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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
ANDRÉ FIGUEIREDO BRANDÃO
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA ENQUANTO UMA TOTALIDADE
ABERTA
SALVADOR
2018
ANDRÉ FIGUEIREDO BRANDÃO
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA ENQUANTO UMA TOTALIDADE
ABERTA
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Filosofia da Universidade Federal da Bahia como requisito
parcial para a obtenção do grau de Licenciado em
Filosofia.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Vinicius dos Santos
SALVADOR
2018
ANDRÉ FIGUEIREDO BRANDÃO
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA ENQUANTO UMA TOTALIDADE
ABERTA
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Filosofia da Universidade Federal da Bahia como requisito
parcial para a obtenção do grau de Licenciado em
Filosofia.
Aprovado em ______ de ______________ de ano.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Prof. Dr.Vinícius dos Santos (UFBA)
________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Jorge da Hora Pereira (UFBA)
________________________________________
Prof. Dr. Carlos Zacarias Figueirôa de Sena Júnior (UFBA)
AGRADECIMENTOS
A minha família. Todos vocês tiveram, cada um à sua maneira, um papel
fundamental nestes 22 anos de convivência, pelo carinho, acolhimento e incentivo. Gostaria
de agradecer especialmente a minha irmã, Renata, pelo exemplo e orientação na oratória,
redação e, principalmente, para a formação da resiliência; a meu pai, Jecé, por sua capacidade
ímpar de inspirar e promover a tranquilidade, além da decisiva indicação da obra de Epicuro,
sem a qual eu jamais encontraria a filosofia; a minha mãe, Kátia, pelas agradáveis conversas
sobre a mente, a linguagem e a antropologia, além de ter sido aquela que me deu forças para
avançar em tantos momentos críticos da minha vida.
A Vinicius, por ter sido um orientador, professor e companheiro de discussões
filosóficas capaz de aliar leveza e rigor, capacidade de ouvir e firmeza nas ponderações.
Agradeço profundamente pela condução humana, compreensiva e qualificada da orientação,
que se destaca frente à tendência maquinal e produtivista da academia.
A Leonardo e a Zacarias, pela gentileza em comporem a banca examinadora.
A Nádia, aquela que me fez acreditar que eu podia me dedicar à filosofia.
Agradeço por ter sido uma professora com tanta criatividade e talento para provocar, além de
ser uma amiga tão carinhosa e admirável.
Ao nosso corpo docente, por sempre me ajudar a romper com concepções
artesanais e desatentas do fazer filosófico; a Lorena, por ter solucionado com paciência e
habilidade todas as minhas confusões institucionais; aos colegas de graduação, pela dialógica
experiência do aprendizado em conjunto, tão própria à filosofia; a todas as pessoas que, direta
ou indiretamente, garantem por via do seu trabalho as condições materiais do nosso curso.
A todas aquelas poucas e belas pessoas as quais eu tenho a honra de chamar de
amigos, por terem me ajudado a não ser engolido pelas atividades acadêmicas, sobretudo às
amizades que fiz no Partido Comunista Brasileiro, onde pude encontrar companheiros com
quem consegui refletir coletivamente.
A Bárbara, com quem vivo a maior aventura da minha existência, a de
compartilhar as próprias vidas. Obrigado por todo o carinho, apoio, brincadeiras,
aprendizados, reflexões e o colorido que tanto me encanta.
Dedicado à Gercy Brandão (1922-2017) e Sylvia Matter (1939-2018),
duas jovens que me ensinaram a importância de
deixar-se encantar pela vida.
RESUMO
No mundo de hoje, em que o modelo político-econômico liberal impera e as experiências do
socialismo real ainda inspiram frustrações, a concepção materialista da história é amplamente
posta de lado nos debates intelectuais, tendo como um dos carros chefes desta exclusão a ideia
de que tal perspectiva seria terminantemente determinista, proporcionando uma visão fechada
da dinâmica social. A presente monografia tem como objetivo fundamental argumentar contra
esta perspectiva detratora do materialismo histórico, a partir de uma leitura atenta d’A
ideologia Alemã e de outras obras marxianas e engelsianas, fazendo os devidos cotejamentos
com valorosas contribuições de alguns teóricos marxistas, como Leandro Konder, István
Mészáros e György Lukács. Por tal via, foi analisada a reorientação teórica materialista que
Marx e Engels realizaram a partir de um balanço crítico de seus contemporâneos. O processo
histórico, cuja gênese é identificada na dinâmica de autoprodução humana pela práxis social
do trabalho, sofre de um profundo processo de autonomização, quando a atividade laboral
torna-se alienada de quem a executa, num movimento que é encarado como um determinante
contingente da história, fundado ao longo do tempo e que igualmente pode ser materialmente
superado no decurso da trajetória humana. Com base nestas considerações, o complexo de
determinações da visão histórica consolidada por Marx e Engels é esmiuçado, visando atestar
se tal constelação se configura como dialética ou mecânica. Assim, é proposta uma
interpretação da concepção materialista da história como uma totalidade aberta, em que o
curso da vida humana não recai em análises economicistas, fatalistas ou negadoras do sujeito
histórico.
Palavras-chave: Marxismo; História; Materialismo.
ABSTRACT
On today's world, where the liberal political and economic model prevails and the experiences
of real socialism still inspire frustrations, the materialist conception of history is largely bar
out in intellectual debates, with one of the main pleas of this exclusion being the idea that the
Marxist perspective would be strictly deterministic, providing a closed view of social
dynamics. The present monography aims to argue against this detractive perspective of
historical materialism, from an attentive reading of The german ideology and other Marxian
and Engelsian works, making the proper comparisons with valuable contributions by some
Marxist theorists such as Leandro Konder, István Mészáros and György Lukács. By this way,
the theoretical materialist reorientation that Marx and Engels accomplished from a critical
balance of their contemporaries was analyzed. The historical process, whose genesis is
identified in the dynamics of human self-production by the social praxis of labor, suffers from
a profound process of autonomization and when labor activity becomes alienated from those
who execute it, in a movement that is seen as a contingent determinant of history, founded
over time and which can likewise be materially overcome in the course of human trajectory.
Based on these considerations, the complex of determinations of the historical vision
consolidated by Marx and Engels is scrutinized, aiming to attest if such constellation is
configured as dialectic or mechanical. Therefore, an interpretation of the materialist
conception of history is proposed as an open totality, in which the course of human life does
not lie in economism, fatalism or denial of the historical subject.
Key-words: Marxism; History; Materialism.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................9
2 O NOVO MATERIALISMO E A PRÁTICA HISTÓRICA HUMANA........................12
2.1 As bases intelectuais contemporâneas a Marx e Engels................................................12
2.2 A reorientação teórica materialista e a investigação sobre o ser humano...................14
2.3 Práxis humana e determinação histórica........................................................................20
3 A ALIENAÇÃO E O CURSO DA HISTÓRIA...............................................................23
3.1 O contexto do problema da alienação na concepção materialista da história.............23
3.2 As bases originárias do descontrole histórico.................................................................24
3.3 A rota autodestrutiva da alienação no capitalismo........................................................26
3.4 Desalienação e determinismo...........................................................................................29
4 A DETERMINAÇÃO NA CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA.............31
4.1 Determinação e determinismo.........................................................................................31
4.2 O lugar do fator econômico no complexo marxista de determinações históricas.......32
4.3 Determinação histórica e teleologismo............................................................................36
4.4 O indivíduo como um vetor da história..........................................................................39
5. CONCLUSÃO.................................................................................................................42
REFERÊNCIAS...............................................................................................................44
9
1 INTRODUÇÃO
Num mundo ainda marcado pelo triunfalismo da democracia liberal e da
economia de mercado, as linhas de pensamento defensoras dos fins da história, das
metanarrativas e da verdade permanecem com grande destaque no debate intelectual
contemporâneo. Vivemos o reinado de um tipo específico de ceticismo, que se contrapõe a
qualquer processo de apreensão do mundo em sua totalidade1.
A primeira vista, tais perspectivas podem ser postas em questão compreendendo
que elas caem no mesmo erro que Epiménides cai em seu famoso paradoxo, ao ser um
cretense afirmando que todos os cretenses são mentirosos. Contudo, as limitações destas
linhas filosóficas promovem consequências mais graves do que a mera autocontradição
performativa.
Ao negar a possibilidade de uma compreensão global dos processos reais vividos
pelo gênero humano2, as filosofias dominantes na contemporaneidade impedem que os
sujeitos do nosso tempo histórico desenvolvam uma ação teoricamente orientada no mundo -
impedindo a formação de uma práxis3. Deste modo, assistimos o predomínio de condutas
completamente difusas como respostas às contradições sociais que imperam nos dias de hoje.
O resultado de tais circunstâncias pode ser sintetizado pela famosa frase “Deus está morto,
Marx está morto, e eu mesmo não estou me sentindo muito bem’’4.
Talvez, o grande alvo destas linhas teóricas - mais do que o modernismo e o
iluminismo em geral - seja o marxismo, como argumenta John Bellamy Foster5. A partir de
certas frustrações suscitadas pelas experiências socialistas, além do já citado triunfo liberal, a
concepção materialista da história6 foi arduamente criticada, apontada como uma alternativa
teórica a ser jogada na lata de lixo da humanidade.
1 Cf. FOSTER, J. Em defesa da história. In: FOSTER, J; WOOD, E (Orgs.). Em defesa da história: Marxismo e
pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. P. 196-206, p. 197. 2 A utilização desta expressão, assim como a ideia de “ser genérico’’ ou de “vida genérica’’, pontos nada
pacíficos no terreno das discussões teóricas marxistas, deve-se a proximidade com as perspectivas dos filósofos
Gyorgy Lukács e István Mészáros. Sobre a utilização desta terminologia nas obras ulteriores de Marx, destaca-se
a passagem do primeiro volume d’O capital em que Marx descreve um indivíduo social como “forma de
manifestação do gênero humano’’ (MARX, 1988a, p. 57). 3Cf. FOSTER, op. cit., 203. 4 Frase geralmente atribuída ao escritor francês Michel Le Bris. 5 Cf. FOSTER, op. cit., 198. 6 Neste empreendimento teórico, adotaremos uma perspectiva que compreende que há uma unidade na
concepção materialista da história durante o percurso que vai das atividades teóricas iniciais de Marx e Engels
até as suas obras ulteriores, admitindo que existe neste processo importantes rupturas, mas também profundas
conservações. Para tanto, tomamos como referência a argumentação de Mészáros em sua obra Teoria da
alienação em Marx.
