimensão abrangente.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

94

A partir da evolução histórica do cuidado nas práticas de saúde e na enfermagem foi

possível identificar que, na contemporaneidade, a prática do enfermeiro focada na doença e na

cura já não encontra sustentação. A enfermagem, enquanto campo profissional que busca

adotar o cuidado como núcleo estruturante, não deve construir o seu fazer pautado na doença

e no tratamento, pois isso contribui para a manutenção de uma prática subsidiária à prática

médica e para a hegemonia do paradigma biomédico nas ações de saúde.

Observou-se que a contradição entre a racionalidade da prática técnico-científica e a

complexidade do cuidado humano produziu, ao longo do tempo, uma crise de legitimidade

das formas de organização do cuidado. Com efeito, o setor saúde enfrenta atualmente um dos

maiores desafios dentre os períodos históricos pontuados, dado que a própria sociedade tem

questionado o significado e o sentido das suas ações.

Isso leva a questionar onde os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros,

querem chegar, dado que a evidência dos limites da racionalidade biomédica, acentuadas pela

hiper-tecnicidade e impessoalidade do cuidado em saúde, já não são tão recentes. Os

resultados desta crise, para além dos seus efeitos negativos, têm produzido diversos

movimentos contra-hegemônicos que construíram/constroem novos paradigmas sanitários,

com destaque para a atenção primária e a promoção da saúde.

Sendo assim, promover a saúde no âmbito da atenção primária possibilita à

enfermagem um campo aberto de oportunidades, inclusive para construir uma prática

transformadora e valorizada socialmente. Infelizmente ainda impera nesse contexto uma

prática vinculada ao modelo normativo e preventivista, o que contribui para o afastamento do

enfermeiro dos pressupostos da promoção da saúde e da atenção primária.

Em contrapartida, mesmo com as inúmeras dificuldades inerentes à gestão do sistema,

à atenção a saúde da população e à conformação da organização social em que se vive,

existem profissionais preocupados em fazer diferente, isto é, em transformar a sua prática

numa práxis social e política, de modo a atuar na e com a sociedade. Esse fato demonstra que,

apesar das mudanças ainda incipientes em face da complexidade dos problemas da sociedade,

é necessário acreditar e lutar por um mundo melhor e por um cuidado em saúde que considere

a pessoa em suas dimensões sociais.

Para a enfermagem, a promoção da saúde constitui-se num desafio a ser enfrentando

como forma de resgatar o valor dos cuidados de enfermagem e a beleza da arte do cuidar. Se

nós, enfermeiros e enfermeiras, quisermos projetar a Enfermagem na sociedade, de modo a

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

95

obter o devido reconhecimento social das nossas ações, a promoção da saúde se constitui num

subsídio fundamental para sairmos da postura de neutralidade que ainda reveste os cuidados

de enfermagem, rumo a um projeto de sociedade que contemple e valorize os cuidados de

enfermagem e a profissão engajada nas transformações da sociedade. O desafio está posto!

Não se pretende com este estudo atingir objetivos conclusivos. A discussão aqui

realizada e os achados oriundos da aproximação entre a promoção da saúde e a prática do

enfermeiro na atenção primária fornecem subsídios para estudos posteriores sobre as diversas

nuances dessa temática. Reitera-se como necessário construir novas investigações sobre a

temática, com vistas a fomentar essa discussão e produzir mudanças ideológicas e práticas no

interior do setor saúde e na Enfermagem.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

96

REFÊRENCIAS

AKERMAN, M.; MENDES, R.; BOGUS, C.M. É possível avaliar um imperativo ético? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 605-615, 2004.

ALVES, V.S. Um modelo de educação em saúde para o Programa de Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, São Paulo, v. 9, n. 16, p. 39-52, 2005.

ANDRADE, L.O.M; BARRETO, I.C.H.C; BEZERRA, R.C. Atenção Primária à Saúde e Estratégia de Saúde da Família. In: CAMPOS, G.W.S.; MINAYO, M.C.S.; AKERMAN, M.; DRUMOND JR, M.; CARVALHO, Y.M.C (org.). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009, p.783-836.

AROUCA, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Ed. Unesp; Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2003.

