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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS FERNANDO JOSÉ LARREA MALDONADO ESTADO E MOVIMENTO INDÍGENA NO EQUADOR: Do multiculturalismo neoliberal ao Estado plurinacional degradado (1990-2017) Salvador 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E ... versão final... · movimento indígena que derivaram no levantamiento indígena nacional de 1990. Em um período caracterizado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

FERNANDO JOSÉ LARREA MALDONADO

ESTADO E MOVIMENTO INDÍGENA NO EQUADOR:

Do multiculturalismo neoliberal ao Estado plurinacional degradado

(1990-2017)

Salvador

2018

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FERNANDO JOSÉ LARREA MALDONADO

ESTADO E MOVIMENTO INDÍGENA NO EQUADOR:

Do multiculturalismo neoliberal ao Estado plurinacional degradado

(1990-2017)

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e

Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia,

como requisito parcial à obtenção do título de

Doutor em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Jorge F.S. de Almeida

Salvador

2018

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_________________________________________________________________________________

Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),

com os dados fornecidos pelo(a)autor(a).

Fernando, Larrea

Estado e movimento indígena no Ecuador: do multiculturalismo

neoliberal ao Estado plurinacional degradado (1990-2017) /

Larrea Fernando. -- Salvador, 2018.

288 f.

Orientador: Antônio Jorge Fonseca Sanches de Almeida.

Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Ciências

Sociais) -- Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas, 2018.

1. Movimento Indígena. 2. Estado. 3. Multiculturalismo. 4.

Estado plurinacional. 5. Equador. I. Fonseca Sanches de

Almeida, Antônio Jorge. II. Título.

____________________________________________________________________________________

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AGRADECIMENTOS

Além do trabalho acadêmico dos últimos anos no Brasil, esta tese culmina uma

trajetória iniciada muitos anos atrás de envolvimento e compromisso com as comunidades e

organizações indígenas da região Interandina no Equador, suas dinâmicas, suas lutas, suas

mingas e suas festas. Muitas são as pessoas nessa caminhada que partilharam sua mesa e sua

sabedoria, me ensinaram as trilhas da resistência cultural e das lutas sociais e políticas. Para

todas elas, as que ainda estão e as que já nos deixaram, meus profundos agradecimentos e

lembranças.

Diversas e enriquecedoras reflexões sobre o processo do movimento indígena, seus

caminhos e descaminhos, foram partilhadas generosamente em entrevistas para minha

pesquisa por Luis Macas, Diocelinda Iza, Floresmilo Simbaña, Ampam Karakras, Franco

Viteri, Nina Pacari, Lourdes Tibán, Alfredo Andrango, Humberto Cholango, Jorge Herrera,

Leonidas Iza, Guillermo Churuchumbi, Luis Andrango, lideranças indígenas às que expresso

meus agradecimentos por todas suas contribuições. Meus agradecimentos também para Mario

Unda, Victoria Carrasco, Pocho Alvarez, Fernando García, Roberto Gortaire, Pablo Dávalos,

Carlos Larrea, Natalia Greene, Carmen Seco, María Fernanda Vallejo, pesquisadores e

ativistas, por ajudar-me a compreender os processos políticos vivenciados nos últimos anos no

país.

Agradeço também ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFBA, um

espaço de formação de qualidade da universidade pública e gratuita, que me acolheu em

Salvador durante os anos do curso de doutorado. Aos professores Clóvis Zimmermann,

Victória Espiñeira, Ruthy Laniado, Adriano Sampaio pelos ensinamentos em suas disciplinas.

Aos meus colegas do doutorado e ao grupo de pesquisa “processos de hegemonia e

contrahegemonia”, pelos debates e contribuições nas aulas e espaços partilhados nestes anos.

A Dora Alencar e Alberto Pereira, funcionários da Secretaria do Programa, por todos seus

cuidados e o apoio nos mais diversos requerimentos e trâmites.

Meus agradecimentos para Sueli Araujo pela revisão do texto desta tese, sempre atenta

e disponível para corrigir o monte de erros da minha redação em português.

Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB –

pelo fornecimento da bolsa de doutorado, sem a qual não poderia ter concluído esta pesquisa.

Quero expressar também meu especial reconhecimento e agradecimento à professora

Iacy Maia Mata e ao professor Antônio Câmara que participaram da banca de qualificação,

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que com suas sugestões, críticas e comentários contribuíram para encaminhar e aprofundar

meu trabalho.

Agradeço de forma especial e sincera a meu orientador, o professor Jorge Almeida,

pela acolhida que deu a minha pesquisa durante todos estes anos, por seu rigor, sua paciência

e seu estimulo para avançar neste trabalho, por seus ensinamentos teóricos e metodológicos,

por sua leitura atenta dos meus textos e seus valiosos comentários, além de seu compromisso

com o conhecimento e as lutas sociais emancipadoras.

Finalmente, um muito obrigado para minha esposa Florencia Campana pelo apoio,

estímulo, discussões críticas e agudas observações sobre os processos políticos no Equador e

do movimento indígena, sem os quais esta tese não existiria.

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RESUMO

Esta tese aborda a relação do Estado com o movimento indígena no Equador a partir do ciclo

de lutas iniciado em 1990. Traça o histórico dos processos organizativos e políticos do

movimento indígena que derivaram no levantamiento indígena nacional de 1990. Em um

período caracterizado por uma aguda crise econômica e uma forte instabilidade política

durante a década de 1990 e os primeiros anos deste século, este estudo argumenta que, diante

da irrupção do movimento indígena na arena política nacional com sua própria voz e discurso

político, o Estado equatoriano abriu um conjunto de espaços e concessões para as demandas

indígenas e articulou progressivamente uma política neoindigenista compatível com as

reformas neoliberais, a qual permitiu preservar os processos de acumulação capitalista no

campo. Esta política teve como eixo articulador a adoção pelo Estado do multiculturalismo

como discurso dominante e dispositivo de poder, ao tempo que, incorporou a participação de

representantes indígenas na sua gestão. Dessa forma, contribuiu para a desmontagem dos

conteúdos contestatórios presentes no discurso indígena, transformando as expectativas e o

perfil de alguns de seus representantes.

No contexto do padrão neodesenvolvimentista assumido pelo Estado equatoriano na última

década (durante o governo Correa) que promove a extração de recursos naturais e a expansão

dos agronegócios, este trabalho analisa os conflitos apresentados com o movimento indígena

pela defesa de seus territórios e a soberania alimentar. As novas modalidades de

administração da questão indígena pelo Estado modificaram negativamente o sentido do

reconhecimento constitucional do Estado plurinacional. Compreende que estas políticas

degradaram os sentidos e conteúdos da plurinacionalidade defendida pelo movimento

indígena no que diz respeito à organização indígena e a sua qualidade como sujeito político,

bem como a autonomia e autodeterminação de povos e nacionalidades. Este processo abriu

um novo campo relacional de coerção e resistências.

Palavras-chaves: Movimento Indígena, Estado, multiculturalismo, Estado Plurinacional,

Equador.

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ABSTRACT

This thesis addresses the relationship of the State with the indigenous movement in Ecuador

from the cycle of struggles begun in 1990. It traces a history of the organizational and

political processes of the indigenous movement that led to the national indigenous uprising of

1990. In a period characterized by an severe economic crisis and strong political instability

during the 1990s and the early years of this century, this study argues that the Ecuadorian

State –faced with the irruption of the indigenous movement in the national political arena,

with its own voice and political discourse– opened a set of spaces and concessions for

indigenous demands and progressively articulated a neo-indigenist policy compatible with

neoliberal reforms,which allowed preserving the processes of capitalist accumulation in the

rural sector. This policy had as its axis the adoption of multiculturalism as the State’s

dominant discourse and apparatus of power, while incorporating the participation of

indigenous representatives in its management. Thus, it contributed to the dismantling of the

rebellious contents present in the indigenous discourse, transforming some of its

representatives’ expectations and profile.

Finally, in the context of the neo-developmentalist pattern that the Ecuadorian State assumed

over the last decade (during the Correa administration), which promotes the extraction of

natural resources and the expansion of agribusinesses, this thesis analyzes the conflicts

presented by the indigenous movement in order to defend their territories and food

sovereignty. The Ecuadorian State´s new modalities of administration of the indigenous issues

have negatively modified the sense of constitutional recognition of the pluri-national State. It

reflects on how these policies degraded the senses and the contents of the pluri-nationality,

which has been defended by the indigenous movement in what refers to the indigenous

organization as a political subject, as well as to the autonomy and self-determination of

indigenous groups and nationalities. This process opened a new relational field of coercion

and resistances.

Keywords: Indigenous movement, State, multiculturalism, Plurinational State, Ecuador.

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RESUMEN

Esta tesis aborda la relación del Estado con el movimiento indígena en el Ecuador a partir del

ciclo de luchas iniciado en 1990. Traza la historia de los procesos organizativos y políticos del

movimiento indígena que derivaron en el levantamiento indígena nacional de 1990. En un

período caracterizado por una aguda crisis económica e una fuerte inestabilidad política

durante la década de 1990 y los primeros años de este siglo, este estudio argumenta que frente

a la irrupción del movimiento indígena en la arena política nacional con su propia voz y

discurso político, el Estado ecuatoriano abrió un conjunto de espacios y concesiones para las

demandas indígenas y articuló una política neoindigenista compatible con las reformas

neoliberales, la cual permitió preservar los procesos de acumulación capitalista en el campo.

Esta política tuvo como eje articulador la adopción por el Estado del multiculturalismo como

discurso dominante y dispositivo de poder, al mismo tiempo que incorporó la participación de

representantes indígenas en su gestión. Contribuyó así para el desmontaje de los contenidos

contestatarios presentes en el discurso indígena, transformando las expectativas y el perfil de

algunos de sus representantes.

En el contexto del patrón neodesarrollista asumido por el Estado ecuatoriano en la última

década (durante el gobierno de Correa) que promueve la extracción de recursos naturales y la

expansión de los agronegocios, este trabajo analiza los conflictos presentados con el

movimiento indígena por la defensa de sus territorios y la soberanía alimentaria. Las nuevas

modalidades de administración de la cuestión indígena por el Estado modificaran

negativamente el sentido del reconocimiento constitucional del Estado plurinacional.

Comprende que estas políticas degradaron los sentidos y los contenidos de la

plurinacionalidad defendida por el movimiento indígena, en lo que se refiere a la organización

indígena en su calidad de sujeto político, así como a la autonomía y autodeterminación de los

pueblos y nacionalidades. Este proceso abrió un nuevo campo relacional de coerción y

resistencias.

Palabras clave: Movimiento indígena, Estado, multiculturalismo, Estado plurinacional,

Ecuador.

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LISTA DE SIGLAS

ANP – Áreas Naturais Protegidas

BEDE – Banco Ecuatoriano de Desarrollo

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

CEDHU – Comisión Ecuménica de Derechos Humanos

CEDOC – Central Ecuatoriana de Organizaciones Clasistas

CEDOC - Central Ecuatoriana de Obreros Católicos

CEDOC–CLAT – Central Ecuatoriana de Organizaciones Clasistas - Central

Latinoamericana de Trabajadores.

CEDOCUT – Confederación Ecuatoriana de Organizaciones Clasistas Unitaria de

Trabajadores

CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

CESA – Central Ecuatoriana de Servicios Agrícolas

CIDA – Comité Interamericano de Desarrollo Agrícola

CODENPE – Consejo de Desarrollo de las Nacionalidades y Pueblos del Ecuador

COICE – Coordinación de Organizaciones Indígenas de la Costa Ecuatoriana

CMS – Coordinadora de Movimientos Sociales

COMPLADEIN – Consejo de Planificación y Desarrollo de los Pueblos Indígenas y Negros

CONACNIE – Consejo Nacional de Coordinación de las Nacionalidades Indígenas del

Ecuador

CONAICE – Confederación de Nacionalidades y Pueblos Indígenas de la Costa Ecuatoriana

CONAIE – Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador

CONFENIAE – Confederación de Nacionalidades Indígenas de la Amazonia Ecuatoriana

CONFEUNASC – Confederación Única Nacional de Afiliados al Seguro Social Campesino

COPISA – Conferencia Plurinacional e Intercultural de Soberania Alimentaria

CREA – Centro de Reconversión Económica del Azuay, Cañar y Morona Santiago

CRCC – China Railways Construction Corporation

CTE – Confederación de Trabajadores del Ecuador

DINEIB – Dirección Nacional de Educación Intercultural Bilingüe

DRI – Desenvolvimento Rural Integrado

ECUARUNARI – Movimento Campesino Indígena Ecuador Runakunapak Rikcharimuy

ECUARUNARI – Confederación de Pueblos de la Nacionalidad Kichwa del Ecuador

ENAC – Empresa Nacional de Abastecimento e Comercialização

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EUA – Estados Unidos da América

FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia

FCUNAE – Federación de Comunas Unión de Nativos de la Amazonía Ecuatoriana

FECIP – Federación de Centros Indígenas de Pastaza

FEDEPICNE – Frente de Defensa de los Pueblos Indígenas, Campesinos y Negros del

Ecuador

FEI – Federación Ecuatoriana de Indios

FEINE – Consejo Ecuatoriano de Pueblos y Organizaciones Indígenas Evangélicos

FENACLE – Federación Nacional de Trabajadores Agroindustriales, Campesinos e

Indígenas Libres del Ecuador

FENOC – Federación Nacional de Organizaciones Campesinas

FENOC–I – Federación Nacional de Organizaciones Campesinas e Indígenas

FENOCIN – Federación Nacional de Organizaciones Campesinas, Indígenas y Negras

FEPOCAN – Federación Provincial de Organizaciones Campesinas de Napo

FEPP – Fondo Ecuatoriano Populorum Progressio

FERTISA – Empresa de Fertilizantes do Estado

FESE – Federación de Estudiantes Secundarios del Ecuador

FETAP – Federación de Trabajadores Agropecuarios

FETRAPEC – Federación de Trabajadores Petroleros del Ecuador

FICSH – Federación Interprovincial de Centros Shuar

FIDA – Fondo Interamericano de Desenvolvimento Agrícola

FIDH – Federação Internacional de Direitos Humanos

FLACSO – Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais

FMI – Fundo Monetário Internacional

FODEPI – Fondo de Desarrollo de los Pueblos Indígenas

FOIN – Federación de Organizaciones Indígenas del Napo

FOISE – Federación de Organizaciones Indígenas de Sucumbíos del Ecuador

FONAKIN – Federación de Organizaciones de la Nacionalidad Kichwa del Napo

FORMIA – Proyecto de Apoyo al Fortalecimiento de los Municipios Alternativos

FULCI – Frente Único de Lucha Campesina Indígena

FUT – Frente Unitario de Trabajadores

IDEA – Instituto de Estrategias Agropecuarias

IERAC – Instituto Ecuatoriano de Reforma Agraria y Colonización

IIRSA – Iniciativa para la Integración de la Infraestructura Regional Suramericana

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ILV – Instituto Lingüístico de Verano

INCRAE – Instituto Nacional de Colonización de la Región Amazónica Ecuatoriana

INDA – Instituto Nacional de Desarrollo Agrario

INIAP – Instituto Nacional Autónomo de Investigaciones Agropecuarias

INREDH – Fundación Regional de Asesoría en Derechos Humanos

ITT – Ishpingo Tambococha Tiputini

IULA – Unión Internacional de Autoridades Locales

LORSA – Ley Orgánica del Régimen de Soberania Alimentaria

MAG – Ministerio de Agricultura y Ganadería

NAFTA – Tratado Norte-Americano de Livre Comércio

OSG – Organizações de Segundo Grau

OMC – Organização Mundial de Comércio

ONG – Organizações Não Governamentais

ONGD – Organizações Não Governamentais de Desenvolvimento

OPIP – Organización de Pueblos Indígenas de Pastaza

OIT – Organização Internacional do Trabalho

OXI – Occidental Exploration and Production Company

PCE – Partido Comunista do Equador

PEA – População Economicamente Ativa

PREDESUR – Programa Regional para el Desarrollo del Sur del Ecuador

PRODEPINE – Proyecto de Desarrollo de los Pueblos Indígenas y Negros del Ecuador

PRODECO – Proyecto de Desarrollo Rural en la Provincia de Cotopaxi

RIAD – Red Interamericana de Agriculturas y Democracia

SEDRI – Secretaria de Desarrollo Rural Integral

SENPLADES – Secretaria Nacional de Planificación y Desarrollo

SIPAE – Sistema de Investigación sobre la Problemática Agraria en el Ecuador

TLC – Tratado de Livre Comércio

UBA – Universidad de Buenos Aires

UFBA – Universidade Federal da Bahia

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNILA – Universidade Federal da Integração Latino–Americana

USAID – Agência dos Estados Unidos para o desenvolvimento Internacional

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LISTA DE TABELAS E FIGURAS

Tabela 1: Equador: evolução do número e da área dos estabelecimentos agropecuários por

categoria de tamanho (1954-2000) ........................................................................................122

Tabela 2: Territórios Indígenas (TI) da Região Amazônica Equatoriana (RAE)

em 2014..................................................................................................................................142

Anexo 1: Mapa físico do Equador..........................................................................................282

Anexo 2: Mapa Político do Equador.......................................................................................283

Anexo 3: Territórios das Nacionalidades indígenas equatorianas.........................................284

Anexo 4: Área dos Territórios indígenas na Região Amazônica Equatoriana........................285

Anexo 5: Mandato por la defensa de la vida y los derechos de las nacionalidades

Indígenas….............................................................................................................................286

Anexo 6: Mapa de ubicação dos megaprojetos de mineração................................................288

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16

1.1 OS OBJETIVOS DO ESTUDO ......................................................................................... 18

1.2 ESTRATÉGIAS E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ................................................. 19

1.3 A LINHA INTERPRETATIVA E A ESTRUTURA PROPOSTA DA TESE .................. 22

2 MOBILIZAÇÃO INDIA E ARTICULAÇÃO PELO ESTADO DE UMA POLITICA DE

ADMINISTRAÇÃO DA POPULAÇÃO INDIGENA ............................................................ 27

2.1 O CICLO DE PROTESTOS INDÍGENAS E AS RESPOSTAS DO ESTADO ............... 27

2.2 INTERPRETAÇÕES DO PROCESSO POLÍTICO DO MOVIMENTO INDÍGENA E

SUA RELAÇÃO COM O ESTADO EQUATORIANO ......................................................... 33

2.3. O NEOLIBERALISMO COMO FASE DE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E

COMO RACIONALIDADE .................................................................................................... 49

2.4 ENLACE CONCEITUAL: Hegemonia, Estado ampliado, governamentalidade e

biopolítica ................................................................................................................................. 60

2.5 O MULTICULTURALISMO COMO DISCURSO DOMINANTE E DISPOSITIVO

BIOPOLÍTICO NA GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL ...................................... 74

3 O MOVIMENTO INDÍGENA EQUATORIANO: História e processos organizativos ....... 83

3.1 TRANSFORMAÇÕES AGRÁRIAS, LUTAS E PROCESSO ORGANIZATIVO DO

CAMPESINATO INDÍGENA NAS COMUNIDADES DA REGIÃO INTERANDINA ...... 85

3.2 REIVINDICAÇÕES TERRITORIAIS E PROCESSO ORGANIZATIVO NAS

NACIONALIDADES AMAZÔNICAS ................................................................................. 128

3.3 O PROCESSO DE CONFLUÊNCIA ORGANIZATIVA INTER-REGIONAL E A

FORMAÇÃO DA CONAIE ................................................................................................... 143

3.4 O LEVANTAMIENTO INDÍGENA DE JUNHO DE 1990: Algumas reflexões em torno do

seu significado político ........................................................................................................... 154

4. CATIVANDO O MOVIMENTO INDIGENA: A articulação da política de administração

da população indígena no Estado neoliberal .......................................................................... 162

4.1 O ENTERRO DA REFORMA AGRÁRIA EQUATORIANA: O processo de negociação

da “Lei de Desenvolvimento Agrário” em 1994 .................................................................... 164

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4.2 A PROPOSTA DO ESTADO PLURINACIONAL E A APROVAÇÃO DOS DIREITOS

COLETIVOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1998: A sedução do movimento indígena sob o

multiculturalismo na governamentalidade neoliberal ............................................................. 175

4.3 A INCORPORAÇÃO DE REPRESENTANTES INDÍGENAS NO ESTADO

NEOLIBERAL: A institucionalidade indígena no aparelho do estado e os projetos de

desenvolvimento indígena ...................................................................................................... 183

4.4 A CRIAÇÃO DE PACHAKUTIK COMO MOVIMENTO POLÍTICO E A

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ELEITORAL DO MOVIMENTO INDÍGENA .................... 197

4.5 A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA INDÍGENA NA GESTÃO DO ESTADO

NEOLIBERAL NO GOVERNO DE LUCIO GUTIÉRREZ ................................................. 207

5 NEODESENVOLVIMENTISMO E CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA NO GOVERNO

CORREA: A degradação do estado plurinacional e a conflitiva relação com o movimento

indígena .................................................................................................................................. 215

5.1 O FIM DA LONGA NOITE NEOLIBERAL? A ASCENSÃO DO GOVERNO DE

RAFAEL CORREA, MUDANÇAS CONSTITUCIONAIS E RELAÇÃO COM O

MOVIMENTO INDÍGENA. .................................................................................................. 215

5.2 MODERNIZAÇÃO CAPITALISTA E O PROJETO NEODESENVOLVIMENTISTA

DA REVOLUÇÃO CIDADÃ ................................................................................................ 220

5.3 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA E A APROPRIAÇÃO DE

ELEMENTOS SIMBÓLICOS E DISCURSIVOS DO MOVIMENTO INDÍGENA E DAS

LUTAS CONTRA O NEOLIBERALISMO: O exemplo do Bem-Viver e do Yasuni. ......... 227

5.4 O ESTADO PLURINACIONAL DEGRADADO ........................................................... 232

5.5 MEGAMINERAÇÃO, TERRA, ÁGUA E SOBERANIA ALIMENTAR: Eixos do

confronto e de construção dos sujeitos perigosos “fantasiados de ancestrais”....................... 238

6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 244

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 254

ANEXOS ................................................................................................................................ 282

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16

1 INTRODUÇÃO

Na América do Sul os processos políticos protagonizados pelos movimentos indígenas

do Equador e da Bolívia constituem os casos mais emblemáticos das lutas e conquistas

alcançadas pelos movimentos indígenas e camponeses em sua relação com os Estados

Nacionais. O objeto desta pesquisa que ora apresento é precisamente a relação do Estado

equatoriano com o movimento indígena durante as três últimas décadas, a partir da irrupção

do movimento indígena na arena política nacional e do ciclo de protestos e lutas iniciado em

1990. Este estudo foca assim na análise das políticas direcionadas para os povos indígenas e

das transformações operadas pelo Estado equatoriano diante das demandas e reivindicações

levantadas pelo movimento indígena, bem como das mudanças geradas no próprio movimento

indígena, nas suas lutas e no seu discurso político como consequência dessa relação

estabelecida com o Estado e suas políticas.

Em junho de 1990, no Equador, o movimento indígena protagonizou uma enorme

mobilização e protesto batizado pela CONAIE1 (a maior organização indígena do Equador)

como o primeiro “levantamiento indígena nacional”. Desde então, a palavra levantamiento

que relembra as sublevações indígenas durante a colônia espanhola ou na República no século

XIX se integraria ao léxico político equatoriano contemporâneo e no imaginário coletivo para

se referir aos protestos indígenas de dimensão nacional, com ocupações dos espaços públicos

e com capacidade de parar o país2.

No entanto, o levantamiento indígena de 1990 não trouxe somente novas palavras com

dimensões simbólicas e ideológicas em torno das quais o movimento construiria seu discurso

político. Significou fundamentalmente, a irrupção do movimento indígena com sua própria

voz e discurso político na arena política nacional e o início de um ciclo de protestos que

ultrapassariam toda a década dos anos noventa, colocando a questão étnica no debate nacional

e no centro da relação entre o movimento indígena e o Estado. Ao situar como ponto central

de suas demandas o reconhecimento constitucional do Equador como um “Estado

plurinacional e intercultural” e os direitos dos povos e nacionalidades indígenas, o movimento

indígena confrontou os fundamentos da estruturação política do Estado equatoriano. Ao

mesmo tempo, interpelou as noções de cidadania constituídas no ordenamento simbólico da

sociedade nacional a partir da existência de uma fronteira étnica como matriz binária de

classificação social que estabelecia a diferença como inferioridade e, consequentemente,

1 Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador

2 Sobre a conotação da palavra levantamiento recunhada pela CONAIE ver Guerrero, 1995.

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legitimava a dominação da população indígena pela cidadã branco-mestiça (GUERRERO,

1998).

Embora o levantamiento de 1990 e as posteriores mobilizações indígenas tenham

colocado num primeiro plano a questão étnica no país, essas demandas étnicas com

frequência misturavam-se aos conteúdos classistas, geralmente vinculados à condição

camponesa das comunidades indígenas andinas como a resolução de conflitos de terra, de

distribuição da água para irrigação ou com reivindicações mais gerais de vastos setores da

população equatoriana, quando as mobilizações constituíram reações contra as medidas de

“ajuste estrutural da economia”, assumidas em sucessivos governos.

O ciclo aberto desde 1990 de mobilizações e dos levantamientos indígenas tiveram ao

mesmo tempo como cenário de fundo as profundas transformações experimentadas pela

sociedade e o Estado Equatoriano como consequência da aplicação das reformas neoliberais,

sustentadas no Consenso de Washington. Em muitos momentos, o movimento indígena

converteu-se no movimento social mais dinâmico nas lutas de resistência à aplicação de

políticas neoliberais no Equador, levantadas junto com uma diversidade de organizações

sociais e políticas, e uma referência dessas lutas na América Latina.

O Estado equatoriano não foi imune a esse ciclo de lutas indígenas. Pode-se afirmar

que a partir da irrupção do movimento indígena como um novo agente no cenário político

nacional nos anos 1990, o Estado equatoriano redefiniu progressivamente sua relação com os

indígenas, estabelecendo uma série de concessões às demandas indígenas, criando instituições

do Estado orientadas especificamente para os povos e nacionalidades indígenas que

incorporaram a participação de representantes em sua gestão, incluindo o reconhecimento de

direitos coletivos dos povos e nacionalidades indígenas na Constituição aprovada em 1998 ou

mesmo assumindo a declaratória do Equador como um Estado “plurinacional e intercultural”

na nova Constituição do ano 2008, sob o governo de Correa.

No contexto da instauração de reformas neoliberais e das mudanças acontecidas no

modelo de acumulação capitalista no campo equatoriano, produzidas precisamente durante a

década de 1990, as quais aprofundaram a desigualdade social, surgem algumas questões

centrais que abordarei nesta tese em torno da relação do Estado com o movimento indígena, a

partir do levantamiento de 1990. Estas são: a) Qual foi o caráter das respostas geradas pelo

Estado equatoriano para os indígenas até o momento atual, como consequência da presença

política do movimento indígena na arena política nacional e qual foi a profundidade que essas

respostas alcançaram no que diz respeito a uma maior justiça social, igualdade, acesso a

recursos produtivos, eliminação das formas de discriminação étnica, participação social e

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política, reconfigurando as modalidades de dominação étnica e de classe? b) Essas respostas

têm sido compatíveis com as mudanças decorrentes das reformas neoliberais? c) Qual é o

grau de coerência desenvolvido no tempo por essas respostas para que elas possam ser

consideradas como uma política de Estado para a população indígena e não somente como

respostas conjunturais de um ou outro governo? d) Ligada à anterior, quais foram as

continuidades e quais as mudanças que se produziram nessa política a partir do projeto

neodesenvolvimentista assumido pelo Estado equatoriano após o ano 2007 com o governo de

Correa?

De outro lado, ao pensar nas respostas do Estado diante das demandas e da

mobilização indígena, interessa em paralelo discutir quais foram as mudanças que a própria

relação com o Estado e com suas políticas provocaram no movimento indígena, em seu

discurso político, nas suas lutas e no perfil de seus representantes. Este aspecto é

particularmente relevante ao levar em consideração o fato que desde a segunda metade da

década dos anos noventa até a atualidade, várias lideranças do movimento indígena

alcançaram cargos de representação política por eleição democrática em governos locais

(Municípios, Províncias), na legislatura em nível nacional (Congresso Nacional, Assembleias

Constituintes de 1998 e 2008, Assembleia Nacional) e também ocuparam altos cargos em

Ministérios nomeados pelo poder executivo em diversos governos.

Esta tese desenvolve uma linha interpretativa em torno de todas estas questões.

Baseada numa primeira aproximação da temática realizada na minha dissertação do mestrado

na FLACSO Equador, esta tese discute a relação entre o Estado e o movimento indígena

durante as três últimas décadas, desentranhando a complexa trama resultante das lutas

indígenas e camponesas, do desenvolvimento de políticas neoindigenistas compatíveis com as

políticas neoliberais por parte do Estado equatoriano sob o guarda-chuva do

multiculturalismo, da participação política do movimento indígena, da construção e

desdobramentos do discurso político indígena derivado dessa relação com o Estado e das

transformações operadas nos últimos anos com o projeto neodesenvolvimentista assumido

pelo Estado equatoriano.

1.1 OS OBJETIVOS DO ESTUDO

Esta pesquisa teve como objetivo central analisar e interpretar a relação entre o Estado

equatoriano e o movimento indígena durante as três últimas décadas, a partir dos processos de

organização, mobilização e construção de um discurso político do movimento indígena e das

respostas e políticas desenvolvidas progressivamente pelo Estado equatoriano para as

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populações indígenas, no contexto da implantação das reformas neoliberais e do processo de

desenvolvimento capitalista no campo. Interessa assim, desenvolver uma linha interpretativa

que permita compreender como as duas partes foram mutuamente atingidas e transformadas

na sua relação, por um lado o Estado equatoriano e suas políticas para os indígenas, e por

outro lado o movimento indígena no seu processo político.

Este objetivo central se desdobrou em três objetivos específicos:

1. Caracterizar e identificar os elementos de coerência e de articulação presentes nas

respostas e políticas desenvolvidas pelos distintos governos para os povos e nacionalidades

indígenas, no período de recorte da pesquisa (1990-2017).

2. Identificar os elementos de continuidade ou de ruptura na política neoindigenista de

administração da população indígena desenvolvida pelo Estado equatoriano, a raiz do projeto

neodesenvolvimentista assumido pelo governo equatoriano durante a gestão do governo de

Correa (2007-2017).

3. Interpretar o processo político e de transformações internas do movimento indígena

durante as três últimas décadas no que diz respeito a suas lutas, seu discurso político e o perfil

de seus representantes e lideranças, como consequência de sua relação com o Estado e sua

participação política, tanto nos âmbitos locais como nacionais.

1.2 ESTRATÉGIAS E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA

A pesquisa iniciou-se com o aprofundamento e aprimoramento da reflexão teórica a

partir dos delineamentos colocados no projeto de pesquisa. Isso contribuiu na definição da

linha argumentativa da tese com a perspectiva teórica adotada no campo de confluência dos

conceitos de governamentalidade e biopolítica em Foucault e de hegemonia e Estado

ampliado em Gramsci, para a interpretação do processo político equatoriano e da relação do

Estado com o movimento indígena durante as três últimas décadas. Outro campo abordado de

análise e discussão teórica foi em torno dos debates sobre o neoliberalismo e a caracterização

do momento político pelo qual atravessava América Latina, na perspectiva de avançar com

uma adequada caracterização do processo político desenvolvido no Equador após o giro

neodesenvolvimentista assumido pelo governo de Correa desde 2007, que marca diferenças

com o período anterior. A noção de padrão de desenvolvimento capitalista me permitiu

estabelecer a continuidade e as inflexões produzidas entre o período das reformas neoliberais

e o projeto neodesenvolvimentista do último período. Paralelamente, se desenvolveu uma

recopilação e revisão bibliográfica pormenorizada da literatura acadêmica produzida nos

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20

últimos 30 anos sobre o movimento indígena e sobre as políticas e programas do Estado

equatoriano para os povos e nacionalidades indígenas.

Dada a magnitude do período analisado, a partir da literatura especializada e de

algumas das entrevistas com lideranças indígenas levantadas, selecionei alguns momentos

chaves da história recente do Equador que foram protagonizados pelo movimento indígena,

seja em termos da sua relevância para a adoção de determinados delineamentos nas políticas

públicas, seja nas mudanças provocadas na legislação ou pela magnitude e peso político dos

levantamientos indígenas. Entre eles pode se destacar os levantamientos indígenas de 1990 e

de 1994, nos quais encontramos claramente a conjunção de conteúdos étnicos e classistas nas

demandas, os momentos de adoção de mudanças constitucionais nos quais se reconheceram

os direitos coletivos dos povos e nacionalidades indígenas (Assembleia Constituinte de 1998)

ou se assumiu o caráter plurinacional do Estado Equatoriano (Assembleia Constituinte de

2008), a participação política do movimento indígena no governo de Gutiérrez (no primeiro

semestre de 2003), as mobilizações realizadas pelo movimento indígena nos anos 2010, 2012,

2014 e 2015, em vista das novas leis de mineração, água e a proposta de lei de terras, no

governo de Correa. A intenção de selecionar esses momentos chaves obedeceu ao fato que

estes condensam discursos, significações e posições de distintos setores em torno da questão

indígena e camponesa e da relação do movimento indígena com o Estado equatoriano. Nesse

sentido, realizou-se um levantamento das matérias da imprensa publicadas nesses momentos,

principalmente dos maiores jornais de circulação nacional de Quito e Guayaquil (El

Comercio, Hoy, El Universo, El Telégrafo), das declarações dos protagonistas, das

publicações das organizações, as quais constituem um valioso material para uma releitura dos

processos políticos vivenciados pelo movimento indígena em sua relação com o Estado.

Também é necessário destacar que a leitura que faço nesta tese dos processos políticos

do movimento indígena se alimenta de uma relação e de um conhecimento direto deles,

devido a minha experiência profissional e acadêmica prévia a esta pesquisa, na qual mantive

uma relação muito próxima com diversos setores dentro do movimento indígena em nível

local e nacional. Por vários anos desenvolvi um trabalho com comunidades e organizações

indígenas equatorianas em diferentes localidades da Serra equatoriana e em âmbito nacional,

vinculado com entidades de desenvolvimento e com redes de discussão, das quais

participavam lideranças das organizações indígenas e camponesas e organizações não

governamentais (ONG) sobre políticas agrárias e sobre a participação das organizações

indígenas nos governos locais.

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21

De outro lado, durante o período da pesquisa, em sucessivas viagens para o Equador,

levantei informação de campo qualitativa com informantes qualificados chaves, como

lideranças, representantes e autoridades locais indígenas, pesquisadores e ativistas

conhecedores dos processos, por meio de entrevistas em profundidade. Assim, foram

realizadas 20 entrevistas, das quais 13 foram com lideranças indígenas homens e mulheres de

Serra e da Amazônia de nível nacional e local, que tiveram e têm até hoje papeis destacados

no processo organizativo e político do movimento indígena, assumiram diversos cargos em

distintos governos e que refletem diversas tendências e posições dentro do movimento

indígena. Complementarmente, as entrevistas com pesquisadores e ativistas vinculados aos

processos políticos diretamente relacionados com o movimento indígena contribuíram

significativamente para minha compreensão do processo político dos últimos anos no país

com o governo Correa. Dessa forma, todas as entrevistas contêm importantes percepções

sobre os processos do movimento indígena e as políticas de Estado. Minha trajetória e relação

anterior com o movimento e suas organizações na esfera nacional e local facilitaram os

contatos e criaram um ambiente de confiança para a discussão de temas polêmicos. O trabalho

de campo também incluiu visitas às comunidades em várias Províncias andinas e a

participação como observador em uma oficina nacional com lideranças intermediárias, sobre a

conjuntura vinculada aos debates da nova legislação sobre terras e sobre o impacto para a

produção camponesa da legislação (leis e regulamentos) criada com a proposta de mudança da

matriz produtiva promovida pelo governo Correa.

Durante o curso de doutorado na UFBA iniciado em 2012, cursei todas as disciplinas

obrigatórias e quatro disciplinas optativas, as quais contribuíram com subsídios no meu

processo de reflexão teórica e para a discussão dos processos políticos latino-americanos em

uma perspectiva comparada, além de me permitir precisar e focar melhor o objeto de minha

pesquisa. O processo de reflexão teórica3 e distintas aproximações ao meu objeto de pesquisa

concretizaram-se inicialmente na produção de artigos e trabalhos apresentados em vários

eventos e congressos internacionais (no Brasil, Argentina e Equador), nos quais tive a

oportunidade de partilhar e debater com vários colegas e pesquisadores latino-americanos os

avanços de meu trabalho, além do momento político na América Latina e no Equador e a

situação dos movimentos sociais, especialmente os movimentos camponeses e indígenas.

3 Além dos trabalhos em seguida mencionados diretamente vinculados com minha pesquisa, como parte do

processo de reflexão teórica do curso de doutorado escrevi o artigo “Classes sociais no papel, classes

mobilizadas e lutas pela classificação em Pierre Bourdieu: uma discussão em diálogo com o fazer-se da classe de

E. P. Thompson” publicado na revista Prelúdios (LARREA, 2015a) e no livro epistemologia e metodologia em

Ciências Sociais (LARREA, 2015b).

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Assim, em maio de 2014 em Salvador, no seminário “Estado, movimentos contestatórios e

comportamento político” organizado pelo grupo de pesquisa “hegemonia e contrahegemonia”

apresentei uma primeira discussão teórica sobre: “as noções de hegemonia em Gramsci e de

biopolítica em Foucault para a análise da relação Estado–movimentos sociais na América

Latina”. Posteriormente em novembro de 2014, participei nas “IV Jornadas Internacionais de

Problemas Latino-Americanos” organizadas pela Universidade Federal da Integração Latino-

Americana (UNILA), em Foz do Iguaçu com a apresentação do artigo: “Domesticando o

movimento indígena: o multiculturalismo no Equador neoliberal”. Em julho de 2015 em

Buenos Aires, nas XI Jornadas de Sociologia da Universidad de Buenos Aires (UBA),

apresentei o trabalho “Lo étnico y lo campesino en las interpretaciones del proceso político y

las luchas del movimiento indígena en el Ecuador”. Além disso, participei no “III Congreso

Latinoamericano y Caribeño de Ciencias Sociales” realizado em Quito em agosto de 2015,

organizado por FLACSO ECUADOR, com a apresentação do trabalho “Estado y movimiento

indígena en el Ecuador: del multiculturalismo neoliberal al Estado plurinacional

degradado”, trabalho que sintetiza a linha interpretativa da minha pesquisa. Devo sublinhar

que a partir de Agosto de 2014 optei por uma bolsa de doutorado outorgada pela Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), a qual tem me permitido trabalhar com

dedicação exclusiva na minha pesquisa desde então.

1.3 A LINHA INTERPRETATIVA E A ESTRUTURA PROPOSTA DA TESE

Transcorridos mais de 25 anos desde o primeiro levantamiento indígena nacional de

1990 que colocou o movimento indígena na arena política nacional e redefiniu os termos de

sua relação com o Estado equatoriano, este estudo interpreta as políticas específicas

desenvolvidas para os indígenas, incluindo as mudanças constitucionais que reconheceram

direitos coletivos para os povos e nacionalidades indígenas e o caráter plurinacional e

intercultural do Estado equatoriano, bem como o processo político de transformações do

movimento, marcado pela redefinição de sua relação com o Estado e a participação política.

Traça um percurso por alguns momentos marcantes da história política recente equatoriana

para reconstruir o processo político e os eixos em torno dos quais se redefine a relação do

Estado equatoriano e o movimento indígena.

No contexto das reformas neoliberais e da aguda crise econômica e política pela qual

atravessou o Equador durante a década de 1990 e os primeiros anos deste século, a tese tenta

contribuir com uma linha crítica de interpretação das políticas estatais para a população

indígena e dos processos de lutas e resistências vivenciados pelos movimentos indígenas no

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neoliberalismo, a partir do caso do Equador. Assim, desenvolve-se uma argumentação

construída com uma sustentação empírica consistente, no sentido de que o Estado

equatoriano, diante dos processos de mobilização indígena gerou uma série de respostas

direcionadas para as populações indígenas para evitar a ameaça que o movimento indígena

representava para os processos de acumulação e desenvolvimento capitalista no campo

equatoriano. Dessa forma, por meio de distintos mecanismos, o Estado articulou

progressivamente uma política neoindigenista coerente e compatível com a racionalidade

neoliberal, política que incorpora a participação de representantes indígenas em sua gestão.

Na perspectiva desta pesquisa, trata-se de uma política de administração de populações, de

uma biopolítica, que toma como sujeito e objeto dela a população indígena: como objeto na

medida em que a população indígena é o alvo para o qual esta política esta direcionada para

obter determinados efeitos, e como sujeito, no sentido que modela seus comportamentos,

incorpora sua participação ativa e constrói uma subjetividade. Esta linha de interpretação das

políticas do Estado para os indígenas, articuladas como estratégias de conjunto para a

administração da questão étnica e da diferença cultural, orienta-se numa perspectiva teórica

que retoma as categorias de governamentalidade e biopolítica desenvolvidas por Foucault e de

hegemonia e Estado ampliado de Gramsci, como será abordado no primeiro capítulo.

A estrutura analítica proposta para desenvolver esta tese contém quatro capítulos. O

capítulo primeiro visa estabelecer algumas premissas necessárias para minha argumentação e

discutir algumas das categorias teóricas centrais que orientam minha pesquisa. Inicialmente,

introduz a temática abordada nesta tese a partir de uma breve descrição do ciclo de protestos

levantados pelo movimento indígena desde 1990 e das respostas gerais do Estado diante da

irrupção indígena, no contexto do processo político equatoriano. Seguidamente, discute

criticamente as principais interpretações presentes na literatura acadêmica sobre o processo do

movimento indígena equatoriano e sua relação com o Estado, em torno de alguns eixos de

debate de relevância para este trabalho, tais como a relação etnicidade-classe, a compreensão

de uma cidadania étnica e seu vínculo com o reconhecimento de direitos coletivos pelo Estado

e a relação entre os processos de mobilização indígena e o neoliberalismo. Na terceira parte

do capítulo se apresentam os sentidos com os que se aborda o neoliberalismo nesta tese e os

alcances e implicações decorrentes de compreendê-lo como uma fase de desenvolvimento do

capitalismo em escala global e como uma racionalidade governamental. Esta discussão é

particularmente relevante para caracterizar adequadamente as continuidades e mudanças

operadas como consequência dos processos neodesenvolvimentistas impulsionados nos

últimos anos por alguns governos latino-americanos e pelo governo de Correa no Equador.

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Posteriormente, abordo a discussão teórica acerca da complementariedade das noções de

governamentalidade e biopolítica em Foucault e de hegemonia e Estado ampliado em

Gramsci, que orientam minha intepretação da relação entre o Estado e o movimento indígena

no Equador. Finalmente, vinculo essa discussão com o debate sobre o multiculturalismo para

passar a compreendê-lo como discurso dominante e dispositivo de poder para a gestão da

diversidade cultural na governamentalidade neoliberal e esboço os eixos que estruturaram a

política de administração da população indígena no Equador.

O segundo capítulo procura reconstruir alguns dos principais antecedentes históricos

prévios a 1990 que contribuíram no processo de formação, consolidação e articulação no

âmbito nacional do movimento indígena equatoriano. Aborda as transformações agrárias e o

processo de desenvolvimento capitalista no campo equatoriano com a consequente

desarticulação dos poderes locais nos quais estava assentado o sistema de dominação étnica,

particularmente da região Interandina. A seguir será descrito o processo organizativo e as

lutas levantadas pelas comunidades andinas nas quais já se combinava uma matriz classista

articulada com a luta pela terra, com uma matriz étnica vinculada à identidade comunitária.

Na sequência, aponta alguns elementos significativos da história da região Amazônica

equatoriana e trata da temática das demandas territoriais e do processo organizativo das

nacionalidades amazônicas. Baseado nos depoimentos das lideranças indígenas de ambas as

regiões levantados no trabalho de campo, se discute o processo de confluência e articulação

nacional das comunidades andinas e amazônicas na formação da CONAIE, os maiores

debates políticos internos presentes nesse momento no movimento e a construção inicial da

ideia de nacionalidades indígenas enquanto mecanismo identificatório e de articulação das

lutas étnicas e classistas numa plataforma reivindicativa comum, que posteriormente se

concretizará na proposta do Estado plurinacional. Este capítulo também discorre sobre o papel

dos agentes externos e do próprio Estado no processo organizativo indígena camponês,

especialmente na formação de federações locais de comunidades como instâncias

intermediárias que cumpriram um papel relevante para a mobilização indígena no

levantamiento nacional de 1990. Finalmente, discutirá este levantamiento como momento

histórico marcante que redefiniu as relações do movimento com o Estado equatoriano e

colocou o movimento como protagonista na arena política nacional.

No capítulo terceiro analiso alguns dos momentos chaves da história política recente

equatoriana, para a configuração da política de administração da população indígena, além do

significado desses momentos na dinâmica do movimento indígena, bem como para suas

distintas tendências internas. Este percurso inicia-se com uma releitura do levantamiento

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indígena de 1994 contra a expedição de uma nova lei agrária, vinculada com as reformas

neoliberais no campo, que culminou com o processo de reforma agrária e garantiu a segurança

fundiária para o desenvolvimento dos agronegócios, delineando os principais conteúdos das

políticas agrárias do Estado até hoje. Esse momento e a posterior negociação do Estado com o

movimento indígena contribuíram na desmontagem dos conteúdos classistas presentes até

esse momento na luta pela terra do movimento, ao mesmo tempo em que abriram o espaço

para o reconhecimento das lideranças e da participação política indígena nos assuntos do

Estado. Em seguida, se discute a proposta do Estado plurinacional como parte do projeto

político da CONAIE e o processo de transformações dessa proposta com a crise política e a

realização da Assembleia Constituinte de 1998 em que se reconheceram direitos coletivos dos

povos indígenas na Constituição. Nesse momento se analisa como operou o multiculturalismo

neoliberal enquanto discurso dominante e dispositivo de poder para cativar o movimento

indígena, deslocar seu discurso político ao âmbito cultural e contribuir na construção de

hegemonia. Vinculado ao tópico anterior, se apresenta o desenvolvimento da

institucionalidade estatal especializada em assuntos indígenas e a incorporação de

representantes indígenas em sua gestão, como um eixo da política neoindigenista.

Posteriormente, se discute o vínculo das federações locais de comunidades com entidades e

projetos de desenvolvimento rural e a incidência dessa relação nas dinâmicas organizativas do

movimento. Também são retratados os processos de participação eleitoral do movimento

indígena com a criação de Pachakutik como movimento político e se tomam alguns exemplos

ilustrativos das experiências de participação indígena na gestão de governos locais, discutindo

algumas tendências clientelísticas diante das organizações indígenas, marcadas por essa

participação e pela lógica eleitoral. Enfim, se aborda a participação indígena em cargos de

alto escalão nos governos de Noboa e Gutiérrez, na primeira metade da década de 2000 e suas

consequências para o movimento.

O capítulo quarto aborda a discussão sobre as mudanças e continuidades na política

de administração da população indígena desde o ano 2007 durante o governo de Correa e seu

projeto neodesenvolvimentista. Esse capítulo parte de uma caraterização das inflexões

produzidas no padrão de desenvolvimento capitalista dos últimos anos que me permite

compreender as diferenças com o período anterior, ainda no contexto da racionalidade da

governamentalidade neoliberal. Logo, se discute o novo cenário de conflitos aberto com o

movimento indígena, como consequência do aprofundamento de uma matriz extrativista

primário-exportadora, que tem significado a expansão do agronegócio, da produção de

petróleo e da megamineração sobre territórios indígenas. No contexto das mudanças na

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relação do Estado com o movimento indígena, se aborda o processo de construção e

consolidação da hegemonia burguesa nos últimos anos e, nesse processo, a apropriação por

parte do governo de Correa de elementos simbólicos e discursivos provenientes das lutas

indígenas e dos movimentos sociais de resistência ao neoliberalismo, como parte de uma

retórica orientada à obtenção de consentimento de amplos setores da população. Relacionado

ao ponto anterior, discutisse o significado do reconhecimento constitucional do Estado

plurinacional e de outras conquistas dos movimentos sociais na Constituição de 2008 e

desenvolvesse a tese da degradação sistemática de seus conteúdos, em referência à noção de

plurinacionalidade defendida pelo movimento indígena. Por fim, se analisa as novas formas

de controle do movimento indígena, a criminalização do protesto e o incremento dos níveis de

coerção, diante das novas lutas de resistência protagonizadas pelo movimento indígena nos

últimos anos.

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2 MOBILIZAÇÃO INDIA E ARTICULAÇÃO PELO ESTADO DE UMA POLITICA

DE ADMINISTRAÇÃO DA POPULAÇÃO INDIGENA

2.1 O CICLO DE PROTESTOS INDÍGENAS E AS RESPOSTAS DO ESTADO

O primeiro levantamiento indígena nacional de junho de 1990 abriu um ciclo de

protestos protagonizado pelo movimento indígena que marcaria toda a década de 1990 e

somente culminaria em janeiro de 2001, com o levantamiento convocado em rejeição às

medidas de ajuste econômico e fiscal tomadas pelo governo de Gustavo Noboa, sob a palavra

de ordem “nada apenas para os índios”4.

Neste ciclo de protestos é possível distinguir uma primeira fase entre 1990 e 1994, na

qual as maiores mobilizações estão estreitamente vinculadas com as lutas pela terra e a

problemática agrária das comunidades indígenas e camponesas da serra equatoriana e com a

demanda de territórios das nacionalidades indígenas da Amazônia equatoriana5. Nesta fase

amadurece a proposta da plurinacionalidade como principal bandeira da CONAIE. Entre as

maiores mobilizações destacam-se o referido levantamiento indígena nacional de 1990, a

marcha protagonizada pela Organización de Pueblos Indígenas de Pastaza (OPIP) da floresta

amazônica para Quito, demandando a demarcação e legalização dos territórios indígenas na

Amazônia em abril de 19926, a mobilização pelos 500 anos de resistência também no mesmo

ano, e o levantamiento indígena e camponês protagonizado em junho de 1994, contra a nova

legislação agrária7 proposta pelo governo de Durán Ballén, que paralisou o país por duas

semanas.

4 Esta palavra de ordem exprimia a conexão do levantamiento e das lutas indígenas com as demandas do

conjunto das classes subalternas diante das medidas neoliberais. Uma descrição deste levantamiento da

perspectiva de alguns de seus protagonistas e analistas encontra-se em Acosta et al (2001). Ver também o

conjunto de artigos da Revista Iconos No. 10 (FLACSO-Ecuador, 2001), publicada por FLACSO. 5 Atravessado latitudinalmente pela Cordilheira dos Andes, por suas características orográficas o território

continental do Equador está dividido em três grandes regiões geográficas: a região Costa (litorânea), a região

Serra ou Interandina e a região Amazônica. Às regiões continentais somam-se a região Insular ou Galápagos,

constituída pelo arquipélago de 13 ilhas grandes que leva este nome. Essas regiões também se diferenciam pelos

diversos padrões de ocupação territorial e econômica constituídos em distintos períodos da história nacional e

por sua diversidade cultural (Ver anexo 1e anexo 2).

No Equador existem 14 nacionalidades indígenas distribuídas nas três regiões do país. A nacionalidade Kichwa

da Serra é a maior em termos de sua população, abrangendo 16 povos. Na região amazônica são dez

nacionalidades e as maiores são a Kichwa da Amazônia e a nacionalidade Shuar. As outras nacionalidades da

Amazônia são: Achuar, Waorani, A´I Cofan, Siona, Secoya, Shiwiar, Andoas e Zápara. Na Costa há quatro

nacionalidades pouco numerosas: Chachi, Tsáchila, Awá, Epera. 6 Esta marcha respaldada pela CONAIE teve como foco as reivindicações territoriais das nacionalidades

amazônicas e obteve como resultado imediato e concreto a demarcação de 1.115.574 hectares para as

comunidades da Província de Pastaza das nacionalidades Kichwa, Achuar, Shiwiar e Shuar (TAMAYO, 1992).

Embora essa marcha não conseguisse o pleno reconhecimento dos direitos territoriais, abriu o caminho para a

demarcação e reconhecimento pelo Estado de 3.959.578 hectares para as nacionalidades amazônicas e do litoral

equatoriano (TIBÁN e GARCIA, 2008). 7 Trata-se da chamada “Lei agrária”, corpo jurídico que terminou com o processo de Reforma Agrária e que

constituiu a ponta de lança das reformas neoliberais no setor rural para favorecer a expansão do agronegócio e os

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Nos anos posteriores os protestos indígenas cobraram novas dimensões e arestas, em

um contexto de progressivo agravamento da situação econômica do país e de aguda crise

política8. Por sua capacidade de mobilização, o movimento indígena, junto com outras

organizações sociais9 articulou em torno de si as lutas de resistência às políticas neoliberais e

de ajuste fiscal, assumidas por distintos governos. Na segunda metade da década dos noventa,

o movimento indígena foi um protagonista central nos sucessivos protestos levantados em

1997, 1998, março e julho de 1999, 2000 e 2001. Por sua magnitude, consequências políticas

ou conquistas alcançadas, entre estes protestos destacam-se o protagonizado em finais de

janeiro e inícios de fevereiro de 1997 que contribuiu para a queda do governo de Abdalá

Bucaram10

, o levantamiento de julho de 1999 obrigou ao governo de Mahuad a recuar na

elevação dos preços dos combustíveis e a encontrar uma saída negociada com o movimento,

assumindo um conjunto de concessões 11

e o levantamiento de janeiro de 2000, no qual foi

ocupado o Congresso Nacional junto com oficiais dissidentes do exército, culminando na

queda do governo de Mahuad12

.

processos de acumulação capitalista no campo (ver Martínez, 2005). Uma análise do levantamiento indígena

contra esta lei e do processo de negociação posterior encontra–se em Guerrero (1995). No capítulo terceiro

aprofundarei a discussão sobre esse momento chave nas relações entre o Estado e o movimento indígena. 8 Como se verá mais adiante (capítulo terceiro) este contexto de crise política e econômica está marcado por uma

crise de hegemonia em que distintas frações das classes dominantes disputavam a direção do conjunto da

sociedade; crise hegemônica que se manifestou na queda dos governos de Abdalá Bucaram em 1997, de Jamil

Mahuad em 2000 e posteriormente de Lucio Gutiérrez, em 2005. Entre 1996 e 2006 o Equador teve sete

presidentes e dos três presidentes eleitos no período, nenhum conseguiu completar seu mandato. 9 No período teve relevância a chamada Coordinadora de Movimientos Sociales (CMS), entidade criada em 1995

no calor dos processos de resistência às políticas neoliberais. A CMS articulava a CONAIE com o então

poderoso sindicato dos trabalhadores petroleiros (Federación de Trabajadores Petroleros del Ecuador

FETRAPEC), com os usuários camponeses do sistema de previdência social (Confederación Única Nacional de

Afiliados al Seguro Social Campesino CONFEUNASC) e com algumas organizações de mulheres e associações

urbanas. 10

Em 11 de janeiro de 1997 as principais organizações indígenas e camponesas junto com as centrais sindicais e

outros movimentos sociais e políticos constituíram o chamado Frente Patriótico como instância de unidade de

ação e assinaram um “Mandato Popular” contra as medidas econômicas e contra o governo de Bucaram e

convocaram um “paro nacional” em 5 de fevereiro, jornada de mobilização nacional que somou adesões dos

mais amplos setores convertendo-se em uma expressão generalizada de descontentamento e catarse coletiva em

repúdio de Bucaram. Como parte das ações de protesto, no dia 29 de janeiro a Coordinadora de Movimentos

Sociais (CMS) ocupou a Catedral em Quito. Sobre a participação do movimento indígena nesse episódio ver

Barrera, 2001; Zamosc, 2005. 11

Após de 12 dias de paralização do país e da presença de milhares de indígenas ocupando as ruas de Quito na

espera de serem recebidos pelo presidente Mahuad, o presidente e parte de seu gabinete admitiram uma

delegação de 50 lideranças indígenas e após uma reunião de quase nove horas alcançaram um acordo que incluía

entre seus principais pontos o congelamento dos preços dos combustíveis e do gás de uso doméstico, o subsidio

das tarifas elétricas para os mais pobres, a liberação progressiva dos depósitos em contas bancárias que tinham

sido retidos para tentar salvar os bancos, entre outros pontos. 12

Esta ação levou à instalação de uma junta de governo (Junta de Gobierno de Salvación Nacional) que teve

uma duração efêmera após pronunciamentos do Alto Comando militar que viabilizaram a sucessão

constitucional assumindo a presidência da república o vice-presidente Gustavo Noboa. Sobre esse momento da

vida política do Equador ver Saltos (2000).

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Neste período, além das mobilizações e protestos com a criação do movimento

político Pachakutik, em 1996, o movimento indígena incorporou como parte de sua ação

política a participação eleitoral na esfera nacional e local. Dessa maneira, em sucessivas

eleições alcançou eleger representantes ao Congresso Nacional (hoje Assembleia Nacional) e

nas Assembleias Constituintes de 1998 e 2008 e venceu em algumas prefeituras e governos

provinciais. A participação institucional no Estado seja na gestão dos governos locais ou dos

representantes indígenas eleitos no poder legislativo, na gestão das entidades criadas pelo

Estado para a atenção aos povos indígenas13

ou em espaços institucionais ocupados por

representantes indígenas nomeados por vários governos, constitui outra das facetas do

processo político do movimento em sua relação com o Estado Nacional, a qual desde 1996 foi

progressivamente alcançando maior relevância, marcando a dinâmica do movimento, os

debates e as disputas entre distintas forças no seu interior, em diversas conjunturas.

Depois do mencionado levantamiento de 2001 no governo de Noboa, os anos

seguintes foram marcados por um declínio das mobilizações indígenas e por uma ampliação

da participação política de representantes indígenas nas entidades do Estado, participação que

alcançou sua maior expressão, após o triunfo nas eleições presidenciais de 2002 de Lucio

Gutiérrez14

em aliança com Pachakutik, quando este movimento assumiu quatro ministérios15

e uma multiplicidade de cargos em distintos escalões da gestão pública local e nacional,

durante os primeiros sete meses do governo de Gutiérrez16

. O declínio das mobilizações

indígenas, somado ao desgaste provocado pela participação política de Pachakutik no governo

de Gutiérrez seria interpretado como um sinal de crise do movimento indígena e como o fim

de um ciclo de protagonismo e mobilização indígena no Equador17

.

13

Refere-se à Dirección Nacional de Educación Intercultural Bilingüe (DINEIB), ao Consejo de Desarrollo de

las Nacionalidades y Pueblos del Ecuador (CODENPE) e à Dirección de Salud de las Nacionalidades y Pueblos

Indígenas adscrita ao Ministerio de Salud. 14

Lucio Gutiérrez liderou a insubordinação dos oficiais do exército no dia 21 de janeiro de 2000, permitindo a

ocupação do Congresso Nacional por parte dos indígenas mobilizados, levando à queda do governo de Mahuad.

Depois de ser anistiado por esta ação, constituiu um partido político (Sociedad Patriótica 21 de Enero) que, em

aliança com Pachakutik, venceu as eleições presidenciais de 2002, tomando posse da Presidência da República

em janeiro de 2003. 15

No primeiro gabinete ministerial do governo de Gutiérrez duas das principais lideranças indígenas, Luis Macas

e Nina Pacari assumiram os Ministérios de Agricultura e de Relações Exteriores, respectivamente. Além disso,

Pachakutik também tinha o Ministério de Educação e o Ministério de Turismo. 16

Em agosto de 2003, produziu-se a ruptura da aliança de Gutiérrez com Pachakutik e a saída dos membros mais

relevantes desse movimento político do governo. 17

Para a discussão sobre a crise do movimento indígena aberta com a participação política no governo de

Gutiérrez ver Zamosc (2005 e 2007); Martínez (2005); Cervone (2009); Ramírez (2009); Ospina (2009). No

capítulo terceiro desta tese retomarei e aprofundarei esta discussão.

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30

Mesmo assim, foi um declínio relativo. Em março de 2006 no governo de Alfredo

Palacio18

novamente o movimento indígena liderou fortes mobilizações nacionais contra a

assinatura do Tratado de Livre Comércio com Estados Unidos, que se encontrava em uma

fase avançada de negociação19

e pela declaratória de caducidade do contrato do Estado

equatoriano com a empresa petroleira estadunidense OXI (Occidental Exploration and

Production Company).

Nos anos seguintes, já no governo de Correa, depois de um primeiro momento

voltado para a discussão de propostas para a Assembleia Constituinte e da aprovação da nova

Constituição em setembro de 2008, na qual se reconheceu o caráter plurinacional do Estado

equatoriano, as tensões e os conflitos do movimento indígena com o governo aumentaram,

como será analisado em detalhe no capítulo quarto. Mesmo num período caraterizado por uma

forte desmobilização social, o movimento indígena protagonizou importantes protestos contra

as propostas do governo de uma lei mineira em 2009 que favoreceu a mineração em grande

escala e contra a proposta de uma nova lei de águas em 2010. Posteriormente, no mês de

março de 2012, liderou a “Marcha plurinacional por la vida, el agua y la dignidad de los

Pueblos” convocada contra a mineração em grande escala, pela defesa da água e contra a

criminalização do protesto social. Esta marcha, a primeira dessas caraterísticas no governo de

Correa, somou adesões pelas distintas cidades do país pelas que passou até sua culminação em

Quito. Igualmente, durante o ano 2014, junto com as maiores centrais sindicais do país

agrupadas no FUT (Frente Unitario de Trabajadores), a CONAIE protagonizou diversas

marchas contra as reformas laborais propostas pelo governo e contra o projeto de lei de terras

(nesse momento em trâmite na Assembleia Nacional). Já em Agosto de 2015, igualmente com

o FUT, a CONAIE liderou uma nova paralização nacional (Paro Nacional), para mostrar a

rejeição a vários encaminhamentos do governo Correa, especialmente contra a assinatura de

um tratado de livre comércio com Europa (assinado em 2016), contra o fechamento das

escolas de educação bilíngue nas comunidades, contra o projeto de lei de terras, em defesa da

previdência social, entre outras razões.

18

Alfredo Palacio (Vice-presidente do governo de Gutiérrez) assumiu a Presidência da República em abril de

2005, após a sucessão constitucional decorrente da queda de Gutierrez, após uma intensa mobilização social

especialmente em Quito. Culminou seu mandato em janeiro de 2007 com a posse de Rafael Correa como novo

presidente constitucionalmente eleito. 19

As negociações do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos foram definitivamente suspensas em

maio de 2006 por uma decisão do governo dos Estados Unidos, diante da posição do governo equatoriano de

Palacio de declarar a caducidade do contrato com a empresa Occidental Petroleum (OXI) e de propiciar a

renegociação dos contratos petroleiros com as empresas transnacionais para ampliar as percentagens de

participação do Estado por meio de uma reforma à Ley de Hidrocarburos.

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31

Como se pode apreciar neste rápido percurso por duas décadas e meia de

mobilizações indígenas, um dos aspectos que caracteriza o protagonismo alcançado pelo

movimento indígena equatoriano na arena política é seu permanente vínculo com o processo

político nacional, além de suas reivindicações específicas para as populações indígenas. Nesse

sentido, para compreender o processo político do movimento e sua relação com o Estado

equatoriano não basta abordar a questão étnica em si mesma, é necessário efetuar uma

travessia que nos permita mergulhar no processo político nacional como um todo,

considerando o cenário de crise econômica e política que marcou boa parte da história recente

do país. Também é preciso compreender os padrões de desenvolvimento assumidos pelo

Estado em distintos momentos e as caraterísticas particulares dos processos de

desenvolvimento e acumulação capitalista no campo, bem como as resistências que eles

geram, propiciando os protestos e as lutas indígenas. Complementarmente, supõe também

refletir sobre o caráter das respostas geradas pelo Estado para as populações indígenas e sua

articulação com as políticas econômicas e sociais nacionais e como elas alcançaram e

condicionaram as dinâmicas do movimento, propiciando sua integração no sistema político. É

esta travessia que tentarei empreender ao longo dos distintos capítulos deste estudo.

No que diz respeito às respostas do Estado diante do processo de mobilização

indígena na década de 1990, Fernando García (2003) considera que o Estado equatoriano

desde o retorno da democracia em 197920

não conseguiu articular, formular e executar una

política pública para os povos indígenas. Para este autor, os distintos “levantamientos” foram

tratados como incêndios esporádicos que deviam ser apagados, como “protestos conjunturais

que se não foram resolvidos pela via da negociação, foram solucionados com o uso da

repressão armada” (GARCÍA, 2003, p. 208). As conquistas do movimento indígena na sua

relação com o Estado foram alcançadas devido à permanência das ações de protesto em

condições de luta política e não como o resultado de negociações e de acordos.

Embora seja verdade que o conjunto de protestos e mobilizações indígenas constitui

um elemento chave sem o qual não é possível entender o peso e o papel político

desempenhado pelo movimento indígena durante as últimas décadas21

e o complexo processo

20

Em 1979, finalizou o processo de retorno à democracia com a posse de Jaime Roldós, eleito como presidente

constitucional do Equador, após quase uma década de ditaduras civis e militares (Velasco Ibarra entre 1970 e

1972, do General Rodríguez Lara de 1972 até 1976 e do triunvirato militar entre 1976 e 1979). 21

O peso político alcançado pelo movimento indígena no Equador a partir da década de 1990 pode ser mais bem

explicado por sua capacidade de mobilização e organização do que pela relevância demográfica da população

indígena que não é muito alta. Baseados em um critério de autoidentificação, os censos nacionais de população

dos anos 2001 e 2010 estimaram a percentagem de população indígena em relação à população total em 6,8% e

7% respectivamente (no censo 2010, 1.018.176 pessoas se autoidentificaram como indígenas, “segundo sua

cultura e costumes”, de uma população total de 14.483.499 habitantes do Equador). Embora os números possam

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de relações com o Estado equatoriano, do meu ponto de vista o Estado equatoriano articulou

progressivamente um conjunto de respostas orientadas para a população indígena, as quais

configuraram uma política coerente e ativa, mesmo que não tinha sido explícita e

unitariamente formulada e reconhecida como tal pelos sucessivos governos.

Em contraste com o afirmado por García, nesta tese argumento que a partir dos

levantamientos e mobilizações protagonizadas pelo movimento indígena e sua irrupção como

um novo agente na arena política nacional na década de 1990, o Estado equatoriano redefiniu

progressivamente sua relação com os indígenas, mesmo com momentos de tropeços, conflitos

e contradições internas, articulando por meio de distintos mecanismos uma política

neoindigenista compatível com o neoliberalismo. Como será desenvolvido mais adiante, trata-

se de uma nova modalidade de “administração de populações”22

(Guerrero, 2010), de uma

biopolítica que tem como eixo a adoção de um multiculturalismo adequado às reformas

neoliberais. Considerados a partir da perspectiva e da forma particular de processamento por

parte do Estado equatoriano, o reconhecimento de uma ampla gama de direitos coletivos para

as nacionalidades e povos indígenas nas reformas constitucionais de 1998 e de 2008 e a

adoção do caráter plurinacional e intercultural do Estado equatoriano (Constituição de 2008)

que constituíram conquistas alcançadas pelo movimento indígena, fazem de fato parte dessa

política, o que significou estabelecer algumas concessões para os indígenas, como resultado

de um processo necessário para a construção de hegemonia.

No presente capítulo, abordo algumas premissas necessárias para desenvolver minha

argumentação e alguns dos elementos teóricos centrais que a orientam. Inicialmente, situo as

discussões e interpretações que estão presentes na literatura acadêmica em torno do processo

político protagonizado pelo movimento indígena e às respostas do Estado, de relevância para

este trabalho. Seguidamente, coloco algumas considerações sobre o neoliberalismo como uma

ter sido subestimados, em todo caso, ela não alcançaria 10% da população, assim, segundo outras estimativas,

em 1990 a população indígena representaria aproximadamente 9,12% (Sánchez-Parga, 1996), em 2001 9,2%

(Larrea et al, 2007). Segundo o mesmo critério de autoidentificação, no censo 2010 7,2% da população se

autoidentificou como afro-equatoriano ou afrodescendente e 7,4% como montubios (camponeses mestiços da

região litorânea que partilham particularidades culturais e históricas). Os dados do censo 2010 estão disponíveis

em: http://www.ecuadorencifras.gob.ec/censo-de-poblacion-y-vivienda/. Acesso em: 25 ago 2016. 22

Andrés Guerrero parte da noção de governamentalidade de Foucault (ver mais adiante) e usa o conceito de

“administração de populações” para caracterizar o sistema de dominação étnica implantado no Equador a partir

de 1857 (Guerrero, 2000; Guerrero, 2010). Para este autor, desde 1857, ano em que o parlamento aprovou a

“igualação legal” dos indígenas diante dos “equatorianos”, produziu-se “uma mudança no sistema de

dominação”: de uma “modalidade explícita de gestão, concentrada nas instituições do Estado”, a uma forma

republicana, na qual “se configura um campo cidadão de exercício do poder sobre os indígenas”, descentrado do

eixo público estatal. Para este autor, trata-se da emergência de uma “esfera privada de dominação étnica”. A

partir desse momento, até a segunda metade do século XX, implantou-se uma formação de dominação de

indígenas “inscrita no sistema cidadão: compatível com seus princípios e suas leis” (GUERRERO, 2000, p. 11-

12). A administração da população pode assumir um caráter privado, como é o caso analisado por Guerrero, ou

público, como uma função atribuída ao Estado (GUERRERO, 2010). Tradução nossa do original em espanhol.

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fase de desenvolvimento do capitalismo a escala global e suas implicâncias em relação ao

Estado e aos processos neodesenvolvimentistas impulsionados nos últimos anos por alguns

governos latino-americanos e pelo governo de Correa no Equador. A discussão teórica central

está focada na complementariedade das noções de governamentalidade e biopolítica em

Foucault e de hegemonia e Estado ampliado em Gramsci, que orientam minha intepretação da

relação entre o Estado e o movimento indígena no Equador. Posteriormente abordo, sob uma

perspectiva crítica, o debate sobre o multiculturalismo para passar a compreendê-lo como

discurso dominante e dispositivo de poder para a gestão da diversidade cultural no

neoliberalismo e esboço os eixos que estruturaram a política de administração da população

indígena no Equador.

2.2 INTERPRETAÇÕES DO PROCESSO POLÍTICO DO MOVIMENTO INDÍGENA E

SUA RELAÇÃO COM O ESTADO EQUATORIANO

O florescimento das demandas étnicas em vários países da América Latina durante as

duas últimas décadas e o surgimento na cena política dos movimentos indígenas com suas

características particulares, gerou no âmbito acadêmico uma grande quantidade de estudos

com uma diversidade de orientações e posições teóricas e políticas. Em termos gerais, na

América Latina e no Equador em particular, boa parte destes estudos procuravam explicar as

condições e motivações que determinaram este surgimento, as transformações agrárias e as

mudanças nas estruturas e relações de poder nos cenários locais que possibilitaram o

surgimento de organizações indígenas como um novo agente social e político23

, os objetivos e

demandas dos movimentos e os processos de construção de identidades coletivas e de

afirmação étnica. Como coloca Martinez Novo (2009), muitos destes estudos apoiavam e

celebravam os movimentos indígenas na sua luta pela democratização de sociedades

caraterizadas por uma profunda exclusão econômica, social e política dos povos indígenas.

Outra das caraterísticas é que boa parte dos trabalhos sobre o movimento indígena no Equador

abordam conjunturas específicas, acontecimentos particulares ou estão referidos a processos

locais. Apesar da abundância de estudos sobre o movimento indígena no Equador, são poucas

as análises que abordam e interpretam seu processo político em termos mais amplos e sua

relação com o Estado24

. Aqui situarei criticamente as principais contribuições dos principais

23

No capítulo segundo abordarei o processo de formação, consolidação e articulação do movimento indígena nos

anos prévios ao levantamiento de 1990, no contexto das transformações agrárias e dos processos de

desenvolvimento capitalista no campo equatoriano, onde retomarei algumas das contribuições mais significativas

destes estudos. 24

Uma síntese dos processos de surgimento e da construção identitária dos movimentos indígenas na América

Latina encontra-se em Bengoa (2007) e Yashar (2005). Para uma revisão geral do conjunto de temas de debate e

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34

estudos e alguns eixos de debate decorrentes deles que são de relevância para este trabalho,

tais como a maneira de entender a relação etnicidade-classe, a compreensão de uma cidadania

étnica e seu vínculo com o reconhecimento de direitos coletivos pelo Estado, a relação que se

estabelece entre os processos de mobilização indígena e de consolidação de demandas étnicas

com as políticas neoliberais.

Em sua detalhada descrição e análise do levantamiento indígena de 1990 e de seus

múltiplos significados para o próprio movimento, para a sociedade e o Estado equatoriano,

Jorge León (1994), em seu livro “De campesinos a ciudadanos diferentes”, classifica as

diversas demandas ou reivindicações colocadas e sintetizadas pela CONAIE no denominado

“Mandato por la defensa de la vida y los derechos de las nacionalidades indígenas” – bem

como a multiplicidade de demandas apresentadas nesse momento pelas organizações

indígenas em espaços locais ou regionais – em três tipos de acordo com seus conteúdos: a)

demandas étnicas (declaratória constitucional de estado plurinacional, rejeição à

discriminação); b) cidadãs (aceso a serviços diversos como educação, saúde, estradas,

infraestrutura, etc.); c) demandas de classe ligadas à condição camponesa (solução conflitos

de terra, acesso à água, preços de insumos e produtos do campo, etc.). Para León estes três

referentes configurariam uma nova identidade indígena, na qual se combina a “exigência de

igualdade cidadã e a confirmação de sua diferença”25

(LEÓN, 1994, p. 61). Mesmo

reconhecendo a existência de uma simbiose da dimensão de classe campesina com os aspectos

étnicos e de cidadania, para este autor o levantamiento de 1990 constituiu um ato coletivo

inscrito predominantemente sob o eixo do conflito étnico, orientado a pressionar para a

constituição de uma “cidadania diferente” e para uma redefinição do “sistema político

imperante” (LEÓN, 1994, p. 159-160). Nessa direção, num contexto de rápidas mudanças

produzidas no campo onde se superpõem diversas situações sociais e processos históricos, o

levantamiento de 1990 teria sinalizado o distanciamento de uma parte da população indígena

de sua condição camponesa, para abrir um processo político caraterizado pelo trânsito de

campesinos para povos e nacionalidades que exigem a prática da igualdade de direitos como

cidadãos e ao mesmo tempo o reconhecimento de direitos coletivos de diferença. A noção de

das principais orientações e posições assumidas por distintos pesquisadores ao redor dos movimentos indígenas

na América Latina, ver Martinez Novo (2009), Postero e Zamosc (2005), Jackson e Warren (2005). Para o caso

equatoriano pode se destacar como estudos relevantes os trabalhos de Guerrero A. (1995, 2000, 2010), Almeida

et al (1993); León (1994); Sánchez-Parga (2007); Zamosc (2005): Bretón (2001, 2005, 2009); Guerrero e Ospina

(2003); Pallares (2002); Barrera (2001); Ortiz (2012) e Becker (2015). 25

Tradução nossa. Nesta tese todas as citações textuais em português que correspondem a textos originais em

espanhol são de tradução nossa.

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“cidadania diferente” sintetizaria este processo de trânsito para o “reconhecimento de povos e

coletividades diferentes” (LEÓN, 1994, p. 77).

O trabalho do referido autor é importante na produção acadêmica sobre o movimento

indígena, pois marca uma trilha de abordagens que inscrevem a questão étnica quase

exclusivamente no terreno da cidadania e do reconhecimento de direitos coletivos pelo

Estado, trilha que posteriormente será desenvolvida por outros autores. Nessa linha, mesmo

que no caso do trabalho de León existem alguns matizes, estabeleceu-se uma tendência a

cindir na análise a questão étnica da questão da classe, como duas realidades separadas

quando não dicotómicas, que confluem ocasionalmente nos protestos indígenas26

. Nessas

interpretações subjaz uma compreensão estática das classes sociais, como situações

relativamente fixas resultantes de uma estrutura econômica ou ocupacional dada, sem uma

compreensão da articulação das relações sociais na totalidade social (MOREANO, 1993).

Nessas perspectivas, o processo de afirmação da identidade étnica é entendido como uma

dinâmica diferente que vai além da realidade camponesa, pois estaríamos diante de

fenômenos de natureza distinta, do que se deriva consequentemente que as lutas indígenas

teriam outra especificidade e não fariam parte das lutas de classe. Ao privilegiar

exclusivamente a dimensão étnica na compreensão do processo do movimento indígena

perde-se de vista que ele é ao mesmo tempo movimento étnico e movimento social

(MOREANO, 1993) e dificilmente ele pode ser compreendido por fora dessa dupla dimensão.

Os problemas derivados desta concepção podem ser apreciados com maior clareza no

influente trabalho (nos meios acadêmicos) de Deborah Yashar (2005), que realiza uma análise

comparada do processo de surgimento e consolidação dos movimentos indígenas de vários

países latino-americanos (Bolívia, Guatemala, Peru, Equador e México) e desenvolve uma

linha explicativa para entender a clivagem étnica assumida por esses movimentos em sua

relação com o Estado. Para esta autora, a cidadania está no cerne da democracia e também das

mobilizações indígenas na América Latina. Seguindo esta linha, desenvolve a noção de

regimes de cidadania (“citizenship regimes”) para se referir às modalidades específicas nas

quais se combinam o acesso à cidadania (quem têm direitos), os direitos concretos que ela

supõe e as formas como se estrutura a intermediação de interesses (as instituições adequadas)

para mediar à relação entre os cidadãos e o Estado. Para Yashar (2005) é por meio de

26

Daí que, em um interessante artigo que questiona esse olhar dicotómico do étnico e do camponês nas

abordagens acadêmicas sobre o movimento indígena, Natalia León exprime sua “perplexidade”, quando ao

desenvolver seu trabalho de campo em 2002 nas comunidades andinas da Província de Cotopaxi, seus

entrevistados, longe de “posicionar-se na narrativa de uma exclusividade étnica”, referiam-se de si mesmos

“como indígenas, sem deixar de se sentir camponeses” (LEON, 2007, p. 152).

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diferentes tipos de regímenes de cidadania que os Estados configuram a existência e

delimitam as possibilidades de expressão de certas identidades políticas.

No século XX, Yashar (2005) distingue dois tipos de regimes de cidadania como os

mais significativos na América Latina: os regimes corporativistas construídos em meados do

século XX e os regimes neoliberais, construídos desde a década de 1980. Enquanto os

regimes corporativistas ampliaram os direitos sociais e privilegiaram formas corporativistas

de organização (sindicatos operários e associações camponesas) para a representação política

e mediação entre os Estados e os grupos sociais de trabalhadores e camponeses, os regimes

neoliberais, centrados no individuo como sujeito político da cidadania, restringiram alguns

direitos sociais e promoveram modos pluralistas de intermediação com o Estado, com a

consequente perda de capacidade de acesso e influência no Estado por parte de setores sociais

organizados (trabalhadores e camponeses). Para esta autora, ambos os regimes assumem a

irrelevância da etnicidade e promovem a prevalência de algum outro tipo de identidade.

Baseada nessa caracterização, a autora desenvolve sua argumentação central para

explicar o surgimento e a importância das mobilizações indígenas, além da politização da

clivagem étnica na América Latina do final do século XX: as mudanças contemporâneas de

regimes de cidadania corporativistas para neoliberais politizaram as identidades indígenas ao

ameaçar enclaves existentes de autonomia local que tinham se preservado com uma limitada

interferência do Estado (como um resultado não buscado dos regimes corporativistas). A este

fator, ela agrega outros dois: a existência de um espaço político associativo (“political

associational space”), que proveu a oportunidade política para se organizar; e, por último, a

presença de redes intercomunitárias (“transcommunity networks”), que construíram a

capacidade para que comunidades diversas e distantes possam atuar regional e nacionalmente

e confrontar ao Estado. A combinação desses três fatores explicaria a importância política

alcançada pelos movimentos indígenas no Equador, Bolívia, Guatemala e México, ao

contrário do que aconteceu no Peru, onde não se encontra um movimento indígena forte de

dimensão nacional, devido ao autoritarismo e à guerra civil que destruiu as organizações

existentes e obstaculizou a formação de redes intercomunitárias (YASHAR, 2005).

A interpretação de Yashar, mesmo contando com uma extensa documentação,

apresenta várias dificuldades para explicar consistentemente os processos de emergência e

mobilização indígena nos países de América Latina. Na trilha da cidadania, sua caracterização

do regime corporativista é problemática na medida em que equipara sob um mesmo modelo

processos políticos bem diferentes (a exemplo de México e Equador), às vezes forçando os

fatos na reconstrução do processo histórico nos diversos países para que eles encaixem na sua

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interpretação geral. Além disso, a caraterização dos regimes de cidadania e consequentemente

a atuação do Estado se desenvolvem independentemente no âmbito político, sem se relacionar

com os processos de desenvolvimento capitalista, as forças econômicas e os padrões de

desenvolvimento presentes em distintos períodos.

Na base da argumentação de Yashar encontra-se marcadamente a cisão entre

etnicidade e classe que se exprime na diferenciação dos processos de configuração identitária

delineados sob os dois regimes de cidadania. Assim, é o Estado corporativista quem define e

controla as identidades de classe e as formas organizativas que adotam os camponeses

(sindicatos, associações, comunas, cooperativas, federações). Nesse sentido, a identidade

camponesa baseada na classe teria se imposto aos índios como uma identidade alheia, sob a

influência de agentes externos (Estado, sindicatos, partidos de esquerda, igrejas, ONGs), que

visavam a assimilação dos indígenas, desconsiderando as “preocupações indígenas locais” e

suas “formas de governança”27

. O Estado com os processos de distribuição de terras (reformas

agrárias) e a entrega de créditos e subsídios para a agricultura distribuía recursos para os

“cidadãos rurais” na medida em que eles se identificavam e se organizavam enquanto

camponeses, procurando sua assimilação à cultura mestiça. Nesta lógica, para a autora, o

crescimento de federações camponesas simplesmente “estimulou a ficção de que o Estado

tinha transformado os índios em camponeses e despojado à etnicidade indígena de sua

importância” (YASHAR, 2005, p. 61). A identidade camponesa seria assim apenas um rótulo

para permitir a incorporação política dos índios e o acesso a recursos do Estado. Desta

maneira, para esta autora, os indígenas travestidos de camponeses foram subordinados aos

canais oficiais em troca de recompensas clientelistas. Evidentemente, ao enfatizar a

intencionalidade assimiladora do Estado e o controle que ele exerce no regime corporativista

sobre as organizações camponesas, esta argumentação desvaloriza o papel das organizações e

os processos de organização e luta indígena camponesa pela terra e outras demandas

27

Yashar (2005, p. 101) usa esses termos para argumentar sobre a “miopia” dos militantes comunistas que

buscavam impor uma “identidade baseada na classe” no processo de conformação e desenvolvimento da

Federación Ecuatoriana de Indios (FEI) desde a década de 1940, o que provocaria seu posterior declínio na

década de 1960. Como se aborda no capítulo segundo, a FEI foi uma organização histórica de enorme

importância no processo organizativo indígena e na luta pela terra e a Reforma Agrária até a década de 1970. Os

trabalhos históricos de Becker (2007, 2008) e Becker e Tutillo (2009) mostraram em detalhe a colaboração da

esquerda com as organizações indígenas a partir da constituição dos primeiros sindicatos na década de 1920,

numa relação mutuamente enriquecedora, desmontando a dicotomia entre o étnico e o classista na história de

essa organização e desvirtuando as imagens académicas que enxergam essa organização com uma orientação

meramente classista imposta a partir de uma relação unilateral e paternalista comandada pelo Partido Comunista

do Equador.

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levantados no caso equatoriano desde a década de 1920, geralmente em confronto direto com

os latifundiários e o Estado28

.

Na perspectiva de Yashar a identidade étnica, pelo contrário à fictícia identidade

camponesa, seria uma espécie de identidade autêntica que teria persistido além da dinâmica

organizativa camponesa num estado de latência e teria sido preservada nos espaços de

autonomia local, insuficientemente penetrados pelo Estado. Esta identidade somente

emergiria na mudança para o regime de cidadania neoliberal, com o desmantelamento do

regime corporativista, a perda de direitos sociais como consequência da retirada do Estado

dos programas de desenvolvimento rural e a liberalização dos mercados de terra e do trabalho.

Isso teria provocado o enfraquecimento das federações camponesas e dos sindicatos,

disfuncionais ao perder possibilidades de acesso e influência no Estado (YASHAR, 2005).

Ainda assim, como afirma Carmen Martínez, Yashar não explica por que na crise do regime

corporativista as lutas contra o neoliberalismo tomam uma bandeira étnica e, além disso,

assumem as identidades étnicas como dadas diante da ausência de um Estado que procure

transformá-las, sem enxergar que elas também devem construir-se (MARTÍNEZ, 2009).

Nesta abordagem dualista dos processos organizativos e das identidades no campo,

também não se compreende adequadamente as continuidades históricas do processo

organizativo camponês indígena e todo o acúmulo que as lutas anteriores significaram para o

movimento indígena e a construção de sua identidade. Como sublinha Blanca Fernández

(2013), no processo político do movimento indígena das últimas décadas, suas lutas e sua

identidade nutrem-se da dupla dimensão indígena e camponesa e longe de constituir uma

ruptura a respeito das formas de organização e luta anteriores, constantemente recupera-se e

atualiza-se “uma memória sindical de esquerda”, na qual se articula uma matriz classista com

outra étnica cultural.

Outro tema complicado na abordagem de Yashar (2005), diz respeito ao papel

reservado no processo às diversas entidades e agentes externos. Embora a autora reconheça

sua importância no processo organizativo indígena na medida em que propiciou (não

intencionalmente para a autora) a formação de redes intercomunitárias ao estabelecer vínculos

que permitiram aos ativistas indígenas transcender as identidades localizadas, identificar

lideranças comuns e criar suas próprias organizações autônomas, todas essas instâncias

(Estado, sindicatos, igrejas, ONGs) partilham o afã pela assimilação cultural, nesse sentido,

são tratadas pela autora da mesma forma, como se não existissem diferenças significativas

28

Sobre a conformação dos primeiros sindicatos campesinos indígenas e os processos organizativos indígenas

prévios à década de 1960, ver Becker (2008); Becker e Tutillo (2009); Prieto (1978).

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39

entre elas na sua atuação com os indígenas. Nessa perspectiva, não se considera o papel que

muitas dessas entidades tiveram no processo de afirmação e de construção de diferenças

étnicas e na formação das lideranças indígenas, como tem sido documentado em vários

estudos (MARTÍNEZ, 2009).

O vínculo entre a aplicação de políticas de “ajuste estrutural” enquadradas na

“globalização neoliberal” e o processo de afirmação étnica e de mobilização das organizações

indígenas é também examinado no trabalho de Guerrero e Ospina (2003). Para estes autores,

as políticas de ajuste neoliberal assumidas pelo Estado equatoriano (décadas de 1980 e 1990)

e a crise econômica (finais da década de 1990) constituíram o contexto político e econômico

em oposição ao qual se articularam as demandas étnicas. Consideram que as políticas de

ajuste neoliberais alimentaram os processos de mobilização indígena, porém a base política de

unidade do movimento radicou na afirmação da identidade étnica por parte de suas lideranças.

Na Perspectiva de Guerrero e Ospina, num cenário de diversificação ocupacional e da

configuração de classe nas comunidades andinas, e com o progressivo “abandono” da

“condição camponesa” das lideranças indígenas, crescentemente urbanas, o “recurso à

etnicidade” se converteu no único bastião de unidade do movimento indígena. Assim, eles

enxergavam uma tendência crescente para o fortalecimento exclusivo das demandas por

reconhecimento étnico, alimentadas por sua vez pela abertura do Estado equatoriano diante

esse tipo de demandas, por terem reconhecido os direitos coletivos dos povos e

nacionalidades indígenas na Constituição, criado instituições indígenas semiautônomas no

Estado e aceito, sem complicações maiores, a possibilidade de autonomias étnicas.