10
Uma das acusações que mais pesaram sobre o marxismo nestes tempos foi a de
que tal teoria seria profundamente determinista. O processo histórico concebido pelos
marxistas, segundo tal interpretação, se encaminharia fatalisticamente para um determinado
sentido, sem espaço para a ação individual - e seria discutível se de fato haveria algo que
possa ser chamado de indivíduo. As ações humanas através dos tempos estariam reduzidas ao
reflexo superestrutural da infraestrutura econômica existente nas sociedades.
A presente monografia tem como objetivo argumentar em favor de uma
interpretação da concepção materialista da história que não a encarasse enquanto uma
perspectiva mecanicista, fechada – que, dentro de tais características, não teria validade
enquanto instrumento intelectual de compreensão da realidade. Por conta das limitações
próprias de um Trabalho de Conclusão de Curso, não há aqui a intenção de esgotar estas
questões, o que demandaria um esforço muito mais extenso, trabalhando uma constelação
muito maior de elementos presentes em tais debates. Existe, contudo, a possibilidade de
propor chaves interpretativas em prol de outra visão acerca da visão histórica consolidada pela
dupla alemã.
Para realizar a tarefa teórica em questão, foi promovido um estudo de diversos
escritos de Marx e Engels, tendo como obra central da pesquisa A ideologia alemã. Estas
leituras foram cotejadas pontualmente com obras de intérpretes e teóricos marxistas - como
Gyorgy Lukács e Leandro Konder - para esclarecer certas dificuldades dos textos marxianos e
engelsianos, bem como para escapar de certa leitura talmúdica das obras da dupla alemã, que
codifica e esquematiza esta linha de pensamento.
Os entendimentos alcançados pela pesquisa foram divididos em três capítulos.
Inicialmente, será visto como Marx e Engels consolidam uma concepção
materialista acerca da vida social, rompendo com os elementos metafísicos e a-históricos das
teorias presentes no debate intelectual da época na Alemanha. Neste processo, é atribuída
centralidade às atividades e condições concretas de produção e da reprodução da vida humana
no processo histórico. O trabalho é entendido aqui como elemento-chave das ações dos
indivíduos sociais através dos tempos, não só como elemento que possibilita a construção do
próprio fluxo histórico, mas também como elemento de determinação do mesmo.
Em seguida, será abordado o papel desempenhado pela categoria da alienação no
curso da história. Aqui, esta mediação de segunda ordem da vida humana - assim como as
mediações subsequentes a ela - é compreendida como um determinante fundamental do
processo histórico, na medida em que é produtora do fenômeno da aparente autonomização
11
dos produtos dos seres humanos frente aos seus criadores, além do seu papel na cisão da
sociedade em classes antagônicas. Este conjunto de circunstâncias, assim como a própria
alienação, será tratado como determinantes contingentes, que podem ser superados socio-
historicamente pela desalienação do trabalho.
No terceiro capítulo, serão analisadas de maneira mais detida as polêmicas
entorno do estatuto da determinação na concepção materialista da história. A partir das
questões trabalhadas nos capítulos precedentes, será possível discutir sobre até que ponto são
cabíveis os rótulos de economicismo, teleologismo e de negação do papel do indivíduo que
recaem sobre o materialismo histórico.
Diante da exposição do trabalho, a concepção materialista da história poderá ser
proposta como uma “totalidade aberta’’7, ou seja, como uma perspectiva histórica que
compreende o movimento da realidade social em toda a sua dinamicidade, captando as suas
múltiplas determinações, sem deixar espaço para economicismos, mecanicismos ou a negação
do sujeito histórico.
7 Cf. KONDER, L. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 51.
12
2 O NOVO MATERIALISMO E A PRÁXIS HISTÓRICA HUMANA
2.1 As bases intelectuais contemporâneas a Marx e Engels
Desde o momento em que começaram a intervir nos debates teóricos alemães, no
início da década de 40 do Século XIX, Marx e Engels tiveram o mérito de saber aliar as
grandes expressões teóricas do seu tempo histórico no processo de gênese de sua própria
perspectiva, através de um balanço crítico. A dupla tinha como objetivo a ruptura com os
pontos retrógrados e limitados das teorias analisadas, ao mesmo tempo em que buscaram
apropriar-se de maneira criativa dos elementos que se demonstrassem vinculados ao
movimento efetivo do real. Um processo intelectual como este não pode ser confundido com
uma síntese teórica eclética, mas sim como a fundação de uma nova filosofia, ao reelaborar as
principais conquistas das teorias até então dispostas8.
Naquela época, as grandes discussões alemãs eram fortemente influenciadas pela
filosofia de Hegel. Quando o pensador idealista morreu, uma disputa foi instalada no seio da
intelectualidade germânica pelo legado teórico deixado por ele. Os jovens hegelianos - grupo
que proporcionou diversas reflexões e polêmicas para os primeiros marxistas - surgem nesse
momento, apropriando-se da obra hegeliana fundamentalmente para realizar a sua crítica à
religião.
Hegel, coerente com sua ontologia imanentista, compreende que deus e a religião
não estão separados do processo material e da sucessividade dos atos humanos, mas sim o seu
inverso: o ser divino estaria contido no próprio movimento do real, e os desdobramentos da
humanidade nada mais seriam do que um longo caminho de realização do espírito absoluto9.
A partir desta conclusão do pensador idealista, os jovens hegelianos avançam para outra visão
das concepções religiosas, humanizando suas raízes.
Ao inserir a evolução do ser divino no andamento da história, a filosofia hegeliana
possibilitou que os jovens hegelianos propusessem que a própria ideia de Deus seria uma
criação humana, desenvolvida pelos indivíduos como uma abstração das suas vidas. Assim, o
ser divino se dissolveria na humanidade, numa manobra teórica que Marx e Engels trataram
como o “processo de putrefação do espírito absoluto’’10.
8 Cf. LUKÁCS, G. O jovem Marx - sua evolução filosófica de 1840 a 1844. O jovem Marx e outros escritos de
filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007b, p. 150. 9 Cf. KONDER, L. Os marxistas e a arte. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p.29. 10 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.19.
13
No interior do hegelianismo de esquerda, um teórico se destacava frente aos
demais nas análises de Marx e Engels: Ludwig Feuerbach. Feuerbach foi descrito pela dupla
alemã como “o único que tem uma relação crítica, séria, com a dialética de Hegel’’11, bem
como “o único que pelo menos fez algum progresso’’12 entre a esquerda hegeliana. Para este
teórico, o fenômeno religioso não poderia mais ser encarado pela teologia. Tratava-se agora
de entender a religião por uma perspectiva antropológica:
A essência divina não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a
essência do homem abstraída das limitações do homem individual, isto é,
real, corporal, objetivada, contemplada e adorada como uma outra essência
própria, diversa da dele – por isso todas as qualidades da essência divina são
qualidades da essência humana.13
Ao apresentar esta crítica à religião, Feuerbach dá um gigantesco passo em
direção a superação do idealismo hegeliano, ao retirar a religião do reino dos céus e tratá-lo a
partir da sua dimensão humana. Foi esta visão que inspirou Marx a afirmar que a raiz do
homem era o próprio homem14. Contudo, para a dupla alemã, a teoria feuerbachiana possuía
um claro limite. O filósofo neohegeliano vê a humanidade como uma abstração, um elemento
a-histórico que unifica o conjunto de seres humanos - apartados da sua dimensão prática
concreta- em uma só ideia especulativa de um indivíduo isolado. Em outras palavras,
Feuerbach “diz o Homem em vez de os homens históricos reais’’15.
Esta naturalização de uma “essência humana’’ – a saber, uma síntese da sociedade
burguesa alemã16 - perpetrada pela filosofia feuerbachiana gera um materialismo
contemplativo, que não reconhece nos objetos ao seu redor, sociais ou naturais, como objetos
da ação humana, sendo vistos meramente como objetos sensíveis. A ação prática humana é
subvalorizada em Feuerbach, que a vê como manifestação suja e passiva da vida, apenas
reconhecendo o exercício teorético como a faceta ativa do Homem. Neste sentido, há um
retrocesso frente à obra de Hegel, que, ainda que sobre bases idealistas, reconhece o ser
humano como um ser histórico e que se autoproduz no transcurso do tempo, justamente pela
11 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São
Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 363. 12 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. op. cit., p.20. 13 FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1997, p.57. 14 Cf. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, p.157. 15 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. op. cit., p.36. 16 Cf. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 121.
14
sua atividade – embora a ideia hegeliana de autoengendramento humano também recaia numa
perspectiva que reduz este processo a mera ação teórica17.
2.2 A reorientação teórica materialista e a investigação sobre o ser humano
Para Marx e Engels, o esforço teórico que objetiva investigar a vida social não
pode conceber o movimento de tal complexo como uma dinâmica subordinada ao
autodesenvolvimento de um conceito metafísico. A herança das categorias puras de Hegel se
faz presente na tese estático-naturalista do Homem apresentada por Feuerbach, ainda que se
expresse com feições mais “mundanas’’, como também ocorre nas ideias centrais de jovens
hegelianos como Stirner, Bauer e Strauss18. O fazer teórico ganha uma perniciosa autonomia
frente ao movimento efetivo de seu objeto de estudo, ao propor conceitos aprirorísticos que
determinariam todo o seu desdobramento. Como a dupla materialista pontua, “não ocorreu a
nenhum desses filósofos procurar a conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a
conexão da sua crítica com o seu próprio ambiente material’’19.
Na contramão de tais tendências especulativas, os pensadores comunistas
entendiam que as premissas a serem consideradas nos estudos não podiam mais ser
arbitrárias, dogmáticas, mas sim premissas reais, concebidas a partir da investigação do
movimento efetivo do seu objeto20. Esta nova perspectiva leva o materialismo até as suas
últimas consequências, justamente porque a desconsideração das categorias metafísicas está
fundada na compreensão de que um ser não-objetivo é um não-ser, uma inexistência21. Assim,
as categorias devem exprimir formas de ser, determinações de existência, resultado – e não
ponto de partida – da atividade teorética, uma vez que se torna tarefa da teoria apropriar-se do
concreto, reproduzindo-o mentalmente, captando as suas múltiplas determinações, a
diversidade de fatores que totalizam a unidade existente do objeto de estudo22.
A partir de tal reorientação teórica, a humanidade passa a ser investigada
concretamente, a partir de indivíduos reais, nas suas atividades e condições materiais de vida,
tanto físicas e corpóreas, quanto histórico-práticas. Neste sentido, há a compreensão de que a
diferenciação entre os seres humanos e os outros animais também perpassa pela constatação
17 Cf. Idem. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São
Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 369-371. 18Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.21. 19 Idem. Ibidem, 23. 20 Cf Idem. Ibidem, 23-24. 21 Cf MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 376. 22 Cf Idem. Grundrisse. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 53-54.