ASSIS, M. M. A; ASSIS, A.A; CERQUEIRA, A. M. ATENÇÃO PRIMÁRIA E O DIREITO À SAÙDE: algumas reflexões. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 32, n. 2, p.297-303, 2008.

AYRES, J.R.C.M. Prevenção de agravos, promoção da saúde e redução de vunerabilidade. In: MARTINS, M.A.; CARRILHO, F.J.; ALVES, V.A.F.; CASTILHO, CERRI, GG; CHAO LUNG WEN, CL (org.). Clínica Médica. v.1. São Paulo, Manole, 2009a, p. 437-455.

AYRES, J.R.C.M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC: UERJ/IMS: ABRASCO, 2009b.

BAPTISTA, T. W. F.; FAUSTO, M.C.R.; CUNHA, M.S. Análise da produção bibliográfica sobre atenção primária à saúde no Brasil em quatro periódicos selecionados. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, 1007-1028, 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Portaria GM n. 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, 2006a. Disponível em: http://dtr2004.saude.gov.br/dab/docs/legislacao/portaria_648_28_03_2006.pdf . Acesso em: 01/12/2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Portaria GM n. 687, de 30 de março de 2006. Aprova a Política de Promoção da Saúde. Brasília, 2006b. Disponível em:

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

97

http://dtr2004.saude.gov.br/dab/docs/legislacao/portaria_687_30_03_06.pdf. Acesso em: 01/12/2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção Básica e a Saúde da Família. Brasília, DF. Disponível em: http://dtr2004.saude.gov.br/dab/index.php. Acessado em: 05 dez. 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde. SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios. Brasília, 2009b (Série F. Comunicação e Educação em Saúde).

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 14ª edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 2008.

BUSS, P.M. Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p.163-177, 2000.

BUSS, P.M. Uma introdução ao conceito de promoção da saúde. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C.M. (org). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009, p.15-38.

CAMPOS, G.W.S. Reforma da Secretaria de Estado de São Paulo durante os anos 70 e o Sistema Único de Saúde (SUS). Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 20-38, 2006.

CANDEIAS, N.M.F. Conceitos de educação e de promoção em saúde: mudanças individuais e mudanças organizacionais. Revista de Saúde Pública, v.31, n.2, p.209-13, 1997.

CARVALHO, S.R. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2007.

CARVALHO, A.I. Princípios e prática da promoção da saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p.4-5, 2008.

COELHO, E.A.C.; FONSECA, R.M.G.S. Pensando o cuidado na relação dialética entre sujeitos sociais. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 58, n. 2, p.214-7, 2005.

COLLIÈRE, M-F. Promover a vida. 3ª edição. Lisboa (PT): Lidel e Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, 1999.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

98

COLLIÈRE, M-F. Cuidar... A primeira arte da vida. 2ª edição. Loures (PT), Lusociência, 2003.

CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE – CONASS. Atenção primária e promoção da saúde. Brasília: Coleção progestores- para entender a gestão do SUS, v.8, 2007.

CUETO, M. The origins of primary health care and selective primary health care. American Journal of Public Health, Washington, v.94, n.11, 2004. Disponível em: < http://www.ncbi . nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1448553/pdf/0941864.pdf >Acesso: 01/07/2010.

CZERESNIA, D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, D; FREITAS, C.M. (org.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. Cap. 2, p. 39-54.

ERMEL, R.C.; FRACOLLI, L.A. O trabalho das enfermeiras no Programa de Saúde da Família em Marília/SP. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 533-539, 2006.

ESCOREL, S.; GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M.H.M.; SENNA, M.C.M. O Programa de Saúde da Família e a construção de um novo modelo para a atenção básica no Brasil. Revista Pan-americana de Salud Publica, v. 21, n. 2, p. 164-176, 2007.

FAUSTO, M.C.R. Dos programas de medicina comunitária ao Sistema Único de Saúde: uma análise histórica da atenção primária na política de saúde brasileira. 2005. 261p. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

FAUSTO, M.C.R.; MATTA, G.C. Atenção Primária à Saúde: histórico e perspectivas. In: MOROSINI, M.V.G.C.; CORBO, A.D'Andrea. (Organizadoras). Modelos de Atenção e a Saúde da Família. Rio de Janeiro: ESPJV/FIOCRUZ; 2007, v. 4, p. 43-67.