Essa tese alimenta-se da caraterização que estes autores fazem do processo de

mobilização e de participação política do movimento em sua relação com o Estado, durante a

década de 1990. Embora eles reconheçam que a base do movimento é rural e sua composição

majoritariamente camponesa, apenas a dimensão étnica teria brindado um caráter “universal”

a suas demandas ao se inserir no processo de transformações do Estado no contexto da

modernização neoliberal, pelo contrário do que acontecia com as demandas agrárias que por

seu caráter mais restrito, teriam limitado a atuação do movimento. Como consequência disso,

é que a partir de 1995, segundo estes autores, as ações do movimento e suas lideranças teriam

se concentrado nas transformações em curso no Estado culminando no processo de

deslocamento da “face camponesa” do movimento, por sua “face étnica” (GUERRERO e

OSPINA, 2003).

Evidentemente, no trabalho de Guerrero e Ospina também está presente a

dissociação entre o étnico e o camponês na dinâmica do movimento, mesmo com os matizes

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decorrentes em sua análise dos debates que marcaram algumas das opções políticas do

movimento em várias das conjunturas que experimentou o país, no contexto da crise política e

econômica de finais do século. Do meu ponto de vista, essa caraterização não permite

enxergar com precisão as distintas forças e tensões existentes ao interior do movimento nas

diversas conjunturas e sobredimensiona o “giro étnico” propiciado pelo abandono da

“condição camponesa” das lideranças, relegando de fato para um segundo plano o papel das

bases camponesas indígenas, majoritárias no movimento29

. Sem desconhecer o peso que em

determinados momentos tiveram as tendências “etnicistas” impulsionadas por algumas

lideranças dentro do movimento (como será analisado mais adiante nos capítulos terceiro e

quarto), a partir desta perspectiva, dificilmente se compreende a persistência do “camponês” e

suas demandas nas lutas do movimento e nas mobilizações posteriores a 200130

. Igualmente é

difícil caracterizar as constantes alianças protagonizadas pelo movimento com outros grupos e

classes subalternas, em distintos momentos de resistência ao neoliberalismo.

De outro lado, na trilha da cidadania, porém com uma visão mais integrada do

processo histórico do movimento indígena, das políticas de “cidadanização” do Estado para os

indígenas e da incorporação de elementos classistas na identidade indígena, o trabalho de

Santiago Ortiz (2012) aborda o processo político do movimento indígena31

a partir da noção

de “cidadania étnica”32

. Por meio dela, o autor quer enfatizar a vivência e a prática de formas

29

No Equador, segundo os dados do censo 2010, de uma população total de 14.483.499 habitantes, 62,8% era

urbana e 37,2% rural. No que diz respeito à população autoidentificada como indígena, esta relação se inverte

dado que 78,5% do total da população indígena era rural e somente 21,5% urbana. Do total da população

indígena rural 69,9% está localizada na região Serra, 26,9% na região Amazônica e apenas 3,2% na região

Litorânea (Costa equatoriana), o que dá conta da importância quantitativa dos indígenas camponeses andinos da

região Serra na configuração do movimento indígena equatoriano. Igualmente, do total de população rural

autoidentificada como indígena, 63% têm a agricultura como ramo de atividade principal, seguido pela

construção com 7%. Segundo sua posição na ocupação (categoría de ocupación), 60% da população indígena

rural eram trabalhadores/as por conta-própria (cuenta propia), seguida de trabalhadores/as diaristas (jornalero/a

o peón) que alcançam 14%. Todos esses dados refletem a condição camponesa da maior parte da população

indígena. Também é importante considerar os fortes vínculos que a população indígena urbana mantem com suas

famílias e comunidades. Cabe ressaltar que, além da população indígena camponesa nas três regiões do país

(Costa, Serra e Amazônia), também há um elevado contingente de camponeses/as mestiços/as. No mesmo ano, a

população economicamente ativa (PEA) rural representava 34,6% da PEA nacional. Do total da PEA rural, 48%

têm a agricultura como ramo de atividade principal e 35% correspondem a trabalhadores/as por conta-própria,

seguida de 26% de trabalhadores/as diaristas. 30

Após um período de declínio das mobilizações indígenas entre 2002 e 2005, o movimento articulou

significativos protestos contra a assinatura do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos em 2006. Nos

últimos anos, já no governo de Correa, protagonizou lutas e mobilizações vinculadas a temas que fazem parte

também de uma pauta agrária e camponesa tais como a defesa de territórios diante da expansão de projetos de

mineração em grande escala, a luta pela terra, a água e a soberania alimentar. 31

Embora a pesquisa de Ortiz (2012) faça referência aos processos locais na Provincia de Imbabura na Serra

Norte equatoriana e algumas de suas conclusões específicas não possam ser caracterizadas no contexto nacional,

considerei relevante mencionar alguns destaques deste trabalho, por suas referências e conexões com as

dinâmicas do processo do movimento indígena nacional. 32

Ortiz retoma este conceito formulado por Guillermo de la Peña (1999) e que diz respeito à reclamação

colocada pelas organizações indígenas por manter uma identidade cultural e uma “organização societal”

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culturais, institucionais e políticas diferenciadas de cidadania (construídas pelas comunidades)

e o caráter ativo do movimento com suas lutas para a consecução e o exercício de direitos

coletivos e seu reconhecimento por parte do Estado, em um sistema de direitos, no qual se

encaixam com os direitos universais. Nesse sentido, esta noção é semelhante à de “cidadania

diferente” de León (1994) referida anteriormente. Para Ortiz (2012), o processo de

reconstituição étnica, participação política e luta pelos direitos coletivos que configuram a

cidadania construída pelos indígenas, teve como base as comunidades (“comunas”33

)

enquanto forma de organização social e territorial, pois elas constituíram o pivô das lutas

indígenas e a estrutura organizativa básica que sustentou as mobilizações e os levantamientos,

assim como, o discurso étnico. Este autor sublinha que por meio de uma estratégia

diversificada que combinou processos de reativação cultural, disputa simbólica, mobilização

social e participação política, os indígenas alcançaram o reconhecimento de sua identidade e

de seus direitos. Ainda assim, salienta Ortiz (2012, p. 337), a participação política, como

estratégia orientada a modificar as relações de discriminação localmente, teve como custo a

inscrição do movimento dentro do sistema político existente, com todas suas deficiências

clientelísticas e “delegativas”, a qual incide numa maior separação das lideranças de sua base

e o adiamento, “talvez definitivo”, do “exercício do direito ao autogoverno indígena”,

subordinando-se ao Estado ou aos municípios. Dessa maneira, o autor constata que os

indígenas ao exercer seus direitos políticos, modelam-se como cidadãos no âmbito do Estado.

Embora Ortiz reconheça o papel que tiveram as lutas pela terra e a presença de

elementos classistas na identidade e na cultura política indígena, com o qual a dissociação

entre o étnico e o classista não aparece tão marcada, ao inscrever sua análise na trilha da

cidadania e no campo das lutas pelo reconhecimento, não deixa de retomar a separação entre

uma esfera econômica, na qual se desenvolveriam as lutas redistributivas pela igualdade e

uma esfera étnico-cultural referida às lutas pelo reconhecimento de direitos coletivos34

. Nesse

diferenciada dentro de um Estado, a qual não deve apenas reconhecer, mas proteger e sancionar juridicamente

tais diferenças. 33

As comunas são reconhecidas sob este nome pelo Estado desde 1937, a partir da expedição da Ley de

Organización y Régimen de las Comunas, orientada para submeter politicamente às comunidades ao Estado.

Esta lei teve significativa importância na história do movimento indígena, pois como afirma Sanchez-Parga

(2007), reconheceu implicitamente a forma tradicional de associação dos campesinos indígenas dos Andes.

Desde então e posteriormente no processo de Reforma Agrária, a maior parte das comunidades indígenas se

organizaram diante do Estado como “comunas”, nomeando um “cabildo” como instância coletiva de direção e

representação, segundo o que estabelece esta lei. Mais adiante e no capítulo segundo retomarei este tema por sua

importância para o movimento indígena. Sobre o processo de aprovação desta lei e os distintos debates relativos

à regulação das comunidades por parte do Estado na época ver Prieto, 2004. 34

Ortiz (2012) retoma esta distinção entre lutas pela redistribuição e lutas pelo reconhecimento de Nancy Fraser.

Ainda neste capítulo, na discussão sobre o multiculturalismo e as lutas pelo reconhecimento, abordo o enfoque

desta autora.

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enfoque, além de manter a dicotomia entre as duas esferas, as lutas de ordem econômica

ficam restritas a demandas distributivas sem se referir à esfera da produção e às relações de

exploração prevalecentes no capitalismo.

Essa desarticulação entre as esferas econômica e cultural, que subjaz em grande parte

dos trabalhos acadêmicos sobre o movimento indígena, o que leva a uma compreensão da

etnicidade e das identidades étnicas desconectadas de seus conteúdos de classe, provoca

também um déficit na conceitualização do campesinato. Nessas abordagens, na medida em

que o campesinato está fundamentalmente associado a uma ocupação econômica, e nesse

sentido, é resultante de uma determinada posição na estrutura econômica, parte-se de uma

visão coisificada da classe social, com a qual se perdem de vista a heterogeneidade e a

complexidade das múltiplas mediações de como os camponeses estão inseridos no

capitalismo, bem como elementos de ordem cultural e político vinculados a uma

“sociabilidade” particular e a suas formas de resistência ao capital, que em definitivo o

definiriam como classe (BARTRA, 2008) 35

.

De outro lado, a tensão entre “integração” e “autonomia” como um elemento chave e

uma constante do processo político do movimento indígena na sua relação com o Estado é

também salientada e problematizada no trabalho de Sánchez-Parga (2007). Para este autor, o

movimento indígena equatoriano sempre manteve uma dupla estratégia de integração e de

participação na sociedade nacional por uma parte, e de autonomia por outra. Na medida em

que, o Estado atendia às sucessivas reivindicações da população indígena com “novas

políticas de integração e maior participação, essas mesmas iniciativas do Estado provocavam

novas demandas e também novas estratégias de autonomia por parte do movimento indígena”

(SÁNCHEZ-PARGA, 2007, p. 12).

O trabalho de Sánchez-Parga desenvolve uma linha de interpretação do processo

histórico do movimento indígena e de sua intensa politização, definindo-o como o “longo

caminho da comunidade ao Estado nacional”, isto é, a paulatina transformação da “sociedade

comunal das populações indígenas à sociedade societal do Estado nação” (SÁNCHEZ-

PARGA, 2007, p. 11). Esta linha interpretativa situa no centro das explicações do processo

histórico do movimento as transformações operadas na comunidade indígena, concebida pelo

autor enquanto “sociedade comunal”, isto é, como uma combinação de um modo de

associação territorial e um modo de associação parental decorrente da ampliação da sociedade

35

Para Armando Bartra, “los campesinos modernos, son producto del capitalismo y de su resistencia al

capitalismo”. Nas palavras do autor, na América Latina os camponeses têm como “trasfondo histórico el

sometimiento colonial y sus secuelas”, pelo que são “en sentido estricto, campesindios” (BARTRA, 2011, p.

34).

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familiar e de parentesco que corresponde ao Ayllu andino. Dessa forma, a comunidade

indígena andina supõe um modelo de sociabilidade e ao mesmo tempo constitui a “matriz e o

perímetro de reprodução da cultura indígena” (Sánchez-Parga, 2007, p. 27), tudo o que

implica um sistema de relações, intercâmbio e reciprocidade entre as famílias. Para Sánchez-

Parga a comuna indígena entrou em crise desde o final da década de 1980 devido a uma

combinação de fatores. Entre os fatores externos, o autor destaca a integração mais intensa ao

mercado de produtos e ao mercado laboral, via migrações temporais e assalariamento que

provocou a diversificação das estratégias reprodutivas das famílias comuneras e a

individualização dos comportamentos econômicos cada vez mais monetizados. Dos fatores

internos, Sánchez-Parga salienta a própria dinâmica organizativa que deslocou as estratégias

comunais sejam para “espaços mais amplos e exteriores de organização”, favorecendo a

integração da comunidade “na sociedade local, regional e nacional”, sejam para espaços

setoriais interiores à comunidade, fomentando o surgimento de grupos específicos,

associações, cooperativas, etc. Isso tudo, multiplicou os centros de autoridade e decisão nas

comunidades, diminuindo a importância das autoridades tradicionais e dos cabildos

(SÁNCHEZ-PARGA, 2007, p. 41-42). Nesse contexto, para este autor, o processo de

integração da comunidade à sociedade do Estado nação contribuiu à intensa politização do

movimento indígena, mas implicou ao mesmo tempo, em um processo de

“descomunalização” ou desintegração progressiva da “sociedade indígena”, o qual se

produziu precisamente num momento em que se “desestatiza o Estado e desnacionaliza a

sociedade” (SÁNCHEZ-PARGA, 2007, p. 11).

O autor considera que a singularidade do movimento indígena equatoriano radica

numa tripla articulação: estatal, organizativa e classista. Estes três fatores explicariam por que

o movimento indígena não tomou a forma de um movimento “indianista”36

. Para Sánchez-

Parga toda a história do movimento indígena foi marcada por sua articulação com o Estado

36

O termo “indianista” em espanhol foi introduzido para se referir à ideologia reivindicativa e projeto político

sustentado pelos indígenas orientado para a libertação dos índios do colonialismo interno e das condições de

opressão impostas pelas elites branco-mestiças. O indianismo surge a partir da década de 1960 nos Andes e

México e se posiciona em contraposição ao indigenismo, considerado como uma ideologia construída por

sujeitos não indígenas sobre os índios e incorporada pelos Estados para reproduzir a situação colonial interna dos

povos indígenas (BARRE, 1983). A ideologia indianista afirma o papel do sujeito indio como protagonista das

transformações históricas e apela para um projeto civilizatório indígena (em contraposição a civilização

ocidental) baseado na cosmovisão e cultura indígena. Nesse sentido, reivindica a relação de harmonia

estabelecida pelas civilizações indígenas com a natureza e a recuperação da história indígena como fonte de

inspiração para as transformações futuras. O indianismo exercerá uma forte influência nos movimentos

indígenas de América Latina, especialmente na Bolívia, com a criação do Partido Índio Boliviano e o movimento

Katarista e no México (sobre a influência do indianismo nos movimentos indígenas bolivianos ver Escárzaga,

(2012); Rivera Cusicanqui (2010). Para o caso de México ver Velasco (2003)). O contraste feito por Sánchez-

Parga entre o movimento indígena equatoriano e outros movimentos indianistas toma como referência os

movimentos indianistas bolivianos.

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nacional, o que explica sua progressiva participação nas políticas e nos organismos públicos.

A articulação organizativa diz respeito às diversas formas, escalas geográficas e níveis que

adota a dinâmica organizativa ao interior do próprio movimento indígena, a qual foi permeada

continuamente pela tensão entre o ordenamento hierárquico e o “tradicional faccionalismo

andino”37

. A articulação classista, referida à articulação com “outras classes, grupos ou

setores sociais”, forneceu ao movimento a possibilidade de combinar em muitas de suas

estratégias, alianças e práticas, uma “forma étnica, específica de suas condições e projetos

culturais, com uma forma classe”, em suas reivindicações e protestos (SÁNCHEZ-PARGA,

2007, p. 15). A combinação de uma dupla estratégia, étnica autonomista e classista em aliança

com outros movimentos sociais, é uma marca característica do movimento indígena

equatoriano, o qual adotou variações segundo as distintas conjunturas históricas, configurando

também às distintas tendências existentes ao interior do movimento e suas organizações.

A perspectiva de interpretação do processo do movimento indígena desenvolvida por

Sánchez-Parga focada na comunidade contribui para pensar as dinâmicas de reprodução

econômica e cultural que sustentam a etnicidade de uma forma integrada, a partir das

transformações provocadas nas comunidades indígenas pelos processos de desenvolvimento

capitalista. Igualmente, sua caraterização do processo do movimento indígena equatoriano, na

qual cobra primazia não apenas sua articulação com o Estado, mas ao mesmo tempo a

articulação classista como uma de suas especificidades, permite problematizar as formas

como o movimento articulou em diversas conjunturas alianças com outros grupos e classes

subalternas para confrontar as políticas neoliberais.

Este último aspecto também é trabalhado por Leon Zamosc (2005), a partir de uma

revisão do processo político equatoriano e das mobilizações indígenas na década de 1990.

Este autor sublinha que “o conteúdo fundamental das lutas dos noventa foi um conteúdo de

classe” na medida em que os interesses em jogo eram econômicos e “as identidades dos

protagonistas se definiram em função de suas posições na estrutura econômica do país”

(ZAMOSC, 2005: p. 210). O movimento indígena e particularmente a CONAIE (enquanto

confederação nacional com capacidade de articular ações contestatórias nacionalmente)

assumiu a liderança das lutas de resistência nas diversas tentativas de impor a agenda

37

Para Sánchez-Parga (2007), o “faccionalismo andino” se refere à dinâmica existente nas comunidades e

organizações andinas que propicia a emergência de segmentações ou divisões que seguem uma lógica inerente à

cultura andina e as suas bases comunais (em sua dimensão territorial e parental). Constitui um mecanismo de

coesão interna das distintas unidades ou grupos sociais e é complementário às tendências para estabelecer

alianças externas a esses grupos, as quais operam em momentos determinados. Sobre esta temática ver do

mesmo autor seu livro: Faccionalismo, organización y proyecto étnico en los Andes (SÁNCHEZ-PARGA,

1989).

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neoliberal, primeiro articulando uma frente indígena camponesa que denunciou o caráter anti-

camponês dessa agenda (levantamiento de 1994 contra a nova lei agrária) e depois,

protagonizando as grandes confrontações nacionais da segunda metade da década de 1990 por

meio de uma amplia aliança com sindicatos e outras organizações urbanas, abarcando as

reivindicações de todos os “setores plebeus” sob a palavra de ordem de “resistência nacional

contra o neoliberalismo” (ZAMOSC, 2005, p. 209)38

. Dado seu grande poder de convocatória

para os protestos e diante do enfraquecimento dos sindicatos, a CONAIE tornou-se a única

organização com capacidade de conduzir essa política de resistência popular, enquanto “lutas

puramente defensivas” orientadas a impedir o agravamento “da situação dos setores mais

empobrecidos” (ZAMOSC, 2005, p. 210).

O autor reconhece a dupla dimensão do movimento indígena como movimento

étnico e de classe, na medida em que está majoritariamente constituído por camponeses

indígenas e que combina em sua plataforma de ação as reivindicações camponesas com as

aspirações derivadas de sua especificidade étnica como indígenas. Além de isso, Zamosc

(2005) explica o papel de liderança desempenhado pela CONAIE nas lutas de resistência ao

neoliberalismo como parte das lutas de classe, sem limitar sua ação às lutas específicas pelos

direitos dos povos indígenas, como uma resposta natural (dado o poder de mobilização da

CONAIE) à pressão gerada pelo descontentamento generalizado que procurava se expressar

por meio de protesto e porque as orientações estratégicas da CONAIE já incluíam uma

vocação de unidade, alianças e liderança popular39

.

Esta estratégia de alianças e de liderança da CONAIE nas lutas de classe da década de

1990, segundo este autor, teve para o movimento indígena um “enorme valor instrumental”

para a consecução de suas reivindicações étnicas, pois logo após os protestos, nos processos

de negociação com o Estado incluíam-se demandas indígenas específicas que permitiram a

CONAIE alcançar algumas conquistas, tais como a criação de entidades indígenas dentro do

Estado, o financiamento de projetos de desenvolvimento para os povos indígenas40

, o

reconhecimento da medicina tradicional, a concessão de frequências radiofônicas para

emissoras comunitárias, etc.

38

Ver também Zamosc (2007 e 2009). 39

Para sustentar a ideia da vocação de liderança popular da CONAIE, Zamosc retoma as definições estratégicas

assumidas no II Congresso da CONAIE de 1988, entre as quais se destacam: “tomar a iniciativa em

mobilizações nacionais para exercer pressão sobre o Estado, afirmar uma presença permanente na vida pública

assumindo posições sobre todos os assuntos relevantes, utilizar todas as formas de luta e converter a CONAIE

em um eixo de unidade e combate de todos os explorados e marginados” (CONAIE, Memorias del segundo

Congreso de la CONAIE, 1988, citado em Zamosc, 2005, p. 212). 40

Zamosc refere-se ao Proyecto de Desarrollo de los Pueblos y Nacionalidades Indígenas del Ecuador

(PRODEPINE) financiado pelo Banco Mundial, o FIDA e o Estado Equatoriano.

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A estratégia da CONAIE desde seu início enxergava o estabelecimento de “espaços

próprios dentro de Estado” como o meio para alcançar os objetivos de suas lutas. Nesse

sentido, a partir da criação do movimento político Pachakutik em 1996, a “política da

influência”, exercida pela CONAIE como forma de pressão de fora do sistema para influir nas

políticas do Estado, se combinou a uma “política do poder”, orientada a conquistar posições

dentro de Estado para participar diretamente na tomada de decisões. Desta forma, também

agregou às lutas contestatórias e às gestões institucionais a participação eleitoral que

contribuiria para obter representação no poder legislativo, canalizar o reconhecimento de

direitos coletivos na Constituição e acessar a diversas instâncias de governo local e regional

(ZAMOSC, 2005, p. 212-214).

Para Zamosc (2005), essa orientação de protagonismo no poder político por meio da

“política do poder” provocaria um conjunto de tensões e contradições internas e levaria o

movimento a cometer sérios equívocos, expressados primeiro na participação de lideranças da

CONAIE com os oficiais do exército na conspiração que provocou a derrubada do governo de

Mahuad e a tentativa falida de assumir os poderes do Estado no ano 2000, e posteriormente,

na “improvisada” aliança eleitoral de Pachakutik com Lucio Gutiérrez no ano 2002, além da

participação durante os primeiros meses no seu governo (2003-2005). As contradições com as

políticas neoliberais assumidas pelo governo de Gutiérrez forçaram a saída do governo de

Pachakutik, provocando divisões na CONAIE e agregando uma política clientelista explícita

do governo de Gutierrez para enfraquecer e dividir o movimento. Tudo isso teria gerado a

perda de confiança das organizações de base do movimento, o enfraquecimento da CONAIE e

de sua capacidade de mobilização. Segundo Zamosc (2007), esse processo evidenciou as

dificuldades das lideranças para lidar com as complexidades decorrentes do processo de

institucionalização do movimento, a falta de uma visão estratégica e a primazia de atitudes

vanguardistas e oportunistas de curto prazo.

A visão de Zamosc do “valor instrumental” do engajamento e liderança da CONAIE

nas lutas de classe dos noventa como estratégia para potencializar a negociação das demandas

étnicas com o Estado, pode ser interpretada como uma concepção redutora da prática da

CONAIE e suas lideranças, concebida assim em forma excessivamente calculista e

instrumentalista, sem chegar a refletir a “inseparável interseção entre identidades e discursos

étnicos e classistas” (KALTMEIER, 2007, p. 199). Em forma complementar, no que diz

respeito aos processos específicos de negociação das demandas étnicas, também é necessário

considerar para a análise dessas conjunturas a política de abertura étnica definida pelo próprio

Estado e seus funcionários e o papel desempenhado por lideranças indígenas inscritas nas

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tendências mais institucionalistas dentro do movimento que, baseadas no discurso étnico,

privilegiavam a participação institucional dentro do Estado. Estes aspectos serão retomados

no capítulo terceiro.

Para finalizar esta breve discussão sobre as principais contribuições e análises do

processo político do movimento indígena na sua relação com o Estado na literatura

acadêmica, é importante mencionar os aportes de Víctor Bretón (2001, 2005, 2009, 2012),

particularmente suas observações críticas referidas às dinâmicas organizativas do movimento

indígena, os discursos étnicos e os programas de desenvolvimento rural no contexto do

neoliberalismo. Para este autor, durante as últimas décadas do século XX, a irrupção do

movimento indígena no cenário político nacional colocou a questão étnica como “uma

prioridade inquestionável na pauta dos poderes públicos e das agências de desenvolvimento”,

num contexto marcado pela retirada do Estado com as políticas de ajuste estrutural da

economia, derivadas do Consenso de Washington (BRETÓN, 2009, p. 70). Segundo Bretón, o

neoliberalismo se concretizou no campo latino-americano por meio de três grandes diretrizes

políticas: “a desregulação dos mercados de produtos e insumos” (como consequência da

abertura comercial), “a liberalização do mercado de terras” e a substituição “do paradigma da

reforma agrária” pelo do desenvolvimento rural integral (DRI) nos anos de 1980 e

posteriormente pelo “projetismo de todo tipo como via única de intervenção” (BRETÓN,

2012, p. 104).

Em suas pesquisas nas áreas rurais da serra equatoriana, Bretón constatou a

proliferação de novos agentes no meio rural (ONGD41

e Agências de Cooperação

Internacional) que multiplicaram suas intervenções no campo equatoriano, especialmente nas

regiões indígenas, em muitas ocasiões suplantando ao Estado, provocando o que qualificou de

“processo sem precedentes de privatização das políticas sociais” (BRETÓN, 2001, p. 238).

Esse processo esteve acompanhado de mudanças na orientação de muitas ONGD históricas da

área andina, as quais passaram de posições contestatórias na década de 1970, para posições

alinhadas com a ortodoxia dominante nas décadas seguintes, marcadas “pela ênfase na

colaboração com os poderes públicos, a concertação, a intermediação nos processos sociais, a

participação popular e o distanciamento da política formal” (BRETÓN, 2001, p. 241). Nesse

sentido, ocorreu uma crescente adequação da atuação das ONGD às determinações do modelo

neoliberal.

41

Organizações Não Governamentais de Desenvolvimento.

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Por trás da heterogeneidade aparente de orientações e da justaposição de intervenções

nos espaços rurais com uma multiplicidade de projetos de desenvolvimento, Bretón identifica

uma lógica subjacente comum, promovida pelas mais altas instâncias do aparelho do

desenvolvimento (fundamentalmente do Banco Mundial e o tecido institucional de Nações

Unidas), lógica caraterizada pela “etnificação do desenvolvimento rural e sua desvinculação de

todas aquelas formulações que questionem os mecanismos básicos de acumulação do

capitalismo neoliberal” (BRETÓN, 2009, p. 94). Como parte dessa estratégia, de fato o Banco

Mundial promoveu e financiou o Proyecto de Desarrollo de los Pueblos y Nacionalidades

Indígenas del Ecuador (PRODEPINE), concebido como “a ponta de lança bem sucedida – a

vitrine – de uma nova forma de abordar a ruralidade” (Bretón, 2005, p. 65), na qual se

combinava o apoio às federações locais indígenas (“capital social”) com o “desenvolvimento

com identidade” (“etnodesenvolvimento”), em sintonia com a emergência das reivindicações

étnicas e como uma “resposta experimental do establishment financeiro neoliberal” à ameaça

representada pelos processos de mobilização indígena (BRETÓN, 2009, p. 99).

O processo descrito por Bretón no que se refere às intervenções para o

desenvolvimento rural no campo equatoriano repercutiu diretamente na dinâmica das

organizações indígenas, especialmente das federações locais de comunidades, conhecidas

como Organizações de Segundo Grau (OSG)42

, que constituem as instâncias intermediárias de

todo o aparelho organizativo indígena e camponês. Do olhar de Bretón, a lógica imposta pelo

aparelho institucional do desenvolvimento rural ao incorporar essas organizações indígenas na

gestão de projetos, significou sua “dependência funcional” e a “substituição ou reconversão

paulatina” da direção indígena dessas organizações, “militante, ideologizada e identificada

com um perfil político reivindicativo, por outra de caráter tecnocrática”, mais preocupada

pelas caraterísticas e tamanho dos projetos de desenvolvimento. Tudo isso exerceu uma

influência poderosa para canalizar as reivindicações do movimento indígena para “trilhos

admissíveis pelo modelo hegemônico” (Bretón, 2012, p. 109), fomentando um processo de

despolitização das lideranças indígenas e sua conversão, sob uma retórica etnicista, em

“meros gestores de projetos” (BRETÓN, 2001, p. 248). O que favoreceu o estabelecimento de

uma lógica clientelista na atuação das federações indígenas locais, em função do acesso e

distribuição dos recursos provenientes das agências de desenvolvimento e a exacerbação dos

42

Essa denominação faz alusão aos níveis de abrangência organizativa: as organizações de primeiro grau são as

organizações de base que agrupam pessoas, as de segundo grau nucleiam várias organizações de base

(geralmente em âmbito local), as de terceiro grau são as federações de nível provincial nas quais estão

representadas distintas organizações de segundo grau e finalmente temos as Organizações Nacionais ou regionais

(de quarto grau) que aglutinam às distintas Federações Provinciais.

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49

processos de diferenciação interna entre uma “minoria acomodada” em torno do “aparelho

neoindigenista” e uma maioria cada vez mais distante da retórica de suas lideranças e

representantes (BRETÓN, 2009, p. 109).

A partir dessas constatações, Bretón (2009) enfatiza a “deriva etnicista”

experimentada pelo movimento indígena desde a segunda metade dos anos de 1990, a qual

significou a primazia dos elementos culturais e identitários e a reivindicação da “cidadania

étnica”, em detrimento de uma pauta camponesa (classista) e de exigências de caráter mais

estrutural, como a distribuição da terra. Enquanto isso, o “projetismo” se impunha como

prática predominante na dinâmica das federações locais, em concordância com as

transformações operadas no aparelho institucional do desenvolvimento rural.

Na perspectiva deste trabalho, as contribuições das pesquisas de Bretón constituem

um subsídio importante, ao evidenciar como as orientações e políticas dominantes de

desenvolvimento rural, assumidas pelo Estado e o aparelho institucional do desenvolvimento

condicionaram e modularam a prática das organizações indígenas e de suas lideranças.

Portanto, destaca-se assim, outra faceta da relação entre o neoliberalismo e o agir do

movimento indígena, além dos processos de luta e resistência levantados pelas organizações:

a adequação e adaptação dos discursos e a atuação do movimento indígena às condições

impostas pelo neoliberalismo, as quais contribuíram como fatores determinantes para a

aceitação por parte do Estado daquelas demandas étnicas que não colocavam em risco os

processos de acumulação capitalista no campo e a incorporação de representantes índios na

gestão direta das entidades e projetos neoindigenistas derivados dessas políticas. Trata-se das

políticas multiculturalistas adotadas pelos Estados latino-americanos e pelo Equador no

contexto do neoliberalismo (o chamado multiculturalismo neoliberal), discussão que

abordarei mais adiante neste mesmo capítulo. Previamente, para o desenvolvimento de minha

argumentação e para uma compreensão do conjunto do processo em termos das relações do

Estado com o movimento indígena, incluído o período mais recente com as inflexões

produzidas no governo de Correa (a partir de 2007), é preciso delimitar melhor os sentidos em

que o neoliberalismo será compreendido e quais serão os alcances que o mesmo terá neste

trabalho.

2.3. O NEOLIBERALISMO COMO FASE DE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E

COMO RACIONALIDADE

Quando se fala de neoliberalismo na América Latina, a compreensão mais comum

associa este termo com um período de tempo geralmente centrado nas décadas de 1980 e 1990

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50

e com um conjunto de medidas econômicas e de políticas implantadas pelos governos nesse

período, vinculadas com a privatização de empresas e serviços públicos, a abertura comercial,

o ajuste fiscal, a desregulação financeira e a liberalização dos movimentos internacionais de

capital, a retirada ou enxugamento do Estado, a “flexibilização laboral” e a reversão de

políticas universais de proteção social. Por exemplo, este é o sentido imperante quando se usa

este termo na maior parte dos autores revisados na seção anterior sobre o processo do

movimento indígena no Equador43

.

Essa visão do neoliberalismo, de fato, na América Latina sustenta-se na experiência

vivenciada desde os anos de 1980 do século passado com o conjunto de reformas estruturais

adotadas nos distintos países, como resposta à crise da dívida externa que detonou o fim do

modelo de industrialização por substituição de importações44

(ISI) e das políticas

protecionistas ou desenvolvimentistas que, em maior o menor grau, tinham sido

impulsionadas em distintos momentos nos diversos países latino-americanos. Essas reformas

foram condensadas e adquiriram uma unidade nas 10 diretrizes de política econômica

definidas no chamado “Consenso de Washington” 45

, que sintetizava o núcleo central das

políticas econômicas recomendadas pela ortodoxia dominante na década de 1990. Estas

diretrizes de política econômica marcaram um rumo a seguir nos países latino-americanos

baseado na disciplina macroeconômica e abertura comercial, inspiradas nas reformas

aplicadas em Chile durante as décadas de 1970 e 1980 (Kuczynski, 2003), sob a ditadura de

Pinochet.

A partir da experiência de aplicação dessas políticas e dos processos de contestação

contra elas, levantados por distintos movimentos sociais e políticos ao longo de toda a região

latino-americana, o debate ideológico sobre o neoliberalismo simplificou-se e ficou focado na

43

Com a exceção de Yashar (2005), para quem o neoliberalismo constitui também um regime de cidadania,

conceito desenvolvido por esta autora referido na seção anterior. 44

O processo de substituição de importações na América Latina teve como caraterísticas comuns o forte

protagonismo do Estado como orientador do processo e como agente produtivo, o controle público dos fluxos

financeiros encaminhados a apoiar os processos de industrialização e a articulação da expansão da capacidade

produtiva e o consumo interno (ARCEO e BASUALDO, 2006). 45

Em sua formulação original pelo economista John Williamson (Williamson, 1990) o termo “Consenso de

Washington” referia-se às reformas que se consideravam necessárias para restabelecer o crescimento na América

Latina e em torno das quais concordavam as principais instituições econômicas sediadas em Washington, tais

como o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o

Banco Interamericano de Desenvolvimento (KUCZYNSKI, 2003). Estas reformas eram: a disciplina fiscal; o

estabelecimento de prioridades no gasto público eliminando alguns subsídios indiscriminados e alocando esses

recursos para despesas em saúde, educação e infraestrutura; uma reforma tributária orientada a ampliar a base de

contribuintes; a liberalização financeira; o estabelecimento de uma taxa de câmbio competitiva que favorecesse

as exportações, a liberalização do comércio; uma política de abertura aos fluxos de investimento estrangeiro

direto (IED); a privatização de empresas e serviços públicos; a desregulação para favorecer a entrada de

investimentos e empresas nacionais ou estrangeiras; e, a segurança e as garantias para os direitos de propriedade

(WILLIAMSON, 1990).

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51

disjuntiva entre o papel e os limites do Estado e do mercado. Diante das políticas de

liberalização, privatizações, desregulação para favorecer a atuação do “mercado”46

e de

“retirada do Estado”, identificadas com o neoliberalismo, as posições críticas reivindicavam a

recuperação do papel do Estado na economia e suas intervenções para regular os mercados e

para propiciar processos conducentes à diminuição das desigualdades sociais, a redução da

pobreza e a inclusão social. Esta tendência de reduzir a concepção do neoliberalismo e seu

debate à simples oposição entre o mercado e o Estado foi reforçada a partir de agudas crises

econômicas apresentadas em países da região (Argentina em 2001, Equador em 1999)

interpretadas como evidência do fracasso das políticas neoliberais e, também com o trânsito

de vários países da região para novas experiências políticas protagonizadas pela presença de

“governos progressistas” e de centro-esquerda nos anos 2000, que tinham como denominador

comum uma retórica crítica às políticas neoliberais, retórica que pregava pela recuperação do

papel do Estado na economia e o fomento de processos de integração regional.

A primazia da oposição entre Estado e mercado nos debates sobre o neoliberalismo

constitui, tal como sublinham Laval e Dardot (2013), um dos maiores obstáculos para

caracterizar com precisão o neoliberalismo, levando ao equívoco de concebê-lo apenas como

uma ideologia que preconiza a livre ação do mercado e, inspiradas nessa oposição, como um

conjunto de políticas econômicas conducentes para propiciar a “retirada do Estado” em favor

do mercado. Uma das consequências dessa concepção é perder de vista as profundas

transformações produzidas durante as três últimas décadas no capitalismo decorrentes do

processo de restruturação produtiva global propiciado desde finais da década de 1970, como

resposta à crise econômica internacional, que tem redefinido o funcionamento do “mercado” e

as margens de atuação do “Estado”, em todos os cantos.

Além disso, como sublinham Laval e Dardot (2013), esta visão desconsidera que o

mercado moderno não age só e apoia-se sempre no Estado, pois em contraste com a estendida

percepção que o neoliberalismo promove uma versão renovada da doutrina do laissez-faire do

liberalismo econômico do século XIX, o neoliberalismo enquanto doutrina econômica47

não

46

Note-se que as chamadas políticas de desregulação de fato são também uma forma ou modalidade de

regulação por meio de uma ação do Estado que aplica um principio anti-intervencionista (ver Laval e Dardot,

2013). 47

Uma análise detalhada do neoliberalismo como doutrina econômica encontra-se no trabalho citado de Laval e

Dardot (2013). Essa análise, inspirada nos estudos sobre o neoliberalismo realizados por Foucault (2008a), toma

o neoliberalismo desde seus inícios (no contexto da grande crise da década de 1930) no colóquio Walter

Lippmann de 1938, passando pelas correntes do ordoliberalismo alemão representado por W. Eucken e W.

Röpke e a escola austro-norte-americana representada por Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek e a criação da

Sociedade de Mont-Pèlerin em 1947, até o pensamento de Milton Friedman e as tendências contemporâneas do

capital humano de Gary Becker, as teorias do Management e do Public Choice, entre outras derivações.

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52

concebe o mercado em si mesmo como algo meramente natural. Ele é construído e organizado

pela lei e pelas instituições políticas e para seu funcionamento precisa de intervenção política

(Brown, 2003; Laval e Dardot, 2013). De outro lado, esta concepção também propicia

reivindicar a atuação do Estado em si mesma, independentemente de seus conteúdos e de sua

relação com as classes, com o qual se perde a unidade do político e do econômico (Duménil e

Lévy, 2006) e se esquece do papel desempenhado pelos Estados para a imposição do

neoliberalismo.

Além dessas concepções baseadas na simples oposição entre o mercado e o Estado,

as análises do neoliberalismo vinculadas à dinâmica geral do capitalismo, empreendidas por

Harvey (2008) e por Duménil e Lévy (2004; 2014) mostram o processo de reconfiguração

global do capitalismo sob o neoliberalismo durante as últimas três décadas, a variedade e a

complexidade das formas concretas assumidas pelos processos de “neoliberalização” e a

necessidade de compreender o neoliberalismo em seus vínculos com as relações de classe nas

dinâmicas de desenvolvimento capitalista.

Na sua revisão das formas concretas como as proposições neoliberais têm sido

aplicadas em distintas regiões do mundo, Harvey afirma que o desenvolvimento geográfico

desigual do neoliberalismo e as modalidades heterogêneas de sua aplicação, frequentemente

parciais e assimétricas entre distintos Estados e formações sociais, “atestam o caráter não

elaborado das soluções neoliberais e as complexas maneiras pelas quais forças políticas,

tradições históricas e arranjos institucionais existentes” moldaram em conjunto por que e

como se concretizou de fato o processo de neoliberalização (HARVEY, 2008, p. 23). Nesse

sentido, este autor adverte “uma tensão criativa entre o poder das ideias neoliberais e as

práticas reais de neoliberalização” que transformaram nas últimas décadas o funcionamento

do capitalismo global (HARVEY, 2008, p. 29).

Baseado nesse percurso pela variedade de formas concretas em diversas latitudes

adotadas pelo neoliberalismo, Harvey considera que ele deve ser interpretado como um

projeto político orientado para o objetivo do “restabelecimento das condições da acumulação

do capital e de restauração do poder das elites econômicas”48

, dado que foi esse o objetivo que

predominou na sua prática, além do grau de adequação com os princípios e postulados da

teoria neoliberal, geralmente usada como um sistema de justificação e legitimação de todo o

que fosse necessário para alcançar esta finalidade (HARVEY, 2008, p. 27-28). O autor

48

Harvey sublinha esta tese a partir dos dados e das conclusões do trabalho mencionado de Duménil e Lévy

(2004), ao qual me refiro logo, no sentido de que a neoliberalização foi desde o início um projeto voltado a

reconstituir o poder de classe.

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53

constata quão frequentemente os princípios do ideário neoliberal foram abandonados ou

distorcidos quando entravam em conflito com a necessidade de restaurar ou sustentar o poder

das elites econômicas. Para Harvey (2008), a principal realização do neoliberalismo foi

redistribuir, em lugar de criar, renda e riqueza, favorecendo um processo de concentração de

elas ao nível global.

Para caracterizar as especificidades desse processo de acumulação do capital durante

o neoliberalismo Harvey usa a categoria de “acumulação por espoliação” desenvolvida por ele

(Harvey, 2004) para se referir à continuidade, persistência e proliferação daqueles processos

de acumulação de caráter predatório, fraudulento ou violento durante a ascensão do

capitalismo, descritos por Marx sob o conceito de “acumulação originária de capital”49

e a

criação de novos mecanismos desse caráter, tais como o patenteamento de material genético, a

biopirataria e a “mercadificação” da natureza. Para o autor, esses processos de acumulação

por espoliação no capitalismo contemporâneo apresentam quatro características centrais: a)

privatização, “mercadificação” e “corporatização” de ativos até então considerados públicos;

b) a “financialização” caraterizada como a primazia de processos financeiros marcados por

um estilo especulativo e predatório; c) a administração e manipulação das crises no cenário

mundial, provocando a transferência de recursos de países pobres para países ricos através dos

mecanismos da “dívida”; d) redistribuições via Estado que redirecionam o fluxo de recursos

para as classes dominantes.

Nesta linha de discussão, para Harvey o Estado neoliberal encarnou-se num aparelho

de Estado cuja missão fundamental foi criar condições favoráveis para a acumulação lucrativa

de capital pelos capitalistas domésticos e estrangeiros. As liberdades que o Estado neoliberal

personifica, “refletem os interesses dos detentores da propriedade privada, dos negócios, das

corporações multinacionais e do capital financeiro” (HARVEY, 2008, p. 17). Este ímpeto de

restauração do poder de classe que caracteriza o Estado neoliberal se traduz na criação de um

clima de negócios ou de investimentos favorável para os empreendimentos capitalistas, o qual

supõe o tratamento do trabalho e da natureza como meras mercadorias. Em caso de conflito, o

Estado neoliberal opta por manter o clima de negócios favorável em detrimento, seja dos

direitos coletivos do trabalho, seja da capacidade de regeneração da natureza, mesmo ao custo

de distorcer os próprios preceitos da teoria neoliberal. Para Harvey, o neoliberalismo não

tornou irrelevante o Estado, mas supôs uma radical reconfiguração de suas instituições e suas

práticas.

49

Ver o capítulo XXIV do livro 1 de O Capital de Marx (Marx, 2013).

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54

Numa perspectiva similar de análise, porém com uma ampla informação empírica

sobre a dinâmica histórica do capitalismo moderno desde o início do século XX, as pesquisas

de Duménil e Lévy (2004; 2014) enfatizam na ideia que o neoliberalismo deve ser entendido

como uma nova fase do capitalismo50

que surgiu na esteira da crise global da década de 1970

e marcou o curso adotado pelo capitalismo durante as três últimas décadas. Trata-se da

constituição de uma nova “ordem social”, enquanto configuração das relações de dominação e

alianças entre as diferentes classes, imposta a todo o mundo (países do centro e da periferia),

sob a liderança econômica, política e militar dos Estados Unidos. Estes autores desenvolvem a

tese que o neoliberalismo “expressa a estratégia das classes capitalistas aliadas aos

administradores de alto escalão, especificamente no setor financeiro, de reforçar sua

hegemonia e expandi-la globalmente” (Duménil e Lévy, 2014, p.11). Sustentam esta tese na

observação de uma configuração tripolar da estrutura de classes no capitalismo

contemporâneo: as classes capitalistas, os quadros (gerentes e administradores de alto escalão

das empresas e do Estado, com funções de comando) e as classes populares (trabalhadores e

desempregados). Sob o neoliberalismo, da mão da aliança entre as camadas superiores das

classes capitalista e gerencial (“compromisso neoliberal”), incrementaram-se as rendas do

capital (juros e dividendos), a classe gerencial beneficiou-se do aumento das remunerações

mais altas e da possibilidade de acumulação de carteiras de ativos financeiros, enquanto

restringia-se o poder de compra dos trabalhadores em decorrência da forte pressão sobre os

salários, como consequência da liberalização do comercio e da circulação de capitais com a

competição dos países com custos menores de mão de obra.

No neoliberalismo, estas tendências à concentração de poder e renda em benefício

das camadas superiores das classes capitalistas e as frações superiores da administração

também foram favorecidas com a geração de enormes fontes de renda pela expansão e

sofisticação dos mecanismos financeiros que surgiram depois de 2000 e com os fluxos de

renda gerados pelo endividamento das famílias e governos. A hegemonia das classes altas foi

assim “deliberadamente restaurada” o que significou, “uma volta à hegemonia financeira” 51

50

Duménil e Lévy (2014, p. 24-31) traçam uma periodização na qual distinguem três ordens sociais no

capitalismo moderno: a “primeira hegemonia financeira” das primeiras décadas do século XX; O “compromisso

do pós-guerra” desde o New Deal e a Segunda Guerra Mundial até o final da década de 1970 (que teve como

uma de suas facetas o estabelecimento do Welfare State); e o “neoliberalismo como uma segunda hegemonia

financeira”. Estas três fases da história do capitalismo moderno foram marcadas por quatro grandes crises

“duradouras e profundas” que estimularam as transformações no curso do capitalismo, começando com a crise

da década de 1890, a “Grande Depressão” ao longo da década de 1930, a crise de 1970 e a “crise do

neoliberalismo” que estourou o ano 2008 e continua até nossos dias. 51

“Volta à hegemonia financeira” em referência à primeira hegemonia financeira das primeiras décadas do

século XX, segundo a periodização (ver nota anterior) traçada por Duménil e Lévy (2014). Para compreender

melhor o caráter dessa nova hegemonia financeira no neoliberalismo Duménil e Lévy (2004; 2014) definem o

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55

(DUMÉNIL e LÉVY, 2014, p. 27). Porém, para estes autores, as contradições decorrentes da

fragilidade da estrutura financeira (pela procura de altos rendimentos que provoca a

propensão à geração de excedentes fictícios), as dificuldades dos principais países capitalistas

para controlar os mecanismos financeiros e a trajetória e desequilíbrios acumulativos da

economia dos Estados Unidos abriram o cenário da crise atual52

.

A perspectiva das análises resenhadas de Harvey e de Duménil e Lévy têm algumas

implicações concretas e levantam algumas questões para minha pesquisa. As contribuições de

Harvey ressaltam a importância de focar a análise nas formas concretas que o processo de

“neoliberalização” adotou em distintos momentos no Equador, resultante da disputa entre as

diversas frações da burguesia interna, a pressão internacional e os movimentos de resistência

às políticas neoliberais, além do grau de coerência na aplicação das reformas em relação com

os preceitos de programa neoliberal. Um segundo aspecto de importância para esta tese, diz

respeito à relevância da categoria de acumulação por espoliação, na medida em que contribui

para a compreensão dos processos de expansão da indústria extrativa (petróleo, mineração,

agronegócio) sobre territórios e populações indígenas e camponesas, das políticas do Estado

que acompanharam e estimularam esses processos de expansão e as distintas ações de

resistência levantadas pelos povos indígenas em defesa de seus direitos e territórios.

Assumir o neoliberalismo como a fase mais recente de desenvolvimento do

capitalismo ao nível global, seguindo Duménil e Lévy, me permite enxergar as

transformações operadas durante as três últimas décadas no Equador como parte de um

mesmo processo de desenvolvimento capitalista, articulado com as tendências e mudanças

internacionais acima descritas. Isso implica considerar o neoliberalismo como uma condição

cuja persistência se mantém, além das inflexões produzidas com o estabelecimento de

políticas de um maior intervencionismo estatal desde o ano 2007, no momento político aberto

com o governo de Correa, colocando uma maior ênfase analítica na compreensão das

continuidades em relação com o período anterior. Paralelamente, supõe compreender as

formas concretas como a região latino-americana e o país em particular tem se inserido na

conceito de “finanças” para se referir as frações superiores das classes capitalistas conjuntamente com as

instituições financeiras onde se concentra seu poder (bancos, fundos especulativos, fundos de pensões, incluindo

os bancos centrais e o Fundo Monetário Internacional FMI). Para estes autores o capital financeiro hoje não se

distingue nitidamente do capital produtivo, pois a propriedade do capital concentra-se nesse tecido institucional

que ao mesmo tempo possui uma fração importante das empresas não financeiras, que por sua vez operam por

meio de ativos financeiros (títulos de ações). 52

Segundo Duménil e Lévy (2014, p. 39), a crise atual pareceria abrir uma tendência para uma nova ordem

social caracterizada por um novo compromisso entre as classes altas, sob a liderança gerencial; uma saída à crise

ainda à direita, sem as características de bem-estar social das décadas de pós-guerra, mas numa configuração

diferente do neoliberalismo, que poderia ser chamada de “capitalismo neogerencial”.

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dinâmica de transformações globais produzidas nesta fase neoliberal do capitalismo e como

essa inserção se reflete nos processos internos de desenvolvimento capitalista e na

configuração das distintas parcelas da burguesia interna e de sua relação com o Estado

nacional. Consequentemente, duas questões se levantam desta linha de análise: como

caracterizar adequadamente o momento político aberto durante a última década na região e

quais categorias analíticas mediadoras podem efetivamente dar conta do processo concreto de

desenvolvimento capitalista no país decorrente nessa fase neoliberal.

Para caracterizar o momento político da região latino-americana e do Equador com a

ascensão de governos progressistas e de centro esquerda, a abordagem assumida nesta

pesquisa se afasta daquelas que consideram estes governos e os processos políticos por eles

impulsionados de “pós-neoliberais”, seja para enfatizar a recuperação do papel do Estado em

contraste com o momento anterior (Martínez, 2014; Acosta, 2012; Dávalos, 2012), ou para

qualificar esse novo momento como uma superação das políticas e do modelo neoliberal na

região (Sader, 2008; 2013), como se bastasse retomar o papel do Estado e reverter algumas

políticas pontuais para superar o neoliberalismo, sempre partindo do equívoco de caracterizar

o neoliberalismo a partir da oposição entre o mercado e o Estado, à que me referi

anteriormente. Essa caracterização conduz a minimizar na análise dos processos econômicos

e políticos os elementos de continuidade com as “políticas neoliberais” e perde de vista o

papel atual dos Estados latino-americanos (seja com governos considerados “progressistas”

ou “neoliberais”) para a consolidação do processo de reestruturação produtiva operado na

América Latina desde a década de 198053

. A tudo isso, deve-se acrescentar que uma grande

parte das reformas neoliberais realizadas para favorecer os grandes investimentos e a

expansão do capital permanecem intocadas e que as políticas sociais compensatórias e

focalizadas aplicadas pelos governos “progressistas” fazem parte das “receitas” neoliberais.

Por esses motivos, considero que a caracterização desses governos e suas políticas

como neodesenvolvimentistas54

ajusta-se melhor ao projeto de modernização capitalista que

53

Uma reflexão crítica sobre o papel dos Estados e dos governos “progressistas” no processo de restruturação

produtiva na América Latina e sobre o “pós-neoliberalismo” enquanto etapa de consolidação das reformas

neoliberais concebida pelos próprios organismos multilaterais (CEPAL, BID, Banco Mundial) encontra-se em

Stolowitz (2012). Nesse sentido, esta autora considera o “pós-neoliberalismo” como ponto de chegada da

estratégia dominante para legitimar e estabilizar a restruturação produtiva capitalista na América Latina. 54

Para uma discussão sobre os conteúdos atribuídos ao conceito de desenvolvimentismo e seu uso no debate

latino-americano ver Fonseca (2014). Para este autor, o núcleo comum principal do uso deste conceito está

constituído por três elementos centrais: a) a existência de um projeto deliberado que toma como seu objeto a

“Nação e seu futuro”; b) “a intervenção consciente e determinada do Estado” para viabilizar este projeto; c) a

industrialização enquanto caminho para acelerar o crescimento econômico e o progresso técnico, inclusive para o

setor primário. Isso tudo dentro dos marcos institucionais da economia capitalista (FONSECA, 2014, p. 41).

Nesse contexto, o neodesenvolvimentismo tentaria retomar esses elementos centrais como parte de seu projeto

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eles têm promovido, ao tempo que, como anota Harvey, os Estados desenvolvimentistas se

compatibilizam com o processo neoliberal na medida que facilitam a concorrência, criam um

clima favorável de negócios e operam conjuntamente com os interesses corporativos, com a

diferença de serem ativamente intervencionistas, especialmente na criação de infraestruturas

necessárias para o desenvolvimento capitalista (HARVEY, 2008).

Vinculado ao anterior, no que diz respeito às categorias analíticas mediadoras que

permitem compreender as transformações concretas operadas na região latino-americana e no

Equador na fase neoliberal de desenvolvimento capitalista, pode-se mencionar os conceitos de

“padrão de reprodução do capital” desenvolvido por Jaime Osorio (2004) e de “padrão de

desenvolvimento capitalista” de Luiz Filgueiras (2013). A noção de padrão de reprodução do

capital procura dar conta das formas concretas como o capital se reproduz (sua lógica interna

e os eixos que articulam e organizam sua reprodução), durante períodos históricos específicos

em espaços geográficos e sociais determinados. Na região latino-americana, Osorio considera

as transformações operadas durante as últimas décadas com as reformas neoliberais e

qualifica o atual padrão de reprodução de “exportador de especialização produtiva”, no qual a

reprodução do capital tem nos mercados externos seu principal espaço de realização

(especialmente de matérias primas), combinado com a manutenção e especialização em

poucos segmentos industriais onde existe alguma capacidade competitiva. A capacidade

competitiva nos mercados internacionais é alcançada incrementando os níveis de exploração

interna (OSORIO, 2012).

Por sua parte, o Conceito de padrão de desenvolvimento capitalista é desenvolvido

por Filgueiras (2013) para se referir aos atributos específicos (econômicos sociais e políticos)

que caracterizam a estrutura e dinâmica de desenvolvimento capitalista em um período

determinado de um Estado nacional. Entre o conjunto dos principais atributos considerados

para a definição de um “padrão de desenvolvimento capitalista”, o autor outorga primazia à

configuração “do bloco no poder” num momento histórico determinado. Bloco composto em

cada conjuntura por distintas classes e frações de classe dominantes que dirigem o Estado, sob

de desenvolvimento capitalista, tentando adequá-los às condições atuais. Ainda assim, como adverte Plínio de

Arruda Sampaio Jr. (2012) em referência ao caso brasileiro, o projeto neodesenvolvimentista, ao alçar

crescimento e modernização à condição de desenvolvimento, não passa de um simulacro do desenvolvimento e

sua aparência crítica “é apenas um disfarce para a apologia do status quo” (SAMPAIO JR., 2012, p. 681). Ao

ignorar as condições estruturais na ordem global que determinam o movimento da economia nacional, o

neodesenvolvimentismo deixa de perceber os interesses estratégicos externos e internos que provocam a

perpetuação da dupla articulação que marca a especificidade do capitalismo latino-americano: a dependência

externa e a extrema desigualdade entre as classes sociais. Dessa forma, “desaparecem os nexos entre burguesia

dos negócios, especulação mercantil e financeira como base da acumulação capitalista, dependência estrutural da

exportação de commodities e revitalização do latifúndio e do extrativismo — estruturas típicas da economia

colonial.” (SAMPAIO JR., 2012, p. 682).

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58

a liderança e hegemonia de uma delas55

. Ligados à configuração do bloco no poder, Filgueiras

acrescenta os seguintes atributos que definem um padrão de desenvolvimento: 1- “a natureza

e o tipo de regulação da relação capital–trabalho”; 2- as relações intercapitalistas; 3- a

articulação específica do Estado com o processo de acumulação; 4- a incorporação de

inovações tecnológicas; 5- as modalidades de financiamento da acumulação (públicas,

privadas ou externas); 6- “a estrutura de propriedade e distribuição de renda e da riqueza” e as

políticas sociais; 7- a inserção internacional; 8- as formas de organização e representação

política (FILGUEIRAS, 2013, p. 381). Considerando este conjunto de variáveis, Filgueiras

caracteriza o padrão de desenvolvimento capitalista brasileiro desde 1990 até o momento

atual como “padrão de desenvolvimento liberal periférico”, definindo distintos momentos e

pontos de inflexão do mesmo durante o período e identificando algumas de suas principais

tendências, entre as que se destacam a “reprimarização” e “especialização regressiva” da

economia brasileira e a configuração de um processo de “desindustrialização precoce”,

decorrente do tipo de inserção do país na economia internacional e do regime de políticas

macroeconômicas adotadas (FILGUEIRAS, 2013, p. 377).

Do ponto de vista de minha pesquisa, sem pretender alcançar uma caracterização

exaustiva do padrão de desenvolvimento capitalista no Equador no período analisado,

adotarei em diversos momentos (capítulos 3 e 4) esta noção desenvolvida por Filgueiras na

medida em que permite estabelecer uma conexão entre as dinâmicas econômicas e o processo

político, tomando como um de seus aspectos centrais a construção de hegemonia, concebida a

partir de uma perspectiva gramsciana, em concordância com a perspectiva teórica deste

trabalho (que abordo em seguida neste mesmo capítulo).

Para finalizar esta discussão sobre os sentidos e alcances dados ao neoliberalismo

neste estudo, por sua conexão com a abordagem teórica que orienta minha pesquisa, tem

especial relevância a perspectiva que compreende o neoliberalismo como a racionalidade do

capitalismo contemporâneo. Esta abordagem, desenvolvida por Laval e Dardot (2013),

alimenta-se das reflexões de Foucault sobre a governamentalidade, particularmente de seu

curso no Còllege de France de 1978-7956

, no qual discute o neoliberalismo como a

instauração de uma “razão governamental” encaminhada a conduzir a “conduta dos homens”

por meio de “uma administração estatal” (Foucault, 2008a, p. 437). Seguindo essa linha de

reflexão, Laval e Dardot (2013) consideram o neoliberalismo como uma racionalidade

55

Filgueiras (2013) toma como referencia a Poulantzas (1980) e Gramsci na definição dos conceitos de “bloco

no poder” e de hegemonia. 56

Publicado sob o título Nascimento da biopolítica (Foucault, 2008a).

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governamental, a “razão do capitalismo contemporâneo”, que tende a estruturar e organizar

não apenas “a ação dos governantes”, mas também “as condutas dos governados”. Trata-se da

lógica normativa do mercado que se desdobra em todos os domínios da vida social, “do

Estado até o mais íntimo da subjetividade”, generalizando o princípio da concorrência como

norma de conduta e tomando à empresa como modelo de subjetivação (LAVAL e DARDOT,

2013, p. 25). Nesta racionalidade neoliberal, o Estado é ele mesmo submetido a incorporar em

seu seio e em sua própria ação a norma da concorrência e deve “contemplar-se a si mesmo

como uma empresa”, em termos de seu funcionamento nos mais diversos âmbitos, bem como

em sua relação com outros Estados (LAVAL e DARDOT, 2013, p. 384). Consequentemente,

como diz Foucault em suas reflexões sobre as mudanças trazidas pelo neoliberalismo alemão

de pós-guerra (ordoliberalismo), trata-se de “um Estado sob a vigilância do mercado, em vez

do mercado sob a vigilância do Estado” (FOUCAULT, 2008a, p. 159).

Esta abordagem abre uma nova dimensão para a compreensão da natureza do

neoliberalismo, coloca em outro patamar a discussão sobre as transformações operadas

durante as três últimas décadas nas práticas institucionais dos Estados e nas políticas postas

em jogo nos mais diversos âmbitos (além das distinções ideológicas e políticas de um ou

outro governo) e explica o atual reforço do neoliberalismo em escala global, apesar da

profundidade da crise que atinge o capitalismo. Compreendidos a partir da racionalidade

subjacente da governamentalidade neoliberal, fenômenos em aparência distintos adquirem

uma nova inteligibilidade, das tendências à precarização laboral e à concorrência na redução

dos salários entre distintos países e regiões do mundo, as transformações operadas nas

Universidades e nos sistemas educativos submetidos também ao modelo da empresa,

passando pelos novos aparelhos repressivos e sistemas de segurança postos em operação nas

cidades ou pelas políticas de promoção do micro empreendedorismo popular, até as próprias

práticas de resistência ao neoliberalismo impulsados por diversos movimentos57

.

Esta abordagem também tem um papel crucial no percurso analítico proposto para

esta tese, pois tentarei compreender os processos derivados a partir do momento em que a

questão étnica é olhada pela lente da governamentalidade neoliberal e as populações

indígenas são incorporadas como alvo específico de sua ação, a partir dos desafios levantados

para o Estado equatoriano pelos processos de mobilização e confronto impulsionados pelo

movimento indígena. Trata-se da definição de uma nova política de administração de

57

Podem-se destacar trabalhos publicados recentemente na Argentina e Brasil que abordam algumas dessas

temáticas na América Latina a partir da perspectiva da governamentalidade neoliberal: Gago (2014); Murillo et

al (2015); Arantes (2014).

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60

populações que toma o multiculturalismo como um de seus eixos centrais, tal como será

abordado mais adiante. Em seguida, aprofundarei a discussão teórica em torno das categorias

mencionadas de hegemonia de Gramsci e de governamentalidade e biopolítica de Foucault,

sublinhando algumas das complementariedades e possibilidades de confluência que

apresentam como trilhas de análise para a compreensão dos fenômenos políticos

contemporâneos e, no caso desta tese, do processo político relativo à relação do Estado com o

movimento indígena e a configuração da mencionada política de administração de

populações.

2.4 ENLACE CONCEITUAL: Hegemonia, Estado ampliado, governamentalidade e

biopolítica

Como mencionado anteriormente, a perspectiva de análise que desenvolvo nesta tese

em torno da relação do Estado equatoriano e do movimento indígena durante as três últimas

décadas, toma as noções de hegemonia e Estado ampliado em Gramsci e de

governamentalidade e biopolítica em Foucault, como categorias teóricas centrais que orientam

minha reflexão. Embora estes dois autores tenham desenvolvido suas produções e suas

análises em contextos distintos e com perspectivas teóricas diferenciadas, como é aqui

discutido, as categorias mencionadas apresentam possibilidades de confluência e

complementaridade para encarar a discussão de problemas políticos relacionados com o

Estado contemporâneo no mais amplo sentido. Adequadamente contextualizadas, oferecem ao

mesmo tempo interessantes trilhas teóricas para a discussão sobre a relação entre o Estado e

os sujeitos sociais nos Estados latino-americanos na atualidade.

A partir de sua militância socialista e comunista na cena política italiana e de sua

produção intelectual como um verdadeiro intérprete de seu tempo58

, o legado teórico de

Gramsci oferece uma contribuição que inova e sofistica o marxismo para a compreensão das

dinâmicas em formações sociais específicas, especialmente ao trabalhar nas áreas da “análise

de conjuntura, da política, da ideologia e do Estado, do tipo de regime político, a importância

das questões culturais e nacionais-populares e a função da sociedade civil no equilíbrio

inconstante das relações entre as forças sociais da sociedade” (HALL, 2009, p. 281). Ao

indagar sobre os aspectos consensuais da dominação no capitalismo, a noção de hegemonia de

Gramsci tem contribuído com discussões significativas para a teoria política sobre o Estado

contemporâneo, no campo marxista.

58

Produção intelectual escrita em grande parte em condições extremamente difíceis no cárcere fascista italiana.

Para uma aproximação à vida de Gramsci e sua relação com os debates políticos desses anos, ver Santucci,

(2005).

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61

Por outro lado, embora as posições de Foucault se situem em outro arcabouço teórico

difícil de enquadrar numa só vertente, muitas vezes em confronto direto com as asserções de

algumas correntes mais dogmáticas do marxismo, e que, como o próprio Foucault ressalta, se

aproximam mais com as perspectivas de Nietzsche, Blanchot, e Bataille (Foucault, 2010a, p.

291), é importante destacar que Foucault continuamente nas suas análises do poder nas

sociedades capitalistas não deixa de dialogar com Marx e inclusive usa frequentemente alguns

de seus conceitos, mesmo sem nomeá-lo. Numa entrevista em 1975 com J.-J. Brochier,

Foucault afirmava:

[...], mas há também de minha parte uma espécie de jogo. Acontece com frequência

de eu citar conceitos, frases, textos de Marx, mas sem me sentir obrigado a ajuntar a

pequena peça autenticadora, que consiste em fazer uma citação de Marx, em colocar

cuidadosamente a referência em nota de pé de página, e em acompanhar a citação de

uma reflexão elogiosa, mediante o que se é considerado como alguém que conhece

Marx, que reverencia Marx e que se verá honrado pelas revistas ditas marxistas. Eu

cito Marx sem dizê−lo, sem colocar aspas, e como eles não são capazes de

reconhecer os textos de Marx, eu passo por ser aquele que não cita Marx. Será que

um físico, quando faz física, sente a necessidade de citar Newton ou Einstein? Ele os

utiliza, mas não tem necessidade de aspas, de notas em pé de página ou de

aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao pensamento do Mestre. E

como os outros físicos sabem o que fez Einstein, o que ele inventou, demonstrou,

eles o reconhecem na passagem. E impossível fazer história atualmente sem utilizar

uma ladainha de conceitos ligados direta ou indiretamente ao pensamento de Marx, e

sem se situar em um horizonte que foi descrito e definido por Marx (FOUCAULT,

2006a, p. 173).

Embora com uma postura crítica a alguns dos posicionamentos de Foucault, já

Poulantzas (1980) 59

sublinhava que as análises de Foucault enriquecem as análises marxistas

“em inúmeros pontos” e que elas “são não somente compatíveis com o marxismo, como

também só a partir dele podem ser compreendidas” (POULANTZAS, 1980, p. 75 e 76). Em

uma interessante análise nessa direção, Stéphane Legrand (2006) reconstrói o referencial

marxista presente em alguns conceitos centrais da teoria das relações de poder na “sociedade

disciplinar”, desenvolvidos por Foucault em Vigiar e punir: nascimento da Prisão (Foucault,

1999). Legrand mostra que esse referencial pode ser rastreado com clareza no Curso de

Foucault no Còllege de France do ano 1973 que precedeu a Vigiar e Punir, titulado “a

sociedade punitiva”60

, no qual evidencia-se que muitos conceitos de Marx foram a base e a

59

As críticas de Poulantzas estão referidas aos trabalhos desenvolvidos por Foucault até a publicação de Vigiar e

punir: nascimento da Prisão (Foucault [1975], 1999a) e História da sexualidade I: A Vontade de saber

(Foucault [1976], 1999b). Portanto, não incorporaram os desdobramentos posteriores da analítica do poder de

Foucault com a incorporação da discussão sobre a problemática da governamentalidade. Sobre as posições

comuns, as críticas de Poulantzas à analítica de poder de Foucault e o paralelismo entre o trabalho destes autores,

ver Jessop (2006). Sobre o significado das mudanças teóricas na obra de Foucault resultado da incorporação da

problemática da governamentalidade (ainda mais próxima da reflexão marxista), ver Lemke, 2006. 60

Apenas recentemente publicado em francês: Foucault (2013).

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condição necessária para o desenvolvimento das principais teses de Foucault. Legrand

acrescenta a importância de articular as análises de Foucault com uma teoria da exploração e

do modo de produção capitalista. Thomas Lemke (2006), de sua parte, após de traçar a

trajetória do pensamento sobre o poder de Foucault até chegar à problemática da

governamentalidade e do neoliberalismo como racionalidade política, conclui que Foucault

complementa e amplia a crítica da economia política de Marx, com “uma crítica da ração

política” (LEMKE, 2006, p. 17).

Com estes antecedentes, iniciarei a discussão sobre a complementariedade das

categorias mencionadas de Foucault e Gramsci, a partir da noção de hegemonia de Gramsci.

Nos “Cadernos do Cárcere” Gramsci frequentemente usa a noção de hegemonia para se referir

à combinação de coerção e consenso como exercício da supremacia da classe capitalista no

Estado e na sociedade. Num dos textos do Caderno 661

, o referido autor retoma uma

afirmação de Guicciardini62

, na qual se conjuga a importância do poder das armas com o

papel da religião para a vida de um Estado e converte esta relação em uma série de oposições

complementárias aplicáveis para a análise política do moderno Estado laico:

Afirmação de Guicciardini de que, para a vida de um Estado, duas coisas são

absolutamente necessárias: as armas e a religião. A fórmula de Guicciardini pode ser

traduzida em várias outras fórmulas menos drásticas: força e consenso, coerção e

persuasão, Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil, política e moral

(história ético-política de Croce), direito e liberdade, ordem e disciplina, ou, com um

juízo implícito de sabor libertário, violência e fraude. Em todo caso, na concepção

política do Renascimento a religião era o consenso e a Igreja era a sociedade civil, o

aparelho de hegemonia do grupo dirigente, que não tinha um aparelho próprio, isto é

não tinha uma organização cultural e intelectual própria, mas sentia como tal a

organização eclesiástica (GRAMSCI, 2000, p. 243-244).

Ao conjugar a coerção com o consenso na noção de hegemonia, Gramsci abriu um

terreno fértil de discussão sobre os mecanismos que permitem que a supremacia da burguesia

nos modernos Estados capitalistas se traduza e se sustente num consenso ativo das classes

dominadas, na sua aceitação da ordem estabelecida como uma ordem natural, permitindo

assim a reprodução do sistema capitalista. Gramsci adverte que a supremacia de um grupo

social se manifesta tanto como domínio (no sentido da coerção e presença direta ou latente do

uso da força) e ao mesmo tempo como “direção intelectual e moral” na sociedade (Gramsci,

2002, p.62). Trata-se consequentemente de uma supremacia que é exercida em um jogo de

imposições e concessões entre classes, blocos e frações de classe (ALMEIDA, 2012). A

hegemonia é exercida não apenas no campo econômico e administrativo, mas compreende “os

61

Trata-se do texto § 87 (GRAMSCI, 2000, p. 243-244). 62

Filósofo e historiador florentino contemporâneo de Maquiavel.

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domínios críticos da liderança cultural, moral, ética e intelectual” da sociedade (HALL, 2009,

p. 296). Na medida em que a hegemonia se refere aos processos sociais, culturais e políticos

em situações e relações de força que podem mudar, requer permanentemente sua renovação,

recriação, defesa ou modificação para confrontar as resistências que gera.

Algumas leituras dominantes da noção de hegemonia de Gramsci colocaram a ênfase

nos aspectos vinculados à obtenção de consentimento, deixando de lado a dimensão do uso da

força, ou por sua vez, opondo as duas dimensões em forma inversamente proporcional no

exercício do poder do Estado63

. Mas no pensamento de Gramsci estas dimensões estão

estreitamente ligadas entre si e operam em conjunto de forma variada, segundo as diversas

conjunturas. Assim, segundo Gramsci:

O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime

parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se

equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas ao

contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria,

expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os

quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados (GRAMSCI,

2000, p. 95).

A noção de hegemonia é chave no pensamento gramsciano, pois ela condensa alguns

dos elementos centrais de sua perspectiva, no que diz respeito às relações entre a estrutura

econômica e a superestrutura jurídica, política, ideológica e cultural, a relação entre Estado e a

sociedade civil, o papel dos intelectuais na construção e o exercício desta hegemonia, além do

complexo jogo de alianças entre as classes e as frações de classe para o controle do aparelho

do Estado.

Gramsci adotou um posicionamento crítico diante das correntes predominantes no

marxismo (determinismo na história e economicismo) que entendiam os fenômenos

superestruturais como um mero reflexo das relações econômicas da sociedade, o qual reduzia

e simplificava ao extremo a teoria marxista, com graves consequências na ação política. Para

Gramsci: “é o problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser posto com

exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na

história de um determinado período e determinar a relação entre elas” (GRAMSCI, 2000, p.

36). Assim, em suas análises históricas específicas e em suas asseverações de ordem teórica

ou metodológica, o autor estabelece um tipo de relação muito mais complexa e dinâmica, na

qual, no contexto da compreensão do grau de desenvolvimento das forças produtivas em uma

63

Uma crítica das leituras gramscianas da hegemonia que dão pouca importância à dimensão coercitiva do

Estado no exercício da hegemonia ou que compreendem a relação entre coerção e consenso em forma

inversamente proporcional, encontra-se em: Bianchi (2008) e Liguori (2004).

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64

sociedade (que constitui um conjunto de condições objetivas que estabelecem os limites nos

quais se situam e agem as forças históricas reais num determinado momento) 64

, é factível

diferenciar distintos momentos ou níveis para o desenvolvimento de uma conjuntura em

termos de correlações de forças, sem reduzir a esfera das superestruturas políticas ou

ideológicas à estrutura econômica (Hall, 2009), nem estabelecer uma relação de

correspondência mecânica entre elas.

Nessa perspectiva e vinculado à noção de hegemonia, está o conceito de bloco

histórico. Este conceito de uma parte expressa a articulação dialética entre a estrutura

econômica com as superestruturas política, ideológica e cultural em uma formação social,

unidade que se realiza por meio do trabalho dos intelectuais que contribuem para que um

sistema de valores culturais impregne, penetre, socialize e integre um sistema social (Portelli,

1977); de outra, refere-se à aliança entre classes e frações de classe sob a hegemonia de um

grupo específico num período determinado. Trata-se, por conseguinte, de uma articulação

hegemônica que se torna efetiva por meio da conquista do poder do Estado, quando se

concretiza a hegemonia como combinação de direção e coerção (ALMEIDA, 2012).

Gramsci não se afasta da concepção do Estado em Marx, como uma organização que

expressa os interesses de classe da burguesia e que tem como uma de suas dimensões centrais

o exercício da coerção para a manutenção da ordem social vigente nas sociedades capitalistas.

Porém, suas análises aproximam-se a uma compreensão mais cabal da complexidade do

Estado nas sociedades capitalistas modernas nas quais ele não se reduz a um mero

instrumento coercitivo ou administrativo da classe dominante, o qual bastaria ser tomado para

reverter sua supremacia (concepção característica de certo marxismo). Para o autor, o Estado

moderno constitui o espaço no qual a classe dominante se unifica e o ponto a partir do qual

exerce a hegemonia em última instância, condensando em sua estrutura e funcionamento um

conjunto de relações e práticas65

(Hall, 2009). Gramsci afirma:

A unidade histórica das classes dirigentes acontece no Estado e a história delas é,

essencialmente, a história dos Estados e dos grupos de Estados. Mas não se deve

acreditar que tal unidade seja puramente jurídica e política, ainda que também esta

forma de unidade tenha sua importância, e não somente formal: a unidade histórica

fundamental, por seu caráter concreto, é o resultado das relações orgânicas entre

Estado ou sociedade política e “sociedade civil” (GRAMSCI, 2002, p. 139).

64

Ver “Análise das situações: relações de força” (GRAMSCI, 2000, p. 36-46). 65

Esses elementos serão posteriormente retomados por Poulantzas em sua concepção do Estado capitalista na

qual enfatiza o papel do Estado como organizador do interesse político geral do longo prazo do conjunto da

burguesia sob a hegemonia de uma de suas frações (POULANTZAS, 1980, p. 152-153). Sobre a interpretação,

apropriação e desenvolvimento das análises de Gramsci sobre o Estado e a hegemonia na concepção do Estado

no pensamento de Poulantzas ver Jessop (2009).

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65

Consequentemente, nas sociedades capitalistas modernas, a hegemonia que a classe

dominante exerce sobre o conjunto da sociedade não fica circunscrita ao aparelho do Estado

no seu sentido restrito (sociedade política), mas inclui diretamente e em uma unidade ao

conjunto de “organismos designados vulgarmente como ‘privados’” que constituem a

sociedade civil (GRAMSCI, 2001a, p. 20) 66

. Isso conduz na perspectiva de Gramsci a sua

concepção do Estado no sentido ampliado, que envolve tanto o aparelho do Estado (aparelho

administrativo e coercitivo) como a sociedade civil. No pensamento do autor, a relação da

sociedade política e a sociedade civil é uma relação dialética de unidade/distinção, na qual a

unidade (“identidade”) entre elas têm um caráter “orgânico” que se exprime na vida histórica

concreta, enquanto a “distinção” é apenas de caráter “metódico” para fins analíticos67

(PRESTIPINO, 2004, p. 71).

Para designar essa unidade no Estado, Gramsci usou o termo “Estado integral”68

. A

expressão “Estado ampliado” foi introduzida por Christine Buci-Glucksmann (1980a) em seu

trabalho sobre Gramsci e o Estado, mas como aponta Liguori (2004), ela se justifica e pode

ser deduzida dos textos de Gramsci dos Cadernos do cárcere, especialmente quando ele fala

do “Estado em sentido orgânico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil)”

(GRAMSCI, 2000, p. 244). O que interessa ressaltar aqui é que a noção de Estado ampliado

implica de uma parte a mencionada relação de unidade/distinção da sociedade política e

sociedade civil no exercício e construção de hegemonia e, de outra, também se refere às

transformações operadas com a expansão do aparelho hegemônico do Estado capitalista na

mesma dinâmica de acumulação do capital e de reprodução social, na regulamentação e

“racionalização capitalista” da força de trabalho e na política assistencial (Buci-Glucksmann,

1980b), marcando novas formas de relação entre a política e a economia69

. Este último ponto

se traduz nas reflexões de Gramsci em relação ao “americanismo e fordismo” (Gramsci,

66

Liguori (2004) destaca a importância da expressão de Gramsci: “designados vulgarmente” e a colocação entre

aspas do adjetivo: “privados”, quando se refere aos organismos da sociedade civil (em esse e outros textos dos

Cadernos do Cárcere), para sublinhar o caráter só aparentemente “privado” e “separado” dos organismos da

sociedade civil e ressaltar que tais aparelhos hegemónicos fazem parte plenamente do Estado no pensamento de

Gramsci e, portanto, é possível falar da noção de “Estado ampliado” (LIGUORI, 2004, p. 214-215). 67

Ver Gramsci (2000, p. 47) Bianchi (2008) e Liguori (2004) também sublinham a importância dessa relação de

unidade/distinção entre a sociedade civil e a sociedade política na concepção do Estado de Gramsci. 68

O uso do termo “Estado integral” para se referir a unidade entre a sociedade política e a sociedade civil

encontra-se no Caderno 6, nos textos §10 (GRAMSCI, 1999, p. 436) e §155 (GRAMSCI, 2000, p. 257). 69

Esta dupla direção da ampliação do conceito de Estado também é sublinhada por Liguori (2004) e por Jessop,

(2009). Este último autor sugere uma distinção entre o conceito de “Estado integral” de Gramsci (sociedade

política + sociedade civil) e de “Estado ampliado” de Buci-Gluksmann, no sentido de que enquanto o conceito

de “Estado integral” teria “um valor metodológico geral” para a análise do Estado no capitalismo, o termo

“Estado ampliado” seria “útil para compreender a especificidade histórica do Estado” em estágios específicos de

desenvolvimento capitalista (JESSOP, 2009, p. 114).

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2001b), sobre o Estado fascista e sobre a intervenção e o papel do Estado na economia após

da crise de 1929, em que capta o passo da economia capitalista para sua fase keynesiana70

.

Desse modo, as instituições que constituem o aparelho administrativo e coercitivo do

Estado como a complexa rede de entidades da sociedade civil (igrejas, escola, sindicatos,

meios de comunicação71

, associações, organizações culturais, ONGs, etc.) cumprem um papel

fundamental na direção intelectual e moral da sociedade, para a produção e organização do

consenso entre as classes subalternas, marcando um conjunto de pautas ideológicas, culturais,

educativas, que garantem a reprodução da ordem social vigente. Como observa Hall, essa

perspectiva assume que nas sociedades capitalistas modernas nas quais a hegemonia não se

sustenta exclusivamente sobre a instrumentalidade imposta do Estado (mas que se fundamenta

também nas relações e instituições da sociedade civil) ocorre uma “dispersão do poder” e uma

“diversificação dos antagonismos sociais” (HALL, 2009, p.299).

Aqui podemos identificar uma primeira linha de confluência entre Gramsci e

Foucault, na qual cobra relevância uma concepção do poder como uma relação de forças, cuja

presença se exprime em todo o corpo social. Nesse sentido, tanto em Gramsci como em

Foucault, o poder não se localiza em um espaço institucional determinado per se, como uma

propriedade a ser tomada ou assaltada, mas as relações de poder estão presentes em toda a

vida social e operam em termos de relações de forças de modo dinâmico e em constante

mudança. O texto no qual Gramsci discute como analisar uma conjuntura histórica particular72

evidencia este aspecto, embora nesse caso suas orientações estejam concentradas

especificamente nos movimentos de forças que agem na história, a partir de uma análise de

classe. De todo modo, no pensamento de Gramsci observa-se uma maior centralidade em suas

análises em torno do papel da institucionalidade, constituída tanto pelo aparelho do Estado

restrito (sociedade política) como pelas entidades “privadas” da sociedade civil, enquanto

espaços de disputa entre as forças pela hegemonia política, ideológica e cultural no conjunto

da sociedade. Mesmo assim, é importante sublinhar a ênfase que o referido autor coloca nas

“atividades práticas e teóricas” dos processos de construção e exercício da hegemonia pelo

70

Ver Liguori (2004); Buci-Glucksmann (1980a); Jessop (2009). 71

Jorge Almeida, ao se referir à relação entre os meios de comunicação e a sociedade civil no pensamento de

Gramsci, destaca as diferenças entre as características da imprensa na época em que Gramsci viveu e escreveu

com as que a mídia tem atualmente. Para este autor, a mídia contemporânea não pode ser entendida unicamente

como parte da sociedade civil, pois “hoje a mídia é também marcadamente estrutura econômica e tem um forte

papel estruturante da política e da sociabilidade contemporânea. Porém, é mais do que isso: é um setor de ponta

(núcleo decisivo, para usar um termo gramsciano) da própria atividade econômica. [...] a grande mídia talvez

esteja mais próxima de ser um aparelho privado de hegemonia muito especial – que, além de ter um papel

configurante e superestrutural, de direção política, moral e cultural, na batalha das ideias, também está na

estrutura e tem uma função estruturante (e de hegemonia econômica)” (ALMEIDA, 2011, p. 130). 72

Ver Gramsci (2000, p.36-46) “Análise das situações: relações de força”, caderno 13, §17.

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Estado (ampliado), definindo o próprio Estado como “o complexo de atividades práticas e

teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue

obter o consenso ativo dos governados” (GRAMSCI, 2000, p. 331).

Para Foucault, no entanto, o poder é constitutivo do corpo social na medida em que

múltiplas relações de poder o “perpassam” e “caracterizam” (FOUCAULT, 2005, p. 28). O

poder constitui “em si mesmo, primariamente, uma relação de força” e “se exerce e só existe

em ato” (FOUCAULT, 2005, p. 21). Isso implica como afirma Deleuze, que sua característica

fundamental seja em relação a outras forças, de tal jeito que toda força já é relação, a saber,

poder (DELEUZE, 1987, p. 99). A partir daí derivam algumas das contribuições centrais em

relação ao poder no pensamento de Foucault, que Deleuze resume sob três aspectos: a) o

poder não é meramente repressivo; b) o poder se exerce mais do que se possui, neste sentido

incita, suscita, produz, afeta (por quanto uma força se define como tal em seu poder de afetar

outras forças); c) passa tanto pelos dominados quanto pelos dominantes ao atravessar todas as

forças em relação (Deleuze, 1987, p. 100)73

. Foucault não desconhece o caráter de classe que

podem assumir os mecanismos mais globais de dominação no capitalismo e também não nega

o papel das instituições do Estado em sua reprodução. Assim, para o autor:

Estas relações de poder, apesar de sua complexidade e diversidade, chegam a se

organizar em uma espécie de figura global. Poderíamos dizer que é a dominação da

classe burguesa sobre o corpo social. Mas não creio que isso seja a classe burguesa

ou tais elementos da classe que impõem o conjunto dessas relações de poder.

Digamos que ela se aproveita delas, que as dobra, que tenta intensificar algumas

dessas relações de poder ou que tenta ao contrário atenuar certas outras. Há, então,

um foco único, de onde sairiam, como por emanação, todas essas relações de poder

que, no total, torna possível a dominação de uma classe social sobre outra, de um

grupo social sobre outro. (FOUCAULT, 2010b, p.166).

Com uma concepção próxima da noção de Estado ampliado de Gramsci, Foucault

desenvolve as noções de governamentalidade e de biopolítica ao analisar os mecanismos e os

dispositivos de poder que emergem no momento em que a população passa a ser o objeto e o

sujeito da “arte de governar”. A governamentalidade é entendida por este filósofo como o

conjunto de instituições, procedimentos, reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer

essa forma complexa e específica de poder, que tem como alvo primordial a população, como

forma principal de saber a economia política e como instrumento essencial os “dispositivos de

segurança” (FOUCAULT, 2008b, p. 143). Trata-se, portanto, de uma tecnologia de poder que

se estende a partir do século XVIII, que toma a população como alvo final e ao mesmo tempo

como instrumento de governo e que dessa forma, “visa não o treinamento individual, mas

73

Ver também Foucault (2005, p. 32- 40).

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pelo equilíbrio global, algo como uma homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos

seus perigos internos” (FOUCAULT, 2005, p. 297). Assim, o conceito de

governamentalidade está diretamente vinculado com as táticas de governo subjacentes à

formação do Estado moderno74

e nesse sentido, pode ser interpretado também a partir da

construção de hegemonia.

Para Foucault esta tecnologia de poder não suplanta o poder soberano que

fundamenta a lei75

, nem os dispositivos disciplinares (analisados em várias de suas obras).

Pelo contrário, como adverte: “Temos de fato, um triângulo – soberania, disciplina e gestão

governamental –, uma gestão governamental cujo alvo principal é a população e cujos

mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2008b, p. 143). A

característica dos dispositivos de segurança é sua capacidade de regular a realidade sobre a

qual atuam os fenômenos da ordem coletiva que atingem a população como um conjunto.

População considerada ao mesmo tempo como objeto, o alvo para o qual se apontam esses

mecanismos para obter efeitos determinados e previsíveis; quanto como sujeito, pois é a ela

que se pede que se comporte de determinado jeito. Isso supõe o desenvolvimento de saberes

específicos relacionados com a análise de séries de acontecimentos prováveis e seus custos76

.

As tecnologias de poder integram-se, sobrepõem-se, exprimem-se, complementam-se

e concretizam-se em estratégias de conjunto77

, assumindo assim formas específicas de

conjugação da relação poder/saber. Para Foucault, com o aparecimento da

governamentalidade como tecnologia de poder, o problema da soberania se coloca com maior

74

Senellart, Michell, Situação dos cursos, em Foucault, (2008b, p. 448). Como coloca Foucault, “O Estado em

sua sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a partir das táticas gerais da

governamentalidade” (FOUCAULT, 2008, p. 145). 75

Esposito destaca que Foucault trabalha conscientemente para quebrar o “esquema categorial” presente no

discurso da soberania baseado na “existencia de dos entidades diferenciadas y separadas –el conjunto de

individuos y el poder- que en determinado momento traban relación entre sí conforme a las modalidades

definidas por un tercer elemento –la ley-”, esquema dentro do qual se dispõem todas as filosofias políticas

modernas, “acentuando ora uno, ora otro de sus polos”. A ruptura de Foucault com este esquema categorial

“no implica borrar la figura del paradigma soberano, ni reducir su rol objetivamente decisivo, sino reconocer

su real mecanismo de funcionamiento. Este no consiste en la regulación de las relaciones entre los sujetos, ni

entre ellos y el poder, sino en su sujeción a determinado orden que es al mismo tiempo jurídico y político.”