15
de uma organização corpórea ímpar do gênero humano, fruto de um “determinado grau de
desenvolvimento do seu processo orgânico de reprodução’’23. Contudo, a análise promovida
por Marx e Engels incidirá centralmente no salto qualitativo que se desdobrará a partir de tal
pressuposto, em que há a passagem do ser meramente natural para uma nova categoria de ser,
o ser social24. Assim, a dupla alemã estabelece:
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião –
por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais
assim que começam a produzir os seus meios de subsistência, passo esse que
é requerido pela sua organização corpórea. Ao produzirem os seus meios de
subsistência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida
material.25
De fato, o gênero humano pode ser colocado em lugar de destaque frente aos
outros animais pelas suas complexas formas de exteriorização da vida, tais quais o fazer
artístico, religioso, científico, filosófico, etc. Contudo, o elemento fundamental que constitui a
especificidade humana – fator que lança as bases para as diferenciações supracitadas – é o
modo como os seres humanos agem para garantir as suas condições de vida.
A existência dos animais não-humanos “permanece totalmente submetida ao
círculo das necessidades biológicas de sua autopreservação e reprodução do gênero’’, como
diria Lukács26. Incapazes de se distinguirem da sua própria atividade vital, os seres
rigorosamente orgânicos buscam a sua subsistência num processo de adaptação passiva ao seu
entorno, em que tal passividade é marcada não só pela subordinação às condições ambientais,
mas também pelo fato de que o animal, nas suas intervenções no mundo, “dá forma apenas
segundo a medida e a necessidade da species a que pertence’’27.
Por sua vez, os seres humanos - em virtude de uma privilegiada disposição
orgânica, aliada com um longo processo de acúmulo de experiências intercambiais com o
meio natural - desenvolvem uma forma peculiar de produção da vida material, capaz de
23 LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. O jovem Marx e outros escritos
de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007a, p. 228. 24 Esta consideração baseia-se na interpretação lukacsiana, que entende que, para o marxismo, o ser humano, o
ser social, funda-se num longo processo de ruptura com conservação com o ser orgânico e inorgânico (Cf
LUKÁCS, 2010, p. 33-74). 25 MARX, Karl; ENGELS. op. cit, p.24. 26 LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010, p.42. 27 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São
Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 313.
16
promover a diferenciação entre atividade vital e ser que atua: o trabalho. Sobre isto, Marx
expõe:
[...]Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao
homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos
favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo
em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no
início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente.28
Ao realizar a atividade laboral, os indivíduos sociais conseguem mediar, regular e
controlar o seu metabolismo com a natureza, justamente por sua capacidade de prévia
ideação. A formação da consciência no gênero humano faz com que ela seja mais do que um
epifenômeno da reprodução biológica. Com ela, os seres humanos conseguem ativa e
intencionalmente articular nexos causais, mobilizar conhecimentos já possuídos socialmente,
formando idealmente uma resposta articulada para carências individuais ou sociais.
Deste modo, estes sujeitos se inter-relacionam com o meio natural teleogicamente.
Enquanto a natureza como um todo se movimenta causalmente, o gênero humano tem a
capacidade de canalizar tais legalidades, para pôr o mundo de acordo com um determinado
fim. O trabalho, como Marx caracteriza n’O Capital, é uma “atividade orientada a um fim
para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas
[...]’’29.
É através desta intervenção prático-crítica no real que os seres humanos
conseguem efetivamente transformar a natureza. No processo de produção da vida material
ocorre a objetivação da vida genérica do ser social30. Em outros termos, a já referida
articulação de conhecimentos socialmente conquistados promovida pelos indivíduos é posta
concretamente no mundo, alterando radicalmente os objetos movidos pela atividade laboral,
que adquirem novas formas. Deste modo, realidades inéditas são introduzidas, sendo
estruturadas de acordo com o télos pretendido pelos seres ativos31.
28 Idem. O Capital:crítica da economia política – volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1988a, p.142-143. 29 Idem. Ibidem, 146. 30 Cf. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 313. 31 Como Marx argumenta n’O Capital, “ao produzir, o homem só pode proceder como a própria natureza, isto é,
apenas mudando as formas da matéria’’ (MARX, 1988a, p. 50-51), o que vai de encontro a uma possível
17
Esta humanização da natureza, argumentam Marx e Engels, desenvolve-se de
maneira tal que a ideia de um meio natural totalmente embrutecido, sem qualquer alteração
gerada do gênero humano, pouco a pouco vai perdendo-se de vista. Ao atingir o modo de
produção capitalista, até mesmo as cerejeiras que Marx e Engels observavam nas cidades em
que residiam só estavam dispostas naquele plano por conta da ação histórica dos indivíduos,
que importaram esta espécie estrangeira em meio a diversos intercâmbios comerciais.32 Em
determinado momento, a dupla alemã chega a comentar espirituosamente que a natureza que
precede a história humana, idealizada por filósofos como Feuerbach, não é de modo algum a
natureza de hoje em dia, “à exceção talvez de uma ou outra ilha de coral australiana de origem
recente’’33.
A dinâmica da atividade laboral também recai sobre o ser humano, que por sua
vez também é transformado continuamente neste processo. Com a produção dos meios para a
satisfação das necessidades humanas, “a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da
satisfação conduz a novas necessidades’’34, novas demandas e caminhos para a
autoativididade do ser social. Para compreender este fenômeno, é imperativa a compreensão
de como a apropriação da realidade é acompanhada pela formação da consciência da
realidade. Sobre isto, Lukács aponta:
No ser-em-si da pedra não há nenhuma intenção, e até nem sequer um
indício da possibilidade de ser usada como faca ou como machado. Ela só
pode adquirir tal função de ferramenta quando suas propriedades
objetivamente presentes, existentes em si, forem adequadas para entrar numa
combinação tal que torne isso possível. [...] Quando o homem das origens
escolhe uma pedra para usá-la, por exemplo, como machado, deve
reconhecer corretamente esse nexo entre as propriedades da pedra [...] e a
sua respectiva possibilidade de utilização concreta.35
Os seres humanos, em seu metabolismo com a natureza, não só conseguem como
necessitam conhecer o seu entorno através da sua ação prático-crítica. Só assim o indivíduo
consegue dar forma ao objeto do trabalho segundo a species de cada elemento articulado na
interpretação voluntarista da atividade laboral, uma vez que estabelece que o trabalho só possa ser realizado
dentro da legalidade natural. 32 Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 37. 33 Idem. Ibidem, 39. 34 Idem. Ibidem, 41-42. 35 LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 54.
18
atividade. Esta é a base fundamental para a diferenciação entre a complexa consciência
humana e a consciência dos seres meramente orgânicos, por sua vez epifenomenal.
[...] Quando, por exemplo, uma ave [...], ao avistar uma ave de rapina no ar,
reage com determinados sinais, acontece apenas uma reação eficaz a
determinado e concreto perigo de vida no meio ambiente, e a reação da
defesa, imediata, é de grande precisão e unicidade. Do funcionamento
preciso e pontual de tais reações, porém, não se deriva, em absoluto, que a
ave em questão seja capaz de constatar esse inimigo como “o mesmo’’ em
circunstâncias totalmente diferentes. Conhecer tal ameaça de vida não
significa a identificação daquele que ameaça com o seu ser-em-si, portanto,
o conhecimento daquele que ameaça, que, além dessa função para o
organismo ameaçado, possui enquanto ente-em-si uma longa série de
qualidades praticamente relevantes pro si mesmas. (Os homens, por
exemplo, em estágio avançado de seu desenvolvimento, puderam usar aves
de rapina como auxiliares de caça.)36
N’A ideologia alemã, Marx e Engels afirmam que “para o animal, a sua relação
com outros não existe como relação’’37. O rudimento de capacidade associativa do animal
com seu entorno não consegue superar efetivamente os seus marcadores biológicos, o que
impede a constituição de uma interação consciente com o mundo. Distintamente, dentro da
realidade humana, “a consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser
dos homens é o seu processo de vida real’’38.
Em outros termos, os sujeitos forjam a sua vida consciente no desenvolvimento da
sua existência concreta, enquanto um produto social. Em seus estágios originários, “começa
por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível mais imediato e consciência da
conexão limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo que vai tornando consciente
de si’’39. Só com a progressiva apropriação social da natureza que o gênero humano
complexifica a sua atividade consciente, não só pela apreensão das propriedades dos objetos
ao seu redor e seus nexos causais, o aperfeiçoamento das capacidades sociais técnicas e
produtivas, como também a constituição de formas mais refinadas de relações sociais e
emocionais.
36 Idem. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010, p.83. 37 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.44. 38 Idem. Ibidem, 31. 39 Idem. Ibidem, 44.
19
Como todo ser natural sensível, o ser social é “um ser que sofre e, porque sente o
seu sofrimento, um ser apaixonado’’40, sustenta o filósofo de Trier, em seus Manifestos
econômico-filosóficos. Desta forma, os indivíduos são afetados de maneira emotiva nas suas
relações com o real, e seus sentimentos compõem um vetor fundamental nas suas ações. Tais
sentidos, na medida em que a práxis social do trabalho desdobra-se através do tempo,
produzindo novas necessidades, apropriando-se material e teoricamente do real, também são
estimulados a darem saltos qualitativos.
Segundo Marx, “[...] o sentido de um objeto para mim (só tem sentido para um
sentido correspondente a ele) vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido’’41, o que
significa que tais sentidos necessitam ser forjados para que eu possa de fato me relacionar
emotivamente com algo de forma mais refinada. Para tanto, “o sentido humano, a humanidade
dos sentidos, apenas advém pela existência do seu objeto, a natureza humanizada’’42, uma vez
que “Eu só posso praticamente comportar-me para com a coisa humanamente quando a coisa
se comporta para com o homem humanamente’’43.