FERNANDEZ, J.C.A; ANDRADE, E.A; PELICIONI, M.C.F; PEREIRA, I.M.T.B. Promoção da Saúde: elemento instituinte? Saúde e Sociedade, São Paulo, v.17, n. 1, p.153-164, 2008.

FLEURY, S. Reforma sanitária brasileira: dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2009, v. 14, n. 3, p.743-752. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n3/10.pdf . Acesso em: 01/12/2009.

GEOVANINI, T. O desenvolvimento histórico das práticas de saúde. In: GEOVANINI, T; MOREIRA, A; SHOELLER, S.D; MACHADO, W.C.A. História da Enfermagem: versões e interpretações. 2ª edição. Rio de Janeiro: Revinter, 2002. Cap 1, p.5-28.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

99

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ªed. São Paulo: Atlas, 2006a.

GIL, C.R.R. Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades do contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.22, n.6, p.1171-81, 2006b.

GIOVANELLA, L; MENDONÇA, M.H.M. Atenção Primária à saúde. In: GIOVANELLA, L; ESCOREL, S; LOBATO, L.V.C et al.(organizadores). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ. Cap. 16, p.575-626.

GIOVANELLA, L. Atenção Primária à Saúde seletiva ou abrangente? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.7, 2008, suplemento 1.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Parte 1. Petrópolis (RJ): Vozes, 1995.

HEIDMANN, I.T.S.B et al. Promoção à saúde: trajetória histórica de suas concepções. Texto e Contexto Enfermagem, Florianópolis, v.15, n.2, p. 352-358, 2006.

HEIMANN, L.S; MENDONÇA, M.H. A trajetória da Atenção Básica em Saúde e do Programa de Saúde da Família no SUS: uma busca de identidade. In: LIMA, N.T.; GERSCHMANN, S.(org.). Saúde e Democracia: História e Perspectiva do SUS. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005, p.481-502.

KANTORSKI, L.P. As transformações no mundo do trabalho e a questão da saúde -algumas reflexões preliminares. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 5, n. 2, p. 5-15, 1997.

L´ABBATE, S. Educação em Saúde: uma Nova Abordagem. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.10, n.4, p. 481-490, 1994.

LEAVELL, H.R.; CLARK, E.G. Medicina Preventiva. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.

LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A.M.C. Promoção de saúde: a negação da negação. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.

LIMA, M.J. O que é enfermagem. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2005.

LIMA, M.S; SOARES, B.G.O; BACALTCHUK, J. Psiquiatria baseada em evidências. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 22, n.3, p.142-6, 2000.

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

100

LIRA, S.V.G.; BEZERRA, M.P.B.; FROTA, M.A.; VALDÉS, M.T.M.; VIEIRA, L.J.E.S.; SILVA, R. M. Produção científica sobre promoção da saúde nos cursos de pós-graduação brasileiros. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.18, n.3, p. 437-445, 2009.

LOPES, A.L.M; FRACOLLI, L. A. Revisão sistemática de literatura e metassíntese qualitativa: considerações sobre sua aplicação na pesquisa em enfermagem. Texto e Contexto Enfermagem, Florianópolis, v.17, n.4, p.771-8, 2008.

MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

MENDES, E.V. A atenção primária à saúde no SUS. Fortaleza: Escola de Saúde Pública do Ceará, 2002.

MENDES, E.V. Uma agenda para a saúde. São Paulo: Hucitec, 1996.

MELO, C.M.M. Divisão social do trabalho e Enfermagem. São Paulo: Cortez, 1986.

NARVAI, P.C. Integralidade na atenção básica à saúde. Integralidade? Atenção? Básica? In: GARCIA, D.V. (org). Novos rumos da saúde bucal: os caminhos da integralidade. Rio de Janeiro: ABORJ/ANS/UNESCO; 2005. p.28-42.