(ESPOSITO, 2006, p. 42-44). 76

Entre os múltiplos exemplos referidos aos dispositivos de segurança analisados por Foucault (2008b)

destacam-se as políticas orientadas à regulação da produção, circulação e comércio de grãos para evitar períodos

de escassez, a diminuição das taxas de mortalidade e de morbidade, políticas sanitárias, de controle de fatores

atuantes no meio ambiente, entre outros. 77

Em seus trabalhos Foucault analisa como os mecanismos de poder “foram e ainda são investidos, colonizados,

utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por

formas de dominação global.” (FOUCAULT, 2005, p. 36). Foucault refere-se a uma “produção multiforme de

relações de dominação que são parcialmente integráveis a estratégias de conjunto” as quais reajustam, reforçam e

transformam os procedimentos “dispersados, heteromorfos e locais de poder” (FOUCAULT, 2006b, p. 249). Os

dispositivos de poder integram, expressam e concretizam essas estratégias de conjunto, mediante formas

específicas de conjugação da relação poder/saber.

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agudeza na definição do fundamento do direito, das formas jurídicas e institucionais que pode

tomar “a soberania que caracteriza um Estado” (FOUCAULT, 2008b, p.141). Da mesma

forma, a disciplina passa a ser mais importante e valorizada a partir do momento em que se

procurava “administrar a população”, o que não significa “simplesmente administrar a massa

coletiva dos fenômenos ou administrá-los simplesmente no plano de seus resultados globais;

administrar a população quer dizer administrá-la igualmente em profundidade, administrá-la

com sutileza e administrá-la em detalhe” (FOUCAULT, 2008b, p. 142). A economia política

aparece aqui como a forma primordial de saber que vai permitir essa administração minuciosa

da população78

. Nessa direção, Foucault destaca que uma das razões da força do “poder do

Estado” ocidental moderno radica precisamente no fato que ele “é uma forma de poder, ao

mesmo tempo globalizante e totalizadora”, na qual converge uma complexa combinação de

“técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores” (FOUCAULT, 2014, p. 124).

Ao confrontar a noção de governamentalidade como tecnologia de poder em

Foucault com a noção de hegemonia de Gramsci, pode-se afirmar que a “arte de governar” (à

que se refere em última instância a governamentalidade) constitui precisamente a “arte” da

construção de hegemonia desenvolvida nas sociedades capitalistas, destinada à administração

minuciosa da população, transformando seus comportamentos, percepções e práticas para

conjurar seus perigos internos. Nesse sentido, Gramsci em vários de seus textos nos

“Cadernos do Cárcere” sublinha o papel formador e educativo que o Estado tem (enquanto

Estado ampliado), “cujo fim é sempre o de criar novos e mais elevados tipos de civilização,

de adequar a ‘civilização’ e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades

do continuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar

também fisicamente tipos novos de humanidade”. Seguidamente, pergunta-se como acontece

esse processo para os indivíduos singulares, como se exerce essa pressão educativa para obter

seu consentimento e colaboração, “transformando em ‘liberdade’ a necessidade e a coerção”,

para passar a destacar o papel da sociedade civil, que a diferença do direito “atua sem

‘sanções’ e sem ‘obrigações’ taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma pressão

coletiva e de obter resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de pensar e de

atuar, na moralidade, etc.” (GRAMSCI, 2000, p. 23-24).

Por outro lado, seguindo com o pensamento de Foucault, junto com o manejo da

população como sujeito e objeto das táticas de governo a partir de fines do Século XVIII,

78

Foucault analisa a economia política na sua acepção mais ampla que alude a “todo método de governo capaz

de assegurar a prosperidade de uma nação” como um saber que permitiu a “autolimitação da razão

governamental” característica do liberalismo (FOUCAULT, 2008a). À análise dessa racionalidade

governamental em suas distintas vertentes Foucault dedica o curso de 1978-79 do Còllege de France.

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70

surge uma série de técnicas ou mecanismos de regulação de fenômenos e processos coletivos

que se relacionam com a vida. Esses mecanismos de regulação aplicam-se à “vida dos

homens”, a saber, não sobre os corpos individuais (como no caso do poder disciplinar), mas

ao homem como “ser vivo”, à “multiplicidade dos homens” na medida em que esta

multiplicidade forma uma “massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios

da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.”

(FOUCAULT, 2005, p. 289). Ao se referir a estes mecanismos de regulação sobre a vida e os

processos biológicos do homem/espécie, Foucault introduz o conceito de biopoder ou

biopolítica, constatando uma tendência conducente para a “estatização do biológico”

(FOUCAULT, 2005, p. 286).

Dessa forma, enquanto o poder disciplinar opera sobre os sujeitos como indivíduos,

como corpos e almas, para submetê-los, treiná-los e produzi-los como sujeitos79

, o biopoder

por sua vez, opera sobre a população como conjunto, sobre o homem/espécie, regulando a

vida em geral. Assim, Foucault delineia duas séries: “a série corpo – organismo – disciplina –

instituições; e a série população – processos biológicos –mecanismos regulamentadores –

Estado” que configuram a sociedade de normalização que caracteriza ao capitalismo

industrial. (FOUCAULT, 2005, p. 298).

Para Deleuze, aqui encontramos no pensamento de Foucault as duas “funções puras”

do poder como força nas sociedades modernas: A “anatomopolítica” e a “biopolítica” e as

duas “matérias puras um corpo qualquer e uma população qualquer” (DELEUZE, 1987, p.

101). Esses complexos de poder/saber atualizam-se, estratificam-se, estabilizam-se e

integram-se numa “linha de força geral” e os agentes de tal integração são as instituições

(Estado, família, fábrica, etc.). Aqui reside uma das chaves que diferencia o campo de

visibilidade aberto por Foucault de outras abordagens mais convencionais na análise do

poder: “As instituições não são fontes nem essências”, são “práticas, mecanismos

operatórios”, cuja função é reprodutora e não produtora (DELEUZE, 1987, p. 104-105).

Como afirma Foucault, “não se trata de negar a importância das instituições na administração

das relações de poder”, mas elas devem ser analisadas “a partir das relações do poder, e não o

inverso” (FOUCAULT, 2014, p. 135).

Igualmente, do ponto de vista da combinação do poder disciplinar com o biopoder

nos Estados ocidentais modernos, também é interessante constatar como as perspectivas de

79

Para Foucault, “há dois sentidos para a palavra ‘sujeito’: sujeito submisso ao outro pelo controle e pela

dependência, e sujeito ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si. Nos dois

casos, essa palavra sugere uma forma de poder que subjuga e submete” (FOUCAULT, 2014, p. 123).

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71

Foucault coincidem com as preocupações de Gramsci em “americanismo e fordismo”

(Gramsci, 2001b) quem percebe as mudanças decorrentes das características e condições do

processo de desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos, com a adoção na indústria dos

métodos do taylorismo e fordismo. Longe de enxergar exclusivamente as transformações

produtivas, tecnológicas e das formas de trabalho, as reflexões de Gramsci apontam para as

mudanças nos modos de ser e de viver, nos costumes, na vida nas cidades, na sexualidade, na

situação das mulheres e na “composição demográfica da população”. Nessa direção, Gramsci

afirma que nos Estados Unidos com a “racionalização” da “produção e o trabalho”, a

“hegemonia nasce da fábrica”, combinando a “força (destruição do sindicalismo operário de

base territorial) com a persuasão (altos salários, diversos benefícios sociais, habilíssima

propaganda ideológica e política)” (GRAMSCI, 2001b, p. 247). Essa racionalização orientada

a criar “um tipo novo de trabalhador e de homem” (Gramsci, 2001b, p. 266) exige um

aprendizado e uma adaptação a “determinadas condições de trabalho, de nutrição, de

habitação, de costumes, etc.” e a baixa natalidade urbana demanda “um continuo e relevante

gasto com o aprendizado dos novos urbanizados” (Gramsci, 2001b, p. 251); exige também a

“sujeição dos instintos” as normas e hábitos de ordem, exatidão e precisão, a

“regulamentação” da “questão sexual”, a “formação de uma nova personalidade feminina”, o

“fortalecimento da ‘família” e a monogamia. (GRAMSCI, 2001b, p. 251-252, 262-269).

Enfim, a “americanização exige um determinado ambiente, uma determinada estrutura social

(ou a decidida vontade de criá-la) e um determinado tipo de Estado”: o “Estado liberal” no

sentido “da livre iniciativa e do individualismo econômico” (GRAMSCI, 2001b, p.258-259).

Seguindo com Foucault e a discussão sobre a biopolítica, este autor caracteriza a

instauração do biopoder – poder que toma a cargo a vida – a partir da transformação do direito

na teoria clássica da soberania no final do século XVIII e inícios do Século XIX, nas

sociedades ocidentais modernas. Nessa teoria, o poder soberano possui o direito de vida e

morte sobre os súbditos como um de seus atributos principais. Isso significa que o poder

soberano pode “fazer morrer e deixar viver”, pois “o efeito do poder soberano sobre a vida só

se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar”. Para Foucault, com a inclusão

de um novo direito que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo e completá-lo, emerge o

biopoder que instala o novo direito: “Fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2005, p.

286-287).

Aqui radica uma das chaves para a compreensão da biopolítica no Estado moderno

que tem aberto uma linha importante de discussão na filosofia política contemporânea, ao por

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72

em tensão os âmbitos da soberania, o direito, a política e a vida80

. Ao mesmo tempo daqui

emergem os paradoxos que entranham o exercício do biopoder e a estatização do biológico. O

próprio Foucault (2005) os identifica ao se referir ao surgimento do poder atômico que vai

além do poder de matar centenas de milhões de seres humanos, de acordo com os direitos

atribuídos a qualquer soberano, mas que põe em jogo um poder de soberania capaz de matar a

vida e consequentemente de suprimir-se como poder capaz de segurá-la. Igualmente, ao se

referir ao nazismo que “levou até o paroxismo o jogo entre o direito soberano de matar e os

mecanismos do biopoder” (FOUCAULT, 2005, p. 312).

Dessa forma, ao mesmo tempo em que se instaura um biopoder orientado a preservar

a vida, em suas entranhas também está presente, como derivação, seu oposto, que é a

produção de morte. De fato, a biopolítica através de seus mecanismos regularizadores se

traduz na possibilidade de qualificar a vida, prolongá-la, potenciá-la, melhorar seus

desempenhos, controlar os fatores que a constringem ou limitam, evitando a morte. Trata-se

de um poder afirmativo que já não obedece exclusivamente ao imperativo da conservação e

ampliação de suas próprias estruturas, como no caso do poder soberano, mas que ao atuar com

a vida de quem governa, incorpora na sua lógica o bem-estar dos governados, “extraindo sua

própria força da força de seus súbditos”, obrigando ao Estado a gerar prestações em múltiplos

âmbitos: da defesa, até a economia e a saúde pública (ESPOSITO, 2006, p. 60).

Aqui novamente encontram-se complementariedades com a noção de hegemonia de

Gramsci, na medida em que as biopolíticas constituem poderosos instrumentos de direção,

construção do consenso e legitimação. Para este autor, a hegemonia pressupõe

indubitavelmente que sejam considerados os interesses e as tendências dos grupos sobre os

quais se exerce esta hegemonia (neste sentido extraindo sua própria força da força de seus

súditos), o que implica o estabelecimento de concessões para as classes dominadas na medida

em que não envolvam o “essencial” em relação ao núcleo decisivo da atividade econômica no

capitalismo (GRAMSCI, 2000, p. 48).

Como mencionado anteriormente, retomando a discussão do paradoxo do biopoder

que entranha ao mesmo tempo o poder de morte, nos limites do exercício da biopolítica na

modernidade aparece também seu reverso que contradiz seu impulso produtivo e leva a

produção massiva de morte, como demostra a história do século XX e muitos dos fenômenos

políticos de nosso tempo. Diante dessa constatação Esposito se pergunta: “¿Por qué un poder

80

Entre os autores que continuaram com essa linha de reflexão a partir das abordagens de Foucault sobre a

biopolítica e o biopoder na filosofia política contemporânea com distintas perspectivas, se destacam os trabalhos

de Agambem (2010, 2007, 2011, 2008), Esposito (2006), Hardt, M. y T. Negri (2002).

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73

que funciona asegurando la vida, protegiéndola, incrementándola, manifiesta tan grande

potencial de muerte? (…) ¿Por qué la biopolítica amenaza continuamente con volverse

tanatopolítica?” (ESPOSITO, 2006, p. 65).

Na procura de uma explicação para o paradoxo que surge no contexto do avanço do

biopoder regulador que tem como função realçar a vida, do exercício de um poder político

que se arroga o direito de matar, de fazer matar ou expor à morte não só a seus inimigos, mas

a seus próprios cidadãos, Foucault encontra no papel do racismo do Estado uma interpretação

plausível. Assim, afirma que foi a emergência do biopoder “o que inseriu o racismo nos

mecanismos do Estado” a partir do Século XIX, enquanto mecanismo fundamental de poder

tal como se exerce nos Estados modernos. De um lado, o racismo permite estabelecer um

corte no domínio da vida que o poder tomou sob seu cargo: “o corte entre o que deve viver e o

que deve morrer”, em função de uma classificação e hierarquia das raças que fragmentam o

campo do biológico (FOUCAULT, 2005, p. 304). De outro lado, o racismo se levanta sobre

um princípio compatível com o biopoder: de que a morte dos outros (a raça inferior) significa

o “fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça

ou de uma população” (FOUCAULT, 2005, p. 308). Nesse sentido, os inimigos que interessa

suprimir “são os perigos, externos ou internos, em relação à população e para a população”

(FOUCAULT, 2005, p. 306).

Assim, para Foucault, o racismo é “a condição de aceitabilidade de tirar a vida em

uma sociedade de normalização”, na medida em que o Estado funciona na modalidade do

biopoder, “a função assassina do Estado só pode ser assegurada pelo racismo”. Ao se referir

ao direito de tirar a vida, Foucault não se limita exclusivamente ao “assassínio direto”, mas

inclui também “tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar

para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição,

etc.” (FOUCAULT, 2005, p. 306).

Estas reflexões de Foucault referidas à dimensão racial da biopolítica nos Estados

modernos nos conduzem a estabelecer os nexos com as conotações especificas que assume

essa dimensão racial na América Latina e com a especificidade da dominação étnica. Na

América, o fato colonial estruturou as relações sociais na economia colonial em relação com a

classificação racial. Foi o fato colonial que instituiu o “índio” e hierarquizou a sociedade em

função da diferenciação racial e a identificação/classificação étnica. Como aponta Quijano

(2014), o fato colonial marca as particularidades das sociedades latino-americanas em sua

articulação com o processo de desenvolvimento do capitalismo no âmbito global, desde os

seus primórdios, estruturando até hoje as dinâmicas econômicas sociais e políticas. Quijano

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74

descreve estas particularidades com o conceito de “colonialidade do poder” 81

. Para Quijano

(2014, p. 312), a partir da “inserção da América no capitalismo mundial moderno/colonial”,

as pessoas “classificam-se e são classificadas” segundo três grandes linhas “articuladas em

uma estrutura global comum pela colonialidade do poder”: trabalho, gênero e raça. A noção

de colonialidade do poder reveste importância nesta tese, porque permite historizar a

articulação específica que no mundo andino tem as relações sociais de exploração e de

dominação, contribuindo para uma compreensão integrada das relações de classe com a

questão da etnicidade. De igual forma, contribui também para a compreensão das formas

concretas que adota essa dimensão racial da biopolítica nos Estados latino-americanos e a

persistência do racismo/etnicismo nas relações sociais contemporâneas.

2.5 O MULTICULTURALISMO COMO DISCURSO DOMINANTE E DISPOSITIVO

BIOPOLÍTICO NA GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL

A perspectiva teórica adotada neste trabalho permite situar as relações entre o Estado

e o movimento indígena operadas desde 1990, a partir da irrupção do movimento na cena

política nacional, num campo estratégico de relações de força que vão se modificando em

função de um conjunto de condicionamentos históricos, nos quais está inserida a questão

indígena no Equador, das exigências do processo de desenvolvimento capitalista na fase

neoliberal e da atuação do movimento frente ao Estado e as classes dominantes. Além das

diferenças e definições conjunturais presentes na gestão de um ou de outro governo em

relação à questão étnica, ao colocar a discussão em termos das tecnologias de poder, das

táticas que se desenvolvem é possível analisar as ações e políticas impulsionadas pelo Estado

do ponto de vista de seus pontos de convergência, da coerência subjacente que elas vão

alcançando na sua articulação em “estratégias de conjunto” destinadas a administrar a

população indígena e a questão étnica. Ao mesmo tempo supõe a possibilidade de entender a

confluência destas tácticas, ações e políticas com outras forças presentes no âmbito nacional e

internacional, além do espaço restrito à institucionalidade do Estado. Neste sentido, a adoção

por parte do Estado de um multiculturalismo adequado ao neoliberalismo pode ser

considerada como um eficiente dispositivo de poder/saber e de construção de hegemonia para

a administração da população indígena no Equador, conjurando os perigos implícitos no seu

processo de mobilização e nos seus questionamentos ao modelo neoliberal. Ao mesmo tempo,

esta abordagem contribui para a compreensão das complexas dinâmicas do movimento no

81

Sobre a noção de “colonialidade do poder” desenvolvida por Quijano, ver: Quijano (1992); Quijano e

Wallerstein (1992); Quijano (2014).

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75

decorrer das duas últimas décadas e como as respostas do Estado e a sociedade têm moldado

suas ações, reconfigurado seus discursos e se adequado às condições impostas pelo processo

de desenvolvimento capitalista no seu momento neoliberal.

Ao tentar caracterizar os principais elementos desta política de administração da

população indígena, é possível identificar cinco eixos principais ao redor dos quais ela foi

concretizada. Estes são: 1) o enquadramento dos mecanismos de diálogo e negociação do

Estado com o movimento após os distintos levantamientos numa pauta circunscrita que

impossibilitou reverter a aplicação das políticas neoliberais e as tendências da acumulação

capitalista no campo; 2) o estabelecimento de concessões e o reconhecimento de direitos

coletivos na Constituição, com escassa aplicabilidade ao não se emitir a legislação secundária,

sem modificar as condições de subordinação indígena nem atingir aspectos relativos às

relações econômicas; 3) a geração de um neoindigenismo de Estado por meio da criação de

uma institucionalidade indígena especificamente dedicada para esta população e gerida pelos

representantes indígenas; 4) a entrega de recursos destinados para as comunidades indígenas e

a atenção de demandas pontuais no espaço de confluência do campo político com o campo

social do desenvolvimento; 5) a incorporação e cooptação ativa das lideranças e dos

representantes indígenas na gestão dos espaços abertos no Estado, dos ministérios, das

entidades estatais para os povos indígenas, dos governos locais e dos projetos de

desenvolvimento orientados para esta população.

Ao fazer uma revisão destas políticas e do seu surgimento em distintos governos ou

em alguns momentos chaves da história recente equatoriana (referidos à relação Estado –

Movimento indígena) é interessante constatar que elas têm como discurso articulador e como

justificativa o respeito à diversidade cultural e um multiculturalismo de Estado que parte do

reconhecimento do Equador como país pluriétnico e multicultural.

O discurso do multiculturalismo desenvolve-se na esfera internacional e adquire

centralidade como um discurso dominante durante as décadas de 1980 e 1990, num contexto

marcado por um novo ciclo de acumulação e expansão do capital em escala planetária

(globalização econômica), ciclo caracterizado pelo predomínio das grandes corporações

transnacionais e do capital financeiro: o momento neoliberal do capitalismo global.

Concomitantemente, frente a uma suposta homogeneização e padronização cultural que este

processo deveria ter provocado, observa-se nestes anos o ressurgir de uma multiplicidade de

identidades particulares em distintas partes do mundo que se exprime numa série de

reivindicações e conflitos de caráter étnico, regional, nacional ou religioso (DÍAZ

POLANCO, 2009). Na América Latina também encontramos este florescimento identitário,

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76

particularmente vinculado com o emergir dos movimentos indígenas.82

A partir de diversas

posições teóricas e políticas, a ênfase na diversidade e nas diferenças culturais acompanharam

este ressurgimento.

O discurso do multiculturalismo condensa de forma emblemática a mudança nas

posturas teóricas e políticas para permitir uma adequada gestão das diferenças e da

diversidade cultural no contexto do capitalismo global e dos Estados liberais. Portanto, o que

se procura em uma sociedade diversa é que os distintos grupos étnicos em questão ocupem

uma posição de igualdade frente ao Estado, a partir de um ato de reconhecimento dessa

diversidade orientado a gerar práticas políticas e redistributivas mais inclusivas (CERVONE,

2009: 201)83

.

De outro lado, nos últimos anos, distintos autores têm colocado posições críticas no

que diz respeito às políticas da identidade baseadas no reconhecimento da diversidade

cultural e o multiculturalismo, colocando a ênfase nos limites destas políticas num contexto

no qual as desigualdades socioeconômicas têm se exacerbado com a globalização econômica

e o neoliberalismo. É conhecido o debate protagonizado por Nancy Fraser em torno da teoria

do reconhecimento84

. Para esta autora, as demandas pelo reconhecimento das diferenças

(nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade) levantadas por uma variedade de

movimentos sociais e que cobraram primazia como “forma paradigmática” do conflito

político ao finalizar o século XX, centradas em diversas formas de reconhecimento cultural,

deslocaram as lutas pela redistribuição socioeconômica como objetivo da luta política frente

das injustiças (FRASER, 2001, p. 245). Fraser reconhece que na sociedade as injustiças

econômicas geralmente estão imbricadas com injustiças culturais ou simbólicas arraigadas aos

padrões sociais de representação e que se reforçam mutuamente. Nesta linha de discussão, são

tratados o reconhecimento e a distribuição como duas perspectivas e dimensões distintas da

justiça (FRASER, 2007). A autora considera que a justiça hoje exige tanto a redistribuição

quanto o reconhecimento e que nenhum deles por si só é suficiente.

82

Uma síntese dos processos de surgimento e de construção identitária dos movimentos indígenas na América

Latina encontra-se em Bengoa (2007). No caso do Brasil, junto aos movimentos indígenas este ressurgir

identitário envolve também as chamadas populações tradicionais (quilombolas, faxinalenses, fundos de pasto,

etc.). 83

Charles Taylor (2009) e Will Kymlicka (1996; 2008) são as principais referências teóricas do

multiculturalismo com suas análises a partir do caso do Canadá. Estes autores procuram compatibilizar o

reconhecimento de direitos específicos e coletivos para populações com identidades culturais diferenciadas com

a universalização de direitos e a noção liberal de cidadania nos Estados liberais. 84

Sobre os elementos centrais deste debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth ver Fraser (2000; 2001; 2007),

Honneth (2003; 2007); Mattos (2006).

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77

Ao se referir ao reconhecimento de direitos diferenciados no contexto de uma

suposta igualdade cidadã, o discurso do multiculturalismo concentra a discussão nos aspectos

jurídicos e culturais, deixando de lado as dinâmicas econômicas decorrentes da produção

capitalista, geradoras de desigualdades que incidem diretamente sobre os direitos individuais

ou de grupo e que geralmente se fusionam com as diferenciações étnicas ou culturais. Neste

sentido, também não coloca nenhum nível de relação entre as distinções de classe e étnicas

como elementos estruturantes nos quais se assenta a desigualdade. Além disso, como afirma

Cervone, o que chama a atenção é a ausência de qualquer questionamento sobre a natureza do

Estado-Nação. O ponto de partida e de chegada é o Estado liberal (generalizando-se as

características do mesmo a partir dos casos de Canadá e Estados Unidos) sem problematizar

as relações estruturantes de dominação.

A partir de uma perspectiva crítica ao discurso do multiculturalismo, Zizek coloca

que este “ha sido asumido como forma ideal de la ideología del capitalismo global que –

desde una suerte de posición global vacía– trata a cada cultura local como el colonizador

trata al pueblo colonizado: como “nativos”, cuya mayoría debe ser estudiada y “respetada“

cuidadosamente” (ZIZEK, 2005: 172). Para este autor, a expansão capitalista que se

concretiza numa ordem mundial (cujos traços universais se exprimem no mercado mundial,

nos direitos humanos e na democracia), na qual o poder colonizador surge diretamente das

empresas multinacionais, supõe sua própria ficção hegemônica de “tolerância

multiculturalista” e se permite o florescimento de diversos “estilos de vida” em sua

particularidade (ZIZEK, 2005: 164-165). O multiculturalismo constitui uma “forma de

racismo negada, invertida, autorreferencial”, na qual o respeito à identidade do Outro,

concebido como uma comunidade autêntica, fechada, realiza-se a partir de uma posição ou

um “punto vacío de universalidad” privilegiada, de onde se pode “apreciar (y despreciar)

adecuadamente las otras culturas particulares: el respeto multiculturalista por la

especificidad del Otro es precisamente la forma de reafirmar la propia superioridad”

(ZIZEK, 2005, p. 172).

Na mesma tônica, Diaz-Polanco adverte que nesta fase globalizadora do capital, a

valorização da diversidade segundo a lógica de promover certa politização da cultura que

provoca a despolitização da economia e da política, favorece a consolidação do sistema e aos

grandes negócios corporativos85

. (DÍAZ-POLANCO, 2009, p. 18).

85

Díaz-Polanco analisa também como o discurso multicultural é assumido pelas empresas multinacionais no seu

afã de lucro. Por meio de um poderoso marketing algumas empresas dão um toque multicultural a suas

estratégias de negócios, ajustando sua imagem, sua organização e suas técnicas de mercado aos imperativos da

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78

Na sua análise da relação entre o capitalismo atual e a questão da identidade, este

autor distingue três momentos ou facetas de domínio que não correspondem a um processo

linear, mas que se superpõem: uma fase inclusiva, outra diferencial e finalmente uma

administrativa. A fase inclusiva se caracteriza por um afã integracionista a partir da suposição

de um espaço público imparcial (neutralidade do poder), em busca da inclusão universal,

baseada numa noção universal de justiça aplicável a todos sem distinção. Aqui as diferenças

aparecem como não essenciais ou se ignora sua existência. Na fase diferencial, ao contrário,

as diferenças deixam de ser ignoradas ou atacadas diretamente para dar passo a uma nova

estratégia orientada a sua dissolução gradual, por meio da atração, a sedução e a

transformação. Díaz-Polanco introduz a noção de etnofagia para se referir a esta estratégia por

seu caráter devorador e assimilador das identidades étnicas, por meio de um conjunto de imãs

socioculturais e econômicos colocados para atrair, desarticular e dissolver os grupos

“diferentes”. Este momento etnofágico não exclui o objetivo da integração, ela é promovida

por outros meios, modelando as diferenças culturais sob o manto do respeito e a exaltação dos

valores indígenas. O Estado se apresenta como o garante e o protetor dos valores étnicos no

momento de atenuar os impactos dos procedimentos do capitalismo selvagem. Ao mesmo

tempo, incorpora a participação de representantes dos grupos étnicos para lhes converter em

promotores da integração “por vontade própria” como ideólogos e agentes das novas práticas

indigenistas (DÍAZ-POLANCO, 2009).

A terceira fase, a administrativa, liga-se diretamente ao predomínio do

multiculturalismo como enfoque teórico e político, que supõe uma concepção sobre a

diversidade e como tratá-la (condições em que as identidades podem ser aceitas inserindo-as

no sistema de dominação); por outra parte, recomenda uma série de práticas e políticas

públicas que devem ser adotadas em relação às diferenças culturais (políticas da identidade).

No caso dos países latino-americanos, este momento caracteriza-se pela adoção de reformas

legais que reconhecem o caráter pluricultural da sociedade e estabelecem alguns direitos

específicos para os povos indígenas, ao mesmo tempo em que se aplicam modelos de

desenvolvimento e políticas socioeconômicas enquadradas no neoliberalismo, que corroem

diretamente a identidade dos povos indígenas em seus alicerces: as comunidades. Desta

maneira, precisam-se e delineiam-se “os limites da tolerância” neoliberal para o diferente,

procurando que nenhum reconhecimento afete a ordem política e o modelo econômico. Díaz

diversidade (DÍAZ-POLANCO, 2009). Armando Bartra também sublinha este ponto: “Sean identidades étnicas,

especies biológicas, cocinas nacionales o cafés de origen, los distintos se admiten si son clasificables,

normalizables, intercambiables, lucrativos.” (BARTRA, 2008, p. 190).

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Polanco conclui: “El multiculturalismo se ocupa de la diversidad en tanto diferencia

‘cultural’, mientras repudia o deja de lado las diferencias económicas y sociopolíticas que,

de aparecer, tendrían como efecto marcar la disparidad respecto al liberalismo que está en

su base” (DÍAZ-POLANCO, 2009).

Numa linha similar de análise Charles Hale (2002; 2005), a partir de seu trabalho

etnográfico na Guatemala, aborda o multiculturalismo como expressão do projeto cultural do

neoliberalismo, promovido por poderosas instituições multilaterais como o Banco Mundial e

pelos Estados nacionais como uma resposta às demandas por direitos dos povos indígenas

“culturalmente oprimidos e excluídos”. Dessa forma, o “multiculturalismo neoliberal”

promove o reconhecimento proativo de um grupo de direitos culturais no contexto da

equidade intercultural (legislação antidiscriminação, reformas na política educativa,

reconhecimento das línguas indígenas, etc.) e uma vigorosa rejeição do restante dos direitos,

provocando uma dicotomia entre concessões e proibições que estrutura o espaço político para

os ativistas pelos direitos indígenas, ao distinguir entre sujeitos reconhecidos e perigosos

(recalcitrantes, radicais) e ao estabelecer os limites do campo dos direitos legítimos e das

formas de alcançá-los (HALE, 2002, p. 490).

A partir dessas linhas de análises é possível afirmar que o discurso do

multiculturalismo, como discurso hegemônico e enfoque teórico político para um adequado

tratamento das diferenças e a diversidade no neoliberalismo realiza um triplo processo

caracterizado por: a) o deslocamento de toda articulação na abordagem dos processos

culturais com os elementos econômicos, sociais e políticos, provocando uma sobrevalorização

de uma esfera cultural cindida em relação às outras dimensões da realidade social; b)

concomitantemente, o deslocamento da noção de classe nas lutas sociais pela primazia das

identidades culturais ou étnicas, consideradas da mesma maneira isoladas dos processos

econômicos e sociais e de seus vínculos com qualquer conteúdo classista (por exemplo, as

identidades indígenas resultantes perdem os conteúdos vinculadores com a condição de

camponeses, como se tratasse de duas realidades contrapostas); c) a redução do horizonte das

políticas públicas por parte do Estado para os povos indígenas e seu enquadramento em

políticas da identidade, as quais supõem o reconhecimento da diversidade nos seus aspectos

culturais, a concessão de alguns direitos de difícil aplicação e de programas de

desenvolvimento com um viés assistencialista, destinados a atenuar os impactos do modelo

econômico sobre as comunidades indígenas; neste horizonte não se consideram políticas que

pudessem colocar em risco o modelo de acumulação ou que incidam nos fatores estruturais

que determinam a desigualdade econômica e a subordinação dos povos indígenas.

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80

Ao fazer uma revisão rápida do acontecido nas relações entre o Estado equatoriano e

o movimento indígena durante as duas últimas décadas é possível entrever como operou o

multiculturalismo como mecanismo de regulação biopolítico, como dispositivo de segurança

orientado à administração da população indígena para um tratamento adequado das diferenças

culturais no marco do neoliberalismo, conjurando os perigos internos que os protestos e

levantamientos indígenas representavam para este modelo econômico.

Assim, em primeiro lugar, o multiculturalismo se posicionou como discurso diretriz

que conduziu a ação do Estado em relação à questão étnica. Por meio do multiculturalismo o

Estado-Nação encontrou na diversidade cultural seu próprio espaço de legitimação e de

construção de hegemonia. Como vacina contra os efeitos perturbadores que representavam os

levantamientos indígenas e os questionamentos do movimento ao sistema de dominação

étnica, aos fundamentos etnocêntricos e a natureza do Estado-Nação, para manter o curso do

modelo neoliberal e o padrão de acumulação capitalista (especialmente na agricultura), com o

multiculturalismo o Estado equatoriano se imunizou injetando uma pequena dose de

tolerância e valorização da diversidade cultural. Desta forma, administrou e desenhou

políticas por meio das quais domesticou e enquadrou as demandas étnicas num curso

assimilável pelo Estado, políticas que marcam certa continuidade com os afãs integracionistas

que caracterizaram o indigenismo na América Latina. Redefine assim o âmbito e as condições

nas quais faz viver e deixa morrer às populações indígenas. Como exemplos destas políticas

observa-se a criação de entidades do Estado especificamente orientadas para a população

indígena como o CODENPE86

e as reformas constitucionais para reconhecer os direitos

indígenas, sem garantir as condições para sua aplicação.

O processo de reformas constitucionais desenvolvido pela Asamblea Nacional

Constituyente no ano 1998 é o processo que melhor exprime o giro multicultural dado pelo

Estado equatoriano para o estabelecimento de concessões no que diz respeito às demandas

indígenas centradas então no reconhecimento do Estado equatoriano como um Estado

plurinacional, como será analisado no capítulo terceiro. Nesta ocasião, com a participação de

“representantes indígenas” (eleitos por votação popular) o Estado equatoriano reconheceu

uma ampla gama de direitos coletivos dos povos e nacionalidades indígenas. Ainda que o

reconhecimento destes direitos possa ser interpretado como uma importante conquista do

movimento indígena, não tendo sido aprovada nenhuma legislação secundária nem a

86

Consejo de Planificación y Desarrollo de los Pueblos Indígenas y Negros, criado em 1997 durante o governo

interino de Alarcón.

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81

regulamentação que permita que estes direitos possam ser aplicáveis em termos concretos, os

mesmos ficam colocados numa espécie de limbo jurídico.

Um segundo aspecto a ser destacado é que o multiculturalismo como mecanismo

biopolítico de governo incidiu no processo de subjetivação dos que constituíam seu objeto

principal, modelando e disciplinando as consciências e as práticas dos indígenas como

sujeitos. Assim, penetrou nas percepções do movimento indígena e de seus representantes

enquadrando suas expectativas e reivindicações no terreno do “politicamente correto” do

possível e aceitável pelo próprio Estado, provocando uma discriminação entre sujeitos

reconhecidos e perigosos, impondo uma regulação moral sobre eles. Trata-se da construção

do “índio permitido” na figura desenvolvida por Hale (2002; 2005). Em relação ao conjunto

do movimento indígena, tanto os seus representantes e nas suas comunidades de base, o

dispositivo multicultural contribuiu para domesticar seu discurso, suas reivindicações e lutas,

por meio de uma tendência a culturalizá-las e esvaziá-las de qualquer conteúdo classista.

Este aspecto pode ser observado pelo giro etnicista que assumiu o discurso da principal

organização indígena do Equador após o levantamiento protagonizado em 1994, que parou

por duas semanas o país contra a chamada lei agrária, aprovada no governo de Duran Ballén;

lei originalmente proposta por os empresários agrícolas com um claro viés neoliberal e que

significou o funeral da reforma agrária no Equador, como se discute no capitulo terceiro.

Nesta ocasião, a saída diante dos protestos indígenas e camponeses, os quais novamente

combinavam as demandas classistas com as étnicas, foi a conformação de uma comissão

negociadora, com participação das câmaras empresariais e lideranças indígenas, para formular

mudanças ao texto da lei, para chegar a uma proposta de “consenso”. Em uma conjuntura

desfavorável com um texto de lei aprovado, as modificações ao texto que o movimento

indígena conseguiu incluir não alteraram os conteúdos centrais desta lei. No entanto, o Estado

inaugurava uma nova forma de negociação com os indígenas, na qual, ao mesmo tempo em

que incorporava e reconhecia os representantes do movimento como interlocutores legítimos

na discussão e negociação das políticas impunha os limites de sua atuação, enquadrados na

aplicação das políticas neoliberais.

No entanto, também os conteúdos contestatórios presentes na proposta étnica da

plurinacionalidade (autonomia, autogoverno, autodeterminação) seriam posteriormente

matizados. O que pode ser identificado com clareza ao se aproximar do discurso público dos

representantes indígenas na “Asamblea Constituyente” de 1998 referida anteriormente. No

processo de discussão e aprovação dos direitos coletivos na Constituição produziu-se uma

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82

adequação sutil das colocações dos representantes indígenas durante a Asamblea ao assumir

posições “politicamente corretas” em concordância com os ventos do multiculturalismo que já

ressoavam fortemente nos corredores da Asamblea e no campo político como discurso

hegemônico tendente a estabelecer os termos em que o Estado podia assumir o

reconhecimento da diversidade, como se detalha no capítulo 3.

Um terceiro aspecto que deve ser destacado é que o dispositivo multicultural também

modela as percepções da população em relação ao mundo indígena e ao tratamento das

diferenças culturais, marcando o campo do que pode ou não ser admitido, condicionando os

imaginários sociais referidos ao Estado-Nação e o senso comum “cidadão” sobre a

“realidade” indígena. As imagens televisivas de um índio folclórico e feliz, que com sua

diversidade cultural contribui para construção de um “país de todos”, trabalhando em terras

(alheias) dedicadas à floricultura de exportação, onde existe harmonia e não mais exploração,

invadem com frequência as publicidades governamentais, empresariais ou eleitorais. A

indústria cultural também opera em código multicultural difundindo diferenças construídas

artificialmente, no dizer de Grüner, como uma falsa “totalidad”, “disimulada en el

particularismo de unas culturas ‘locales’ que se parecen entre sí sospechosamente” (Grüner,

2005: 57). Neste sentido, é interessante destacar que ao revisar as matérias dos jornais

produzidas no período do levantamiento em 1994 contra a lei agrária, assim como as notícias

que davam conta do levantamiento, do processo de negociação ou das posições das Câmaras

empresariais e do movimento indígena apareciam editoriais chamando à mesura aos indígenas

e várias reportagens exaltando a diversidade cultural do país numa perspectiva multicultural,

destacando a necessidade de que o Estado construa sua unidade reconhecendo as diferenças87

Finalmente, o multiculturalismo no neoliberalismo como dispositivo de poder/saber

soma um conjunto de adesões para sua reprodução como discurso hegemônico e congrega a

comunidade acadêmica, intelectuais progressistas e indígenas, políticos e funcionários do

mundo do desenvolvimento, alinhados com o prestígio da defesa que ele faz da diversidade e

a promoção do pluralismo (DÍAZ-POLANCO, 2009). Como coloca Zizek, dado que o

horizonte da imaginação social aceita tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar, é

como que “la energía crítica hubiera encontrado una válvula de escape en la pelea por

diferencias culturales que dejan intacta la homogeneidad básica del sistema capitalista

mundial” (…) Enquanto isso, “el capitalismo continúa su marcha triunfal” (ZIZEK, 2005,

p.176).

87

Ver por exemplo, Diario El Comercio, “¿Distintos pero unidos?”, 15-07-1994. Ver também Kipu, 22, Jan.-

Jun. 1994; Kipu, 23, Jul.-Dez. 1994.

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83

3 O MOVIMENTO INDÍGENA EQUATORIANO: História e processos organizativos

Antes de nuestro tiempo, ellos ya lo hicieron: el primer paso de los

tiempos de lucha (Jorge Herrera, Presidente da CONAIE) 88

.

A irrupção do movimento indígena na arena política equatoriana, marcada com o

primeiro levantamento indígena nacional em junho de 1990, reverberou nacionalmente num

dinâmico processo de articulação política e organizativa do movimento produzido nos anos

anteriores, no qual convergiram diversas tendências e organizações das três regiões do país,

organizações elas mesmas resultantes de um acúmulo de lutas e resistências gestadas em

distintas localidades. A conformação e consolidação da CONAIE como a maior organização

indígena do Equador89

na década de 1980 ilustra uma das facetas desse processo,

especialmente com a convergência das federações regionais indígenas da Serra e da

Amazônia equatoriana, a qual se somariam as nacionalidades da região Costa. Daí que Luis

Macas, uma das principais lideranças indígenas da CONAIE, tenha qualificado a década de

1980 como uma “década ganhada” pelo movimento indígena em relação à consolidação de

sua unidade política e organizativa (MACAS, 2000). Paralelamente, esse processo de

articulação organizativa também foi vivenciado nos níveis locais e provinciais com o

incremento do número de comunas e associações de base registradas e com a conformação

das federações de comunidades90

.

88

Tradução: “Antes de nosso tempo, eles já o fizeram: o primeiro passo dos tempos de luta” (Entrevista Jorge

Herrera, 22 novembro 2014: entrevista realizada por Florencia Campana e Fernando Larrea). 89

A CONAIE é a maior organização indígena nacional, mas não é a única. Com diversas trajetórias às quais me

referirei mais adiante neste capítulo, também está a FENOCIN (Confederación Nacional de Organizaciones

Campesinas, Indígenas y Negras), a FEINE (Consejo Ecuatoriano de Pueblos y Organizaciones Indígenas

Evangélicos) e a histórica FEI (Federación Ecuatoriana de Indios), já muito fragilizada na década de 1990.

Essas organizações que, em termos gerais, estruturam o movimento indígena equatoriano, expressam diversas

tendências e interesses diante das políticas do Estado equatoriano, confluindo em algumas ocasiões em seus

posicionamentos e inclusive em suas ações ou divergindo e estabelecendo posicionamentos contrapostos em

outras, como poderá ser apreciado nos capítulos 3 e 4. 90

Diversos estudos constataram o incremento quantitativo do número de comunas e associações de base nas

regiões indígenas a partir da década de 1970 e a formação de federações de comunidades (Organizações de

Segundo Grau). Ver Zamosc (1995); Chiriboga (1985); Ramón (1994); Carrasco (1993).

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84

Este processo organizativo que configurou o movimento indígena em suas diversas

expressões encarna em si mesmo a complexidade e a heterogeneidade da composição interna

do movimento e consequentemente não deve ser interpretado como um processo livre de

conflitos e contradições, nem em uma só direção. Também não foi um processo desenvolvido

isoladamente pelas comunidades e organizações indígenas à margem de fortes vínculos

mantidos com diversos agentes externos (partidos da esquerda, Igrejas em suas diversas

expressões e correntes, agências de desenvolvimento públicas e privadas, instituições do

Estado, etc.).

Trata-se de um processo que apela para uma cultura organizativa sustentada em

formas culturais e simbólicas indígenas (andinas e amazônicas principalmente) e que se afinca

numa longa tradição de luta das comunidades que remite às sublevações e levantamentos

indígenas desde a época colonial91

e que no século XX tem como seus primeiros referentes

organizativos os sindicatos indígenas conformados desde a década de 1920 na região

Interandina, que levariam posteriormente à constituição da FEI (Federación Ecuatoriana de

Indios) em 1944, cujas maiores lideranças como Dolores Cacuango, Tránsito Amaguaña,

Jesús Gualavisí, Luis Catucuamba, Miguel Lechón (entre outros) são frequentemente

rememoradas até hoje no discurso das organizações e lideranças indígenas.

Nessa perspectiva, nos processos organizativos indígenas contemporâneos nacionais

não somente está presente uma memória vinculada às lutas de resistência indígena, mas eles

próprios se originam diretamente das lutas pela terra na região Interandina e pela defesa dos

territórios das nacionalidades amazônicas, ameaçados pelos processos de colonização

impulsionados pelo Estado e pela expansão das atividades extrativistas na floresta amazônica

(petróleo, madeira, etc.), no contexto dos processos de modernização agrária e

desenvolvimento capitalista no campo desde a década de 1960.

Sem pretender uma revisão exaustiva da história das distintas federações indígenas e

dos processos que levaram a formação e consolidação das organizações nacionais, no presente

capítulo me interessa realizar uma síntese dos antecedentes históricos e fatores relevantes que

configuraram esse processo de articulação organizativa e entender os principais debates que

estiveram presentes no movimento, a partir do olhar atual de algumas das lideranças indígenas

da Serra e da Amazônia entrevistadas. Nessa direção, abordarei as principais transformações

produzidas no campo equatoriano com o processo de desenvolvimento capitalista e a

aplicação das duas leis de Reforma Agrária (1964 e 1973) na Serra equatoriana e a

91

Sobre os levantamentos e sublevações indígenas durante a Colônia ver Moreno (1985).

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85

desestruturação do sistema de dominação sobre a população indígena articulado em torno do

funcionamento da chamada “hacienda” tradicional serrana, baseada na propriedade

latifundiária, na prevalência de relações precárias e na extração de renda do trabalho indígena

e de relações de dominação sustentadas na diferenciação étnica e racial. A partir disso,

descreverei em grandes linhas o processo de luta pela terra nas comunidades andinas e suas

implicações no processo organizativo regional e nacional. Em contraste com o processo

vivenciado na região Interandina caracterizarei também as particularidades do processo de

articulação organizativa nas nacionalidades amazônicas, dando especial relevância às lutas

pela defesa de seus territórios. A compreensão das particularidades desses processos regionais

me permitirá seguidamente discutir a confluência deles na formação da CONAIE enquanto

organização nacional e a importância da noção de nacionalidades indígenas para a articulação

das lutas, ao mesmo tempo étnicas e classistas, numa plataforma comum que interpelou o

Estado em torno da proposta de construção de um Estado plurinacional. Finalizarei esta

revisão dos antecedentes do processo organizativo indígena com a discussão do significado do

levantamento indígena de junho de 1990, como momento marcante da constituição do

movimento indígena como sujeito político na arena nacional.

3.1 TRANSFORMAÇÕES AGRÁRIAS, LUTAS E PROCESSO ORGANIZATIVO DO

CAMPESINATO INDÍGENA NAS COMUNIDADES DA REGIÃO INTERANDINA

Para quem visita as comunidades indígenas da região Interandina e indaga sobre sua

história é comum escutar as referências ao “tempo das haciendas”92

e dos “patrones”

(patrões), como uma constante presente no discurso levantado pelas mais diversas pessoas.

Esse “tempo” remete-nos também às lutas levantadas pelas comunidades para acessar a posse

da terra ou para se libertar das relações de exploração e dominação associadas com a vida

cotidiana nas “haciendas”, bem como aos processos organizativos que as sustentaram.

Mesmo que esse “tempo” nem sempre tinha sido vivenciado diretamente pelas novas gerações

de lideranças do movimento indígena, continua vivo hoje a partir das lembranças das falas de

“nuestros mayores” (nossos ancestrais), isto é, das mães, pais ou avós daqueles que hoje

assumem posições de liderança ao nível local ou nacional no movimento.

O sistema de “hacienda” na Serra equatoriana teve uma origem colonial e sua

predominância como sistema de produção e de organização das relações de trabalho e de

poder no mundo rural equatoriano estendeu-se no tempo, com algumas variações, até a

92

No contexto da região Serra equatoriana o termo “hacienda” refere-se à propriedade de uma extensão

considerável de terra na posse de uma pessoa (o “patrão”) bem como ao conjunto de relações de poder

associadas à produção dessa terra.

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86

segunda metade do século XX, concretamente até as décadas de 1960 e 1970, durante as quais

se produziram as duas leis de reforma agrária e a eliminação legal das chamadas relações

precárias de trabalho (atravessadas por formas não assalariadas).

No período colonial, no espaço administrativo da Real Audiência de Quito93

(que

abarcava o território que hoje é o Equador), o processo de desapropriação das terras indígenas

por parte dos conquistadores, encomenderos94

e colonizadores espanhóis produziu-se

progressivamente desde as primeiras décadas da colônia, sendo que, para a segunda metade

do Século XVII, esse processo já praticamente tinha concluído (BORCHART de MORENO,

1998, p. 157)95

. Segundo a concepção jurídica no início da colônia, o Rei da Espanha era

considerado o sucessor legítimo do último Inca, podendo dispor para sua distribuição ou

venda das terras atribuídas e ele e ao Estado (denominadas “tierras realengas”), enquanto as

terras das comunidades indígenas deviam ser respeitadas (BORCHART de MORENO, 1998).

Nesse sentido, nas primeiras décadas da colônia até finais do século XVI,

predominaram as denominadas “mercedes de tierras”96

como forma de apropriação privada

da terra, especialmente das terras consideradas “realengas”. Posteriormente o processo de

espoliação e apropriação da terra aprofundou-se atingindo as terras das comunidades

indígenas, especialmente por meio de “remates de tierras” (leilões de terras) feitos pelas

93

Durante o período colonial o território que hoje é Equador (junto com o Sul da Colômbia e Norte de Peru)

esteve na jurisdição da Real Audiencia de Quito, instância administrativa da Corona espanhola criada por Real

Cédula o dia 29 de agosto de 1563. A Real Audiencia de Quito esteve sob a jurisdição do Virreynato de Lima e

desde 1739 do novo Virreynato de Nueva Granada (Santa Fe de Bogotá). Ver González Suárez (1970). 94

Durante os dois primeiros séculos da colônia espanhola, as “encomiendas” tiveram especial relevância para a

subordinação das populações indígenas, pois por meio delas se realizava a cobrança do tributo aos indígenas e se

mantinha o controle religioso. Embora não implicavam direitos de propriedade sobre a terra, por meio dessa

instituição, a Corona Espanhola outorgava direitos de domínio ou de senhorio sobre os índios localizados em

determinado território. O encomendero devia cuidar deles e de suas almas (estabelecer e ministrar a doutrina

cristã e administrar os sacramentos, para o qual pagava uma pensão aos padres “doctrineros”) e receber para si o

tributo taxado em dinheiro e em espécie de todos os índios tributários (homens de entre 18 e 50 anos de idade)

que faziam parte de sua encomienda. A arrecadação dos tributos em cada parcialidade indígena da encomienda

era feita pelos caciques indígenas (kurakas em quíchua) para ser entregues ao encomendero. Na medida em que

os tributos arrecadados dependiam da quantidade de índios tributários, as encomiendas se apreciavam em função

do número de índios tributários (Ver González Suárez, 1970). Devido ao dramático declínio da população

indígena com a consequente diminuição de índios tributários, para finais do Século XVII as encomiendas tinham

progressivamente perdido vigência, até ser finalmente abolidas em 1720. Sobre o colapso demográfico das

populações indígenas causado pela conquista e colonização de América ver Todorov (2009); Wachtel (1976).

Para o caso do território da Audiencia de Quito ver Salomon (1989); Tyrer (1988); Larrain (1980); Ramón

(1987). 95

Diversos estúdios históricos detalham os processos de desapropriação das terras indígenas e de formação do

latifúndio (hacienda) na colônia em várias regiões da Serra equatoriana, bem como os processos de resistência

das comunidades. Ver Borchart de Moreno (1998); Moreno (1995a); Ramón (1987); Rebolledo (1992); Bonnett

(1992); Coronel (1991). 96

Chamavam-se “mercedes de tierras” por quanto a terra era outorgada pelas autoridades da Corona espanhola

por meio das "Reales cédulas de gracia y merced".

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87

autoridades coloniais, sejam estas terras realengas97

ou de comunidades endividadas (como

consequência de atrasos no pagamento de tributos), bem como da usurpação direta, legalizada

posteriormente através das denominadas “composiciones de tierras”98

, realizadas desde a

década de 1630.

O processo de usurpação das terras indígenas que se somou à tributação e ao controle

da força de trabalho indígena através das mitas99

fraturou as possibilidades das comunidades

indígenas de manter as formas de reprodução social e cultural com relativa autonomia, como

tinha acontecido durante as primeiras décadas da colônia. A consolidação da “hacienda”

enquanto sistema produtivo predominante na Serra equatoriana desde a segunda metade do

século XVII implicou não apenas o controle dos recursos produtivos, mas também a sujeição

de uma grande percentagem da força de trabalho indígena ao interior das haciendas, isto é,

como uma população permanente que morava dentro das haciendas e que dependia

totalmente delas para sua reprodução. Para 1804-1805 Oberem identificou que de um total de

45.481 índios tributários (homens de entre 18 e 50 anos de idade) que correspondiam a nove

das dez administrações de tributos da região Interandina da Audiencia de Quito, 46% (21.109)

estavam sujeitos às haciendas (OBEREM, 1981b, p. 346)100

.

97

As instituições coloniais (Real Audiencia e Cabildo de Quito) apropriaram-se de terras esvaziadas como

consequência do declínio da população indígena e pelo reordenamento decorrente da conformação de

“reducciones” de indígenas em determinado número de povoados mais acessíveis para facilitar a cobrança do

tributo, a implantação da doutrina cristã e seu controle, em aplicação das ordenanças de Toledo durante a década

de 1570 (RAMÓN, 1987; BORCHART DE MORENO, 1998). 98

As “composiciones de tierras” foram atos jurídicos por meio dos quais se legalizaram as propriedades que

tinham sido constituídas de fato ou de formas ilegais, com a condição do pagamento de uma taxa fiscal para a

Real Fazenda (MORENO, 1995a). Moreno considera determinante a aplicação deste mecanismo para a

apropriação e concentração da terra e a consolidação do latifúndio na Serra equatoriana no século XVII. 99

Baseada numa forma de trabalho pré-hispânica usada pelo Império Inca que implicava na realização de turnos

de trabalho obrigatório para a construção de obras de infraestrutura, o serviço da “mita” foi imposto pelas

autoridades da colônia espanhola às parcialidades indígenas como uma obrigação pela qual todos os índios

homens (com uma idade entre 18 e 50 anos) pertencentes a uma comunidade (partícipes das terras da

comunidade) e súditos do cacique local, tinham que entregar trabalho obrigatório fora de sua comunidade, por

um tempo determinado (legalmente era por um ano, mas frequentemente esse período estendia-se). Esta

obrigação se repetia cada cinco anos, daí que nas fontes históricas se fala de “índios quintos” para se referir aos

“índios mitayos” (OBEREM, 1981a, p. 307). Mesmo sendo um trabalho forçado, era pago um salário que servia

para cumprir com a obrigação do tributo. Os caciques indígenas (que tinham o privilégio de ser exonerados do

pagamento do tributo e do serviço da mita) eram os encarregados de recrutar e regular os turnos do trabalho

forçado da mita (MORENO, 1995b). Com o trabalho dos “índios mitayos” levantaram-se as cidades, plantaram-

se os campos apropriados pelos espanhóis, extraiu-se o ouro das escassas minas na região Sul do Equador e

produziram-se os tecidos nos “obrajes”, para abastecer os mercados regionais e centros de produção mineira de

Potosí e Popayán que dinamizaram a economia da Audiencia de Quito, até a crise da produção têxtil do século

XVIII. A mita foi abolida em 1812. Sobre o papel dos obrajes e a importância da produção têxtil na Audiência

de Quito ver Borchart de Moreno (1998); Tyrer (1988). Para uma descrição detalhada do funcionamento da mita

na Audiencia de Quito ver Oberem (1981a). Jorge Juan e Antonio de Ulloa (enquanto cronistas coloniais tardios)

nas “Noticias secretas de América”, escritas em 1747, também deram conta de seu funcionamento e do gravame

que geravam para os índios nos “Corregimientos” da Província de Quito (JUAN E ULLOA, 1826). 100

Em algumas zonas esses percentagens eram significativamente elevadas superando 70 e 80 %. É ilustrativo o

caso da zona de Cayambe (ao Norte de Quito), estudado por Ramón, zona em que já para 1685, 78% dos índios

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Ao abordar as transformações produzidas nas formas de reprodução social das

parcialidades e comunidades indígenas na zona de Cayambe (Norte de Quito), Galo Ramón

(1987) sublinha o papel desorganizador que teve esse processo de consolidação do sistema de

hacienda sobre as “economias étnicas” cacicais e sobre as formas organizativas indígenas

baseadas nos grupos familiares e de afinidade (ayllus) que obrigou grupos inteiros

submeterem-se às condições impostas pelas haciendas e engajarem-se nelas, deixando sob o

controle dos latifundiários o pagamento do tributo e sua reprodução social. Mas ao mesmo

tempo, Ramón salienta a outra face desse processo: a faceta da resistência indígena marcada

pelas dinâmicas de readaptação das instituições comunitárias indígenas às condições impostas

pelas haciendas. Para este autor, tratou-se de um processo de “reconstituição étnica” gerado

através da recomposição dos grupos familiares de parentesco e dos “núcleos de afinidade”

indígenas enquanto espaços de intensa circulação de bens, serviços e conhecimentos,

integrando neles um contingente de índios “forasteiros” e “vagabundos” produzidos pelo

sistema colonial, para constituir dentro das haciendas um “território comunal de reprodução”

social e de recriação de sua identidade étnica cultural (RAMÓN, 1987, p. 221-266).

As formas de sujeição às haciendas marcaram também a diferenciação entre “índios

livres” e “índios sujeitos”, que se traduziria coletivamente na diferença entre as chamadas

“comunidades livres” e as comunidades de hacienda, estas últimas constituídas pelos grupos

familiares e de afinidade dos indígenas sujeitos às haciendas que residiam nelas. Em

contraste, as “comunidades livres” foram aquelas que resistiram o processo de usurpação de

terras e conseguiram manter para si uma parte de seus territórios, mesmo acuadas em zonas de

maior altitude, mais distantes ou com solos de menor qualidade. O grau de “liberdade” e

independência destas comunidades em relação às haciendas esteve diretamente vinculado ao

nível de preservação de seus territórios, do qual dependia sua capacidade de autossuficiência,

ainda considerando o pagamento de tributos. Chiriboga (1985, p. 61) ressalta que naquelas

zonas nas quais as comunidades lograram preservar melhor seus territórios mantiveram

maiores níveis de autossuficiência e inclusive seu referencial étnico enquanto povos, a

exemplo dos Otavalos na Serra Norte e dos Saraguros no Sul. Serão precisamente as

“comunidades livres” as primeiras em assumirem a forma de comunas reconhecidas pelo

Estado em função da lei expedida em 1937101

, antes das reformas agrárias e de sua posterior

tributários estavam sujeitos às haciendas, percentagem que se manteria similar (78,3%) 120 anos depois segundo

aponta o estudo de Oberem. (RAMÓN, 1987, p. 177). 101

Trata-se da Ley de Organización y Régimen de las Comunas, expedida em 1937 orientada a submeter

politicamente às comunidades ao Estado como tinha me referido anteriormente (ver nota 33 do Capitulo

primeiro).

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multiplicação como principal forma organizativa de base assumida pelas comunidades

indígenas da Serra equatoriana.

O processo de consolidação da hacienda e de sujeição do trabalho indígena significou

também a generalização das relações de trabalho que caracterizaram por vários séculos este

sistema produtivo com a adoção da forma de trabalho “huasipungo” 102

e ligado a ela o

“concertaje”103

(sistema de endividamento forçado e permanente do trabalhador), como

formas primordiais para manter as famílias indígenas sujeitas e arraigadas na hacienda e de

extração de renda-trabalho. A forma de trabalho huasipungo consistia no direito de usufruto

do trabalhador (o huasipunguero) de uma parcela de terra na hacienda para a manutenção de

sua família e para sua moradia, junto com o direito de acesso a pastagens para um número

limitado de animais, água e lenha da hacienda. De sua parte, o huasipunguero estava obrigado

a trabalhar para o proprietário (de 4 a 6 dias por semana104

) pelo qual recebia uma diária

complementária105

. Além disso, as famílias huasipungueras deviam prestar serviços diversos

em forma rotativa na casa da hacienda como huasicamas106

e participar de mutirões em

102

A palavra huasipungo (wasipunku) é uma palavra quíchua (kichwa) composta de dos vocábulos wasi (casa) e

punku (porta). O uso desse termo para se referir à parcela de terra entregue em usufruto pelos latifundiários a

seus trabalhadores com a concomitante obrigação desses últimos de entregar vários dias de trabalho na semana

para a hacienda, está circunscrito ao Equador. (OBEREM, 1981a). 103

O Concertaje constituiu um sistema de trabalho com endividamento permanente dos trabalhadores residentes

nas haciendas que estava sustentado na prisão por dívidas. Por meio deste sistema os trabalhadores das

haciendas recebiam adiantamentos em dinheiro ou em produtos (chamados de socorros e suplidos) do patrão que

deviam ir descontando com trabalho. Desse jeito, os “indios conciertos” permaneciam sujeitos à hacienda,

comprometendo inclusive as seguintes gerações (as dívidas se passavam de pais para filhos quando os primeiros

morriam). Quando as haciendas eram vendidas, as propriedades eram anunciadas e eram transferidas com seus

“indios conciertos”. Os socorros e suplidos serviam para cobrir diversas necessidades e com frequência eram

solicitados para pagar despesas rituais vinculadas às festividades religiosas ou familiares (batismos, bodas,

funerais). O concertaje foi legalmente abolido em 1918, mais de 20 anos após da revolução liberal de 1895,

como resultado do embate político entre liberais (que incluíam setores vinculados à burguesia comercial e

bancária emergente da região litorânea equatoriana e intelectuais da época) e as forças conservadoras (que

representavam fundamentalmente aos latifundiários -“terratenientes”- da serra e a setores da Igreja Católica),

como uma medida propugnada pela ideologia liberal tendente a liberar à força de trabalho indígena das

haciendas serranas. Sobre a importância e funcionamento do concertaje desde a época colonial e no século XIX

ver Oberem (1981); Quintero e Silva (1991). Para uma visão abrangente do concertaje como parte das relações

de dominação e poder (incluindo suas dimensões simbólicas) no sistema de hacienda ver Guerrero (1991). Em

relação aos debates políticos produzidos em torno da abolição do concertaje ver: Guerrero (1991); Guerrero

(2010); Prieto (2004); Barsky (1984). 104

Ver Oberem (1981a); Guerrero (1975); Barsky (1984). Guerrero ressalta que em 1938 a legislação trabalhista

(“Código de trabajo”) estabeleceu a quantidade máxima de quatro dias de trabalho por semana exigíveis aos

huasipungueros, mas isso em realidade não se cumpriu (GUERRERO, 1975, p. 64) . 105

O “Código de trabalho” de 1938 também estabeleceu que a diária a ser paga aos huasipungueros não podia

ser menor a metade do salário mínimo marcado para os diaristas da mesma localidade, entre outras disposições

para regulamentar o trabalho dos huasipungueros e estatuir legalmente normas fixadas no costume. (BARSKY,

1984, p. 26-28). Barsky salienta que embora estas disposições não fossem cumpridas pelos latifundiários e

aplicadas para a maioria dos huasipungueros (porquanto os beneficiavam como trabalhadores rurais) teriam

posteriormente um efeito significativo para a reivindicação de seus direitos nos processos de adjudicação de

terras na reforma agrária. 106

A palavra huasicama provém também do quíchua wasikamak que significa a pessoa encarregada do cuidado

da casa, era uma obrigação assumida geralmente pelas mulheres.

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momentos em que as tarefas produtivas da hacienda requeriam abundante trabalho coletivo

(plantio e colheita). Andrés Guerrero sublinha que a forma de trabalho huasipungo era uma

modalidade definida em termos de direitos e obrigações consuetudinárias, para enfatizar o

tipo de relações de dominação às quais as famílias huasipungueras estavam submetidas e para

evitar a “ilusão” de concebê-la como uma simples troca de trabalho por recursos, em uma

espécie de extensão da forma assalariada do trabalho107

(GUERRERO, 1975, p. 64).

A unidade doméstica huasipunguera (“família huasipungo ampliada”) estava

constituída pela família nuclear do huasipunguero e pelos chamados de “allegados”

(achegados) ou “arrimados”: famílias e parentes próximos do huasipunguero que careciam de

lotes para a produção agrícola e que residiam no huasipungo. As famílias de arrimados

contribuíam na produção agrícola da parcela do huasipungo e trabalhavam sazonalmente

como “peões livres” para a hacienda, quando ela o requeria, por uma diária para

complementar sua reprodução. Dessa forma, a “família huasipungo ampliada” assegurava de

um lado sua reprodução por meio da produção agropecuária no huasipungo e, de outro,

abastecia de força de trabalho à hacienda, sob as modalidades descritas. Em sua detalhada

análise do funcionamento da forma de trabalho huasipungo, Andrés Guerrero (1975) conclui

que ela constituía o elemento angular de todo o processo de produção da hacienda tradicional

na Serra equatoriana porque era a principal mediação para a apropriação de trabalho

excedente e consequentemente para a exploração do produtor imediato, enquanto a forma

salário aparece e se combina (num “entrelaçamento orgânico”) como um complemento das

relações de apropriação de renda-trabalho e como uma expressão da subordinação formal do

trabalho ao capital108

.

No que tange às relações das haciendas com as “comunidades livres”, também

prevaleciam modalidades de apropriação de renda-trabalho baseadas no controle territorial

das haciendas. Essas formas eram conhecidas como “yanapa”109

e “sitiaje” e consistiam na

obrigação de camponeses indígenas minifundiários (chamados de yanaperos e sitiajeros), das

“comunidades livres” contíguas às haciendas, de trabalhar dois dias por semana para a

hacienda pelo direito de usufruto de pastagens naturais, água, lenha da hacienda ou inclusive

107

Guerrero acrescenta: “El lote de tierra, los pastizales, etc. que usufructuaban los huasipungueros constituían

derechos de posesión consuetudinarios y no una ‘remuneración’ o ‘pago’, de la misma manera, el

huasipunguero no da ‘a cambio’ una cierta cantidad de jornadas gratuitas sino que tiene la obligación,

igualmente consuetudinaria, de laborar gratuitamente para el hacendado por las relaciones de dominación que

pesan sobre él.” (GUERRERO, 1975, p. 64). 108

Sobre a distinção entre subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital ver Marx (1978). Também o

capítulo XIV do livro 1 de O Capital (MARX, 2013). 109

Yanapa, palavra quíchua que significa serviço, ajuda.

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de transitar por ela (uso de caminhos)110

. Em algumas zonas com maior presença das

“comunidades livres” as relações das haciendas com camponeses indígenas sob a modalidade

de yanapa foram comuns e muito estendidas, como constata Korovkin (2002) para o caso da

Província de Imbabura na Serra Norte111

.

A produção da hacienda tradicional serrana orientava-se para abastecer de alimentos e

produtos diversos ao mercado interno, em contraste e em complementariedade com a

orientação exportadora assumida pela região litorânea equatoriana112

. Guerrero (1975)

sublinha a inserção “indissolúvel” da hacienda no capitalismo dependente equatoriano

mediante esse vínculo à esfera da circulação mercantil, na qual a classe terrateniente

(latifundiária) serrana realizava monetariamente a renda-trabalho e a mais-valia apropriada no

processo de produção. É precisamente essa particular forma de integração no capitalismo que

permite explicar os investimentos em melhoras tecnológicas, na mecanização agropecuária e

na modernização da produção impulsionados pelos terratenientes (latifundiários) com uma

racionalidade econômica definida (para maximizarem os seus lucros) registrada em algumas

haciendas já na década de 1940, sem que isso implicasse na transformação dos modos de

trabalho e de apropriação de renda, como ressalta Guerrero, na relação com as economias

camponesas das comunidades indígenas de hacienda ou livres (GUERRERO, 1975, p. 26-27).

Fernando Velasco (1983) também ressalta a funcionalidade da hacienda tradicional serrana às

“necessidades de acumulação de capital”, numa sociedade cuja economia tinha como eixo a

agricultura de exportação. É por essa razão, sublinha Velasco, que a burguesia

agroexportadora da região litorânea não procurou a transformação dos latifúndios serranos

após a revolução liberal de 1895 (VELASCO, 1979, p. 48).

110

Na forma de trabalho yanapa os diversos arranjos entre os latifundiários e os indígenas podiam incluir esses

distintos tópicos, baseados no controle territorial exercido pelas haciendas. No caso da forma sitiaje referem-se

exclusivamente aos direitos de uso de pastagens naturais pelo qual além da obrigação de entrega de trabalho,

estabelecia-se um valor anual de arrendamento por animal (que devia ser pago pelo sitiajero em dinheiro,

animais ou em trabalho). Ver Costales (1962); Guerrero (1975). 111

Korovkin (2002) questiona a sobrestimação dada pelos estudos agrários no Equador ao huasipungo (enquanto

“forma de produção pré-capitalista”) em detrimento a outras como a yanapa. Mesmo assim, visto que boa parte

desses estudos centraram sua atenção no funcionamento do sistema de hacienda e sua transformação como

consequência do processo de desenvolvimento capitalista, das reformas agrárias e das lutas camponesas

indígenas, essa prioridade se explica porque a forma de trabalho huasipungo constituía a modalidade principal de

apropriação de renta-trabalho e de sujeição dos indígenas dentro das haciendas, sendo particularmente relevante

na concepção e aplicação da primeira lei de reforma agrária de 1964. 112

Desde finais da época colonial, a produção da Região Costa equatoriana se articulou aos mercados externos

com a produção de cacau. A partir de então, o cacau, o café, a banana constituíram em diversos momentos os

principais produtos agrícolas de exportação do país e as variações em sua produção e preços nos mercados

internacionais marcaram ciclos de auge e declínio da economia equatoriana durante uma grande parte do século

XX, antes que o petróleo se tornasse o principal produto de exportação desde a década de 1970.

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Da sua análise da dinâmica do sistema de hacienda e sua inserção no capitalismo,

Guerrero (1975) ressalta duas consequências decorrentes das modalidades de exercício de

poder da classe terrateniente serrana de relevância para nosso trabalho:

a) a configuração de uma trama específica de poder local baseada na dominação étnica

que tem como seu ápice a figura do terrateniente;

b) uma modalidade particular de inserção da classe terrateniente no bloco de classes

dominantes e em sua relação com o Estado.

Guerrero (1975) assume a noção de gamonalismo definida por Mariátegui113

e

estendida nos países andinos, para caracterizar essa configuração racializada das relações de

poder local, enquanto modalidade de controle ideológico, político e cultural que encaminhava

a vida dos indígenas em múltiplos aspectos, com a participação de um conjunto de

mediadores da dominação tais como a Igreja Católica (que também era terrateniente), em

especial na figura dos padres (curas) dos povoados (parroquias114

), dos funcionários locais do

Estado (tenientes políticos, jefes políticos115

e funcionários das prefeituras) dos funcionários

médios das haciendas e da população branco-mestiça dos povoados (parroquias e cabeceras

cantonales) que mantinham laços assimétricos com os indígenas. Em trabalhos posteriores,

Guerrero (1993; 2000; 2010) aprofundará sua caracterização dessa configuração do poder

local na Serra equatoriana que toma à hacienda como ponto nodal estruturante das

“hierarquias sociais”, das “práticas políticas” e da “ordem simbólica” (Guerrero, 1993, p. 93)

e desenvolverá sua tese de que este sistema de dominação étnica de longa duração constituiu-

se como uma forma de “administração de populações”, descentrada do Estado e compatível

com os princípios e leis do Estado nação republicano, a partir da eliminação do tributo de

índios116

e da igualação legal dos indígenas em 1857. Desde então, com a lei de igualação

cidadã, as populações indígenas foram “indefinidas”, entrando em uma espécie de “limbo

113

Para Mariátegui:“El término ‘gamonalismo’ no designa sólo una categoría social y económica: la de los

latifundistas o grandes propietarios agrarios. Designa todo un fenómeno. El gamonalismo no está representado

sólo por los gamonales propiamente dichos. Comprende una larga jerarquía de funcionarios, intermediarios,

agentes, parásitos, etc. El indio alfabeto se transforma en un explotador de su propia raza porque se pone al

servicio del gamonalismo. El factor central del fenómeno es la hegemonía de la gran propiedad semifeudal en la

política y el mecanismo del Estado” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 28). 114

No Equador a divisão político administrativa compreende três distintos níveis: As províncias, os cantones e

as parroquias rurais (sendo estas últimas as unidades de menor nível). Em 2015, o país tinha 24 províncias, 221

cantones e 797 parroquias rurais (INEC, 2015). Segundo a Constituição de 2008, cada uma dessas unidades tem

um governo autônomo descentralizado de eleição popular: consejo provincial, concejo cantonal e junta

parroquial, respectivamente. 115

Os tenientes políticos e os jefes políticos são as autoridades nomeadas pelo poder executivo e que

representam o governo central nas parroquias rurais e nos cantones respectivamente. 116

O tributo de índios colonial foi mantido durante as primeiras décadas do período republicano sob o nome de

“contribuição pessoal de indígenas” (lei expedida ainda em 1828 durante a Gran Colombia), até ser suprimido

em 1857. Ver Guerrero (2010).

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político”, em uma zona de “indiferença” entre interior e exterior da cidadania formal e das

leis, que deixou o espaço aberto para o “livre arbítrio dos poderes fáticos” (GUERRERO,

2010, p. 194-195). Dessa forma, o Estado central desentendeu-se do “governo dos indígenas”

e delegou (derivou) a administração e o controle das populações indígenas nessa trama de

poderes locais (GUERRERO, 2010).

De outro lado, no que diz respeito à inserção da classe terrateniente serrana no bloco

de classes dominantes e sua atuação no Estado, Guerrero (1975, p. 56-57; 1983, p. 60-75)

destaca a participação dela na reprodução ampliada das relações capitalistas fora do âmbito

agrário da região Serra por meio de investimentos e da transferência de renda para outros

setores econômicos (indústria, finanças, comércio, construção). Isso a colocava em uma

relação não antagônica com as frações emergentes da burguesia, acentuava seus traços

capitalistas e deslocava também o centro de gravidade de seus interesses. Até a década de

1970, a classe terrateniente serrana ocupou assim um “lugar nodal” no bloco de classes

dominantes (ancoradas regionalmente na Costa e na Serra), participando diretamente do

exercício do poder político ao nível local e nacional117

.

Tenho me detido neste percurso em torno de alguns antecedentes históricos relevantes

na medida em que eles facilitam a compreensão da centralidade da hacienda no sistema de

dominação étnica que imperou na Serra equatoriana, no qual se inserem as diversas

modalidades de resistência e de luta que contribuíram na formação do atual movimento

indígena equatoriano e que dão a ele sua especificidade em relação aos outros países. Ao

mesmo tempo, esses antecedentes definem também as particularidades e as diversas trilhas

que assumirá o processo de desenvolvimento capitalista no campo serrano, marcando as

transformações agrárias, as respostas da classe terrateniente serrana e as políticas do Estado

equatoriano, a partir da década de 1960. Em síntese, aqui me interessa ressaltar o papel da

hacienda tradicional serrana como espaço de articulação das relações de exploração do

trabalho indígena e da dominação étnica de origem colonial, e nesse sentido, enquanto

principal eixo organizador e reprodutor da trama de relações de poder fundamentadas no

“racismo” - “etnicismo”, que caracteriza a “colonialidade do poder”118

, fundamento que se

117

Ver: Guerrero (1983). Essa participação da classe terrateniente serrana no bloco dominante se evidencia,

como relembra Zamosc, no fato que em 1962 dos 34 deputados do Congresso Nacional da região Serra, 28 eram

terratenientes (ZAMOSC, 1990, p. 211). O estudo de Sylva (1986) também mostra em detalhe no caso da

Provincia de Chimborazo (Serra central) a diversificação produtiva empreendida pela classe terrateniente em

outros setores econômicos e o controle desta do aparelho político administrativo do Estado no âmbito provincial

(e os vínculos com o aparelho político estatal central) na década de 1960. 118

Como foi apontado no capítulo primeiro, assumo a noção de “colonialidade do poder” a partir da abordagem

desenvolvida por Quijano em vários de seus trabalhos, grande parte deles selecionados na antologia publicada

recentemente por CLACSO (QUIJANO, 2014). Segundo este autor, a noção de colonialidade do poder refere-se

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reflete no processo de formação e consolidação do Estado-nação equatoriano, na dinâmica das

relações de classe e que se projeta de diversas formas até o momento atual. Por um longo

período, o sistema de hacienda constituiu o pano de fundo, no qual se reproduzia uma

hierarquia social baseada na classificação étnica e se ratificava cotidiana e simbolicamente a

condição de inferioridade do índio, como uma resultante das relações de poder e dominação,

modelando as percepções sobre a alteridade e as relações intersubjetivas. Concomitantemente,

o sistema de hacienda também moldou os espaços e as formas que assumiria a reprodução

étnica nas comunidades indígenas da Serra, ora se adequando as condições de submissão, ora

criando espaços de autonomia e resistindo à lógica de exploração e dominação. É nessa trama

de relações de poder que se desenvolveram as lutas indígenas ao longo do século XX e é

sobre essa base que se estruturou o discurso organizativo indígena na Serra equatoriana e suas

principais referências, através das quais as representações do passado recriam-se e

relacionam-se com as lutas e condições do presente.

Efetivamente, como mencionado, os primeiros sindicatos indígenas se conformaram

na Serra Norte durante a década de 1920. Sob a liderança de Jesús Gualavisí, o primeiro

sindicato indígena foi o “Sindicato de Trabajadores Campesinos de Juan Montalvo”,

constituído no ano de 1926, na zona de Cayambe na Serra Norte119

(BECKER e TUTILLO,

2009). Entre 1927 e 1931, após a formação do sindicato de Juan Montalvo seguiram a criação

dos sindicatos “El Inca”, “Tierra libre” e “Pan y Tierra”, todos no Cantón Cayambe

(PRIETO, 1978, p. 43). Tratavam-se das primeiras organizações indígenas que levantaram um

questionamento direto acerca das condições de exploração enfrentadas pelos indígenas nas

haciendas e articularam novas formas de luta incluindo greves e levantes nas haciendas120

.

Sem contar com uma cobertura legal, inicialmente, esses sindicatos se organizaram

clandestinamente para evitar a perseguição. As reuniões realizavam-se furtivamente nas

noites, escondidos nas colinas ou desfiladeiros ou em casas simulando alguma festa (Prieto,

1978, p. 45; Becker e Tutillo, 2009, p. 99), como tem sido ilustrado por distintos depoimentos

às relações de poder nas quais as categorias de “raça”, “cor”, “etnicidade” são inerentes e fundamentais

(QUIJANO, 2014, p. 205). Sobre esta noção e suas implicâncias como elemento constitutivo do padrão mundial

de poder capitalista ver Quijano (1992); Quijano e Wallerstein (1992); Quijano (2014). 119

O Sindicato de Trabajadores Campesinos de Juan Montalvo foi constituído em janeiro de 1926, antes

inclusive da fundação do Partido Socialista Ecuatoriano (também constituído em 1926) e da posterior formação

do Partido Comunista do Equador (PCE) em 1931, desprendido do mesmo Partido Socialista. Como destacam

Becker e Tutillo (2009, p. 96-99), Jesús Gualavisí participou na Assembleia de formação do Partido Socialista

em maio de 1926 e seria depois um destacado militante indígena do PCE na sua região, contribuindo na

formação de outros sindicatos, da Federación Ecuatoriana de Indios (FEI) e nas lutas indígenas. 120

Uma visão detalhada da história, modos de organização e lutas levantadas pelos primeiros sindicatos

indígenas encontra-se em Becker (2008); Becker e Tutillo (2009); Prieto (1978); Prieto (1980).

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das lideranças da época121

. Os sindicatos estavam constituídos fundamentalmente por famílias

de huasipungueros e seus arrimados de comunidades de hacienda e poucos yanaperos

indígenas e como ressalta Prieto (1978, p. 44; 1980, p. 114), a distinção étnica (“lo indio”) foi

um fator relevante para a “articulação dos camponeses participantes do movimento” o que se

reflete no fato que os “brancos” da zona consideravam aos sindicatos como “coisa de naturais

(índios)122

”.

Desde seus inícios os sindicatos mantiveram vínculos estreitos com o Partido

Socialista primeiro e com o Partido Comunista Equatoriano (PCE) depois, fundados nesses

mesmos anos. Em contraste com as interpretações desses vínculos que enfatizaram na ideia do

controle e manipulação pelo PCE das organizações indígenas, os estudos de Marc Becker

(2007; 2008) evidenciam e salientam a estreita relação de cooperação construída nesses anos

(pelo menos até a década de 1940) entre as lideranças indígenas desses sindicatos e um grupo

destacado de militantes e intelectuais urbanos (homens e mulheres) do PCE123

, que redundaria

em mútuo benefício. De um lado, esse vínculo permitiu aos militantes urbanos do PCE apoiar

as gestões e lutas levantadas pelos sindicatos indígenas diante do Estado dando-lhes uma

projeção nacional, ao tempo que incorporavam na plataforma política do partido as demandas

indígenas. De outro lado, contribuiu na formação de lideranças e quadros indígenas que se

incorporariam ao partido, incluindo mulheres na direção dos sindicatos124

. Essa relação de

colaboração também teve um papel significativo na criação e desenvolvimento das primeiras

escolas geridas por professores indígenas nas décadas de 1940 e 1950 na mesma zona de

Cayambe, que constituíram um antecedente relevante para a reivindicação da educação

intercultural bilíngue, pelo movimento indígena.

121

Diversos depoimentos sobre o processo de formação dos primeiros sindicatos indígenas e as lutas

empreendidas nas décadas de 1930 e 1940 de algumas das principais lideranças indígenas tais como Neptalí

Ulcuango, Tránsito Amaguaña, Dolores Cacuango, Luis Catucuamba, Virgilio Lechón, entre outros, encontram-

se em: Prieto (1978); Yanez (1988); Rodas (2007a); Rodas (2007b). 122

O uso do termo “naturais” para se referir aos indígenas era muito comum entre as populações mestiças das

parroquias rurais serranas, pelo menos até a década de 1980. Este termo tem origem colonial (foi usado

frequentemente pelos cronistas) e inclusive foi assumido para nomear instituições da Corona Espanhola desde o

século XVI (os Protectores de Naturales). Nos povoados da Serra era usado como um termo classificatório para

marcar a fronteira étnica, muitas vezes com uma conotação racista. 123

Entre elas destacam-se figuras políticas históricas do PCE como Ricardo Paredes, Nela Martínez, María Luisa

Gómez de la Torre, Rubén Rodríguez, entre outros intelectuais e lideranças do PCE. Valeria Coronel (2016, p.

78) enfatiza que o movimento de esquerda equatoriano entre a década de 1920 e 1940 foi um “movimento vital e

muito influente” que abriu um caminho autônomo para a construção de direitos diante dos projetos da “elite

conservadora” e da “oligarquia liberal”, articulando setores médios com movimentos populares antagónicos que

reclamavam justiça em conflitos de grande fôlego pela terra e contra as formas de dominação exacerbadas, com

destaque dos sindicatos indígenas na Serra, camponeses na Costa e de trabalhadores em Guayaquil e Quito. 124

Ver Becker (2007); Becker (2008); Becker e Tutillo (2009). Dolores Cacuango foi parte do Comité Central do

Partido Comunista.

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A organização dos primeiros sindicatos concentrou-se nas haciendas que passaram a

ser de propriedade do Estado (geridas por meio da Asistencia Pública125

) como consequência

da expropriação de prédios que pertenciam às ordens religiosas da Igreja Católica, produzida

em 1908 com a revolução liberal126

. Essas haciendas eram alugadas a terratenientes que

frequentemente tinham suas propriedades próximas ou contíguas a elas. A desapropriação das

terras das congregações da Igreja não significou uma mudança nas formas de trabalho nessas

haciendas. Pelo contrário, em múltiplos casos, diante da pressão dos alugadores por obter

maiores lucros em períodos curtos de tempo, intensificaram-se as relações de exploração aos

huasipungueros, suas famílias e trabalhadores nas haciendas, frequentemente violando os

arranjos de trabalho e as costumes estabelecidas e incrementando os níveis de coerção física

(punições, utilização do chicote), bem como se intensificou o uso da terra, provocando a

diminuição da fertilidade dos solos127

. Nesse sentido, entre os diversos fatores que facilitaram

o processo de organização e mobilização indígena nessas haciendas, Prieto (1978) destaca o

enfraquecimento produzido nelas das formas tradicionais de domínio interno exercido pelos

patrões e seus funcionários ao violentar os arranjos e as redes de relações sociais entre os

camponeses e a hacienda, com a consequente perda da função de autoridade do patrão na

hacienda e de seu papel na reprodução das famílias camponesas vinculadas a ela. Serão

precisamente essas haciendas, transformadas no elo mais fraco da dominação terrateniente e

no foco das mobilizações e lutas indígenas as primeiras em serem distribuídas com a lei de

Reforma Agrária de 1964.

Ao fazer um balanço do processo organizativo dos primeiros sindicatos indígenas e

das lutas levantadas por eles, Prieto (1978, p. 2) caracteriza o período 1926-1948 como o

“início da ofensiva camponesa na dinâmica da hacienda”. Com efeito, o trabalho organizativo

dos primeiros sindicatos indígenas rapidamente se traduziria na zona numa crescente agitação

social que se concretizou com a realização de várias greves e levantes nas haciendas estatais

125

A Asistencia Pública era uma entidade estatal do Ministério de Previsión Social, encarregada da manutenção

de hospitais públicos, orfanatos e asilos. Em 1948 mudou seu nome por Asistencia Social.

126 Em 1908 o governo liberal de Leonidas Plaza expediu a “Lei de Beneficência” (conhecida como “lei de mãos

mortas”) por meio da qual o Estado equatoriano desapropriou os latifúndios pertencentes às ordens religiosas da

Igreja Católica. As haciendas desapropriadas foram destinadas a financiar os serviços da Asistencia Pública

através do seu aluguel (geralmente para latifundiários próximos ou vizinhos) com contratos renováveis de oito

anos de duração (tendo alcançado em alguns casos 24 anos). Becker e Tutillo afirmam que em 1929 de um total

de 43 unidades administradas pela Asistencia Pública, 30 dessas haciendas estiveram localizadas na Provincia

de Pichincha (a maior parte delas no Cantón Cayambe), quatro em Cotopaxi e Chimborazo, três em Imbabura, e

uma em Carchi e em Bolívar, todas elas províncias da região Interandina (BECKER e TUTILLO, 2009, p. 73). 127

Ver Prieto (1978, p. 23-32); Becker e Tutillo (2009, p. 71-89).

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entre 1930 e 1935, bem como deslocamentos para Quito128

, ações todas encaminhadas no

sentido de reivindicar melhores condições de trabalho e reprodução social dos indígenas nas

haciendas. Assim, é interessante observar a pauta de 17 reivindicações apresentada durante a

greve deflagrada pelos sindicatos “El Inca” e “Tierra libre” os últimos dias de 1930 e que se

estenderia até janeiro de 1931129

, a qual incorporou uma variedade de exigências, entre as que

se destacam: a eliminação dos maus tratos físicos aos trabalhadores (uso de chicote e cacete)

por mayordomos130

e funcionários das haciendas; a abolição do trabalho gratuito das

mulheres para prestar serviços como huasicamas para funcionários das haciendas e a

exigência de pagamento de diárias ou salários para os trabalhos diversos exercidos pelas

mulheres nas haciendas; a redução da jornada laboral (para oito horas) e dos dias de trabalho

por semana (para cinco dias) obrigatórios dos huasipungueros; o incremento das diárias para

todos os trabalhadores; a devolução do huasipungo para aqueles que lhes tinha sido retirado; o

estabelecimento de uma escola e assistência médica gratuita. Evidentemente, embora esta

pauta ainda não colocasse a reivindicação da propriedade da terra (de fato os huasipungueros

tinham algum nível de acesso a ela) e a reforma agrária, nos seus aspectos centrais esta pauta

reivindicativa inseria-se na lógica de funcionamento do sistema de hacienda, tentando ampliar

os espaços e os tempos de reprodução autônoma da “família huasipungo ampliada”,

incrementar o valor das diárias do trabalho incluindo o pagamento de diárias ao trabalho das

mulheres, pôr limites ao tempo de trabalho gratuito apropriado pela hacienda e barrar a

coerção física exercida pelos funcionários mestiços. Nesse sentido, pode ser considerada

como um germe das disposições em defesa dos huasipungueros que foram incorporadas no

“Código de Trabajo” de 1938, com as quais se tentava regulamentar seu trabalho.

Diante esse processo de mobilização indígena as respostas imediatas da classe

terrateniente e do Estado passaram pela repressão direta dos nascentes sindicatos e a punição

de suas lideranças, sob a justificativa que estava sendo preparada uma rebelião e que em

Cayambe existia a ameaça de uma “revolução comunista indígena” (BECKER e TUTILLO,

2009, p. 99). Durante os distintos episódios de protesto protagonizados pelos sindicatos

indígenas na década de 1930, o exército foi frequentemente mobilizado para reprimir suas

128

Em março de 1931, 156 indígenas de Cayambe se deslocaram a pé para Quito para apresentar suas

reclamações ante o governo. Em Quito foram detidos pela polícia e forçados a retornarem para Cayambe; ver

Becker e Tutillo (2009, p. 111-113); Prieto (1978, p. 49). 129

Essa pauta de reivindicações foi reproduzida pelo jornal “El Día” do 6 de janeiro de 1931 e está transcrita em

Prieto (1978, p. 47-48). Uma cópia do documento original (jornal “El Día”) tem sido disponibilizada na internet

por Marc Becker e pode ser acessada em: http://www.yachana.org/earchivo/pesillo1931.pdf. Último acesso em:

11 abr. 2017. 130

Os “mayordomos” eram funcionários intermédios das haciendas (geralmente mestiços) encarregados de

organizar, controlar e vigiar as diferentes tarefas agrícolas cotidianas dos trabalhadores no campo.