Compreende-se que o olho humano frua de modo diferente do olho rude,
inumano, o ouvido humano, diferentemente do ouvido rude, etc. vimo-lo, o
homem só não se perde no seu objeto se este se tornar para ele objeto
humano ou homem objetivo. Isto só é possível na medida em que se lhe
torna objeto social, em que ele próprio se torna ser social, assim como a
sociedade se torna para ele nesse objeto.44
A ruptura com a fruição mais imediata e rústica da vida constitui-se no interior do
desenvolvimento da relação do ser humano com o seu entorno, mediante o seu processo de
produção e reprodução da vida, que confere forma social a realidade. Neste movimento, o ser
humano “contempla-se num mundo criado por ele’’45. Assim, os sentidos se tornam teóricos,
proporcionando uma fruição mais sofisticada, o que permite que o gênero humano supere, a
título de exemplo, a forma mais rude da alimentação – aquela que responde meramente a
carência nutritiva, que enxerga o alimento apenas na sua existência abstrata -, proporcionando
40 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São
Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 377 41 Idem. Ibidem, 352. 42 Idem. Ibidem, loc. cit. 43 Idem. Ibidem, 350. 44 Idem. Ibidem, 351. 45 Idem. Ibidem, 313.
20
a fruição de formas humanas de comida, como aquelas encontradas na experiência
gastronômica.
2.3 Práxis humana e determinação histórica
Em suma, o novo materialismo fundado por Marx e Engels promove uma ruptura
com a visão dos materialistas contemplativos, que, ao universalizar princípios da sociedade
burguesa do seu tempo, acreditavam ter desvelado a essência humana. A reorientação teórica
marxista traz um novo ponto de vista, “a sociedade humana; a humanidade socializada’’46,
como é afirmada nas Teses sobre Feuerbach. A partir do momento em que a dupla alemã
investiga as condições e o desenvolvimento do ser social, por corolário, ela estuda a
historicidade do gênero humano.
O que pode ser abstraído do trabalho teórico marxiano e engelsiano acerca do ser
humano enquanto ser histórico, exposto de forma sucinta, é que “toda a chamada história do
mundo não é senão a geração [autoengendramento] do homem pelo trabalho humano’’47. Os
indivíduos sociais, a partir da sua atividade laboral, inserem a natureza e a si mesmos no curso
da história, numa mútua e contínua transformação, em que o seu movimento de apropriação
do meio natural desenvolve através dos tempos complexas formas objetivas e subjetivas de
exteriorização da vida.
Neste processo, o encadeamento histórico, em suas continuidades e
descontinuidades, funda-se na conexão puramente material (não-metafísica e não-teleológica)
entre gerações, o que permite que os sujeitos possam atuar sobre o movimento da história a
partir de condições e construtos daqueles que os precederam.
A história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma das quais
explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são legados por
todas as que a precederam, e que por isso continua, portanto, por um lado,
ainda que em circunstâncias completamente mudadas, a atividade
transmitida, e, por outro, modifica as velhas circunstâncias com uma
atividade completamente mudada [...]48
46 Idem. Teses sobre Feuerbach. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 121. 47 Idem. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Expressão Popular, 2015, p. 358. 48 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 53-54.
21
Partindo desta noção, que afirma a transmissão das condições de vida material
entre gerações, é destacável o fato de que, embora a sociedade seja constituída pela “ação
recíproca dos homens’’49, os sujeitos não podem escolher livremente a forma social em que
irão viver, tendo que agir a partir das circunstâncias apresentadas pelo seu tempo histórico.
Um indivíduo do gênero humano, portanto, é um ser determinado. A sua própria socialidade,
elemento do seu ser que o diferencia da existência passiva dos outros animais, é um exemplo
de sua natureza determinada.
[...] Mesmo quando estou cientificamente ativo etc., uma atividade que eu
raramente posso executar em comunidade imediata com os outros, estou
socialmente ativo, porque [.ativo] como homem. Não só o material da minha
atividade – como a própria língua na qual o pensador é ativo – me é dado
como produto social, a minha existência própria é atividade social; por isso,
o que eu faço de mim, faço de mim para a sociedade e com a consciência de
mim como um ser social [...] Compreende-se a sua exteriorização de vida –
mesmo que ela não apareça na forma imediata de uma exteriorização de vida
comunitária, levada a cabo simultaneamente com outros-, é por isso, uma
exteriorização e confirmação da vida social.50
Ao comporem certo tecido social, os seres humanos sempre atuam, “em
determinados limites, premissas e condições materiais que não dependem da sua vontade’’51.
Uma sociedade organiza-se, enquanto forma histórica, tendo como base fundamental a
produção e a reprodução da vida real, “com o que produzem e também com o como
produzem’’52.
Assim, as forças produtivas presentes em dada formação econômica social
constituem um determinante de grande relevância, uma vez que delimitam a capacidade dos
sujeitos realizarem seu metabolismo com o meio natural, que elabora a sua vida material. Da
mesma forma, as relações sociais de produção, que totalizam a divisão social do trabalho e de
todas as mediações prático-críticas desempenhadas pelos componentes de tal formação
49 MARX, Karl. Carta a P. V. Annenkov 28 de dezembro de 1846. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas
– volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1961a. P. 244-253, p. 245. 50 Idem. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Expressão Popular, 2015, p. 347-348. 51 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.30. 52 Idem. Ibdem, 25.
22
também configuram um fator de forte disposição da vida social desenvolvida em tal
sociedade.
Tais determinantes, de natureza aparentemente infraestrutural do complexo da
vida humana, apresentam-se em um primeiro momento como elementos de difícil
interpretação teórica da concepção materialista da história, principalmente na abordagem da
questão do determinismo ou não-determinismo do fluxo histórico sob o olhar marxista. Tal
tarefa intelectual adquire um trajeto mais tortuoso quando outro ponto é considerado na
discussão: o fenômeno da alienação.
23
3 A ALIENAÇÃO E O CURSO DA HISTÓRIA
3.1 O contexto do problema da alienação na concepção materialista da história
O fenômeno da alienação53 tem importância fundamental na concepção
materialista da história. N’A ideologia alemã, a título de exemplo, Marx e Engels
explicitamente afirmam que o processo de consolidação da vida humana alienada “é um dos
principais momentos do desenvolvimento histórico até os nossos dias’’54.
De acordo com István Mészáros, a fundação e os desdobramentos da alienação
são o mais próximo que a dupla alemã chega da construção de uma “filosofia da história’’,
enquanto um conjunto de elementos que se localiza na base de quase todo o movimento da
ação dos indivíduos através dos tempos55. Para o filósofo húngaro, esta característica da
perspectiva marxista facilmente pode ser convertida, aos moldes de Hegel, numa visão
teleológica da marcha da história, determinada a atingir o seu objetivo final com a
desalienação da vida social e a chegada de uma espécie de “era de ouro’’56.
Como já foi tratado no último capítulo, os indivíduos sociais inserem-se no curso
da história a partir da sua dinâmica de autoprodução fundada na práxis do trabalho. Neste
processo de intercâmbios metabólicos, o ser humano tem a possibilidade de romper
dialeticamente com o seu domínio inicialmente precário das forças naturais e sociais ao seu
entorno. Pela via da atividade laboral e seus construtos sócio-históricos, o gênero humano
encontra formas para combater a falta de controle e a visão rudimentar imediatamente
estabelecida sobre o real, não só pela extração e articulação de mais e mais conhecimentos,
mas também pela sua capacidade de pôr no mundo instrumentos que o auxiliam neste
processo de apropriação objetiva e tomada de consciência do mundo.
No entanto, a própria experiência histórica nos leva a entender que essa
potencialidade presente no desenvolvimento dos seres sociais não se desdobra linearmente. A
trajetória humana é marcada por profundas contradições e retrocessos. Uma evidência disso é
a constatação do descompasso entre as grandes conquistas já alcançadas pela humanidade e a
53 Ao tratarmos desta categoria, optamos pela perspectiva do filósofo brasileiro Sergio Lessa, que defende que
Entäusserung deve ser traduzido por exteriorização (e não alienação), e Entfremdung deve ser traduzido por
alienação (e não estranhamento). Assim, será possível um trato com a teoria marxista sem teores indevidos de
hegelianismo, e o fenômeno da alienação pode ser encarado em suas raízes e desdobramentos objetivos. Cf
LESSA, S. Alienação e estranhamento. In: MARX, Karl. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-
filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 449-491. 54 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 49. 55 Cf. MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 222. 56 Idem. Ibidem, 223.
24
vida efetiva dos indivíduos. Um exercício conveniente para ilustrar esta situação é a retomada
de algumas perguntas uma vez lançadas por Leandro Konder:
Como foi possível a humanidade partir para o desbravamento do espaço
cósmico, como foi possível a humanidade ter chegado a dominar as energias
e as leis da natureza a ponto de lançar satélites artificiais e mandar naves à
lua, sem ter chegado a suprimir a fome da face da terra? [...] Como foi
possível um compatriota de mestres do humanismo como Goethe,
Beethoven, Lessing, Hegel, Dürer, Kant, Engels e Marx, chegasse a ficar tão
cego de anti-semitismo a ponto de não ser mais capaz de enxergar num
judeu um seu semelhante, um homem tal como ele, um ser dotado em
princípio da mesma riqueza de potencialidades humanas?57
É neste cenário de grandes antinomias e dissonâncias que se insere o debate
marxista acerca do estabelecimento do trabalho alienado nas sociedades, elemento
fundamental para a consolidação da lógica social da exploração do ser humano pelo ser
humano e a autonomização dos construtos dos sujeitos históricos.
3.2 As bases originárias do descontrole histórico
Nem sempre houve condições materiais para instaurar-se em um tecido social
uma dinâmica de exploração.
Dado o baixo nível de produtividade do trabalho, isto é, da técnica mediante
a qual o homem garante a sua subsistência e se afirma, dominando a
natureza, não havia escravidão. A exploração do trabalho escravo era
economicamente inviável: o que um escravo podia produzir não compensava
a sua manutenção e o esforço que precisaria dispender para vigiá-lo.58
Na luta pela garantia das suas condições de existência, as primeiras comunidades
humanas foram aperfeiçoando suas forças produtivas em seu metabolismo com o meio
natural. Neste processo, os primeiros modos de organização social e divisão do trabalho foram
estipulados. Com o grande salto da revolução neolítica, superando o nomadismo – e a
subseqüente fixação na terra - tais agrupamentos puderam desenvolver suas formas de
57 KONDER, L. Marxismo e alienação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 12. 58 Idem. Ibdem, 38.
25
apropriação da natureza como nunca antes, a partir do desenvolvimento da agricultura e da
criação de animais, o que permitiu pela primeira vez o excedente econômico59.