NASCIMENTO, M.S; NASCIMENTO, M.A.A. Prática da enfermeira no Programa de Saúde da Família: a interface da vigilância da saúde versus as ações programáticas em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.10, n.2, p.333-345, 2005.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE- OMS. Carta de Ottawa. Disponível em: http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Alma-Ata.pdf . Acesso: 05 de dezembro de 2009.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE- OMS. Declaração de Alma-Ata. Disponível em: http://www.opas.org.br/promocao/uploadArq/Alma-Ata.pdf . Acesso: 05 de dezembro de 2009.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Renovação da Atenção Primária em Saúde nas Américas: documento de posicionamento da Organização Pan–Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde. Washington, 2008.

PAIM, J.S. Modelos de Atenção à Saúde no Brasil. In: GIOVANELLA, L; ESCOREL, S; LOBATO, L.V.C et al.(organizadores). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ. Cap. 15, p.547-574.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

101

RICHARDSON, R.J.; PERES, J.A.S.; WANDERLEY, J.C.V; CORREIA, L.M.; PERES, M.H.M. Pesquisa Social:métodos e técnicas. 3a. Ed. São Paulo: Atlas, 1999.

ROCHA, S.M.M.; ALMEIDA, M.C.P. O processo de trabalho da enfermagem em saúde coletiva e a interdisciplinaridade. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 8, n. 6, p. 96-101, 2000.

ROUQUAYROL, M.Z.; GOLDBAUM, M. Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças. In: ROUQUAYROL, M.Z.; ALMEIDA FILHO, N. (organizadores). Epidemiologia e Saúde. Rio de Janeiro: Medsi, 2003. P. 17-36.

SAMPAIO, R.F; MANCINI, M.C. Estudos de revisão sistemática: um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Rev. bras. Fisioter, 2007, vol. 11, nº 1, p. 83-89.

SANDELOWSKI, M; BARROSO, J. Focus on research methods: toward a metasynthesis of qualitative findings on motherwood in HIV-positive women. Res. Nurs. Health, v.26, n.2, p.153-70, 2003.

SCLIAR, M. História do conceito de saúde. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p.29-41, 2007.

SÍCOLI, J.L; NASCIMENTO, P.R. Promoção de saúde: concepções, princípios e Operacionalização. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, São Paulo, v.7, n. 12, p.101-22, 2003.

SILVA, K.L.; SENA, R.R.; GRILLO, M.J.C.; HORTA, N.C.; PRADO, P.M.C. Educação em enfermagem e os desafios para a promoção de saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 62, n. 1, p. 86-91, 2009.

SOUZA, M.L.; SARTOR, V.V.B.; PADILHA, M.I.C.S; PRADO, M.L. O cuidado em enfermagem-uma aproximação teórica. Texto e Contexto Enfermagem, Florianópolis, v.14, n.2, p.266-70, 2005a.

SOUZA, A.C.; COLOMÉ, I.C.S; COSTA, L.E.D.; OLIVEIRA, D.L.L.C. A EDUCAÇÃO EM SAÚDE COM GRUPOS NA COMUNIDADE: uma estratégia facilitadora da promoção da saúde. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v.26, n. 2, p.147-53, 2005b.

SOUZA, M.F.; HAMANN, E.M. Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.14, supl.1, p. 1325-1335, 2009.

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE … · influência na minha formação política e profissional, ... consonância com a luta pela ... espaço hospitalar. O segundo ilustra

102

STARFIELD, B. Atenção Primária: Equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologias. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde, 2002.

SUTHERLAND, R.W; FULTON, M.J. Health promotion. In: SUTHERLAND, R.W; FULTON, M.J. Health Care in Canada. Ottawa: CPHA, 1992, p.161-181.

TESTA, M. Qual ciência? In: TESTA, M. Pensar em saúde. Tradução: Walkiria Maria Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 30-9.

TESTA, M. Atenção primária (ou primitiva?) de saúde. In: TESTA, M. Pensar em Saúde. Tradução: Walkiria Maria Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. p. 160-173.

VASCONCELOS, E.M. Educação popular nos serviços de saúde. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.

VUORI, H. Health for all, primary health care and general practitioners. Journal of the Royal College of General Practitioners, London, n. 36, p. 398-402, 1986.

WESTPHAL, M.F. Promoção da saúde e prevenção de doenças. In: CAMPOS, G.W.S.; MINAYO, M.C.S.; AKERMAN, M.; DRUMOND JR, M.; CARVALHO, Y.M.C (org). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ; 2009. p.635-667.