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ações. Os acordos e conquistas alcançadas pelos indígenas diante das diversas entidades do

Estado com suas ações de protesto, geralmente foram descumpridos pelos arrendatários e

autoridades locais (PRIETO, 1978, p. 47-61; PRIETO, 1980, p. 115-118). Após as greves de

1930, 1931 e 1932, as lideranças foram perseguidas, detidas e expulsas das haciendas, suas

casas destruídas e incendiadas e seus animais retidos (PRIETO, 1978; BECKER e TUTILLO,

2009). Mesmo assim, a atividade sindical continuou com o trabalho clandestino impulsionado

pelas lideranças expulsas (com destaque de Dolores Cacuango) de fora das haciendas, o qual

permitiu manter a organização, incorporando às reivindicações a devolução dos huasipungos

das lideranças expulsas131

, o retorno delas às haciendas e o parcelamento de terras não

cultivadas nelas (PRIETO, 1978, p. 53-61).

Ao trabalho organizativo dos primeiros sindicatos na zona de Cayambe somaram-se

durante a década de 1930 ações reivindicativas de sindicatos indígenas na Província de

Chimborazo na Serra central, com destaque da greve protagonizada pelos indígenas das

haciendas de Pull e Galte em fevereiro de 1935 e da figura de Ambrosio Lasso como

liderança132

. Numa direção similar às primeiras greves em Cayambe, as principais

reivindicações levantadas foram: a diminuição dos dias de trabalho obrigatório e da jornada

de trabalho dos huasipungueros, a eliminação do trabalho gratuito de mulheres e menores de

idade, a eliminação de multas por diversos motivos aos trabalhadores indígenas, o

estabelecimento de uma escola e a liberdade de organização133

. Essa greve também foi

duramente reprimida, 80 indígenas participantes foram detidos e sua liderança Ambrosio

Lasso foi mantida no cárcere de Riobamba por quase dois anos, em suas palavras, “sólo por el

delito de haber organizado y fundado sindicatos en sectores poblados de centenares de

campesinos trabajadores” 134

(CORONEL, 2012, p. 474).

131

Kim Clark (1999) destaca a importância que a conexão com a terra (enquanto lugar de nascimento, lar e lugar

de trabalho e produção por muitos anos) teve no discurso indígena e nas reivindicações levantadas pelos

sindicatos durante a década de 1930, depois da expulsão das lideranças indígenas de seus huasipungos e da

destruição de seus lares. 132

Ver Albornoz (1976, p. 91-94 ). 133

Ver o periódico Ñucanchic Allpa (Nossa Terra em quíchua), número 6, de março de 1935, disponibilizado na

internet por M. Becker (http://www.yachana.org/earchivo/nucanchic/marzo1935.pdf, último acesso em 07 abr.

2017). Ñucanchic Allpa foi uma publicação bilíngue produzida (de forma irregular) pelos ativistas indígenas e

seus aliados entre 1930 e 1960 que dava conta da situação dos indígenas e de suas lutas. Definido como o

“Órgão dos sindicatos, comunidades e índios, em geral”, com a criação da Federação Equatoriana de Índios

(FEI) em 1944, foi assumido como o periódico oficial desta organização (BECKER, 2006). 134

Carta enviada por Ambrosio Lasso do cárcere de Riobamba o 31 de setembro de 1935 para o “Compañero

Director del Frente Obrero”, intitulada “De las víctimas de Pul”, na qual apela a “todas as forças da esquerda

unificadas” pressionarem o Congresso Nacional para a liberação e indenização dos imputados no

“levantamiento indígena de Pul”, assinando como representante de 30.000 Puruhaes (povo indígena da Província

de Chimborazo). Esta carta está reproduzida em Coronel (2012, p. 474). Ver também o artigo “La libertad de

Ambrosio Lasso” de Joaquín Gallegos Lara, escritor e militante comunista, publicado no número 8 de Ñucanchic

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Durante a década de 1930, com o apoio dos militantes socialistas e comunistas, o

processo de organização dos primeiros sindicatos indígenas em várias Províncias da Serra

esteve também acompanhado de tentativas de constituição de uma federação nacional

camponesa e de trabalhadores rurais entre os nascentes sindicatos. Assim, após da greve de

1930-31, em fevereiro de 1931 foi convocado um Primeiro Congresso de camponeses e

trabalhadores rurais em Juan Montalvo (Cayambe). Esse Congresso que pretendia reunir 2000

delegados das diversas províncias de região Interandina e da Costa, além da constituição de

uma confederação de trabalhadores rurais e camponeses pautava também a discussão de um

programa reivindicativo que incluía a terra (PRIETO, 1979, p. 55). Sua convocatória e seus

preparativos geraram preocupação no governo que impediu sua realização, decretou o estado

de emergência na zona de Cayambe, barrou o acesso das delegações ao Congresso, suspendeu

o trânsito nas rodovias e prendeu seus principais organizadores militantes do Partido

Socialista (PRIETO, 1978, p. 55-56; BECKER e TUTILLO, 2009, p. 104-110). Após essa

frustrada tentativa, em novembro de 1935, com o respaldo dos militantes comunistas, diversas

lideranças indígenas da Serra reuniram-se na “Casa del Obrero” em Quito e realizaram uma

“Conferencia de cabecillas indígenas” onde constituíram o “Consejo General de Cabecillas

Indios” (Conselho Geral de lideranças índias), sendo Jesús Gualavisí nomeado como

secretário geral dessa organização (BECKER e TUTILLO, 2009, p. 133). Essa organização

constituiu o antecedente para a conformação da Federación Ecuatoriana de Indios (FEI) em

1944, como resultado do processo organizativo e das lutas dos sindicatos indígenas em várias

localidades da Serra equatoriana.

Numa conjuntura política favorável aberta com a revolta popular gestada o 28 de maio

de 1944 chamada de “La Gloriosa”135

que teve uma destacada participação de militantes

comunistas e socialistas, provocou a derrubada do governo de Arroyo del Río e levou o

caudilho Velasco Ibarra à presidência da República (por segunda ocasião), em agosto de 1944

realizou-se em Quito o Primeiro Congresso de Índios do Equador e constituiu-se a Federación

Ecuatoriana de Indios (FEI). Jesús Gualavisí foi nomeado presidente da nova organização e

Dolores Cacuango designada secretária-geral.

Allpa, do 17 de março de 1936. Esse número também está disponibilizado por M. Becker na internet:

http://www.yachana.org/earchivo/nucanchic/1936marzo17.pdf. Último acesso em 11 abr. 2017.

135

Sobre a insurreição popular e militar do dia 28 de maio de 1944, chamada de “La Gloriosa” e a participação

de militantes comunistas e socialistas ver Vega (1987); Ogaz (1998); Cabrera (2016). Nela Martínez, militante

comunista e destacada protagonista desse momento histórico, salienta a participação de Dolores Cacuango e dos

indígenas de Cayambe na toma do quartel militar de Cayambe o dia 29 de maio (MARTÍNEZ, 1991, p. XXI;

MARTÍNEZ, 2012, p. 147; VEGA, 1987, p. 96). Essa conjuntura favorável aos movimentos populares que levou

a promulgação da Constituição democrática e progressista de 1945 fechou-se definitivamente em março de 1946,

com o golpe ditatorial do próprio Velasco Ibarra.

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O nome da FEI implicitamente assumia a especificidade das demandas indígenas e

reivindicava o termo índio136

, até então carregado de conotações negativas decorrentes dos

preconceitos coloniais e racistas. Reconhecida legalmente em 1945137

, a FEI definiu como

seus principais objetivos “realizar a emancipação econômica dos índios equatorianos” e

“elevar seu nível cultural e moral conservando o bom de suas costumes e instituições”138

. A

FEI articulou os sindicatos e outras organizações indígenas, especialmente as das Províncias

da Serra Norte e Centro e constituiu assim a primeira tentativa política bem sucedida de

formar uma organização indígena em âmbito nacional, sendo a “principal expressão

organizativa” dos indígenas e camponeses da região Interandina entre as décadas de 1940 e

1960 (BECKER e TUTILLO, 2009, p. 133).

Desde sua criação a FEI esteve vinculada a Confederación de Trabajadores del

Ecuador (CTE), central sindical criada também em 1944, próxima do Partido Comunista.

Nesse sentido, na perspectiva de construção de uma aliança operário-camponesa promovida

pelos militantes comunistas e concebida como a ala rural e indígena da CTE na Serra

equatoriana, encaminhada a enfrentar os problemas camponeses e indígenas e exercer pressão

para sua solução numa perspectiva de classe (BECKER e TUTILLO, 2009, p. 132-133).

Mesmo assim, é interessante destacar que na concepção dos militantes comunistas da época,

os índios enfrentavam a exploração como classe e ao mesmo tempo constituíam

“nacionalidades oprimidas”139

. Nesse sentido, a questão indígena não podia ser reduzida

136

Becker e Tutillo (2009, p. 138) afirmam que inicialmente a FEI se chamaria Federação Indígena Equatoriana

e que a opção assumida pelo termo índio em lugar de indígena (ou camponês) acentuava o componente étnico e

desafiava os discursos dominantes liberais e marxistas sobre a questão indígena, em voga no momento. Estes

autores sugerem que se tratou de uma dinâmica parecida com a reapropriação do termo “índio”, operada pelas

lideranças indígenas na década de 1990, com um sentido político de afirmação étnica e como um valor que se

levanta nas lutas de liberação indígena. 137

Becker e Tutillo (2009, p. 140) salientam que a aprovação oficial dos estatutos da FEI em 1945 implicou duas

mudanças neles com importantes consequências políticas: a) a exclusão das comunas como integrantes da

Federação, limitando a filiação aos “sindicatos, cooperativas, instituições culturais e defensivas, todas de caráter

indígena, bem como tribos” ; e, b) o retiro da exclusividade para a nomeação de deputados ou representantes

funcionais da “raça indígena” ao Congresso se a lei eleitoral o concede (contemplados para a Assembleia

Constituinte de 1944-45 e na Constituição de 1945). Os estatutos da FEI aprovados em 1945 estão

disponibilizados na internet por M. Becker (ver: https://www.yachana.org/earchivo/fei/estatutos.pdf, último

acesso em 4 mai. 2017). 138

Além de esses objetivos, nos estatutos da FEI também constam “contribuir à realização da unidade nacional”

e “estabelecer vínculos de solidariedade com todos os índios americanos”, ver os estatutos da FEI (FEI, 1945)

disponível em: https://www.yachana.org/earchivo/fei/estatutos.pdf. Último acesso em 4 mai 2017. 139

Ver Becker (2013). Este autor documenta a origem da noção de nacionalidades indígenas como parte da

“agenda política indígena” no pensamento dos comunistas equatorianos nas décadas de 1930 e 1940,

especialmente de Ricardo Paredes, com base nas interpretações de Lênin sobre a questão colonial e o direito das

nações à autodeterminação (LENIN, 1986 [1914]) e nas posições assumidas pelo Comintern no final da década

de 1920 e durante a década de 1930 (BECKER, 2013, p. 23- 28). Essa concepção foi expressa em vários artigos

no periódico Ñucanchic Allpa (Ver os números 8 e 16, de março de 1936 e de novembro de 1944

respectivamente, em: http://www.yachana.org/earchivo/nucanchic, último acesso em 11 mai 2017) e no

processo organizativo indígena encaminhado a “unir e organizar os índios para a defesa de seus interesses de

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apenas a um problema de classe sem deixar de considerar sua condição nacional expressa em

sua própria história, língua, território e instituições culturais e em seu “direito de

autodeterminação de seus destinos”140

(BECKER, 2013, p. 28).

Assim, a criação da FEI em 1944 foi o ponto de chegada de um processo político

extremamente rico de constituição da primeira organização indígena nacional, em cuja prática

concreta já confluía “conteúdos étnicos e classistas” na configuração de sua identidade

(Fernández, 2013, p. 43), processo marcado por dois aspectos cruciais que caracterizarão o

devir do movimento indígena em termos gerais até o momento atual: os fortes vínculos com

os movimentos populares e suas lutas, bem como sua relação com diversos setores da

esquerda equatoriana. Esta interpretação do processo político da FEI, sustentada nos trabalhos

de Becker, tem importantes consequências para a compreensão do movimento indígena nas

últimas décadas, pois não considera esta organização apenas como um antecedente

organizativo prévio à conformação da CONAIE e ao processo de afirmação étnica nas

décadas de 1980 e 1990, nem compreende a FEI como uma organização instrumentada pelo

PCE para impor uma concepção classista em detrimento da questão étnica, perspectivas muito

comuns nas análises acadêmicas na década de 1990141

e inclusive nas valorações produzidas

pela mesma CONAIE sobre seu processo organizativo142

. Pelo contrário, quebra com a

tendência a sublinhar exclusivamente o fator étnico na configuração do movimento indígena

contemporâneo que desloca os elementos decorrentes da questão de classe e da luta de classes

na análise. Ao mesmo tempo, ressalta o papel das lideranças indígenas e das lutas concretas

levantadas pelas organizações indígenas no passado enquanto uma tradição e um acúmulo que

continuam sendo um referente para as organizações e lutas do presente, que permite

compreender articuladamente como parte de uma mesma realidade as dimensões étnicas e

classistas no processo político e nas práticas organizativas do movimento indígena. De outro

lado, evidencia a presença das noções de classe, etnicidade e de nacionalidades indígenas na

formação e desenvolvimento da FEI nas décadas de 1930 e 1940 e valora o processo histórico

classe e como nacionalidades oprimidas”, segundo indica a Conferencia de Cabecillas Indios e que conduziria

em última instância à formação da FEI (Ñucanchic Allpa, No. 8, 6 de março de 1936, p. 2, em:

http://www.yachana.org/earchivo/nucanchic/1936marzo17.pdf, último acesso 11 mai. 2017). 140

Ver “El problema del indio, problema nacional”, em Ñucanchic Allpa, No. 16, 5 de noviembre de 1944, p. 2

(http://www.yachana.org/earchivo/nucanchic/1944nov5.pdf , último acesso 11 mai. 2017). 141

Ver a discussão sobre as interpretações do processo político do movimento indígena no capítulo primeiro. 142

Ver CONAIE, 1989. Neste livro produzido pela CONAIE, mesmo que se destaca o papel dos primeiros

sindicatos indígenas e da FEI na luta pela terra até a década de 1960, afirma-se: “la FEI no tomó en cuenta la

globalidad de nuestros problemas, esto es, la explotación de clase y la discriminación étnica a la que estamos

sujetos. Por ello, esta Organización no alcanzó a tener la representatividad nacional de los indígenas”

(CONAIE, 1989, p. 32).

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do movimento indígena em sua complexidade e em sua relação com as forças de esquerda

equatoriana.

A presença da FEI na Serra equatoriana dinamizou a organização indígena e ativou os

conflitos no campo durante a década de 1950 e na primeira metade da década de 1960, sendo

os protestos mais fortes nas zonas de maior influencia da FEI (BECKER e TUTILLO, 2009,

p. 157; VELASCO, 1979, p. 135-136). As pautas reivindicativas dos sindicatos indígenas

baseavam-se nos avanços alcançados na legislação trabalhista (PRIETO, 1979, p. 62), mas

frequentemente esses conflitos abriram passo também à reivindicação da terra e da reforma

agrária143

. O historiador comunista Oswaldo Albornoz (1976, p. 145-170), logo de destacar o

papel desempenhado pelos sindicatos indígenas e pela FEI para o “desenvolvimento do

movimento indígena” (p. 151) nas lutas por suas reivindicações especificas e por sua “futura

liberação”, refletia em torno às limitações da sua prática e sublinhava precisamente o

excessivo legalismo expresso na procura de alcançarem reivindicações diante das autoridades

com a intermediação de advogados, baseadas apenas nas escassas disposições legais

favoráveis para os índios, como arma exclusiva de luta. Esse legalismo implicava uma

tendência a conciliar com os patrões e aceitar o parecer das autoridades (ALBORNOZ, 1976,

p. 162). Além do legalismo, Albornoz (1976, p. 163-164) criticava também o imediatismo das

lutas reivindicativas sem vinculá-las as demandas políticas maiores como a reforma agrária e

a distribuição de terras, bem como as dificuldades para que as lutas alcançarem maiores níveis

de solidariedade para além dos espaços locais e provinciais.

Será precisamente o papel desempenhado pelo movimento indígena e camponês e o

tipo de lutas empreendidas no processo que levou à promulgação e aplicação das duas leis de

reforma agrária (de 1964 e de 1973) um dos principais eixos de debate dos estudos

acadêmicos sobre as transformações agrárias no Equador e sobre as vias de dissolução da

hacienda tradicional serrana, debate no qual se evidenciaram posições contrapostas entre os

que outorgavam um papel secundário às lutas e às mobilizações camponesas e os que

colocavam a ênfase na ascensão das lutas camponesas e da luta de classes, como elementos

substanciais desse processo144

. No início da década de 1960, uma vez fechado o ciclo de

relativa estabilidade política marcado pelo boom das exportações de banana, a conjuntura

143

Ver: Velasco (1979, p. 136); Becker e Tutillo (2009, p. 151-158); Albornoz (1976). 144

As diferentes linhas interpretativas do processo de transformações agrárias na Serra, sustentadas

fundamentalmente por Osvaldo Barsky e Miguel Murmis de um lado e por Andrés Guerrero do outro,

originaram uma enriquecedora discussão numa das etapas mais prolíficas das Ciências Sociais e dos estudos

agrários no Equador na década de 1980. Sobre esse debate ver Guerrero (1983); Barsky (1984). Uma boa síntese

desse debate encontra-se em: Zamosc (1990). Destaca-se também a antologia organizada por Chiriboga (1988)

com alguns dos textos mais relevantes dos estudos agrários da época no Equador.

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103

prévia à expedição da primeira lei de reforma agrária (1964) esteve caracterizada por uma

forte instabilidade política, num ambiente de grande agitação e mobilização social, na qual a

questão da relação com Cuba após da revolução de 1959 e a necessidade da reforma agrária

constituíram as temáticas centrais no debate político nacional145

. Na centralidade da discussão

sobre a reforma agrária também foram relevantes as pressões externas decorrentes das

mudanças na política externa dos Estados Unidos e da sua agenda para América Latina,

orientada para barrar uma possível onda expansiva da revolução cubana, que se concretizaram

na adoção pelos governos do sistema interamericano, de medidas reformistas enquadradas na

denominada “Aliança para o Progresso”146

, promovida pelo governo Kennedy e assumida

pela Organização dos Estados Americanos (OEA) na Conferencia de Punta del Este

(Uruguai) em 1961.

Assim, em referência a esse contexto entre 1959 e 1964, O. Barsky (1984) enfatizou

como fator fundamental que modelaria “o essencial” das transformações operadas no campo e

o caráter do processo de reforma agrária (Barsky, 1984, p. 322), a “iniciativa” adotada no

período por uma fração “modernizante” da classe terrateniente de entrega antecipada em

propriedade dos huasipungos (antecipada à lei de reforma agrária de 1964) e de eliminação

das “relações precárias” de produção suprimindo as possibilidades de reclamações legais

posteriores, para abrir passo ao estabelecimento de relações salariais, como parte de uma

estratégia para a conversão de suas haciendas em modernas empresas capitalistas

especializadas na produção de leite147

. Para Barsky, para compreender a “dinâmica de

penetração do capital” no setor agrário é necessário considerar determinados ramos de

produção através dos quais o capital penetra em função da situação de mercado existente. No

Equador na década de 1950, o processo de diferenciação interna dos “terratenientes serranos”

apresentou-se vinculado ao desenvolvimento da produção pecuária leiteira como dominante,

145

Uma caracterização da conjuntura 1959 – 1964 encontra-se em Guerrero (1983) e também em Velasco

(1979). Guerrero (1983, p. 87) ressalta estas duas problemáticas (a questão cubana e o problema agrário na

Serra) como os aspectos centrais que estruturaram o conflito político nesses anos, durante os curtos governos de

Velasco Ibarra (1960-1961) e Arosemena Monroy (1961-1963) que desembocaram no golpe militar de 1963 e o

governo da Junta Militar (1963-1966) que expediu a Lei de Reforma Agrária de 1964. 146

Entre os objetivos explícitos da Aliança para o Progresso estava impulsionar dentro das particularidades de

cada país programas de reforma agrária (VELASCO, 1979; BARSKY, 1984). Guerrero destaca que num período

de quatro anos (entre 1960 e 1964) 11 países de América Latina dotaram-se sucessivamente de leis de reforma

agrária, com uma “sincronização” decorrente da pressão norte-americana (GUERRERO, 1983, p. 92). 147

Ver Barsky (1984, p. 55 – 87). As entregas antecipadas de huasipungos produzidas entre 1959 e 1964

concentraram-se nas Províncias da Serra Norte (Pichincha (58,3%, Carchi (16,5%) e Imbabura (15,1%) nas quais

se tinha focalizado a conversão para unidades produtivas especializadas na produção de leite. As entregas

antecipadas abrangeram 15,8% do total estimado de huasipungueros existentes na Serra equatoriana e 15,3% da

área estimada em huasipungos em 1959. A área média entregue a cada huasipunguero foi de apenas 3 hectares e

em muitos casos os huasipungueros foram reassentados em terras de maior altitude e menor qualidade e tamanho

do que os huasipungos originais (BARSKY, 1984, p. 72-75).

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promovido pela fração modernizante nos vales interandinos próximos de Quito, em relação à

demanda de mercado crescente e condições ecológicas favoráveis (BARSKY, 1984, p. 79).

Dessa forma, essa fração será quem delineará o processo de modernização capitalista do

campo na Serra equatoriana, influindo diretamente no alcance da lei de 1964148

e no processo

de reforma agrária implantado na década de 1960. Com a reforma agrária o “aparelho do

Estado contribuiria a estender” ao conjunto da Serra equatoriana esse “modelo” de

modernização capitalista antecipado por essa fração da classe terrateniente, ao mesmo tempo

em que “desencadearia outras situações” por meio da atuação dos agentes do Estado e pelas

mobilizações camponesas decorrentes da aplicação da reforma agrária que atingiram

duramente aqueles segmentos “mais atrasados” da classe terrateniente, incapazes de “se

readequar” as “necessidades marcadas pelo tipo de desenvolvimento agrário” produzido

(BARSKY, 1984, p. 87 e p. 153).

Ao privilegiar na análise aspectos como os estímulos dados por um crescente mercado

interno, os investimentos realizados para a incorporação de tecnologia e mecanização

avançada impulsionando o desenvolvimento das forças produtivas e ao outorgar um papel

protagonista à estratégia posta em jogo por essa fração modernizante da classe terrateniente

na direção do processo, arrebatando assim algumas das bandeiras das organizações

camponesas indígenas (entrega em propriedade dos huasipungos, eliminação dos serviços

para as haciendas), a tese de Barsky deixa pouco espaço de destaque para as diversas formas

de luta e pressão indígena e camponesa e para o papel desempenhado por organizações como

a FEI, à qual restaria um papel subordinado e de escassa significação na conjuntura

política149

. Com efeito, para Barsky, o caráter limitado das reivindicações camponesas, a

orientação impressa a suas ações e o enquadramento legal delas impulsionado pela FEI teriam

determinado sua confluência com a “direção do tipo de mudanças” empreendida pela “fração

modernizante dos terratenientes” (generalizada depois pelo Estado) e, consequentemente, a

inclusão subordinada dos movimentos camponeses no processo de transformações agrárias

148

Em seus conteúdos principais, a lei de reforma agrária de 1964 fundamentalmente determinou a abolição dos

huasipungos e da yanapa, eliminando assim as formas de renda-trabalho e os vínculos das haciendas com os

“precaristas”. Dessa maneira, foram estabelecidas condições para a entrega em propriedade dos huasipungos aos

camponeses (aqueles com 10 anos ou mais, admitindo a possibilidade de reassentamentos),c promoveu a

conversão das haciendas em empresas agropecuárias baseadas na generalização de relações salariais e

estabeleceu as condições para a expropriação de terras, limitando as possibilidades de sua redistribuição. Esta lei

também estimulou a ampliação da fronteira agrícola e a colonização de terras baixas da Amazônia e da Costa

equatoriana. Em termos gerais a aplicação de esta lei no período 1964-1972 teve impactos limitados

especialmente no que tange à redistribuição de terras, implicando sim a entrega de huasipungos, a redistribuição

das terras nas haciendas de propriedade do Estado e a eliminação das formas de “trabalho precário” em grande

parte das haciendas. Para uma visão abrangente do processo de discussão das leis de reforma agrária e

colonização, de sua aplicação e seus efeitos diretos, ver Barsky (1984). 149

Ver Barsky (1984, p. 324); Zamosc (1990, p. 215).

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(Barsky, 1984, p. 324), sendo em última instância sua atuação funcional ao projeto dessa

emergente burguesia agrária150

(ZAMOSC, 1990, p. 215).

Em contraste com essa visão das lutas camponesas e indígenas, o trabalho de Guerrero

(1983) destaca a luta de classes e as mobilizações camponesas indígenas no cerne da crise do

sistema de hacienda no início da década de 1960 e das transformações agrárias decorrentes,

nos anos posteriores. Para Guerrero, o impulso da reforma agrária e o modelo adotado nas

transformações agrárias explicam-se pelas características da conjuntura 1960-1964 (na qual se

produz uma mudança na correlação de forças entre as classes sociais) e pelas lutas

camponesas e os antagonismos existentes no campo. No contexto de instabilidade política e

agitação social que caracterizaram os primeiros anos da década de 1960, Guerrero aponta dois

fatos decisivos dessa conjuntura que marcaram a inevitabilidade das transformações agrárias

nas haciendas serranas e o enfraquecimento político da classe terrateniente:

a) o levantamento de 2.000 indígenas em Columbe (Província de Chimborazo na Serra

central) em fevereiro de 1961151

, o qual após os confrontos com a polícia teve uma

repercussão nacional evidenciada na intervenção direta do Presidente da República (Velasco

Ibarra) que ordenou a liberação dos 63 indígenas detentos152

e

b) a marcha de 12.000 indígenas nas ruas de Quito o 16 de dezembro de 1961 para

demandar a reforma agrária (coincidente com a realização do III Congresso da FEI). Nessa

marcha participou o recentemente empossado presidente da República Arosemena Monroy,

que prometeu fazer a reforma agrária e abolir o sistema do huasipungo153

. Segundo Guerrero

esta marcha foi “sem dúvida, a maior manifestação urbana de camponeses indígenas na

história equatoriana”154

(Guerrero, 1983, p. 97), constituindo um fato político sem precedentes

numa cidade que não alcançava os 400.000 habitantes e que desde a época colonial

representava o centro urbano do poder político branco-mestiço. Para Guerrero, esse foi um

momento decisivo na conjuntura, favorável para as massas populares, que provocou que a

entrega dos huasipungos seja “um fato político irreversível” (GUERRERO, 1983, p. 99).

150

Esta tese é partilhada também por Velasco (1979, p. 55 e 84). 151

Deflagrado inicialmente na hacienda Columbe Grande pelo pagamento de diárias atrasadas por mais de um

ano, envolveu indígenas das comunidades e haciendas de toda essa zona. Ver Tuaza (2011, p. 50-51); Sylva

(1986, p. 64 e 105); Albornoz (1976, p. 109-112). Diante da intervenção policial para reprimir este

levantamento, os indígenas confrontaram-se com a polícia com o resultado de 2 indígenas mortos, vários

policiais feridos e 63 indígenas detentos. 152

Velasco Ibarra ordenou a liberação dos indígenas detentos: ele pessoalmente viajou para Riobamba e manteve

uma reunião conciliatória em fevereiro de 1961 com as autoridades provinciais, os donos das haciendas e

lideranças e advogados da FEI e da CTE em representação dos indígenas (SYLVA, 1986, p. 64; BARSKY,

1984, p. 146-147). 153

Ver Guerrero (1983); Becker e Tutillo (2009). 154

Guerrero qualifica assim essa manifestação em 1983, antes do levantamento indígena de 1990. Para uma

descrição mais detalhada dessa manifestação (BECKER e TUTILLO, 2009, p. 203-207).

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Nessas circunstancias, sempre seguindo Guerrero, a classe terrateniente adotou duas

táticas de modo de garantir a sua sobrevivência como classe: de um lado, restringir com

sucesso o debate sobre a reforma agrária ao limitado aspecto da entrega dos huasipungos,

desviando o foco das reivindicações camponesas mais profundas que questionavam o

monopólio da terra e de outro lado, ganhar tempo por meio da obstrução das distintas

iniciativas em curso nos organismos do Estado para expedir a nova legislação de reforma

agrária. A defasagem temporal entre aquele momento decisivo de finais de 1961 e a

expedição da lei de reforma agrária em 1964 durante a ditadura da Junta Militar (1963-1966),

permitiu à classe terrateniente serrana contar com uma margem de manobra, na qual “logra

negociar, nos melhores termos possíveis, a entrega de huasipungos” (GUERRERO, 1983, p.

85). Dessa forma, consegue “sanear” a situação em muitas haciendas, deslocando as famílias

de huasipungueros para “pisos ecológicos mais altos e terras desfavoráveis” e diminuindo o

tamanho de seus lotes, muitas vezes sem reconhecer dívidas ou diárias não pagas, para assim

dar passo a relações puramente capitalistas e mudar de rama produtiva para a pecuária de leite

(GUERRERO, 1983, p. 104). Nesse sentido, para Guerrero, a “via de transição” no campo

serrano foi “abrindo passo através da disputa de interesses e em uma situação de conflito de

classes” (GUERRERO, 1983, p. 106).

Além das expressões de luta aberta camponesa manifesta nos conflitos agrários

localizados (geralmente deflagrados por demandas laborais), uma das contribuições mais

significativas da análise de Guerrero (1983) foi incorporar como uma das dimensões do

conflito e da luta de classes a pressão encoberta exercida cotidianamente nas haciendas pelas

famílias de huasipungueros, arrimados (achegados) ou comuneras externas das haciendas,

enquanto uma estratégia de resistência cotidiana à exploração. Para isso, Guerrero retoma as

noções de “assédio interno” e “externo”, desenvolvidas por Barahona155

, para mostrar um

amplo leque de práticas indígenas que vão da “resistência ao trabalho” à recuperação

individual ou coletiva de “condições de reprodução material” (GUERRERO, 1983, p. 123).

Essa pressão constante das famílias para ampliar seu acesso à terra, à água, aos pastos, à

lenha, etc. das haciendas, como forma da luta de classes, confluía com as reivindicações

expressas nos conflitos abertos demandando o pagamento de diárias, no sentido de expressar a

procura camponesa de reforçar a economia familiar huasipunguera, em lugar de dissolvê-la

155

As noções de “assédio interno e externo”, desenvolvidas por R. Barahona no relatório do Comité

Interamericano de Desarrollo Agrícola (CIDA, 1965) sobre a situação fundiária no Equador no momento

imediato anterior da reforma agrária, referem-se à pressão permanente exercida pelas economias camponesas,

dentro e fora das haciendas, sobre os recursos delas (terra, pastos, água, lenha); ver CIDA (1965). Um extrato de

esse texto concentrado nessas noções está na antologia de estudos agrários organizada por Manuel Chiriboga

(CIDA, 1988).

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(GUERRERO, 1983, p. 122). Ao mesmo tempo, foi também uma expressão da crise do

sistema de hacienda, no momento em que pela penetração capitalista no processo de produção

mercantil da hacienda, os latifundiários deixam de entregar novos huasipungos aos filhos dos

huasipungueros, incrementando-se o número de arrimados ao interior das unidades

huasipungueras, agudizando a pressão interna e as demandas por terra e trabalho (pagamento

de diárias) nas haciendas, para garantir a reprodução das famílias. Nessas condições, com

uma tendência ao agravamento dos conflitos e a ampliação das formas organizadas da luta

camponesa indígena numa conjuntura política desfavorável, a liquidação dos huasipungos

converteu-se num imperativo para a classe terrateniente. A entrega antecipada de

huasipungos, conclui Guerrero (1983, p. 141) responderia então a um “efeito político de

previsão”, impulsionado por um grupo de terratenientes que se adiantam à intervenção

estatal, na procura de condições mais favoráveis para empreender “sua própria metamorfose

social”.

Evidentemente, além do modelo de modernização capitalista agrária assumido por

uma fração da classe terrateniente e pelo Estado nacional, explicitado claramente no debate

descrito, a análise de Guerrero ao problematizar a correlação de forças e incluir como fator

explicativo central as expressões concretas do antagonismo de classes contribui de forma mais

precisa, dinâmica e abrangente para a compreensão dos processos de luta camponeses

indígenas no contexto das mudanças na Serra equatoriana a partir da década de 1960, bem

como da “metamorfose” empreendida pela classe terrateniente para manter seu protagonismo

político, já como uma burguesia agrária dinâmica e moderna durante as décadas seguintes. Ao

mesmo tempo permite nos aproximar às continuidades e nexos existentes entre as lutas

camponesas e indígenas (e suas expressões organizativas) levantadas em torno do acesso à

terra numa grande quantidade de conflitos ativados no processo de reestruturação fundiária

entre as décadas de 1960 e 1980, e as lutas e formas organizativas assumidas nas décadas

seguintes, porquanto o movimento indígena da Serra quando irrompe na cena política

nacional a partir do levantamento de 1990 é herdeiro direto desses complexos processos.

Com a eliminação das relações de apropriação de renda-trabalho nas haciendas, seja

pela entrega antecipada de huasipungos pelos setores modernizantes da classe terrateniente,

ou como consequência da aplicação da lei de reforma agrária de 1964, além da redistribuição

das propriedades do Estado em mãos da Asistencia Social, ativou-se um processo de

profundas transformações agrárias em decorrência da desestruturação do sistema de hacienda

e das relações de poder local vinculadas ao seu funcionamento, processo que abrangeria as

décadas de 1960, 1970 e boa parte da década de 1980, ainda com características diferenciadas.

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Esse processo teve fortes implicações em termos das formas e dinâmicas organizativas

indígenas desenvolvidas até então, focadas na organização de sindicatos nas haciendas

articulados pela FEI, que levariam ao posterior declínio desta organização.

Com efeito, como afirma Zamosc (1990, p. 217), diversos analistas do período

coincidem ao observar que as reformas promovidas pela Junta Militar entre 1963 e 1966156

,

incluída a lei de Reforma Agrária de 1964, por uma parte procuraram impor um consenso

modernizador entre as classes dominantes (ainda resistido por um setor significativo da classe

terrateniente) e de outra parte, conter o movimento popular. Nesse último sentido, com a

reforma agrária de 1964 os militares também procuraram o enfraquecimento da FEI e a

eliminação da influência comunista e da esquerda no movimento indígena camponês para

tentar colocá-lo sob a tutelagem do IERAC157

(VELASCO, 1979, p. 101; ZAMOSC, 1990, p.

218). De fato, o golpe militar de 1963 ilegalizou o partido comunista, além disso, várias

lideranças foram presas por 18 meses, entre elas Tránsito Amaguaña e Amadeo Alba da FEI,

condenando esta organização à clandestinidade e desmantelando suas estruturas organizativas

internas (BECKER e TUTILLO, 2009, p. 224). Após constatar que no final da década de

1960 as mobilizações camponesas tinham certamente diminuído em relação ao início dessa

década, o intelectual e liderança indígena Floresmilo Simbaña aponta que a reforma agrária de

1964 e as políticas do Estado significaram uma derrota para a FEI, pois a entrega e eliminação

dos huasipungos provocaram a contenção e desmobilização de sua base social: os

huasipungueros e arrimados, o setor indígena camponês mais ativo, organizado nos

sindicatos e politizado até então. Além disso, os processos de redistribuição das terras das

haciendas da Asistencia Social concentraram-se em apagar os maiores focos de conflito

agrário localizados na zona de Cayambe, berço das maiores lideranças desta organização

(SIMBAÑA, 2012, p. 61). Segundo Becker e Tutillo (2009, p. 224), a FEI não se adaptou bem

à nova ordem agrária emergente diminuindo sua presença pública e sua relevância política. A

isto, os autores acrescentam o maior distanciamento entre as lideranças urbanas do Partido

Comunista e as lutas indígenas, quando novas lideranças comunistas assumiram o relevo da

geração anterior e adotaram posições mais dogmáticas e paternalistas diante da questão

156

O governo da Junta Militar impulsionou um programa de modernização capitalista em torno de três eixos: a) a

eliminação das relações precárias de trabalho e a modernização capitalista nas haciendas tradicionais da serra; b)

a “modificação do processo de acumulação, incentivando o desenvolvimento da indústria”; e, c) o

“fortalecimento do aparelho econômico do Estado” (BOCCO, 1987, p. 146). 157

O Instituto de Reforma Agraria y Colonización (IERAC) foi a entidade do Estado criada para aplicação da lei

de reforma agrária e colonização em 1964. Manteve-se como tal até 1994 quando foi transformado no Instituto

Nacional de Desarrollo Agrario (INDA) com a nova lei agrária expedida esse ano que sepultou o processo de

reforma agrária no contexto da aplicação das políticas neoliberais no campo (ver capítulo terceiro).

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indígena e o movimento camponês158

, que sustentaram a imagem da FEI como uma

organização dirigida e controlada pelo PCE.

No final da década de 1960 e inícios da década de 1970, no contexto das rápidas

mudanças que aconteciam no campo equatoriano e com o tendencial declínio da FEI, novas

organizações camponesas e indígenas de dimensão nacional apareceram e articularam as lutas

pela terra e pela reforma agrária nos anos seguintes. Assim, em 1968 surgiu a FENOC

(Federación Nacional de Organizaciones Campesinas)159

vinculada à central sindical

CEDOC (Central Ecuatoriana de Obreros Católicos)160

. De outro lado, promovido por setores

cristãos de esquerda próximos à teologia da libertação, em Tepeyac, Provincia de Chimborazo

na Serra central, em 1972 foi criado o Movimento Campesino Indígena Ecuador

Runakunapak Rikcharimuy ECUARUNARI (O Despertar do Índio do Equador)161

que hoje

constitui a organização indígena regional da Serra equatoriana filial da CONAIE.

Com o início da exploração do petróleo na região amazônica equatoriana e suas

exportações desde 1972, durante a década de 1970, o Equador experimentou um período de

auge e crescimento econômico sem precedentes conhecido como o primeiro “Boom

petroleiro”, favorecido pela elevação dos preços do hidrocarboneto no mercado

internacional162

. Tratou-se de um período significativo de modernização econômica e de

158

Ver Becker e Tutillo (2009, p. 189- 192; 225-228). 159

A Federación Nacional de Organizaciones Campesinas FENOC nasceu em 1968 com esse nome a partir da

chamada Federación de Trabajadores Agropecuarios (FETAP) que tinha sido criada em 1965 pela CEDOC

(Central Ecuatoriana de Obreros Católicos) com a finalidade de atender os problemas dos trabalhadores

agrícolas no contexto da aplicação da primeira lei de reforma agrária (BURGOS, 1984, p. 16-18; FENOCIN

1999, p. 23-25). Desde sua criação articulou organizações camponesas da região Interandina e da Costa

equatoriana. Em 1988 assume o nome de FENOC-I (Federación Nacional de Organizaciones Campesinas e

Indígenas) e a partir de 1999 de FENOCIN (Confederación Nacional de Organizaciones Campesinas Indígenas

y Negras). Sobre a história da FENOC (hoje FENOCIN, ver Burgos, 1984; FENOCIN, 1999). 160

Constituída no ano 1938 com uma base social composta fundamentalmente por agremiações artesanais

católicas, a Central Ecuatoriana de Obreros Católicos (CEDOC) foi a primeira organização laboral de nível

nacional. Criada como uma iniciativa para se contrapuser à influência dos partidos da esquerda com os

trabalhadores, durante sua primeira etapa até a década de 1950, a CEDOC constituiu uma força de apoio político

às posições do Partido Conservador e da Igreja Católica. Na década de 1960, sob a influência do sindicalismo

cristão e da Democracia Cristã Internacional, a instituição assumiu uma orientação democrata cristã. Em 1972

mudou seu nome, passando a se denominar Central Ecuatoriana de Organizaciones Clasistas. Durante a década

de 1970 cresceu a influência de setores identificados com a esquerda socialista dentro da organização,

evidenciada na pugna pelo controle da direção da mesma ocorrida em 1975, o que provocaria sua cisão em 1976

entre a maioritária CEDOC de linha socialista, a qual desde 1988 adotou o nome de CEDOCUT (Confederación

Ecuatoriana de Organizaciones Clasistas Unitaria de Trabajadores), e a minoritária CEDOC-CLAT definida

como humanista cristã e vinculada à Central Latinoamericana de Trabajadores. (YCAZA, 1991). A CEDOCUT

faz parte do Frente Unitario de Trabajadores (FUT). 161

É reconhecido o papel de vários setores e movimentos de cristãos pela libertação, vinculados à Igreja

Católica, padres e leigos comprometidos com o trabalho de base no processo de criação do ECUARUNARI em

1972. Sobre a história do movimento campesino indígena ECUARUNARI, documentada com vários

depoimentos dos participantes, ver ECUARUNARI (1998); ECUARUNARI (2013). Também CONAIE (1989). 162

Com os recursos procedentes das exportações de petróleo que durante a década de 1970 incrementaram em

mais de 10 vezes, a economia equatoriana teve uma taxa de crescimento anual próxima de 9%, a maior taxa de

crescimento de sua história, pelo qual a renda per capita quase se duplicou. No Boom petroleiro foi determinante

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110

ampliação da presença e atuação do aparelho do Estado. Os ingentes recursos gerados pelas

exportações petroleiras favoreceram a industrialização, a expansão das classes médias e um

acelerado processo de urbanização. Em 1972, após derrubar a ditadura civil de Velasco Ibarra

(o quinto e último velasquismo), as Forças Armadas instauraram o autodenominado “Governo

Nacionalista e Revolucionário” (1972-1976), presidido pelo General Rodríguez Lara163

. A

ditadura militar de Rodríguez Lara impulsionou uma “estratégia de governo” sustentada em

três grandes eixos:

a) uma política nacionalista centrada no setor petroleiro;

b) a modernização da economia nacional e do Estado e

c) uma política de reforma agrária (BOCCO, 1987, p. 25)164

. Na perspectiva de

modernização da economia, o programa do governo, inspirado numa concepção cepalina,

tentou formar um setor industrial moderno e impulsionou um programa de industrialização

baseado na ampliação do mercado interno por meio de um conjunto de incentivos e,

aproveitando a renda petroleira com políticas enquadradas no modelo de industrialização por

substituição de importações. Mesmo assim, como sugere Bocco, essa estratégia de

industrialização não foi o projeto que a emergente burguesia industrial, vinculada com outros

setores do capital nacional e internacional, colocou efetivamente em andamento. Nesse

sentido, a industrialização “tardia” equatoriana desenvolveu-se associada aos interesses

externos, integrando a indústria nacional com o capital internacional e enquadrando-se num

“modelo combinado de substituição de importações e de produção para a exportação”

(BOCCO, 1987, p. 68)165

.

Em sintonia com o modelo de desenvolvimento e a estratégia de industrialização

assumida, o governo de Rodríguez Lara propiciou uma política agrária encaminhada à

modernização do setor agropecuário e ao incremento de sua produtividade, na perspectiva de

ampliar a oferta de alimentos baratos para as cidades. Especial relevância teve o processo de

a elevação dos preços do petróleo produzida nesses anos, ao passar de 2,4 dólares por barril em 1972 para 13,4

dólares em 1974 e alcançar os 35,2 dólares em 1980 (LARREA, 2006, p. 92-95). 163

A ditadura militar de Rodríguez Lara (1972-1976) foi a expressão de uma corrente nacionalista ao interior das

Forças Armadas que propiciava um modelo de desenvolvimento capitalista nacional afim ao impulsionado pelo

governo de Velasco Alvarado no Peru e de Omar Torrijos em Panama. Evidentemente, para esta tendência era

central o controle e administração dos recursos petroleiros pelo Estado, diante do capital transnacional. Ver

Bocco (1987, p. 25). 164

Para uma análise detalhada das políticas econômicas dos governos militares de Rodríguez Lara (1972-1976) e

do triunvirato militar (1976-1979) e sobre o padrão de desenvolvimento capitalista materializado na década de

1970 no Equador, ver Bocco (1987). 165

Sobre a estratégia implantada pelo regime militar de Rodríguez Lara e a direção e características especificas

do processo equatoriano de industrialização ver Bocco (1987, p. 26-29 e 68-71). Larrea (2006, p. 88-89) também

sublinha o caráter oligopolista da indústria equatoriana desenvolvida no período 1972-1982, com uma tecnologia

intensiva em capital e fortemente dependente de insumos externos, o qual determinou sua reduzida capacidade

de geração de emprego, alcançando apenas 12,9% da PEA em 1982, para diminuir nos anos seguintes.

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debate e expedição da segunda lei de reforma agrária em 1973. Inicialmente, as propostas do

governo encaminhavam-se para aprofundar o tímido processo de reforma agrária iniciado em

anos anteriores, eliminar a concentração e modificar o regime de propriedade da terra e atingir

aqueles terratenientes que no alcançassem níveis mínimos de produtividade166

. Essas

propostas combinavam-se com as intenções modernizantes que tentavam incrementar a

produtividade e a eficiência das unidades agropecuárias. Diante da pressão da classe

terrateniente, finalmente, a lei aprovada tomou grande distancia em relação às intenções

originais, colocando uma ênfase maior nos objetivos de incremento da produtividade sobre as

finalidades de redistribuição da terra167

. Mesmo assim, esta lei incluiu entre as causas

suscetíveis que permitiam proceder para a desapropriação dos prédios à “pressão

demográfica” exercida por comunidades externas vizinhas das haciendas, bem como o

descumprimento de um critério de eficiência econômica (manter em exploração eficiente,

baseada na produtividade média da zona, ao menos um 80% da área aproveitável do prédio).

Para a aplicação de esse último critério de eficiência econômica se outorgou um período de

graça aos proprietários até o ano 1976. Enquanto a causa de pressão demográfica abriu a

possibilidade de desapropriação de prédios para as comunidades externas das haciendas e foi

evocada pelas organizações indígenas e camponesas nas lutas pela terra, a causa referida ao

critério de eficiência econômica foi duramente contestada pelos terratenientes e não chegaria

ser aplicada por não ter sido adequadamente regulamentada. A isso se somou a mudança das

condições políticas desde 1976, quando o governo de Rodríguez Lara é destituído e

substituído por um triunvirato militar (Consejo Supremo de Gobierno), cujo governo (1976-

1979), de corte conservador e repressivo, barrou as políticas reformistas dos anos anteriores.

Este governo expediu em 1979 a Lei de Fomento y Desarrollo Agropecuario, baseada nas

propostas formuladas pela classe terrateniente através das Cámaras de Agricultura. Esta lei

ofereceu garantias à propriedade da terra e travou o processo de reforma agrária, punindo as

ocupações de terra e eliminando as possibilidades efetivas de desapropriação de prédios por

estar ineficientemente explorados168

. Nesse sentido, como afirma Iturralde (1988, p. 66), essa

166

Sobre os lineamentos e propostas relativos à reforma agrária no governo de Rodríguez Lara, prévios à

expedição da lei de 1973, o debate político suscitado e a reação das “Cámaras de Agricultura” (órgãos políticos

de expressão da classe terrateniente) antes e após da aprovação da lei de reforma agrária, ver Barsky (1984, p.

199-256). Sobre a unidade das classes dominantes na oposição às políticas reformistas do governo de Rodríguez

Lara, especialmente a reforma agrária e sobre a fraqueza do governo para a construção de alianças que o

sustentarem, ver Bocco (1987). Uma análise de discurso da classe terrateniente e seus conteúdos raciais, bem

como do nascente movimento ECUARUNARI, no contexto do debate sobre a lei de reforma agrária de 1973 e

sua aplicação encontra-se em Pallares (1999). 167

Ver BARSKY (1984); PALLARES, (1999). 168

Sobre os conteúdos dessa lei e como eles refletiram as propostas das Cámaras de Agricultura ver BARSKY,

(1984, p. 246-252).

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lei, ao criminalizar as formas de pressão e luta camponesa, constituiu o “primeiro instrumento

legal da contrarreforma” 169

.

A lei de reforma agrária de 1973 dinamizou os conflitos no campo e ativou as distintas

formas de pressão campesina que aceleraram o processo de dissolução da hacienda

tradicional serrana. Em vários pontos da região Interandina multiplicaram-se os conflitos e

radicalizaram-se as formas de luta indígena, incluindo o recurso cada vez mais frequente de

ocupações da terra das haciendas. Esses conflitos alcançaram seu ápice em 1975, com foco

em várias províncias da Serra e da Costa170

com uma maior radicalização das ações das

organizações camponesas, o qual se refletiu na palavra de ordem lançada pela FENOC nesse

ano: “Com lei ou sem lei, faremos reforma agrária” (BURGOS, 1984, p. 26). Paralelamente,

incrementou-se a violência no campo, registrando-se o assassinato das lideranças indígenas

vinculadas ao ECUARUNARI Cristóbal Pajuña e Lázaro Condo em 1974 e de Rafael

Perugachi da FENOC em 1977, que se converteriam em símbolos da resistência e da luta

indígena e camponesa na Serra171

.

De outro lado, como anota acertadamente Sylva, entre 1973 e 1979, apesar da

resistência exercida pela classe terrateniente, as condições políticas e a pressão indígena

camponesa a forçaram ao dilema de “transformar-se ou perecer” (SYLVA, 1986, p. 190).

Como demostra esta autora em seu estudo na Província de Chimborazo172

, durante a década

de 1970 aqueles setores da classe terrateniente que não conseguiram acelerar a modernização

das haciendas para transformá-las em modernas unidades produtivas capitalistas, cedendo

uma parte das terras aos indígenas, sucumbiram à pressão e luta indígena camponesa

(SYLVA, 1986)173

. Daí que, em várias regiões dessa e outras províncias, geralmente nas

zonas de maior altitude, consolidou-se uma via camponesa de transformações agrárias,

desaparecendo as antigas haciendas.

169

A punição às ocupações de terras será legalmente reafirmada na lei de “desarrollo agrario” de 1994, que

terminou com o processo de reforma agrária no país concretizando a contrarreforma agrária impulsionada pela

burguesia agrária, no contexto da aplicação das políticas neoliberais no campo. Sobre essa lei e seu processo de

aprovação ver o capítulo terceiro. 170

Ver Sylva (1986). 171

Para uma análise detalhada do processo de constituição da figura de Lázaro Condo como um símbolo político

do movimento indígena, cuja morte é até hoje ritualizada e sua figura exaltada em algumas comunidades do Sul

da Província de Chimborazo, ver Botero (2000). 172

A província de Chimborazo na Serra central, uma das zonas com maiores conflitos de terra foi considerada

pela ditadura militar de Rodríguez Lara como uma das províncias prioritárias para aplicação da Reforma Agrária

(junto com Bolívar e Pichincha na Serra e as regiões arrozeiras da Costa).Ver BARSKY (1984, p. 238). 173

Nessa dinâmica devem ser consideradas tanto as desapropriações decorrentes dos processos legais da reforma

agrária, quanto as negociações as quais se viram forçados alguns proprietários, para vender a terra para as

famílias camponesas e indígenas diante do clima de mobilização, conflito e insegurança existente.

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Muitas das atuais comunidades da região Interandina e suas formas organizativas

(comunas, associações) têm sua origem nas lutas levantadas durante a década de 1970. Com

efeito, nesta década registraram-se fortes incrementos na constituição legal de comunas174

,

como forma de organização social, territorial e de reprodução cultural, processo que pode ser

interpretado como uma consequência da desestruturação do sistema de dominação da

hacienda. Esse processo de recomposição de comunas contribuiu para a “recriação e

revitalização da identidade histórica como indígenas e como povos” e constituiu a base em

torno da qual se estruturou e desenvolveu o movimento indígena contemporâneo (SIMBAÑA,

2012, p. 64). Da mesma forma, algumas das federações locais e provinciais foram

estruturadas neste período.

Nos processos organizativos indígenas locais e provinciais, cabe destacar o papel

desempenhado por setores da Igreja Católica comprometidos com o trabalho de base e as lutas

sociais, especialmente aqueles identificados com a teologia da libertação e com a “opção

preferencial pelos pobres” decorrente da renovação provocada após do Concílio Vaticano II e

da Conferência de Bispos latino-americanos de Medellín em 1968. Esses setores, espalhados

por todo o país, tiverem sua maior expressão na Diócese de Riobamba (Província de

Chimborazo) na serra central equatoriana, sob a liderança de dom Leonidas Proaño,

conhecido como “o Bispo dos Índios”. Seu trabalho como Bispo de Riobamba, iniciado em

1954, significou a ruptura da histórica aliança entre a Igreja Católica e a classe terrateniente

serrana, o qual se expressou na distribuição antecipada das haciendas Zula e Tepeyac que

pertenciam à Cúria de Riobamba. O trabalho da Diócese de Riobamba foi especialmente

significativo em termos do acompanhamento das comunidades indígenas dessa Província e

suas lutas, da promoção de processos de “conscientização” inspirados na “pedagogia do

oprimido” de Paulo Freire, da valorização da cultura indígena e suas expressões religiosas, o

desenvolvimento de processos de formação de catequistas e lideranças indígenas e a criação

de programas educativos continuados entre os que destacam as Escuelas Radiofónicas

Populares del Ecuador (ERPE) como instrumento para a alfabetização e educação camponesa

e indígena175

. A isso, se deve agregar também a criação por parte da Igreja Católica de

174

Ver Zamosc (1995); Chiriboga (1985); Ramón (1994); Carrasco (1993). 175

Sobre o papel da Igreja Católica e da Diócese de Riobamba no processo organizativo do movimento indígena

ver Botero (2000); Korovkin (2002); Bretón (2001 e 2009); Pallares (2002). Evidentemente, na atuação da

Diócese de Riobamba sob a liderança de dom Leonidas Proaño (1954-1985) existiram diversas tendências,

tensões internas e contradições na sua atuação. Uma análise crítica do processo da Igreja de Riobamba e das

mudanças religiosas no contexto da religiosidade indígena e da ascensão do protestantismo indígena em

Chimborazo encontra-se em Andrade (2004).

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entidades de desenvolvimento rural (ONGDs)176

, algumas das quais mantêm até hoje sua

atuação no meio rural. Em suma, a influência exercida na formação de lideranças do

movimento indígena pelos setores da Igreja comprometidos com os “processos de libertação”

e pela Diócese de Riobamba foi muito ampla e é reconhecida pelas lideranças indígenas até

hoje177

, como parte de seu processo organizativo, como se pode apreciar nas palavras de

Diocelinda Iza, liderança da Província de Cotopaxi:

De ahí, bueno motivó y después a los 14 años, nosotros con mi hermano Leonidas,

mi papá tenía una radio, tenía una radio, era bien potente esa radio y salía al aire

Escuelas Radiofónicas Populares de Riobamba. Entonces ahí daban muchos

mensajes, Monseñor Leonidas Proaño, muchos mensajes liberadores, invitaban que

pueden ser estudiantes de escuelas radiofónicas, entonces nosotros ya pues

organizando jóvenes fuimos a ser estudiantes de escuelas radiofónicas, ahí un poco

más profundizamos, yo tuve la suerte de conocer a Monseñor Leonidas Proaño, y a

escuchar sus palabras, sus palabras que eran tan valiosas, tan animadoras y tan

profundas. En el campo espiritual hacía sentir así, al mismo tiempo que teníamos

venganza con los que explotaban, los que dominaban en las haciendas y mis padres

también sentían eso, cuando íbamos en bus por ejemplo, habiendo asientos no

permitían sentar en el bus, todas esas cosas creo que fue un acumulo para nosotros

organizar. […] Ahí empezamos a motivar con todo lo que ya teníamos en la cabeza,

ya mis padres no podían cambiar, […] empezamos con la organización y desde ahí

estoy, desde mis 14 años de edad, ahora tengo 49 años […]178

.

Ao calor das lutas pela terra levantadas em distintas localidades, durante a década de

1970 cresceram e se fortaleceram a FENOC e o ECUARUNARI enquanto organizações

nacionais, as quais progressivamente tomaram o relevo deixado pela FEI como instâncias

articuladoras do movimento camponês e indígena. O apoio e condução dessas lutas por parte

destas organizações cumpriu um papel decisivo para fortalecer as organizações de base,

estabelecer vínculos e conexões entre as comunidades em conflito, sustentar as demandas e

176

Entre as maiores ONGD criadas pela Igreja Católica estão o FEPP (Fondo Ecuatoriano Populorum

Progressio) e CESA (Central Ecuatoriana de Servicios Agrícolas). 177

Entrevista Luis Macas, 6 Maio 2014. 178

Entrevista Diocelinda Iza, 22 novembro 2014: entrevista realizada por Florencia Campana e Fernando Larrea.

Tradução nossa: “Bom, daí motivou e depois quando tinha 14 anos, a gente com meu irmão Leonidas, meu pai

tinha um rádio, era bem poderoso esse rádio e entrava ao ar as Escolas Radiofônicas Populares de Riobamba.

Então, aí davam muitas mensagens, dom Leonidas Proaño, muitas mensagens libertadoras nos convidavam para

ser estudantes das escolas radiofônicas, então nós já organizando os jovens passamos a ser alunos das escolas

radiofônicas. Em seguida, nos aprofundamos e tive o privilégio de conhecer dom Leonidas Proaño e escutar suas

palavras, suas palavras que eram tão valiosas, tão encorajadoras e tão profundas. No âmbito espiritual nos fazia

sentir assim, ao mesmo tempo em que sentíamos vingança com aqueles que exploravam, aqueles que

dominavam nas haciendas e meus pais também sentiam isso, quando íamos de ônibus por exemplo, tinham

poltronas livres mas não nos permitiam sentar nelas, todas essas coisas acho que foi um acúmulo para a gente

organizar. […] Aí começamos a despertar com tudo o que já tínhamos na cabeça, já meus pais não podiam

mudar, […] começamos com a organização e desde então estou, desde meus 14 anos de idade, hoje tenho 49

anos […]”.

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processos legais, dar projeção nacional e politizar as lutas locais, propiciando um caráter mais

contestatário às ações indígenas e camponesas locais179

.

Para ilustrar isso, por exemplo, o depoimento de Nazario Caluña, liderança do povo

Chibuleo na Província de Tungurahua (Serra central), sobre a reunião em Tepeyac no ano de

1972, na qual se constituiu o ECUARUNARI, é especialmente significativo para uma

aproximação às discussões que tinham as lideranças indígenas e à construção de uma

subjetividade contestatária no processo de formação e consolidação do ECUARUNARI na

década de 1970 (ECUARUNARI, 1998, p. 36-41). Baseado na leitura de seus cadernos de

anotações, no depoimento narra em detalhe às discussões dessa reunião, nas quais se

abordaram os problemas das comunidades de cada Província, os abusos dos “patrões” e das

“autoridades”, os problemas da reforma agrária e até as canções que escreviam e cantavam os

participantes:

[…] La dicha Reforma Agraria reparte las tierras o haciendas de la Curia o de la

Asistencia Social, y no la de los grandes latifundios. Entonces después hasta hemos

cantado este cantito tan lindo sobre vasija de barro revolucionaria: “yo quiero que

a mí me entierren, como a un revolucionario, envuelto en bandera roja y con el fusil

al lado –dice- ecuatoriano, tu revolución acabará la explotación, cuando los

pueblos se levanten , por pan, justicia y tierra, temblarán los gamonales de la Costa

y de la Sierra, -ecuatorianos- adelante compañeros la victoria nos invita, la tierra

es de quien la trabaja y no del quien nos quitó, -ecuatorianos- una bala mensajera

nos dará la bienvenida y con la revolución comenzará nueva vida, -ecuatoriano-

San José capitalista, mama virgen socialista y el niño que ya nació es valiente

indigenista” 180

(ECUARUNARI, 1998, p. 39).

No contexto da luta pela terra e pela reforma agrária, em alguns momentos as

organizações nacionais promoveram encontros e realizaram ações unitárias, em conjunto com

organizações das cooperativas e de trabalhadores rurais da Costa equatoriana (especialmente

das zonas arrozeiras). Assim, em 1973, prévia a expedição da segunda lei de reforma agrária,

o ECUARUNARI e a FENOC realizaram mobilizações camponesas e indígenas nas

Províncias de Cañar (Serra Sul) com a participação de 15.000 indígenas, Guayas (Costa) com

50.000 camponeses participantes e em Quito com 5.000 participantes. Paralelamente,

desenvolveram-se vários encontros camponeses nacionais pela reforma agrária com

179

Ver Burgos (1984); Zamosc (1990); Chiriboga (1987). 180

Tradução nossa: “[…] A dita Reforma Agrária distribui as terras ou haciendas da Cúria ou da Asistencia

Social, mas não as dos grandes latifúndios. Então, depois até cantamos essa cançãozinha tão linda chamada de

vaso de barro revolucionário: ‘eu quero ser sepultado, como um revolucionário, envolvido numa bandeira

vermelha e com o fuzil ao lado – diz – equatoriano, tua revolução acabará com a exploração, quando os povos

se levantarem, por pão, justiça e terra, tremerão os latifundiários da Costa e da Serra, – equatorianos– adiante

companheiros a vitória nos convida, a terra é para quem nela trabalha e não para quem nos roubou –

equatorianos – uma bala mensageira, nos dará as boas-vindas e com a revolução começará a nova vida, –

equatoriano – São José capitalista, Virgem Mãe socialista e o Menino que nasceu é corajoso indigenista’”. Essa

canção está baseada numa música tradicional equatoriana chamada de vasija de barro .

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participação da FENOC, o ECUARUNARI e a FEI, nos que se pronunciaram por uma

reforma agrária “autêntica e radical” e conformaram o Frente Unido de Reforma Agraria

(FURA) que teve um papel significativo no período de ascensão das lutas pela terra até 1975.

Posteriormente, com o retorno à democracia, essas organizações constituíram em 1979 o

Frente Único de Lucha Campesina Indígena (FULCI) para exigirem a anulação da Lei de

Fomento Agropecuário expedida pelo triunvirato militar e a expulsão do Instituto Lingüístico

de Verano (ILV)181

e realizaram em 1980 a “Marcha Nacional Campesina – Indígena

“Mártires de Aztra” em Quito, a primeira marcha nacional desde o retorno à democracia em

1979182

.

Simultaneamente à radicalização das lutas locais na década de 1970, o debate político

interno na FENOC e no ECUARUNARI acerca de suas grandes linhas políticas de atuação e

sobre os posicionamentos que deviam assumir estas organizações diante das diversas

conjunturas também foi intenso. A relevância desses processos de discussão interna e de

disputa política na dinâmica destas organizações evidencia-se no destaque dado a eles nas

sistematizações de sua história produzidas por estas organizações183

. Assim, no caso da

FENOC, sublinha-se o processo de radicalização e de engajamento político que marcaria a

passagem de uma orientação e condução democrata cristã no início da década de 1970, para

uma posição classista e socialista que se consolidaria na Federação desde 1975184

e que

significaria uma relação próxima dela com o Partido Socialista (relação que se mantêm até a

atualidade).

No caso do ECUARUNARI salienta-se o processo de definições sobre o caráter do

movimento que marcou num primeiro momento o debate sobre sua autonomia em relação aos

assessores e movimentos políticos vinculados às tendências progressistas da Igreja Católica na

primeira metade da década de 1970, bem como os embates relativos às orientações classistas

181

O Instituto Lingüístico de Verano (ILV), entidade cristã evangélica dos Estados Unidos enviava missionários

“linguistas” para distintos grupos étnicos em vários países da América Latina, África e Ásia, para aprender suas

línguas e sua cultura, traduzir a bíblia e evangelizá-los. Teve presença no Equador desde a década de 1950

especialmente na região amazônica, onde é conhecido seu papel no processo de “pacificação”, relocação num

protetorado (“área de proteção”) e “incorporação” dos Waorani durante as décadas de 1960 e 1970, após da

morte de cinco missionários do ILV em 1956, lanceados pelos Waorani em defesa de seu território. O ILV foi

denunciado pelas organizações indígenas equatorianas como um instrumento do imperialismo que promovia a

desagregação cultural dos povos indígenas, o etnocídio e facilitava a presencia das empresas transnacionais

(petróleo) nos seus territórios. O governo do presidente Jaime Roldós (1979-1981) emitiu um decreto o qual

assegura os convénios do Estado equatoriano com o ILV em maio de 1981, dois dias antes de sua trágica morte

num acidente aéreo até hoje insuficientemente esclarecido. Sobre as atividades do ILV no Equador e América

Latina ver Trujillo (1981); Stoll (1985). 182

Ver Burgos (1984, p. 20-44); Chiriboga (1987). 183

Ver FENOCIN (1999); ECUARUNARI (1998); ECUARUNARI (2013); CONAIE (1989). 184

FENOCIN (1999, p. 31-43). Esse processo de mudança na posição política e de cisão interna na FENOC

produziu-se em paralelo ao vivenciado na CEDOC, central sindical à qual estava vinculada.

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e/ou de reivindicação étnica do movimento nos Congressos da organização de 1977 e 1979

que definiram suas linhas de atuação política185

. Nelas se assume que o ECUARUNARI “é

uma organização nacional camponesa indígena que visa a mudança total e radical da situação

atual dos marginalizados, oprimidos e explorados” e que “é um movimento que levanta a

bandeira de luta contra a discriminação e pela defesa das nacionalidades indígenas”186

(ECUARUNARI, 2013, p. 185-186), combinando assim na sua perspectiva e prática política

uma dupla dimensão: de classe e étnica, o qual será ratificado nas resoluções do V Congresso

de 1979187

(ECUARUNARI, 2013, p. 164-166). Para Simbaña, nessa combinação bem

sucedida na sua proposta política de uma dimensão classista e étnica numa perspectiva

transformadora reside o fator chave para a ascensão do ECUARUNARI na década de 1980,

como a principal organização indígena da Serra que a converteria no motor para a unificação

da maioria das organizações indígenas e camponesas na CONAIE, enquanto organização de

nível nacional com uma única estrutura organizativa (SIMBAÑA, 2012, p. 66).

Outro elemento importante do papel desempenhado pela FENOC e o ECUARUNARI

se refere à interlocução direta estabelecida por estas organizações com o movimento operário

e as centrais sindicais agrupadas no Frente Unitário de Trabalhadores (FUT), constituído em

1971. Esse vínculo, nunca livre de críticas e tensões por parte das lideranças camponesas e

indígenas na procura de uma relação mais igualitária entre organizações188

, tem sido uma

constante na dinâmica dessas organizações e com seus altos e baixos permitiu sua confluência

em várias lutas e ações durante as décadas de 1970 e 1980. Assim, por exemplo, canalizou a

participação camponesa indígena nas primeiras greves nacionais (1975 e 1977) incorporando

algumas das demandas camponesas numa plataforma unitária. A participação na segunda

greve nacional em 1977 provocou a ilegalização da FENOC por parte do triunvirato militar,

junto com outras organizações sociais e sindicais, no cenário da exacerbação das políticas

repressivas do regime militar em 1977189

.

185

Ver ECUARUNARI (2013, p. 153-193); ECUARUNARI (1998, p. 52-59). 186

Os postulados mencionados foram aprovados no IV Congresso de ECUARUNARI realizado em julho de

1977 (ECUARUNARI, 2013). 187

Sobre as implicâncias das resoluções do V Congresso, o ECUARUNARI afirma: “A partir do Quinto

Congresso é importante ressaltar os seguintes aspectos: - Procura-se a consolidação e unidade do movimento

indígena, [...]”.

“O movimento tem cada vez maior clareza que o problema indígena tem uma dupla dimensão: a étnica e a de

classe, que, por conseguinte, as soluções devem de ser enfocadas nessa perspectiva. Por um lado, busca a relação

com outras organizações indígenas tanto no âmbito nacional como internacional e por outro, mantem também

comunicação com as centrais sindicais e outras organizações populares. Nas resoluções do Congresso são

consideradas reivindicações tanto indígenas quanto classistas” (ECUARUNARI, 2013, p. 166). 188

Ver CHIRIBOGA (1987). 189

Ver Burgos (1984); FENOCIN (1999). Após a marcha operária do 1 de maio, da greve nacional unitária e da

greve dos professores, em maio de 1977, o triunvirato militar ilegalizou a CEDOC (Central Ecuatoriana de

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De outro lado, enquanto uma linha organizativa diferenciada dentro do movimento

indígena, em 1980 foi constituída a Federación Ecuatoriana de Indígenas Evangélicos

(FEINE)190

, nucleando associações de igrejas evangélicas indígenas de várias províncias da

Serra e da Amazônia. Na década de 1970, no contexto das mudanças ligadas aos processos de

dissolução da hacienda e desarticulação das estruturas tradicionais de poder local, bem como

a migração estacional indígena para a venda temporal de força de trabalho nas plantações de

cana na Costa equatoriana e nas cidades, com o apoio de missões evangélicas dos Estados

Unidos, produziram-se processos de conversão religiosa e floresceram igrejas evangélicas em

muitas comunidades indígenas de várias províncias (especialmente em Chimborazo), na

contramão da Igreja Católica e de suas linhas de apoio aos processos organizativos

indígenas191

. Esse processo de conversão religiosa implicou uma série de mudanças e

adequações tanto religiosas como culturais para gerar o que tem sido denominado como

“protestantismo quíchua” – kichwa – (ANDRADE, 2004) ou “protestantismo indianizado”

(LUCERO, 2006), enquanto uma forma particular de construção da identidade étnica

vinculada com elementos religiosos evangélicos192

. A FEINE nasceu como expressão

organizativa nacional e de representação dessa forma particular da etnicidade protestante, para

encaminhar as demandas das comunidades indígenas evangélicas diante do Estado e das

entidades não governamentais de desenvolvimento rural (ONGD), especialmente aquelas de

origem evangélica. Após de um processo de articulação e de consolidação interna na década

de 1980, a FEINE se encaminha numa perspectiva de alcançar uma maior projeção social e

política nacional nas décadas de 1990 e 2000 (GUAMÁN, 2006), procurando disputar os

espaços de representação indígena com outras organizações nacionais diante do Estado e no

cenário eleitoral193

. Para isso, a partir de uma linha política moderada e mais conciliadora tem

Organizaciones Clasistas), a UNE (Unión Nacional de Educadores), a FESE (Federación de Estudiantes

Secundarios del Ecuador) e a FENOC (BURGOS, 1984, p. 28). 190

A FEINE adotou no ano 2000 o nome de Consejo Ecuatoriano de Pueblos y Organizaciones Indígenas

Evangélicos (FEINE) em sintonia com o dispositivo multiculturalista que predominou a partir da segunda

metade da década de 1990. 191

Ver Andrade (2004). 192

A partir de uma perspectiva etnográfica, para uma visão do processo de conversão ao protestantismo no caso

de algumas comunidades indígenas da Província de Chimborazo e do papel do protestantismo para a

reconstituição de espaços de reprodução étnica e cultural e para a construção de uma forma específica da

etnicidade indígena por meio da adaptação de elementos culturais e religiosos, ver Muratorio (1982); Andrade

(2004). 193

Ver Andrade (2005); Guamán (2006); Lucero (2006); Tuaza (2011). Em 1998 a FEINE promoveu a criação

do movimento político “Amauta Jatari” (o sábio se levanta) para participar das eleições locais e nacionais. Em

2004 esse movimento muda de nome para “Amauta Yuyai” (o pensamento do sábio).

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119

propiciado uma política pragmática de alianças e acordos em distintas conjunturas com

diversos governos, partidos e movimentos de todo o espectro político194

.

No contexto do processo de retorno à democracia em 1978 foi aprovada em referendo

uma nova Constituição. As organizações indígenas e camponesas nacionais se envolveram na

campanha para sua aprovação, pois nela, por primeira ocasião em toda a história republicana

se reconheceram os direitos políticos e cidadãos para os analfabetos. Isso supôs uma mudança

substantiva para os povos indígenas ao ampliar seu direito ao voto e confrontá-los diretamente

com a problemática da participação política (CHIRIBOGA, 1987), pois nas zonas rurais e nas

comunidades indígenas concentram-se até hoje as maiores taxas de analfabetismo no país195

.

O retorno à democracia em 1979 trouxe inflexões nas políticas integracionistas do

Estado e marcou um novo momento na relação das organizações indígenas com ele. No seu

discurso de posse do governo, o presidente Jaime Roldós dirigiu-se explicitamente “para meus

irmãos que falam a língua quíchua” e expressou por primeira vez na história política do país

uma parte de seu discurso nesta língua, antecipando com esse gesto em mais de uma década

as políticas multiculturalistas que posteriormente serão assumidas pelo Estado196

. A abertura

para os povos indígenas expressa nesse gesto simbólico no discurso presidencial de Roldós

traduziu-se na ampliação da presença do Estado no campo, num conjunto de políticas

encaminhadas para as comunidades e povos indígenas e numa relação direta do Estado com as

organizações regionais e nacionais. Entre essas políticas e programas específicos que

incidiram nos processos organizativos indígenas destacaram-se a criação de um programa de

alfabetização em quíchua de abrangência nacional com participação das organizações

194

Sobre a política de alianças desenvolvida pela FEINE ver TUAZA (2011); LALANDER (2013). 195

Para 1979 calculava-se que o Equador tinha uma taxa de analfabetismo de 21,7% (RAMON, 1991, p. 363).

Entre os censos de1974 e 1982 se produz a maior redução da taxa nacional de analfabetismo da população de 15

anos ou mais de idade que diminui de 25,8% para 16,5%, como resultado das campanhas de alfabetização e as

políticas de ampliação do ensino fundamental. Segundo os dados do censo 1982, para esse ano a taxa de

analfabetismo rural alcançava 27,7% enquanto a taxa urbana era de 6,2%. A concentração das maiores taxas de

analfabetismo nas áreas de predomínio indígena tem sido uma constante até a atualidade e ela é particularmente

persistente entre as mulheres. Ver Zamosc (1995); Sánchez Parga (1996); Larrea et al (2007); Larrea et al

(2013). Segundo o censo 2010, a taxa de analfabetismo da população indígena foi de 20,4%, taxa que triplica a

média nacional equivalente a 6,7% para esse ano. No caso das mulheres indígenas essa taxa eleva-se a 26,8%

(LARREA, 2013, p. 64). 196

Na parte em quíchua de seu discurso, Roldós ressaltou que assumia o governo de todos e que esse dia falava

para todos os habitantes desta terra (país), para todas as pessoas que moram “onde o sol nasce”, para os “Shuar,

Waorani, Secoya, Siona, Cofán”, para “todos os seres humanos que vivem nas montanhas”, para os habitantes

dos “povoados onde o sol se põe”, os “Colorados” (Tsachilas), “Cayapas” (Chachis), “[,,,] para as pessoas

brancas, pretas e também para os que vieram de terras distantes” e fez um chamado para trabalhar entre todos e

avançar além das “palavras lançadas ao vento”, concretizando o que pensamos para acabar com a pobreza,

“fazendo assim procuraremos a liberdade”, concluiu. O vídeo do discurso de posse de Roldós está em:

http://archivojaimeroldos.com/multimedia/discurso-posesion/. Uma síntese dele incluída a parte em quíchua foi

publicada pelo jornal El Comercio o 09 de agosto de 2014: http://www.elcomercio.com/actualidad/discurso-

jaime-roldos-constitucion-10deagosto.html.

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120

indígenas (Moya, 1987; Pallares, 2002) e a criação de entidades e programas estatais de

Desenvolvimento Rural Integrado (DRI)197

. Essas políticas e programas tiveram continuidade

no governo democrata cristão de Osvaldo Hurtado (1981-1984)198

, no qual estourou a crise da

dívida externa (que marcou a década de 1980 nos países latino-americanos) e começou a

aplicação sistemática dos programas de ajuste estrutural da economia que com diversos

matizes caracterizariam a gestão dos diversos governos até a década de 1990.

A abertura para a participação das organizações indígenas no programa de

alfabetização em quíchua significou para elas não apenas a possibilidade de nomear os

alfabetizadores, formar novos quadros e fortalecer os processos organizativos e sua relação

com as comunidades de base. Também representou a possibilidade de desenvolver demandas

e argumentos direcionados a garantir programas de educação permanente geridos pelas

organizações indígenas que respondessem à realidade concreta do campo e assim contribuiu

para “constituir e consolidar um discurso próprio das organizações” em torno de um novo

terreno de disputa: “a educação e a cultura” (MOYA, 1987, p. 397).

De outro lado, os projetos de Desenvolvimento Rural Integrado que foram

implantados em várias zonas do país envolveram diretamente às organizações indígenas e

camponesas nos desafios e na arena institucional do desenvolvimento rural, promovendo a

diversificação de suas demandas enquanto dinamizavam a formação das federações locais de

comunidades, para atuarem em múltiplas ocasiões como contrapartes diretas dos projetos. Na

perspectiva do Estado, o impulso aos programas de desenvolvimento rural integrado teve um

viés produtivista e coincidiu com o declínio do ciclo reformista e o abandono progressivo das

políticas redistributivas da terra (BRETÓN, 2012, 104-109), as quais ficaram restritas

fundamentalmente à culminação dos processos de desapropriação iniciados nos anos

anteriores.

A isso se agregou a redução de recursos que esses programas experimentaram a partir

do governo conservador de Febres Cordero (1984-1988) em concordância com as políticas de

ajuste fiscal e a ascensão das políticas neoliberais para a agricultura. Nesse governo, a

Secretaria de Desarrollo Rural Integral (SEDRI) que inicialmente dependia diretamente da

Presidência da República foi colocada sob o Ministério de Bienestar Social. Essa mudança

institucional refletiu uma importante inflexão de corte neoliberal nas políticas agrárias, nas

quais os camponeses e os indígenas deixaram de ser considerados como sujeitos produtivos e

197

No governo Roldós criou-se a SEDRI (Secretaria de Desarrollo Rural Integral) encarregada da execução dos

projetos de Desarrollo Rural Integral (DRI) em várias regiões do país. 198

Após a trágica morte de Roldós em 1981, assumiu o governo seu vice, o democrata cristão Osvaldo Hurtado

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121

consequentemente como agentes relevantes para as políticas agrárias, passando a ser

considerados como objetos das políticas sociais compensatórias e focalizadas, reforçando o

tipo de relação provedor-beneficiário entre as entidades de desenvolvimento (estatais e

privadas) e as comunidades e organizações camponesas. Essa será uma marca que

acompanhará a definição das políticas agrárias do Estado em relação às agriculturas

camponesas e indígenas até a atualidade.

Um olhar panorâmico do processo de transformações agrárias e desenvolvimento

capitalista no campo produzido na região Interandina durante as décadas de 1960, 1970 e

1980 evidencia mudanças significativas em relação à estrutura fundiária, dos mercados de

trabalho e das migrações internas, das classes e lutas sociais, da questão étnica e camponesa,

da presença do Estado no campo e dos processos organizativos indígenas, referidos ao longo

deste capítulo, gestados ao calor dessas lutas e mudanças.

No que tange à estrutura fundiária, a dissolução do sistema de hacienda tradicional e

as mudanças decorrentes dos processos de reforma agrária e colonização na esfera nacional

propiciaram transformações significativas que podem ser apreciadas na tabela 1. Três

aspectos ressaltam da análise dos dados: a) verifica-se a diminuição percentual da área

controlada pelas grandes propriedades que no caso das propriedades de 100 e mais hectares

desce de 64,4% da área ocupada em 1954 (representando apenas o 2,1% dos

estabelecimentos) para 42,6% da área ocupada em 2000 (correspondente ao 2,3% do número

de estabelecimentos); b) paralelamente há um incremento significativo da importância na

estrutura fundiária das propriedades intermediárias (entre 20 e 100 hectares), as quais em

1954 ocupavam 19% da área total e representavam 8,1% dos estabelecimentos e para o ano

2000 concentravam quase o dobro da área total (37,2%) e correspondiam a 13,2% do total de

estabelecimentos agropecuários; c) a persistência dos minifúndios (propriedades menores de 5

hectares), como base da subsistência de grande parte do campesinato equatoriano e

característica central da estrutura fundiária nacional, que em 1954 correspondiam ao 73,1%

dos estabelecimentos ocupando 7,2% da área total e que no ano 2000 representavam 63,5%

dos produtores rurais mas ocupavam apenas uma área equivalente a 6,3% da área total. Além

dessas mudanças, verifica-se a ampliação da fronteira agrícola produzida nesses anos,

decorrente especialmente dos processos de colonização de vastas regiões da Amazônia e da

Costa equatoriana, que se expressa no incremento da área total sob estabelecimentos

agropecuários, a qual passou de quase 6 milhões de hectares em 1954, para mais de 12,3

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122

milhões de hectares em 2000, com a consequente diminuição das áreas de cobertura vegetal

natural e das florestas tropicais e subtropicais199

.

Tabela 1: Equador: evolução do número e da área dos estabelecimentos agropecuários

por categoria de tamanho (1954-2000)

Tamanho

(ha)

1954 1974 2000

No.

Imóveis

Área

(ha)

%

Imóveis

%

Área

No.

Imóveis

Área

(ha)

%

Imóveis

%

Área

No.

Imóveis

Área

(ha)

%

Imóveis

%

Área

Menos de 5

ha

251.686 432.200 73,1 7,2 346.847 538.668 66,8 6,8 535.309 774.225 63,5 6,3

De 5 a

menos de

20 há

57.650 565.800 16,7 9,4 96.360 935.291 18,5 11,8 176.726 1.706.794 21 13,8

De 20 a

menos de

100 ha

27.742 1.138.700 8,1 19 64.813 2.664.671 12,5 33,5 111.290 4.614.436 13,2 37,3

De 100 ha

e mais

7.156 3.863.000 2,1 64,4 11.091 3.810.773 2,2 47,9 19.557 5.260.375 2,3 42,6

Total 344.234 5.999.700 100 100 519.111 7.949.403 100 100 842.882 12.355.830 100 100

Índice de

Gini

0,86 0,82 0,80

Fonte: Censos Nacionais Agropecuários de 1954, 1974 e 2000.

A pesar do relativo declínio das grandes propriedades e o maior peso dos

estabelecimentos intermediários, a estrutura fundiária equatoriana ainda apresenta elevados

níveis de concentração e desigualdade no acesso à terra. Isso se evidencia ao observar a

evolução do índice de Gini, o qual diminuiu lentamente de 0,86 em 1954, para 0,82 em 1974 e

0,80 em 2000, mas ainda permanece num patamar alto, mostrando uma forte polarização entre

as centenas de milhares de unidades camponesas e os estabelecimentos empresariais

altamente capitalizados. Se considerarmos unicamente as propriedades privadas, excluindo os

estabelecimentos de propriedade comunal ou do Estado (que em 2000 ocupavam 4,88% e

0,59% da área total respectivamente), em 2000 os estabelecimentos com dimensões de 500

hectares ou mais correspondiam apenas a 0,16% dos imóveis e controlavam 16,1% da área

total ao nível nacional, percentagem que se eleva a 18,7% na Costa, região com maior nível

199

Ver Larrea (2006).

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de concentração das grandes propriedades (ALVARADO e VANDECANDELAERE,

2011)200

. Em contraste, a maior quantidade da pequena produção camponesa localiza-se na

região Interandina, incluindo aquelas zonas de maior população indígena. Nesta região, três

de cada quatro (74,9%) estabelecimentos agropecuários (423.845) correspondem a unidades

menores de cinco hectares, ocupando uma área equivalente a 12,2% da área total em

propriedade privada201

.

Em síntese, as mudanças indicadas refletem o curso adotado no processo de

desenvolvimento capitalista no campo, que na região Serra implicou a divisão dos grandes

latifúndios e a “metamorfose” da classe terrateniente, transmutada em burguesia agrária,

preservando para si as melhores terras localizadas nos vales interandinos e propiciando sua

conversão em propriedades relativamente grandes ou intermediárias altamente capitalizadas,

dedicadas especialmente à pecuária de leite e desde a década de 1980 à floricultura de

exportação. Ao mesmo tempo significou o acesso restrito à terra para uma grande quantidade

de famílias indígenas e camponesas, as quais para garantir sua sobrevivência devem

diversificar suas atividades em distintos tempos e espaços, ficando submetidos a uma situação

quase permanente de semiproletarização. A nova condição camponesa resultante supôs assim

a constante combinação (e tensão) da produção familiar na chakra (chácara) com a venda de

força de trabalho fora dela, o vínculo e a pertença à comunidade local com a migração

estacional para o trabalho nos agronegócios na Costa ou como pedreiros nas cidades, a

produção para o autoconsumo com a produção para o mercado, a persistência de relações

sociais não mercantilizadas de reciprocidade e redistribuição, caraterísticas das culturas

andinas, com a crescente monetarização das economias familiares, a procura da autonomia

produtiva com o assalariamento e a subordinação ao capital. Tudo isso, sempre marcado por

uma forte lógica de arraigo à sua terra e à sua comunidade. Trata-se, seguindo Bartra, dos

“polimorfos” e “transumantes” campesindios do capitalismo latinoamericano202

.

As organizações indígenas na Serra se desenvolveram precisamente nestas condições e

neste contexto de mudanças e foi nos seus processos de luta onde foi afirmado

progressivamente um discurso e uma identidade coletiva indígena camponesa. Na dinâmica

desse processo organizativo, das lutas levantadas e das múltiplas relações com agentes

200

Ver SIPAE (2011); Martínez, (2012); Martínez (2014). Esses estudos evidenciam processos de concentração

de terras em propriedades maiores de 500 hectares especialmente na Costa, por parte de grandes grupos

econômicos e empresas agroindustriais vinculadas à produção de cana de açúcar, palma africana, banana para

exportação e plantações florestais. 201

Ver Alvarado e Vandecandelaere, (2011). Se agregarmos as unidades do estrato de 5 até menos de 20

hectares, em 2000 na região Interandina os estabelecimentos privados menores de 20 hectares totalizavam 92%

dos estabelecimentos e ocupavam 32,1% da área total. 202

Ver Bartra (2011b); Bartra (2011a).

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externos (Estado, Igreja Católica, partidos de esquerda, ONGs, outras Igrejas), uma camada

significativa de lideranças indígenas formou-se e assumiu a representação das organizações e

a interlocução política com o Estado. Essas lideranças, gestores das organizações e

construtores de seu discurso e suas propostas políticas, podem ser consideradas como

verdadeiros intelectuais orgânicos no sentido gramsciano203

, como têm sido sublinhado por

distintos analistas204

. O papel desempenhado por esses intelectuais orgânicos e ativistas

indígenas será chave no processo de articulação organizativa na década de 1980 que derivou

na constituição da CONAIE e na elaboração de seu projeto político depois do levantamiento

de 1990, que visa à constituição do Estado plurinacional205

.