O excedente de produção constituiu a primeira base material para a constituição
de uma nova realidade social. Com esta nova capacidade de produção de riquezas, alguns
membros do tecido social puderam se demitir da dinâmica produtiva, desenvolvendo a partir
de tal ócio atividades de cunho intelectual e administrativo. Esta divisão manual e intelectual
do trabalho possibilitou a conformação das primeiras formas de propriedade. Como Marx e
Engels afirmam n’A idelogia alemã, “divisão de trabalho e propriedade são expressões
idênticas - numa enuncia-se em relação à atividade o mesmo que na outra se enuncia ao
produto da atividade’’60.
A camada minoritária presente nas comunidades originárias que se desligou da
tarefa da atividade laboral passa a apossar privadamente a riqueza socialmente engendrada,
podendo dispor da força de trabalho alheia. Assim, a vida humana pôde constituir as primeiras
expressões de uma sociedade cindida em classes, fundamentalmente entre os proprietários
senhores do trabalho e os trabalhadores servos da propriedade. Com tal cisão, o trabalho, a
atividade hominizante, passa a ser a regido por outro que não aquele que trabalha.
O advento deste elemento histórico, a alienação do trabalho, separa abruptamente
as conseqüências autoprodutivas da atividade laboral daquele que a exerce. O destacamento
social que trabalha realiza o metabolismo com o meio natural para realizar necessidades
privadas, externas ao seu contingente – aquelas demandas estipuladas pelo segmento
dominante – sob orientações e sob uma rota de ação que também fogem ao seu arbítrio,
justamente por estes serem imperativos dos seus senhores. Enquanto atividade coagida, - a
qual os trabalhadores se submetem apenas para garantir o seu sustento – o trabalho converte-
se em uma ação de desgaste e pilhagem para aqueles que a executam. Desta forma, “se foge
do trabalho como da peste’’61, exatamente daquela atividade que potencialmente cria as mais
refinadas formas de realização dos sujeitos.
A passagem do trabalho humano de atividade autoprodutora para atividade
castradora promove consequências mais graves do que a sua transformação em algo
desagradável e desrealizador. Com a desvinculação do ser humano com a atividade que
59 Cf. Idem. Ibdem, 42-43. 60 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 47. 61 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São
Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 309.
26
humaniza a si mesmo e o seu entorno, toda a vida social e os processos objetivos observados
pelos indivíduos aparecem fantasticamente, apartados de suas bases fundamentais.
[...] O poder social, isto é a força de produção multiplicada que surge pela
cooperação dos diferentes indivíduos requerida pela divisão no trabalho,
aparece a esses indivíduos [...] não como seu próprio poder unido, mas como
uma força alienada que existe fora deles, a qual não sabem de onde vem e a
que se destina, que eles, portanto, não podem dominar e que, ao contrário,
percorre uma série peculiar de fases e etapas de desenvolvimento
independente da vontade e do esforço dos homens, e que até mesmo dirige
essa vontade e esse esforço.62
Percebe-se, deste modo, o poderoso determinante histórico que constitui o
fenômeno da alienação, pois funda-se neste processo a perda de controle do gênero humano
sobre o seu curso através dos tempos, se incorporando em uma “força alienígena, que se
confronta com os indivíduos como poder hostil e potencialmente destrutivo’’63
3.3 A rota autodestrutiva da alienação no capitalismo
A suposta autonomia do complexo social - como se a história, a natureza
humanizada e os seres sociais que convivem entre si fossem elementos completamente alheios
a cada indivíduo – adquire novo patamar com a consolidação histórica do modo de produção
capitalista. Como próprio nome já indica, o tipo de sociedade em que a humanidade
atualmente está estabelecida é a ordem do capital. Isto significa que toda a dinâmica de
produção e reprodução da vida do gênero humano está subordinada a uma nova lei
econômica: a valorização do valor.
O caminho para a consolidação do mundo burguês foi pavimentado por brutais
separações na vida produtiva das sociedades, “entre o produto do trabalho e o próprio
trabalho, entre as condições objetivas do trabalho e sua força subjetiva de trabalho’’64,
dispondo desta forma a burguesia como detentora dos meios de produção e subsistência de
uma forma nunca antes vista, fazendo com que os trabalhadores só possuíssem a sua força de
trabalho, obrigando-os a vendê-la como mercadoria.
62 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 49. 63 MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 14. 64 MARX, Karl. O Capital:crítica da economia política – volume II. São Paulo: Nova Cultural, 1988b, p. 148.
27
Enquanto artigo mercantil, o trabalho é totalmente apartado de suas dimensões
qualitativas, concretas, enquanto atividade criativa e transformadora. A atividade laboral é
considerada apenas em sua pura abstração, enquanto “dispêndio de força de trabalho do
homem no sentido fisiológico’’65, enquanto mobilização desgastante de cérebro, nervos e
músculos, capaz de cristalizar valor, de formar “gelatinas de trabalho humano’’66 - as demais
mercadorias que os trabalhadores produzem.
As mais complexas formas de exteriorização da vida humana, bem como as suas
mais fundamentais garantias de reprodução, de nada valem por si mesmas. Em sentido
contrário, elas poderão valer algo se e somente si elas puderem ser metamorfoseadas em
mercadorias e virarem ferramentas de ganho econômico para o capital. Observando tal
movimento, Marx afirma que “com a valorização do mundo das coisas, cresce a
desvalorização do mundo dos homens em proporção direta.’’67.
Até os capitalistas, detentores dos meios de produção, se conformam enquanto
classe desempenhando o papel de “personificações de categorias econômicas [do capital],
portadoras de determinadas relações de classe e interesses’’68. Sua ingerência sobre o mundo
não pode transpor as determinações imanentes do sistema capitalista, sob pena da ruína dos
seus empreendimentos. Nenhuma necessidade social – mesmo as demandas individuais dos
burgueses - é central no capitalismo, com exceção do aumento exponencial do lucro e a
progressiva mercantilização da realidade.
Por conta da sua crescente dinâmica estrangeira aos indivíduos sociais, a
sociedade burguesa desdobra-se em um desgoverno tão monstruoso que “assemelha-se ao
feiticeiro que perdeu o controle dos poderes infernais que pôs em movimento com suas
palavras mágicas’’69. A ordem do capital comporta-se com tanta irracionalidade que produz,
pela primeira vez na história, escassez na abundância, e produz crises a partir da
superprodução70.
A acrasia capitalista, que precisa crescer a qualquer custo e a troco de qualquer
coisa, não escolhe recursos a serem consumidos. Marx já apontava n’O Capital que “a
produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social
65 Idem. O Capital:crítica da economia política – volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1988a, p. 53. 66 Idem. Ibdem, 56. 67 Idem. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Expressão Popular, 2015, p. 304. 68 Idem. O Capital:crítica da economia política – volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1988a, p. 19. 69 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa
Sundermann, 2003, p. 31. 70 Cf. NETTO, J-P; BRAZ ,M. Economia política: uma introdução crítica. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2012, p.
171.
28
ao minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador’’71. Esta
progressiva destruição dos indivíduos humanos e dos recursos naturais que o capital
empreende para se autoexpandir gera a possibilidade concreta da extinção da vida humana,
Seja por um cataclisma ambiental irreversível ou pelas próprias guerras geradas pelo capital
em vias de recuperar as taxas de lucro. Sobre isso, Mészáros afirma:
[...] se tivesse de modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo
“socialismo ou barbárie’’ -, eu acrescentaria: “bárbarie se tivermos sorte’’.
Porque a exterminação da humanidade é a ameaça que se desenrola.
Enquanto falharmos em resolver os grandes problemas que se espalham por
todas as dimensões de nossa existência e nas relações com a natureza, o
perigo vai permanecer no horizonte72
Envoltos em um presentismo e um pragmatismo que a própria ordem do capital os
impõe, os burgueses dificilmente se movimentarão para mudar este curso. A tendência que
pode ser entendida é a oposta: a mobilização dos capitalistas em direção ao abismo.
[...] O capital, que tem tão “boas razões” para negar os sofrimentos da
geração trabalhadora que o circunda, é condicionado em seu movimento
prático pela perspectiva de apodrecimento futuro da humanidade e, por fim,
do incontrolável despovoamento tão pouco ou tanto como pela possível
queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer malandragem com ações ninguém
ignora que um dia a casa cai, porém todos confiam que ela cairá sobre a
cabeça do próximo, após ele próprio ter colhido a chuva de ouro e a posto
em segurança. Après moi le déluge! [depois de mim, o dilúvio!] é a divisa de
todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a menor
consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando
é coagido pela sociedade a ter consideração. À queixa sobre degradação
física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, ele responde:
Deve esse tormento atormentar-nos, já que ele aumenta o nosso gozo (o
lucro)?73
71 MARX Karl. O Capital:crítica da economia política – volume II. São Paulo: Nova Cultural, 1988b, p. 100. 72 MÉSZÁROS, I. . A montanha que devemos conquistar. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 188. 73 MARX, Karl. op. cit., p. 205-206.
29
A alternativa materialmente viável, segunda a interpretação marxista, só pode ter
como sujeito histórico aquela classe cujos interesses não estão na reprodução da ordem
vigente, mas sim na sua superação.
3.4 Desalienação e determinismo
A teoria marxista enxerga a possibilidade de superação da ordem do capital na
série de potenciais que são formados em consonância com o modo pelo qual é forjada a classe
trabalhadora no capitalismo.
No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estágio no qual se
produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações
vigentes, só causam desgraça, que já não são forças de produção, forças de
destruição (maquinaria e dinheiro) – e, em conexão com isso, é produzida
uma classe que tem que suportar todos os fardos da sociedade sem gozar das
vantagens desta e que, expulsa da sociedade, é forçada ao mais decidido
antagonismo a todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de
todos os membros da sociedade e da qual deriva a consciência sobre a
necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, a qual,
evidentemente, também pode se formar no seio das outras classes por meio
da observação da posição desta classe74
Na sociedade capitalista, a dinâmica produtiva encontra-se em uma destrutiva
contradição. Para que sua indústria de crises possa tornar-se indústria de abundância
socialmente apropriada, é imperativa uma ruptura radical com as suas relações sociais
vigentes. Paradoxalmente, para desenvolver os seus empreendimentos, os capitalistas
precisam produzir trabalhadores. Por sua vez, a classe trabalhadora no capitalismo só pode
fruir realmente o produto que engendra caso suplante a propriedade privada e as relações de
classe inerentes a ela,75 o que promoveria a rearticulação da atividade laboral com seus
executores, desalienando-a – o que levaria ao modo de produção comunista.
Diferentemente de outras linhas teóricas contemporâneas, que apresentam a vida
humana alienada como uma condição eterna, irrevogável e constituinte do gênero humano, o
marxismo compreende a alienação como um determinante contingente76. O descontrole não se
74 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 56. 75 Idem. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 48-49. 76 MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 223-226.