Para finalizar este longo percurso relativo ao processo organizativo da serra

equatoriana, resta-me sublinhar a marca que deixaram as lutas e as transformações da

hacienda, concebidas como um processo de liberação da opressão, na memória coletiva do

movimento e de suas lideranças. Não interessa aqui a verossimilitude total ou parcial dessas

lembranças, mas os sentidos que elas adotam no presente, ao ser efetivamente a história como

foi recriada e é vivenciada hoje dentro do movimento e suas organizações, após os

levantamentos e o processo de afirmação étnica. Essa memória remete aos nomes de

lideranças, hoje figuras quase míticas na memória coletiva, como Dolores Cacuango, Tránsito

Amaguaña ou Lázaro Condo. Através dos relatos de pais, mães e avós essa memória passou

para a geração que atualmente ocupa cargos de liderança e continua viva no presente, como se

pode apreciar no seguinte depoimento de Jorge Herrera, da Província de Cotopaxi na serra

central equatoriana, atual presidente da CONAIE:

En ese entonces mi papá todavía era joven y él siempre participaba así a las

reuniones. No vé que en ese tiempo vivía aquí unas familias de lucha, que se

llamaban de apellido Corrales, Ignacio Cofre, familia Cofre, Corrales y los

Chachas, el papá, la mamá del Juan Chacha, por ejemplo. Todo ellos hablaban de

la lucha, que siempre venían haciendo reuniones, aún todavía hablando la historia

203

Gramsci compreende os intelectuais em sentido amplo, isto é como “todo o estrato social que exerce funções

organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja no da cultura e no político-administrativo”

(GRAMSCI, 2002, p. 93). A questão dos intelectuais em Gramsci está associada a suas concepções da

hegemonia e de “Estado integral”. Nesse sentido, está diretamente relacionada “às formas de exercício das

funções de direção e dominação dos grupos sociais antagonistas” (BIANCHI, 2008, p 74). No que diz respeito à

figura dos “intelectuais orgânicos”, para Gramsci “todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma

função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais

camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo

econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, 2001a, p. 15). 204

Ver Guerrero (1995); Bretón (2012); Fernández (2015). 205

Uma síntese das ideias e contribuições de algumas das principiais lideranças e intelectuais indígenas na

elaboração da proposta do Estado plurinacional e na construção do projeto político da CONAIE publicado em

1994 (CONAIE, 1994) encontra-se em Fernández (2015). A última atualização do projeto político da CONAIE

foi em 2012 (CONAIE, 2013). Para uma análise dos principais conteúdos do projeto político da CONAIE de

1994, ver Souza (2015).

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de ellos. Entonces es parte también de eso de que el producto de haber obtenido la

tierra de la Cotopilaló era producto de un proceso de lucha. Eso es lo que siempre

nos indicaban los papás. Para conseguir eso, ellos eran trabajadores en las

haciendas, eran maltratados, lograron conseguir la organización y aparte de eso es

que era la propiedad. Entonces, bueno a mi papá le llevaron a la cárcel. Mi papá

estuvo en la cárcel. Antes de nuestro tiempo, ellos ya lo hicieron: el primer paso de

los tiempos de lucha. Claro, entonces hicieron los primeros pasos del tiempo de

lucha. Ahí con la Tránsito Amaguaña, la Dolores Cacuango, compañeros dice que

era mi papá. Ahí la lucha era principalmente para reclamar la libertad y la tierra.

Por eso en ese tiempo conforman la organización de los trabajadores. Ese tiempo

nació, la historia que cuenta papá, es que nació las luchas a través de la

conformación de organizaciones de trabajadores, en las haciendas. Sindicatos.

Ahora, si empezamos a mirar lo que es ahora la CONAIE, los movimientos

indígenas, parte de una visión sindicalista también. Entonces ahí conformó el

sindicato, Dolores Cacuango, mi papá, y todo eso, entonces la lucha era

permanente.206

Desse jeito, a experiência de exploração vivenciada pelos “mayores” nas haciendas, as

formas de organização, e as lutas empreendidas por eles são reinterpretadas e contribuem para

a afirmação da identidade, da organização indígena e dos sentidos políticos que adotam as

lutas atuais das lideranças. Com clareza se estabelece a continuidade histórica das lutas de

resistência e das formas organizativas, a partir da matriz sindical e das lutas das lideranças da

FEI, até as lutas da CONAIE, hoje. Mais adiante no depoimento, após do relato da prisão e

das torturas que sofreu seu pai e como conseguiu escapar quando foi deixado quase morto,

jogado no rio que atravessa a cidade de Quito, Jorge Herrera lembra as palavras de seu pai

relativas à importância da integridade das lideranças nas lutas, mantendo-se na frente delas

sem trair seu povo e seus princípios, por meio dos conselhos que ele recebia de Dolores

Cacuango e Tránsito Amaguaña, as figuras históricas lideranças da FEI, quando estava na

prisão:

Por eso ahí decía mi papá, decía en esos términos, decía, la gente en ese entonces

para que le dé sueldo, no es solo ahora que la gente quiere comprar al dirigente,

206

Tradução nossa: “Naquela época meu pai ainda era jovem e ele sempre participava assim das reuniões. Olhe

que naquele tempo moravam aqui umas famílias de luta, chamavam-se de sobrenome Corrales, Ignacio Cofre,

família Cofre, Corrales e os Chachas, o pai e a mãe do Juan Chacha, por exemplo. Todos eles falavam da luta,

que sempre faziam reuniões, ainda falando da sua história. Então, também faz parte disso que o produto de ter

obtido a terra da (hacienda) Cotopilaló foi o resultado de um processo de luta. Isso é o que sempre nos

indicavam os pais. Para conseguir isso, eles eram trabalhadores nas haciendas, foram maltratados, eles

conseguiram obter a organização, além disso, a propriedade. Então, bem, a meu pai o levaram para a prisão. Meu

pai esteve na prisão. Antes de nosso tempo, eles já o fizeram: o primeiro passo dos tempos de luta. Bem, então

eles fizeram os primeiros passos do tempo de luta. Aí, com a Tránsito Amaguaña, a Dolores Cacuango, meu pai

disse que eram companheiros. Aí a luta era principalmente para exigir a liberdade e a terra. Por isso, nesse tempo

conformam a organização dos trabalhadores. Naquele tempo nasceu a história que conta meu pai, é que as lutas

nasceram através da formação de organizações de trabalhadores nas haciendas. Sindicatos. Agora, se olharmos

para o que é hoje a CONAIE, os movimentos indígenas partem de uma visão sindicalista também. Então aí

formou o sindicato, Dolores Cacuango, meu pai e tudo isso, então a luta era permanente” (Entrevista Jorge

Herrera, 22 novembro 2014: entrevista realizada por Florencia Campana e Fernando Larrea).

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según cuenta mi papá, no. Claro, hay muchos dirigentes que se dejan vender

también. Entonces cuando a mi papá le llevaban, estaba en la lucha, dice que la

Tránsito Amaguaña y la Dolores Cacuango le decían a él: Tayticu, cuidado,

cuidado a tu pueblo traicionar, cuidado porque nosotros estamos contigo, nosotros

estamos en la lucha. Tayticu, no puedes vender la conciencia a estos ricos, a estos

capitalistas, cuidado. Así decía, cuando venían, o sea las compañeras que eran la

Tránsito Amaguaña y la Dolores Cacuango iban a la cárcel para decir que cuidado

tayticu, aunque estás en la cárcel pero no vender la conciencia, claro porque la

gente les quería dar dinero para que ya no organicen, el punto era que se

organizaban los trabajadores de las haciendas, entonces para que no organicen,

simplemente que bote ahí. Siempre la Tránsito Amaguaña y la Dolores Cacuango él

dice que le andaban tras de él cuidándole para que de pronto no le compren la

conciencia, traicione a los principios. Y bueno eso es lo que me cuenta, (…)207

.

É significativo o paralelismo no relato e lembranças do até pouco tempo presidente da

CONAIE e o depoimento de Humberto Cholango, liderança indígena da zona de Cayambe, na

serra norte e também ex-presidente da CONAIE, sobre sua trajetória e sua vinculação com o

movimento indígena, acompanhando as lutas pela terra de seu pai e a lembrança de seu avô

também próximo de Dolores Cacuango:

Mi presencia dentro del movimiento se debe, inclusive yo podría decir que es un

tema generacional. Mire, mi abuelo era parte de la dirigencia indígena en Cayambe

conjuntamente con Dolores Cacuango. En la década de los años 1940 hasta 60 -70.

Después mi papá siguió también en la lucha por la recuperación de las haciendas y

yo me integré en esa pelea se podría decir desde muy niño. Juntos con mi abuelo

todavía recuerdo que vivía, mi abuelo falleció cuando yo tenía 13 años. Entonces Mi

abuelo tenía esa fuerza, bastante dura, fuerte, todo una formación comunista,

socialista, a pesar de que eran analfabetos y todo. Mi abuelo y mi papá. Entonces

tenían esa formación. Y cuando mi papá era dirigente de las comunidades que se

formó por Cayambe y Cangahua (comunidades de Los Andes, Cochabamba,

Isacates, Libertad), cuando empezaron la pelea por las haciendas en la década de

los 70, venía las peleas, el segundo momento de la pelea era en la década de los 80

y yo recuerdo claramente cuando León Febres Cordero era presidente ya,

comenzando como presidente, mi papá era presidente de 4 comunidades ahí y se

tomó 5 haciendas. Entonces ahí con mi papá aprendí a andar. Porque yo era el

único ahí en la comunidad que sabía leer y escribir y estaba en la escuela yo. Y

todos los juicios, todos los documentos que llegaban yo tenía que ir a leer. Leer,

porque mi papá me llevaba a las asambleas para que yo lea esos documentos.

Entonces era 10 de la noche, a veces tocaba levantar 2 de la mañana, porque

hacían eso, así escondidos hacían las reuniones, no eran públicas, así. Entonces,

eso me llevó a que sea parte de todo este proceso del movimiento indígena. Y

207

Tradução nossa: “Por isso, aí dizia o meu pai falava nesses termos, dizia, as pessoas naquela época para dar-

lhe um salário, porque não é só agora que as pessoas querem comprar à liderança, não, segundo fala o meu pai.

Claro, existem muitas lideranças que se deixam vender também. Então, quando meu pai foi detido, ele estava na

luta, fala que a Tránsito Amaguaña e a Dolores Cacuango disseram-lhe: Tayticu (paizinho), cuidado, cuidado

para não trair o teu povo, cuidado porque a gente está contigo, nós estamos na luta. Tayticu, você não pode

vender sua consciência a esses ricos, a esses capitalistas, cuidado. Assim dizia, ele diz, quando elas vinham, as

companheiras que eram a Tránsito Amaguaña e a Dolores Cacuango iam para a cadeia para dizer: Tayticu

cuidado, embora você esteja na cadeia, mas não venda a consciência, porque as pessoas queriam dar-lhes

dinheiro para que não mais se organizem; o ponto era que os trabalhadores das haciendas se organizavam, então,

para que não se organizassem, simplesmente que deixe aí. Sempre ele diz que a Tránsito Amaguaña e a Dolores

Cacuango andavam trás ele cuidando-lhe para que de repente não lhe comprem a consciência e traia seus

princípios. Bem, isso é o que ele me diz, [...]” (Entrevista Jorge Herrera, 22 novembro 2014: entrevista realizada

por Florencia Campana e Fernando Larrea).

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obviamente de ahí me involucré, enrolé mucho más, ya en el año 90 ya, claro no era

dirigente, nada, pero participé del primer levantamiento indígena, y todo ese tiempo

hasta 96 que ya empecé a asumir la dirigencia, muy joven, y desde ahí fui dirigente

de mi organización de base, presidente de la Confederación del Pueblo Cayambi y

fundador, y después llegué a ser presidente del ECUARUNARI dos períodos, siendo

re-electo; después llegué a ser presidente fundador de la Coordinadora Andina de

Organizaciones Indígenas (CAOI), Bolivia, Perú, Ecuador, Colombia, y ahora

Presidente de la CONAIE. Entonces eso es, una trayectoria así. Me tocó vivir

momentos muy duros, difíciles. Mi papá inclusive en el año 83 y 84 pasó a la

clandestinidad porque estaba perseguido en la época de Febres Cordero con orden

de detención por supuesta invasión a las haciendas. Entonces yo acompañaba.

Inclusive acompañaba, justo cuando era tiempos de vacaciones, yo con mi papá,

claro mi papá estaba en clandestinidad pero iba a trabajar también, trabajar en

otros lados y así empezar a sostener a la familia, los estudios de nosotros y el juicio

que también era plata. Y finalmente, ya en el año 86 ya se resolvió. Logramos

ganar los juicios a las haciendas y ya las tierras pasaron a nuestras manos. Hemos

conseguido vivir un poco más tranquilos.208

Como se pode apreciar, as referências ao tempo das haciendas e à história de lutas

indígenas e camponesas pela terra continuam alimentando as visões e as práticas das

lideranças nacionais atuais, reatualizando o vínculo das lutas do passado com aquelas do

presente. Esse legado deixado pelas gerações anteriores faz parte da memória e da identidade

indígena camponesa das novas gerações de lideranças, mesmo que sua atuação se desenvolva

em condições bem diferentes. Seguidamente, passo revisar as especificidades do processo

208

Entrevista Humberto Cholango, 12 Maio 2014. Tradução nossa: “A minha presença dentro do movimento é

devida até eu poderia dizer, que é uma questão geracional. Olhe só, meu avô fazia parte das lideranças indígenas

em Cayambe junto com Dolores Cacuango. Na década de 1940, até a de 60, 70. Depois, meu pai seguiu também

na luta para a recuperação das haciendas e eu me integrei nessa peleia poderia dizer desde a infância. Juntamente

com o meu avô, eu ainda lembro que ele vivia, meu avô morreu quando eu tinha 13 anos. Então meu avô tinha

essa força, bastante firme, forte. Toda uma formação comunista, socialista, embora eles eram analfabetos e tudo.

Meu avô e meu pai. Então eles tiveram essa formação. E quando meu pai era liderança das comunidades que se

formaram em Cayambe e Cangahua (comunidades de Los Andes, Cochabamba, Isacates, Libertad), quando

começaram a luta pelas haciendas na década de 70, vieram as peleias; o segundo momento das lutas era na

década de 80 e eu lembro com clareza quando León Febres Cordero já era presidente, começando como

presidente, meu pai era presidente de 4 comunidades lá e se ocupou 5 haciendas. Então, aí com meu pai aprendi

andar. Porque eu era o único na comunidade que sabia ler e escrever e estava na escola. E todos os litígios, todos

os documentos que chegavam eu tinha que ir para ler. Ler, porque meu pai me levava às assembleias para que eu

lesse esses documentos. Então, era 10 à noite, às vezes tocava levantar até 2 da manhã, porque faziam isso, assim

escondidos faziam as reuniões, não eram públicas, assim. Então isso me levou a fazer parte de todo este processo

do movimento indígena. E, obviamente, daí me envolvi, me engajei muito mais. Já no ano 90, bem, não era

dirigente, nada, mas participei do primeiro levantamento indígena e todo esse tempo até o ano 96 que já comecei

assumir a liderança, muito jovem, e a partir daí eu fui liderança da minha organização de base, presidente e

fundador da Confederação de Povo Cayambi e depois cheguei a ser presidente do ECUARUNARI dois períodos,

sendo reeleito; então eu me tornei presidente fundador da Coordenadora Andina de Organizações Indígenas

(CAOI), Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, e agora presidente da CONAIE. Então é isso: uma trajetória assim.

Coube-me viver momentos muito duros, difíceis. Meu pai inclusive nos anos 83 e 84 passou à clandestinidade,

porque ele foi perseguido na época de Febres Cordero com mandado de prisão por suposta invasão às haciendas.

Então eu acompanhava. Inclusive eu acompanhava, justamente quando era tempo de férias, com meu pai, é claro

que meu pai estava na clandestinidade, mas ia trabalhar também, trabalhar em outros lugares e começar a

sustentar à família, a escola nossa e o litígio que também custava dinheiro. E finalmente, já no ano 86 foi

resolvido. Conseguimos vencer nos litígios às haciendas e as terras passaram para nossas mãos. Temos

conseguido viver um pouco mais tranquilos.”

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organizativo na região amazônica, prévio a discutir o processo de confluência das

organizações das duas regiões na formação da CONAIE na década de 1980.

3.2 REIVINDICAÇÕES TERRITORIAIS E PROCESSO ORGANIZATIVO NAS

NACIONALIDADES AMAZÔNICAS

Em contraste com o processo histórico vivenciado na região Interandina equatoriana,

na região Amazônica, por suas caraterísticas geográficas e ecológicas e a hostilidade e

resistência aberta de distintos povos indígenas, não existiu a centralidade do regime da

hacienda tradicional como sistema de dominação. Mesmo assim, os três séculos de

dominação colonial espanhola e a violência exercida para subjugar os índios, também no

período republicano, tiveram um enorme impacto na reconfiguração do entorno étnico e

cultural dos povos indígenas amazônicos.

Com efeito, motivados pelos mitos criados do El Dorado e do País da Canela os

espanhóis realizaram múltiplas expedições para a região Amazônica, fundaram as primeiras

cidades nessa região209

e estabeleceram encomiendas para a obtenção dos tributos que os

índios tinham que pagar em ouro e algodão, na segunda metade do século XVI. Esta primeira

e importante fase de implantação colonial na Alta Amazônia foi levantada “sob o signo do

ouro”, como descreve Anne Christine Taylor, com a abertura de uma avançada de extração

aurífera (especialmente nos leitos dos rios) e implicou uma grande afluência de “toda classe

de aventureiros e serranos deportados e a exploração desenfreada das populações índias

locais” (TAYLOR, 1988, p. 223).

Esse primeiro ciclo do ouro na região Amazônica foi efêmero, como consequência da

dinâmica assumida pela economia colonial com a expansão do eixo mineiro andino e pelas

próprias condições do seu desenvolvimento que incubaram as “circunstancias de sua próxima

ruína”: diante de um processo de extermínio, os índios acossados pelas epidemias trazidas

pelos europeus, pelas “exações” de encomenderos e patrões e pelas “incursões escravistas”

fugiram dos assentamentos e se internaram na floresta tropical como zona de refugio,

provocando o despovoamento das “cidades”, uma crise de mão de obra e uma hostilidade

maior e mais ativa e organizada das populações locais (TAYLOR, 1994a, p. 20). Desde 1560

aconteceram várias rebeliões indígenas, sendo a mais significativa aquela de 1578-79

209

A. C. Taylor (1988, p. 224) destaca que entre 1541 e 1560 houve doze fundações de “cidades” na região

Amazônica enquanto apenas oito nas regiões Interandina e Litorânea. Muitas dessas “cidades” nas ladeiras

orientais da cordilheira tinham desaparecido para finais do século XVI.

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conhecida como a rebelión de los pendes (xamãs) na Amazônia Norte equatoriana210

, por sua

abrangência e configuração enquanto uma aliança multiétnica e pela participação de xamãs e

caciques locais211

.

A partir de 1580, destaca Taylor, com o abandono da região de boa parte dos

encomenderos e da população externa, as cidades estabelecidas sob a miragem do ouro na

Alta Amazônia no território que hoje é o Equador experimentaram uma “decadência e uma

marginalização duradoura” (TAYLOR, 1988, p. 223). Com uma economia “parasitaria”

qualificada por esta autora como uma “economia escravista de subsistência” (Taylor, 1988, p.

225), orientada e dependente da extração e comercialização dos recursos da floresta (pita,

cascarilha, cacau), esses povoados ficaram contidos num “subdesenvolvimento estrutural”

com uma população muito limitada até finais do século XIX (TAYLOR, 1994a, p. 21).

Esse primeiro e efêmero ciclo do ouro anteciparia assim o destino da região, no

sentido de constituir um espaço sometido aos ciclos marcados pela extração de produtos

naturais em função das possibilidades de sua realização nos mercados externos e, ao mesmo

tempo, um território de fronteira da colonização. Taylor resume assim esse destino cruel da

região: “desde os começos do século XVII os dados estavam lançados: daí em diante a

Amazônia estaria destinada a sucessivas devastações de uma economia de booms, orientada

completamente à procura ruinosa e frenética da mais-valia absoluta” (TAYLOR, 1994b, p.

26). Esses processos devastadores provocaram profundos estragos nas sociedades e povos da

floresta amazônica, alguns dos quais foram literalmente dizimados, mas simultaneamente

geraram dinâmicas específicas de resistência, transculturação, adaptação e reconstituição

étnica212

.

Diversos estudiosos têm enfatizado o rico mosaico étnico, a complexidade cultural e

linguística da região da Alta Amazônia e as múltiplas relações existentes (incluída a guerra

intertribal) que existiam entre os povos indígenas, antes da penetração colonial espanhola213

.

Blanca Muratorio (1998, p.81), ao analisar as informações etnohistóricas e demográficas

210

Nessa rebelião as cidades de Avila e Archidona foram destruídas e todos seus habitantes assassinados. A

rebelião só pôde ser contida pelos reforços militares enviados de Quito, no fracassado assalto dos rebeldes à

cidade de Baeza. À rebelião seguiria uma dura repressão concebida com a lógica de escarmento que primava na

época. Sobre essa rebelião ver Oberem (1980); Muratorio (1982). 211

Muratorio sublinha que uma das consequências dos 300 anos de dominação colonial foi a desarticulação da

“organização sócio-política indígena” que tinha permitido a “ação concertada dos diferentes grupos étnicos”

como aconteceu na rebelião de 1578 (MURATORIO, 1998, p. 125). 212

Com base em fontes etnohistóricas, detalhadas análises diacrónicas (séculos XVI-XIX) dos processos de

colonização da Alta Amazônia e das transformações produzidas nas sociedades indígenas da região, incluindo

referencias àquelas que foram exterminadas encontram-se nos trabalhos de Anne Christine Taylor (1988; 1994a;

1994b; 1999). 213

Ver Muratorio (1998); Taylor (1988); Taylor (1994a); Taylor (1994b); Taylor (1999); Whitten (1987);

Costales A. e Costales P. (1983).

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referidas à Amazônia Norte equatoriana, conclui que o processo de conquista e evangelização

gerou uma “simplificação etnocida do rico panorama étnico da Amazônia” que ainda não

terminou. Nesse processo, coube às missões religiosas um papel central como linha de frente

para assegurar a presença da Corona espanhola e seu projeto “civilizatório” nos seus confins

territoriais ocupados pelas populações indígenas. Especial relevância teve a missão jesuíta de

Maynas (no que hoje é o Peru) estabelecida desde o século XVII, por sua importância em

relação à abrangência geográfica de sua jurisdição como pelos impactos de sua atuação para

os povos indígenas de toda a Alta Amazônia (TAYLOR, 1994b). Com efeito, as técnicas de

redução desenvolvidas pelos jesuítas como mecanismo de sujeição e concentração dos índios

conversos tiveram influências culturais profundas e duradouras para os povos submetidos

sobreviventes214

e contribuiriam dramaticamente no processo de extermínio de outros deles,

ao provocar o colapso demográfico como consequência da mortalidade causada pelas pestes e

epidemias recorrentes nas reduções estabelecidas215

. Entre os anos 1550 e 1760, Taylor

(1994b) calcula que na ampla região que fez parte da missão de Maynas houve uma queda da

população indígena superior a 80%216

.

A fuga para regiões montanhosas mais distantes, o internamento na floresta e a

mudança nos padrões de ocupação do território com a adoção de um modelo de hábitat

disperso (como aquele dos povos Shuar e Achuar) e o deslocamento de distintos grupos das

zonas ribeirinhas para as regiões interfluviais, como zonas de refugio de mais difícil acesso,

constituíram as formas mais efetivas de resistência diante da mortalidade epidêmica, das

incursões escravistas e do colapso provocado pela presença de colonizadores e

missionários217

. De todo modo, não se pode compreender a configuração étnico-cultural atual

das nacionalidades e povos amazônicos sem considerar os impactos provocados pelos

214

Entre as marcas e mudanças culturais nas sociedades indígenas da Alta Amazônia provocadas como

consequência da atuação da missão jesuíta de Maynas, Taylor destaca mudanças nos padrões residenciais tais

como a alternância de moradia agrupada/dispersa presente em alguns grupos, mudanças nas estruturas familiares

(a exemplo do abandono da poligamia ou o casamento de homens muito jovens nos povos quíchua falantes) e

transformações nos sistemas simbólico–rituais (“difusão de um modelo simplificado do sistema de cargos”),

além de mudanças no vestuário, na introdução de novas culturas (arroz, mandioca amarga) e em algumas

especializações produtivas (a exemplo do curare ou tecidos). Esta autora sublinha como uma consequência

importante da colonização missionária a clivagem estabelecida entre os índios “mansos”, falantes do quíchua,

“batizados e sedentarizados” e os selvagens, “infiéis nômadas”, “jívaros” ou “aucas” (TAYLOR, 1994b, p. 28-

29). 215

Entre sua criação em 1638 e 1767, quando se produz a expulsão dos jesuítas dos domínios da Espanha, a

missão jesuíta de Maynas fundou mais de 40 reduções na Alta Amazônia, reduções pelas que passaram várias

dezenas de milhares de indígenas nesse lapso de tempo (TAYLOR, 1994b, p. 27). 216

De uma população aproximada de 200.000 pessoas na região em 1550, apenas restavam entre 15.000 e

30.000 pessoas em 1760. Os próprios missionários jesuítas da época contavam dez sobreviventes de cada cem

índios capturados e reduzidos (TAYLOR, 1994b, p. 30). Ver também Whitten (1987, p. 237-239). 217

Ver Taylor (1994b); Muratorio (1998).

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processos de evangelização, pacificação, subjeção e extermínio resultantes das reduções

jesuítas e encomiendas, bem como as diversas respostas adaptativas e de resistência geradas

pelos povos indígenas. Assim, Taylor salienta o papel desempenhado pelas que denomina

“tribos neocoloniais forjadas nas reduções ou ao redor dos assentamentos espanhóis” (Taylor,

1994b, p. 32), isto é, os povos que podem ser considerados como resultado direto da relação e

confrontação com as instituições coloniais que a partir do que restava das etnias originais

empreenderam processos de adaptação, transculturação, sincretismo cultural e etnogênese,

construindo uma identidade étnica diferencial, como é o caso dos povos que hoje constituem a

nacionalidade Kichwa das regiões norte e central da Amazônia equatoriana: os Kichwa do

Napo (Napo Runas) e os Kichwa de Pastaza respetivamente218

.

Para a autora, esses povos fundados a partir do “reagrupamento de sociedades

culturalmente heteróclitas” e dotados de um grande dinamismo, desde o século XVIII

desenvolveram uma identidade própria construída sobre a dualidade estrutural que contrapõe

uma “esfera aberta” de comportamentos e instituições sociais marcados pela relação com

colonizadores e missionários, a esfera dos índios “mansos”, “cristianizados”, dos “alli runa”

(homens bons), com uma “esfera fechada” de reprodução cultural autônoma, a esfera dos

“sacha runa” (homens da floresta), “senhores do entorno natural e simbólico impermeável aos

brancos”, no espaço de refugio da floresta (TAYLOR, 1994b, p. 33)219

. Essa dualidade

permitiria a esses povos desempenharem ao mesmo tempo o papel de intermediários e de

grupos “tampão” entre o mundo colonial e os povos insubmissos, alguns dos quais, em

distintas circunstâncias lograram preservar sua autonomia até o século XX, ainda à custa de

um maior isolamento, como é o caso dos Waorani, os Shuar e os Achuar. No que diz respeito

aos povos Shuar e Achuar, Taylor explica a preservação de sua autonomia e a permanência de

sua organização social pela fragilidade da dominação colonial na Alta Amazônia de uma

parte, e de outra, pelas caraterísticas de sua organização socioterritorial tradicional, isto é a

dispersão, o atomismo e a autonomia econômica e simbólica de suas unidades domésticas,

que lhes permitiram resistir em melhores condições à agressão colonial, expressa nas

epidemias e nas incursões escravistas e missionárias (TAYLOR, 1994a, p. 26-27). No caso

218

Entre os diversos estudos etnográficos detalhados dos povos e nacionalidades amazônicas se destacam os

trabalhos de Whitten (1987) sobre os kichwa de Pastaza, Macdonald (1997) e Muratorio (1998) dos Napo runas

(kichwa da bacia do rio Napo), Harner (1994) e Bustamante (1988) sobre os Shuar, Descola (1989) sobre os

Achuar, Rival (1996) dos Waorani. 219

Norman Whitten (1987) sublinha a importância dessa dualidade alli runa – sacha runa no universo simbólico

e no processo de adaptação cultural e etnogênese dos Kichwa de Pastaza. Para o caso dos Napo runas,

Muratorio (1998) também destaca a relevância da internação na floresta como estratégia e prática recorrente de

resistência que contribuiu para sua reprodução cultural e simbólica ao longo da sua história.

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dos Waorani, sua estratégia para a preservação de sua autonomia implicou seu “isolamento

absoluto” e a “defesa de sua independência a qualquer custo” (TAYLOR, 1994b, p. 31-32).

Após da expulsão dos Jesuítas em 1767, na Amazônia equatoriana abriu-se um

período que se estenderia por um século (aproximadamente até 1870), marcado pelo declínio

dos estabelecimentos coloniais e pelas dificuldades das autoridades eclesiásticas e políticas de

impor sua tutela nos territórios da floresta amazônica, dificuldade expressa no abandono de

formas centralizadas de exercício do poder político e administrativo. Essa situação não

mudaria com a independência da Espanha e os primórdios da vida republicana a partir de

1830. Com a retração operada nesse período na dinâmica colonizadora na Amazônia

equatoriana, os povos indígenas sobreviventes experimentaram uma paulatina recuperação e

aumento da sua população, bem como uma relativa expansão territorial caraterizada por seu

retorno às zonas ribeirinhas dos grandes rios (TAYLOR, 1994b). Nessas condições, puderam

continuar com seus sistemas e práticas produtivas de horticultura itinerante, de caça, de pesca

e de coleta, caraterísticos das sociedades amazônicas.

As duas últimas décadas do século XIX e os primeiros anos do século XX

constituiriam um novo período dramático para os povos indígenas da Amazônia equatoriana,

decorrente do boom da borracha que atingiu toda a região amazônica, incluindo a Alta

Amazônia. Este ciclo extrativista, qualificado como um “período traumático” (Muratorio,

1998, p. 179) para os povos indígenas da região e como um “verdadeiro cataclismo a escala

amazônica” (Taylor, 1994b, p. 40), foi efêmero em sua duração220

, mas deixou consequências

duradouras. A extração da borracha na Alta Amazônia teve como eixo comercial o porto de

Iquitos (no Peru), num ciclo econômico marcado pela demanda da indústria automotiva que,

como anota Muratorio (1998, p. 177), determinou que os indígenas amazônicos e os operários

de Detroit fizessem parte “do mesmo momento histórico no desenvolvimento do capitalismo”.

Uma grande quantidade de comerciantes estrangeiros e equatorianos, aventureiros e agentes e

trabalhadores das empresas da borracha ocuparam vários pontos ao longo da Amazônia

equatoriana e disputaram o controle e a subjugação da mão de obra indígena, conhecedora da

floresta, para a extração da borracha. Isso implicou o retorno de incursões escravistas a grande

escala e práticas de terror, diante da fraqueza e incapacidade de controle do Estado

equatoriano na região, como testemunham diversos documentos históricos da época221

.

220

O boom da borracha decolou em 1875, teve seu apogeu na última década do século XIX e caiu em crise para

1910. As exportações de borracha do Porto de Iquitos cresceram de 2.000 Kg. em 1862-63 para 714.161 Kg. em

1885 (TAYLOR, 1994b, p. 42). 221

Ver Muratorio (1998); Taylor (1994b).

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A maior parte da borracha existente na Amazônia equatoriana nas regiões interfluviais

era da espécie conhecida como balata (castilloa elástica), de menor qualidade do que as

apetecidas seringueiras (hevea brasilienses) abundantes nas regiões ribeirinhas dos grandes

rios afluentes do Amazonas peruano e brasileiro, provocando deslocamentos da população e o

tráfico humano de indígenas para essas regiões, bem como o contrabando da borracha para

Iquitos por meio do transporte fluvial controlado pelos comerciantes peruanos

(MURATORIO, 1998, p. 175). Essas diferenças geográficas e de qualidade da borracha foram

determinantes nas diversas formas que assumiu a exploração da mão de obra indígena e

ocasionaram que os estragos provocados pela febre extrativista da borracha fossem

diferenciados segundo as distintas sub-regiões da Amazônia equatoriana, atingindo em

distinto grau os diferentes povos indígenas. Enquanto nas zonas ribeirinhas de extração da

hevea se instalaram as maiores companhias monopolistas as quais instauraram poderosas

milícias escravistas (como foi o caso da Casa Arana instalada no Putumayo), nas regiões

interfluviais com maior ocorrência da balata primaram pequenos empreendimentos que

mobilizavam dezenas de trabalhadores (TAYLOR, 1994b, p. 42). Foram estes pequenos

empreendimentos que generalizaram o sistema chamado de “patronazgo” (uma modalidade

de servidão por dívidas que se manteria durante as seguintes décadas além da extração da

borracha), como forma de controle da mão de obra indígena em que o patrão antecipava um

pagamento para o grupo indígena com a entrega (“repartos”) de algumas mercadorias

manufaturadas (com preços sobrevalorizados) que já tinham sido adotadas na produção de

subsistência dos indígenas cristianizados (espingardas, machados, facões, tecidos); em

contrapartida, os indígenas ficavam comprometidos a entregar ao patrão uma quantidade

determinada de trabalho ou produtos, para diminuir a dívida contraída. Sob esta modalidade

de trabalho, especialmente os indígenas Kichwa e Sapara cristianizados forneceram grande

parte da mão de obra mais regular na extração de borracha (Muratorio, 1998). Uma situação

similar também sofreram os povos Siona, Secoya e A´I (Cofan).

Alguns outros povos da zona centro-oriental da Amazônia equatoriana considerados

“infiéis” ou “bárbaros” sofreram diretamente os estragos da violência, das correrias

escravistas e da venda e tráfico forçado de indígenas para o Peru, Bolívia e Brasil

desencadeados no boom da borracha, que, junto às epidemias que assolaram a região durante

esse período, provocaram seu etnocidio, descrito como “o pior legado da era da borracha no

Equador” (MURATORIO, 1998, p. 178). Muratório (1998, p. 200) indica vários povos tais

como os Gayes, Semigayes, Muratos, Payaguas e Angoteres, os quais são mencionados nos

documentos de finais do século XIX e inícios do século XX e que já não aparecerão mais com

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seus nomes específicos após de 1920, no final da época da borracha. Os grupos Sapara

considerados “infiéis” também sofreram diretamente as correrias escravistas e levados à beira

do seu extermínio222

. Os povos Shuar e Achuar foram os menos atingidos durante esse

período, devido a sua localização em zonas com maior ocorrência da borracha de menor

qualidade (balata) e ser “protegidos por sua reputação de ferocidade” (TAYLOR, 1994b, p.

43).

Com o declínio do ciclo da borracha alguns dos comerciantes e patrões da borracha

ficaram assentados de forma permanente na região. Mesmo com algumas dificuldades para

manter o acesso e controle regular da mão de obra indígena, a generalização do sistema de

patronazgo durante as seguintes décadas permitiu a eles contar com força de trabalho

indígena para empreender com diversas atividades produtivas, tais como a introdução de

gado, algumas culturas agrícolas (algodão, café) e o lavado de ouro. De qualquer forma, como

mostra em detalhe Muratório (1998), a subordinação do trabalho indígena geralmente foi

esporádica e embora a relação de endividamento implicasse a extração do excedente por meio

da apropriação do trabalho indígena e o intercambio desigual, sustentados no monopólio de

mercadorias manufaturadas que viraram indispensáveis na produção de subsistência indígena,

esse sistema não modificou substancialmente os sistemas produtivos indígenas, dado que os

povos indígenas mantinham seu acesso ao território, suas “pautas de organização social” e

suas práticas econômicas tradicionais de caça, pesca e horticultura”, compatíveis com o

lavado de ouro e o trabalho temporário nas propriedades dos patrões (MURATORIO, 1998, p.

246).

Com a finalidade de propiciar a integração da região na economia nacional e mais

tarde segurar as fronteiras com o Peru, durante as primeiras décadas do Século XX o Estado

equatoriano promoveu a presença de diversas missões religiosas as quais se instalaram em

diversos pontos da Amazônia equatoriana (desde finais do século XIX), supriram a ausência

do Estado na região e assumiram o protagonismo para evangelizar e educar (“civilizar”) os

povos indígenas. Dominicanos, Josefinos, Salesianos, Franciscanos, além das missões

evangélicas, com todas suas diferenças em termos de seus métodos e formas de implantação

no território223

, foram assim partícipes ativos e promotores diretos dos processos de mudança

222

Ver Muratorio (1998); Taylor (1994b). Em relação aos Sapara, Taylor sublinha que o boom da borracha

“terminou de aniquilar aos últimos sobreviventes de um vasto conjunto linguístico, que em seu apogeu no século

XVI foi numericamente superior ao conjunto jívaro” [povos Shuar, Achuar, Maina, Aguaruna, Huambisa da

Alta Amazônia do Equador e Peru] (TAYLOR, 1994b, p. 43). Recentemente (julho 2017) morreu um dos

últimos cinco anciões que dominavam a língua Sapara, declarada patrimônio oral imaterial da humanidade pela

UNESCO em 2010. 223

Para uma visão das diferenças na implantação das distintas missões religiosas, ver Taylor (1994b).

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cultural e de integração econômica dos povos indígenas da região amazônica, incluindo a

introdução do gado nos sistemas produtivos, a promoção de assentamentos permanentes, a

criação de internados para a educação de crianças (especialmente no caso dos Salesianos e o

povo Shuar224

).

A partir da década 1940 tomam dinamismo os processos de exploração petrolífera e a

presença de empresas transnacionais (inicialmente a Shell) na procura deste recurso,

especialmente na parte Norte e Central da região Amazônica equatoriana, abrindo

progressivamente o espaço para a aceleração dos processos de desenvolvimento capitalista, de

colonização do conjunto da região e de fortalecimento do papel do Estado. Como descreve em

detalhe Muratorio (1998, p. 266), no período inicial de exploração das existências de petróleo

a relação entre os missionários, as empresas petroleiras e o Estado foi de “mutua conveniência

e estreita colaboração”. Os impactos dessa primeira fase exploratória das reservas petrolíferas

para os povos indígenas da região foram variados. De um lado, a presença da Shell propiciou

o trabalho assalariado temporário (direto ou com a intermediação dos patrões) especialmente

de indígenas Kichwas, ao tempo que com os trabalhos de exploração se ocupava o território

Waorani, provocando sua reação violenta, dados os antecedentes dos abusos sofridos de mãos

dos brancos, no período de apogeu da borracha (MURATORIO, 1998, p. 271-272).

Com a presença da Shell surge a abertura de rodovias para a região e com elas o

ingresso progressivo de comerciantes e colonos, iniciando assim um processo que

determinaria mudanças substanciais nas dinâmicas socioeconómicas da região, na ocupação

do território e nos modos de vida dos povos indígenas, nas décadas de 1950 e 1960. De um

lado, os novos comerciantes ao quebrar o monopólio comercial de produtos manufaturados

exercido pelos patrões, contribuíram na corrosão definitiva das relações de patronazgo, já

enfraquecidas como consequência da ampliação do trabalho assalariado e dos processos

educativos indígenas promovidos pelos missionários225

. Do outro, a avançada no processo de

colonização provocaria o deslocamento dos indígenas de seus territórios e a necessidade de se

estabelecer permanentemente em uma parte deles como meio de defesa e como resposta às

pressões exercidas pelos missionários, transformando os padrões de ocupação territorial e as

formas produtivas com a introdução de gado promovida pelas missões. Isso levou à formação

de comunas no caso dos Kichwas (em concordância com a “lei de comunas” expedida em

1937) e de “centros” no caso dos Shuar, para obter o reconhecimento jurídico e garantir a

224

Ver Salazar (1985); Bustamante (1988). 225

Ver Muratorio (1998, p. 273-282).

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propriedade de terras individuais ou coletivas diante do Estado226

. É também nestas décadas

que se implanta a presença do Instituto Linguístico de Verano (ILV) na região Amazônica,

por meio de um convênio com o Estado equatoriano, cuja atuação terá consequências

significativas para os povos Waorani, Secoya e A´I (Cofan), promovendo sua localização em

assentamentos permanentes e mudando suas formas de organização social e suas formas de

reprodução material e cultural227

.

Desde a década de 1960, o processo de “colonização” ganhou nova força quando o

Estado equatoriano assumiu e promoveu a colonização da região Amazônica como política de

Estado, com o objetivo de diminuir a pressão existente sobre a terra na região Interandina.

Dessa maneira, a política de colonização vinculou-se assim aos processos de reforma agrária,

por meio das leis expedidas em 1964 e 1973. Toda uma nova institucionalidade estatal foi

criada para conduzir, gerir e legalizar os processos de colonização228

, sejam estes resultado da

ação “espontânea” dos colonos, ou projetos específicos promovidos pelo Estado

(“colonização dirigida e semidirigida”)229

. Essa política de colonização teve como base uma

concepção das terras da Amazônia como terras “baldias” e consequentemente estas passaram

a ser consideradas sob o estatuto de propriedade pública, as quais poderiam ser entregues ou

legalizadas pelo Estado com a condição que os colonos demonstrem sua condição produtiva e

sua posse. Sob essa concepção, o Estado desconheceu de partida as possessões coletivas

ancestrais dos povos indígenas, suas modalidades produtivas e de ocupação do território.

A dinâmica da colonização da região Amazônica se verá acentuada com o início da

produção e exportação de petróleo na década de 1970. A produção petroleira supôs a

ampliação da rede rodoviária na região para garantir o acesso aos campos petrolíferos, dando

passo assim a ocupação espontânea e massiva das terras do entorno e à exploração madeireira,

ocasionando a destruição da floresta e conflitos com os povos indígenas230

. De outro lado,

com a produção petroleira também se reforçou o papel do Estado na região com seu

226

Sobre os processos de formação de “comunas” e “centros” como unidades organizativas e administrativas

locais dos povos indígenas da região Amazônica para obter o registro jurídico e o reconhecimento por parte do

Estado da propriedade da terra ver Whitten (1987); Salazar (1985); Ruiz (1991); Trujillo (1993). 227

Ver CONAIE (1989); Rival (1996). Sobre a presença do ILV no Equador ver nota 181 neste mesmo capítulo

(supra). Sobre o processo de relação do ILV com os Waorani e seus impactos em relação a sua organização

social e suas modalidades de subsistência, ver Rival (1996). 228

Entre as principais instituições do Estado criadas e encarregadas dos processos de colonização estavam o

Instituto de Reforma Agraria y Colonización (IERAC) o Instituto Nacional de Colonización de la Región

Amazónica Ecuatoriana (INCRAE) além de entidades sub-regionais tais como o Centro de Reconversión

Económica del Azuay, Cañar e Morona Santiago (CREA) e o Programa Regional para el Desarrollo del Sur del

Ecuador (PREDESUR). 229

Para uma visão panorâmica da política e do processo de colonização nas décadas de 1960 e 1970 ver Barsky

(1984). 230

Ver Muratorio (1998); Larrea (2006). Devido ao processo de colonização a população da região Amazônica

equatoriana cresceu de 74.913 em 1962 para 257.678 habitantes em 1982.

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envolvimento direto em sua dinâmica econômica e nos processos de desenvolvimento

regional, além da presença militar permanente para garantir a segurança nas fronteiras. Como

parte da política de colonização e de desenvolvimento econômico da região, o Estado

entregou também terras a empresas agroindustriais, para a produção de chá e posteriormente

de palma africana (BARSKY, 1984).

Nesse contexto, marcado por um lado pelas ameaças decorrentes da avançada nos

processos de colonização, do projeto desenvolvimentista e integracionista do Estado

equatoriano e da continua expansão da atividade petroleira, e de outro, pelas mudanças

culturais resultantes da transformação dos padrões de assentamento e das modalidades

produtivas e de reprodução social e cultural dos diversos povos indígenas, a articulação de

estratégias de defesa do território converteu-se numa questão crucial para sua sobrevivência

enquanto tais. Na década de 1960, a constituição das primeiras federações de organizações

indígenas de base, seja como povos ou de nível provincial, estiveram encaminhadas a

confrontar as dinâmicas impostas pelos processos de colonização, demandar ao Estado a

adjudicação e titulação de suas terras e empreender com uma série de reivindicações

educativas e de desenvolvimento diante do Estado e as missões religiosas. Essas primeiras

federações foram assim o germe de um ativo processo organizativo desencadeado nos anos

seguintes, com dinâmicas ao mesmo tempo de resistência e de negociação com o Estado, que

no médio prazo conduziria a amadurecer as reivindicações territoriais e favorecer os

processos de reconstituição e afirmação étnica, contribuindo para o fortalecimento de

identidades coletivas específicas como povos e nacionalidades.

A Federación Interprovincial de Centros Shuar FICSH foi a primeira experiência

organizativa de amplo alcance no Sul da região Amazônica equatoriana. Criada a partir da

formação de Associações de Centros Shuar em diversas localidades no início da década de

1960, com o apoio dos Salesianos, a Federación Shuar constituiu-se formalmente em 1964

como uma organização autônoma de articulação e coordenação dessas Associações e como

uma instância de representação dos Shuar diante do Estado. Desde sua origem, sua atuação

orientou-se pela defesa do território para deter o avanço da colonização e pela revitalização da

cultura e a identidade Shuar231

. A Federação focou seus esforços em obter a posse legal das

terras dos diversos Centros e Associações, para o qual tramitou com o IERAC232

a entrega de

títulos coletivos para cada Centro Shuar, processo em que paulatinamente alcançou logros

significativos (BUSTAMANTE, 1988, p. 190; SALAZAR, 1985, p. 68). Paralelamente,

231

Ver Salazar (1985); Chiriboga (1985); CONAIE (1989). 232

Instituto Ecuatoriano de Reforma Agraria y Colonización.

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envolveu-se diretamente na educação da população Shuar, para o qual desenvolveu um

sistema de escolas radiofônicas (com uma emissora de rádio Shuar), um programa educativo

com conteúdos próprios tendentes a revitalizar a cultura Shuar e com professores Shuar

permanentes (SALAZAR, 1985). Além disso, empreendeu vários programas de

desenvolvimento econômico, incluindo o fomento da criação de gado por meio de créditos. O

sucesso alcançado após de alguns anos pela Federação expressou-se no seu crescimento,

agrupando até a atualidade a grande maioria de Centros Shuar e convertendo-se no principal

interlocutor do povo Shuar diante do Estado, da missão Salesiana e da Cooperação

Internacional. A experiência da Federación Shuar validaria assim a estratégia organizativa

como o melhor meio para fortalecer a coesão e identidade étnica, estabelecer um freio nas

ocupações de terras pelos colonos e para conduzir a relação do povo Shuar com o Estado e a

sociedade nacional, num cenário de rápidas mudanças culturais (BUSTAMANTE, 1988).

Para inícios da década de 1980, Bustamante aponta que a Federação Shuar aproveitou a

conjuntura de maior abertura no governo de Roldós e Hurtado e demostrou sua forte

capacidade de negociação para impulsionar seu crescimento, intervir numa “grande variedade

de campos”, ampliar suas relações com outras organizações indígenas no país e na América

Latina, que a levariam a desenvolver uma “concepção relativamente autonomista” e a noção

de nacionalidade indígena (BUSTAMANTE, 1988, p. 171).

A partir da experiência da Federação Shuar, os Kichwa da Amazônia Norte na

Provincia de Napo e da Amazônia Central na Provincia de Pastaza replicariam formas

organizativas similares, na perspectiva da defesa dos territórios e de sua cultura. Assim, em

1969, vinculado ao trabalho organizativo da central sindical CEDOC e de sua federação

camponesa recentemente criada FENOC233

, se constitui a Federación Provincial de

Organizaciones Campesinas de Napo (FEPOCAN) agrupando inicialmente a sete associações

de base Kichwa, para em 1973 mudar seu nome pelo de Federación de Organizaciones

Indígenas del Napo (FOIN)234

. Ao igual que a Federação Shuar, durante seus primeiros anos

de existência a FOIN concentrou seu trabalho na legalização de terras das comunas e

associações diante do Estado, experimentando um rápido crescimento que a levaria agrupar

74 organizações de base (associações, comunas e cooperativas) em 1978 (PERREAULT,

233

Ver supra p. 102. 234

Para uma história detalhada da FOIN, ver CONAIE (1989); Perreault (2002). A mudança de nome nos seus

inícios da vida organizativa é indicativa de um sentido de diferenciação e afirmação étnica em relação aos

colonos mestiços (PERREAULT, 2002, p. 124). Posteriormente em 2001, a FOIN mudará novamente seu nome

para se chamar Federación de Organizaciones de la Nacionalidad Kichwa del Napo FONAKIN, em

concordância com a nomenclatura representativa de “povos” e “nacionalidades”, decorrente do processo político

nacional aberto pela CONAIE e o movimento indígena.

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2002, p. 128). Desde a década de 1970 e especialmente na década de 1980 a FOIN envolveu-

se na execução de vários projetos de desenvolvimento produtivo, na criação de infraestrutura

e na saúde com suas organizações de base e impulsionou processos de formação e de

capacitação de seus associados. Para isso, estabeleceu um conjunto de relações e convênios

com uma ampla diversidade de ONGs e agências de Cooperação e com entidades do Estado.

Essas relações e a execução de projetos de desenvolvimento, além da complexidade e

contradições que ocasionaram para as práticas político - organizativas, contribuíram a

modelar progressivamente o discurso das lideranças indígenas, o qual vinculava a

reivindicação da etnicidade e a autonomia política, com o controle do território e a gestão

sustentável da floresta amazônica235

.

No caso da Província de Pastaza, no segundo lustro da década de 1970, Comunas,

Centros e Associações de base Kichwas, Shiwiar e Achuar desenvolveram estratégias

coordenadas para a defesa dos territórios, que incluíram ações de vigilância, controle espacial

e autodemarcação dos territórios considerados de cada comunidade (ORTIZ, 2012, p. 310-

311). Em 1977, essas organizações conformaram a Federación de Centros Indígenas de

Pastaza (FECIP) que poucos anos mais tarde (1981) assumiu o nome de Organización de

Pueblos Indígenas de Pastaza (OPIP). A atuação da OPIP terá uma grande transcendência

nas lutas pelo território na região Amazônica equatoriana, pois será nesta organização que

durante a década de 1980 e início da década de 1990 se desenvolverão as ações mais radicais

e as propostas políticas mais elaboradas relativas à noção de territorialidade indígena, ligada

às propostas de autonomia e autodeterminação como povos236

, alimentando assim as lutas

pela demarcação e reconhecimento dos territórios indígenas levantadas pela CONAIE e sua

filial regional a Confederación de Nacionalidades Indígenas de la Amazonia Ecuatoriana

CONFENIAE. A luta levantada pela OPIP alcançará significativas conquistas após da marcha

de 2.000 indígenas da região Amazônica para Quito no mês de abril de 1992, organizada pela

OPIP, com a palavra de ordem “Allpamanda, Kawsaymanda, Jatarishum” (“pelo território,

pela vida, ¡levantemo-nos!”), quando se obteve a legalização de 1.115.574 hectares para as

comunidades da Província de Pastaza das nacionalidades Kichwa, Achuar, Shiwiar e Shuar.

Como sublinha Ortiz, na Província de Pastaza atualmente se encontram as “maiores unidades

territoriais indígenas237

, que conservam importantes graus de autonomia ‘de fato’ diante das

235

Ver Perreault (2002). 236

Ver Ortiz (2012). Este autor aborda os processos de defesa dos territórios da OPIP e suas comunidades,

incluindo as lutas para deter a extração de petróleo nos seus territórios no período 1987 - 2000. 237

Ortiz afirma que no caso dos Kichwa de Pastaza alcançaram a legalização de 1.624.778 hectares, segundo

dados da OPIP em 2001 (ORTIZ, 2012, p. 222).

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decisões estatais. É o cenário mais importante desde o ponto de vista ambiental sob controle

de povos ancestrais, ao redor de 50.000 Km2 de floresta nativa, gerido em geral, de forma

tradicional por esses povos” (ORTIZ, 2012, p. 318)238

.

Além das organizações mencionadas, constituíram-se outras federações indígenas no

que hoje corresponde às províncias de Orellana e Sucumbíos. Assim, na parte baixa do rio

Napo (Província de Orellana), em 1976 se funda a Federación de Comunas Unión de Nativos

de la Amazonía Ecuatoriana FCUNAE, formada por comunas Kichwa. No Norte da região

amazônica, em Sucumbíos, comunas Kichwa se organizam com o apoio da missão Carmelita e

em 1980 constituem a Jatum Comuna Aguarico (Comuna Grande Aguarico) que

posteriormente adotaria o nome de Federación de Organizaciones Indígenas de Sucumbíos

del Ecuador FOISE. A legalização de seus territórios também constituiu o foco principal da

atuação dessas organizações durante seus primeiros anos239

.

Os processos organizativos suscintamente descritos não aconteceram isoladamente nas

diversas zonas e regiões. Uma ampla rede de relações entre as organizações e suas lideranças

foi-se tecendo progressivamente, permitindo a discussão dos problemas comuns, alimentando

as dinâmicas organizativas das principais experiências em curso e formando novas lideranças.

Ampam Karakras, liderança indígena Shuar, que teve um papel destacado nos processos

organizativos indígenas na Amazônia e em nível nacional, fiz uma síntese deles nas seguintes

palavras:

Yo he sido parte de la Federación Shuar, ésta ha sido mi vinculación desde la

juventud. Después de eso vine a estudiar y luego a ser representante de la

Federación Shuar. Eso permitió atender demandas específicas de los Shuar en

temas de educación, salud, legalización de las tierras, personalidad jurídica. Y eso

permitió mirar las otras realidades de la propia Amazonía, por ejemplo los

compañeros Kichwa y de otros pueblos de la Amazonía, que si bien vivimos en

distintas provincias, hablamos distintos idiomas, pero tenemos problemas comunes:

esto de la defensa de la tierra versus el Estado, que siempre veía a la Amazonía

como tierras baldías, tierras de colonización. Para eso estaban con una influencia,

o trabajaban a través de, por ejemplo, esta trilogía Fuerzas Armadas, Iglesia y el

Estado, a través de las misiones religiosas católicas y evangélicas, que han pasado

una experiencia a todas las comunidades de los internados y la representación que

estas iglesias hacía en su rol en la Amazonía para llevar la civilización, la

cristianización y también ser buenos ciudadanos del país, aunque había fricciones

de esas dos tendencias. Más o menos en la década del 60, 70, de retorno a la

democracia, reforma agraria y colonización, significó un proceso intenso de

ocupación de la Amazonía. El IERAC, el CREA Centro de Reconversión Económica

de Azuay, Cañar y después sumó a Morona Santiago como zona de colonización,

PREDESUR, INCRAE, al inicio el instituto nacional de colonización; bueno todos

238

Cabe mencionar que alguns dos territórios indígenas reconhecidos na Amazônia equatoriana se superpõem

com Áreas Naturais Protegidas (ANP) pelo Estado (em diversas categorias de proteção). Do total dos territórios

indígenas, a percentagem de sobreposição com ANP alcança 29,4%. Para uma análise detalhada de este aspecto

segundo os territórios de cada nacionalidade ver López A. V.; Aragón J.; e Ulloa J. (2016). 239

Ver CONAIE (1989).

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esos procesos, que fue reforzado en la década del 70 con el descubrimiento e inicio

de la explotación petrolera al norte de la Amazonía, Texaco. Entonces, como estaba

trabajando y representando a la federación shuar, recorría, me iba cada vez a la

Amazonía a la federación shuar, y eso me permitió recorrer otras realidades

también y compartir con otros compañeros kichwa de la Amazonía, de Pastaza y

Napo, y vimos la necesidad de hacer una conformación de una organización

amazónica, porque aunque vivimos en lugares distintos y hablamos distinto idioma,

los problemas eran similares. Eso fue el inicio de la constitución de la

CONFENIAE240

.

A relação entre os diversos processos organizativos mencionados, especialmente dos

povos Shuar e Kichwa, conduziria à formação da organização indígena regional da Amazônia

equatoriana, em agosto de 1980 no “Primer Congreso Regional de Nacionalidades Indígenas

de la Amazonía Ecuatoriana”241

. A Confederación de Nacionalidades Indígenas de la

Amazonía ecuatoriana CONFENIAE surgiu desse Congresso como a principal instância de

representação das nacionalidades amazônicas, na perspectiva de coordenar seus esforços,

fortalecer suas organizações e liderar suas lutas pelas reivindicações territoriais e culturais

diante do Estado. Nesse momento se expressou com nitidez a exigência ao governo do

respeito aos “direitos ancestrais que as nacionalidades indígenas temos sobre o território”,

demandando que se preservem os assentamentos tradicionais dos povos e que se entreguem

adjudicações com títulos coletivos (CONAIE, 1989, p. 100). Por sua vez, esta reivindicação

dos direitos territoriais, diretamente associada à noção de nacionalidades indígenas foi

também indicativa do sentido político dado ao conceito de território, como espaço indígena de

240

Entrevista Ampam Karakras, 22 Janeiro 2015. Tradução nossa: “Eu fui parte da Federação Shuar, essa tem

sido minha vinculação desde a juventude. Depois disso, vim para estudar e depois ser um representante da

Federação Shuar. Isso permitiu atender demandas específicas dos Shuar em educação, saúde, legalização de

terras, personalidade jurídica. E isso nos permitiu olhar para as outras realidades da própria Amazônia, por

exemplo, os companheiros Kichwa e de outros povos da Amazônia, que, embora morássemos em diferentes

províncias, falamos línguas diferentes, mas temos problemas comuns: isso da defesa da terra versus o Estado,

que sempre viu a Amazônia como terras baldias, terras para a colonização. Para isso, eles estavam com uma

influência ou eles trabalharam por meio de, por exemplo, essa trilogia das Forças Armadas, da Igreja e do

Estado, através das missões religiosas católicas e evangélicas, que passaram uma experiência dos internados para

todas as comunidades e a representação que essas igrejas fizeram em seu papel na Amazônia para trazer a

civilização, a cristianização e também para ser bons cidadãos do país, embora houvesse embates dessas duas

tendências. Mais ou menos na década dos 60, 70 de retorno à democracia, da reforma agrária e colonização,

significou um intenso processo de ocupação da Amazônia. O IERAC, o CREA, Centro de Reconversão

Econômica de Azuay, Cañar e mais tarde adicionou Morona Santiago como zona de colonização, PREDESUR,

INCRAE, no início o Instituto Nacional de Colonização; Bom, todos esses processos, que foi reforçado nos anos

70 com a descoberta e início da exploração de petróleo no Norte da Amazônia, Texaco. Então, enquanto

trabalhava e representava à Federação Shuar, viajei, fui a toda a Amazônia, para a Federação Shuar e isso me

permitiu também visitar outras realidades e compartilhar com outros colegas Kichwa da Amazônia, Pastaza e

Napo e vimos a necessidade de fazer a conformação de uma organização amazônica, porque, embora vivêssemos

em diferentes lugares e falássemos línguas diferentes, os problemas eram semelhantes. Isso foi o início da

constituição da CONFENIAE” (Confederación de Nacionalidades Indígenas de la Amazonía Ecuatoriana). 241

Diversos autores (PERREAULT, 2002, p. 130; BECKER, 2015, p. 7; ERAZO, 2007, p. 191) sublinham que o

nome desse Congresso Regional foi mudado na última hora trocando o nome de Congresso de organizações

indígenas pelo de Congresso de nacionalidades indígenas como um indicativo da ênfase política que já se dava

nesse momento à identificação indígena sob o termo “nacionalidades”.

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reprodução social e cultural e de exercício da autonomia política (ERAZO, 2007, p. 192), bem

como da adoção do termo nacionalidades indígenas no nome da CONFENIAE, marcando

assim uma direção para as reivindicações indígenas amazônicas diante do Estado.

A partir de sua criação, a CONFENIAE teve um papel destacado nos processos de

unificação das diversas nacionalidades amazônicas, em ocasiões com forte conflitualidade

entre distintas posições, na negociação da demarcação de territórios e no apoio as ações de

algumas nacionalidades para resistir aos processos de extração petroleira. Também contribuiu

fortemente para a organização das nacionalidades menores como é o caso dos Waorani,

Sionas, Secoyas, A’I (Cofan), Andoa e Sapara e para o reconhecimento de seus territórios.

Como resultado geral dos processos de demarcação de territórios indígenas na

Amazônia equatoriana impulsionados pelas organizações indígenas, com base na informação

disponível, na tabela 2 pode-se apreciar a área dos territórios indígenas reconhecidos até 2014

por nacionalidade (ver também o anexo 3 e o anexo 4 com o mapa da área de territórios

indígenas da região Amazônica equatoriana).

Tabela 2: Territórios Indígenas (TI) da Região Amazônica Equatoriana (RAE) para 2014

Fonte: López A. V.; Aragón J. e Ulloa J. (2016).

NACIONALIDADE

INDÍGENA RAE

ÁREA (Km²) % TI - RAE

Kichwa 22.911 35,1

Waorani 13548 20,8

Shuar 10.849 16,6

Achuar 6.863 10,5

Sapara 3.684 5,6

A’I (Cofan) 2.684 4,1

Shiwiar 2.241 3,4

Siona 1.378 2,1

Andoa 661 1,0

Secoya 424 0,6

Total 65.243 100

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Da área total de territórios indígenas de 65.243 km², já foi reconhecida e legalizada o

equivalente a 62.559 Km², que corresponde a 95,9% do total. A área de territórios indígenas

equivale a 56,1% da extensão total da região Amazônica equatoriana, o que da uma dimensão

dos logros alcançados pelas organizações. Se considerarmos a dimensão já legalizada, os

territórios indígenas representam 53,8% do total da região Amazônica equatoriana, sendo a

maior percentagem de todos os países da bacia amazônica (RAISG, 2016).

3.3 O PROCESSO DE CONFLUÊNCIA ORGANIZATIVA INTER-REGIONAL E A

FORMAÇÃO DA CONAIE

Paralelamente à constituição da CONFENIAE na região Amazônica, desde o final da

década de 1970, as relações e contatos entre lideranças indígenas das organizações da região

Interandina, da Amazônia e da Costa equatoriana também se intensificaram. Tratou-se de um

momento extremamente interessante no que se forjou o movimento indígena nacional e se

construiu progressivamente um projeto comum, pois foi nesse momento quando se

condensaram uma diversidade de perspectivas decorrentes do acúmulo de experiências nos

processos concretos de lutas locais pela terra nas distintas regiões, as diversas trajetórias das

que provinham as lideranças, os distintos vínculos que mantinham com setores políticos da

esquerda ou da Igreja em suas várias expressões e os diferentes referentes culturais dos

diversos povos. Tudo isso, no contexto das rápidas mudanças políticas no país, marcadas pelo

processo de retorno à democracia e do trunfo eleitoral de Jaime Roldós.

Luis Macas, um dos principais intelectuais e lideranças indígenas, ressalta a

importância desse momento para a configuração posterior do movimento indígena a partir da

confluência de distintas experiências organizativas que marcaram as reflexões e os debates

internos:

[…] Al interior del movimiento indígena me parece que es vital lo que llamaríamos

las reflexiones, los debates internos del Movimiento Indígena que llevan a ir

trazando estrategias de lucha. Estamos hablando de finales de la década del 70 y

80, donde se abre la discusión de muchos temas, de conceptos, como por ejemplo de

nacionalidad. Yo creo que durante esta época, época que digamos marca una lucha

casi, casi, yo digo, encarnizada, la década de los 50, 60, 70, por ahí; fue la lucha

por la tierra, que son acciones más locales que una acción más general, más

regional, más nacional. […] Yo creo que ahí se va dando también un desarrollo de

la concepción diversa entre los diferentes pueblos sobre la lucha misma y sobre la

generación de ciertas ideas y pensamientos alrededor de estas luchas locales,

focales. Unos por ejemplo, hemos nacido más desde la vertiente religiosa

progresista, por ejemplo, otros desde el partido socialista, por no decir que hemos

sido bastión de los partidos políticos de izquierda, del Partido Comunista por

ejemplo, el caso de Cayambe, el caso de Cotopaxi, Tigua, en Chimborazo también.

Entonces digo, en cada una de estas luchas que son muy particulares y sobretodo

muy dispersas, creo que se va generando un germen particular en cada una de ellas,

que viene luego a conjugarse en la discusión, en el debate, cuando no solamente se

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144

va dando la unidad orgánica sino la unidad política de los pueblos indígenas, ya en

lo posterior. Por ejemplo, hablando en la década del 80 […], entonces las

discusiones, el debate es intenso, es sumamente acalorado incluso en nuestros

eventos, a finales de los 70 e inicios de los 80. Generalmente la lucha se da entre

los que venían de la vertiente más ideológica de izquierda, frente a los que no

teníamos digamos dependencia de los partidos políticos, pero sí de alguna manera

había incidencia de comunidades religiosas, unas conservadoras, otras

progresistas, tú conocías la teología de la liberación por ejemplo, que fue una

presencia muy importante dentro de las comunidades indígenas. Por ejemplo,

nosotros venimos de esa vertiente, todo lo que es el Sur, pues de alguna manera

hubo una fuertísima influencia de la propuesta de Monseñor Proaño, a través de la

evangelización, a través de la catequización por ejemplo, yo fui uno de los

catequistas en el Sur.242

A questão da identidade como movimento indígena, sua definição e o caráter das

organizações nacionais marcaram esses debates, a partir das diversas posições que traziam os

diversos grupos e organizações. É nesse contexto da discussão sobre a definição identitária do

movimento que se insere a retomada e a reelaboração do conceito de nacionalidades

indígenas, como uma noção abrangente que dava acolhida às diversas concepções e

reivindicações partilhadas e que permitia ao mesmo tempo fusionar os elementos étnicos e

classistas presentes nas lutas. Luis Macas prossegue assim seu relato:

[…] Entonces en esa búsqueda de cuál es entonces el concepto al que con

pertinencia puede designarse para los pueblos indígenas, eso creo que demoró

como alrededor de unas dos décadas de discusión y hasta los 90 estaba esa

discusión: si somos campesinos, si somos indígenas, si somos nacionalidades.

Entonces ahí nacen estos términos que empiezan a analizarse y que son sumamente

interesantes. Ahí se dan, cuando llegamos a tratar de consensuar hay fuertes

debates. […] Entonces la confrontación se da de alguna manera entre los que

estuvieron o tenían ciertas influencias de partidos, Socialista, del Partido

242

Entrevista Luis Macas, 6 Maio, 2014. Tradução nossa: “[...] Dentro do movimento indígena, acho que é vital

o que chamaremos de reflexões, de debates internos do Movimento Indígena, que conduzem à definição de

estratégias de luta. Estamos falando do final dos anos 70 e 80, quando se abre a discussão de muitos temas,

conceitos, como por exemplo o conceito de nacionalidade. Eu acredito que durante essa época, um tempo em

que dizemos houve uma luta quase, quase, eu digo, implacável, as décadas de 50, 60 e 70: foi a luta pela terra,

que são mais ações locais do que uma ação mais geral, mais regional, mais nacional. […] Eu acho que aí

acontece também o desenvolvimento de uma concepção diversa entre os diferentes povos sobre a própria luta e

sobre a geração de certas ideias e pensamentos em torno dessas lutas locais e focais. Alguns de nós, por

exemplo, nascemos mais da vertente religiosa progressista, por exemplo, outros do Partido Socialista, para não

dizer que fomos um bastião dos partidos políticos da esquerda, do Partido Comunista, por exemplo, o caso de

Cayambe, o caso de Cotopaxi, Tigua, em Chimborazo também. Então, eu digo, em cada uma dessas lutas que

elas são muito particulares e, acima de tudo, muito dispersas, acho que vai se gerando um germe particular em

cada uma delas, e que então após se conjugou na discussão, no debate, quando acontece não apenas a unidade

orgânica, mas também a unidade política dos povos indígenas, já num tempo posterior. Por exemplo, falando na

década de 80 […], então as discussões, o debate é intenso, é extremamente acalorado mesmo em nossos eventos,

no final dos anos 70 e nos inícios dos anos 80. Geralmente a luta se produz entre os que vinham da vertente mais

ideológica de esquerda, em oposição àqueles que não tínhamos dependência dos partidos políticos, mas que de

alguma forma houve uma incidência de comunidades religiosas, algumas conservadoras, outras progressistas.

Você conhecia a teologia da libertação, por exemplo, que teve uma presença muito importante nas comunidades

indígenas. Por exemplo, nós viemos dessa corrente, tudo o que é o Sul, porque de alguma forma houve uma forte

influência da proposta de Dom Leonidas Proaño, através da evangelização, por meio da catequese, por exemplo,

eu era um dos catequistas no Sul.

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E ... versão final... · movimento indígena que derivaram no levantamiento indígena nacional de 1990. Em um período caracterizado

145

Comunista, frente a toda esta postura que era, no sé cómo calificarlo, pero me

parece que mucho más dura en cuanto a la resistencia como pueblos indígenas.

Sostener por ejemplo el término indígena, por qué nos vamos a llamar indígenas y

por qué no campesinos, por ejemplo, Porque lo que sostenía el gran número de

compañeros dirigentes que venían de un proceso de politización, de

acompañamiento con el Partido Comunista, con el Partido Socialista, por ejemplo,

sostenían que el término indígena es pro-imperialista por ejemplo, y nosotros

decíamos: “no pues, es designar una cosa que es propia nuestra, así haya sido

traído por Cristóbal Colón”, decíamos, “si nos han colonizado con este término,

nosotros nos tomamos esa bandera de lucha para liberarnos con el mismo término”.

Y eso era la discusión así acalorada entre estos dos grupos, por ejemplo. […] Pero la discusión que era más importante al interior del movimiento indígena era

precisamente cómo definirlo. […] Quizás esto es lo que contribuyó para que al

interior del movimiento indígena empezáramos a repensar, a ver como realmente

designar una cosa que nos pueda de alguna manera identificar pero a todos, o nos

identifiquemos todos como tales. Y cuando se discutía por ejemplo el término

indígena, los compas Shuar no aceptaban. Decían: “nosotros no somos indígenas,

somos Shuar”. Al igual que algunos otros pueblos decían: “nosotros nos

identificamos como tal pero no quisiéramos ser indígenas”. Entonces uno de los

términos o conceptos que más pegó fue este de las nacionalidades. Empezamos un

poco ahí con la ayuda de algunos compañeros, de algunas compañeras no

indígenas, […]. Pero yo creo que eso en la medida en que fuimos discutiendo sobre

el término que nos pueda hacer que nos identifiquemos todos, también se va

discutiendo la necesidad de que orgánicamente podamos empezar a buscar esta

unidad. En lo diverso y sobretodo en las tremendas diferencias que había ese

momento. […] Entonces esta discusión, este debate de estos conceptos ayuda

también a que se vaya dando esta unidad. La unidad digamos orgánica, se va

creando como una necesidad. Cómo organizarnos esta diversidad de gente […].

Eso fue riquísimo esta discusión al interior nuestro, que de repente incluso creo que

hasta había puñetes, pero era sumamente rico, pero eso permite que en realidad el

movimiento indígena haya avanzado tanto en la década del 80, en la década del 90

[…]. Eso llega hasta finales de los 80, por eso yo digo y he calificado toda mi vida

que la década de los 80 era la década ganada de los pueblos indígenas. No hay

nada que hacer. O sea ahí había discusión, ahí había pelea, debate, todo había al

interior del movimiento indígena. Era riquísimo, riquísimo. 243

243

Entrevista Luis Macas, 6 Maio 2014. Tradução: “Então, naquela busca de qual é então o conceito que com

pertinência pode designar os povos indígenas, acho que levou cerca de duas décadas de discussão e até a década

de 90 foi essa discussão: se somos camponeses, se somos indígenas, se somos nacionalidades. Assim nascem

esses termos que começam a ser analisados e que são extremamente interessantes. Aí, quando chegamos a tentar

alcançar o consenso, há fortes debates. [...] Então o confronto ocorre de alguma forma entre aqueles que

estiveram ou que tinham certas influências partidárias, socialistas, do Partido Comunista, diante de toda essa

posição que era não sei bem como qualificá-la, muito mais dura em relação à resistência como povos indígenas.

Sustentar, por exemplo, o termo indígena, por que vamos chamar-nos de indígenas e por que não de camponeses,

por exemplo. Porque o que alegava o grande número de camaradas lideranças que vieram de um processo de

politização, de acompanhamento com o Partido Comunista, com o Partido Socialista argumentavam, por

exemplo, que o termo indígena é pro-imperialista, por exemplo, e nós dizíamos: ‘não, é designar uma coisa que é

própria nossa, mesmo que tenha sido trazida por Cristóvão Colombo’, nós dizíamos, ‘se nos colonizaram com

esse termo, nós vamos tomar essa bandeira de luta para libertar-nos com o mesmo termo’. E essa foi a discussão

acalorada entre esses dois grupos, por exemplo. […] Mas a discussão que era mais importante internamente no

movimento indígena era precisamente como defini-lo. [...] Talvez isso seja o que contribuiu para que no

movimento indígena começássemos a repensar, para ver como realmente designar uma coisa que de alguma

forma possa nos identificar a todos, ou todos nós identifiquemos como tais. E quando se discutia o termo

indígena, por exemplo, os companheiros Shuar não aceitavam. Eles diziam: ‘nós não somos indígenas, somos

Shuar’. A mesma coisa com alguns outros povos que diziam: ‘identificamo-nos como tais, mas não queremos ser

indígenas’. Então, um dos termos ou conceitos que maior acolhida teve foi esse das nacionalidades. Começamos

com a ajuda de alguns companheiros, algumas companheiras, não indígenas, […]. Mas eu acho que na medida

em que estávamos discutindo o termo que pode nos identificar a todos, também fomos discutindo a necessidade

de que, organicamente, possamos começar a procurar essa unidade. No diverso, e especialmente nas tremendas

diferenças que tínhamos nesse momento […].”

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146

Na mesma linha de reflexão sobre esse período de confluência das organizações, a

liderança Shuar Ampam Karakras sublinha as diferenças inter-regionais que marcaram esses

debates e reivindica a adoção do conceito de nacionalidades pelos povos amazônicos, no seu

vínculo com as identidades dos povos, suas línguas e o território. Além disso, destaca as

diversas conexões entre as lutas das organizações da Serra e da Amazônia como parte do

processo de constituição da organização nacional:

[…] Desde la Federación Shuar, nosotros veíamos la necesidad más bien de un

planteamiento como pueblos, y como nación y nacionalidades, eso podría decirlo

así, con sentido de propiedad; mientras que en la parte andina más hablaban de la

reforma agraria, del campesinado, nosotros ahí hablábamos por pueblos, con sus

idiomas, identidades y territorio. Ahora, ¿cómo confluir las dos ideas centrales, con

la parte amazónica y la parte andina? porque el uno hablaba de reforma agraria y

el otro de territorios ancestrales, y, por lo tanto no a la colonización. Entonces, eso

llevó bastante tiempo, más o menos desde el año 80 al 86 que se constituyó, para

poder acercar posiciones. Por ejemplo, los de la parte andina ¿por qué debían

oponerse a la colonización de la Amazonía, reivindicando su reforma agraria?

Porque si hacían la colonización estaban renunciando a que se aplicara la reforma

agraria en su territorio, e iban a tener también conflicto y ocupar tierra de sus

hermanos que estaban en la Amazonía. Y viceversa, los de la Amazonía tenían que

apoyar el planteamiento de la reforma agraria para que se hiciera y oponerse a la

colonización; como un acercamiento de esas dos ideas. Segunda idea era la

necesidad de, por ejemplo, el tema de la educación bilingüe, si bien hablaban

distintos idiomas, pero cada uno reivindicaba su idioma, y la educación en

castellano para que sea interbilingüe […]. El otro tema que también llevó a

aglutinar, fue el tema de que curas y antropólogos hablaban por nosotros, entonces

tener una voz propia, organizaciones propias. Entonces, eso también llevó a debates

con los compañeros de las centrales sindicales, gente de planteamiento de

izquierda, que decían: “si son pobres, ¿por qué tenían que tratar de tener su propio

espacio?” podríamos decir, el indigenismo, lo étnico y no la lucha de clases.

Entonces, hubo esos debates también entre posiciones, en la parte andina que tenían

una influencia bastante fuerte de asesoramiento, apoyo técnico, de partidos de

izquierda, mientras que nosotros un poco más la influencia de misioneros, católicos,

evangélicos, en general, que tenían otro planteamiento en donde no había estado

tanto la influencia de lo que es la izquierda. […]244

Então, essa discussão, esse debate desses conceitos também ajuda para que essa unidade aconteça. A unidade,

vamos dizer, orgânica, vai se criando como uma necessidade. Como organizarmos essa diversidade de pessoas.

Essa discussão foi muito rica ao interior nosso, que de repente eu acho que houve até pancadas, mas foi

extremamente rico, foi isso que permitiu que o movimento indígena tivesse avançado tanto nos anos 80, nos anos

90 […]. Isso vai até o final dos anos 80; é por isso que eu digo e descrevi toda a minha vida que a década dos

anos 80 foi a década ganhada pelos povos indígenas. Não há nada para fazer. Ou seja, aí tinha discussão, tinha

brigas, debate, houve tudo dentro do movimento indígena. Era muito bom, muito bom. 244

Entrevista Ampam Karakras, 22 Janeiro 2015. Tradução nossa: “Na Federação Shuar, a gente via a

necessidade de uma abordagem como povos, e como nação e nacionalidades, eu poderia dizer isso, com um

senso de propriedade; enquanto na parte andina falavam mais sobre a reforma agrária, do campesinato, nós

falávamos aí de povos, com suas línguas, identidades e território. Agora, como confluir as duas ideias centrais,

da parte amazônica e da parte andina? Porque um falava da reforma agrária e o outro dos territórios ancestrais e,

portanto, não a colonização. Então, isso levou muito tempo, mais ou menos do ano 80 a 86, em que se constituiu

[a CONAIE], para poder aproximar posições. Por exemplo, a parte andina por que devia se opor à colonização

da Amazônia, alegando sua reforma agrária? Porque se faziam a colonização estavam desistindo que se aplicara

a reforma agrária no seu território, e eles também iam ter conflito e ocupar a terra de seus irmãos que estavam na

Amazônia. E vice-versa, os da Amazônia tinham que apoiar a reivindicação da reforma agrária para que se

fizesse e opor-se à colonização; como uma aproximação dessas duas ideias. A segunda ideia era a necessidade,

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147

Como mencionado, a noção de nacionalidade indígena esteve presente na concepção

de destacados militantes do Partido Comunista equatoriano e das lideranças indígenas desde a

década de 1930. No final da década de 1970 e na década de 1980, esse conceito é retomado

por acadêmicos da esquerda próximos das organizações indígenas e pelas lideranças

indígenas, especialmente na Amazônia245

. Lucero (2007, p. 217) destaca que a retomada da

noção de nacionalidades pelas lideranças e organizações indígenas na década de 1980

significou uma “indianização” desse termo e contribuiu na produção de um sujeito político e

de um projeto que não existiam antes. No meu ponto de vista essa afirmação é acertada,

embora na análise do processo organizativo e político do movimento indígena no Equador

este autor não se afasta da tendência na tradição acadêmica sobre o movimento indígena, após

o levantamiento indígena de 1990, de cindir a questão étnica e a classista, comentada no

capítulo anterior.

Nos últimos dias do ano 1977, ainda sob a ditadura militar, realizou-se um primeiro

encontro indígena nacional com ampla participação de representações indígenas das diversas

zonas do país, organizado pela Federação Shuar, na sua sede em Sucúa. Luis Macas lembra

que nesse encontro participaram mais de 1000 indígenas:

Entonces en 1978 se da el primer encuentro a nivel nacional y era ya para discutir

estas cosas, si es que esto en definitiva interesaba o no, este encuentro se da en la

sede de la Federación Shuar en Sucúa […]. En el 78, por ejemplo, pues era sí una

presencia masiva, numéricamente éramos no sé cuántos, un poco más de 1000

gentes […] Y precisamente esta riqueza que había en cada uno de los pueblos,

quizás yo diría no los pueblos, ahí más bien lo que prevalecía son más bien

organizaciones, que obviamente son representaciones de pueblos, pero nos

conocíamos más como organizaciones, organización tal, organización tal, entonces

pero eso también digo nos sirvió mucho, porque bueno, cómo te organizas, con

quién te organizas, todos esos debates sirven y ahí uno se va conociendo, se va

viendo de qué vertiente viene esta organización, esta otra organización, que pasó

con la Amazonía, por ejemplo. En este primer encuentro por ejemplo nosotros

tuvimos la oportunidad de conocer la sede de la Federación Shuar. ¡Pucha, pero

por exemplo, a questão da educação bilíngue, embora falassem línguas diferentes, mas cada um reivindicava sua

linguagem e a educação em castelhano para que seja interbilíngue […]. A outra questão que também levou a

aglutinar foi o tema que sacerdotes e antropólogos falavam por nós, então, ter uma voz própria, organizações

próprias. Então, isso também levou a debates com os companheiros das centrais sindicais, pessoas de ideias de

esquerda que diziam: ‘se eles são pobres, por que eles tinham que tentar ter o seu próprio espaço? Pode-se dizer,

o indigenismo, o étnico e não a luta de classes. Então, houve aqueles debates também entre posições, na região

andina que tinham uma influência bastante forte de assessoria, apoio técnico, de partidos de esquerda, enquanto a

gente, um pouco mais a influência de missionários, católicos, evangélicos, em geral, que tinham outra

abordagem onde não houve muita influência do que é a esquerda’. 245

Uma análise detalhada do uso da noção de nacionalidades indígenas por parte de militantes da esquerda,

lideranças indígenas e acadêmicos em diversos momentos da história do movimento indígena equatoriano

encontra-se em Becker (2013).

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era una maravilla! Ninguna otra organización tenía lo que tenía la Federación

Shuar en esa época. 246

Contestado pelas direções nacionais das Federações camponesas e indígenas já

constituídas (FENOC, ECUARUNARI, FEI) por considerá-lo “divisionista” e “indigenista”,

esse encontro247

iniciaria o rumo para a confluência das organizações indígenas das distintas

regiões no processo que conduziria à formação da CONAIE. Assim, segundo o relato de

Ampam Karakras:

Acá, frente a una nación en construcción, pero que negaba su raíz básica de la

diversidad de pueblos, identidades, culturas, idiomas; entonces, nosotros no

podíamos aceptar, al menos los de la Amazonía. Ésas fueron algunas ideas

centrales que permitió, y además, la necesidad de tener una organización propia,

sin dependencia de centrales sindicales, ni de partidos políticos, tener su propio

espacio. Aunque algunos no lo veían muy bien en sus inicios, porque eso era,

hablaban de ser indigenista, podía ser divisionista, porque no se fusionaba la lucha

de clases, la lucha popular, inclusive hasta gente de la Sierra. Pero como nosotros

no lo mirábamos así, nos era indiferente. Y se fue constituyendo; los primeros

inicios de estas asambleas y encuentros de estos pueblos se hizo en la Federación

Shuar, en la sede de la Federación Shuar, que fue denunciado por compañeros del

ECUARUNARI, por la FENOC de esa época, por la FEI, porque trabajaban juntos;

se ha ido superando, especialmente con los compañeros del ECUARUNARI..

También tenía sentido lo de los compañeros de ECUARUNARI en el sentido de que

ellos, como Ecuador Runakunapak Rikcharimui, “despertar del hombre indio”,

veían que iba a surgir otra organización: “pero ¿por qué no se unen a lo que ya

existe?” Pero nuestro razonamiento también era muy simple, concreto: ellos no

tenían representación en la Amazonía, no tenían representación en la Costa,

estaban más en la parte andina; entonces esto era un proceso que habría que unir

distintos pueblos: Costa, Sierra y Amazonía, para constituir una nueva, a partir de

lo que ya existe, el ECUARUNARI más la CONFENIAE248

246

Entrevista Luis Macas, 6 Maio 2014. Tradução nossa: “Então, em 1978, realizou-se o primeiro encontro de

nível nacional e já foi para discutir essas coisas, se isso definitivamente interessava ou não. Esse encontro

aconteceu na sede da Federação Shuar em Sucúa […]. Em 1978, por exemplo, tinha sim, uma presença maciça,

numericamente éramos não sei quantos, um pouco mais de 1000 pessoas […]. E precisamente essa riqueza que

tinha em cada um dos povos, talvez eu diria ainda não os povos, em vez disso, o que prevalecia eram as

organizações, que, obviamente, são representações dos povos, mas nós nos conhecíamos mais como

organizações, tal organização, tal organização. Então, também digo que isso nos serviu muito, porque bem, como

você se organiza, com quem você se organiza. Todos esses debates servem, e aí cada um vai conhecendo, vai

olhando de que vertente essa organização provem, essa outra organização, que aconteceu com a Amazônia, por

exemplo. Nesse primeiro encontro, por exemplo, tivemos a oportunidade de conhecer a sede da Federação

Shuar. Nossa! Que maravilha! Nenhuma outra organização tinha o que a Federação Shuar tinha na época.” 247

Esse encontro em realidade foi realizado na sede da Federação Shuar em Sucúa, do 27 ao 30 de dezembro de

1977. Sobre as acusações realizadas pela FENOC, a FEI e o ECUARUNARI como um evento “divisionista e

racista” que buscava “escamotear a luta de classes”, ver as reportagens sobre o tema realizadas na revista de

esquerda Nueva (Números 45, 46 e 47) nos primeiros messes de 1978: Ramírez (1978a); Ramírez (1978b). 248

Entrevista Ampam Karakras, 22 Janeiro 2015. Tradução nossa: “Aqui, diante de uma nação em construção,

mas que negava sua raiz básica da diversidade de povos, identidades, culturas, linguagens; então, a gente não

podia aceitar, pelo menos, a gente da Amazônia. Essas foram algumas ideias centrais que permitiram e, além

disso, a necessidade de ter uma organização própria, sem dependência das centrais sindicais ou de partidos

políticos, para ter seu próprio espaço. Embora alguns não aceitassem isso muito bem no seu início, inclusive até

pessoas da Serra, porque era isso, eles falavam, de ser indigenista, poderia ser divisionista, porque não se

fusionava a luta de classes, a luta popular. Mas, como nós não enxergávamos dessa maneira, nos era indiferente.

E aos poucos foi-se constituindo; os primeiros começos dessas assembleias e encontros desses povos foram

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Essa dinâmica de confluência das organizações da Serra e da Amazônia numa nova

estrutura organizativa de nível nacional se concretizaria em outubro de 1980 (dois meses após

a criação da CONFENIAE), em um novo encontro das “Nacionalidades Indígenas del

Ecuador” realizado também na sede da Federação Shuar, no qual foi conformada uma

instância de coordenação nacional chamada de Consejo Nacional de Coordinación de las

Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONACNIE), com a participação do

ECUARUNARI e a CONFENIAE, que foi o antecedente direto prévio da constituição da

CONAIE. Esta instância, que cumprira um papel importante no processo de confluência das

organizações, na afirmação da identidade específica do movimento indígena e de sua

autonomia enquanto tal249

, também contribuíra na consolidação do discurso indígena e suas

reivindicações expressas na luta por: “o reconhecimento de nossa cultura, o direito à terra que

é a base da sobrevivência de nossos povos, o direito a nossa autodeterminação” (CONAIE,

1989, p. 260). Explicitamente se sublinhava também o papel do CONACNIE como instância

“indispensável para unir a dupla dimensão de nossa luta, a de classe e a étnica”, a partir do

reconhecimento do duplo caráter da questão indígena no Equador, “como membros de uma

classe e como parte de diferentes nacionalidades indígenas” (CONAIE, 1989, p. 261). Nesse

momento, afirmou-se também a importância de contar com organizações indígenas próprias,

para, a partir delas se vincular com os movimentos populares mais amplos, antecipando assim

a vocação integradora e de liderança que assumirá a CONAIE nas lutas de resistência às

políticas neoliberais na década de 1990, em aliança com sindicatos e diversas organizações

urbanas.

Para 1983, o processo de confluência das organizações regionais indígenas da Serra e

da Amazônia na configuração de um movimento indígena nacional com sua identidade

própria estará já encaminhado e a noção de nacionalidades já aparece com clareza no discurso

das lideranças indígenas das duas regiões250

. Paralelamente ao processo de construção da

unidade organizativa entre as federações regionais da Serra e a Amazônia, nesse período

feitos na Federação Shuar, na sede da Federação Shuar, que foi denunciado por companheiros do

ECUARUNARI, pela FENOC da época, pela FEI, porque trabalharam juntos; Foi superado, especialmente com

os companheiros do ECUARUNARI. Também fazia sentido para os companheiros do ECUARUNARI, no

sentido que, enquanto Equador Runakunapak Rikcharimui, ‘O Despertar do Índio do Equador’, viam que outra

organização iria surgir: ‘mas [perguntavam] por que eles não se juntam ao que já existe?’ Mas nosso raciocínio

também era muito simples, concreto: eles não tinham representação na Amazônia, eles não tinham representação

na Costa, eles estavam mais na parte andina; então este era um processo que teria que unir povos diferentes:

Costa, Serra e Amazônia, para constituir uma nova [organização], com base no que já existe, o ECUARUNARI

mais a CONFENIAE.” 249

Ver CONAIE (1989, p. 259-265). 250

Ver Chancoso (1983); Viteri, (1983), na revista Cuadernos de Nueva. Revuelta y desafío: La cuestión

indígena en el Ecuador, No. 7, Junio 1983.

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também se formulam os elementos centrais que configuraram o programa de luta da

organização indígena. Nessa direção, Luis Macas em suas reflexões sobre esse processo

sublinha a importância da luta pela terra e a afirmação da identidade indígena (ligada a um

conjunto de reivindicações e programas de trabalho) como eixos programáticos articuladores

que geraram um forte nexo entre as lideranças nacionais e os processos organizativos locais

nas distintas regiões do país:

Yo creo que ahí realmente lo que impacta y lo que provoca, más que un trabajo

hacia una organización digamos regional, nacional, me parece que el eje que

articula es la tierra. En todas partes están peleando, […]. La gente en la base

misma está más interesada en resolver estos problemas. Yo creo que ahí la

estrategia me parece que no se equivoca, digamos, desde la dirigencia, tanto local

como la dirigencia regional en el caso del ECUARUNARI, por ejemplo, para tratar

de interpretar lo que está pasando abajo, lo que lastimosamente ahora por ejemplo

o desde algún tiempo atrás ya no pasa nada entre lo que es la organización

regional y las bases, casi no tiene que ver nada. Entonces yo digo si bien es cierto

el eje articulador es la tierra, pero también hay inteligencia para ir sumando estas

luchas que se están generando abajo […]. Yo me acuerdo nos fuimos con el Alfredo

Viteri [liderança Kichwa da Amazônia], Ernesto Tserem [liderança Shuar] que ya

no está vivo pues él se murió, donde los Tsáchila251

. Ahí vivía tayta Abraham

Calazacón y él era el gobernador, pues. Y el gobernador en esa época era vitalicio.

Ahora recién cambiaron los estatutos y eligen cada cuatro años. Entonces nos

fuimos donde él y él nos hace pensar dos veces. Dice: “sí, las tierras está bien, qué

bien, que aquí nos están acorralando y ya prácticamente nosotros casi no tenemos

nada, lo que era el territorio de los Tsáchila”. Pero dice también: “hay que

empezar a defender nuestra medicina, nuestro saber para curar a la gente”.

Entonces yo creo que el otro eje que articula al movimiento indígena es también la

identidad, pues. Si bien es cierto somos diferentes, distintos, diversos, pero

obviamente hay toda esta riqueza dentro de esta diversidad, pues no. Entonces

también es otro de los ejes que empieza a mover a la gente. Y muestra de eso es que

antes de la década del 90, ustedes conocen, hubo el reconocimiento por parte del

Estado, de la educación intercultural bilingüe, que fue una lucha que se vino dando

desde la década de Mama Dolores [Dolores Cacuango]. A finales de los 70, en la

época de Roldós, por ejemplo, con la alfabetización en Kichwa, la alfabetización en

lenguas indígenas. Entonces yo creo que son esos dos términos, esos dos ejes que

sirven como articulador de todo el proceso del movimiento indígena252

.

251

A nacionalidade Tsáchila é uma das nacionalidades indígenas da Costa equatoriana. 252

Entrevista Luis Macas, 6 Maio 2014. Tradução nossa: “Eu acho que o que realmente impacta e o que provoca,

mais do que um trabalho para [a criação de] uma organização regional e nacional, o eixo que articula me parece

que é a terra. Em todos os lugares estão lutando, [...]. As pessoas das organizações de base estão mais

interessadas em resolver esses problemas. Penso que a estratégia deu certo, isto é, das lideranças, tanto das

lideranças locais e regionais no caso do ECUARUNARI, por exemplo, para tentar interpretar o que está

acontecendo abaixo; que infelizmente agora ou há algum tempo atrás, nada acontece entre o que é a organização

regional e as bases, quase não têm nada a ver. Então, eu digo mesmo que o eixo articulador é a terra, mas há

também a inteligência para adicionar essas lutas que estão sendo geradas abaixo [...]. Eu me lembro que fomos

com Alfredo Viteri [liderança Kichwa da Amazônia], Ernesto Tserem [liderança Shuar], que já não está vivo

porque morreu, para onde os Tsáchila. Ali morava Tayta [Pai, Senhor] Abraham Calazacón e ele era o

governador Tsáchila. E o governador naquela época era um cargo vitalício. Recentemente, eles [os Tsáchila]

mudaram os estatutos e elegem cada quatro anos. Então, nós fomos para onde ele, e ele nos faz pensar duas

vezes. Ele diz: ‘sim, as terras estão bem, muito bem, porque aqui estão nos acuando e praticamente não temos

quase nada do que era o território dos Tsáchila’. Mas ele também diz: ‘temos que começar a defender nossa

medicina, nosso saber para curar as pessoas’. Então eu acredito que o outro eixo que articula o movimento

indígena também é a identidade. Embora seja verdade que somos diferentes, distintos, diversos, mas obviamente

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151

O processo descrito de confluência das organizações indígenas e de construção de uma

identidade e plataforma comum de luta dos povos das diversas regiões conduziu à realização

do I Congreso de las Nacionalidades Indígenas del Ecuador em novembro de 1986 em Quito,

com a participação de 9 nacionalidades das três regiões do Equador continental, representadas

por meio de 27 organizações. Nesse Congresso, ainda no governo conservador de Febres

Cordero, se constituiu a Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador CONAIE,

como expressão política nacional dos povos e nacionalidades indígenas, com a “tarefa

fundamental” de definir “um projeto político que responda às características e realidades

particulares de nossos povos e contribua a delinear uma alternativa política para a

transformação da sociedade equatoriana no seu conjunto” (CONAIE, 1989, p. 268).

Sustentada nas dinâmicas organizativas de luta e de negociação de suas filiais

regionais, o ECUARUNARI na Serra e a CONFENIAE na Amazônia, a CONAIE tomou um

rápido impulso nos anos seguintes após sua criação, ganhando uma maior presença no cenário

nacional para passar a ser em pouco tempo, junto com a FENOC, uma das organizações

nacionais mais representativas dos camponeses e indígenas no país. É interessante constatar

que desde o segundo semestre de 1987 a noção de nacionalidades indígenas é mencionada

com frequência crescente na imprensa nacional, não apenas na voz de lideranças indígenas,

mas também de jornalistas e antropólogos que publicaram várias notícias e reportagens

usando essa noção253

.

Nos primeiros anos de sua existência, a CONAIE também promoveu a organização

das nacionalidades menores da Costa e da Amazônia e a conformação da organização regional

das nacionalidades da Costa equatoriana com o nome de Coordinación de Organizaciones

Indígenas de la Costa Ecuatoriana (COICE), a qual posteriormente adotou o nome de

Confederación de Nacionalidades y Pueblos Indígenas de la Costa Ecuatoriana (CONAICE),

para junto a CONFENIAE e o ECUARUNARI completar sua estrutura baseada em três

Confederações regionais, que por sua vez aglutinam às Federações Provinciais e locais.

Paralelamente, na segunda metade da década de 1980 também foi intensificado o tecido

há toda essa riqueza dentro dessa diversidade, não é?. Então, também é outro dos eixos que começa a mover à

gente. E uma amostra disso é que, antes da década de 1990, vocês conhecem, houve o reconhecimento pelo

Estado da educação intercultural bilíngue, que foi uma luta que aconteceu desde a época de Mama Dolores

[Dolores Cacuango]. No final dos anos 70, no governo de Roldós, por exemplo, com a alfabetização em Kichwa,

a alfabetização em línguas indígenas. Então eu acho que são esses dois termos, são esses dois eixos que servem

para articular todo o processo do movimento indígena”. 253

Kipu: el mundo Indígena en la Prensa ecuatoriana, Nos. 9 (Jul-Dez ,1987) e 10 (Jan-Jun, 1988). Esta

publicação semestral compilada por Abya Yala reúne as matérias referentes à questão indígena publicadas em

diversos jornais do país.

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organizativo na Serra e na Amazônia, com a constituição de novas federações locais e

provinciais e seu vínculo com as Confederações regionais, no contexto da multiplicação de

experiências e projetos de desenvolvimento rural, promovidos pelo Estado e uma ampla gama

de ONGD nacionais e internacionais.

Paralelamente, o acumulo de experiências de educação intercultural bilíngue em várias

zonas do país permitiu à CONAIE em julho de 1988, antes da posse do governo do

socialdemocrata Rodrigo Borja, elaborar “uma proposta educativa própria para as

nacionalidades indígenas” para ser apresentada e discutida com o novo governo254

. No mesmo

mês, no jornal da CONFENIAE Amanecer Indio é publicada uma carta da CONAIE ao

governo Borja, na qual se detalha sua plataforma de luta e as maiores demandas das

nacionalidades indígenas para o novo governo, entre as quais destacam: a) “reconhecimento e

legalização de territórios indígenas na região Amazônica e Costa”; b) “reconhecimento com

caráter de territórios dos espaços geográficos ocupados pelos povos indígena do país”; c)

“execução imediata da Reforma Agrária na Serra e na Costa do país em forma comunitária”;

d) “suspensão da prospecção e exploração petrolífera e mineira em territórios das

nacionalidades indígenas”; e) reforma à Constituição para garantir a “declaração do Estado

equatoriano como país plurinacional e pluricultural”; f) “reconhecimento e oficialização dos

programas de educação bilíngue intercultural que se desenvolvem no país sob a direção das

organizações indígenas”; g) “reconhecer à CONAIE enquanto organização autônoma e suas

instâncias como órgãos técnico-científicos para aplicação dos diferentes programas”

educativos. 255

Num contexto caraterizado pela presença de uma série de conflitos de terra, cujos

trâmites dos processos foram sistematicamente obstruídos durante o governo conservador de

Febres Cordero (1984-1988), pelo acirramento das demandas territoriais das nacionalidades

amazônicas diante da tendência da expansão das atividades extrativas petrolíferas (Ortiz,

2012) e por uma maior abertura às reinvindicações indígenas pelo governo socialdemocrata

de Rodrigo Borja (1988-1992), a relação do movimento indígena com o Estado nesse governo

esteve caracterizada por uma dupla e permanente dinâmica de negociação e confronto256

e por

uma maior complexidade na relação das organizações indígenas e camponesas com o Estado.

Com efeito, a partir das experiências desenvolvidas de educação intercultural bilíngue, em

254

Ver Diario Hoy, “Hoy clausuran seminario indígena”, 03-07-1988, In: Kipu 11, Jul.-Dez. 1988, p. 185. 255

Ver CONFENIAE, Amanecer Indio, Julho 1988, In: Kipu 11, Jul.-Dez. 1988, p. 180. 256

Uma descrição detalhada das dinâmicas de negociação e conflito entre a CONAIE e o governo Borja na

perspectiva do governo realizada por Gonzalo Ortiz, Secretário da Presidência da República nesse governo,

encontra-se em Ortiz (1991).

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uma decisão sem precedentes e como resultado do diálogo e negociação com a CONAIE, em

novembro de 1998 o governo Borja cria a Dirección Nacional de Educación Intercultural

Bilingüe (DINEIB) e entrega à CONAIE as responsabilidades relacionadas com o

planejamento, organização, administração, controle e desenvolvimento do sistema educativo

para as comunidades indígenas257

.

A negociação da CONAIE para a criação da DINEIB não significou sua cooptação

pelo governo Borja, nem um óbice para a mobilização indígena e o confronto com o Estado,

especialmente em relação às demandas territoriais na Amazônia e à resolução dos conflitos

pela terra na Serra. Assim, em maio de 1989 em Sarayaku na Província de Pastaza,

funcionários governamentais de alto nível enviados para uma reunião, na qual “comunicariam

as soluções para os problemas específicos de Sarayaku” (ORTIZ, 1991, p. 116) foram retidos

pelos indígenas por vários dias, até a assinatura de um documento chamado de “Acuerdo de

Sarayaku” com as principais lideranças das organizações indígenas (CONAIE, CONFENIAE,

OPIP), no qual o governo se comprometia a resolver as maiores demandas indígenas,

incluindo o reconhecimento e legalização de territórios indígenas, a execução da Reforma

Agrária e o trâmite no Congresso Nacional de uma reforma constitucional para declarar o

Estado plurinacional, entre outras258

. Pouco depois, o levantamiento indígena em junho de

1990 e a marcha da floresta amazônica para Quito “pelo território, pela vida, ¡levantemo-

nos!” pela OPIP em abril de 1992, para demandar o reconhecimento e demarcação dos

territórios indígenas na Província de Pastaza, constituíram dois momentos culminantes da

mobilização indígena durante o governo Borja e da dinâmica de pressão, confronto e

negociação que marcou a relação do movimento indígena com o Estado nesse período. É

nesse processo que a CONAIE se fortalece e se consolida como a maior organização indígena

com capacidade de mobilização e de incidência na arena política nacional, que marcará as

lutas de resistência contra o neoliberalismo na década de 1990 e a redefinição das políticas do

Estado para administrar “a questão indígena”, como se analisará no capítulo terceiro.

257

Diario El Comercio, “Crean Dirección del Indígena”, 20-11-1988, In: Kipu 11, Jul.-Dez. 1988, p. 67; Diario

Hoy, “Indígenas controlarán su educación”, In: Kipu 11, Jul.-Dez. 1988, p. 66. Segundo Gonzalo Ortiz (1991,

p. 111) ao finalizar 1990 tinham-se criado 1500 cargos de professores bilíngues e transferido (ou criado) para a

jurisdição da DINEIB 1500 escolas e 30 colégios bilíngues (ensino médio). A criação e desenvolvimento da

DINEIB são abordados com maior detalhamento no capítulo terceiro, como parte das políticas multiculturalistas

desenvolvidas pelo Estado. 258

“Acuerdo de Sarayacu”, In: FEPE/CONAIE, 1992, p. 6-13. Mesmo que contestado pelo governo com o

argumento que foi assinado sob pressão, este documento terá importância política, pois seu cumprimento será

reivindicado entre os 16 pontos do “Mandato por la defensa de la vida y los derechos de las nacionalidades

indígenas” demandado pela CONAIE no levantamiento indígena de junho de 1990 e seria um ponto das

negociações posteriores com o governo Borja.

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3.4 O LEVANTAMIENTO INDÍGENA DE JUNHO DE 1990: Algumas reflexões em torno do

seu significado político

Para finalizar este longo percurso relativo aos antecedentes históricos e aos processos

organizativos e políticos, nos quais se forjou o movimento indígena equatoriano com todas

suas diversas expressões organizativas, seguidamente esboço algumas reflexões em torno do

significado político do levantamiento indígena de junho de 1990 para o próprio movimento, o

Estado e a sociedade equatoriana, por sua transcendência enquanto acontecimento político e

momento de ruptura que questionou os fundamentos coloniais do Estado e da sociedade

equatoriana, abrindo o espaço político nacional e projetando novos rumos na relação do

movimento com o Estado. Além do necessário para a compreensão de sua intensidade e

relevância, não abordarei em detalhes a série de eventos ocorridos nesses dias, nem

aprofundarei a análise de suas causas imediatas ou estruturais (muitas das quais foram já

descritas e discutidas ao longo deste capítulo), ambos os aspectos amplamente abordados na

literatura acadêmica sobre o levantamiento259

; consequentemente me concentrarei

principalmente na análise do seu significado político, a partir de um olhar marcado pela

distância produzida pelo tempo transcorrido, à luz do processo político posterior e o devir do

movimento em sua relação com o Estado.

Na V Assembleia que ocorreu de 25 a 28 de Abril de 1990 na cidade de Pujilí, na

Serra central, a CONAIE após da: “análise aprofundada da situação que atravessamos os

indígenas e em geral o povo equatoriano” (Macas, 1991, p. 30) resolveu “preparar el Primer

Levantamiento Indígena Nacional” para os dias 4 a 6 de junho de 1990260

, para demandar do

governo nacional uma plataforma de 16 pontos conteúdos no “Mandato por la defensa de la

vida y los derechos de las nacionalidades indígenas” (ver anexo 5), plataforma de luta ampla

e concertada com os delegados das distintas organizações de base nessa mesma assembleia. O

primeiro desses pontos se referia à entrega, solução e legalização da terra e dos territórios para

as nacionalidades indígenas e o sétimo ponto incluía a reforma da Constituição para declarar o

Estado plurinacional. Ao calor do levantamiento e das mobilizações posteriores, esse mandato

seria a base para o diálogo e as negociações nacionais com o governo Borja e ao mesmo

tempo também seria assumido e adequado às condições e às demandas particulares em

diferentes províncias e localidades pelas organizações e Federações indígenas camponesas de

259

Sobre o levantamento indígena de 1990 destacam os trabalhos de León (1994); Moreno, S. e Figueroa, J.

(1992); Rosero (1990); e as coletâneas de ensaios em Cornejo (Ed.), 1991; Almeida et al (1993). 260

V Asamblea Nacional de la CONAIE: resoluciones y Mandato (FEPE/CONAIE, 1992, p. 28-40).

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base, sob a forma de mandatos provinciais e locais261

, para exigir respostas das autoridades

provinciais e locais. A partir dessa resolução da V Assembleia da CONAIE, em várias

reuniões das federações e organizações de base se preparou e promoveu a participação no

levantamento nas semanas e dias prévios das datas definidas262

. Nem as centrais sindicais

nacionais, nem a FENOC se somaram ao levantamiento por considerá-lo inoportuno pela

proximidade das eleições legislativas, provinciais e locais (17 de junho), com o qual a

convocatória foi encaminhada pela CONAIE fundamentalmente para suas organizações

indígenas filiais (MACAS, 1991, p. 30).

Na manhã do dia 28 de Maio, aproximadamente 200 camponeses indígenas e ativistas

participantes da Coordinadora de Comunidades en Conflicto (de terra)263

e da Coordinadora

Popular264

ocuparam a Igreja da Santo Domingo no centro histórico de Quito para exigir a

solução de mais de uma centena de conflitos de terra represados no IERAC265

. Esta ação,

ainda que planejada como uma ação em preparação do levantamiento, não foi acordada com a

direção da CONAIE, mas no seu andamento se inscreveu como parte daquele, ao alcançarem

um acordo os representantes das comunidades com as lideranças da CONAIE, pelo qual a

ocupação tomava como plataforma de luta os 16 pontos do Mandato da CONAIE, priorizando

a solução dos conflitos de terra e a representação nas negociações com o governo seria

assumida diretamente pela CONAIE (LEÓN, 1993).

A reação inicial do governo Borja foi implantar um cerco à ocupação da igreja,

minimizar as ações indígenas e se negar a estabelecer um diálogo direto com as lideranças

indígenas, sem dimensionar adequadamente o alcance que teria o levantamiento convocado

para os dias seguintes. A negativa do governo provocou que 11 lideranças que participavam

da ocupação da igreja deflagraram uma greve de fome o dia 3 de junho para acrescentar sua

pressão sobre o governo e amplificar a repercussão da ocupação na mídia e na sociedade.

261

Uma síntese dos distintos mandatos provinciais e locais encontra-se em León (1994, p. 65-68). 262

Ver Macas (1991); Punto de Vista, “La sublevación de los cabildos”, 25-06-1990, In: Kipu 14, Mai-jun

1990; entrevista Jorge Herrera, 22 novembro 2014: entrevista realizada por Florencia Campana e Fernando

Larrea. 263

Esta foi uma instância criada em 1988 para a coordenação, troca de experiências e apoio recíproco das

comunidades indígenas e camponesas envolvidas em conflitos agrários e litígios pela terra, em várias províncias

da Serra Central e Norte (BARRERA, 2001, p. 116). Nela participavam comunidades que faziam parte do

ECUARUNARI e a CONAIE (a maior parte), da FENOC e independentes. Ver: León (1993). 264

Instância constituída na conjuntura que agrupava militantes de várias organizações populares, comunidades

eclesiais de base e de direitos humanos. Ver León (1993); Moreno e Figueroa (1991). 265

Ver Rosero (1990); Rosero, (1991); Barrera, (2001). Fernando Rosero situa na luta pela terra, concebida

como fundamento da identidade e reprodução social e cultural indígena, um dos principais fatores que

motivaram o levantamento. Além disso, Rosero também sublinha o descontentamento resultante do deterioro dos

preços dos produtos agrícolas e da elevação dos produtos industrializados e insumos agrícolas, como resultado

das políticas de ajuste estrutural da economia na década de 1980 (ROSERO, 1990). Sobre as raízes do

levantamiento relacionadas aos impactos da crise econômica e das políticas de ajuste sobre as economias

camponesas indígenas ver também Zamosc (1993).

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No entanto, a partir do mesmo dia 3 de junho, milhares de camponeses indígenas

saíram de suas comunidades e bloquearam as maiores rodovias nas províncias de quase toda a

região Interandina266

. Os dias seguintes, o levantamiento tomou uma dimensão inusitada que

surpreendeu o governo, os analistas e as próprias lideranças da CONAIE267

. O uso das forças

militares e policiais não amedrontou aos manifestantes, os quais evadiam o confronto direto e

retornavam para colocar obstáculos nas rodovias quando os militares se retiravam268

. Na

Província de Chimborazo na Serra central, 23 militares e oito policiais foram rodeados por

milhares de indígenas e retidos como reféns269

. Nas principais cidades da Serra central

dezenas de milhares de indígenas ocuparam as praças centrais e realizaram concentrações

massivas nas quais exigiram das autoridades provinciais e locais a assinatura de

compromissos em resposta aos mandatos provinciais apresentados. As principais feiras e

mercados urbanos ficaram desabastecidos de alimentos, tanto pela prologada paralização do

trânsito nas rodovias quanto porque os camponeses indígenas deixaram de fornecer ou levar

seus produtos para eles.

Diante da força que teve o levantamento indígena o governo Borja cedeu e com a

mediação da Igreja Católica aceitou abrir um processo de diálogo de alto nível com a

CONAIE e o governo para discutir soluções concretas dos 16 pontos do “Mandato por la

defensa de la vida y los derechos de las nacionalidades indígenas” com o qual foi levantada a

ocupação da Igreja de Santo Domingo e a greve de fome que mantinham as lideranças das

comunidades e a CONAIE anunciou a culminação paulatina do levantamiento nas diversas

províncias, o mesmo que concluiu efetivamente o dia 10 de junho. Dessa maneira, foi

estabelecido um processo de diálogo e negociação das organizações indígenas com o governo

Borja; processo nunca livre de tensões, mas que com diversas facetas e momentos continuaria

até a finalização de seu mandato em 1992.

O levantamiento indígena de 1990 marcou um ponto culminante no processo de

consolidação do movimento indígena e abriu um novo tempo político no país. Considerado

266

As mobilizações indígenas que se estenderam por quase toda a região Interandina foram especialmente

significativas nas Províncias da Serra Central. Inclusive comunidades indígenas evangélicas ligadas à FEINE

mobilizaram-se. Ver León (1994, p. 92-93). Também participaram comunidades vinculadas à FENOC-I (hoje

FENOCIN). As nacionalidades indígenas na região Amazônica realizaram algumas ações e mobilizações, mas

não tiveram a força e a dimensão daquelas da Serra. Ver Ruiz (1991). 267

Ao assistir novamente as imagens registradas no vídeo que resume alguns dos principais momentos do

levantamiento não deixa de assombrar a magnitude do mesmo, a força das lideranças e dos discursos indígenas

nas concentrações. Este vídeo pode ser acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=0GYqAculmZw . Último

acesso em: 28 dez. 2017. 268

Mesmo assim, as ações repressivas provocaram a morte de uma liderança indígena nessa mesma Província,

vários feridos e dezenas de detidos. 269

Os militares foram entregues e liberados no dia seguinte como parte das negociações com o governo que

colocou isso como condição para abrir o diálogo; essas negociações foram intermediadas pela Igreja Católica.

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como o maior protesto indígena de nível nacional na história recente do Equador, pela

participação maciça e por sua definição como um “protesto indígena com reivindicações

étnicas”, evidenciou o protagonismo do movimento indígena na arena política nacional

(ZAMOSC, 1993, p. 275). A formação e consolidação do movimento indígena e da CONAIE

como sua maior expressão organizativa se mostrava, assim como a irrupção de um novo

sujeito político no topo da cena política nacional, com uma enorme capacidade de

mobilização, com seus quadros dirigentes, sua própria voz e discurso político, que levantava a

luta por terra e territórios como garantia para sua sobrevivência enquanto povos e um

conjunto de demandas diante do Estado nacional, as quais confrontavam sua estruturação,

formas de representação política e práticas neocoloniais270

. Como sublinha a liderança

indígena Nina Pacari, após o levantamiento indígena de 1990: “nem o Equador é o mesmo a

partir desse momento, nem os indígenas somos os mesmos” 271

. O levantamento deixaria

assim consequências duradouras que marcariam os debates, confrontos e lutas dos agentes

sociais e políticos ao menos pelas duas décadas seguintes, entre eles os debates sobre a

plurinacionalidade e o reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas.

De um modo ou de outro, o levantamento indígena também gerou um questionamento

direto ao projeto modernizador e de integração subordinada dos camponeses indígenas que

tinha orientado as políticas agrárias e de desenvolvimento rural no país, evidenciou a

persistência de enormes desigualdades no acesso aos recursos produtivos no campo e de

práticas etnicamente excludentes e discriminatórias em múltiplos espaços públicos e privados.

Nesse sentido, além de sua dimensão nacional, o levantamiento foi também “a somatória de

verdadeiras explosões locais” (CARRASCO, 1993, p. 30).

Ao considerarmos o movimento indígena no seu conjunto, o levantamiento suscitou

um forte sentido de afirmação da identidade étnica e de orgulho coletivo entre os

participantes, uma espécie de momento épico para a história da resistência e do movimento

indígena, expresso tanto nas comunidades e organizações locais quanto nas lideranças

nacionais272

. Além das capacidades alcançadas de proposição e negociação política, a força do

movimento radicava precisamente na mobilização coletiva e multitudinária, sustentada num

amplo tecido organizativo construído por décadas, no qual se fusionavam formas e tradições

culturais de organização, luta e resistência com práticas modernas de representação e gestão

270

Ver Guerrero (1993); Zamosc (1993); Guerrero (2010). 271

Entrevista Nina Pacari, 25 Janeiro 2015. 272

Os depoimentos de participantes dos eventos nas províncias da Serra central levantados na pesquisa de León

ressaltam esse aspecto (LEÓN, 1994, p. 52-53).

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diante do Estado. Simultaneamente, o levantamiento reforçou a estrutura descentralizada e a

dinâmica de funcionamento da CONAIE, no sentido de brindar uma margem muito alta de

autonomia a suas organizações filiais, seja na esfera local, provincial ou regional.

De outro lado, pela capacidade de mobilização demonstrada, o levantamiento situou a

CONAIE como a organização nacional mais representativa dos indígenas e camponeses e,

nesse sentido, lhe converteu na interlocutora privilegiada diante do Estado. Num contexto de

enfraquecimento do movimento sindical, no campo das organizações populares, sindicais e da

esquerda, a CONAIE passou a ser considerada uma referência para qualquer ação, com

capacidade de liderança das lutas populares e sem a qual não se podia ter a força para resistir

à arremetida neoliberal. Nesse sentido, o levantamiento questionou a preeminência das

centrais sindicais nacionais e das vanguardas políticas no movimento popular (no sentido

amplo) e suas lutas.

Além dos elementos referidos, no que diz respeito à relação do movimento indígena

com o Estado equatoriano, o levantamiento indígena de 1990 trouxe algumas mudanças

significativas nesse novo tempo político aberto: colocou na pauta de debate nacional a

discussão sobre o Estado plurinacional, a autonomia e autodeterminação indígena, o

reconhecimento de territórios para as nacionalidades e o alcance dos direitos territoriais

indígenas; iniciou o ciclo de protestos indígenas e populares contra as políticas neoliberais

que se estenderia por mais de uma década; quebrou a política indigenista integradora (via

assimilação273

) do Estado nacional vigente até então e marcou a transição para o discurso e

políticas multiculturalistas a partir do reconhecimento diferencial de alguns direitos dos povos

e nacionalidades indígenas e a rejeição do outros, no contexto do processo de implantação de

políticas neoliberais que caracterizou a década de 1990.

O governo Borja e suas atuações em diversos momentos do seu mandato refletem com

clareza essa transição, ambiguidade e inflexão nas políticas e no discurso do Estado nacional

que conduziriam posteriormente à adoção do multiculturalismo neoliberal. Nessa direção,

entre as principais atuações do governo Borja em distintos momentos se destacam: a criação

da DINEIB com participação da CONAIE em 1988 referida anteriormente, numa espécie de

antecipação das políticas multiculturalistas; as posições assumidas no decorrer do

levantamiento indígena e nas negociações posteriores com a CONAIE em 1990; a

273

Política que corresponderia à fase “inclusiva” na definição de Díaz Polanco (2009) dos distintos momentos

de domínio na relação entre o capitalismo atual e a questão da identidade étnica, como discutido no capítulo

primeiro na parte sobre o multiculturalismo.

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demarcação de territórios indígenas para as nacionalidades amazônicas especialmente no ano

1992, após a marcha da OPIP.

Com efeito, durante o levantamiento de 1990, o presidente Borja atribuiu a

responsabilidade do levantamiento aos “agitadores sem consciência de Pátria e sem

sentimentos de nacionalidade” que “pretendem dividir o país utilizando malignamente aos

indígenas”, para continuar sinalizando que “ninguém tem o direito de perturbar a paz e

sublevar aos indígenas e camponeses” e conclui que “em 500 anos nenhum governo [...] têm

feito tanto para resolver os problemas das comunidades indígenas, como tem feito meu

governo” [...] “para que sejam tratados como seres humanos, como equatorianos com as

mesmas obrigações e direitos”274

. Como anota agudamente Guerrero, a imagem dos índios

emitida nesse momento no discurso do Presidente Borja os concebe como “entes ingênuos”,

“criaturas simples” e manipuláveis que são objeto de “estratégias malignas” e tem como

reverso a magnanimidade das classes dominantes de “tratar os índios como seres humanos”.

Essa imagem correspondia a “percepções mentais” e reativava tópicos presentes nos discursos

dos políticos liberais de um século atrás (entre eles o bisavô do Presidente Borja) sobre a

“desgraçada raça indígena”, percepções mentais “que guiavam aos homens públicos no trato

com os indígenas” e que caducaram precisamente com o levantamiento indígena de 1990

(GUERRERO, 2010, p. 99-105).

Nas negociações posteriores da CONAIE com o governo, na reunião do dia 22 de

agosto de 1990 convocada para discutir as demandas territoriais das nacionalidades

amazônicas no palácio de governo com a participação direta do presidente Borja, as

lideranças da OPIP e CONFENIAE entregaram o chamado “Documento de Pastaza”275

com

sua proposta de reconhecimento dos territórios indígenas para sua demarcação. Nesse

momento, a resposta do presidente Borja foi enfática: numa espécie de aula de direito

constitucional rejeitou o documento apresentado e as proposições territoriais indígenas

aduzindo que não cabia um acordo entre um Estado soberano e uma organização social:

“porque vocês não são um Estado dentro de outro Estado..., porque vocês estão submetidos,

como todos os outros equatorianos, sem qualquer privilégio, às mesmas leis, à mesma

Constituição e às mesmas autoridades estatais" (ORTIZ, 1991, p.139). No dia seguinte, o

274

Diario El Universo, “Agitadores pretenden dividir a la Patria: Borja em Santo Domingo”,07-06-1990, In:

Kipu 14, Mai-jun 1990, p. 49. 275

O conhecido como “documento de Pastaza” apresentado ao governo levava de título “Acuerdo sobre el

derecho territorial de los Pueblos Quichua, Shiwiar y Achuar de la Provincia de Pastaza a suscribirse con el

Estado Ecuatoriano”. Este documento está publicado em FEPE/CONAIE (1992, p. 96-110), igualmente o

comunicado oficial de resposta do governo que sinaliza que esse documento apresentado pela CONAIE era

inaceitável, pois pretendia criar um Estado paralelo (FEPE/CONAIE, 1992, p. 110-112).

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comunicado oficial do governo ratificava a posição do presidente Borja: “o documento

apresentado é inaceitável, pois viola a Constituição da República do Equador, implica a

desmembração de seu território, [...] tenta criar um Estado paralelo no qual não rejam as leis e

as autoridades equatorianas” (FEPE/CONAIE, 1992, p. 111); argumentos que extremavam ou

não correspondiam ao teor dos conteúdos do documento apresentado pelas organizações

indígenas276

. Nesse momento, a posição do governo Borja alimentava a campanha levantada

por setores conservadores, pelas câmaras empresariais, pela burguesia agrária e os militares

que alertavam das intenções separatistas e contrárias à unidade nacional da CONAIE, ao

tempo que colocava em dúvida a ratificação do Convênio 169 da OIT sobre povos indígenas

(Ortiz, 2012, p. 315) e paralisava a possibilidade de obter avanços significativos na

demarcação dos territórios indígenas na região Amazônica.

Esta posição mudou dois anos mais tarde com a realização da marcha da OPIP de

2.000 indígenas da floresta amazônica para Quito em abril e maio de 1992, para demandar a

demarcação de territórios indígenas na Província de Pastaza, a reforma constitucional para

declarar o Estado plurinacional e o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos

indígenas decorrente do Convênio 169 da OIT, assinado pelo Equador em 1989 (ORTIZ,

2012). Quando a marcha arribou a Quito, o presidente Borja recebeu novamente às lideranças

das organizações indígenas, derivou a discussão do Estado plurinacional para o Congresso

Nacional e desta vez ofereceu que a demarcação dos territórios devia ser resolvida nos

transcurso das seguintes duas semanas. Os indígenas continuaram em Quito até efetivamente

alcançarem o reconhecimento dos seus territórios277

.

De outro lado, se a irrupção do movimento indígena na arena política nacional, com

suas demandas em torno ao caráter plurinacional do Estado equatoriano e ao reconhecimento

dos direitos das nacionalidades indígenas provocou que a questão étnica começasse a ser

processada pelo Estado (no sentido de Estado ampliado) e adquirisse primazia no debate

nacional, ao tempo que era conduzida para um terreno aceitável pelo Estado (via

culturalização das demandas), para as classes dominantes e especialmente para a burguesia

agrária da região Interandina, o levantamiento indígena ao evidenciar que a luta de classes e

os conflitos agrários permaneciam latentes, acendeu todos os sinais de alerta para conter a

ameaça que a mobilização indígena representava para seu projeto de desenvolvimento

capitalista da agricultura (com a floricultura para exportação e a pecuária de leite como suas

276

Ver Rosero (1991); Ortiz (2012). 277

Mesmo representando uma conquista significativa do movimento indígena o reconhecimento alcançado dos

territórios correspondeu algo em torno de 65% das aspirações indígenas, pois as Forças Armadas mantiveram

sob seu controle uma faixa de segurança de 50 Km na fronteira (ORTIZ, 2012, p. 318).

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expressões mais avançadas) e preparou-se para defrontá-la. No transcurso do levantamiento e

nas semanas seguintes muitos pronunciamentos das Câmaras de agricultura e dos setores

empresariais exigiam o uso da força “para casos de comoção interna” e a repressão para deter

as ocupações de terra e a mobilização indígena, ratificavam a manipulação dos indígenas por

ativistas políticos e religiosos, ressaltavam os estragos causados pela reforma agrária que “não

se adequa às necessidades do país” e manifestavam que no Equador apenas existe uma só

nacionalidade (a equatoriana) resultante da “mistura da raça indígena com a europeia” 278

.

Mas será um pronunciamento da “Cámara de Industriales de Pichincha” quem marcará com

clareza a linha política a seguir pela burguesia agrária serrana nos seguintes anos: alcançar no

curto prazo a finalização jurídica e política do processo de reforma agrária279

. A partir desse

momento, começou uma ofensiva empresarial encaminhada a construir a argumentação

política e jurídica e criar as condições políticas com o propósito de modificar a legislação e as

políticas agrárias que conduzam efetivamente a acabar com o processo de reforma agrária,

garantir a “segurança jurídica” na questão fundiária e “trazer a paz no campo”. Iniciou-se

assim, uma nova batalha que marcaria os debates e o rumo adotado nas políticas agrárias,

como se discute no capítulo seguinte, batalha em que a burguesia agrária contava com o vento

a favor da primazia do pensamento e da aplicação das políticas neoliberais na América Latina.

278

Diario el Comercio, “La Federación de Ganaderos del Ecuador” (manifiesto), 07-06-1990, In: Kipu 14,

Mai-jun 1990, p. 48; Diario el Expreso, “Agricultores piden sanción para indígenas sublevados”, 06-06-1990,

In: Kipu 14, Mai-jun 1990, p. 36; Diario Hoy, “Reforma Agraria ha sido perjudicial”, 12-06-1990, In: Kipu 14,

Mai-jun 1990, p. 166; Diario el Comercio, “Continua invasión de tierras”, 26-07-1990, In: Kipu 14, Mai-jun

1990, p. 167; Diario El Comercio, “Las Cámaras de la Producción a la Opinión Pública frente a la grave

conmoción nacional, 12-06-1990, In: León, 1994, p. 194-195. 279

Diario El Comercio, “Reforma Agraria debe Terminar”, 13-06-1990, In: Kipu 14, Mai-jun 1990, p. 92.

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4. CATIVANDO O MOVIMENTO INDIGENA: A articulação da política de

administração da população indígena no Estado neoliberal

Durante a década de 1990 e inícios do novo século no Equador, apesar do predomínio

do “pensamento único” e das reformas propugnadas pelo “consenso de Washington” como

orientação geral das políticas econômicas a serem implantadas, as diversas frações das classes

dominantes tiveram dificuldades para lograrem acordos substantivos que permitissem

consolidar o “bloco no poder” na direção do Estado e estabelecer a direção geral e a

profundidade a ser alcançada por meio da aplicação das reformas neoliberais nos sucessivos

governos280

. Às dificuldades econômicas resultantes de uma década de medidas de ajuste

fiscal se somaram as resistências geradas pelos movimentos populares que com ações e

iniciativas diversas em determinados momentos lograram barrar algumas das reformas ou

medidas econômicas propostas. Essa situação expressou-se com maior agudeza a partir da

segunda metade da década com o aprofundamento da crise econômica e uma maior

instabilidade política que culminou com a derrubada dos governos eleitos de Bucaram (1997),

Mahuad (2000) e Gutiérrez (2005).

Nesse contexto, o protagonismo político do movimento indígena, a partir do

levantamento indígena de 1990 e do conjunto de mobilizações subsequentes nos anos

seguintes, será crucial nos processos de resistência ao neoliberalismo e na direção assumida

pelos movimentos sociais e populares. Ao mesmo tempo, o movimento indígena impulsionará

e negociará com o Estado equatoriano reformas políticas para o reconhecimento dos direitos

coletivos na Constituição e para ampliar a participação indígena nas instituições do Estado.

Essa dinâmica política expressa numa constante tensão na relação com o Estado entre

estratégias de adequação e negociação num polo, versus estratégias de resistência e confronto

no outro polo, estará presente durante todo esse período e posicionará as diversas tendências

existentes dentro do movimento indígena, bem como as principais organizações nacionais e

regionais diante das diversas conjunturas.

Neste capítulo, interessa-me analisar as respostas e concessões geradas pelo Estado

equatoriano nesse período diante do protagonismo alcançado pelo movimento indígena na

arena política nacional e como elas são progressivamente articuladas em torno de uma política

neoindigenista que ganhou relevância e adquiriu coerência através da adoção do discurso e

dos dispositivos do multiculturalismo como eixo teórico e político para a administração da

280

As pugnas entre os distintos grupos econômicos expressaram-se frequentemente nesse período na arena

política, assumindo inclusive características de confrontação inter-regional entre os grupos de Guayaquil e da

Serra durante a crise bancária de 1999, que atingiu poderosos grupos financeiros especialmente de Guayaquil

(BURBANO DE LARA, 2014, p. 251-269).

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população indígena na governamentalidade neoliberal, colocando assim a questão étnica num

campo assimilável pelo Estado e conjurando os perigos implícitos da mobilização indígena

para o processo de desenvolvimento capitalista da agricultura. Paralelamente, interessa-me

também mostrar como essa política multiculturalista do Estado, na medida em que se

articulou e se aprimorou incorporando representantes indígenas na sua gestão, condicionou a

atuação do movimento indígena, modelou seu discurso e transformou suas práticas

organizativas e políticas, favorecendo sua adequação às condições impostas pelo

desenvolvimento capitalista e pelas políticas do Estado. Retomo assim, as discussões e

perspectivas interpretativas abordadas no capítulo primeiro.

Para desenvolver esta argumentação, analiso três distintos momentos que considero

chaves para a articulação e desenvolvimento dessa política por parte do Estado e faço uma

releitura deles explorando seu significado político nas dinâmicas do movimento indígena: O

primeiro momento foi o processo de negociação entre o Estado, as Câmaras de agricultura e o

movimento indígena, aberto como consequência do novo levantamiento indígena

protagonizado em junho de 1994 contra a expedição da Ley de Desarrollo Agrario no

governo conservador de Sixto Durán Ballén, que teve repercussões na concepção das políticas

agrárias até o momento atual. O segundo momento refere-se ao processo de reconhecimento

dos direitos coletivos dos povos indígenas na Constituição de 1998 pela Asamblea

Constituyente estabelecida no governo interino de Alarcón, após da queda do governo de

Abdalá Bucaram, processo político que teve variadas implicações em relação à proposta da

plurinacionalidade levantada pela CONAIE em seu projeto político. Vinculado ao anterior,

encaro a criação de uma institucionalidade especializada do Estado para a gestão dos assuntos

indígenas com participação das principais organizações nacionais, enquanto eixo central que

articulou a política multiculturalista neoindigenista. Continuo com a análise do processo de

participação política de representantes indígenas na arena eleitoral por meio da criação de

movimentos políticos (Pachakutik e Amauta Yuyai) e em cargos de alto escalão na gestão de

vários governos. Esse processo teve seu ponto culminante durante o governo de Lucio

Gutiérrez no ano 2003 e por isso o abordo como o terceiro momento chave, no qual a política

neoindigenista já tinha sido instalada no Estado, agenciada por representantes indígenas e suas

organizações, ao mesmo tempo em que reproduzia práticas e formas políticas dominantes tais

como o clientelismo e o assistencialismo na relação com as comunidades indígenas.

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4.1 O ENTERRO DA REFORMA AGRÁRIA EQUATORIANA: O processo de negociação

da “Lei de Desenvolvimento Agrário” em 1994

É talvez no processo de negociação aberto como consequência do levantamiento

indígena e camponês liderado pelo movimento indígena em junho de 1994 em oposição à

aprovação da “Ley de Desarrollo Agrario”, processo que levou à promulgação de uma lei de

"consenso", onde podemos situar uma primeira inflexão significativa na política do Estado em

relação aos indígenas. Inflexão esta que se traduziu no aprofundamento das políticas agrárias

neoliberais de uma parte e de outra na abertura do Estado para reconhecer a legitimidade da

participação de representantes indígenas na discussão das políticas e das leis e para aceitar

elementos do discurso indígena. Podemos também caracterizar esse momento como um ponto

de mutação do discurso das lideranças indígenas, até então profundamente enraizado nas

demandas agrárias (especialmente a luta pela terra) e que nessa direção vinculava

intrinsecamente conteúdos étnicos e de classe para começar a privilegiar a participação nas

entidades do Estado como parte da proposta de construção do Estado plurinacional.

No capítulo anterior mostramos a relevância das lutas pela terra e pela defesa dos

territórios indígenas na história e nos processos organizativos indígenas e para o processo da

reforma agrária. Também verificamos a importância atribuída à terra e aos territórios como

espaço de reprodução social e cultural nas comunidades indígenas e a centralidade que teve

essa reivindicação no levantamiento indígena de 1990, bem como nas posteriores negociações

com o Estado, nas quais se exigia a solução de mais de uma centena de conflitos de terra na

região Interandina represados no IERAC, além da demarcação de territórios para as

nacionalidades amazônicas.

Pois bem, até a finalização do governo Borja em 1992, houve avanços significativos

na demarcação dos territórios das nacionalidades indígenas e apesar da lentidão com que

continuaram os processos represados para a desapropriação de terras na Serra, grande parte

deles foram também resolvidos com a intervenção do IERAC e por meio da negociação direta

com os proprietários. Entre os mecanismos implantados para a resolução dos conflitos

destaca-se a criação de um fundo para a compra de terras, financiado por meio de uma

operação de troca da dívida externa. A gerência desse fundo foi responsabilidade do FEPP281

,

a maior ONGD vinculada a Igreja Católica. Essa modalidade282

, concretizada no governo

281

Fondo Ecuatoriano Populorum Progressio. 282

Essa operação financeira autorizada pelo governo Borja em setembro de 1990 consistiu na aquisição no

mercado internacional de títulos da dívida externa equatoriana ao 15,5% de seu valor nominal por parte do FEPP

(com o financiamento de várias Agências de Cooperação Internacional); o Estado equatoriano pagou essas

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Borja a partir de uma proposta da Igreja Católica que buscava financiar alguns de seus

programas sociais foi colocada pelo governo Borja nas negociações posteriores ao

levantamiento com as organizações indígenas como uma resposta concreta à demanda das

organizações indígenas para que o governo criasse um fundo para financiar as

desapropriações das terras283

. Por meio desse mecanismo constituiu-se um fundo de 10

milhões de dólares para financiar a compra de terras (6 milhões) e para apoio à produção

dessas terras (4 milhões) para as organizações camponesas e indígenas envolvidas. Esse

mecanismo contribuiu na resolução de vários dos conflitos de terra e em um período curto de

tempo (1990-1998) financiou a aquisição de 44.169 hectares para 7.952 famílias, quantidades

que correspondem ao 5,4% e 8,8% do total de hectares distribuídas para as famílias

envolvidas respectivamente em todo o processo de reforma agrária por mais de 30 anos

(CHIRIBOGA, et al, 1999, p. 101)284

.

De outro lado, no capítulo anterior também ressaltamos que o levantamiento indígena

de 1990 também ativou todos os alertas na burguesia agrária nucleada nas “Cámaras de

Agricultura”, a qual se preparou para levantar uma ofensiva que freasse a mobilização

indígena, garantisse segurança da propriedade fundiária e dos investimentos agropecuários,

terminasse com a reforma agrária e incidisse nas políticas agrárias para favorecer a agricultura

de exportação e as grandes empresas agroindustriais (especialmente nos setores de laticínios e

carne).

Assim, aproveitando uma conjuntura favorável com a posse do governo conservador

de Durán Ballén (1992-1996), os empresários agrícolas levantaram uma verdadeira campanha

voltada a aprofundar as reformas neoliberais, modificar a normativa jurídica para o campo

vigente até então e desacreditar à CONAIE e ao movimento indígena. A intencionalidade

principal concentrava-se em garantir a segurança jurídica em torno da questão fundiária e

evitar a expansão dos conflitos de terra, diante da força demonstrada pelo movimento

indígena no levantamiento de 1990. Para sustentar seus argumentos e incidir nas políticas

governamentais articularam a realização de uma série de estudos e consultorias sobre a

situação de setor agropecuário e as políticas agrárias, os quais foram auspiciados pela Agência

dos Estados Unidos para o desenvolvimento Internacional (USAID) e por organismos

multilaterais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Estes estudos

obrigações em títulos do Estado em sucres por um valor equivalente ao 70% de seu valor nominal para a criação

do fundo de terras (CHIRIBOGA, et al, 1999, p. 100). 283

Ortiz (1991); Chiriboga, et al (1999). 284

Uma sistematização da experiência do FEPP e do funcionamento do fundo de terras encontra-se em

Chiriboga, et al (1999). Para um balanço crítico da experiência do FEPP e do fundo de terras na Província de

Chimborazo, ver Bretón (2001).

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contaram com o suporte institucional do Instituto de Estrategias Agropecuarias (IDEA),

fundação vinculada às Cámaras de Agricultura, e do Ministerio de Agricultura y Ganadería

(MAG)285

.

A partir desses estudos e com uma participação direta de alguns empresários

relacionados com as Câmaras de Agricultura e a agroindústria na gestão do Ministério de

Agricultura no governo Sixto Durán Ballén286

, a pauta para a aplicação sistemática das

propostas neoliberais nas políticas agrárias ganhou fôlego e esse governo empreendeu com

múltiplas e ambiciosas reformas e mudanças baseadas nas premissas de liberalização

econômica e de redução do aparelho do Estado e seus âmbitos de intervenção. Este processo

de mudanças e transformações ilustra com clareza, de um lado, o papel do Estado para a

imposição do neoliberalismo, o qual precisa na sua construção e funcionamento da

intervenção política e da lei, e de outro lado, seus vínculos com as relações de classe nas

dinâmicas de desenvolvimento capitalista, para responder às necessidades concretas da lógica

de acumulação do capital, ambos os aspectos ressaltados no capítulo primeiro na discussão

sobre o neoliberalismo.

As reformas adotadas no governo Durán Ballén incluíram políticas macroeconômicas

para favorecer os investimentos e as exportações agrícolas, tais como a desvalorização do

sucre, a redução ou eliminação de tarifas alfandegárias, o ingresso do Equador na

Organização Mundial de Comércio (OMC) e a eliminação de entraves para investimentos

estrangeiros. O pacote de reformas incorporou também a privatização ou eliminação das

principais empresas públicas que operavam no setor agropecuário, a exemplo da Empresa de

Fertilizantes do Estado (FERTISA) e da Empresa Nacional de Abastecimento e

Comercialização (ENAC), e implicou o desentendimento do Estado como protagonista dos

processos de desenvolvimento rural, com a redução ou fechamento de vários programas. A

eliminação de subsídios aos produtos agropecuários e insumos agrícolas fez parte da política

de desregulação dos preços dos produtos agropecuários e da adoção de um sistema de preços

285

Os principais estudos realizados pela Fundação IDEA e seus consultores com uma clara orientação neoliberal

e com maior incidência na definição das políticas agrárias foram: Whitaker, Colyer e Alzamora (1990); Ricaurte

(1992); Camacho e Navas (1992); Whitaker (1996). Uma análise crítica das políticas agrárias neoliberais

sintetizadas no chamado relatório Whitaker (1996) encontra-se em Lefeber (2000). Para uma síntese dos

principais argumentos desses estudos e de sua incidência na conjuntura da promulgação da lei de

desenvolvimento agrário e na definição das políticas agrárias no governo Durán Ballén, ver Guerrero e Ospina

(2003); Larrea (1998a). 286

Durante o governo de Sixto Durán Ballén, o ministro de agricultura foi Mariano González, presidente da

diretoria da maior usina açucareira e de uma das maiores indústrias do papel do país, localizadas na Costa

equatoriana; a Secretaria Técnica e Administrativa do Ministério esteve sob a responsabilidade de Ignacio Pérez

Arteta diretamente vinculado às empresas produtoras e exportadoras de flores, que durante o governo Borja foi o

Presidente da “Cámara de Agricultura” da I zona (Serra Norte e Central).

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baseado no mercado (LARREA, 1998a). Vinculado ao anterior e enquadrada na política de

“liberalização dos mercados financeiros”, estabeleceram-se também mudanças nas políticas

financeiras do Estado em apoio à produção agropecuária, as quais implicaram a eliminação de

subsídios às taxas de juros e ocasionaram a descapitalização do Banco Nacional de Fomento

(BNF), o qual provocou uma redução significativa dos créditos orientados para pequenos e

médios produtores (GUERRERO e OSPINA, 2003). Além de tudo isso, avançou-se também

na transferência dos sistemas públicos de irrigação para associações privadas de usuários da

água e no estabelecimento de um sistema de pesquisa agropecuária sob o controle de

empresas privadas, transformando o principal centro de pesquisa do Estado, o Instituto

Nacional Autónomo de Investigaciones Agropecuarias (INIAP) em um sistema autônomo

com um papel fortemente vinculado às demandas de pesquisa das maiores empresas

agropecuárias.

No entanto, para a burguesia agrária, a cereja no topo do bolo das políticas neoliberais

constitui a reforma do quadro jurídico que pôs um fim à reforma agrária equatoriana por meio

da imposição da “Ley de Desarrollo Agrario”, lei que estabeleceu garantias e segurança para

a propriedade privada da terra, criminalizou as ocupações de terra e liberalizou o mercado de

terras por meio da redução de restrições para a divisão e venda de terras comunais e

cooperativas (descoletivização fundiária).

Em síntese, tratou-se de um conjunto de reformas e políticas encaminhadas na direção

de uma contrarreforma agrária com um conteúdo profundamente anticamponês que, ao

mesmo tempo em que promovia a agricultura de exportação, descuidava a produção para o

mercado interno e a segurança alimentar. Teve como foco apenas a agricultura capitalista e o

agronegócio, reforçando a distinção entre aqueles sujeitos produtivos privilegiados para os

quais se desenhavam as políticas agrárias (os empresários agrícolas e entre eles os

agroexportadores) para favorecer sua competitividade nos mercados externos com base nas

“vantagens competitivas”, obtidas graças à exploração dos ecossistemas naturais do país, e os

camponeses e indígenas para quem cabiam apenas as políticas sociais focalizadas para paliar

sua pobreza e os efeitos negativos das políticas de ajuste. Esta concepção das políticas

agrárias que desconhece as agriculturas camponesas e indígenas como sujeitos produtivos

(independentemente da quantidade de terras que controlam, da população envolvida e da sua

contribuição à segurança alimentar e ao emprego rural), desconsidera também a

heterogeneidade camponesa e indígena e a complexidade de suas estratégias produtivas, além

de descartar a necessidade de políticas agrárias diferenciadas “em função das condições

específicas das unidades familiares e das características diversas em âmbito microrregional”

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em termos demográficos, produtivos, ecológicos e culturais (CAMPANA e LARREA, 1988,

p. 201).

Após esta visão panorâmica do conjunto de reformas e políticas agrárias de corte

neoliberal assumidas pelo Estado no governo Durán Ballén, cuja transcendência persiste até o

momento atual, pelas múltiplas implicações para a nossa abordagem da relação Estado –

movimento indígena e da gestação da política de administração da população indígena,

retomo a discussão do processo político produzido entre 1992 e 1994, no que se refere à

formulação e a aprovação da “Lei de Desenvolvimento Agrário” e seu significado político

para o movimento indígena.

Como parte da ofensiva lançada pela burguesia agrária para mudar o quadro jurídico

no campo nesse período, em dezembro de 1992 as Câmaras de Agricultura apresentaram o

projeto de uma nova legislação agrária ao Congresso Nacional, ao tempo que difundiam

amplamente seus posicionamentos e argumentos na mídia nacional, para sua consideração e

aprovação. Esse projeto, auspiciado pelos empresários agrícolas e inspirado nas

recomendações dos estudos mencionados realizados pela Fundação IDEA, visava o termino

do processo de reforma agrária, a abertura de um livre mercado de terras, a divisão das terras

comunais, a gestão privada da água para irrigação; dava a terra um caráter meramente

comercial e de mercado e procurava enfraquecer o movimento indígena. Igualmente estava

orientado a favorecer os investimentos para a exportação de produtos agrícolas, descuidando

dos aspectos relacionados com a produção para o mercado interno.

Uma revisão das matérias da imprensa da época mostra o amplo destaque midiático

com o qual contaram os posicionamentos e abordagens esgrimidos pelas Câmaras de

Agricultura287

. Com base nos estudos acima mencionados, difundiam insólitos argumentos

tais como o de que com a reforma agrária, ao ter-se eliminado as formas de trabalho precário

e o huasipungo, deixou-se de produzir alimentos para os mercados e perdeu-se uma fonte de

emprego para os indígenas, os quais ficaram “abandonados à sua sorte”; que os verdadeiros

terratenientes (latifundiários) eram os indígenas, pois com a reforma agrária conseguiram

concentrar 75% das propriedades maiores de 100 hectares, terras que saíram da produção e

que isso tinha provocado a necessidade de importar alimentos (trigo, cevada, milho), situação

que iria causar em pouco tempo um problema alimentar no país.288

Do ponto de vista das

Câmaras, ao garantir a segurança na propriedade fundiária e da água e liberalizar os preços

dos produtos agropecuários, a nova legislação traria grandes benefícios para o setor

287

Kipu 20, Jan.-Jun 1993; Kipu 21, Jul.-Dez. 1993; Kipu, 22, Jan.-Jun. 1994. 288

Diario El Comercio, “El sí de los agricultores”, 01-Junho-1994.

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agropecuário e permitiria “terminar uma etapa de pobreza, violência, especulação e

imoralidade no uso da terra”289

.

Diante da ofensiva das Câmaras de Agricultura as organizações indígenas e

camponesas organizaram uma série de oficinas, seminários e fóruns de debate sobre as

possíveis consequências da lei “terrateniente”. Nessas discussões decidiram conformar

conjunturalmente uma instância de coordenação e de unidade de ação para enfrentar o

processo político relacionado às propostas para a nova legislação agrária, com o nome de

Coordinadora Nacional Agraria, enquanto frente camponês e indígena comum com a

participação das principais organizações nacionais e da Costa (CONAIE, FENOC-I, FEI,

FENACLE290

) e elaboraram uma proposta de lei alternativa das organizações, a qual foi

apresentada ao Congresso Nacional para discussão em junho de 1993, em um ambiente de

mobilizações camponesas e indígenas.

No entanto, apesar da pressão exercida pelas organizações indígenas e camponesas e

após de introduzir algumas mudanças na forma à proposta de lei das Câmaras de Agricultura,

o governo Durán Ballén apresentou ao Congresso em caráter de urgência o projeto de lei

agrária. O Congresso Nacional introduziu apressadamente algumas modificações à proposta

de lei apresentada pelo executivo que não alteravam seus conteúdos fundamentais e a lei foi

aprovada, com a consequente satisfação das Câmaras de Agricultura:

Hoje, acrescentou Enríquez291

o setor agropecuário tem confiança para trabalhar,

uma vez que a propriedade da terra é garantida. Estou certo de que haverá

investimentos importantes no campo e a agroindústria e as culturas de exportação

serão fortalecidas.

A lei é boa para o setor empresarial, para os trabalhadores agrícolas e para os

hacendados indígenas que sim, existem no país, ele observou.

Ele mostrou-se contrário aos levantamientos indígenas porque não conduzem a nada

e porque prejudicam os próprios camponeses que não poderão levar seus produtos

aos mercados. Eu acho que com o tempo os índios se acalmarão e a paz reinará

novamente.

[...] Enríquez assegurou que hoje os indígenas estão em melhor capacidade para

comprar terras e que os direitos dos camponeses serão respeitados292

.

A aprovação da lei motivou a resposta imediata das organizações camponesas e

indígenas agrupadas na Coordinadora Agraria. No dia seguinte à aprovação da lei, as

Províncias da Serra central e do sul amanheceram paralisadas; indígenas e camponeses

289

Diario El Comercio, “El sí de los agricultores”, 01-Junho-1994. 290

Federación Nacional de Campesinos Libres del Ecuador, hoje Federación Nacional de Trabajadores

Agroindustriales, Campesinos e indígenas libres del Ecuador. A FENACLE é uma organização sindical que

agrupa sindicatos de trabalhadores agrícolas dos agronegócios da Costa equatoriana (plantações de banana e

cana de açúcar principalmente) e de cooperativas camponesas da Costa. Foi criada em 1969. 291

Declarações de Alberto Enríquez Portilla, nesse momento presidente da Câmara de Agricultura da I zona. 292

Diario El Comercio, “Cámara de Agricultura satisfecha por aprobación”, 06-06-1994.

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ocuparam as principais rodovias para exigirem a derrogação da lei. A força e a dimensão das

ações de protesto tiveram o alcance de um novo levantamiento nacional, que paralisou o país

por cerca de dez dias com o desabastecimento dos mercados de várias cidades e alguns

incidentes de violência. O governo decretou o estado de emergência nacional para superar a

“comoção interna” provocada pelas comunidades indígenas.

Finalmente, diante da magnitude do protesto, o governo cedeu e aceitou a

conformação de uma comissão com os distintos agentes envolvidos, incluindo a participação

de representantes das organizações indígenas e camponesas nacionais, para a elaboração de

reformas de “consenso” da legislação aprovada pelo Congresso Nacional. Assim, essa

comissão foi constituída por representantes do Executivo e do Legislativo, das Câmaras de

Agricultura, da Igreja Católica e pelos representantes indígenas e camponeses. Após várias

semanas de trabalho e da superação de vários tropeços e entraves, a comissão negociadora

alcançou um “texto de consenso”, que foi enviado novamente pelo Executivo ao Congresso

Nacional para sua aprovação definitiva. Como resultado introduziram-se algumas

modificações na lei original aprovada, que não implicaram mudanças substanciais em seus

aspectos determinantes relativos ao término do processo de reforma agrária e das garantias em

torno da propriedade fundiária. Dessa maneira, em um dos artigos polêmicos referente às

causas para a desapropriação da terra, os representantes camponeses e indígenas conseguiram

introduzir a “pressão demográfica” que tinha sido usada pelas organizações e comunidades

para demandar a terra, mas nas negociações na comissão as Câmaras empresariais lograram

estabelecer um conjunto de limitações de fundo e entraves burocráticos a esta causa, que a

fizeram totalmente inaplicável na prática.

Nas negociações também foram incluídos alguns elementos declarativos nas

considerações preliminares e objetivos da lei referentes à “alimentação do povo equatoriano”,

à necessidade de “um ambiente de respeito aos valores culturais, históricos e sociais dos

diversos grupos humanos envolvidos na atividade agrária”, de “aperfeiçoamento da reforma

agrária”, de “reconhecimento ao indígena, montubio, afro-equatoriano e ao trabalhador do

campo”293

. Limitaram parcialmente as possibilidades de fracionamento das terras comunais

ao se estabelecer que elas pudessem ser divididas por meio da aprovação das duas terceiras

partes dos comuneros e barraram-se parcialmente algumas mudanças propostas na legislação

de águas vigente que promoviam sua franca privatização.

293

Ley Reformatoria a la Ley de Desarrollo Agrario, Suplemento No. 504 - Registro Oficial - Agosto 15, 1994.

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Após as negociações com a definição do texto de “consenso”, novamente as Câmaras

se declararam satisfeitas pela correção feita, “por meio do diálogo”, de alguns “erros” que a

referida lei continha. Desta vez, a diferença foi que os representantes indígenas e camponeses

também se mostraram satisfeitos com os resultados da negociação, ao serem introduzidas

reformas “fundamentais” ao texto da lei294

. Não obstante, como resumiu o próprio Presidente

Durán Ballén após das negociações: “essas apenas têm sido alterações de palavras, não do

fundo”295

.

Uma releitura do levantamiento de 1994 contra a lei agrária e o processo de

negociação posterior, à luz do acontecido nos anos seguintes no que diz respeito à relação

Estado - indígenas, permitem identificar nela alguns aspectos que teriam consequências

posteriores nas dinâmicas do movimento e para a geração da nova política de “administração

de populações” dirigida aos indígenas, situados desta vez na arena política nacional, por meio

de suas organizações como agentes com seus próprios discursos e reivindicações.

Em primeiro lugar, como aponta Guerrero (1995), este levantamento afirmou a

irrupção indígena “na esfera pública política com seus próprios representantes étnicos” e

impôs “a plena legitimidade de sua presença, discurso e lideranças” (GUERRERO, 1995, p.

114). Por meio das mobilizações indígenas, obrigou o governo e os representantes das

Câmaras de Agricultura a incorporar as lideranças indígenas na mesa das negociações para as

reformas da lei como ato público de reconhecimento da presença do novo agente político.

Confirmava-se assim, no campo político, a ruptura de uma formação de dominação que

tacitamente tinha delegado a “administração da população” indígena (os índios sujeitos) a

uma “periferia de poderes privados” nos “confins do público” sob a égide da cidadania

(GUERRERO, 1998; GUERRERO, 2010).

Não obstante, ao contrário do que constituíram as negociações após do levantamiento

de 1990 ou das mobilizações indígenas em 1992, nas quais o governo Borja negociou com os

representantes do movimento indígena em função de suas demandas e reivindicações

específicas (particularmente a solução aos conflitos fundiários na Serra e a demarcação e

entrega de territórios na região Amazônica), nesta ocasião o campo de forças esteve marcado

por uma legislação agrária já aprovada com um claro viés neoliberal e pelo predomínio das

posições das Câmaras de Agricultura e sua presença na mesa de negociação, ecoadas pelos

próprios delegados governamentais, alguns dos quais mantinham vínculos diretos com as

294

Diario El Comercio, “Diálogo con final feliz”, 15-07-1994. Ver também as declarações de Nina Pacari:

Diario El Comercio, 10-07-1994. 295

Diario El Comercio, “Las partes llegan a un acuerdo” 15-07-1994.

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Câmaras, como dito anteriormente. No contexto da política neoliberal no agro, a nova

legislação era crucial para a burguesia agrária e o governo Durán Ballén, para garantir a

segurança fundiária aos empresários agrícolas e enterrar definitivamente o processo de

reforma agrária e de redistribuição da terra. As alterações que os representantes indígenas

conseguiram obter nessa mesa de negociações não modificaram o sentido e os conteúdos

centrais da lei. Neste sentido, pode-se afirmar que o Estado inaugurava uma nova forma de

negociação com os indígenas, na qual, ao mesmo tempo em que incorporava e reconhecia os

representantes do movimento como interlocutores legítimos na discussão e negociação das

políticas impunha os limites de sua atuação, enquadrados na aplicação das políticas

neoliberais. Instaurava-se assim, uma estratégia de inclusão e participação indígena nos

assuntos do Estado sem modificar significativamente a orientação predominante das políticas

públicas296

; também se delineava assim a configuração aceitável pelo Estado do movimento

indígena em sua qualidade de novo sujeito político em sua dupla acepção: com capacidade de

agenciamento, mas sujeitado a moldura que a institucionalidade neoliberal precisava.

É possível destacar dois resultados políticos para o movimento indígena neste

processo: 1) com a nova legislação agrária vigente foram desativadas durante duas décadas as

demandas especificamente camponesas do movimento indígena nacional, deixando o espaço

aberto para a expansão do agronegócio e da agricultura capitalista, deslocando a luta pela terra

ou pela redistribuição das concessões de água ao terreno do impensável, do inominável no

campo político, do que esta fora de discussão297

; 2) consequentemente, nos anos seguintes, os

conteúdos e demandas classistas ligados à questão agrária, altamente questionadores das

desigualdades do capitalismo, e que se fusionavam com os conteúdos étnicos (afirmação

identitária e cultural, autonomia, autogoverno, autodeterminação) desapareceriam do discurso

político nacional da maioria das lideranças indígenas, que a partir de então priorizou a luta

pelo Estado plurinacional e por garantir a participação indígena nos organismos do Estado

(incluindo a participação eleitoral). Desde esse momento, se produz progressivamente uma

deriva etnoinstitucionalista esvaziada de conteúdos classistas na dinâmica do movimento que,

296

Cabe notar que o mecanismo de diálogo com as organizações indígenas quando suas mobilizações

alcançavam dimensões significativas (levantamientos) é retomado posteriormente pelos governos de Mahuad e

Noboa, nos levantamientos de 1999 e de 2001 contra as medidas de ajuste econômico decorrentes da crise, a

partir de uma lógica instrumental similar: negociar pequenas concessões possíveis, sem alterar o rumo das

políticas neoliberais vigentes. 297

Tomo aqui a referência de Bourdieu em relação àquilo que fica fora de discussão no campo político: “De fato,

a luta entre a ortodoxia e a heterodoxia cujo espaço de ocorrência é o campo político dissimula a oposição entre

o conjunto das teses políticas (ortodoxas ou heterodoxas), ou seja, o universo daquilo que pode ser aí enunciado

politicamente, e tudo o mais que fica fora da discussão (no campo), ou seja, fora da alça de mira do discurso e

que, estando relegado ao estado de doxa, acaba sendo admitido sem discussão nem exame, inclusive por aqueles

que se confrontam ao nível das escolhas políticas declaradas.” (BOURDIEU, 2008, p. 122).

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diferentemente do período anterior, o discurso das lideranças já não estabelece uma ligação

direta com as condições e a realidade camponesa de suas bases. Como apontaria alguns anos

mais tarde Luciano Martínez:

A verdade é que em 1994 concretizou-se a Lei de Desenvolvimento Agropecuário

(LDA), última lei conservadora sobre o agro equatoriano, que surpreendentemente

foi aceita sem maior crítica pelos intelectuais indígenas. Alguns autores inclusive

mencionam que a participação indígena na expedição dessa lei foi um avanço para o

movimento indígena em geral298

; pelo contrário, esse evento sinaliza a consolidação

de uma política de modernização capitalista no agro, na qual o movimento indígena

e as reivindicações dos pobres rurais ficaram de fora. É o enterro da reforma agrária,

e a abertura da modernidade sob o paradigma neoclássico: privatização, abertura

comercial indiscriminada, desregulação do mercado laboral; em outras palavras, a

finalização da pouca regulação que ainda podia exercer o Estado no setor rural

equatoriano.

[...] Desse modo, o triunfo do etnicismo provocou como contrapartida a ocultação do

problema da terra, num país no qual o mínimo que se pode dizer é que se encontrou

uma solução definitiva com a LDA, e onde a concentração da terra é uma das mais

altas de América Latina (MARTINEZ, 2005, p. 123-124).

Mas adiante, Martinez acrescenta:

[...] O que predominou no discurso da CONAIE tem sido o discurso etnicista, a

pluriculturalidade, a plurinacionalidade, enquanto deixava-se de lado a análise de

problemas estruturais que atingiam não apenas aos índios, mas também aos pobres

rurais, tais como a concentração da terra, a exploração à que são submetidos os

novos assalariados rurais e os efeitos negativos do minifúndio, por sinalizar alguns

(MARTINEZ, 2005, p. 130).

Este ponto de inflexão no caráter das demandas do movimento indígena provocado em

virtude do processo de aprovação da Lei de Desenvolvimento Agrário de 1994, também tem

sido reconhecido no trabalho de Guerrero e Ospina (2003). Não obstante, na interpretação

destes autores este giro representa apenas uma mudança de ênfase na estratégia do movimento

indígena, na qual as demandas de corte “camponês” foram absorvidas por demandas

nacionais, ao se concentrar a atuação do movimento na transformação das estruturas estatais

em andamento. Segundo esta interpretação, ao contrário da “setorização” implícita das

reivindicações especificamente agrárias, a afirmação étnica do movimento lhe outorgava uma

dimensão universal a suas demandas e lhe permitia abordar o conjunto de temas do

ordenamento social (GUERRERO e OSPINA, 2003, p. 15-16).

Do meu ponto de vista, o que aconteceu no movimento como consequência da

aprovação da legislação agrária e do término do processo de reforma agrária não foi uma

mudança de ênfase, senão o afastamento da temática agrária por mais de uma década (até o

ano 2006) por uma parte significativa das lideranças e da intelectualidade indígena. Como se

298

Luciano Martínez refere-se ao trabalho de Guerrero (1995), mencionado em linhas anteriores.

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discute mais adiante, esse abandono das lutas agrárias significou que os principais conteúdos

do discurso étnico que foi ganhando força progressivamente no interior do movimento se

centrassem especialmente na disputa por ampliar os espaços de participação institucional do

movimento no Estado, com o qual a afirmação da identidade étnica, nesse discurso, perdia

suas referencias camponesas e sua conexão com as condições de produção e reprodução das

bases do movimento (as comunidades). Este aspecto estabelece uma distinção substancial e

coloca as demandas étnicas num campo distinto, que podia ser mais facilmente processado

pelo Estado neoliberal, no âmbito de uma política neoindigenista, sem abordar os problemas

estruturais que determinam a desigualdade e a persistência da pobreza no campo299

.

Essa deriva para um posicionamento que privilegiava um discurso mais étnico

desvinculado da questão camponesa e da problemática agrária teve consequências na relação

entre as lideranças nacionais e as organizações de base do movimento, pois ao desconsiderar a

problemática agrária por parte das lideranças nacionais, os termos de sua relação com suas

bases ficaram subordinados primordialmente no terreno da obtenção de recursos e projetos

para o desenvolvimento rural, na geração de respaldo político nos processos de participação

nos espaços institucionais (participação eleitoral, relação com a institucionalidade indígena

estatal, etc.) e na busca de apoio em determinadas conjunturas para as mobilizações

encaminhadas a temas nacionais (rejeição das medidas econômicas dos governos Mahuad e

Noboa em 1999 e 2001, crise política no governo Bucaram e Mahuad em 1997 e 2000).

Apenas em 2006, nas mobilizações contra o Tratado de Livre Comércio com os Estados

Unidos, se retomaram com força as demandas relacionadas à problemática agrária diante dos

possíveis impactos que a assinatura desse Tratado tivesse provocado para a produção

camponesa. Isso aconteceu, no contexto da tentativa de recompor a relação com as

organizações de base pelas lideranças da CONAIE comandadas por Luis Macas, após as

dificuldades enfrentadas por esta organização como consequência da participação política no

governo de Lucio Gutierréz (2003-2005).

Embora a tendência descrita no discurso das lideranças indígenas foi particularmente

forte na CONAIE entre 1995 e 2005 também pode ser generalizada para o conjunto das

organizações nacionais do movimento indígena, refletindo seus posicionamentos em distintos

299

A persistência das desigualdades e da pobreza no campo através de múltiplos indicadores é constatada por

Larrea, et al (2013). A redução da pobreza produzida entre as estimações correspondentes para 1990, 2001 e

2010 tem sido maior nas áreas urbanas do que nas rurais. Nesses períodos, a brecha da pobreza rural - urbana

manteve-se quase inalterada com uma diferença de aproximadamente 30 pontos e em 2010 a pobreza rural

(59,8%) duplicou a urbana (29,0%). Este estudo mostra que as desigualdades se mantêm, atingindo

especialmente às mulheres e às populações indígenas e afroequatorianas, colocadas em situação de desvantagem

no que diz respeito aos indicadores de saúde (mortalidade e desnutrição crónica infantil), educação

(analfabetismo e escolaridades), moradia e emprego.

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momentos. De todo modo, entre as principais organizações é possível distinguir nuances

diferentes. No caso do processo vivenciado pela FENOCIN, por contar entre suas

organizações de base com Federações camponesas mestiças das três regiões do país, a virada

das lideranças para um discurso etnicista esvaziado de conteúdos classistas não foi tão

marcada, experimentando de todo jeito dificuldades no novo contexto para avançar nos

posicionamentos referentes aos temas agrários (terra, água, créditos para a produção, etc.).

Mesmo assim, no âmbito da adoção das políticas multiculturalistas pelo Estado, muitos dos

temas da pauta das organizações indígenas como a participação nas instituições do Estado e

nos projetos de desenvolvimento direcionados para os povos indígenas, envolveram

diretamente a FENOCIN que em termos de sua orientação política deixou de se definir como

“socialista”, para se reconhecer como “pluriétnica, intercultural, democrática”, por um

“desenvolvimento sustentável, equitativo, com enfoque de gênero e geracional” (FENOCIN,

1999, p. 65).

4.2 A PROPOSTA DO ESTADO PLURINACIONAL E A APROVAÇÃO DOS DIREITOS

COLETIVOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1998: A sedução do movimento indígena sob o

multiculturalismo na governamentalidade neoliberal

Como foi discutido no primeiro capítulo, deslocadas as demandas agrárias no discurso

das principais lideranças do movimento indígena criaram-se as condições para seu ingresso

dócil no terreno do multiculturalismo na governamentalidade neoliberal. Assim,

paradoxalmente, podemos identificar no reconhecimento constitucional dos direitos coletivos

dos povos indígenas, produzido em 1998 pela Asamblea Nacional Constituyente300

, de um

lado o giro multicultural dado pelo Estado equatoriano para o estabelecimento de concessões

no que diz respeito às demandas do movimento indígena, e de outro, um novo momento de

quebra dos conteúdos contestatórios do discurso indígena, articulados nesse momento na luta

por um Estado plurinacional. Nesta ocasião, com a participação de “representantes indígenas”

(eleitos por votação popular) o Estado equatoriano reconheceu uma ampla gama de direitos

coletivos dos povos e nacionalidades indígenas301

(ainda sem se declarar como um Estado

300

Igualmente ocorre com a ratificação do Convênio 169 da OIT pelo Congresso Nacional produzida no mesmo

ano. 301

Entre os direitos coletivos reconhecidos na Constituição de 1998 se destacam: a) a propriedade de terras

comunais com caráter inalienável, imprescritível, impenhorável e indivisível; b) o direito dos povos indígenas ao

uso, usufruto, administração e conservação dos recursos naturais em suas terras; c) os direitos de serem

consultados sobre os planos e programas de prospecção e exploração dos recursos não renováveis existentes em

suas terras, do acesso (na medida do possível) aos benefícios econômicos que deles resultarem e de receber uma

compensação pelos impactos socioambientais causados por eles; d) o direito de preservar e desenvolver suas

formas tradicionais de convivência social, organização, geração e exercício da autoridade; e) o direito de não ser

deslocados como povos de suas terras; f) a propriedade intelectual coletiva de seus conhecimentos ancestrais; g)

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plurinacional sob o argumento de que a sociedade equatoriana não estava preparada para

isso). Ainda que, o reconhecimento destes direitos possa ser interpretado como uma

importante conquista do movimento indígena em suas relações com o Estado, o qual implicou

“a redefinição da identidade nacional deslocando-a da ideologia da mestiçagem para o

paradigma da diversidade multicultural” (CERVONE, 2009, p. 200), o paradoxo se apresenta,

pois não tendo sido aprovada nenhuma legislação secundária, nem regulamentação que

permitisse que estes direitos pudessem ser aplicáveis em termos concretos, os mesmos ficam

confinados numa espécie de limbo jurídico302

.

Neste sentido, o processo equatoriano também se assemelha com o que aconteceu em

outros países latino-americanos, os quais incorporaram reformas constitucionais para

reconhecer a diversidade cultural de suas sociedades e estabeleceram direitos específicos para

os povos indígenas. Não obstante, o balanço que se faz no momento de verificar os resultados

desse reconhecimento, tanto no que diz respeito ao seu cumprimento, como no seu alcance

para a transformação das relações de opressão e dominação é claramente insatisfatório e

desalentador (BURGUETE, 2008). De uma parte, nas Constituições se enunciam direitos, mas

não tendo estes direitos um caráter vinculativo impede-se sua aplicação. Por outro lado, e aqui

está o problema maior, esse reconhecimento de direitos se faz acompanhado de políticas

neoliberais que atingem diretamente as condições de reprodução das comunidades e

favorecem as dinâmicas de acumulação capitalistas, a custa da exploração e da pobreza das

comunidades e da espoliação dos recursos de seus territórios, quando eles são de interesse

para o capital. Como coloca Bretón para o caso equatoriano:

A ratificação que a Constituição do Equador de 1998 faz dos direitos coletivos é

outro exemplo da etnofagia característica dos (enfraquecidos) estados latino-

americanos do fim do milênio: O que importa transigir sobre o papel para assumir a

natureza heterogênea do país se, em última instância, os mecanismos básicos de

acumulação são salvos e expeditos a par das reformas estruturais promovidas por

esse mesmo Estado, que além de isso se reconhece como democrático, participativo

e tolerante? (BRETÓN, 2001, p. 252).

ao acesso à educação de qualidade e a um sistema de educação intercultural bilíngue; h) o direito à prática

ancestral da medicina tradicional; i) de estabelecer as prioridades nos planos de desenvolvimento que lhes

envolvem; e j) de participação com representantes nos órgãos oficiais determinados por lei. A eles adiciona-se a

possibilidade de criação de circunscrições territoriais indígenas e afro-equatorianas, por meio da lei. Estes

direitos coletivos serão posteriormente ratificados e ampliados na Constituição de 2008, com a diferença de que

desta vez o Estado equatoriano se reconhece como um Estado plurinacional e intercultural. 302

Realizaram-se algumas tentativas para que a legislação secundária seja formulada e expedida para a aplicação

dos direitos coletivos. Dos distintos projetos apresentados no Congresso Nacional a maior parte foi arquivada e

um deles titulado “Ley de ejercicio de los derechos colectivos de los pueblos indígenas” foi vetado pelo

presidente Noboa (Chávez: 2009).

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Um exemplo da distância existente entre os direitos coletivos aprovados na Constituição

e suas possibilidades de aplicação concreta, pode ser ilustrado com a análise do que tem

acontecido com a possibilidade de criação das jurisdições territoriais indígenas e afro-

equatorianas, aberta pela Constituição de 1998 e ratificada na Constituição de 2008. Desde sua

aprovação, em 1998 até hoje não foi criada nenhuma jurisdição, na qual os povos e

nacionalidades indígenas pudessem exercer espaços reais de autodeterminação, autonomia e

autogoverno vinculados com sua territorialidade303

. Ainda que a criação de jurisdições

territoriais indígenas tivesse maior sentido e pudesse encontrar algum nível de aplicabilidade no

caso dos territórios de algumas nacionalidades amazônicas, enquadrada nos limites que

estabelece a Constituição (referidos à gestão de recursos naturais não renováveis que se mantêm

como competência exclusiva do Estado), no caso da região Interandina, os povos indígenas não

contam com espaços territoriais contínuos, pelo contrário, trata-se de espaços fragmentados com

uma composição multiétnica, profundamente permeados pelos processos de desenvolvimento

capitalista no campo, pelo qual a criação de jurisdições territoriais é inaplicável. Isso é

reconhecido pela liderança e intelectual indígena Nina Pacari, uma das impulsoras do

reconhecimento dos direitos coletivos na Constituição de 1998 em sua qualidade de asambleista

eleita, que afirma que nesses espaços “trata-se de um território pluricultural e de um exercício

de governo também pluricultural” no qual os processos de “tomada de decisões, pela via da

participação cidadã, encontram-se na população pluriétnica do território cantonal” (PACARI,

2002, p. 29). Isto é, cabe apenas uma gestão “pluricultural” enquadrada na estrutura

administrativa dada pelo próprio Estado.

Com isso, a retórica da reconstituição dos povos indígenas da Serra com base na

reconstrução de um passado que se remonta aos senhorios étnicos pré-coloniais, que tem

formado parte do discurso de afirmação étnica das lideranças nacionais da CONAIE, perde

força em relação às possibilidades de estabelecimento de jurisdições territoriais indígenas. Em

vez disso, podemos compreender melhor o sentido desses discursos quando os vinculamos a

estratégia de um setor das lideranças da CONAIE em alinhar o conjunto de federações de

comunidades locais e organizações de base para disputar os espaços da institucionalidade

pública indígena, abertos pelo Estado304

, com modalidades de representação estruturadas

303

Uma análise detalhada das tentativas frustradas de criação de jurisdições territoriais indígenas realizadas pelas

nacionalidades amazônicas já com a Constituição de 2008 e das dificuldades e entraves existentes na legislação

secundária encontra-se em Ortiz (2015). 304

Disputa que também teve suas expressões internas na CONAIE, nos conflitos suscitados entre os “povos

indígenas” da Serra e as nacionalidades amazônicas para alcançar um equilíbrio na estruturação da representação

dos distintos povos e nacionalidades na institucionalidade indígena estatal. Ver Guerrero e Ospina (2003, p.

137).

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segundo povos e nacionalidades, no contexto da adoção pelo Estado do multiculturalismo como

dispositivo da política de administração da população indígena da governamentalidade

neoliberal, ao tempo que se influenciava a práxis política das lideranças das organizações de

base nas províncias orientando-a para sua participação nos espaços institucionais e esvaziando-a

progressivamente de seus conteúdos camponeses.

Assim, a aprovação dos direitos coletivos na Constituição de 1998 e o

reconhecimento do Estado como plurinacional e intercultural na Constituição de 2008 se

enquadraram em um terreno marcado pelas limitações descritas nas possibilidades de criação

das circunscrições territoriais indígenas e de reconhecimento de direitos territoriais para as

nacionalidades e povos indígenas, tais como a negativa do Estado de incluir o consentimento

prévio na gestão de recursos naturais não renováveis existentes nesses territórios.

Concomitantemente essas limitações também influenciaram no que diz respeito à ambiguidade

e imprecisão das propostas impulsionadas pela CONAIE em torno dos conteúdos específicos

que devia adotar a plurinacionalidade305

para permitir concretizar os postulados de autonomia,

autodeterminação e autogoverno.

Por todas essas considerações, algumas autoras afirmam que a adoção de reformas

constitucionais enquadradas no reconhecimento da diversidade, que tem caracterizado o

multiculturalismo no neoliberalismo constituiu uma estratégia encaminhada para conter as

demandas indígenas (CERVONE, 2009, p. 209); um recurso usado “para domesticar a

diferença, operando como um mecanismo despolitizador das lutas autonômicas indígenas”

(BURGUETE, 2008, p. 23). Do meu ponto de vista, o debate e a adoção das reformas

constitucionais que reconheceram os direitos coletivos dos povos indígenas, sem abrir uma

possibilidade real de sua aplicação, provocou como efeito no campo de forças político, a

desativação do caráter interpelador diante do Estado e da sociedade nacional que tinha a

proposta de um Estado plurinacional com os elementos de autonomia, autodeterminação e

autogoverno dos povos e nacionalidades indígenas306

.

305

Na revisão das distintas propostas da CONAIE sobre a plurinacionalidade, Guerrero e Ospina apontam essa

ambiguidade expressa nas definições de nacionalidades, povos indígenas e territórios, sublinhando que “sem essa

clareza a proposta autonômica perde viabilidade jurídica” (GUERRERO e OSPINA, 2003, p. 138). 306

Uma abordagem sobre a complexidade do tema da autonomia dos povos indígenas encontra-se na perspectiva

de Diaz Polanco nos seguintes termos: “a autonomia se propõe como o exercício concreto do direito de livre

determinação. Ao mesmo tempo, no plano ideológico político, levanta-se um obstáculo formidável para a

realização desse direito. Referimo-nos ao reforço do pensamento liberal não pluralista e sua consequência

inevitável: a negação da autodeterminação como um atributo dos povos indígenas. Contudo, deve-se advertir que

esse liberalismo duro, que retorna agressivamente às velhas teses da doutrina, sem concessões, nem ‘correções’,

forma uma sólida unidade com seu contrário: o relativismo cultural absoluto, responsável por sua vez do

surgimento de essencialismos etnicistas. Liberalismo duro e relativismo absoluto funcionam como as duas caras

da mesma medalha [...]. Do lado liberal se consolidam as tendências que rejeitam a pluralidade como

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Desta vez, foram deslocados os conteúdos contestatórios da proposta da

plurinacionalidade presentes no discurso indígena apenas para um pequeno lugar na retórica

autojustificativa dentro da CONAIE, sem a força e capacidade questionadora dos fundamentos

da dominação étnica e social na sociedade e no Estado. Em uma entrevista realizada em 2005,

após do ápice alcançado nas políticas multiculturalistas com a participação indígena no governo

Gutiérrez, quando no interior da CONAIE ressoavam vozes críticas à forma como tinha sido

encarada pelo movimento a inclusão indígena nas entidades do Estado, Luis Macas ilustrava

com clareza aqueles conteúdos contestatórios da proposta da plurinacionalidade, os quais

estavam também expressos no projeto político da CONAIE de 1994, que foram substituídos a

partir de 1998 na prática política de grande parte das lideranças nacionais e provinciais do

movimento indígena:

¿Qué propugnamos al plantear en nuestro proyecto político la construcción de un

Estado plurinacional? Estamos diciendo que tengamos la posibilidad de ser

partícipes las diversas nacionalidades indígenas del país, más la sociedad nacional,

en la construcción política, en la construcción de un Estado que nos cobije a todos.