30
fez presente no surgimento da humanidade. Como já foi visto, ele foi historicamente
constituído e, dentro do conjunto de contradições vividas na ordem do capital, existem as
condições materiais para a construção da desalienação.
Contudo, o trato marxista sobre este determinante leva a outras querelas. O
próprio surgimento e possível superação do fenômeno da alienação não possuem
caracterização simples dentro da compreensão fundada por Marx e Engels. Há uma brecha
para interpretações que compreendam estes dois episódios como momentos os quais a
humanidade estaria fadada a vivenciar.
Como já foi dito anteriormente, existem argumentações que apontam para a
exposição e análise histórica marxista como uma visão portadora de um certo teleologismo
imanentista, em que o grande desfecho seria justamente a já citada ideia de “era de ouro’’,
enquanto fim da história, momento a ser eternizado a partir da desalienação. Esta trajetória
fatalista ganha força interpretativa quando certas passagens das obras da dupla alemã são
levadas em conta, acumulando para tal perspectiva.
Para aclarar tais questões, assim como para ter uma noção da natureza fechada ou
aberta da concepção materialista da história, o conjunto de determinações presente no quadro
marxista precisa ser esmiuçado, para compreendermos se tais determinantes se totalizam em
um complexo determinista.
31
4 A DETERMINAÇÃO NA CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA
4.1 Determinação e determinismo
A tarefa intelectual em questão é compreender se a visão histórica consolidada por
Marx e Engels se encaixa nas acusações costumeiras, ao ser apresentada como uma forma de
“determinismo histórico’’, “determinismo econômico’’, ou mesmo a pura e simples
qualificação como “determinista’’. Isto não significa, contudo, que o enfrentamento deste
problema perpassa por uma tentativa de apresentar o marxismo como uma perspectiva
desprovida de determinantes.
Não parece válido o raciocínio que sentencia como determinista todo e qualquer
ponto de vista que identifica algum elemento de determinação do fluxo histórico. Para
conseguir explicar os desenvolvimentos e eventos históricos, um olhar sobre a ação dos
indivíduos sociais através dos tempos não pode agir sobre a tutela de um “princípio de
indeterminação’’, como argumenta Mészáros77.
[...] Todas as teorias históricas propriamente ditas, materialistas ou
idealistas, devem operar dentro do quadro de algum conjunto coerente de
determinações, por meio das quais elas podem localizar e identificar a
significância e o peso relativos de eventos particulares, relacionando-os uns
aos outros, e apontando por meio de suas ligações determinadas algumas
tendências de desenvolvimento historicamente específicas de maior ou
menor alcance ou abrangência.78
Não haveria porque promover a identificação entre uma teoria que apresenta
determinantes do movimento histórico e uma teoria da história determinista. Trata-se, neste
caso, de estabelecer o estatuto das determinações no quadro conceitual da concepção
materialista da história. Como o próprio filósofo húngaro propõe “[...] a verdadeira questão
não diz respeito à “determinações ou indeterminação’’, mas a que tipo de explicação histórica
se adota: uma determinista-mecânica ou um quadro geral dialético?’’79, ou seja, se tal
explicação histórica totaliza-se de forma aberta ou fechada.
77 Cf. MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência, volume II: a dialética da estrutura e da história.
São Paulo: Boitempo, 2011, p. 30. 78 Idem. Ibdem, loc.cit. 79 Idem. Ibdem, loc.cit.
32
Para abordar o quadro de determinantes da concepção materialista da história, um
ponto de partida seminal é o esforço pela localização do fator econômico neste complexo, a
fim de verificar a validade daquelas perspectivas que afirmam que, segundo o marxismo, a
economia condicionaria mecanicamente as outras dimensões da vida humana.
4.2 O lugar do fator econômico no complexo marxista de determinações históricas
É patente a relevância possuída pelos elementos da economia na concepção
materialista de história. Marx e Engels entendem que há uma simbiose entre determinados
modos de produção e determinadas formas de relação social, de modo que o desenvolvimento
de distintas formas de sociabilidade estaria ligado à dinâmica produtiva. Neste sentido, a
dupla advoga que “[...] a ‘história da humanidade’ tem de ser sempre estudada e tratada em
conexão com a história da indústria e da troca’’.80
Tal compreensão se traduz em passagens polêmicas, como na obra marxiana Para
a crítica da economia política, onde o filósofo de Trier irá afirmar que
Na produção social da própria vida, os homens contraem relações
determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de
produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real
sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de
produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social,
político e espiritual.81
Em tais termos, compreende-se que há – como diria Lukács - uma “prioridade
ontológica da economia’’82, enquanto elemento primordial da conformação do ser social.
Contudo, a compreensão da centralidade da produção e reprodução material na vida humana
por si só não precisa qual é o grau e o tipo de inter-ligação que a economia desenvolve com as
mediações estruturais as quais serve de base.
80 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 43. 81 MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978b, p. 129-
130. 82 LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 408.
33
N’A ideologia alemã, Marx e Engels apresentam alguns indícios acerca do modo
como estes constituintes do tecido social se articulam:
O modo como os homens produzem os seus meios de subsistência depende,
em primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de subsistência
encontrados e a reproduzir. Esse modo da produção não deve ser
considerado no seu mero aspecto de reprodução da existência física dos
indivíduos. Trata-se já, isto sim, de uma forma determinada da atividade
desses indivíduos, de uma forma determinada da atividade desses
indivíduos, de uma forma determinada de exteriorizarem a sua vida, de um
determinado modo de vida dos mesmos. Como exteriorizam a sua vida,
assim os indivíduos o são.83
Vemos, portanto, a natureza precípua da produção e reprodução das condições de
existência dos indivíduos sociais. Ainda assim, a dupla alemã sinaliza que tal condição não
pode ser reduzida a mera dinâmica de reprodução da existência física dos seres humanos. A
atividade prático-crítica humana, aquela que garante as possibilidades de autoengendramento
do gênero, envolve um conjunto muito mais amplo de fatores, para além da simples garantia
dos meios materiais de sustentação da vida, como elemento isolado.
Segundo Marx e Engels, os indivíduos sociais constituem-se pelo modo como eles
exteriorizam as suas vidas, e não simplesmente pelas suas atividades econômicas. Ao se
porem no mundo, ao se exteriorizarem, os seres humanos exprimem um determinado modo de
vida, o que não se significa apenas a manifestação de uma determinada organização e
capacidade de realização da práxis social do trabalho. O complexo de atividades de expressão
humana abrange atividades e relações das mais rudimentares até as mais refinadas,
envolvendo não só o labor, como também a arte e a filosofia. Isto nos leva ao entendimento de
que a composição do gênero humano dispõe-se através de um quantum articulado de
exteriorizações, em que as particularidades concernentes a vida econômica de uma dada
sociedade não estão apartadas daqueles elementos ditos superestruturais.
A confluência entre os constituintes do tecido social supracitados indica que “as
mediações superestruturais não estão suspensas no ar”84, donde se pode extrair algumas
perspectivas desta esfera da sociabilidade. Dentro da concepção materialista da história, as
83 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 24. 84 MÉSZÁROS, I. Estrutura social e formas de consciência, volume II: a dialética da estrutura e da história.
São Paulo: Boitempo, 2011, p. 51.
34
formas conhecidas como superestruturais – como a arte, a filosofia, a política, religião e as
leis – perdem a sua aparente autonomia frente ao processo real da vida. Tais mediações são
consideradas em sua direta conexão com os intercâmbios e comportamentos materiais dos
sujeitos, sendo constituídas a partir dos fundamentos concretos estabelecidos pelas
circunstâncias produtivas dadas85.
Ao restringir a gênese e o desenvolvimento de tais formas ao campo da vida
concreta, negando a independência absoluta concebida por perspectivas idealistas, o
marxismo acaba por firmar bases para compreender as circunstâncias efetivas de
determinação dos elementos superestruturais sobre a dinâmica social. O filósofo de Trier tinha
noção de que, as próprias manifestações de formas de consciência, de perspectivas filosóficas
e as ideias de modo geral poderiam ser convertidas em uma força material propriamente dita,
assim que conseguissem permear a prática dos indivíduos sociais86, como ele ilustra em um
momento do seu livro Para a crítica da economia política, onde as tratou como “[...] formas
ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito [das contradições
econômico-produtivas] e o conduzem até o fim’’87.
A própria forma política tem a possibilidade histórica de ter relativa autonomia e
recair sobre o movimento de produção e reprodução da existência. Numa carta destinada a
Engels, Marx trata da influência da dinâmica militar sobre a vida econômica, ressaltando
como uma determinação superestrutural sobre a economia atesta a precisão de sua concepção
materialista da história: “A história do exército, com mais evidência que nenhuma outra coisa,
prova a justeza de nosso ponto de vista sobre a ligação entre as forças produtivas e as relações
sociais. De modo geral, o exército tem papel importante no desenvolvimento econômico’’.88
Para além da própria dinâmica entre a economia e as formas superestruturais, a
vida humana também sofre a influência dos determinantes naturais, tanto com as suas próprias
disposições corpóreas quanto com aquelas condições naturais as quais ela se depara na sua
atividade de apropriação da natureza para suprir as suas necessidades, como podemos
observar n’A ideologia alemã:
A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência
de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, portanto, a
85 Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 30-33. 86 Cf. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 157. 87 Idem. Para a crítica da economia política. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978b, p. 130. 88 Idem. Carta a Engels 25 de setembro de 1857. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas – volume 3. São
Paulo: Alfa-Omega, 1961b. P. 255-256, p. 255.
35
organização corpórea desses indivíduos e a relação por isso existente com o
resto da natureza. [...] Toda a historiografia tem de partir dessas bases
naturais e da sua modificação ao longo da história pela ação dos homens.