Porque desde el diseño del Estado uninacional, de este Estado cuyo modelo

capitalista de concentración de la riqueza en poquísimas manos, creo que es

absolutamente necesario que desde diferentes sectores culturales, identitarios,

políticos podamos converger en una agenda única nacional hacia la construcción

de este Estado plurinacional. Sí. Creo que hay que hacer una aclaración. Mucha

gente dice: “bueno, un Estado plurinacional pero un Estado dentro del sistema

capitalista”. Nuestro planteamiento tiene que tener un planteamiento

eminentemente político y desde una opción política. Nosotros queremos un Estado

plurinacional, socialmente libre, un Estado no dependiente del imperio, un Estado

socialista, comunitario. Hacia allá estamos empujando, no queremos decir que

vamos a hacer solo un pequeño arreglo de lo que ya está hecho, dentro del mismo

sistema establecer las mismas cosas. No, nosotros queremos un cambio de raíz. […]

La dimensión desde la concepción de identidades es absolutamente importante para

nosotros, nosotros no queremos perdernos en la homogeneidad. Nosotros queremos

seguir siendo lo que somos, mantener nuestras lenguas, aquí en el país hay 13

idiomas que hay que seguir hablando. Pero queremos que también nos entiendan

que estamos hablando en términos de otra dimensión, en la dimensión de la lucha

de clases (Entrevista Luis Macas, Maio 2005)307

.

fundamento do regime democrático por construir e se retorna com maior força às posições integracionistas a

partir do combate ao etnicismo equivocamente identificado com a proposta de autonomia e, por conseguinte, se

lhe reduz a uma saída apenas “para os índios” ou os grupos étnicos, que, supostamente pode ser alcançada sem

transformações substanciais do Estado – nação” (DÍAZ POLANCO, 1998, p. 2). Ver também Díaz Polanco

(2009, p. 29-33). 307

Entrevista realizada por Luis e Jorge Corral como parte de uma pesquisa sobre a experiência de participação

indígena na gestão de governos locais na Província de Cotopaxi (CORRAL J. e L. CORRAL, 2005). Tradução

nossa: “O que defendemos ao propor a construção de um Estado plurinacional em nosso projeto político?

Estamos dizendo que além da sociedade nacional, as diversas nacionalidades indígenas do país, possamos ter a

possibilidade de participar da construção política, da construção de um Estado que abrigue a todos. Porque, pelo

desenho do Estado uni-nacional, deste Estado capitalista de concentração da riqueza em pouquíssimas mãos,

penso que é absolutamente necessário que, a partir de diferentes setores culturais, identitários, políticos

possamos convergir em uma única agenda nacional para a construção desse Estado plurinacional. Sim. Acho que

se deve fazer um esclarecimento: muitas pessoas dizem: “Está bem, um Estado plurinacional, mas um Estado

dentro do sistema capitalista”. Nossa abordagem tem que ter uma posição eminentemente política e a partir de

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Como podemos apreciar nestas afirmações, originalmente na proposta da

plurinacionalidade, em seu discurso as lideranças da CONAIE combinavam elementos relativos

ao processo de afirmação identitária indígena orientados a favorecer mudanças no Estado que

abrissem canais para a participação indígena e o reconhecimento de direitos específicos, com

posições anticapitalistas orientadas para transformações estruturais e nas políticas do Estado

para quebrar com as desigualdades e a concentração da riqueza que provoca o capitalismo. Esta

combinação entre as demandas pelo reconhecimento da diferença diante da dominação étnica e

a luta por transformações estruturais contra a desigualdade social se diluirá progressivamente,

na medida em que a perspectiva de inclusão e participação institucional no Estado a partir da

afirmação étnica (neoindigenismo sustentado pelas próprias lideranças indígenas) irá ganhando

primazia dentro do movimento indígena. Em sintonia com as políticas multiculturalistas do

Estado, esta perspectiva também opera desarticulando, separando e isolando a afirmação

cultural das dimensões socioeconômicas que concomitantemente definem as condições de

dominação e exploração geradas no contexto do processo de desenvolvimento capitalista no

campo. Em consequência, nos anos seguintes, a proposta da plurinacionalidade perdeu parte de

seus conteúdos contestatórios ao passar para um segundo plano as reivindicações por

transformações estruturais e os posicionamentos indígenas se concentraram num âmbito mais

restrito, vinculado à abertura de canais institucionais de participação indígena na esfera do

aparelho do Estado.

No processo de aprovação dos direitos coletivos na Constituição de 1988 evidenciou-se

esse processo de persuasão do movimento por meio da desmontagem dos conteúdos

contestatórios do discurso indígena da CONAIE, quando se produz uma adequação sutil das

colocações dos representantes indígenas durante a Asamblea, ao assumir posições

“politicamente corretas”, em concordância com os ventos do multiculturalismo que já

ressoavam fortemente nos corredores da Asamblea e no campo político, como discurso

hegemônico tendente a estabelecer os termos em que o Estado podia assumir o

reconhecimento da diversidade. Portanto, em diferentes espaços os representantes indígenas

uma opção política. A gente quer um Estado plurinacional, socialmente livre, um estado não dependente do

império, um estado socialista e comunitário. Para lá, estamos impulsionando, não queremos dizer que vamos

fazer apenas um pequeno arranjo do que já foi feito, dentro do mesmo sistema para estabelecer as mesmas

coisas. Não, queremos uma mudança de raiz. [...]. A dimensão a partir da concepção das identidades é

absolutamente importante para a gente, não queremos nos perder na homogeneidade. Queremos continuar sendo

o que somos, manter nossos idiomas, aqui no país existem 13 idiomas que devemos continuar falando. Mas

também queremos que compreendam que estamos falando em termos de outra dimensão, na dimensão da luta de

classes.”

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colocaram com insistência que o que se procurava com o Estado plurinacional era “que a

sociedade mestiça respeitasse as manifestações culturais” dos povos indígenas e que não se

pretendia a criação de outro Estado dentro do Estado equatoriano308

. Procurava-se então,

incluir as reformas que contribuíssem para “respeitar as identidades, tradições, valores,

costumes e símbolos e promover as iniciativas e formas próprias de produção, organização e

convivência social das nacionalidades e povos indígenas” e também sua “participação no

sistema judicial e de administração pública”309

. A tendência de “culturalizar” as demandas tinha

se instalado nos posicionamentos dos representantes indígenas e em suas propostas de reforma à

Constituição. O dispositivo do multiculturalismo operava condicionando, disciplinando e

domesticando o discurso do próprio movimento. Dessa forma, o Estado equatoriano aceitava as

demandas indígenas e se alcançava a aprovação dos direitos coletivos nos termos em que foram

definidos na constituição de 1998.

Alguns anos mais tarde, em 2010, Luis Andrango, jovem liderança indígena que nesse

momento era presidente da FENOCIN e que em sua gestão impulsionou a retomada da pauta

agrária pelas organizações indígenas e camponesas, ao fazer uma leitura retrospectiva do

processo do movimento indígena a partir da segunda metade da década de 1990, sublinhava as

consequências políticas e organizativas para o conjunto do movimento dessa progressiva

adequação de suas posições para propiciar a participação de representantes indígenas nas

instituições do Estado, conforme a deriva multiculturalista em voga:

De ahí en adelante, nosotros vemos como que se va gestionando un discurso mucho

más moderado en relación a la lucha en general del movimiento indígena. Empiezan

a dejarse de lado los temas estructurales y se empieza a plantear una agenda

política vinculada a una reivindicación más desde lo étnico. Y ahí vemos que en

general el movimiento indígena empieza a dejar atrás la bandera de la lucha por la

tierra y a poner de cabeza de lucha el tema de la plurinacionalidad, por ejemplo.

Entonces para nosotros eso es un retroceso, una moderación del discurso al no

plantearse una agenda estructural, al plantear más una agenda vinculada a una

reivindicación de participación de los pueblos indígenas dentro del Estado. Esa ha

sido una de las diferencias dentro de las tendencias que hay al interior del

movimiento indígena. Una lógica que para nosotros busca, hemos llamado así, la

gestión de la multiculturalidad; como por ejemplo ha sido el ceder varios espacios

dentro del Estado a grupos del Movimiento Indígena, que terminaron de alguna

forma siendo los espacios de disputa dentro de las diferentes organizaciones y que

no terminaron resolviendo los problemas fundamentales de la gente. Entonces creo

que ha habido incluso en estos últimos años una disminución de la capacidad

organizativa por la influencia desde esta política estatal de vínculo con los

movimientos indígenas en general, al transformar al movimiento indígena y

campesino de un actor político sobre los temas estructurales a un actor más de

ayuda clientelar sobre la lógica diferente de las políticas focalizadas a los pueblos

indígenas, campesinos y negros en general. Y eso para nosotros lo que hizo en

realidad es en vez de fortalecer las organizaciones, irles debilitando y

308

Diario El Comercio, “Los indígenas no quieren otro Estado”, 10-03-1998. 309

Diario El Comercio, “CONAIE: Su plan de reforma en 12 puntos”, 12-06-98.

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transformando las lógicas de la organización que eran antes de lucha, de

reivindicación, en una política más de acceso a espacios de poder y a pequeños

proyectos relacionados a cuestiones concretas, más que a un proyecto político

nacional del movimiento (Entrevista Luis Andrango, 27 fevereiro 2010) 310

.

Desse jeito, com o giro assumido por um setor significativo de lideranças e intelectuais

indígenas, que a partir do discurso étnico priorizava a participação institucional dentro do

Estado e a consequente perda da articulação entre demandas associadas ao reconhecimento da

diferença e da diversidade cultural e as demandas associadas às transformações estruturais

relativas à igualdade e a distribuição da riqueza, a proposta da plurinacionalidade nas posições

do movimento indígena ficou presa na estreita faixa definida pela política de administração de

populações do Estado equatoriano. Isto é, o reconhecimento constitucional de uma série de

direitos coletivos de escassa aplicabilidade, a abertura de espaços institucionais para a

participação indígena no Estado, a atenção das demandas pontuais das comunidades por meio

de projetos de desenvolvimento e a incorporação de representantes indígenas na gestão pública.

Com a desmontagem dos conteúdos contestatórios produzida no discurso das lideranças

do movimento indígena, cabe perguntar quais foram os conteúdos que ficaram, isto é, se

reconfiguraram do discurso indígena para continuar sua atuação no campo político.

Enquadrados na reivindicação dos direitos indígenas e na afirmação étnica diante do mundo

branco-mestiço, aqui talvez emerjam três elementos chaves do discurso: o argumento da

diversidade para a participação indígena na gestão pública, a noção de interculturalidade e a

gestão dos governos locais e o desenvolvimento local, como âmbito privilegiado da atuação dos

representantes do movimento. Esses três elementos são altamente compatíveis com a política de

administração da população indígena impulsionada pelo Estado que reconhece e legitima a

participação de “representantes indígenas” nas entidades estatais, apoiada na ideia da “unidade

310

Entrevista Luis Andrango, 27 fevereiro 2010. Tradução nossa: A partir de então, vemos que um discurso

muito mais moderado vai-se gestando em relação à luta do movimento indígena. Deixam-se de lado as questões

estruturais e começa-se a propor uma pauta política ligada a uma reivindicação a partir do étnico. E aí vemos

que, em geral, o movimento indígena começa a deixar a bandeira da luta pela terra e a colocar a questão da

plurinacionalidade, por exemplo, como prioridade de luta. Então, para nós, isso é um retrocesso, uma moderação

do discurso para não considerar uma agenda estrutural, para levantar uma pauta mais ligada com uma demanda

de participação dos povos indígenas no Estado. Essa foi uma das diferenças entre as tendências que existem

dentro do movimento indígena. Uma lógica que, em nossa opinião, busca a gestão da multiculturalidade; temos

chamado assim; um exemplo disso foi ceder vários espaços dentro do Estado a grupos do movimento indígena,

que acabaram sendo, de algum modo, espaços de disputa entre as diferentes organizações e que não resolveram

os problemas fundamentais das pessoas. Então, eu acho que nos últimos anos houve uma diminuição da

capacidade organizacional devido à influência desta política estatal de vínculo com os movimentos indígenas em

geral, transformando o movimento indígena e camponês de um ator político em temáticas estruturais para um

ator mais de assistência clientelista, com a lógica diferente das políticas focalizadas para povos indígenas,

camponeses e negros em geral. E isso, para nós, o que realmente provocou foi o enfraquecimento, ao invés de

fortalecer as organizações e transformar as lógicas da organização que antes eram de luta, de reivindicação, em

uma política de acesso a espaços de poder e pequenos projetos relacionados a questões concretas, em vez de um

projeto político nacional do movimento.

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na diversidade”, na medida em que se adscrevam e sejam funcionais aos requerimentos atuais

do desenvolvimento capitalista e da governamentalidade neoliberal.

4.3 A INCORPORAÇÃO DE REPRESENTANTES INDÍGENAS NO ESTADO

NEOLIBERAL: A institucionalidade indígena no aparelho do estado e os projetos de

desenvolvimento indígena

Uma vez abordados esses dois momentos chaves no processo vivenciado pelo

movimento indígena na década de 1990, que foram determinantes para a articulação da

política de administração de populações no Estado neoliberal, ativando um conjunto de

mecanismos reguladores e dispositivos de poder enquadrados na perspectiva aberta pelo

multiculturalismo, os quais condicionaram e reconfiguraram o discurso indígena, agora

abordarei dois eixos adicionais articulados entre si que estruturaram e complementaram a

política de administração da população indígena, enquanto uma biopolítica: de um lado o

desdobramento de um neoindigenismo de Estado sustentado na criação de uma

institucionalidade especializada nos assuntos indígenas e de outro, a subordinação das

organizações indígenas (especialmente as instâncias intermediárias) aos discursos dominantes

e ao aparelho institucional do “desenvolvimento rural” (ONGD, Agências, projetos, etc.).

Ambos os eixos têm em comum a participação direta e ativa de representantes indígenas na

sua gestão. Trata-se, portanto, de um neoindigenismo agenciado pelos próprios representantes

indígenas e suas organizações.

A criação e a consolidação de uma institucionalidade indígena no Estado equatoriano

se produziram como uma resposta específica e uma concessão do Estado, com a finalidade de

atender e processar as reivindicações étnicas do movimento, abrindo espaços para a inclusão

de representantes indígenas em sua gestão. Acompanhou assim o processo de adoção

progressiva no aparelho do Estado do multiculturalismo no neoliberalismo em sua fase

“administrativa”, segundo a caracterização de Díaz Polanco discutida no capítulo primeiro.

O primeiro antecedente para abertura de espaços deste tipo corresponde à Dirección

Nacional de Educación Intercultural Bilingüe (DINEIB), a qual, como abordado no capítulo

segundo, foi constituída no governo Borja em 1988, por meio da assinatura de um convênio

com a CONAIE, no qual se articulava em um único sistema diversas experiências regionais

existentes de educação bilíngue, muitas delas geradas com a contribuição de distintos agentes

externos e as escolas com mais de 80% de crianças indígenas. Por meio deste convênio se

outorgou à CONAIE a prerrogativa de administração do sistema, incluindo a elaboração de

conteúdos curriculares e materiais didáticos, bem como a nomeação de professores em acordo

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com as comunidades. Esta prerrogativa será partilhada pelo Estado posteriormente com outras

organizações como a FEINE e a FENOCIN (MARTÍNEZ, 2009b).

Em um interessante trabalho sobre o funcionamento do sistema de educação

intercultural bilíngue no qual se incorpora informação etnográfica obtida diretamente nas

escolas anexadas ao sistema311

, Carmen Martínez (2009b) argumenta que, embora a educação

intercultural bilíngue permitisse as crianças indígenas “estudar num ambiente menos hostil” e

abrisse oportunidades de emprego para profissionais indígenas em um “mercado de trabalho

discriminatório", continuava a ser percebida, inclusive pelas lideranças indígenas, como uma

educação “de segunda classe” (MARTÍNEZ, 2009b, p. 181). O trabalho identifica alguns

problemas comuns a todo o sistema educacional nas áreas rurais do país; além disso,

reconhece os problemas orçamentários experimentados pela DINEIB, decorrentes dos

escassos recursos entregues à educação bilíngue pelos distintos governos. No entanto, além

desse fato, ao contrário do esperado o “Kichwa e outras línguas indígenas não

experimentaram o renascimento e o prestígio prometidos pelos promotores da educação

intercultural bilíngue”, uma vez que “toda a educação ocorre em espanhol” e que o idioma

nativo é apenas uma aula especial que normalmente ocorre por uma hora ou duas por semana

(MARTÍNEZ, 2009b, p. 183-184). Esta autora afirma ainda que a “burocratização e uma

mentalidade corporativa” determinaram que o sistema de educação bilíngue fosse percebido

“como uma forma de capturar as instituições do Estado para os interesses de um grupo”, sem

que se traduza num “sistema educativo alternativo nem na criação de novas pedagogias”

(MARTÍNEZ, 2009b, p. 191). Por tudo isso, conclui Martínez, “os indígenas têm mais

interesse na integração e na mobilidade social do que na segregação e na diferença cultural”

(MARTÍNEZ, 2009b, p. 192). Isso mostraria que o discurso da diferença cultural que sustenta

e ao qual respondem as políticas neoindigenistas de construção de uma institucionalização

estatal específica gerida por representantes indígenas é um meio que contribui mais para a

integração indígena no Estado do que para a reprodução da cultura na dinâmica das

comunidades.

A outra entidade de relevância criada na segunda metade da década de 1990 é o

CODENPE 312

(Consejo de Desarrollo de las Nacionalidades y Pueblos del Ecuador),

311

Informações referentes ao funcionamento do sistema até o ano 2008, anteriores às mudanças operadas pelo

governo Correa quando o sistema de educação intercultural bilíngue perdeu sua autonomia e deixou de ser

controlado e administrado pelas organizações indígenas. 312

Também na linha das instituições indígenas no Estado deve-se mencionar a Dirección de Salud Indígena

dependente do Ministerio de Salud.

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constituído em 1998 para substituir seu imediato antecessor o CONPLADEIN313

. Resultado

das negociações dos representantes indígenas no Congresso Nacional para apoiar a destituição

de Abdalá Bucaram e a posse de Alarcón como presidente interino em 1997 (Pacari, 2009), o

CODENPE, enquanto entidade pública constituiu-se por meio de uma representação direta das

nacionalidades e povos indígenas no Estado e estava encarregado da definição de políticas e da

planificação, execução e gerenciamento de recursos orientados para planos, programas e

projetos de desenvolvimento das nacionalidades e povos indígenas.

Dessa forma, são dois os traços principais que partilham as entidades estatais indígenas:

sua orientação específica para os povos e nacionalidades indígenas e a incorporação direta de

“representantes” nomeados pelas nacionalidades e povos indígenas na sua gestão. Dessa

maneira, estas entidades se instituíram como ponto fundamental de articulação do Estado e das

organizações indígenas em torno da proposta neoindigenista, compatível com o neoliberalismo.

Por tudo isso, Cervone (2009) afirma que estas instituições redefiniram a relação indígenas-

Estado “corporativizando o movimento indígena” e produzindo a incorporação da figura do

“índio permitido”314

enquanto “categoria aceita e aceitável” construída no neoliberalismo,

referindo-se àqueles representantes indígenas que atuam como executores diretos das políticas

neoindigenistas, as quais permitem e simultaneamente limitam “âmbitos e estratégias de

intervenção” (CERVONE, 2009, p. 208). Andrés Guerrero (2005), em uma linha similar de

reflexão vai mais além ao acrescentar como um elemento adicional que estas entidades também

mantêm e expandem redes clientelistas:

Desde antes de 1996, tem um “aparelho indigenista de Estado" que concentra em

uma instituição burocrática (o CODENPE) alguns vetores do jogo político e as

relações de poder do Estado e as populações indígenas em relação ao

desenvolvimento. Este aparelho destina-se concretamente a obter e distribuir fundos

nacionais e internacionais; definir e administrar os projetos e elaborar os discursos

oficiais subsequentes sobre a etnicidade e o desenvolvimento; negociar com as

instâncias do Estado e organismos internacionais; e algo muito importante que não

devemos esquecer: reproduzir-se como um corpo de intelectuais indígenas

burocratas que mantêm e expandem redes clientelistas (GUERRERO, 2005, p. 15-

16).

Por meio desta institucionalidade estatal específica produziu-se a conexão e confluência

entre o campo político e o aparelho institucional do desenvolvimento rural, nas relações do

Estado com o movimento indígena. Particularmente o CODENPE teve um papel fundamental

313

Consejo de Planificación y Desarrollo de los Pueblos Indígenas y Negros, criado em 1997 durante o governo

interino de Alarcón. Essas entidades, por sua vez, substituíram ao Ministerio de Asuntos Indígenas de curta

duração criado no governo Bucaram em 1996 e à Secretaría de Asuntos Indígenas no governo de Sixto Durán

Ballén. 314

Refere-se à figura desenvolvida por Hale (2002; 2005) mencionada no capítulo primeiro.

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como suporte institucional para a geração de projetos de desenvolvimento adscritos a esta

entidade, encaminhados para as nacionalidades e povos indígenas (a exemplo dos projetos

PRODEPINE, PRODECO, FORMIA, FODEPI315

), financiados por organismos multilaterais e

pela Cooperação Internacional, os quais incorporam do mesmo jeito a participação de uma nova

geração de representantes, intelectuais e técnicos indígenas em qualidade de funcionários. Esses

projetos, centrados nos elementos discursivos dominantes e nos temas em voga do aparelho

institucional do desenvolvimento rural (capital social, desenvolvimento sustentável, gênero,

descentralização, etc.) fomentaram processos de participação e de gestão direta das instâncias

organizativas intermediárias do movimento indígena, as federações de comunidades

denominadas Organizações de Segundo Grado (OSG), subordinando sua existência e finalidade

aos projetos de desenvolvimento316

.

Com efeito, Bretón no seu estudo sobre o PRODEPINE, projeto “vitrine” promovido e

financiado pelo Banco Mundial, orientado para essas federações indígenas intermediárias

(OSG), argumenta que “a experiência PRODEPINE corre a par da desestatização através da

privatização neoliberal; aparece como uma peça-chave da política social alternativa respeitosa

das demandas étnicas – especialmente as compatíveis com o viés projetista – orientada

teoricamente a encorajar a participação popular” (BRETÓN, 2005, p. 67). Dessa forma, as

próprias diretrizes do Banco Mundial em relação aos povos indígenas estão alinhadas com a

adoção do multiculturalismo no neoliberalismo, como uma estratégia mais ampla, convergindo

nesta perspectiva com as políticas do Estado equatoriano, incluída a construção de uma

institucionalidade indígena estatal para a gestão da diversidade a partir de projetos de

desenvolvimento. De fato, esses projetos não tocaram as determinações estruturais que marcam

a desigualdade e a dominação das populações indígenas, nem o padrão de acumulação e

desenvolvimento capitalista no campo. Pelo contrário, inscreveram-se nas políticas de

focalização da pobreza características no neoliberalismo, na perspectiva de aliviar os impactos

gerados pela orientação das políticas agrárias que auspiciavam a produção empresarial para

exportação e o enfraquecimento da produção camponesa para o mercado interno. Igualmente

procuravam reduzir as tensões com os grupos sociais organizados, particularmente com o

movimento indígena e camponês. Mais uma vez encontramos a culturalização das diferenças e

das demandas indígenas que separa e isola um aspecto da realidade das comunidades dos

315

Proyecto de Desarrollo de los Pueblos Indígenas y Negros del Ecuador, Proyecto de Desarrollo Rural en la

Provincia de Cotopaxi, Proyecto de Apoyo al Fortalecimiento de los Municipios Alternativos, Fondo de

Desarrollo de los Pueblos Indígenas, respectivamente. 316

Ver Bretón (2001; 2005; 2009)

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processos de expansão capitalista no campo, para a definição do caráter das iniciativas de

desenvolvimento.

Como afirma Bretón (2009), no caso do Equador o PRODEPINE inseriu-se nessa

estratégia mais ampla do multiculturalismo no neoliberalismo – como modo de resposta à

ameaça representada pelos povos indígenas – contribuindo para aprofundar uma “via

assistencial (projetista) de intervenção sobre as comunidades”, que foi dominante nas últimas

décadas no aparelho do desenvolvimento rural (BRETÓN, 2009, 99-100), com a novidade de

escorar uma relação direta através das estruturas intermediárias do aparelho organizacional

indígena (as Organizações do Segundo Grau). Bretón sublinha ainda quatro grandes linhas de

interpretação do significado real que teve a intervenção do PRODEPINE: a) “Ele teve mais de

continuísta do que inovador”; b) não se questionou sobre “a qualidade do capital social

induzido”; c) “sua execução contribuiu para aprofundar a divisão e fragmentação do

campesinato andino com base em critérios identitários”; e d) “provou ser uma eficaz correia de

transmissão do projetismo, com as limitações e sombras que isso envolve em termos sociais e

políticos” (BRETÓN, 2009, p. 100).

De outro lado, a gestão das instituições indígenas dentro do Estado, foi concebida pelas

lideranças indígenas como uma conquista e um direito adquirido, na perspectiva de desenvolver

“espaços próprios” no Estado. Lourdes Tibán317

enfatizava em 2005 a importância das

“instituições públicas próprias” para fortalecer o processo do movimento indígena, nas quais

“por direito poderíamos participar” para ir concretizando “a institucionalidade da participação

indígena de dentro” do Estado318

. Anos mais tarde, a própria Lourdes Tibán reconhece que o

processo de criação da institucionalidade estatal indígena “no fue lo ideal porque también se

convirtieron [en instituciones] tipo cápsulas para los indígenas: Educación Bilingüe para los

indios, CODENPE para los indios, Salud Indígena para los indios y de ahí no ha pasado

[...]319

”.

Por meio das entidades estatais indígenas se canalizou assim a incorporação de

funcionários e intelectuais indígenas vinculados às organizações na lógica do Estado neoliberal.

Estes funcionários, por sua vez, passaram a defender dita institucionalidade e reproduziram

317

Liderança indígena da Província de Cotopaxi que desempenhou vários cargos em distintos momentos no

Estado. Ocupou a Subsecretaria de Desarrollo Rural do Ministerio de Bienestar Social, a Secretaría Ejecutiva

do CODENPE e foi Asambleísta pelo movimento Pachakutik. 318

Entrevista Lourdes Tibán, Abril 2005. Entrevista realizada por Luis e Jorge Corral como parte de uma

pesquisa sobre a experiência de participação indígena na gestão de governos locais na Província de Cotopaxi

(CORRAL J. e L. CORRAL, 2005). 319

Entrevista Lourdes Tibán, 22 Janeiro, 2015. Tradução nossa: “não foi o ideal porque também se converteram

em [instituições] tipo cápsulas para os indígenas: Educação Bilíngue para os índios, CODENPE para os índios,

Saúde Indígena para os índios e daí não passou”.

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numa dinâmica instrumental o “projetismo” e a perspectiva das políticas multiculturalistas para

a população indígena, provocando a “estatização” do movimento e uma perda de sua autonomia

(AYALA, 2005, p. 24).

Essa dinâmica etnoinstitucionalista, decorrente da criação das instituições e projetos do

Estado especificamente direcionados para as nacionalidades e povos indígenas, se converterá na

dinâmica dominante em todas as expressões organizativas nacionais do movimento indígena no

final da década de 1990 e na primeira metade da década de 2000 e atravessará as instâncias

intermediárias de atuação local ou provincial do movimento, nas três regiões do Equador

continental.

No caso da região amazônica, essa dinâmica se acentuou com a presença das petroleiras

como resultado da política do Estado de ampliação da fronteira extrativa de petróleo, por meio

da qual o Estado concessionou vários “blocos” (espaços do território) a empresas transnacionais

para a extração petrolífera, alguns deles localizados em territórios indígenas. Isso desencadeou

uma crise na CONFENIAE a partir de 1996 e seu fraccionamento interno provocado pela

assinatura das lideranças indígenas de polêmicos convênios com várias empresas petroleiras e o

Estado, os quais envolviam a CONFENIAE na exploração de gás e implicavam que esta

organização facilitasse o consentimento das organizações de base diante novas concessões

petroleiras (ORTIZ, 2012, p. 320). Divisões na organização e uma crise similar se evidenciaram

também na OPIP entre os grupos que defendiam uma gestão territorial própria baseada nos

“sistemas de vida dos povos da floresta” e os grupos que procuravam um acordo com o Estado e

as empresas petrolíferas para obter algumas vantagens econômicas da exploração petroleira nos

seus territórios. Esta situação só será resolvida em 2010 quando se produz uma reestruturação

geral da organização (ORTIZ, 2012, p. 321-323).

Apesar da primazia e influência que ganhou esta tendência etnoinstitucionalista em

todas as expressões organizativas do movimento indígena, com o tempo e na medida em que as

aspirações de transformação social e do Estado que tinham impulsionado o movimento perdiam

vigência, algumas vozes críticas começaram a ressoar para sublinhar as consequências políticas

e organizativas para o movimento, decorrentes da orientação dominante de gestão da

institucionalidade indígena no Estado. Já em 2005, Luis Macas refletia sobre o processo político

do movimento e as expectativas frustradas no que diz respeito à participação política indígena

nas instituições do Estado:

Cuando en 1988 creamos la Dirección de Educación Intercultural Bilingüe, dijimos:

primero, con esta Dirección los objetivos fundamentales son cambiar la calidad

educativa, desde nuestros contenidos, desde nuestra metodología. Segundo, el

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fortalecimiento político de nuestra organización, vamos a empujar desde ahí para

que nuestras organizaciones sean cada más fuertes. Tercero, la identidad.

Decíamos desde ahí que vamos a tener verdaderos soldados en cada comunidad, un

ejército de soldados porque si trabajamos en esto de la educación bilingüe esto nos

va a fortalecer.

Al hablar de la participación política en 1996 que tuvimos 5 diputados, 10

diputados, decíamos esto va a ir creciendo, va a ser una fuerza imparable. Las

expectativas nuestras eran que íbamos a crecer cuantitativa y cualitativamente.

Políticamente hablando, nuestras propuestas no están tan separadas, tan aisladas

del resto de la sociedad nacional. Nuestro proyecto político es construir un estado

plurinacional, obviamente reconociendo la lucha general de nuestro pueblo, no

solamente desde el movimiento indígena. Entonces nosotros con eso decíamos “de

aquí a 10 años podemos tener un gobierno revolucionario que pueda cambiar

todo”. Pero no fue así, las expectativas nuestras con educación, con el asunto del

Consejo de Desarrollo que eran políticas de desarrollo para los pueblos indígenas,

creímos que tendríamos luz verde para hacer lo que sea. Con la Dirección Nacional

de Salud Indígena que se creó recientemente creíamos también que se iba a parar

todo lo que tiene que ver con las transnacionales farmacéuticas, etc. Digo todo esto,

porque yo creo que desde esos espacios, hasta el momento actual no tenemos con

claridad los resultados positivos que hayan arrojado para el movimiento indígena.

Pero lo principal, lo importante es que ni siquiera se ha hecho una evaluación del

proceso, no hemos medido, no hemos sabido ni siquiera reflexionar sobre lo que

estamos haciendo, si es válido, si no es válido. Creo que es una frustración. Creo

que las cosas nos van ganando terreno, el tiempo sobre todo. No se ha podido

articular realmente todas esas fuerzas, esas dinámicas que tenemos al interior del

movimiento indígena.

Si hacemos una valoración de estos espacios, fundamentalmente yo diría el espacio

político que el movimiento indígena ha logrado tener en el contexto nacional, creo

que ha concentrado toda la atención del movimiento indígena […] Al menos esa es

mi apreciación, que la institucionalización, la institucionalidad lo que ha hecho es

atrapar al movimiento indígena, distraer de su agenda, de su dinámica, de su acción

propia. Y en vez de dar una respuesta clara desde la institucionalidad, lo que se ha

hecho es burocratizarse, funcionalizarse en cada uno de estos espacios y no

responder a las expectativas y sobre todo a los objetivos que tiene el movimiento

indígena y el pueblo ecuatoriano en general (Entrevista Luis Macas, Maio 2005).320

320

Entrevista realizada por Luis e Jorge Corral como parte de uma pesquisa sobre a experiência de participação

indígena na gestão de governos locais na Província de Cotopaxi. Tradução nossa: “Quando em 1988 criamos a

Dirección de Educación Intercultural Bilingüe, dissemos: primeiro, com essa Direção, os objetivos fundamentais

são mudar a qualidade da educação, a partir de nossos conteúdos, a partir de nossa metodologia. Em segundo

lugar, o fortalecimento político da nossa organização, vamos impulsionar a partir daí para que nossas

organizações sejam mais fortes. Em terceiro lugar, a identidade. Dizíamos: a partir daí teremos verdadeiros

soldados em cada comunidade, um exército de soldados, porque se trabalharmos nessa educação bilíngue, isso

nos fortalecerá.

Ao falar em 1996 sobre a participação política, quando tivemos 5 deputados, 10 deputados, dissemos: isso vai

crescer, será uma força imparável. Nossas expectativas eram que iríamos crescer quantitativa e qualitativamente.

Politicamente falando, nossas propostas não estão tão separadas, tão isoladas do resto da sociedade nacional.

Nosso projeto político é construir um estado plurinacional, obviamente reconhecendo a luta geral de nosso povo,

não só do movimento indígena. Então, com isso, dissemos: “em 10 anos podemos ter um governo revolucionário

que possa mudar tudo”. Mas não foi assim, nossas expectativas com a educação, com a questão do Consejo de

Desarrollo [CODENPE] que eram políticas de desenvolvimento para os povos indígenas, acreditávamos que

teríamos a luz verde para fazer o que fosse necessário. Com a Dirección Nacional de Salud Indígena que foi

criada recentemente, também acreditamos que se podia barrar tudo o que tem a ver com as transnacionais

farmacêuticas, etc. Eu digo tudo isso, porque acredito que, a partir desses espaços, até o momento atual, não

temos clareza dos resultados positivos que foram alcançados para o movimento indígena.

Mas o principal, o importante é que nem sequer se fez uma avaliação do processo, não medimos, não soubemos

nem sequer refletir sobre o que estamos fazendo, se for válido, se não for válido. Eu acho que é uma frustração.

Eu acho que as coisas nos vão ganhando terreno, o tempo especialmente. Não foi possível articular realmente

todas essas forças, aquelas dinâmicas que temos no movimento indígena.

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Um momento interessante de confronto das distintas tendências na CONAIE no que diz

respeito à institucionalidade indígena aconteceu em junho de 2005, durante uma assembleia

desta organização, na qual se discutiu a posição da CONAIE sobre a possibilidade de

continuidade do projeto PRODEPINE, por meio de uma renovação do empréstimo do Banco

Mundial para uma segunda fase desse projeto. Como mencionado, nesse momento a CONAIE

vivenciava um processo de recomposição interna sob a liderança de Luis Macas como seu

presidente, após do governo de Gutiérrez (2003-2005). Ao ser a maior organização indígena

nacional o posicionamento da CONAIE era decisivo para a continuidade do PRODEPINE.

Nessa assembleia confrontaram-se as distintas posições sobre o significado deste projeto. Diante

da perspectiva crítica ao PRODEPINE liderada por Luis Macas, a tendência institucionalista

representada na figura de Lourdes Tibán, nesse momento, Secretaria Executiva do CODENPE,

defendia a continuidade do PRODEPINE para uma segunda fase com recursos de dívida

externa fornecidos pelo Banco Mundial, com o argumento que os indígenas também tinham

direito a se beneficiar de alguma forma dos recursos da dívida externa, tradicionalmente

direcionados para outros setores da sociedade. Finalmente, após uma estreita votação a

CONAIE decidiu solicitar ao Estado equatoriano por meio do CODENPE que não renove o

empréstimo do Banco Mundial, pelo qual não houve uma segunda fase do projeto

PRODEPINE.

A partir de outra expressão organizativa nacional, mas também com uma perspectiva

crítica similar, Luis Andrango, ex-presidente da FENOCIN, referindo-se ao papel

desempenhado pelas instituições indígenas no Estado em relação às dinâmicas organizativas do

movimento afirmava:

El efecto en las organizaciones ha sido totalmente negativo, ese para mí ha sido un

mecanismo de cooptación de las organizaciones, incluso de división del movimiento

indígena por captar esos espacios, que si uno mira son espacios minúsculos dentro

del gran Estado que tenemos. Creo que ha habido también en todos estos espacios

una visión de minimizar la participación indígena a la creación de instancias

específicas para estos sectores. Por ejemplo el CODENPE tenía el reto de hacer

políticas generales, las políticas estatales sobre pueblos indígenas y terminó siendo

más un proyecto de ejecución de varias líneas de infraestructura, de fortalecimiento

a los pueblos indígenas y terminamos durante largos años sacrificando esa enorme

posibilidad de plantear una re-estructura en general dentro del Estado. Creo que

ahí ha habido una equivocación del movimiento indígena al considerar que eso ya

es una conquista y de aferrarnos incluso en la actualidad a la defensa de estas

Se fizermos uma avaliação desses espaços, basicamente, eu diria o espaço político que o movimento indígena

conseguiu ter no contexto nacional, acho que concentrou toda a atenção do movimento indígena. [...] Pelo menos

essa é minha avaliação, que a institucionalização, a institucionalidade fez foi atrapalhar o movimento indígena,

distrair de sua pauta, de sua dinâmica, de sua ação própria. E em vez de dar uma resposta clara a partir da

institucionalidade, o que foi feito foi burocratizar, funcionalizar em cada um desses espaços e não responder as

expectativas e especialmente aos objetivos que tem o movimento indígena e o povo equatoriano em geral”.

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191

instituciones como parte de una conquista del movimiento indígena (Entrevista Luis

Andrango, 27-02-2010)321

.

As observações de Luis Macas e Luis Andrango evidenciam a forma como a

participação de lideranças indígenas na esfera institucional do Estado marcou o rumo do

movimento durante vários anos, fortalecendo uma tendência que se adequou à dinâmica

institucional e que ganhou protagonismo e predomínio nas organizações indígenas. Anos mais

tarde, o próprio Luis Macas, diante da perspectiva sustentada pela que ele chama de tendência

“histórica” ainda existente no movimento que visava à transformação social e “dessa estrutura

colonial que é o Estado”, contrastava a prática política imposta no movimento pela tendência

institucionalista que para ele significou “o acomodamento dos indígenas no sistema, a

incorporação dos povos indígenas, das nacionalidades, dos montubios, dos negros, ao Estado tal

como ele é, e ponto final” 322

. Dessa maneira, a participação no Estado converteu-se num fim

em si mesmo enquanto espaço a ser ocupado, sem questionar ou impulsionar transformações de

fundo na estrutura e atuação do Estado como um todo ou pelos menos nessas entidades. Pelo

contrário, subordinou as dinâmicas do movimento à lógica implícita nos discursos institucionais

e deslocou gradualmente as proposições daqueles que podiam perfilar uma perspectiva política

distinta, que condicionavam a participação na esfera institucional a um processo mais amplo de

luta por transformações sociais no Estado neoliberal.

De outro lado, um elemento complementar a considerar nesta discussão se refere ao

papel desempenhado pelos projetos de desenvolvimento rural, as agências de Cooperação

Internacional e as Organizações Não Governamentais de desenvolvimento (ONGD), na sua

confluência com as entidades do Estado e os organismos multilaterais para a configuração da

política de administração da população indígena, enquanto política coadjuvante para a

construção da hegemonia. No capítulo primeiro, ao destacar as contribuições das pesquisas de

Bretón relacionadas às dinâmicas das organizações indígenas locais e o desenvolvimento rural,

sublinhamos o papel do aparelho institucional do desenvolvimento na fase neoliberal, com a

proliferação de projetos e ONGDs na esfera local, as quais se adequaram às prioridades

321

Tradução nossa: “O efeito sobre as organizações tem sido totalmente negativo, esse, para mim, tem sido um

mecanismo de cooptação das organizações, inclusive de divisão do movimento indígena para captar esses

espaços, que se olharmos são pequenos espaços dentro do grande Estado que temos. Creio que também houve

em todos esses espaços uma visão de reduzir a participação indígena à criação de instâncias específicas para

esses setores. Por exemplo, o CODENPE teve o desafio de fazer políticas gerais, as políticas estatais para os

povos indígenas e acabou sendo mais um projeto de execução para várias linhas de infraestrutura, fortalecendo

os povos indígenas e terminamos por muitos anos sacrificando essa enorme possibilidade de alcançar uma

reestruturação em geral dentro do Estado. Acredito que houve um erro do movimento indígena em considerar

que isso já é uma conquista e de nos aferrar ainda hoje para a defesa dessas instituições como parte de uma

conquista do movimento indígena”. 322

Entrevista Luis Macas, 6 Maio 2014.

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neoliberais e atuaram como correias de transmissão dos discursos dominantes no mundo do

desenvolvimento rural, gerados pelos organismos multilaterais e a cooperação internacional.

Nas comunidades indígenas, a intervenção do aparelho institucional do desenvolvimento

rural como um todo (e aqui apelamos à noção de Estado ampliado de Gramsci) desempenhou

assim um papel crucial para a subordinação das organizações indígenas (do âmbito local até o

nacional) a esses discursos dominantes, facilitando sua incorporação à logica multiculturalista

no neoliberalismo, por meio da “etnificação do desenvolvimento rural” e o deslocamento de

perspectivas questionadoras das dinâmicas de acumulação capitalista no campo (BRETON,

2009, p. 94). Soma-se a isso, como temos observado em reiteradas ocasiões nas diversas

regiões do país, que o aparelho institucional do desenvolvimento rural além de não se

questionar em torno dos mecanismos de acumulação e exploração capitalista, em sintonia com

as políticas agrárias neoliberais, frequentemente promove a integração subordinada (integração

vertical na abordagem das cadeias produtivas) das economias camponesas e indígenas nas

cadeias produtivas controladas pelas empresas agroexportadoras e agroindustriais, em

condições de exploração, ora como fornecedores de mão de obra barata (na medida em que boa

parte da reprodução familiar continua dependendo da unidade produtiva camponesa), ora como

abastecedores de matérias primas baratas (RUBIO, CAMPANA e LARREA, 2008).

Nesta linha de interpretação gostaria de sublinhar alguns elementos característicos

gerais da atuação das ONGD e das entidades de desenvolvimento rural do Estado (a partir desse

deslocamento das preocupações sobre os fatores estruturais geradores da desigualdade e da

pobreza no campo) que permitem caracterizar o aparelho institucional do desenvolvimento

como um dispositivo de poder/saber323

, o qual formou parte da política neoindigenista como

uma biopolítica, nos termos discutidos no capítulo primeiro, direcionada para a administração

“com sutileza” e “em detalhe” (como diz Foucault ) da população indígena. Assim, é muito

comum no campo do desenvolvimento a primazia de uma concepção linear dos processos

sociais em que através da ação institucional, fundamentalmente técnica, se produz a passagem

de uma situação problemática (carências ou necessidades da população, pobreza, desequilíbrios

ambientais, desnutrição, etc.) para uma situação melhorada (redução da pobreza,

sustentabilidade ambiental, relações de gênero mais equitativas, etc.). Nos discursos

dominantes do aparelho institucional do desenvolvimento que legitimam sua própria existência,

323

Retomo aqui a abordagem desenvolvida por Escobar para quem, seguindo Foucault, o dispositivo

institucional do desenvolvimento atua como um aparelho eficiente de poder e como uma tecnologia política de

disciplinamento social, através do qual se exerce controle sobre os grupos subordinados (ESCOBAR, 2007).

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193

a pobreza324

é geralmente concebida como uma espécie de condição natural e imanente de

nossas sociedades, particularmente das comunidades indígenas e camponesas; ela é entendida

como uma soma de carências que devem ser supridas e nessa lógica, as possibilidades de

“superação” da pobreza são então colocadas na gestão bem sucedida de projetos de

desenvolvimento social, daí a ênfase no “projetismo”. As causas estruturais que produzem e

reproduzem a pobreza e as desigualdades de classe, como a distribuição da terra, o acesso a

outros recursos produtivos como a água, as modalidades diversas e obrigatórias de articulação

da força de trabalho e das economias camponesas com as empresas capitalistas325

, não são

abordadas; pelo contrário, permanecem ocultas quase que automaticamente pela lógica

instrumental imposta pelas entidades de desenvolvimento.

Os conteúdos discursivos presentes no aparelho desenvolvimentista no que se refere ao

“capital social”, ao desenvolvimento sustentável326

, ao “desenvolvimento com identidade”, à

equidade de gênero ou à participação cidadã, se inscrevem nessa tecnologia de poder na medida

em que invisibilizam as causas da pobreza, da degradação ambiental ou da dominação de

gênero no capitalismo. Esses conteúdos discursivos, que fazem parte do dispositivo do

desenvolvimento como mecanismo biopolítico, ficam enquadrados na esfera do horizonte que

os pobres devem alcançar por meio dos projetos, sem atingir nem estabelecer alguma relação

com as políticas econômicas, sociais, ambientais de nível nacional que pudessem afetá-los.

Mecanismo biopolítico que contribui para a administração da população indígena mantendo ou

construindo as condições específicas nas quais se “faz viver” e se “deixa morrer” (para usar a

expressão de Foucault) aos indígenas: isto é, em minifúndios com solos degradados, com

serviços de saúde e educação para pobres, classificados com preconceitos racistas e

inferiorizados no trato cotidiano, embora na contramão disso sejam reivindicados aspectos de

sua cultura em sintonia com o respeito da diversidade e se distribuam pequenos recursos numa

lógica assistencial (pequenos investimentos produtivos, obras pontuais de infraestrutura, etc.),

gerando a ilusão do “progresso”.

Essa concepção reproduz os esquemas mentais sobre o outro e os repertórios a eles

atribuídos e esperados, em relação à oposição provedor – beneficiário, na qual as famílias

indígenas entram no jogo a partir de seu papel de beneficiários, isto é de receptores da ajuda

para o desenvolvimento, dada sua condição de pobres. Como dispositivo de poder/saber, o

324

Para uma análise detalhada dos discursos dominantes sobre a pobreza, as políticas para seu combate e sua

relação com o aparelho do desenvolvimento ver Lang (2017); Escobar (2007). 325

Em relação às condições de exploração e subordinação das economias camponesas e suas relações com os

processos de expansão capitalista e os agronegócios no Equador, ver Rubio, Campana e Larrea (2008). 326

Para uma crítica e discussão sobre os conteúdos discursivos em torno do desenvolvimento sustentável, ver

Leff (2001), também O’Connor (2002).

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aparelho do desenvolvimento arrasta na sua atuação não apenas os funcionários das instituições,

mas também os grupos e organizações com as quais trabalham, funcionalizando as dinâmicas

organizativas à lógica dos projetos e subordinando-as aos interesses e discursos dominantes do

mesmo, incorporando lideranças e as transformando em novos intermediários/funcionários

desse entretecido institucional.

A influência do aparelho institucional do desenvolvimento rural nas dinâmicas das

organizações indígenas teve especial significação e múltiplas implicações nas instâncias

intermediárias do movimento, isto é, nas federações de comunidades ou organizações de

segundo grau (OSG). Com efeito, por seu envolvimento direto na execução e gestão de projetos

de desenvolvimento, em grande parte das OSG, incluídas aquelas mais antigas criadas nos

processos de luta pela terra na Serra ou pela defesa dos territórios na Amazônia, fortaleceu-se a

tendência a subordinar sua dinâmica às correntes, aos interesses e aos discursos dominantes no

dispositivo do desenvolvimento, em detrimento de uma prática política mais autônoma,

sustentada pelas demandas específicas das comunidades. Isso teve como efeito político a perda

paulatina de uma dimensão de luta, mobilização e construção de uma perspectiva política

transformadora da realidade social.

Dessa forma, a lógica imposta pelo dispositivo do desenvolvimento como um todo, ao

incorporar estas instâncias organizativas na gestão dos projetos, trouxe como consequência a

adoção pelas lideranças de uma perspectiva tecnocrata e a instrumentalização do discurso étnico

que começou a ser construído em função das possibilidades de acesso aos projetos e recursos do

desenvolvimento, e neste sentido, culminou subordinando-se aos discursos dominantes no

referido campo. A progressiva substituição na direção dessas organizações de lideranças

militantes identificadas com um perfil político reivindicativo, por lideranças tecnocratas, como

sublinha Bretón (2012), impôs na prática das OSGs uma atitude conciliadora e concertadora em

consonância com o estilo das ONGD e de programas de desenvolvimento como o

PRODEPINE, dos quais dependiam financeiramente. A promoção de práticas clientelistas por

parte dessas lideranças, vinculadas à gestão dos recursos dos projetos, reforçou também os

processos de diferenciação econômica preexistentes nas comunidades e as relações tradicionais

de poder.

Essa tendência à subordinação das dinâmicas organizativas indígenas às determinações

dos discursos dominantes no aparelho do desenvolvimento rural ganhou maior força a partir da

segunda metade da década de 1990. Isso pode ser constatado se revisamos a orientação

predominante das OSG segundo seus objetivos, a partir de uma pesquisa nacional sobre as OSG

indígenas e afro-equatorianas realizadas pelo projeto PRODEPINE em 2001. Assim, do total de

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objetivos destacados pelas 229 OSG pesquisadas, 55,2% de seus objetivos correspondeu a ações

para o desenvolvimento e apenas 6,9% referiu-se aos objetivos de caráter político

reivindicativo327

(LARREA et al, 2002, p. 15-16). Nos resultados dessa pesquisa, também

chama a atenção a elevada percentagem de organizações criadas a partir do início do projeto

PRODEPINE (em 1998) equivalente a 31,4% do total de organizações pesquisadas (LARREA

et al, 2002, p. 12), o qual se explica precisamente pela oferta de recursos para projetos de

desenvolvimento através da intermediação de OSG, promovidos pelo PRODEPINE e outras

entidades, que motivou a conformação de novas organizações para acessar esses recursos,

favorecendo assim a tendência para funcionalizar as dinâmicas organizativas das OSG à logica

dos projetos de desenvolvimento.

Em síntese, entre as implicações mais importantes para as práticas e dinâmicas

organizativas das OSG que esta tendência à subordinação ao aparelho institucional de

desenvolvimento rural trouxe, podemos sublinhar em primeiro lugar o predomínio do enfoque

projetista nos discursos organizativos e na orientação primordial das ações das organizações,

decorrentes de sua funcionalização às entidades e projetos de desenvolvimento rural. Isso

provocou uma dependência direta das dinâmicas organizativas locais com relação à gestão de

projetos, ocasionando fluxos periódicos de crise e revitalização das organizações em função dos

recursos disponíveis para projetos, como aconteceu com muitas OSG nas décadas de 1990 e

2000.

Uma segunda implicação relacionada com a anterior foi a conversão de muitas OSG em

instâncias constituídas quase exclusivamente para a negociação e canalização dos recursos do

aparelho de desenvolvimento para suas comunidades de base. Em muitos casos essa conversão

traduziu-se na reprodução de formas e mecanismos clientelistas e práticas assistencialistas na

relação entre as lideranças e suas bases, nos quais os recursos dos projetos de desenvolvimento

são usados como meio de legitimação das estruturas centrais das OSG, com o qual

frequentemente geraram-se práticas discriminatórias na seleção dos “beneficiários” dos

projetos, fortaleceram-se formas de caciquismo político e se constituíram grupos de elite dentro

das organizações que concentraram os benefícios do desenvolvimento328

.

Um terceiro aspecto a destacar refere-se ao enfraquecimento produzido na construção

social da representação nas OSG. O esforço excessivo que as lideranças deviam dedicar à

interação com os agentes externos da cooperação, à negociação de projetos e a sua execução,

327

O restante das categorias de classificação dos objetivos das organizações e as percentagens alcançadas foram:

fortalecimento organizativo interno com 13,8%, fortalecimento da identidade cultural com 13,8% e educação e

capacitação com 10,3%. 328

Bretón (2001; 2009).

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em detrimento da geração de mecanismos de consulta e de vinculação direta com as

comunidades que fortalecesse sua participação, provocou em médio prazo, o enfraquecimento

dos fatores simbólicos sobre os quais se constrói e se estabelece a legitimidade da representação

nas OSG. Nesses casos as práticas das OSG não se sustentam mais no conjunto de elementos

econômicos, sociais, culturais e políticos presentes nas dinâmicas cotidianas de suas

comunidades e, por conseguinte, eles também não são potencializados a partir da lógica da

organização. Desse jeito, a capacidade de representação das OSG fica reduzida ao âmbito das

lideranças e se afasta das dinâmicas concretas vivenciadas pelas organizações de base.

Evidentemente, isso conduz ao enfraquecimento do sentido de pertencimento das comunidades

em suas OSG e dos processos de construção de uma identidade coletiva a partir da dinâmica

promovida por essas organizações. Nessa linha, as lideranças se tornam representantes de suas

bases exclusivamente para a negociação de projetos, perdendo-se o sentido da representação na

construção de uma perspectiva política do movimento indígena.

O enfoque projetista na atuação das OSG teve uma quarta implicação que se exprime no

predomínio do ativismo para alcançar as metas dos projetos. Isso provocou o enfraquecimento

dos processos de análise crítica dentro das organizações em relação à realidade social e política,

o desgaste das lideranças e a perda de sua capacidade de direção política das organizações. Ao

priorizar os assuntos técnicos sobre os políticos, as lideranças delegam nas equipes técnicas

contratadas ou nas próprias ONGD o processamento dos temas centrais da pauta imposta pelas

agências de desenvolvimento, provocando a tutelagem direta sobre as lideranças, as quais

deixam de ter um papel relevante na direção política de suas organizações. Trata-se novamente

da primazia do saber técnico como parte do dispositivo de poder do aparelho do

desenvolvimento.

Finalmente, uma última implicação refere-se às escassas possibilidades que este

processo gera para provocar mudanças relevantes nas condições concretas de vida dos

camponeses indígenas, não só devido ao efeito de fatores de natureza estrutural, mas também

pela inadequação das ofertas concretas oferecidas pelos projetos em relação às condições

específicas das economias camponesas.

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197

4.4 A CRIAÇÃO DE PACHAKUTIK COMO MOVIMENTO POLÍTICO E A

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ELEITORAL DO MOVIMENTO INDÍGENA

A outra modalidade de participação política do movimento indígena em sua relação

com o Estado ocorreu pela participação na arena eleitoral por meio da criação de movimentos

políticos com uma forte presença das organizações indígenas neles: Isto é, o Movimiento de

Unidad Plurinacional Pachakutik, com participação direta da CONAIE e o Movimiento

Amauta Yuyai (inicialmente Amauta Jatari) criado pelos indígenas evangélicos vinculados a

FEINE, de menor incidência nacional, mas relevante em algumas localidades com maior

presença evangélica. A outra organização nacional indígena e camponesa de importância, a

FENOCIN, por seus laços históricos com o Partido Socialista, canalizou em várias

oportunidades sua participação eleitoral na esfera local ou nacional, por meio desse partido.

O Movimento Pachakutik foi constituído em 1995. Sua criação significou uma

inflexão nas definições políticas da CONAIE que nos primeiros anos da década de 1990

manteve uma posição de autonomia diante dos processos eleitorais (BECKER, 2015;

PACARI, 2009). Um antecedente importante para sua criação foi a construção das alianças

estabelecidas entre diversas organizações e movimentos sociais nas lutas de resistência para

enfrentar a investida das políticas neoliberais no governo de Sixto Durán Ballén. Nessa

direção, especial significado teve a campanha pelo NÃO no plebiscito convocado pelo

governo em 1995, no qual se pretendia avançar na privatização do sistema de previdência

social e na desregulação laboral dos funcionários públicos. Esta campanha foi impulsionada

pelas organizações e movimentos agrupados na Coordinadora de Movimientos Sociales

(criada no calor das lutas de resistência às políticas neoliberais do governo Durán Ballén).

Surpreendentemente, essa campanha levantada pelos sindicatos e organizações populares foi

bem sucedida e o NÃO venceu marcando uma dura derrota para o governo e para a maior

parte dos partidos e a mídia que apoiavam essa reforma (BARRERA, 2001).

Empolgados por esse resultado, diante da proximidade das eleições gerais de 1996 e

das iniciativas existentes dentro do movimento indígena para criar um partido indígena (como

foi anunciado por lideranças amazônicas) ou movimentos políticos locais para participar das

eleições (a exemplo da Província de Chimborazo), a CONAIE, junto com as diversas

organizações que conformavam a Coordinadora de Movimientos Sociales e grupos de

esquerda afastados dos partidos tradicionais de esta tendência329

, constituíram o Movimiento

de Unidad Plurinacional Pachakutik como “um espaço amplo, democrático e de inclusão que

329

Entre os partidos tradicionais de esquerda podemos mencionar: Partido Socialista, Partido Comunista e

Movimiento Popular Democrático (de tendência maoísta).

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irrompesse nos âmbitos locais e nacionais” (PACARI, 2009, p. 38) e assim, se prepararam

para participar das eleições com candidatos próprios em 1996. Para isso, aproveitaram uma

reforma constitucional de 1994 que permitia a participação de candidatos independentes na

política eleitoral e Pachakutik alcançou o reconhecimento como movimento político (em lugar

de um partido político) constituído a partir das organizações sociais330

. Em aliança com

outros setores de centro-esquerda impulsionaram a candidatura do jornalista Fredy Ehlers para

a presidência e de Luis Macas como deputado nacional. Representando um momento de

ascensão do movimento indígena e das lutas de resistência ao neoliberalismo, com uma

votação concentrada especialmente na Serra e na Amazônia, rural e urbana, nessas eleições

Pachakutik alcançou conformar uma bancada de deputados (que representava

aproximadamente 10% do total de deputados), várias alcaldias (prefeituras) e concejalias

(vereadores) em cantones (municípios) destas regiões. Iniciava-se assim, a participação

eleitoral do movimento indígena, para atuar na “esfera institucional”. A partir desse momento

até hoje, nas sucessivas eleições Pachakutik alcançou representação parlamentar ou nas

Asambleas Constituyentes de 1998 e 2008 e controlou vários governos locais e provinciais.

Embora tivesse sido concebido como um espaço específico diferenciado dos

movimentos sociais e da CONAIE (mas influenciado diretamente por eles), orientado para

canalizar a participação e as alianças na arena eleitoral, a existência de Pachakutik e o

envolvimento de lideranças do movimento indígena na gestão de governos locais ou como

representantes e autoridades eleitas no âmbito nacional incidiu fortemente na dinâmica do

movimento, nos rumos políticos adotados em diversas conjunturas, nas expectativas de seus

militantes, nas práticas políticas das lideranças e autoridades e nas formas de relacionamento

com o aparelho do Estado como um todo. De fato, favoreceu a participação indígena em

diferentes aparelhos do Estado e, nesse sentido, fortaleceu a tendência dentro do movimento a

encaminhar e condicionar sua prática política no campo institucional no aparelho do Estado.

Especial relevância nesta direção teve a participação eleitoral para alcançar o acesso

de representantes indígenas aos governos locais naqueles cantões e províncias com

significativa presença indígena, na medida em que canalizou boa parte das iniciativas políticas

do movimento e do sentido da luta política eleitoral para esses espaços. Inicialmente, o acesso

de representantes indígenas à gestão de governos locais suscitou muitas expectativas pelas

transformações que pudessem ser empreendidas nesses âmbitos. A captação dos governos

locais era concebida pelas organizações indígenas como uma oportunidade de fortalecer as

330

Sobre o processo de constituição do Movimento Pachakutik, ver Becker (2015); Barrera (2001).

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propostas e a consolidação do movimento, construindo alianças com outros setores sociais no

âmbito cantonal e regional (CONAIE-RIAD-IULA, 1995, p. 7). No contexto do debate sobre

a descentralização do Estado imposto pelas políticas neoliberais (entendida como parte da

proposta de redução do aparelho do Estado), as perspectivas de democratização dos poderes

locais e de descentralização do Estado foram interpretadas como uma oportunidade de

desenvolvimento das propostas de autodeterminação e autonomia indígena (LARREA,

1998b). Nessa linha, a proposta política do Movimento Pachakutik para os governos locais se

encaminhava para a construção de “governos municipais descentralizados e democráticos”

tomando como eixos centrais de trabalho a “concertação entre diversos atores em nível

local”, a “democracia participativa”, envolvendo a participação das organizações na

“formulação, avaliação e controle dos planos de trabalho dos municípios”, e “o impulso de

um modelo de desenvolvimento sustentável e equitativo na esfera local” (MUPP-NP, 1996).

Ao analisar os conteúdos principais da proposta do Movimento Pachakutik para os

governos locais, novamente encontramos a intersecção e complementariedade entre os

discursos dominantes no campo político com os existentes no aparelho institucional do

desenvolvimento. Cabe salientar que ao enfatizar a concertação de políticas entre os “atores

locais” e a “participação cidadã” como parte das propostas de descentralização do Estado e

“desenvolvimento local”, esses discursos não foram dissonantes com a proposta neoliberal

relativa às mudanças necessárias no papel do Estado, em voga no momento. Neste aspecto,

também encontramos outra via de subordinação e colonização do discurso das lideranças

indígenas pelos discursos dominantes do desenvolvimento, na qual se diluem as

possibilidades de um questionamento crítico do sistema capitalista e das condições produtoras

das desigualdades sociais. De fato, enfraquecidos os conteúdos contestatórios no discurso do

movimento indígena, a partir da perspectiva do multiculturalismo não era difícil assumir os

discursos dominantes que colocavam como objeto da atividade política a “concertação dos

atores sociais” e como mecanismo prático para sua concretização a “participação cidadã” nos

espaços locais.

Duas décadas mais tarde, as reflexões e avaliações das lideranças do movimento

indígena sobre o significado político da participação eleitoral por meio de Pachachutik, seus

limites e as diversas implicações que teve para o movimento, são ambivalentes e com algumas

exceções, sua valoração parece depender mais do acontecido em diversas conjunturas ou em

gestões específicas das autoridades eleitas do que de uma visão da participação eleitoral e de

suas implicações para o movimento, como um todo. Ainda que algumas lideranças indígenas

façam um balanço positivo da experiência de participação política com o Movimento

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Pachakutik, pela possibilidade dos indígenas terem acesso aos diferentes cargos no Estado e

nos governos locais, a própria experiência de participação e gestão política também expõe

seus limites. Assim, para a liderança indígena Lourdes Tibán:

El otro hito me parece el tema de la incorporación en la vida política, para bien o

para mal porque más ha traído mal que bien, la participación política en el 96. […]

Dos conceptos tengo yo, el uno de que permitió al movimiento indígena ingresar

adentro al Estado, somos parte del Estado el momento que comenzamos incluso a

tener un sueldo del Estado, a jugar con las reglas de ese Estado. A mí me parece

bueno que el movimiento indígena haya incorporado en su plan, en su acción, como

una herramienta, el meternos adentro. Lo malo que significa para nosotros la

política es ahora analizar con qué reglas nos metimos adentro. Nos metimos en la

misma dinámica de ese Estado que no fue construido con la participación nuestra. Y

lo que terminamos es sumando a una estructura a una decisión a unas normativas

que van fuera de la lógica indígena […] En ese sentido a mí me parece que las

reglas del juego no han cambiado, así nosotros hayamos participado. Fruto de eso

miramos que nos hemos contaminado, nos hemos contaminado en la medida de que

ya nos gustó los puestos […]. Nos hemos contagiado de las mismas mañas del

Estado que hemos criticado, la corrupción por ejemplo. […]. Entonces desde ese

punto de vista, me parece que muchos indígenas quisieran llegar a esos puestos y

termina por supuesto dividiendo el movimiento indígena. Eso ha generado diversas

tendencias, sobre todo intereses… (Entrevista Lourdes Tibán, 22 Janeiro, 2015)331

.

Numa linha similar de reflexão sobre as experiências de participação política indígena

na gestão de governos locais, após enfatizar as dificuldades para impulsionar nesses espaços

as teses políticas do movimento indígena “de autonomía, de libre determinación, una tesis de

construir uma nueva institucionalidad”, devido à necessidade dos funcionários de acatar as

mesmas leis vigentes, Humberto Cholango, ex-presidente da CONAIE, realiza o seguinte

balanço da participação eleitoral indígena com o movimento Pachakutik:

La participación política podríamos decir que hasta estos momentos es ligeramente

positiva. Ahora los indígenas logran entrar a alcaldías, prefecturas, juntas

parroquiales. Están dentro del ejercicio del poder local. Porque ese poder local

antes era para caudillos, para los caciques locales que siempre controlaban

absolutamente todo. Eso por lo menos se ha roto. Y claro los indígenas ingresan y

como una fuerza distinta, diferente, han demostrado en ejercicios de administración

pública algunos de manera eficiente y otros han sido fracasos rotundos. También

331

Tradução nossa: “O outro marco parece-me o tema da incorporação na vida política, para melhor ou para pior,

porque mais trouxe mal do que bem, a participação política em 96. […] Eu tenho dois conceitos, o primeiro é

que permitiu ao movimento indígena entrar no Estado, somos parte do Estado no momento em que inclusive

começamos a ter um salário do Estado, jogar com as regras desse Estado. Parece-me bom que o movimento

indígena tenha incorporado em seu plano, em sua ação, como ferramenta, entrarmos [no Estado]. A coisa ruim

que para a gente significa a política é analisar com quais regras é que entramos. Nós entramos na mesma

dinâmica desse Estado que não foi construído com nossa participação. E terminamos somando para uma

estrutura, para uma decisão, para umas normativas que estão fora da lógica indígena […] Nesse sentido, parece-

me que as regras do jogo não mudaram, ainda que a gente tenha participado. Fruto de isso é que olhamos que nos

contaminamos, ficamos contaminados na medida em que já gostamos dos cargos […]. Fomos infectados pelas

mesmas artimanhas do Estado que criticamos, a corrupção, por exemplo. […] Então, daquele ponto de vista,

parece-me que muitos indígenas quiseram chegar a esses cargos e, finalmente, acabaram dividindo o movimento

indígena. Isso gerou diversas tendências, especialmente interesses...”

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eso ha existido. Lo que sí hay una enorme dificultad de articular eso con un proceso

nacional. No se logra hacer eso. Así como hay administraciones y gestiones

exitosas, innovadoras, participativas, emblemáticas podríamos llamar, pero son

participaciones locales y eso no logramos trascender a nivel nacional. También

ha habido errores enormemente graves que han terminado con destitución de

autoridades. Que son indígenas que han puesto en entredicho inclusive al propio

proyecto político del movimiento indígena o algunos han cogido su propio camino y

se han ido, de acuerdo a las coyunturas electorales (Entrevista Humberto

Cholango, 12 maio 2014)332

.

Com um posicionamento bem mais crítico da experiência de Pachakutik, Luis Macas

sublinha a reprodução das mesmas práticas políticas dos partidos tradicionais, a perda do

sentido político transformador e alternativo com que foi criado o movimento e sua conversão

numa plataforma para a formação e ascensão social de uma elite indígena:

En la última asamblea del Ecuarunari me decían ahora el Luis Macas plantea la

liquidación del Pachakutik. No he dicho en esos términos, pero yo digo no hay

ninguna diferenciación como movimiento político del resto de la gama de partidos

y movimientos que hay en el país. La única diferencia es cuando los compañeros

indígenas están en el cargo. Es indígena y punto. Pero yo sí creo que cuando

inicialmente se discutía, porque esto provocó mucha discusión mucho debate en el

movimiento indígena, ¿cómo y para qué se plantea una instancia política? Un frente

de lucha, así se planteó, un frente institucional de lucha, para de alguna manera

facilitar, fortalecer el proceso del movimiento indígena, pero que a la final me

parece que estamos distorsionando todo aquello que habíamos pensado antes o más

bien se está tergiversando absolutamente todo lo que se había pensado inicialmente

para qué se crea el Pachakutik. Además del mismo nombre tener su contenido

filosófico, yo creo que en los hechos al menos a estas alturas, del Pachakutik inicial

no tiene absolutamente nada, no se reconoce nada. Ha provocado muchas

fracciones al interior del movimiento indígena. Mucha gente dirá que no es ese el

motivo de la dispersión que se está viviendo. Pero yo creo que sí ha hecho bastante,

bastante daño cuando en definitiva no se lleva a cabalidad los principios políticos

filosóficos para los que fue creado el movimiento Pachakutik. Ha hecho daño en el

sentido de ir generando una élite dentro del movimiento. Ha ido también generando

una suerte de vicios dentro de nuestras mismas organizaciones, ambiciones, en

definitiva yo digo como si en las organizaciones ven que hay que ascender desde

presidente de la comuna, presidente de la organización de segundo grado, etc.

Para aprovechar ese espacio.

Creo eso porque no ha habido una evaluación de qué ha significado el movimiento

Pachakutik para el movimiento indígena en esta etapa. No se ha generado ningún

debate político. No tiene absolutamente ningún contenido político en este momento.

La participación yo digo es una participación bastante pobre, vacía, meramente

electoral, yo digo que es hasta pernicioso seguir manteniendo como tal, como un

espacio político. Porque desde allí se podía generar espacios de alianzas con otros

332

Tradução nossa: “A participação política, podemos dizer que até agora é levemente positiva. Agora, os índios

conseguem acessar a prefeituras, governos provinciais e juntas paroquiais. Eles estão dentro do exercício do

poder local. Porque aquele poder local antes costumava ser para caudilhos, para os caciques locais que sempre

controlavam absolutamente tudo. Isso pelo menos foi quebrado. E é claro que os indígenas entraram e, como

uma força distinta, diferente, demonstraram na gestão da administração pública, alguns de forma eficiente e

outros foram fracassos estrondosos. Isso também aconteceu. O que é realmente difícil é articular isso com um

processo nacional. Não se consegue fazer isso. Assim como existem administrações e gestões bem sucedidas,

inovadoras, participativas e emblemáticas, podemos chamar, mas são participações locais e não podemos

transcender no nível nacional. Também houve erros extremamente graves que acabaram com a remoção das

autoridades. Eles são indígenas que puseram em causa até mesmo o projeto político do movimento indígena ou

alguns tomaram seu próprio caminho e se foram embora, de acordo com as conjunturas eleitorais”.

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sectores, de discusión de políticas para el movimiento indígena, que no se hace

absolutamente nada […]. No hay ningún sentido político, dentro de este espacio que

decíamos era para que haya una conducción política alternativa a nivel nacional, a

nivel de toda la sociedad. Yo creo que toda la gente ha perdido las esperanzas, la

gente ve como una cosa totalmente negativa, la presencia del movimiento la

participación de nuestra gente, que no se ha generado cambios (Entrevista Luis

Macas, 6 Maio 2014).333

Sem pretender aprofundar, fazer uma aproximação mais detalhada ou avaliar as

experiências concretas de gestão de governos locais por parte dos representantes indígenas,

tarefas que excedem os limites desta pesquisa, o balanço crítico que Luis Macas faz da

experiência de Pachakutik me conduz a ensaiar algumas reflexões sobre as implicações que

teve a gestão dos governos locais para o movimento indígena no contexto da adoção do

multiculturalismo gerido por representantes indígenas como dispositivo biopolítico da política

de administração da população indígena na governamentalidade neoliberal, a partir de

algumas observações feitas em anos anteriores no campo, em torno de alguns processos

concretos em várias localidades da região Interandina.

Carmen Martínez (2009a, p. 17) sugere a necessidade de estudar melhor o tema das

continuidades e similitudes das práticas políticas presentes no movimento indígena em relação

a outros grupos e com a cultura política nacional, pois comumente foi assumido que os

indígenas trazem visões alternativas. Esta é uma questão chave, pois não é apenas por estar

obrigados pelas mesmas leis que as gestões locais de autoridades indígenas reproduzem

práticas políticas similares àquelas que imperam na política nacional, como sugerem os

333

Tradução nossa: “Na última assembleia do Ecuarunari disseram-me que agora Luis Macas propôs a

liquidação de Pachakutik. Eu não falei nesses termos, mas eu digo que não há nenhuma diferença como

movimento político do resto da gama de partidos e movimentos no país. A única diferença é quando os

camaradas indígenas estão no cargo. É indígena e ponto final. Mas eu acho que, quando inicialmente se discutia,

porque isso provocou muita discussão e debate no movimento indígena, como e para que se propõe uma

instância política? Uma frente de luta, assim se propôs, uma frente institucional de luta, para facilitar, fortalecer

o processo do movimento indígena, mas, no final, penso que estamos distorcendo tudo o que pensamos antes, ou

seja, está se deturpando tudo o que inicialmente se pensava para o que Pachakutik foi criado. Além do mesmo

nome que tem seu conteúdo filosófico, eu penso que nos fatos, pelo menos neste ponto, do Pachakutik inicial não

tem absolutamente nada, não se reconhece nada. Isso causou muitas divisões dentro do movimento indígena.

Muitas pessoas dirão que este não é o motivo da dispersão que está sendo vivenciada. Mas eu acho que tem feito

muito, muito dano, quando, em suma, não se cumprem os princípios políticos filosóficos para os quais o

movimento Pachakutik foi criado. Isso fez mal no sentido de gerar uma elite dentro do movimento. Também tem

gerado muitos vícios dentro de nossas próprias organizações, ambições, em suma, eu digo como se nas

organizações estão vendo que se deve ascender de presidente da comuna para presidente da organização de

segundo grau, etc. Para aproveitar esse espaço”.

“Eu penso isso porque não houve uma avaliação do que o movimento Pachakutik significou para o movimento

indígena nesta etapa. Nenhum debate político foi gerado. Não tem absolutamente nenhum conteúdo político

neste momento. A participação, digo, é uma participação bastante pobre, vazia, meramente eleitoral. Eu digo que

é mesmo pernicioso continuar a mantê-lo como tal, como um espaço político. Porque a partir daí podia gerar

espaços de alianças com outros setores, de discussão de políticas para o movimento indígena, mas não se faz

absolutamente nada [...]. Não tem nenhum sentido político, neste espaço que dizíamos era que houvesse uma

direção política alternativa a nível nacional, em nível de toda a sociedade. Eu acho que todas as pessoas

perderam a esperança, as pessoas veem como uma coisa totalmente negativa, a presença do movimento, a

participação do nosso povo, que não gerou mudanças”.

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depoimentos de Lourdes Tibán e Humberto Cholango. Em múltiplas ocasiões, a reprodução

dessas práticas se converteu num imperativo do mesmo exercício do poder político e para

garantir sua continuidade, ainda mais quando as autoridades indígenas eleitas tinham que

enfrentar uma oposição constante dos setores mestiços dos povoados urbanos, oposição

marcada por preconceitos racistas e pela negativa em admitir que um indígena ocupe o mais

alto cargo no governo local334

. Nesse sentido, no exercício dos governos locais por parte de

representantes indígenas esteve presente uma permanente busca de legitimação de suas

gestões diante dos setores mestiços urbanos, uma necessidade de demostrar sua capacidade e,

portanto, de igualar-se aos mestiços, com uma série de implicações para sua prática política.

Essa necessidade de legitimação se exprimiu com clareza num depoimento do ex-Alcalde de

Saquisili (na Província de Cotopaxi na Serra central), no qual diante da oposição dos mestiços

urbanos, ele como índio tinha que: “demostrar que realmente a administração estava fazendo

com uso de razão” (LARREA, 2001, p. 52). Nesse caso, para demostrar que podia ser

considerado um homem dotado de razão, o Alcalde índio devia empreender um trânsito

continuo pela “fronteira étnica”335

, assumindo constantemente elementos, códigos simbólicos

e valores presentes na cultura política local, que levaram a sua transformação pessoal e a

incorporação na sua prática política de uma masculinidade dominante, relacionada às

dinâmicas específicas de dominação étnica e de gênero (em contraste com uma masculinidade

desvalorizada por sua condição de índio) necessária para o exercício do poder e para ser

aceito e reconhecido como autoridade (LARREA, 2001). Este exemplo referente à

necessidade de legitimação política das autoridades indígenas apelando para as práticas e

formas tradicionais dominantes da atuação política presentes na cultura política local ilustra

uma problemática muito mais complexa referente à prevalência de relações interétnicas e de

poder discriminatórias e ao lento processo de mudanças produzidas com a irrupção do

movimento indígena e o acesso aos governos locais.

Ao mesmo tempo é indicativo do rumo político adotado pelas autoridades indígenas na

gestão dos governos locais e dos limites de sua proposta política centrada na “concertação de

334

Segundo a percepção mestiça dos povoados urbanos “… porque un indio no debe estar al mando de la

Alcaldía”, como mostra em detalhe Larrea (2001). 335

Andrés Guerrero retoma a noção de fronteira étnica desenvolvida por Frederik Barth (1976), como uma

noção útil para entender as modificações das formas de dominação étnica na Serra equatoriana se ela estiver

redimensionada com outros vínculos conceituais para superar o caráter estático e de permanência presente na

concepção de Barth. Guerrero a associa de um lado com as noções de campo, habitus e estratégias de força de P.

Bourdieu, e de outro, vincula a divisão dual que provoca a fronteira étnica com a noção de “ordem dicotómico

compulsivo” (de Judith Butler, referente à dominação de gênero), enquanto matriz binária de percepção mental,

de “classificação e hierarquização social e política que instaura a construção discursiva da diferença e funda a

dominação na ordem simbólica” (GUERRERO, 1998, p. 114).

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atores locais” e a “participação cidadã”336

. Com efeito, no discurso dos representantes

indígenas que assumiram os governos locais fica explícita a proposição de fazer um “governo

para todos”, ou, como no caso do governo provincial de Cotopaxi, em que se falava do

“governo circular” (TIBAN e GARCIA, 2008) supostamente baseado numa concepção

cultural indígena, para se referir a uma pretendida igualdade entre a população mestiça e

indígena na hora da participação nas decisões do governo local.

Nessas proposições reproduziram-se as noções de tolerância à diversidade

características do discurso do multiculturalismo no neoliberalismo, desta vez a partir das

autoridades indígenas, como parte de sua estratégia para que fossem reconhecidos como

autoridades e para sua legitimação nos aparelhos institucionais dos governos locais,

predominantemente dominados por funcionários mestiços. Evidentemente, a igualdade e

inclusão no “governo para todos” referia-se fundamentalmente à diferenciação étnica

entendida basicamente como diferença cultural. Dessa forma, se colocava um limite na gestão

dos governos locais, que deixava de fora a possibilidade de intervenção sobre as diferenças e

desigualdades socioeconômicas, ligadas ao acesso aos recursos ou a possibilidade de

estabelecer qualquer tipo de limitações ou regulações dos setores econômicos dominantes

(especialmente os agronegócios para exportação a exemplo das empresas florícolas). Eram

toleradas então, pequenas reformas que não questionavam a supremacia das classes

dominantes, circunscrevendo assim a participação popular dentro de rigorosas fronteiras

(KATZ, 2008). Daí que na atuação desses governos locais “alternativos” não se identifiquem

conquistas substanciais relacionadas à melhoria das condições socioeconômicas dos setores

mais empobrecidos da população337

, nos quais as comunidades indígenas estão incluídas.

Dissolvia-se assim, a possibilidade da construção de um projeto político popular com

forte participação indígena que quebrasse as condições de dominação e exclusão e que

articulasse as lutas locais com as reivindicações dos movimentos por transformações no nível

nacional. Igualmente, desaparecia do horizonte político no discurso da gestão indígena dos

governos locais, a possibilidade de construção de autonomias (em aliança com outros setores

empobrecidos), ainda presente na retórica e discurso do movimento indígena em âmbito

nacional. Nesse contexto, observando a trajetória das distintas experiências de governos locais

336

Este elemento foi considerado o principal distintivo e logro da gestão de alguns governos locais indígenas,

tanto no discurso das lideranças, autoridades e funcionários do movimento indígena como nos estudos que se

aproximaram a essas experiências (ORTIZ, 2004; CAMERON, 2008; TIBAN e GARCÍA, 2008; OSPINA et al,

2006). As experiências mais divulgadas foram as de Cotacachi, Guamote, Saquisilí e do Governo Provincial de

Cotopaxi, as quais tiveram um forte apoio de ONGD. 337

Este limite é reconhecido nos trabalhos de Tibán e García (2008, p. 291), Ortiz (2004, p. 185-186), Cameron

(2008, p. 226) e Ospina et al (2006, p. 60-64).

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indígenas, o sentido principal da proposição do “governo para todos” ou do “governo

circular” orientou-se fundamentalmente para favorecer a aceitação e o respaldo dos setores

mestiços em relação à presença da representação indígena nos governos locais. Não se tratou

então de promover uma inclusão efetiva das comunidades camponesas indígenas com seus

interesses específicos na gestão desses governos, mas a participação dos setores mestiços (e

dentro deles especialmente setores médios) que foram os verdadeiramente incluídos no

“governo para todos” liderado por um indígena. Observamos diretamente este aspecto nos

casos de Cotacachi, Saquisilí e do governo Provincial de Cotopaxi. Em síntese, pode-se

afirmar que nestas experiências, “os processos participativos” abertos por estes “governos

alternativos” promoveram e articularam a participação dos setores mestiços urbanos mais do

que das comunidades indígenas338

, como um mecanismo de legitimação da gestão dos

representantes indígenas339

.

De outro lado, se boa parte da gestão dos governos locais liderados por autoridades

indígenas se orientou na busca de legitimação diante do mundo mestiço urbano, no que diz

respeito à relação dessas autoridades locais com as comunidades indígenas e com as

organizações de segundo grau (OSG) que respaldaram sua eleição, também se assumiram e

reforçaram práticas ligadas à cultura política local, especialmente aquelas relativas à

reprodução de mecanismos e redes clientelistas340

. Essas redes clientelistas se tecem através

da relação pessoal das autoridades locais com lideranças comunitárias ou das mesmas OSG,

geralmente vinculados aos grupos de parentesco com poder em suas respectivas comunidades

ou espaços locais. A obtenção de recursos para pequenas obras comunitárias por meio da

relação com as autoridades (muitas vezes reforçada por laços de parentesco ritual por meio do

compadrio) no âmbito destes mecanismos clientelistas, em ocasiões é a única forma de

garantir esses recursos para as comunidades ao mesmo tempo em que realça o prestigio

338

Em variadas ocasiões nos casos de Cotopaxi e Cotacachi, o conjunto de elementos postos em jogo nos

debates públicos nos processos participativos, tais como os temas de discussão, os códigos tecnocráticos do

aparelho do desenvolvimento, a língua (espanhol), etc. constituíam limitantes permanentes que travavam as

possibilidades de participação e a expressão direta das comunidades indígenas (embora estivessem presentes),

excluindo assim uma participação mais ativa e apenas as lideranças treinadas e imbuídas do instrumental

tecnocrático tinham uma participação direta. 339

Esta estratégia de legitimação dos governos locais liderados por indígenas pode ser considerada como uma

resposta ao racismo existente nas áreas urbanas de povoados e cidades pequenas, nas quais se concentrava o

poder administrativo nas mãos de mestiços e onde frequentemente o racismo caracterizava a relação entre

mestiços e indígenas no trato cotidiano. Daí a valorização que as comunidades indígenas tinham do simples

acesso de indígenas aos governos locais, manifestado como um motivo de orgulho diante do mundo branco-

mestiço. 340

Compreendo o clientelismo como uma prática política por meio da qual os funcionários que desempenham

algum cargo público outorgam favores de acordo com sua função ou encaminham decisões para a entrega de

bens, obras ou investimentos públicos nas localidades para pessoas com influência ou lideranças comunitárias

em troca de respaldo político.

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dessas lideranças com suas bases. As autoridades locais de sua parte procuram expandir ao

máximo possível o reconhecimento e o respaldo da sua gestão por meio da entrega destes

recursos e a obtenção da lealdade das lideranças comunitárias, que provoca a dispersão dos

investimentos em um sem-número de pequenas obras em distintas localidades341

.

À permanência de mecanismos clientelistas na gestão local deve-se agregar a escassa

capacidade das OSG que contribuíram na eleição dos representantes indígenas nos governos

locais, para gerar proposições e reivindicações tendentes a alterar esses mecanismos

clientelistas e as formas de exercício do poder nos governos locais. Uma vez conquistado esse

espaço, as OSG assumiram um papel passivo, estando obrigadas a respaldar seus

representantes diante dos questionamentos que provinham de outros setores e encontrando-se

impossibilitadas de confrontar sua gestão (também não tinham maiores razões para fazê-lo na

medida em que se acomodavam facilmente nas redes clientelistas), diante do risco de perder

os espaços que tinham conquistado.

Consequentemente, a dinâmica das organizações camponesas e indígenas que

projetaram o acesso de seus representantes indígenas aos governos locais esteve fortemente

subordinada à gestão de seus representantes, reafirmando modalidades personalizadas de

liderança nessa gestão, independentemente da construção de um projeto político das

organizações342

. Desta forma, a participação política foi um condicionante que marcou as

orientações e dinâmicas das organizações, provocando continuas disputas entre as lideranças,

com o objeto de acessar possíveis candidaturas como um mecanismo de mobilidade social.

É nessa direção que aponta o questionamento de Luis Macas quando fala da criação de

uma “elite” indígena como resultado do processo de participação política de Pachakutik,

concomitantemente com a perda do sentido político do movimento. Com efeito, a prevalência

e a ampliação das relações e as redes clientelistas derivaram na constituição de práticas

políticas e estilos cacicais de liderança, que se refletem no fato de que grande parte das

autoridades indígenas eleitas para o exercício de cargos nos governos locais desempenhou

previamente funções diretivas em suas comunidades ou nas OSG e em vários casos foram

funcionários de entidades e projetos indígenas na institucionalidade estatal (a exemplo do

PRODEPINE). Posteriormente estas autoridades indígenas foram reeleitas e depois

continuaram sua carreira política atuando como candidatos e passando de cargos do âmbito

341

A dispersão dos investimentos e a importância das relações clientelistas na dinâmica da gestão local no caso

do governo provincial de Cotopaxi é ressaltado no trabalho de Ospina et al (2006, p. 82-101) como uma

constante nos depoimentos recolhidos de lideranças do Movimento Indígena desta província, assim como das

próprias autoridades e funcionários. 342

Observamos este aspecto nas organizações indígenas de Saquisilí, Guamote e Cotacachi, assim como no

governo provincial de Cotopaxi.

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local para o nível provincial ou nacional343

. A isso se soma que estas lideranças geralmente

provêm de famílias com maiores recursos econômicos dentro das comunidades, diferença que

se vê reforçada com o acesso aos cargos políticos. Na opinião da liderança e intelectual

indígena Floresmilo Simbaña, essas “elites” indígenas envolvidas na participação política

eleitoral reforçaram uma tendência presente no movimento indígena que ele qualifica de

“capitalismo índio”, para sublinhar o uso de um discurso etnoinstitucionalista vinculado à

intencionalidade de obter melhoras econômicas por parte dessas lideranças e autoridades

indígenas344

. Após duas décadas de iniciado o processo de participação política, serão essas

“elites” de autoridades eleitas e candidatos que definirão nos âmbitos provinciais as alianças

políticas eleitorais de Pachakutik, algumas delas “meio estranhas”345

, e outras dessas figuras

utilizarão seu caudal eleitoral para atuar como operadores políticos do governo ou para se

apresentar como candidatos de outros partidos políticos.