[...] A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na
procriação, surge agora imediatamente como uma dupla relação: por um
lado como relação natural, por outro como relação social.89
Esta dupla relação que conforma o ser social - entre a natureza e o mundo social -
pode ser interpretada como a instauração de uma espécie de ontologia dualista dos indivíduos
sociais, mas, efetivamente, estas esferas não estão em total separação. Por conta do seu
processo de humanização, os indivíduos sociais promoveram uma ruptura com a sua
constituição puramente natural, conservando ainda bases mutáveis, porém insuprimíveis de
elementos naturais. Assim, diversas funções da vida humana são fundadas nas condições
naturais do seu ser, tais quais a sexualidade e a nutrição, mas que desenvolvem-se e se
metamorfoseam constantemente pela força da sociabilidade.90
Tendo em vista a inter-relação entre todos estes fatores da vida humana, podemos
inferir que o complexo de determinações que são considerados pela a teoria marxista sobre o
movimento histórico compõe uma totalidade dialética, em que o conjunto destes fatos age
reciprocamente uns sobre os outros.91 O quadro econômico, apesar de ser a base de tal
dinâmica, não está fora deste emaranhado que compõe o fluxo histórico, como Engels
esclarece numa carta a Bloch:
Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última
instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem
Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém
o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante,
converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação
econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se
levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as
constituições que, uma vez vencida a batalha, a classe triunfante redige, etc,
as formas jurídicas, [...] as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias
religiosas [...] – também exercem sua influência sobre o curso das lutas
históricas [...]. Se não fosse assim, a aplicação da teoria a uma época
89 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 24, 42-43. 90 Cf. LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 41-42. 91 Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. op. cit, p. 53-54.
36
histórica qualquer seria mais fácil que resolver uma simples equação do
primeiro grau.92
Assim sendo, o fator econômico, inserido no quadro dialético de inter-relações
conformadoras da história, é considerado o principal determinante da vida social, mas, assim
como as outras esferas da sociabilidade, por estar neste conjunto de influências mútuas, pode
ser caracterizado como um “determinante determinado’’.93 A atenção dada pelos fundadores
do materialismo histórico a este elemento da realidade humana advém não só pelo próprio
caráter primordial, basilar e estrutural da produção e reprodução da vida para o gênero, mas
também pela total negligência por parte dos seus adversários teóricos, que negavam sempre
que podiam o peso do processo real de vida nos rumos da humanidade.94
4.3 Determinação histórica e teleologismo
Ainda que a concepção materialista da história não faça jus ao epíteto de “teoria
determinista econômica’’, existe outra perspectiva bastante partilhada que tenta enquadrá-la
em uma visão mecânica. Há aqueles que a interpretam como uma linha que consolida um
esquema histórico geral, válido para o conjunto das sociedades humanas, em que todas essas
passariam faltamente por certos estágios, até chegar a um destino final, aquele que
previamente já era apontado para toda a trajetória da humanidade. Em outras palavras, o
movimento histórico persistiria sendo compreendido de maneira teleológica pelo marxismo.
Existem passagens dentro das obras escritas por Marx e Engels que oferecem
força para este tipo de argumento. No livro engelsiano A origem da família, da propriedade
privada e do Estado, podemos encontrar momentos em que determinadas passagens entre
formas de sociabilidade são encaradas como “um fenômeno absolutamente geral, válido em
um determinado período para todos os povos, sem distinção de lugar’’.95 Em outros
momentos da produção da dupla alemã, a superação do modo de produção capitalista é tida
como um fato histórico que inexoravelmente ocorrerá, como no próprio Manifesto do partido
comunista, onde será dito que “o desenvolvimento da indústria moderna, portanto, abala a
própria base sobre a qual a burguesia assentou seu regime de produção e reprodução. [...] Sua
92 ENGELS, Friedrich. Carta a Bloch 21/22 de setembro de 1890. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas
– volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1961b. p. 284-286, p. 284-285. 93 MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 108. 94 Cf. ENGELS, Friedrich. op. cit., p. 286. 95 Idem. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Obras escolhidas – volume 3. São Paulo:
Alfa-Omega, 1961a, p. 23.
37
queda e a vitória do proletariado são inevitáveis’’.96 Entretanto, quando tais trechos são
cotejados com o conjunto teórico de Marx e Engels, a visão que entende estes momentos
como episódios destoantes de um sentido geral oposto parece deter maior coerência com as
linhas fundamentais do materialismo histórico.
A ideia de uma trajetória universal para todas as sociedades humanas,
independente da localidade, aparenta ser hostil a concepção materialista da história. Nem
sempre os fatos humanos ocorridos através dos tempos possuíam escala universal. N’A
ideologia alemã, os filósofos alemães argumentam que é através do processo de edificação do
modo de produção capitalista que a história humana encaminha-se para formação de uma
história mundial97, quando o capital rompe fronteiras e expande o seu jugo como forma de
realização das demandas mercantis. O mundo burguês expande-se, à sua maneira, e provoca
uma inter-conexão das diversas comunidades humanas, unificadas ao seu sociometabolismo,
como no exemplo de que “quando na Inglaterra é inventada uma máquina que deixa sem pão
inúmeros operários na Índia98 e na China e transformam profundamente toda a forma de
existência desses impérios, esse invento torna-se um fato histórico-mundial’’.99
No mesmo escrito, os fundadores do marxismo chegam a criticar perspectivas do
idealismo alemão que enxergam o expansionismo capitalista como o ato abstrato de um
espectro metafísico, imaginando tal fenômeno como “ardil do chamado Espírito do
mundo’’100, quando sua raiz encontra-se na materialidade, sob verificação empírica, dentro do
desenvolvimento das atividades de produção e reprodução da vida.
O expansionismo capitalista, assim como os demais eventos históricos passados,
em desdobramento ou conjecturados, não se promove inexoravelmente, segundo o
materialismo histórico. Marx por vezes já ironizou a ideia de “fatalidade histórica’’,
colocando-a entre aspas ao tratar de eventos particulares e conjunturais101. Em uma carta a
96 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa
Sundermann, 2003, p. 37. 97 Cf. idem. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 54. 98 Alguns escritos que Marx fez sobre o domínio britânico na Índia têm sido utilizados para argumentar que o
marxismo não só julgava positivamente o colonialismo da Inglaterra, como também o entendia como parte de
um movimento em favor da realização da finalidade imanente da trajetória da humanidade, uma vez que o
filósofo de Trier caracteriza a ação inglesa sobre o país asiático como “instrumento inconsciente da história’’
(MARX, 1961d, P. 291). Contudo, além da obra marxiana ser repleta de passagens – como a citada acima no
texto – que condenam a violência e as ações deletérias da invasão colonial, esta expressão empregada por Marx
não decorre de uma visão moral ou metafísico-teleológica acerca do evento, mas a simples análise de que a
acumulação primitiva e a expansão da ordem do capital a qual o colonialismo serviu fornecem – ironicamente -
bases materiais para a superação da sociedade de classes. 99 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. op. cit, loc. cit. 100 Idem. Ibdem, 54-55 101 Cf. Idem. Lutas de classes na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 114.
38
Kugelmann datada de 17 de abril de 1871, O filósofo de Trier afirma que “seria muito fácil
fazer a história universal se se pudesse empreender a luta somente em condições de vitória
infalível. Além disso, a história passaria a ter um caráter místico se os ‘acasos’102 não
desempenhassem nenhum papel’’.103
A história também não poderia ser encarada teleologicamente para a teoria
marxista. Marx e Engels entendiam que a proposição de finalidades para o movimento
histórico nada mais seria do que uma distorção especulativa104, que ocorre quando
equivocadamente a história posterior é apresentada como um objetivo ao qual o passado
buscou encaminhar-se para, como, por exemplo, “colocar como subjacente ao descobrimento
da América a finalidade de proporcionar a eclosão da Revolução Francesa’’105. A inserção de
um fim obscuro a história seria a sua transformação em um sujeito – controlador de outros
sujeitos – a fim de realizar o seu télos pretendido, quando nada mais é do que uma abstração
da influência que os eventos do passado têm sobre um evento consecutivo.106
Como podemos ver no livro Lutas de classes na Rússia, Marx não se propõe a
fundar uma
Teoria histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os
povos, independentemente das circunstâncias históricas nas quais eles se
encontrem, para acabar chegando à formação econômica que assegura, com
o maior impulso possível das forças produtivas do trabalho social, o
desenvolvimento mais integral possível de cada produtor individual [...],
cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica.107
Para tratar do fluxo histórico, a concepção materialista da história nada mais pode
ser do que um guia de estudo, e não uma manobra a priori para formar elucubrações, o que
102 Para o marxismo, “acaso’’ não se identifica com a ideia de um elemento desprovido de causalidades. Engels,
por exemplo, o define como “coisas e acontecimentos cuja conexão interna é tão remota ou tão difícil de
demonstrar que podemos considerá-la inexistente ou subestimá-la’’ (ENGELS, 1961b, p. 284), enquanto Lukács
compreende que “o acaso se apresenta, correspondendo à heterogeneidade da realidade, sob formas
extremamente variadas: como desvio da média, ou seja, como dispersão nas leis estatísticas, como relação
heterogênea-casual entre dois complexos e suas legalidades, etc. Soma-se a isso, enquanto traço particular do ser
social, o caráter de alternativa dos pores teleológicos individuais, que estão imediatamente em sua base’’
(LUKÁCS, 2012, p. 360). 103 ENGELS, Friedrich. Carta a Kugelmann 17 de abril de 1871. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas –
volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1961c. p. 263-264, p. 264. 104 Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 53. 105 Idem. Ibdem, loc. cit. 106 Cf. Idem. Ibdem, 53-54. 107 Idem. Lutas de classes na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 68-69.
39
obriga qualquer indivíduo que procure munir-se de tal perspectiva a estudar o seu objeto
integralmente.108 Dentro desta perspectiva, Marx e Engels negam uma visão utópico-mental109
do que seria o comunismo, como um fim para a humanidade aprioristicamente elaborado por
teóricos.
O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido,
um ideal pelo qual a realidade terá de se regular. Chamamos de comunismo
ao movimento real que supera o atual estado das coisas. As condições desse
movimento resultam do pressuposto atualmente existente.110
Uma ideia exposta nos Manuscritos econômico-filosóficos, a de que a chegada de
uma sociedade comunista seria o “enigma da história resolvido’’111 é diversas vezes apontada
como uma indicação de que a perspectiva comunista seria sim um ponto de vista que encontra
um télos na humanidade, quando aparentemente aponta uma resolutividade para o movimento
histórico, como se fosse encontrado uma possibilidade de “fim da história’’. Contudo, não é
dito “história possui uma solução’’. Há na verdade a ideia de que é materialmente possível
desvendar e superar um mistério central para o gênero humano, isto é, a resolução da
autoalienação do ser social. Assim, a história não encontra o seu fim, mas, em sentido
contrário, “se encerra a pré-história da sociedade humana’’.112
4.4 O indivíduo como um vetor da história
Após esmiuçar tais questões sobre a concepção materialista da história, cabe agora
tratar sobre a inserção da ação individual nesta teoria. Pelo fato de sua perspectiva ressaltar
com muita freqüência o papel dos atritos estruturais no movimento da história, como entre
forças produtivas e as relações sociais de produção113, o marxismo aparenta ser uma linha que
subvaloriza o lado ativo do curso histórico, a influência das decisões conscientes dos sujeitos.
Contudo, no período em que Marx ocupou-se centralmente em acertar contas com os teóricos
alemães da sua época - em seu esforço para lançar as bases fundamentais da sua própria
108Cf. ENGELS, Friedrich. Carta a Schmidt 5 de agosto de 1890. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas
– volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1961c. p.282-284, p. 283. 109 Cf. LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. O jovem Marx e outros
escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007a, p. 240. 110 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, 52. 111 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 345. 112 Idem. Para a crítica da economia política. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978b, p. 130. 113 Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. op. cit., p. 90.
40
concepção -, uma de suas principais críticas aos seus contemporâneos, pretensamente
materialistas, era o caráter passivo atribuído aos seres humanos em suas análises.
Como já foi tratado anteriormente, filósofos como Feuerbach foram chamados
pelo pensador comunista de materialistas contemplativos, justamente porque consideravam os
elementos naturais e sociais ao seu redor como meros objetos sensíveis, despojados da
influência da práxis humana em sua constituição, restando apenas a sua aparição
empiricamente observável114. Esta avaliação marxiana não significa uma aposta numa ação
humana fora da concretude sensível - dentro do campo da consciência. Marx concebe a
conduta dos indivíduos sociais como atividade humana sensível115, prático-crítica, em
constante intercâmbio com os determinantes naturais e sociais dispostos.
As formações econômico-sociais impõem ao conjunto do tecido social
circunstâncias e relações que estão para além dos seus arbítrios, mas que, justamente por
serem imperativos humanamente engendrados ao invés maldições ou mandados metafísicos,
não são circunstâncias que impedem a intervenção dos sujeitos, o que nos sinaliza que “as
circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias’’116. É
elucidativa a linguagem empregada por Marx em sua Para a crítica da economia política,
quando caracteriza tais determinações como tarefas, como questões a serem ativamente
respondidas pela sociedade117.
O emprego do termo ‘sociedade’ em tais contextos muitas vezes pode ser
confundido como uma transformação do tecido social em sujeito, mas Marx sempre alertou a
necessidade de “evitar fixar de novo a ‘sociedade’ como abstração face ao indivíduo. O
indivíduo é o ser social.’’118 Em outras palavras, o filósofo de Trier adverte que os indivíduos
não são autômatos, órgãos ou engrenagens de um corpo comunitário. Quem frui e constitui a
dinâmica da sociedade são os seres humanos.
Estes sujeitos, determinados por diversos fatores materiais ao seu redor, podem
ser considerados como vetores da história, uma vez que também são seres concretos inseridos
na dinâmica efetiva da realidade, invariavelmente estabelecendo e contraindo relações com os
outros elementos existentes.119 Não se tornam com isso mônadas, elementos autopropulsores.
114 Cf. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 119. 115 Cf. Idem. Ibdem, loc. cit. 116 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 59. 117 Cf. MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978b, p.
130. 118 Idem. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Expressão Popular, 2015, p. 348. 119 Cf. PLEKHANOV, G. O papel do indivíduo na história. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 109-110.
41
Formado por meio dos construtos sócio-históricos providos por uma comunidade determinada
- e impelido a agir a partir de tais ferramentas - o indivíduo social exterioriza-se, põe no
mundo momentos inéditos por ele articulados, mas a “a sua exteriorização de vida [...] é [...]
uma exteriorização e confirmação da vida social’’120.
Para o marxismo, a capacidade de intervenção dos indivíduos na história não pode
ser exterior às condições e possibilidades permitidas pelas relações sociais vigentes.121
Existem determinações de classe, graus de desenvolvimentos das forças produtivas e dos
conhecimentos disponíveis, além das formas de distribuição e acesso ao patrimônio
socialmente engendrado, a título de exemplo, que favorecem ou obstaculizam cada indivíduo
a conduzir uma intervenção de maior ou menor impacto no curso da história. Munindo-se de
tais condições, os indivíduos não podem imprimir uma fisionomia individual aos grandes
acontecimentos históricos, mas sim ter a capacidade de responder com maior êxito às tarefas
socialmente postas no seu tempo histórico.122
Neste sentido, a ação materialmente viável do sujeito na história é condensada no
célebre início do livro 18 de brumário de Luís Bonaparte, onde Marx irá declarar:
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E
justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas,
em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise
revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os
espíritos do passado [...].123
120 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Cadernos de Paris; Manuscritos econômico-filosóficos.
São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 348. 121 Cf. PLEKHANOV, G. op. cit., p. 131-132. 122 Cf. Idem. Ibdem, 149. 123 MARX, Karl. 18 de brumário de Luís Bonaparte. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978a, p. 329.
42
5 CONCLUSÃO
Esta monografia visou delimitar qual seria o estatuto da visão formulada por Marx
e Engels acerca da ação dos indivíduos sociais através dos tempos, no que diz respeito ao seu
determinismo ou não-determinismo.
Assim sendo, foi preciso investigar como a concepção materialista da história é
articulada, desde a gênese dos seus principais pressupostos - as suas bases concretas de
humanização e historicização do ser social - até seus desdobramentos mais específicos,
naquelas determinações naturais ou socialmente engendradas que recaem sobre o fluxo
histórico. Foi possível avançar neste sentido a partir do estudo e cotejo de obras clássicas de
Marx e Engels – tendo enfoque n’A ideologia alemã –, possuindo como forte apoio
interpretativo escritos de autores da vertente filosófica luckasiana de modo geral, como
Mészáros, Konder e o próprio Lukács, utilizando ainda o filósofo russo Plekhanov. Com tal
empreendimento teórico, as bases conceituais do trato marxista sobre a história buscaram ser
sinteticamente expostas, não para estabeler um ponto final em todas as questões levantadas,
mas sim como um esforço para a elaboração de uma chave interpretativa, que capacite a
elucidação acerca da questão visada.
Foi possível tratar da estruturação das bases investigativas estabelecidas pelo
marxismo para a investigação do ser social. A ruptura materialista dialética perpetrada por
Marx e Engels levou a um estudo do gênero humano sobre premissas reais, que indicaram a
práxis social de produção e reprodução da existência como o elemento último da
humanização, logo, fundador da história.
Foram levantados os elementos para a clarificação do papel desempenhado pela
categoria da alienação no curso da história, segundo a teoria marxiana, como elemento sócio-
historicamente fundado que produz o descontrole humano frente as suas próprias produções
sociais, o que pôde gerar a lógica da exploração do ser humano pelo ser humano, além de
outras mediações de segunda ordem, que levaram a marcha da história a um curso cada vez
mais desgovernado e autodestrutivo. Assim como a sua origem, o final da vida humana
alienada é entendido por Marx e Engels como uma possibilidade histórica, o que o faz um
determinante histórico contingente.
Há a sinalização de um possível lugar da ideia de determinação na concepção
materialista da história, pondo em questão as interpretações que o entendem como
economicista, fatalista, ou negador do sujeito histórico. Os vetores econômicos da vida
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humana - ditos infraestruturais - não estão livres da influência dos seus construtos sócio-
históricos, que, uma vez postos no mundo, recaem dialeticamente sobre as suas formas
originárias de produção. Além disso, por sua concepção profundamente anti-metafísica e
oposta à tendência do idealismo alemão que imperava no seu contexto temporal, Marx e
Engels promoveram uma perspectiva crítica às noções de fatalismo e teleologia dentro do
movimento da história, concebendo que a passagem dos tempos é conduzida por conexões
puramente materiais.
Deste modo, o indivíduo, em suas ações no mundo, ainda que opere sobre
condições e possibilidades que são estabelecidas para além da sua vontade particular, não
pode ser encarado como um autômato, um ser desprovido de qualquer controle sobre sua
conduta dentro do seu tempo histórico. Destarte, se o marxismo entende que os seres sociais
necessitam responder a questões que são estipuladas por um contexto que supera o seu
próprio arbítrio, da mesma forma é compreendido que o indivíduo pode ser um sujeito
histórico, uma vez que tem a possibilidade de transformar a si e ao seu entorno, conjurando
em seu auxílio os elementos que estão dispostos nas circunstâncias dadas.
A partir do exame das questões supracitadas, foi proposto um conjunto de
argumentos em prol da hipótese interpretativa suposta. De forma sucinta, é considerado que –
segundo o marxismo - o complexo de múltiplas determinações que compõem a marcha da
história não se totaliza mecanicamente, mas sim por uma via dialética. Em outras palavras, as
séries de causalidades envolvidas na trajetória humana incidem umas sobre as outras, de
modo que não haveria espaço para uma interpretação maquinal deste processo. Neste sentido,
foi promovida uma leitura do marxismo que entende o fluxo histórico como uma totalidade
aberta, não-fatalista e não-economicista, em que há espaço efetivo para a intervenção dos
sujeitos históricos.
Neste momento em que as contradições sociais agudizam-se e persiste a
dificuldade em promover respostas articuladas a tais questões humanas, o marxismo,
enquanto uma visão de mundo que se propõe a reproduzir idealmente o movimento efetivo do
real, pode servir como necessária ferramenta intelectual para a compreensão da realidade
posta e a extração de uma saída prática – materialmente viável – para suplantar aqueles
conflitos autodestrutivos e contingentes inseridos no seio do gênero humano. Os esforços para
a elucidação desta perspectiva teórica – como foi o propósito deste trabalho – contribuem para
a que ela possa ser cada vez mais alvo de um exame crítico que a leve a contribuir para a
constituição de uma práxis humana mais consciente e qualificada.
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Algumas questões significativas escaparam a esse trabalho, mesmo que por conta
da sua dimensão compacta, típica de um trabalho monográfico. Um exemplo disso foi a opção
por tratar as questões centrais visadas através do próprio aclaramento dos textos marxianos e
engelsianos, sem recorrermos a exposição específica de rotas teóricas de críticos canônicos da
teoria marxista, bem como não foram esmiuçadas no texto vertentes interpretativas do
materialismo histórico que fossem divergentes das ideias aqui defendidas. Além disso, a
discussão sobre se há mesmo uma concepção materialista da história ou meramente formas
específicas de exposição do movimento histórico realizadas por Marx e Engels não foi
explicitamente travada. O futuro enfrentamento de tais questões pode gerar frutos
consideráveis para o enriquecimento dos acúmulos dentro da compreensão da história em
Marx e Engels.
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