4.5 A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA INDÍGENA NA GESTÃO DO ESTADO

NEOLIBERAL NO GOVERNO DE LUCIO GUTIÉRREZ

“Pacari e o Gabinete em uma limpeza xamânica”, este era o título de uma matéria346

do jornal El Comercio de Quito no dia 8 de fevereiro de 2003, a qual relatava a celebração de

um ato ritual realizado no dia anterior na Chancelaria, “planejada para purificar o Presidente

Gutiérrez e sua comitiva” antes de sua viagem para os Estados Unidos. A crônica da imprensa

detalha o ato, dando conta dos elementos simbólicos e da ritualização encenada graças à

presença indígena no governo de Gutiérrez de uma de suas principais representantes, Nina

Pacari, que ocupava o mais alto cargo do Ministério das Relações Exteriores347

. O dispositivo

do multiculturalismo no neoliberalismo tinha sido instalado no cerne do poder do Estado:

Os arranjos florais e as fitas multicoloridas que adornavam a fonte de pedra e a porta

principal do Palácio de Najas deram vida ontem à atmosfera sóbria da chancelaria. O

chuvisco que começou a cair ameaçou ofuscar o primeiro ato artístico com o qual a

chanceler Nina Pacari e o Gabinete testemunharam uma cerimônia carregada de

simbolismo andino. A chuva passou. Isso permitiu que uma dúzia de corazas e

sanjuanes - dançantes indígenas- continue ensaiando alguns passos, enquanto uma

343

Uma análise da trajetória dos candidatos indígenas especialmente pelo movimento Pachakutik nas eleições de

2013 feito por Sánchez Parga (2013) mostra com clareza este aspecto. 344

Entrevista Floresmilo Simbaña, 1 maio 2014. 345

A expressão é de Luis Macas, referindo-se a alianças operadas em nível local ou provincial alcançadas pelo

movimento Pachakutik nas eleições provinciais e locais de 2014 com o partido do governo de Correa (Alianza

País) ou com partidos identificados com tendências políticas de direita (entrevista Luis Macas, 6 maio 2014). 346

Diario El Comercio, “Pacari y el gabinete en una limpia Shamánica”, 08-02-2003. 347

“Se os meios de comunicação são tão importantes nas democracias modernas, isso não se deve apenas ao fato

de permitirem o controle e o governo da opinião pública, mas também e sobretudo porque administram e

dispensam a Glória, aquele aspecto aclamativo e doxológico do poder que na modernidade parecia ter

desaparecido” (AGAMBEM, 2011, p. 8).

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banda de música acendeu o humor com o clássico ‘Chulla Quiteño'. Sob o pórtico da

chancelaria, os diferentes embaixadores e funcionários deste ministério começaram

congregar-se. Havia também membros do corpo diplomático acreditado no país [...]

A chanceler reaparecia no meio de dois corazas e quatro mulheres indígenas que

faziam uma corte de honra simbólica, enquanto o ballet Jacchigua iniciava com as

celebrações. Sete crianças indígenas começaram a circundar a fonte enfeitada,

portando estandartes vermelhos. Foram seguidos por duas crianças que também

dançaram com suas saias (anacos), enquanto a dúzia de corazas e sanjuanes

terminara com o ato. A embaixadora dos Estados Unidos, Kristie Kenney, chegou

um pouco tarde e teve que atravessar, no meio das danças, até onde estava a

chanceler. Pacari convidou os quase 150 participantes para os salões da Chancelaria

para continuar com a celebração. Sob o olhar inerte dos próceres que decoram o

Salão, o alcalde (prefeito) de Cotacachi e cunhado da ministra, Auki Tituaña, abriu

a cerimônia com um discurso emotivo. Ele a chamou de "Chanceler da Esperança"

[...]. A ministra do Comércio Exterior, Ivonne Baki, foi a última a se juntar ao

evento. Desculpou seu atraso com um beijo efusivo para Pacari. Após disso ela

cantarolou [...] alguns versos da 'Malagueña'. A cerimônia concluiu com um brinde

de rosero e chicha, acompanhado de empanadas e outros petiscos típicos

imbabureños [...].

Nesta viagem aos Estados Unidos, o presidente Lucio Gutiérrez assinou uma nova

Carta de Intenções com o Fundo Monetário Internacional348

, marcando claramente o terreno

da ortodoxia neoliberal em que sua política econômica e fiscal se movimentaria, sob a

condução do Ministro da Economia Mauricio Pozo. Depois de ser recebido pelo presidente

George W. Bush, Gutiérrez declarou: “Nós lhe dissemos que queremos nos tornar o melhor

aliado e amigo dos Estados Unidos, na luta pela paz no mundo, por fortalecer a democracia,

para reduzir a pobreza, para combater o narcotráfico e para acabar com outro flagelo, o

terrorismo”349

; umas horas antes, ele manifestou que uma das prioridades de seu governo seria

a luta contra o terrorismo e o narcotráfico e a intenção de seu governo de respaldar as

iniciativas do presidente colombiano Álvaro Uribe em torno ao conflito colombiano. Definia-

se assim, um alinhamento claro com a política norte-americana e o Plano Colômbia. A

viagem ocorreu algumas semanas antes do início da invasão dos EUA no Iraque, quando a

doutrina da “guerra preventiva” já tinha sido adotada pelo Pentágono.

Uma matéria do jornal El Universo descreve o ato de assinatura da Carta de Intenções

com o Fundo Monetário Internacional da seguinte maneira:

Os risos iam e vinham, apertos de mão, abraços e palmadinhas nas costas. Tudo era

bem-vindo para parabenizar. A razão? "Um triunfo para o povo do Equador". A

conquista equatoriana, de acordo com o presidente Lucio Gutiérrez, foi ter assinado

a Carta de Intenções para um acordo de 200 milhões de empréstimos com o Fundo

Monetário Internacional (FMI). O documento contou com as assinaturas de

348

Em uma análise do primeiro mês do governo de Gutiérrez, o pesquisador Manuel Salgado apontava que a

Carta de Intenções foi assinada “sem objetar nem uma única linha das 22 condições impostas, todas lesivas para

os interesses nacionais” (SALGADO, 2003). A assinatura da Carta de Intenções também contemplava a entrega

de empréstimos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. 349

Diario El Comercio, 12-02-2003

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Gutiérrez; o ministro de Economia, Mauricio Pozo; o presidente do Banco Central,

Mauricio Yépez e Horst Kohler, diretor-gerente do FMI. A chanceler, Nina Pacari; o

embaixador itinerante em Washington, Guillermo Lasso; e o deputado Renán

Borbúa, que também participaram da reunião, sorriam confirmando as declarações

do Presidente que, ao sair, insistia em esclarecer que era "um momento de alegria

para o país"350

.

Enquanto isso, desde a semana anterior, os responsáveis políticos nacionais do

Movimento Pachakutik, liderados pelo dirigente indígena Miguel Lluco (então Coordenador

Nacional do Movimento), Leonidas Iza (Presidente da CONAIE), os membros indígenas e

mestiços do bloco parlamentar do Movimento e aqueles que assumiram alguns cargos no

governo Gutiérrez se esforçavam para explicar o sentido da aliança com Lucio Gutiérrez e

Sociedad Patriótica (seu partido) e sua permanência no governo, bem como justificar o

alcance das medidas econômicas tomadas pelo governo (que incluíram o aumento de

combustíveis e tarifas de eletricidade) e a assinatura da Carta de Intenções com o FMI351

,

claramente contrária à orientação de suas propostas políticas até então. A própria Nina Pacari

defendia as medidas econômicas afirmando que “elas tinham outras dimensões que não

estavam no governo anterior”352

.

Tenho me detido nestes acontecimentos conjunturais para ilustrar as ambiguidades e

contradições que significaram a participação do Movimento Pachakutik e do movimento

indígena (especificamente a CONAIE) no governo Gutiérrez, com o seu posicionamento claro

enquadrado no Estado neoliberal. A aliança com Gutiérrez foi o corolário da orientação

eleitoreira e pragmática assumida no movimento Pachakutik, tanto por um setor de lideranças

indígenas como pelo grupo político que aglutinava militantes mestiços urbanos liderados por

Augusto Barrera e Virgilio Hernandez353

, que tiveram responsabilidade direta na condução do

Movimento Pachakutik na época. Na decisão tomada pelo Pachakutik para estabelecer a

aliança eleitoral com Lucio Gutierrez prevaleceram cálculos eleitoreiros, a fim de manter o

nível de representação parlamentar do movimento, num momento em que os conflitos

internos e as diversas posições tomadas por muitos setores que o conformaram (incluindo os

conflitos internos da CONAIE) faziam prever um recuo eleitoral. Nesses cálculos não se

350

Diario El Universo, “Gobierno firmó Carta de Intención con FMI”, 11-02-2003. 351

Entre um vai e vem de declarações dos responsáveis políticos do movimento Pachakutik, Fernando Buendía,

que tinha sido nomeado assessor do Ministro de Economia Mauricio Pozo como quota política de Pachakutik,

apos da visita que o Ministro e sua equipe fizeram ao Fundo Monetário previamente a assinatura da Carta de

Intenções, declarou que o FMI tinha uma atitude sensível e humana diante dos problemas do Equador. 352

Diario Hoy, “Nina Pacari defiende el Programa Económico”, 3-02-2003. 353

Este setor político mais tarde se separará de Pachakutik e estabelecerá uma aliança duradoura com Alianza

País o partido do governo de Rafael Correa, ocupando cargos significativos nele. Augusto Barrera foi alcalde

(prefeito) da capital Quito e Virgilio Hernández, que foi membro da Asamblea Constituyente e posteriormente da

Asamblea Nacional por dois períodos consecutivos.

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210

considerava a possibilidade de ganhar as eleições e assumir o governo354

, pelo que o acordo

com Gutiérrez não se baseou em conteúdos programáticos compartilhados ou em um projeto

político que pudesse guiar a ação de um possível governo de coalizão. Consequentemente,

não se pode sustentar que a orientação assumida pelo governo Gutiérrez desde o início de seu

mandato fosse uma traição ao movimento indígena e a Pachakutik, como foi dito

insistentemente pelas lideranças indígenas e o setor mestiço de Pachakutik, após a ruptura da

aliança.

Não foi durante o governo de Lucio Gutiérrez a primeira vez que altos dirigentes ou

representantes do movimento indígena participavam ocupando cargos importantes em

governos com orientação neoliberal. Anteriormente, a cooptação de lideranças do movimento

para ocupar cargos já ocorreu no governo Bucaram com a nomeação de Rafael Pandam, então

vice-presidente da CONAIE, como Ministro do chamado Ministério de Assuntos Indígenas,

de curta duração, causando fraturas sensíveis na CONAIE. No governo de Gustavo Noboa,

Luis Maldonado, liderança e intelectual do movimento indígena, ocupou o portfólio do

Ministerio de Bienestar Social. Estes foram os casos mais renomados.

No entanto, também deve ser considerada a incorporação de funcionários indígenas

(lideranças ou representantes de organizações indígenas) nos diferentes níveis da

administração pública (ministérios e gobernaciones, jefaturas e tenencias políticas, outras

funções do Estado), dependendo da capacidade de negociação de cargos de cada uma das

organizações indígenas com os diferentes governos. Esses funcionários tiveram pouca

margem de manobra (mesmo quando foram ministros) na definição das políticas públicas e

nenhuma possibilidade para a revisão das políticas econômicas. Como já foi apontado, junto

com os funcionários indígenas eleitos, em várias ocasiões favoreceram a implantação de

mecanismos clientelistas encaminhados para as organizações indígenas de base por sucessivos

governos.

Contudo, no caso da participação de lideranças indígenas no governo Gutiérrez, há

uma diferença fundamental, pois não foi resultado de uma decisão individual de participar,

nem de uma definição autônoma de alguma das organizações de base ou regionais vinculadas

ao movimento indígena. Neste caso, foi uma decisão tomada pelo movimento indígena como

um todo, por meio de sua principal expressão política no movimento Pachakutik, com a

participação não só das lideranças indígenas, mas também de todos os setores mestiços

ligados a ele.

354

Pacari (2009).

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211

Da mesma forma, foi uma participação de maior magnitude. No início da aliança, o

Movimento Pachakutik assumiu 4 ministérios (Ministerio de Relaciones Exteriores,

Ministerio de Agricultura y Ganadería, Ministerio de Educación e Ministerio de Turismo),

diversas secretarias em distintos ministérios, a Secretaría de Diálogo355

, a Subgerencia del

Banco Ecuatoriano de Desarrollo (BEDE)356

e uma variedade de posições em diferentes

instâncias governamentais nos múltiplos níveis da administração no âmbito nacional ou

provincial. Nesse sentido, atravessou todo o movimento indígena nas suas expressões

provinciais e nacionais.

As possibilidades de desenvolver uma agenda própria de Pachakutik em algumas áreas

(agricultura, educação), com certa autonomia da orientação predominante no governo

Gutiérrez, que ao início do governo já eram limitadas, foram se restringindo cada vez mais.

Ao mesmo tempo, as tensões e confrontações entre as diferentes posições dentro de

Pachakutik, da CONAIE e entre essas instâncias organizativas exacerbaram-se, bem como as

ambiguidades e contradições dos representantes do movimento quanto ao significado da

aliança com Gutiérrez e sua participação no governo. Em agosto de 2003, produziu-se a

ruptura da aliança e a demissão dos membros mais importantes do movimento Pachakutik do

governo, após o anúncio da decisão de Gutiérrez de “pôr fim à aliança” diante da “atitude de

Pachakutik de não agir em função da aliança”357

, ruptura provocada uma vez que o bloco

parlamentar de Pachakutik não apoiou no Congresso a aprovação do projeto de “Ley de

Servicio civil y carrera administrativa”, que foi um dos compromissos acordados na Carta de

Intenções com o FMI358

e que originalmente contemplava, entre outros aspectos controversos,

o aumento da jornada laboral para 44 horas por semana para os funcionários públicos. Duas

semanas antes, Gutiérrez afastou do governo a ministra da Educação, Rosa María Torres, por

fazer declarações nas quais criticava a gestão governamental359

.

O fim da aliança, embora supusesse o fim da participação oficial de Pachakutik no

governo de Gutiérrez e a saída de suas principais figuras políticas, não significou uma ruptura

com o conjunto do movimento indígena. Muitos dos quadros intermediários, especialmente

em algumas províncias, ficaram e continuaram a colaborar com o governo (desta vez não mais

sob o guarda-chuva político de Pachakutik). Além disso, dentro da CONAIE e Pachakutik no

355

Secretaria criada pelo governo Gutiérrez para favorecer o diálogo com diversos setores políticos e da

sociedade civil para o planejamento das políticas publicas, encarregada a Augusto Barrera, também de curta

duração. 356

Na figura de Olmedo Iza, irmão de Leonidas Iza (então presidente da CONAIE). 357

Diario El Comercio, “Pachakutik se quedó fuera del poder”, 7-08-2003. 358

Ver Diario El Comercio, “La alianza de gobierno cerca del fin”, 6-08-2003 359

Ver Diario El Comercio, “El presidente canceló a la ministra Torres”, 22-07-2003.

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momento da ruptura da aliança com Gutiérrez, havia um setor que defendia a permanência no

governo, pelo qual, diante das dificuldades de alcançar um consenso interno, o movimento

Pachakutik não tomou a decisão de romper a aliança após a separação da ministra da

educação e seria o próprio governo Gutiérrez, antecipando-se a uma eventual decisão de

Pachakutik, quem anunciou que a aliança tinha chegado ao fim. Esta situação de divisão

interna em relação ao futuro da aliança foi claramente evidenciada, quando no dia seguinte de

anunciada a ruptura, 40 dirigentes da CONFENIAE liderados pelo ex-ministro Pandam (no

governo Bucaram) reuniram-se com o presidente Gutiérrez e anunciaram seu respaldo para

sua gestão360

. A notícia que deu conta deste fato acrescentou:

Gutiérrez cumprimentou o gesto dos amazônicos, liderados pelo ex-ministro

indígena de Abdalá Bucaram e atual vice-presidente dessa organização361

, Rafael

Pandam. A delegação subiu ao salão de banquetes, ignorando o portão de segurança,

acompanhada pelo Ministro da Energia, Carlos Arboleda. Após os discursos, o

presidente disse que manterá seus contatos com as bases indígenas e o povo em

geral sem olhar para a sua tendência política. [...] Após a partida de Pachakutik,

conheceu-se que o presidente Gutiérrez e seu círculo íntimo estão determinados a

fortalecer suas bases populares, especialmente em setores indígenas, para fissurar o

movimento da CONAIE e também para organizar uma grande marcha de apoio ao

governo para 21 de agosto, dia em que os movimentos sociais farão uma jornada de

protesto. Alguma coisa como uma contramarcha362

.

Aqui se evidencia o grau que alcançou no governo Gutiérrez a cooptação de

representantes do movimento indígena e sua conversão na figura do “índio permitido”,

iniciada nos governos anteriores, como parte da política de administração de populações e do

dispositivo multicultural na governamentalidade neoliberal. Os “contatos com as bases

indígenas” e a perspectiva de Gutiérrez e seu partido para fortalecer “suas bases populares,

especialmente em setores indígenas”, não começam a partir da ruptura com Pachakutik, mas

já estavam presentes desde o início de sua gestão e marcaram seu relacionamento com as

lideranças de Pachakutik e da CONAIE. A novidade que adicionou a ruptura com Pachakutik

foi a tentativa explícita para afastar as dinâmicas das organizações de base da CONAIE da

influência das lideranças e setores que eventualmente poderiam confrontar com o governo,

promovendo assim rupturas e divisões presentes nesta organização. Ao mesmo tempo, o

governo procurava expandir e fortalecer o apoio de outras organizações indígenas, como a

FEINE, expressão da vertente evangélica no movimento indígena. Tudo isso, constituiu um

passo adicional e mais refinado que visava desmobilizar o movimento indígena em suas

360

Ver Diario El Comercio, “Gutiérrez redefine su tablero político”, 8-08-2003. 361

Refere-se à CONFENIAE, filial regional da CONAIE. 362

Diario El Comercio, “Gutiérrez redefine su tablero político”, 8-08-2003.

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concepções contestatórias, articulando suas várias expressões organizativas ao redor de

mecanismos clientelistas, por meio dos quais se entregavam cargos públicos e recursos para

obras e pequenas iniciativas de desenvolvimento nas comunidades em troca de apoio das

comunidades para o governo363

. Esta política foi afirmada alguns meses depois com a

nomeação da liderança amazônica Antonio Vargas como Ministro de Bienestar Social.

Vargas, ex-presidente da CONAIE e da OPIP, que para esse momento tinha reestabelecido

sua base de apoio na Amazônia e com a FEINE, e que mantinha uma série de relações e

contatos com várias organizações locais e provinciais da CONAIE na Serra central,

permaneceu a frente do referido ministério até a queda do governo Gutiérrez364

.

A participação indígena no governo Gutiérrez marcou profundamente o movimento

indígena como um todo e teve repercussões duradouras. Muitos autores referem-se a ela como

uma das principais razões que causaram uma crise do movimento indígena (ZAMOSC, 2007;

CERVONE, 2009; MARTÍNEZ, 2005). A partir de um olhar atual, também para muitas das

lideranças indígenas, essa participação foi um equívoco do movimento pela falta de clareza

nos conteúdos políticos e programáticos da aliança com Gutiérrez365

. Os mecanismos de

cooptação clientelista que o governo Gutiérrez desenvolveu penetraram todo o movimento e

em todas as suas expressões organizativas até o nível das comunidades, passando por todas as

estruturas intermediárias do arcabouço organizacional. No entanto, isso foi possível não só

por causa das intenções do governo Gutiérrez e pela sua proximidade do movimento indígena

e da sua dinâmica. No reverso da medalha desses mecanismos implantados pelo governo

Gutiérrez, encontramos as concepções, aspirações e práticas das organizações indígenas e

seus representantes, em seus diferentes níveis organizativos, modeladas desde anos anteriores

pela política neoindigenista de administração de populações, isto é como uma biopolítica

direcionada para as populações indígenas, e dentro dela pelos dispositivos do

multiculturalismo e do aparelho institucional do desenvolvimento no contexto da

363

Inclusive o governo Gutiérrez tentou criar uma nova organização indígena chamada de FEDEPICNE (Frente

de Defensa de los Pueblos Indígenas, Campesinos y Negros del Ecuador), nucleada en torno aos mecanismos

clientelistas implantados nesse governo. Ainda que esta nova organização não conseguisse se consolidar no

cenário das organizações indígenas nacionais no Equador, a rede de relacionamentos e lealdades nas

comunidades construída a partir desses mecanismos clientelistas se mantêm um tempo depois como foi

evidenciado pelo respaldo eleitoral que teve o partido de Gutiérrez (Sociedad Patriótica) nas províncias da Serra

central e Amazônia, igualmente nas áreas rurais da Costa equatoriana em distintas eleições à queda do governo

Gutiérrez. 364

Vargas canalizou o respaldo dos indígenas evangélicos para Gutiérrez e dos outros setores mencionados

promovendo sua mobilização em defesa do governo até sua derrubada. Dividida e desmobilizada, a CONAIE

não conseguiu mobilizar suas bases nos dias da queda de Gutiérrez, a qual foi impulsionada especialmente por

setores médios de Quito. 365

Entrevista Guillermo Churuchumbi, 6 maio 2014; Entrevista Humberto Cholango, 12 maio 2014; Entrevista

Lourdes Tibán, 22 janeiro 2015.

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governamentalidade neoliberal. A desmontagem dos conteúdos contestatórios e

anticapitalistas presentes no movimento indígena alcançava desse modo seu ápice. Tinha-se

consumado uma modalidade específica de incorporação indígena no Estado neoliberal, com a

participação direta dos próprios representantes indígenas encarregados de recolher as

migalhas que caíam da mesa dos convidados ao banquete do capital, para distribuí-las nas

comunidades ilusionadas e expectantes, considerando junto com seus representantes que

tocaram o trono e a glória do poder no Estado.

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215

5 NEODESENVOLVIMENTISMO E CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA NO

GOVERNO CORREA: A degradação do estado plurinacional e a conflitiva relação com

o movimento indígena

5.1 O FIM DA LONGA NOITE NEOLIBERAL? A ASCENSÃO DO GOVERNO DE

RAFAEL CORREA, MUDANÇAS CONSTITUCIONAIS E RELAÇÃO COM O

MOVIMENTO INDÍGENA.

Após a queda do governo Gutiérrez em abril de 2005 abriu-se um período de transição

política com a posse de seu vice-presidente Alfredo Palacio até a chegada das eleições de

2006, após uma década de instabilidade e quando a população equatoriana ainda convalescia

das consequências da dura crise econômica que atravessou o país na virada do século. Dois

fatos foram significativos nesse período de transição (nos quais o movimento indígena esteve

direta ou indiretamente envolvido) por suas consequências posteriores nas dinâmicas

econômicas e políticas do país: o cancelamento das negociações para a assinatura do Tratado

de Livre Comércio com os Estados Unidos em 2006 e a presença de novas figuras políticas no

governo Palacio, as quais provinham de grupos “progressistas” que participaram das

mobilizações que promoveram a queda do governo Gutierrez, entre elas Rafael Correa, que

desempenhou por poucos meses a função de ministro de Economia.

As negociações para assinar o Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados

Unidos iniciaram-se em 2004, no governo Gutiérrez e para 2006 tinham alcançado um estágio

muito avançado, prévio a sua assinatura. Na medida em que estas negociações continuavam, a

luta contra sua assinatura cresceu, protagonizada pelas principais organizações do movimento

indígena e camponês e outros setores sociais, motivadas especialmente pelas consequências

que a assinatura desse tratado podia ter para a agricultura camponesa e indígena do país.

Após das dificuldades e as divisões internas provocadas como consequência da participação

política do movimento indígena no governo Gutiérrez, como apontamos no capítulo anterior,

entre 2005 e 2006 a CONAIE, sob a liderança de Luis Macas, iniciou um processo de

recomposição interna retomando as relações com suas organizações de base, o que implicou

também assumir novos direcionamentos menos focados na participação institucional no

Estado, a exemplo da decisão de não continuar com o projeto PRODEPINE. A luta contra a

negociação do TLC e por uma nova Assembleia Constituinte permitiu a CONAIE a retomada

de uma agenda política agrária, abandonada na pauta desta organização por uma década,

conectando-se assim com as preocupações concretas das comunidades. De outro lado, a

FENOCIN e outras organizações camponesas da Costa, por seus vínculos com a Via

Campesina Internacional, também organizaram e participaram das ações de resistência contra

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216

o TLC, colocando na pauta política nacional a questão da soberania alimentar, como uma

reivindicação camponesa central366

.

Neste contexto, em março de 2006 a CONAIE convocou mobilizações nacionais

contra o TLC e pela caducidade do contrato do Estado equatoriano com a empresa petroleira

estadunidense OXI (Occidental Exploration and Production Company). Estas mobilizações

tiveram uma grande acolhida. Durante duas semanas, as organizações indígenas ocuparam

várias rodovias e paralisaram nove províncias da Serra, o que foi interpretado pela imprensa

nacional como uma ressurreição da CONAIE367

, posteriormente das dificuldades geradas pela

passagem do movimento indígena com o governo Gutiérrez. O governo decretou o estado de

exceção e 250 pessoas foram detidas (BECKER, 2015). Novamente a CONAIE se

posicionava com força, liderando as lutas de resistência contra o neoliberalismo e mostrava

que mantinha sua capacidade de mobilização. A suspensão da negociação do TLC se produziu

dois meses mais tarde por uma decisão do governo dos Estados Unidos diante da posição

adotada pelo governo Palacio ao declarar a caducidade do contrato com a empresa OXI e

reformar a Ley de Hidrocarburos para obrigar a renegociar as percentagens de participação do

Estado nos contratos petroleiros com as empresas transnacionais. Além da posição do governo

dos Estados Unidos e dos motivos dessa decisão, o cancelamento das negociações do TLC foi

interpretado como um triunfo do movimento indígena e camponês, assim como das

organizações sociais que participaram das ações de resistência.

Projetado como nova figura política nacional após sua curta passagem pelo ministério

de Economia, Rafael Correa, um economista católico neokeynesiano, cuja trajetória não

provinha da esquerda nem das lutas dos movimentos sociais, tornou-se em 2006 o candidato

de uma aliança eleitoral heterogénea (Alianza País) que agrupava variados movimentos,

organizações sociais (entre elas a FENOCIN) e setores entre os que se encontravam partidos

de esquerda e grupos cidadãos de tendência progressista. Com uma retórica questionadora do

366

A noção de soberania alimentar ganhou uma centralidade cada vez maior nas lutas das organizações e

movimentos camponeses e indígenas nacionais, particularmente na América Latina. Nascida no calor das

resistências camponesas às políticas agrárias neoliberais durante a década de 1990 (a noção surgiu concretamente

nas lutas de resistência camponesa ao NAFTA no México em meados da década de 1990), a soberania alimentar

constitui hoje a principal bandeira da Via Campesina Internacional (movimento global que aglutina as principais

organizações camponesas nacionais de América, Europa, África e Ásia). Essa centralidade da soberania

alimentar esta dada por sua capacidade de condensar em torno de si uma diversidade de lutas em contextos

diversos, a exemplo de: a disputa pela terra e pela água, a defesa dos sistemas produtivos camponeses, a defesa

da agrobiodiversidade e a preservação do patrimônio genético das sementes, o acesso a mercados locais para os

produtos camponeses e a defesa da cultura alimentar. Para uma definição da soberania alimentar na perspectiva

da Via Campesina ver a declaração de Nyéléni (Mali) do Foro Mundial pela Soberania alimentar: Disponível

em: <https://www.nyeleni.org/spip.php?article291>. Acesso em: 24 jan 2018. 367

Ver Diario El Comercio, “El líder Saraguro que resucitó una CONAIE moribunda”, 18-03-2006, em: Kipu

47, jan-jun. 2006.

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sistema político imperante (caricaturado com o apelativo de “partidocracia”) e que anunciava

o “fim da longa noite neoliberal” e a “revolução cidadã”368

, sua campanha retomou as

reivindicações e demandas levantadas por duas décadas pelos movimentos sociais nas lutas de

resistência ao neoliberalismo (entre elas a convocatória a uma Assembleia Constituinte) e

sustentou-se sobre o acúmulo gerado nelas, levando-o ao triunfo no segundo turno contra o

multimilionário guayaquileño Alvaro Noboa. A chegada de Rafael Correa ao governo

levantou muitas expectativas entre as organizações e movimentos sociais pelas mudanças

anunciadas e pela rápida convocatória da Assembleia Constituinte que permitiu modificar a

correlação de forças no Congresso Nacional369

.

A realização da Assembleia Constituinte gerou uma ampla mobilização de distintos

setores e organizações (movimentos sociais, políticos, ecologistas, ONGs) interessados em

incidir nas deliberações, num momento que se vivenciava como se fosse uma refundação do

país (DE LA TORRE, 2015, p. 154). A CONAIE, por exemplo, apresentou uma proposta de

nova Constituição que tomava como aspecto central a declaratória do Estado plurinacional e

convocou uma marcha em Quito para pressionar pela inclusão de suas demandas370

. A

proposta da CONAIE foi entregue ao Presidente da Assembleia Constituinte Alberto Acosta,

por ser mais próximo das teses do movimento indígena e dos setores ecologistas e que alguns

meses depois, por divergências com Correa, renunciou à presidência da Assembleia, afastou-

se do governo e de Alianza País e nos anos seguintes se tornou em uma das vozes críticas ao

governo Correa.

Uma interpretação de analistas de esquerda críticos ao governo de Correa (entre eles

Alberto Acosta) distingue duas etapas no governo Correa: a primeira caraterizada por uma

forte participação popular que propiciou o avanço nas conquistas dos movimentos e

organizações sociais expressas nos direitos e garantias reconhecidas na Constituição de 2008,

etapa que iria precisamente até a demissão de Alberto Acosta como presidente da Assembleia

Constituinte e uma segunda etapa caraterizada pelo afastamento do governo Correa de um

projeto de esquerda e por sua deriva autoritária e extrativista (ALVAREZ et al, 2013;

MUÑOZ, 2014). Em contraste com esta interpretação, De la Torre considera que as

divergências existentes no bloco maioritário de Alianza País na Assembleia refletiam as

tensões recorrentes da “apropriação populista da vontade popular” por parte de Correa,

368

Para detalhe da retórica e dos conteúdos da campanha de Correa e Noboa em 2006 ver De la Torre (2015). 369

Uma descrição dos diferentes momentos do processo de instalação da Assembleia Constituinte (Plebiscito,

eleições de asambleístas, instalação e debates da Assembleia) encontra-se em De la Torre (2015); Becker

(2015); Muñoz (2014). 370

Uma síntese dos principais pontos da proposta de nova Constituição da CONAIE está em CONAIE (2007).

Para uma breve análise dos conteúdos centrais dessa proposta ver Becker (2015); Schavelzon (2015).

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erigido como líder que encarnava o projeto da “revolução cidadã” diante do povo concebido

como UNO (com uma só identidade, interesses e projeto que são os articulados pelo líder) e

os “projetos da sociedade civil diversa” manifestados na Assembleia Constituinte (DE LA

TORRE, 2015, p. 154-155).

No meio de fortes debates e em sua etapa final caraterizada pela confrontação de

posições no seio do bloco maioritário de Alianza País, motivada pela continua ingerência de

Correa para a definição das posições sobre diversos temas no bloco e pela divergência de

posicionamentos com Acosta, a Assembleia Constituinte acolheu algumas das demandas e

proposições geradas pelos movimentos e organizações sociais371

, entre as quais se destacam: a

declaratória do Estado plurinacional e intercultural; a ratificação e ampliação dos direitos

coletivos dos povos e nacionalidades indígenas; a adoção dos direitos da natureza; a proibição

do latifúndio e a concentração da terra e da monopolização e privatização das águas; o

articulado sobre soberania alimentar, a declaratória do Equador como país livre de cultivos e

sementes transgênicas, etc..

De outro lado, além das conquistas das organizações e movimentos sociais em termos

da ampliação das garantias e direitos consignados na Constituição, seus conteúdos também

refletiram uma concepção do sentido das mudanças que se pretendia empreender a partir do

Estado e contribuiriam para definir o rumo que assumiria o regime político no governo

Correa, favorecendo suas tendências autoritárias e caudilhistas. Nesta direção, três

características foram ressaltadas por alguns analistas críticos: a) o hiperpresidencialismo

imposto por Correa que permitiu o controle dos distintos poderes pelo executivo; b) uma

concepção de um Estado com forte capacidade de intervenção na economia para potenciar o

padrão de reprodução do capital372

; c) a abertura a capitais globais e transnacionais “nas áreas

estratégicas da economia” (MUÑOZ, 2014, p. 206).

Paradoxalmente, após o reconhecimento constitucional dos direitos coletivos

indígenas e do caráter plurinacional do Estado, uma das mais caras aspirações do movimento

indígena, verificou-se um progressivo incremento das tensões, conflitos e discrepâncias entre

o governo Correa e algumas das maiores organizações indígenas, especialmente aquelas

vinculadas a CONAIE. São múltiplos os exemplos dos conflitos entre as políticas, propostas e

371

Em relação aos debates na Assembleia em torno das principais proposições colocadas pelo movimento

indígena em suas distintas expressões e por outros movimentos sociais ver Becker (2015); Muñoz (2014); Ortiz

(2009). Um tema polêmico que não foi aprovado na Constituição foi o tema do consentimento prévio ou

consentimento livre das nacionalidades e povos indígenas para permitir a exploração de recursos naturais nos

territórios indígenas, ficando definida apenas a necessidade da consulta prévia, sem um caráter vinculativo. 372

Sobre o conceito de “padrão de reprodução do capital” desenvolvido por Jaime Osorio ver o capítulo

primeiro, a seção sobre o neoliberalismo.

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leis implantadas pelo governo e a defesa por parte das organizações indígenas de seus direitos

e de seus territórios, ainda que o presidente e alguns representantes do governo incorporassem

em seu discurso político à retórica antineoliberal e vários elementos simbólicos e políticos

colocados pelos próprios movimentos indígenas na Constituinte tais como o “Bem-Viver” e o

respeito à “Pachamama” (a Mãe Terra).

Nos últimos anos, centenas de lideranças indígenas tiveram que enfrentar processos

judiciais sob a acusação de sabotagem e terrorismo por participar de protestos contra várias

das propostas do governo, o que não tinha acontecido antes nem nos maiores levantamentos

indígenas. Na mesma direção, sob a justificativa que “não podemos ser mendigos sentados

num saco de ouro”373

o presidente Correa promoveu a mineração em grande escala (de cobre

e ouro) com grandes empresas transnacionais e anunciou o início de uma “nova era” no

Equador, uma “era mineira” que “vai nos tirar da pobreza”374

, ao mesmo tempo em que

desqualificava as posições críticas colocadas por organizações indígenas, movimentos

ecologistas e setores de esquerda sob a acusação de “esquerdismo infantil”, “ecologismo

infantil” ou “indianismo infantil” e considerava sem contemplações que eles representavam

“o maior perigo para o nosso projeto político” (DE LA TORRE, 2015, p. 167-168; MUÑOZ,

2014, p. 204).

Estes exemplos dão conta não apenas das dificuldades enfrentadas pelo movimento

indígena no sentido de que os avanços obtidos (com todas suas limitações) no reconhecimento

de seus direitos nos textos constitucionais pudessem ser vinculativos e aplicáveis em termos

concretos, senão também das contradições entre as políticas neodesenvolvimentistas de

modernização capitalista aplicadas pelo governo Correa, sustentadas na exploração e extração

de matérias primas (muitas delas localizadas nos territórios indígenas) e as possibilidades de

reprodução econômica, social e cultural dos povos e comunidades indígenas em condições

dignas. Ao mesmo tempo, essas políticas mostram claramente o caráter das mudanças e do

projeto político protagonizado pelo governo Correa, o qual pode ser caracterizado de forma

mais precisa como “neodesenvolvimentista”, em relação ao projeto de modernização

capitalista por ele promovido, como foi discutido no capítulo primeiro ao abordar a questão

do neoliberalismo e a ascensão de governos “progressistas” na América Latina.

373

Esta frase foi frequentemente usada pelo presidente Correa para justificar o início da exploração mineira em

grande escala no Equador e a assinatura de contratos de exploração de minas a céu aberto de cobre e de ouro

com grandes mineradoras da China e do Canadá. Ver Diario El comercio, “Wilson Pastor firmó contrato com

Ecuacorriente”, 5-03-2012 em:<http://www.elcomercio.com/negocios/Wilson-Pastor-firmo-contrato-

Ecuacorriente_0_658134320.html>. Acesso em: 12 out 2015; ver também Machado (2012). 374

Ver: Noticias. Enlace ciudadano Nro. 249. El Ciudadano. Periódico Oficial. Disponível em:

<http://www.elciudadano.gob.ec/noticias249-2/> . Acesso em: 12 out. 2015.

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220

Nas seguintes seções abordarei a discussão da continuidade e reconfiguração da

política de administração da população indígena na última década com o projeto

neodesenvolvimentista do governo Correa. Para isso, partirei de uma caracterização rápida

deste período, refletindo sobre as mudanças no padrão de desenvolvimento capitalista e no

papel do Estado, ainda dentro das coordenadas da governamentalidade neoliberal, produzidas

durante sua gestão. Posteriormente, discutirei como a relação com o movimento indígena se

inseriu no processo de construção da hegemonia no governo Correa para a obtenção de

consentimento na sociedade, por meio da apropriação por parte do governo de elementos

simbólicos e discursivos levantados nas lutas contra o neoliberalismo e pelo movimento

indígena, combinado com o incremento dos níveis de coerção contra as formas de resistência

e a criminalização do protesto social. Seguidamente, descreverei os elementos de

continuidade e as reconfigurações produzidas na política multiculturalista do Estado que

provocaram a degradação dos sentidos da noção de plurinacionalidade e de outras conquistas

alcançadas pelo movimento indígena na Constituição.

5.2 MODERNIZAÇÃO CAPITALISTA E O PROJETO NEODESENVOLVIMENTISTA

DA REVOLUÇÃO CIDADÃ

A chegada ao poder de Rafael Correa ocorreu num momento em que vários países da

América Latina transitavam por novas experiências políticas protagonizadas pela presença de

vários governos “progressistas” e de centro-esquerda, os quais, além de suas diferenças,

tinham como denominador comum a crítica às políticas neoliberais aplicadas na região, a

recuperação do papel dos Estados Nacionais na economia e o fortalecimento dos processos de

integração regional. Como mencionado no capítulo primeiro, esse momento coincide com o

processo de reorganização e reestruturação produtiva no âmbito regional em relação com as

mudanças operadas no capitalismo mundial, as quais implicaram uma nova inserção da

América Latina na divisão internacional do trabalho e que Osorio (2012) define como um

novo “padrão de reprodução do capital”, qualificado por este autor como “exportador de

especialização produtiva”, padrão construído durante a aplicação das políticas neoliberais e

caracterizado pela retomada da antiga vocação exportadora de alimentos e matérias primas da

região, desta vez reorganizada junto à nova produção de “maquila” e montagem

manufatureira, sob o domínio do capital global (OSORIO, 2012).

Os preços das matérias primas (minerais e alimentos) experimentaram um

significativo incremento entre 2002 e 2013 no mercado internacional como consequência da

aceleração da economia chinesa a partir de 2004, a qual impulsionou sua demanda e

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221

provocou a elevação dos termos de intercambio para América Latina, como mostra em

detalhe Larrea (2015). Dessa maneira, a região vivenciou um novo ciclo de expansão

econômica, concentrando suas exportações em produtos primários como soja e minério de

ferro no Brasil e Argentina, cobre em Peru, petróleo no Equador e carvão em Colômbia

(LARREA, 2015)375

.

Ao considerar estes aspectos e também a crise do neoliberalismo como discurso

hegemônico, junto com a relegitimação dos discursos críticos e a presença dos movimentos

sociais, Maristella Svampa (2009 e 2010) caracterizou esse momento da região como uma

“nova época”, contraposta com clareza à década de 1990. Contudo, Svampa era cautelosa no

momento de qualificar esta nova época como pós-neoliberal ao encontrar vários elementos de

continuidade com o neoliberalismo. Entre eles destaca-se a generalização de um modelo

extrativo exportador na região baseado na extração de recursos naturais não renováveis e a

expansão dos agronegócios, necessários para garantir o modelo de acumulação vigente e a

inserção dos países latino-americanos no mercado global. A generalização deste modelo

estaria determinando a ocupação de territórios anteriormente considerados improdutivos e que

agora são de alto interesse do capital para a produção agrícola, petroleira, mineira, energética

ou florestal, reorientando assim a economia de populações inteiras, transformando seus estilos

de vida e ameaçando a sustentabilidade ecológica. A mineração a céu aberto, a construção de

megabarragens, os grandes empreendimentos previstos na Iniciativa para la Integración de la

Infraestructura Regional Suramericana IIRSA, a expansão da produção de agrocombustíveis

ilustram estas transformações (SVAMPA, 2010: 6).

Para esta autora, este cenário colocava como centro da disputa e do conflito a questão

do território e do meio ambiente, potencializando em contrapartida as lutas pela defesa das

terras e dos territórios por parte dos movimentos indígenas e camponeses. A crescente

territorialização pelo aprofundamento do modelo extrativo exportador tinha derivado no

deslocamento de comunidades originárias e camponesas e também em uma maior perseguição

às lideranças e militantes sociais, num contexto de militarização e saídas repressivas que

375

Com uma perspectiva comparativa o trabalho de Carlos Larrea mostra as mudanças na dinâmica econômica

dos países da região como consequência desse ciclo expansivo e os resultados alcançados em relação às políticas

sociais e a redução da pobreza. O trabalho evidência no período uma redução pronunciada da pobreza na maior

parte dos países, independentemente da orientação de seus governos (conservadores ou progressistas). Mesmo

assim, a partir de 2014 com a desaceleração da economia chinesa e preços menos favoráveis das matérias

primas, a região experimenta uma aguda vulnerabilidade provocada pelo enfraquecimento da produção

manufatureira e de alimentos para os mercados internos, sua baixa produtividade e sua escassa diversificação da

economia, decorrentes das características do ciclo expansivo (LARREA, 2015).

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222

configuraria uma tendência a criminalizar o protesto social, como um perigo adicional nesta

nova fase de acumulação de capital na região latino-americana (SVAMPA, 2009, p. 86).

Anos mais tarde, Svampa junto com Enrique Viale em um extenso e detalhado

trabalho sobre o processo argentino durante o kichnerismo (SVAMPA e VIALE, 2014)

confirmariam estas tendências presentes na região, enfatizando na sua caracterização da

última etapa o que eles denominam a passagem do “Consenso de Washington ao Consenso

das Commodities”. Passagem caraterizada na região pela exportação de bens primários em

grande escala (hidrocarbonetos, metais e minerais, produtos agrários e biocombustíveis) cujos

preços se estabelecem internacionalmente, provocando a reprimarização das economias, junto

ao aprofundamento das “dinâmicas de espoliação”376

, as quais implicam a desapropriação e

concentração de terras, recursos e territórios e têm como protagonistas centrais as grandes

corporações, em “aliança multiescalar” com os distintos governos. Para estes autores, esses

processos consolidaram um padrão de desenvolvimento extrativista (“neoextrativismo

desenvolvimentista”) de caráter depredatório (sobre-exploração da natureza) e dependente

(SVAMPA e VIALE, 2014, p. 15-16). O “consenso das commodities”, enquanto um acordo

tácito em torno do caráter irrevogável da dinâmica extrativista na região situa no centro a

implantação maciça de projetos extrativos orientados para a exportação, ao tempo que

mantém uma maior flexibilidade sobre o papel do Estado, permitindo assim a confluência de

governos conservadores e progressistas, a exemplo da sustentação das bases normativas e

jurídicas que contribuíram na expansão do padrão extrativista para garantir as taxas de lucro

para o capital (SVAMPA e VIALE, 2014, p. 18).

Esta linha interpretativa desenvolvida por Svampa para a análise desta etapa

econômica e política vivenciada na região latino-americana oferece algumas pistas para

compreender e caracterizar melhor as mudanças políticas trazidas pelo governo Correa no

Equador, as continuidades e rupturas com as políticas neoliberais e também a mutável e

conflitante relação estabelecida por este governo com o movimento indígena.

Efetivamente, ao revisar o alcance das mudanças operadas no Equador após da

primeira fase de consolidação política do governo até a aprovação da nova Constituição no

ano 2008, evidencia-se que o que foi posto realmente em andamento foi um projeto de

modernização capitalista com um protagonismo forte do Estado para criar e desenvolver as

condições para a valorização do capital (UNDA, 2013; LANG, 2017), em lugar de um

processo de mudanças mais radicais ou de mudanças estruturais que prefigurem um modelo

376

Refere-se à categoria de “acumulação por espoliação” desenvolvida por Harvey (2008), como foi discutido no

capítulo primeiro.

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223

distinto de desenvolvimento com uma marcada participação das organizações e movimentos

sociais. Nesse projeto, com a premissa de que as mudanças devem partir de cima para baixo,

não se perguntou sobre o tipo de Estado necessário, nem pelas formas de regulação e

intervenção desejáveis (LANG, 2017, p. 52), limitando a emergência de outras formas de

entender a política (a política autônoma de “produção do comum”), questionadoras da

centralidade do Estado como lugar de enunciação do “universal”, da “aparente representação

da totalidade social” (GUTIÉRREZ, 2017, p. 61; LANG, 2017, p. 52).

Nesse sentido, o desenvolvimentismo caracterizado por uma visão produtivista e do

“progresso” que o governo Correa atualizou constantemente na gestão pública foi compatível

com a governamentalidade neoliberal, ao criar um clima favorável de negócios, operar de

mãos dadas com o capital corporativo e favorecer o desenvolvimento capitalista com fortes

investimentos públicos para a construção de infraestrutura. Além disso, muitas das reformas

promovidas durante os anos do neoliberalismo para favorecer os grandes investimentos e a

expansão do capital em novos territórios permaneceram inalteradas ou foram reformuladas e

reforçadas enquanto se reproduziram as políticas sociais focalizadas e compensatórias

aplicadas para combater a pobreza, no quadro proposto pelo neoliberalismo.

Inclusive, no que tange a gestão da dívida externa equatoriana, interpretada por

analistas próximos ao governo como um dos sinais mais fortes da reconstrução do poder

estatal após das décadas neoliberais (RAMÍREZ, F., 2012), é possível perceber o rumo

assumido pelo governo Correa para favorecer o processo de modernização capitalista a partir

dos investimentos públicos. Com efeito, como parte das demandas historicamente

reivindicadas pelos movimentos sociais assumidas ao início do governo Correa em 2007, o

governo criou uma Comissão especial para a realização de uma auditoria da dívida externa

(Comisión de Auditoría Integral del Crédito Público). Em 2008, essa Comissão apresentou

um relatório no qual questionava a legalidade e legitimidade de várias parcelas da dívida

externa equatoriana. Com este resultado o governo Correa caiu em default e não pagou os

juros dos “Bonos Global” 2012 e 2030, provocando sua renegociação. Em 2009 o Estado

equatoriano conseguiu recomprar esses títulos por 35% de seu valor nominal, pelo qual

reduziu o saldo total de sua dívida externa de 10,6 bilhões de dólares para 7,4 bilhões

(ACOSTA e CAJAS, 2017), colocando-a nesse momento num patamar manejável pelo

Estado. Não obstante esses resultados iniciais, como detalham Acosta e Cajas (2017), nos

anos seguintes o governo Correa retomou a trilha de um endividamento agressivo externo e

interno (especialmente a partir de 2013) apesar das altas taxas de juros que deve pagar (a

consequência do antecedente do default), por meio de negociações pouco transparentes com a

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224

banca internacional (que em um dos casos implicaram a entrega das reservas em ouro como

garantia ao Banco Goldman Sachs). Dessa forma, a dívida externa cresceu de 7,4 bilhões em

2009 para 25,7 bilhões em 2016, enquanto a dívida interna acrescentou-se de 2,8 bilhões para

12,5 bilhões. Considerando outras obrigações não contabilizadas como dívida, tais como as

vendas antecipadas de petróleo que comprometem a entrega desse recurso por vários anos,

Acosta e Cajas (2017) estimaram o valor da dívida total em 59,2 bilhões em dezembro de

2016.

Em síntese, a partir dos antecedentes mencionados, o projeto de modernização

capitalista promovido pelo governo Correa pode ser caracterizado pelos seguintes elementos

centrais:

a) A predominância de uma matriz primário-extrativo-exportadora na economia como

base para sustentar o crescimento econômico (petróleo, megamineração, agronegócios) com

participação e predomínio de grandes empresas corporativas, aproveitando o ciclo de altos

preços das matérias primas e alimentos no mercado internacional (2004-2013).

b) A renegociação da participação do Estado sob um discurso nacionalista nos

contratos e concessões estabelecidos com as empresas transnacionais para a exploração de

petróleo e mineração. Esta renegociação supôs uma maior receita para o Estado pelos altos

preços do petróleo, porém manteve os investimentos na mão de grandes corporações

transnacionais. A promoção da megamineração e a abertura de novos campos para a

exploração de petróleo não modificou a inserção subordinada ao capital transnacional global

(Acosta, 2012), aprofundou um padrão extrativista que desrespeita os direitos coletivos de

indígenas e camponeses assentados nesses territórios e agravou a devastação ambiental. O

exemplo mais emblemático disso constituiu a exploração de petróleo no Parque Nacional

Yasuní e o abandono definitivo da iniciativa Yasuní ITT377

(Ishpingo Tambococha Tiputini)

em 2013, colocando em risco a sobrevivência dos povos indígenas em isolamento voluntario

(Tagaeri e Taromenani) e a biodiversidade única do Parque.

c) Com uma receita fiscal favorecida pelos altos preços do petróleo durante os anos de

sua gestão, o governo de Correa foi o governo que administrou os maiores recursos e

executou os maiores orçamentos anuais de toda a história republicana (ACOSTA, 2012;

ACOSTA e CAJAS, 2018). Com estes recursos, o governo promoveu fortes investimentos

377

A Iniciativa Yasuní ITT pretendia manter sob o solo uma parte do petróleo no Parque Nacional Yasuní e em

contrapartida o Estado Equatoriano receberia recursos de compensação da comunidade internacional por manter

intacta esta reserva de biosfera amazônica. Ainda que a Iniciativa tivesse um amplo respaldo da população

equatoriana (sendo mantida até depois das eleições de fevereiro de 2013) e constituísse um projeto emblemático

do governo Correa no exterior, sofreu vários entraves pelo próprio presidente, enquanto se avançava na

preparação da extração petroleira com o chamado plano B.

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225

públicos, especialmente em obras de infraestrutura e empreendimentos tais como

megabarragens ou rodovias, em parceria com empresas privadas (a maioria, transnacionais).

A participação do Estado na dinamização econômica esteve acompanhada de um redesenho

institucional das entidades do Estado e da ampliação do aparelho burocrático sob o comando

de uma lógica tecnocrática de gestão. Neste aspecto, primou pela racionalidade neoliberal no

sentido do Estado incorporar em seu seio o modelo e forma de gestão da empresa,

submetendo a toda a administração pública a uma lógica empresarial, a qual coloca a ênfase

“em padrões de ‘qualidade’ abstratos e descontextualizados, na eficiência e os resultados

medíveis” (LANG, 2017, p. 66)378

.

d) Junto com o maior protagonismo do Estado na economia, o governo empreendeu

também com reformas no quadro jurídico, encaminhadas a favorecer grandes investimentos

por empresas transnacionais, dar as garantias jurídicas necessárias e promover o que o

governo Correa chamou de “mudança na matriz produtiva”. Com efeito, foi essa a direção

assumida para a reforma e a criação de novas leis tais como a lei de mineração de 2009, o

novo “Código Orgânico da Produção, Comércio e Investimentos” expedido em 2010 com o

objetivo de incentivar os investimentos produtivos e a competitividade sistémica, o “código

monetário e financeiro” de 2014, entre outras leis e regulamentos.

e) Paralelamente, o governo articulou sua política social em torno de programas

assistenciais orientados à entrega de subsídios focalizados para paliar a pobreza (“bono de

desarrollo humano”) e investimentos em educação e saúde em percentagens do PIB maiores

do que em governos anteriores. Estas políticas sociais, junto com a entrega de algumas

concessões e recursos para atender demandas pontuais de alguns setores, foram operadas em

aliança com lideranças e autoridades locais para obter vantagens políticas e garantir o

respaldo de amplas camadas de setores populares. Estas políticas sociais não estiveram

acompanhadas de medidas estruturantes que diminuam a concentração dos recursos

produtivos (particularmente a terra e a água) no campo379

ou para alterar as taxas de lucro das

empresas em benefício dos trabalhadores, propiciando uma redistribuição efetiva da riqueza.

f) Uma vontade de construção hegemônica para garantir o consentimento da

sociedade, baseado numa retórica radical que se apropriou dos elementos simbólicos

378

O sistema de gestão chamado de “governo por resultados” (GPR) foi implantado em toda a administração

pública a partir de 2010, introduzindo uma “essência empresarial” na gestão do governo “no mais nítido

alinhamento com a cultura neoliberal” e instaurando uma espécie de “panóptico digital”, o qual vigia em tempo

real o rendimento dos funcionários (LANG, 2017, p. 68). 379

Embora se tivesse anunciado uma “revolução agrária”, na perspectiva do governo Correa ela foi concebida

sob um viés produtivista baseada em maiores investimentos e tecnologia e não foi orientada como uma proposta

para diminuir a alta concentração fundiária e provocar sua redistribuição.

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construídos nas lutas dos movimentos sociais contra o neoliberalismo, do movimento

indígena e da tradição revolucionária da esquerda latino-americana. Sob essa retórica radical,

como o percebe agudamente Mario Unda, “as grandes obras de infraestrutura confundem-se

com a revolução, as políticas sociais com profundas transformações, as disputas com os

tradicionais detentores do poder político com o confronto com o poder, o enfrentamento às

frações ‘oligárquicas’ com o confronto com o poder econômico” (UNDA, 2012, p. 82). Esta

vontade hegemônica no caso equatoriano ergueu uma figura do cidadão individualizado e não

admitiu a presença crítica de movimentos sociais autônomos organizados, desqualificando-os

e desestruturando-os (UNDA, 2012). Isso explica a criminalização do protesto social

recorrente nos últimos anos380

e o incremento dos níveis de repressão direta e coerção contra

os movimentos organizados, quando eles questionaram determinadas medidas adotadas,

especialmente se os protestos disputavam o mesmo patamar simbólico discursivo do governo,

procurando a legitimidade de suas lutas diante da sociedade. Ao mesmo tempo, como parte

dessa vontade hegemônica o governo Correa instaurou uma “campanha permanente”, definida

como a conjunção das artes de governar e de fazer campanhas eleitorais (DE LA TORRE,

2015, p. 150), que implicou uma constante propaganda midiática, o controle da mídia pública

e a imposição de severas restrições à mídia independente381

.

g) A construção de um regime político caraterizado pela concentração de funções e o

controle dos distintos poderes do Estado pelo executivo e a construção de formas autoritárias

e verticais de exercício do poder político concentradas na figura do presidente, formas que

reproduzem concepções e valores conservadores arraigados na cultura política popular

(machismo, racismo, caudilhismo, autoritarismo). A partir de diversas perspectivas teóricas,

analistas políticos sublinharam esta característica do governo Correa com diversos

qualificativos: “tecnopopulismo” e “autoritarismo brando” (DE LA TORRE, 2015)382

,

“neopopulismo” e “modernização autoritária” (VERDESOTO, 2014), “populismo

380

A tendência para a criminalização do protesto social já apareceu nos primeiros anos do governo Correa e

depois se agudizou. Diversos relatórios de entidades nacionais e internacionais de direitos humanos

documentaram com detalhe esta tendência. A respeito ver o relatório da Defensoría del Pueblo sobre a

“criminalización a defensores de derechos humanos y de la naturaleza en Ecuador” (Defensoría del Pueblo,

2011); o relatório de Amnistía Internacional (2012) sobre a criminalização do direito ao protesto no Equador; o

relatório da Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), Ecuador: Criminalización de la protesta

social frente a proyectos extractivos en Ecuador. Misión Internacional de Investigación (FIDH, CEDHU,

INREDH, 2015). 381

Ver: De la Torre (2015); Verdesoto (2014); Sierra (2017). Esta atuação característica do governo Correa que

contribuiu para construir a figura do caudilho foi descrita por Verdesoto (2014) como “neopopulismo midiático”. 382

A partir de uma perspectiva teórica weberiana que sugere entender a forma como diversos tipos de dominação

podem-se combinar em experiências históricas concretas, De la Torre compreende o “populismo” de Correa

como uma combinação entre a liderança carismática e critérios tecnocráticos (incorporando sinergias e tensões

nessa combinação). Daí sua caracterização do governo Correa como “tecnopopulismo” (DE LA TORRE, 2015).

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bonapartista/cesarista” (MUÑOZ, 2014), “dominação progressista” e “Estado

Frankenstein”383

(SIERRA, 2017).

O projeto de modernização capitalista do governo Correa desfrutou de um relativo

sucesso e garantiu uma longa estabilidade política impulsionado pelo que pode ser

considerado o segundo “boom” petroleiro da história recente. Esse sucesso e estabilidade

política duraram até o ano 2014, período em que os preços do petróleo começaram a

despencar e se abriu progressivamente um novo cenário de crise, refreado com um renovado e

agressivo endividamento externo. O relativo sucesso do projeto de modernização capitalista

do governo Correa se evidenciou também na saudável condição dos grupos econômicos

poderosos (entre eles os bancos) cujos lucros e benefícios se incrementaram substantivamente

os últimos anos, promovidos pelo crescimento econômico e os investimentos públicos,

concomitantemente ao processo de concentração da renda nos principais grupos e setores

econômicos384

(ACOSTA, 2012; ACOSTA e CAJAS, 2016). Como foi reconhecido em

palavras do próprio presidente Correa: “Básicamente estamos haciendo mejor las cosas con

el mismo modelo de acumulación, antes que cambiarlo, porque no es nuestro deseo

perjudicar a los ricos, pero sí es nuestra intención tener una sociedad más justa y

equitativa.” (Rafael Correa, 15 janeiro 2012, apud ACOSTA, 2012, p. 63).

5.3 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA E A APROPRIAÇÃO DE

ELEMENTOS SIMBÓLICOS E DISCURSIVOS DO MOVIMENTO INDÍGENA E DAS

LUTAS CONTRA O NEOLIBERALISMO: O exemplo do Bem-Viver e do Yasuni.

Os elementos descritos em torno do padrão de desenvolvimento capitalista

impulsionado pelo governo de Correa e os conflitos e tensões apresentados com o movimento

indígena ilustram algumas facetas relevantes de um processo político que pode ser mais bem

compreendido assumindo uma linha de interpretação gramsciana385

, a partir da perspectiva de

construção de hegemonia, isto é, a combinação de coerção e consenso como exercício da

supremacia da classe capitalista no Estado e na sociedade, como discutido no capítulo

primeiro.

383

Tipo de Estado que se estabelece como resultado da montagem de partes e características que provêm do

Estado neoliberal, do Estado keynesiano, junto com “aspectos totalitários estalinistas-fascistas” (SIERRA, 2014) 384

A concentração da renda dos maiores grupos econômicos se evidencia no acréscimo da participação das

receitas das mil maiores empresas no PIB. A receita dessas empresas que representava 57,74% do PIB em 2011

se incrementou para71,36% do PIB em 2014 (ACOSTA e CAJAS, 2016, p. 141 ). 385

Alguns analistas têm desenvolvido linhas interpretativas sobre os processos políticos desatados pela onda de

governos “progressistas” da América Latina na última década a partir de uma perspectiva que retoma algumas

das linhas e trilhas teóricas abertas pelo pensamento de Gramsci, especialmente seus conceitos de hegemonia,

revolução passiva e transformismo. Ver Oliveira, Braga e Rizek (2010); Modonesi (2012); Almeida (2012). Para

o caso equatoriano Muñoz (2014).

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228

Nesta perspectiva, a partir de uma leitura de maior fôlego do processo equatoriano

pode se afirmar que o processo político desenvolvido no governo de Correa permitiu a

recomposição da hegemonia burguesa no Equador, garantindo melhores condições para a

acumulação capitalista nos distintos setores econômicos, marcando uma direção para o

conjunto da sociedade, produzindo e organizando o consenso de vastos setores da população.

No contexto da crise econômica e política produzida na segunda metade da década de

1990 e início de 2000, as distintas frações das classes dominantes manifestavam enormes

dificuldades para estabelecer a direção moral, intelectual e política sobre o conjunto da

sociedade e superar as permanentes fricções entre elas, agudizando assim a instabilidade

política. O Estado neoliberal aparecia esgotado e era permanentemente questionado pela

diversidade de movimentos e lutas sociais. O governo de Correa durante seus primeiros anos

até a expedição da Constituição (2007-2008) articulou diversas forças e tendências que

expressavam o acúmulo gerado nas lutas sociais contra o neoliberalismo, mas também

diversas posições de setores dominantes que aderiam com postulados favoráveis à

modernização do Estado ou que procuravam reacomodar-se na nova conjuntura. Neste

período, produzem-se algumas concessões às demandas levantadas pelos movimentos sociais,

entre outras a própria declaratória do Estado plurinacional, a adoção dos direitos da natureza e

o articulado sobre soberania alimentar na Constituição386

, mas paralelamente cuidou-se de não

atingir os núcleos “essenciais” (para usar a expressão de Gramsci) dos processos de

acumulação capitalista (petróleo, agronegócio, mineração, setor financeiro), enquanto se

avançava na configuração de um projeto econômico e político de modernização do Estado e

de desenvolvimento capitalista387

.

Após da aprovação da Constituição e com a consolidação eleitoral do governo de

Correa este projeto se concretiza progressivamente, alinhando as classes dominantes em torno

dele e abrindo passo ao Estado desenvolvimentista atual. Esse processo implicou a

reconfiguração do bloco no poder, dando maior espaço aos grupos econômicos e as frações da

burguesia interna vinculados ao capital transnacional em torno dos projetos extrativos, aos

grupos econômicos poderosos vinculados ao comércio e a agroindústria que se beneficiaram

do processo de ampliação do mercado interno (a exemplo de NOBIS, El Juri, PRONACA, La

Favorita), assim como a um grande setor das empreiteiras também ligadas ao capital

386

Aspectos da Constituição que ficam restritos a um marco meramente declarativo porquanto não são

acompanhados e aprofundados posteriormente na legislação secundária para que tenham efetivamente um caráter

vinculativo. 387

Ver Muñoz (2014).

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229

transnacional que cresceram com os investimentos nos megaprojetos de construção de

infraestrutura e dos contratos com o Estado.

Com uma favorável conjuntura econômica marcada pelos altos preços do petróleo,

operaram-se transformações significativas no âmbito da reforma institucional do Estado, para

garantir o funcionamento de um “Estado moderno” e eficiente. Mario Unda sublinha que o

governo de Correa ofereceu às classes dominantes um Estado “capaz de responder às

necessidades estratégicas decorrentes do momento particular de desenvolvimento do capital”.

Trata-se de um Estado capaz de representar os interesses do conjunto do capital, de criar as

condições para a expansão capitalista, principalmente com grandes investimentos em obras de

infraestrutura e com políticas de incentivos produtivos, de promover a expansão dos mercados

interno e externo, de garantir a disponibilidade de força de trabalho disciplinada e, de oferecer

estabilidade política com o consentimento ativo dos dominados (UNDA, 2013, p. 34-35).

Foi nesta última dimensão que adquiriu seu pleno sentido a estruturação da retórica

radical antineoliberal assumida por Correa e seu governo, como elemento distintivo de sua

gestão. Na medida em que sua legitimidade nasceu originalmente do questionamento ao

Estado neoliberal e do acúmulo das lutas sociais contra o neoliberalismo, o governo

apropriou-se dos elementos simbólicos e significantes construídos pelos movimentos sociais

(especialmente por sua relevância do movimento indígena e camponês) e a esquerda

equatoriana, transformando seus conteúdos e os inserindo dentro da lógica desenvolvimentista

da nova configuração do Estado. Portanto, tratou-se de um recurso extremamente útil no

processo de construção de hegemonia, permitindo que o governo se apresentasse como a saída

da “longa noite neoliberal” e como portador de um novo rumo alternativo de

desenvolvimento, garantindo assim a adesão de amplas camadas da população e o consenso

social com suas políticas.

Entre os exemplos mais significativos deste processo de apropriação dos elementos

simbólicos dos movimentos sociais encontra-se o uso da noção do “Bem-Viver” (Sumak

Kawsay em kichwa). Esta noção incorporada no texto constitucional, com a participação

direta do movimento indígena, seria seguidamente esvaziada de suas significações culturais e

econômicas vinculadas com a reprodução social e cultural e com sua matriz comunitária, bem

como dos conteúdos políticos elaborados pelos intelectuais e lideranças indígenas com

elementos de resistência anticapitalistas388

, para ser convertida na fórmula onipresente em

qualquer propaganda governamental e transfigurada como fetiche do desenvolvimento e seu

388

Ver Simbaña (2011); Macas (2010).

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230

aparelho, na linguagem corrente dos funcionários governamentais e nos “Planos Nacionais do

Bem-Viver” da Secretaria Nacional de Planificación y Desarrollo SENPLADES389

.

Instituiu-se assim como discurso dominante na procura de legitimar diante da sociedade toda

a ação governamental. Dessa forma, a adoção desta noção cumpriu um papel conservador ao

vestir com uma roupagem renovada a ação governamental incluindo e justificando aquelas

políticas de viés extrativista que abertamente promovem a megamineração a céu aberto e a

expansão dos agronegócios (com a monocultura e o uso intensivo de agrotóxicos), sob o

controle de grandes empresas. Como sublinha Bretón ao criticar o discurso difundido por

altos funcionários do governo: “[…] o extrativismo deriva em uma espécie de necessidade

conjuntural de cuja intensificação transitória dependerá sua superação, e com ela, a

possibilidade de alcançar o Bem-Viver [...]” (BRETÓN, 2013, p. 82).

Contrasta fortemente com essa visão instrumental do “Bem-Viver” usada para

justificar a expansão da exploração petroleira e da mineração a céu aberto no horizonte do

progresso e do desenvolvimento, as significações atribuídas a esta noção por parte dos povos

que resistem a esta expansão, diretamente vinculadas com sua reprodução social e cultural

como povos. Para Franco Viteri, ex-presidente da CONFENIAE e liderança do povo

Sarayaku na Amazônia que tem resistido à expansão das atividades petroleiras no seu

território:

Para los indígenas el buen vivir se manifiesta cuando tenemos agua limpia, aire

puro, tenemos tranquilidad, tenemos suelos cultivables, tenemos áreas verdes,

mucha cacería, mucha pesca. Ése es el buen vivir para los pueblos indígenas; este

buen vivir está siendo amenazado y ha sido destrozado por las empresas petroleras,

ellos te hablan de calidad de vida, de Buen Vivir, de servicios.

[…] y además, el tema extractivo, por ejemplo la minería y el petróleo, eso afecta a

territorios indígenas en su totalidad, afecta a la tradición comunitaria de la

tenencia de la tierra, afecta a la vida en sí de las nacionalidades […]. Para mí, en

mi pueblo la política del Estado ha sido abrir la frontera petrolera, y eso es un

impacto total, a pretexto del desarrollo, del Buen Vivir, y que eso da economía al

país, es falso; o sea, podemos sacar petróleo, pero si destruimos el ambiente, el

costo ambiental es superior a la ganancia inmediata que podamos tener por el

dinero generado por el petróleo, por ejemplo. Entonces el impacto, en realidad, es a

la vida de los pueblos indígenas lo más elemental (Entrevista Franco Viteri, 21

janeiro 2015)390

389

A partir da bifurcação produzida entre os projetos dos Estados e das organizações indígenas, Schavelzon

(2015) traça um panorama das múltiplas significações adotadas pelas noções do Bem-Viver (Sumak Kawsay) e

da plurinacionalidade, após os processos constituintes da Bolívia e do Equador. Para uma discussão crítica sobre

a noção do Bem-Viver (Sumak Kawsay), tanto na sua adequação instrumental na perspectiva desenvolvimentista

do governo, quanto nas posições que tendem a mistificá-la em sua relação com culturas ancestrais

essencializadas, ver Sanchez Parga (2011); Bretón (2013); Viola (2014). 390

Tradução nossa: “Para os indígenas, o Bem-Viver se manifesta quando temos água limpa, ar fresco, temos

tranquilidade, temos terras cultiváveis, temos áreas verdes, muita caça, muita pesca. Essa é o Bem-Viver para os

povos indígenas; Este Bem-Viver está sendo ameaçado e destruído pelas companhias petrolíferas, elas falam de

qualidade de vida, de Bem-Viver, de serviços.

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231

Vinculado com as conotações da própria noção do “Bem-Viver” - Sumak kawsay -,

um processo similar evidenciou-se com o uso dos elementos simbólicos relativos à proteção

da Pachamama (Mãe Terra) após da incorporação dos direitos da natureza na Constituição,

aspectos que se plasmariam e condensariam na montagem da Iniciativa Yasuní ITT (Ishpingo,

Tambococha, Tiputini), que devia permitir manter quase 850 milhões de barris de petróleo

sem extrair desses campos petroleiros, localizados dentro do Parque Nacional Yasuní,

iniciativa condicionada ao apoio financeiro da comunidade internacional por um valor de

3.600 milhões de dólares.

Partindo de propostas levantadas pelo movimento ecologista, a Iniciativa Yasuní

constituiu um projeto emblemático do governo, anunciado pelo presidente diante da

Assembleia das Nações Unidas em 2007, em torno do qual promoveu fortemente sua imagem

em âmbito internacional e nacional. A Iniciativa sofreu diversas derivas e entraves da própria

Presidência da República no primeiro mandato de Correa, mas gerou uma ampla adesão na

sociedade equatoriana, pelo qual ela foi mantida no discurso oficial e na propaganda

governamental até Agosto de 2013, momento em que se estabeleceu o início da exploração

petroleira nesses campos e o fim da Iniciativa Yasuní, alguns meses após da reeleição de

Correa.

No discurso enunciado por altos funcionários do governo, não somente se difundia a

iniciativa por suas bondades em termos da proteção da diversidade, da redução das emissões

de CO2 e sua contribuição contra as mudanças climáticas, mas também como um símbolo

concreto do Bem-Viver, como uma proposta “pós-capitalista”, uma maneira de “sair do

desenvolvimento capitalista e ingressar na sociedade do Bem-Viver” (RAMÍREZ, 2012, p.

40), o qual expressaria a disputa do governo Correa pela construção de uma “outra ordem

social”, “outro quadro de valores da sociedade” (RAMÍREZ, 2012, p. 42) e pela

“desestruturação do Estado capitalista” (RAMÍREZ, 2012, p. 48). Não deixa de chamar a

atenção que com o fim da iniciativa Yasuní passou-se desses discursos grandiloquentes, a um

discurso meramente desenvolvimentista para justificar a extração de petróleo, por meio de

uma forte campanha midiática, na qual se anunciava que os recursos do petróleo do Yasuní se

destinariam para acabar com a miséria e para investir em escolas. Dessa maneira, se retornava

[…] e também, a questão extrativista, por exemplo, a mineração e o petróleo, isso afeta os territórios indígenas

em sua totalidade, afeta a tradição comunitária de posse da terra, afeta a vida das próprias nacionalidades […]

Para mim, para meu povo, a política do Estado tem sido abrir a fronteira petroleira, e isso é um impacto total, sob

o pretexto do desenvolvimento, do Bem-Viver, que isso dá economia ao país, é falso; isto é, podemos extrair

petróleo, mas se destruirmos o meio ambiente, o custo ambiental é maior do que o ganho imediato que podemos

ter pelo dinheiro gerado pelo petróleo, por exemplo. Então, o impacto, na realidade, é para a vida dos povos

indígenas, o mais elementar”.

Page 232: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E ... versão final... · movimento indígena que derivaram no levantamiento indígena nacional de 1990. Em um período caracterizado

232

e apelava ao imaginário do progresso e do desenvolvimento profundamente arraigado na

consciência social, enquanto o “Estado capitalista” facilitava e promovia a exploração dos

recursos naturais e a acumulação do capital.

Cabe sublinhar que nesse processo de apropriação por parte do governo dos

referentes simbólicos construídos pelos movimentos sociais e a esquerda, aqueles setores que

participaram do governo e que provinham e mantêm uma vinculação com movimentos e

partidos da esquerda (institucional) e com algumas das organizações sociais que

permaneceram dentro do governo cumpriram um papel chave enquanto produtores e

reprodutores do discurso governamental, recriando a ficção da “revolução cidadã” e das

grandes transformações por ela empreendidas.

Esta retórica amalgamada com um processo efetivo de controle e desmobilização das

organizações e movimentos sociais que tentavam expressar um posicionamento crítico diante

do governo, promovendo formas clientelistas391

de relação com suas bases com o objeto de

enfraquecê-las e desestruturá-las, além da desqualificação de suas lideranças na mídia e o uso

da repressão direta, a judicialização e criminalização dos protestos quando os movimentos

levantaram ações de resistência, configuraram um cenário, no qual as organizações e

movimentos críticos dispunham de uma limitada margem de ação e manobra. Ainda assim, na

medida em que cada vez tornaram-se mais evidentes os limites da deriva desenvolvimentista

do governo, os movimentos conseguiram reconfigurar sua autonomia, estruturar aos poucos

alianças entre vários setores (movimento indígena, movimentos sindicais) e levantar

mobilizações articuladas confrontando diretamente o discurso governamental e questionando

sua legitimidade. Isso tem desembocado no uso maior e mais frequente da força por parte do

regime, nos protestos de 2014 e 2015. Nesse sentido, configurou-se um novo momento no

exercício da hegemonia que denotaria um novo equilíbrio na combinação da força e do

consenso, caracterizado pelo incremento do grau de coerção real ou latente contra as

resistências existentes.

5.4 O ESTADO PLURINACIONAL DEGRADADO

A partir dos elementos resenhados relativos ao projeto neodesenvolvimentista do

governo Correa e das caraterísticas do padrão de desenvolvimento e no âmbito da perspectiva

teórica assumida nesta tese, podemos agora abordar a discussão sobre as continuidades e as

inflexões produzidas na política de administração da população indígena que ocorreram

391

Sobre este aspecto em relação às comunidades indígenas andinas ver Bretón (2013).

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durante a última década de exercício do governo da “revolução cidadã” de Rafael Correa. No

meu entender, em lugar de marcar uma ruptura radical com o dispositivo do multiculturalismo

neoliberal que organizou esta biopolítica neoindigenista, isto é, uma reversão das políticas

multiculturalistas como sugere Martínez (2014), o projeto neodesenvolvimentista de

modernização capitalista do governo Correa reforçou e agudizou alguns elementos desta

política e produziu fortes inflexões em outros, provocando como consequência a degradação

dos sentidos do reconhecimento constitucional do Estado plurinacional e de outras conquistas

alcançadas pelo movimento indígena e camponês nos artigos da Constituição (direitos

coletivos, direitos da natureza, soberania alimentar, etc.) e durante o processo todo de

mobilização indígena.

Com efeito, além dos avanços alcançados no reconhecimento de direitos na

Constituição, em alguns temas relacionados com o estabelecimento de circunscrições

territoriais indígenas ou com a consulta prévia como requerimento para os planos e para a

exploração de recursos naturais não renováveis nos territórios indígenas, os textos

constitucionais são problemáticos e subsiste sua ambiguidade (MARTÍNEZ, 2014), o qual

inviabiliza ou delimita o exercício desses direitos (assim como acontecia com os direitos

coletivos na Constituição “multiculturalista” de 1998).

Em relação aos limites da concepção da plurinacionalidade presentes nos textos

constitucionais, Floresmilo Simbaña, liderança da CONAIE, encarregado de coordenar o

processo de elaboração da proposta da CONAIE para a nova Constituição, traça uma

continuidade entre a concepção que primou na Constituição de 1998 e a de 2008, no sentido

de ser pensada apenas como uma inclusão das nacionalidades no aparelho do Estado, inclusão

focada nos aspectos jurídicos construídos a partir da preeminência da concepção

multiculturalista e da tendência etnoinstitucionalista dentro do movimento indígena, que deixa

de lado outras dimensões (econômicas e políticas) da proposta original formulada pela

CONAIE nos primeiros anos da década de 1990 e sintetizadas no projeto político da CONAIE

de 1994. Nesse sentido, Simbaña considera que os avanços alcançados na Constituição de

2008 representam “o fechamento de um processo” que foi aberto nos anos anteriores à

Constituição de 1998, em lugar do início de um novo392

.

Além disso, ao se requerer a emissão da legislação secundária para que os artigos da

Constituição e os direitos estabelecidos possam ter uma aplicabilidade concreta, em todos os

temas críticos para as organizações indígenas e para sua sobrevivência como povos

392

Entrevista Floresmilo Simbaña, 01 Maio 2014.

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(mineração, terras, águas, circunscrições territoriais indígenas, soberania alimentar, autonomia

política e organizativa, educação intercultural bilíngue, justiça indígena) a legislação

secundária emitida nos anos posteriores bloqueou sistematicamente a possibilidade de

concretizar os avanços alcançados nos textos constitucionais e desativou todo seu potencial

transformador ou contestatório diante do processo de expansão capitalista no campo e a

matriz extrativista discutida anteriormente. Luis Andrango, ex-presidente da FENOCIN

(organização aliada ao governo Correa) que tentou abrir uma linha de maior autonomia dessa

organização em relação ao governo para exigir avanços na pauta agrária, sublinha isso com

precisão: “en la Constitución hay un montón de conquistas alcanzadas, pero todo el

andamiaje luego legal, reglamentario y la política pública mismo en ejecución, desdice

totalmente lo que ahí se ha logrado”393

.

Após do reconhecimento constitucional do Estado plurinacional em 2008, com o

projeto neodesenvolvimentista assumido pelo Estado equatoriano abriram-se novos cenários

de conflito entre o Estado e o movimento indígena, nos quais o Estado exercitou uma versão

renovada de uma política indigenista integradora, que nega o protagonismo político às

principais organizações indígenas e transforma as comunidades em meros receptores da ação

do governo e em sujeitos obedientes (MARTÍNEZ, 2014). Nela instrumentalizou-se a

plurinacionalidade aos requerimentos do padrão de desenvolvimento capitalista reduzindo-a e

degradando-a ao suprimir por meio da legislação secundária qualquer vestígio de autonomia e

autodeterminação indígena na mesma.

Nesse sentido, predominou uma concepção instrumental e estreita da

plurinacionalidade e da interculturalidade por parte do governo Correa no seu discurso e

práticas concretas nas relações com o movimento indígena como um todo, em suas diversas

expressões e tendências internas. Esta concepção degradada da plurinacionalidade

evidenciou-se no tratamento dado à justiça indígena subordinando-a à justiça ordinária, nos

limites impostos para a participação das organizações indígenas e camponesas na discussão

das leis de soberania alimentar, águas e terras, no enfraquecimento e eliminação da autonomia

do CODENPE e do sistema de educação intercultural bilíngue394

, que incluiu o fechamento de

centenas de escolas nas comunidades, e na supressão da participação e controle que as

organizações indígenas exerciam nas entidades estatais indígenas. Esta concepção que

393

Entrevista Luis Andrango, 05 Maio 2014. Tradução nossa: “na Constituição há a monte de conquistas

alcançadas, mas todo o arcabouço posterior, legal, regulamentário e mesmo a política pública em execução,

contrapõe totalmente o que foi logrado” 394

Para um maior detalhamento das mudanças políticas e legais produzidas no Sistema de educação intercultural

bilíngue ver Martínez (2014); Lang (2017); Muyolema (2015).

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aparentemente se afastaria das políticas do multiculturalismo na governamentalidade

neoliberal, na verdade aprofundou o dispositivo multiculturalista ao restringir e enquadrar

ainda mais o alcance dos direitos aceitáveis pelo Estado e bloquear todos aqueles que

pudessem colocar em risco o padrão de desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, este

reconhecimento restrito de direitos se realiza acompanhado de políticas que atingem

diretamente as condições de reprodução social das comunidades e favorecem as dinâmicas de

acumulação capitalista à custa da espoliação dos recursos de seus territórios quando eles são

cobiçados pelo capital, como o abordamos na seguinte seção.

A perda da autonomia do sistema de educação intercultural bilíngue, a supressão da

participação das organizações indígenas no sistema e o fechamento das escolas em muitas

comunidades causaram um grande mal-estar nas comunidades e organizações, pois atingiram

diretamente às crianças indígenas que em múltiplas ocasiões tinham que dedicar muito tempo

e energia para se deslocar de comunidades distantes para as escolas localizadas nas cidades e

povoados maiores ou ir morar nelas com parentes, de segunda a sexta-feira, para frequentar a

escola regularmente395

. Por essa razão, a reabertura das escolas nas comunidades e a

recuperação da autonomia da educação intercultural bilíngue estiveram entre as principais

reivindicações que motivaram a participação indígena na paralização nacional em agosto de

2015. Cabe salientar que o fechamento das escolas pequenas nas comunidades e a criação das

chamadas de “escolas do milênio” que concentram os recursos com centenas de alunos nos

povoados maiores responderam à lógica modernizadora e centralizadora que caracterizou ao

governo Correa396

, em detrimento de qualquer consideração que pudesse favorecer uma

concepção intercultural na política educativa. Essa lógica traduziu-se em termos concretos na

destruição do sistema de educação intercultural bilíngue e de seu acúmulo com todos os seus

acertos e erros, na demissão de muitos dos professores indígenas e sua substituição por

professores de outras regiões com diplomas universitários, mas afastados da realidade

concreta das comunidades indígenas e camponesas, na unificação e homogeneização dos

395

Entrevista Victoria Carrasco, 29 Abril 2014; entrevista Guillermo Churuchumbi, 6 maio 2014; entrevista

Franco Viteri, 21 Janeiro 2015. 396

Essa lógica modernizadora assumida nas “escolas do milênio” tendente à criação da ilusão de modernidade,

no caso da região amazônica foi levada até o paroxismo com a construção das chamadas de cidades do milênio,

urbanizações localizadas no meio da floresta, concebidas como projetos modelo para “legitimar o padrão

extrativista” (LANG, 2017, p.91). As três cidades do milênio construídas consistem em decenas de casas iguais

situadas simetricamente sobre uma área totalmente desmatada, segundo um padrão habitacional urbano, com

ruas calcetadas que terminam na floresta. Nelas estão proibidas as criações e os animais domésticos. As

comunidades e famílias que recibiram essas casas, foram assim separadas de seus espaços e meios de produção e

reprodução, tendo que se deslocar cada dia entre a moradia (urbanizada) e suas chakras. O resultado de essa

imposição terminou no abandono progressivo dessas “simulações de modernidade” (Wilson e Bayón, 2017),

hoje convertidas em verdadeiras cidades fantasmas submetidas ao deterioro do clima e da natureza amazônica.

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conteúdos da grade curricular e dos livros escolares (todos em espanhol), na supressão da

participação das organizações indígenas e das comunidades nas políticas educativas e a

imposição da “reitoria do Estado” e na eliminação do sistema de formação docente

intercultural bilíngue (LANG, 2017; MUYOLEMA 2015).

A questão da diversidade étnica continuou sendo processada num curso assimilável

pelo Estado sob uma artificial retórica intercultural incorporada como parte da transformação

do Estado no governo Correa, transformação que, como destaca Lang, orientou-se exatamente

num sentido “oposto daquela que seria necessária para abrir passo a uma interculturalidade e

plurinacionalidade como horizontes civilizatórios alternativos” (LANG, 2017, p. 67).

Na visão atual das lideranças indígenas, ao refletir sobre as mudanças trazidas pelo

reconhecimento constitucional da plurinacionalidade na Constituição de 2008, chama a

atenção o escasso entusiasmo sobre elas, expressas com um lacônico “não mudou nada”397

e

em seu lugar prima um sentimento de frustração pelas dificuldades para sua concretização,

ainda reconhecendo avanços como a adoção dos direitos da natureza398

. Assim, Ampam

Karakras sintetiza nos seguintes termos as razões que impedem que esse reconhecimento se

materialize em transformações concretas para as nacionalidades e organizações indígenas:

Aunque la Constitución actual reconoce la plurinacionalidad, no hay una sola

nación o nacionalidad que tenga definido su propio espacio o su propia propuesta

para poder interactuar con el Estado plurinacional, porque el Estado actual, o el

gobierno actual, aunque el marco constitucional lo reconoce, lo que ha priorizado

es el derecho ciudadano; yo lo veo así. Bueno al menos el gobierno no quiere

ningún sector organizado que pueda hacerle sombra, sino que es un neoliberalismo

actualizado, renovado, con reivindicación de los individuos, entonces uno como

individuo reivindica sus derechos, exige sus derechos, pero no puede como grupo

organizado, no le conviene. Entonces yo miro por esa razón los ataques

sistemáticos, los fraccionamientos sistemáticos, de todos los sectores organizados

del país, ésa es mi lectura de lo que se está viviendo (Entrevista Ampam Karakras,

22 Janeiro 2015)399

.

O governo Correa também manteve a incorporação de representantes indígenas na

institucionalidade estatal, no entanto, concebendo-os como indivíduos étnicos, isto é por fora

das dinâmicas de suas organizações e movimentos. “Agora sabemos que há aproximadamente

397

Entrevista Lourdes Tibán, 22 Janeiro 2015. 398

Entrevista Franco Viteri, 21 janeiro 2015. 399

Tradução nossa: “Embora a atual Constituição reconheça a plurinacionalidade, não existe uma única nação ou

nacionalidade que tenha definido seu próprio espaço ou sua própria proposta para poder interagir com o Estado

plurinacional, porque o Estado atual, ou o atual governo, embora o arcabouço constitucional o reconheça, o que

tem priorizado é o direito do cidadão; Eu vejo assim. Bem, ao menos o governo não quer nenhum setor

organizado que possa lhe fazer sombra, mas é um neoliberalismo atualizado, renovado, com reivindicação dos

indivíduos, então cada um como um indivíduo reivindica seus direitos, exige seus direitos, mas não pode como

um grupo organizado, porque isso não convém. Então eu acho que esse é o motivo dos ataques sistemáticos, das

subdivisões sistemáticas, contra todos os setores organizados do país, essa é minha leitura do que está sendo

vivenciado”

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3.000 funcionários indígenas, estão lá, nos mandos baixos, médios e isso é tudo, de isso se

aproveita o governo atual e isso é a construção do Estado plurinacional”, nos dizia Luis

Macas400

. A incorporação de funcionários indígenas tomados por fora de suas organizações

fez parte da estratégia desenvolvida pelo governo encaminhada a controlar as organizações e

dividir e criminalizar aquelas que se resistiam401

. Nessa direção, algumas figuras políticas e

funcionários indígenas do governo tiveram um papel destacado na implantação de práticas

clientelistas no exercício de suas funções orientadas a garantir o apoio das organizações e

comunidades de base ao governo.

A isso, se soma a resposta confrontadora do governo diante dos protestos das

organizações indígenas e dos questionamentos levantados por várias de suas lideranças (que

refletem também as distintas tendências existentes no movimento), convocando

contramarchas, usando contra as lideranças a repressão policial e criminalizando os protestos

pela via judicial sob a acusação de terrorismo e sabotagem402

. Além disso, levantou

campanhas midiáticas desqualificando as lideranças indígenas e as posições assumidas pelas

organizações, enquanto paralelamente se instrumentalizava outras organizações aliadas ao

governo por meio da entrega de recursos para atender demandas pontuais e se usava a

influência de funcionários, autoridades e “representantes” indígenas próximos do poder

executivo. Tratou-se de uma política sistemática de intervenção, controle e desestruturação

sobre as organizações autônomas e de desqualificação de suas lideranças diante da

sociedade403

. Esta política coercitiva recriou e aprofundou a referida figura do “índio

permitido” em contraposição àqueles sujeitos considerados “recalcitrantes”, “perigosos” ou

“atirapedras” os quais são estigmatizados, contribuindo assim, para o ressurgimento de

preconceitos racistas e da violência contra os indígenas na sociedade (MARTÍNEZ, 2014).

Estes dois aspectos foram explicitamente evidenciados nas mobilizações e paralização

nacional indígena e popular em agosto de 2015, com a repressão sofrida por lideranças

400

Entrevista Luis Macas, 6 Maio 2014. 401

Entrevista Luis Andrango, 5 maio 2014; Entrevista Floresmilo Simbaña,1 de maio, 2014. 402

Alguns desses processos judiciais continuam em curso nas diversas instancias até hoje e muitas lideranças

indígenas e camponesas passaram meses detidas ou já foram condenadas a prisão. Por exemplo, Jose Acacho,

liderança e presidente da Federação Shuar em 2009 e ex-Asambleista por Pachakutik, junto com Pedro

Mashiant foram condenados a 12 anos de prisão (sentença atualmente em apelação na última instância), a

propósito das mobilizações realizadas em 2009 contra as novas leis de mineração e de águas. 403

Entre as formas de controle estabelecidas, Correa expediu um regulamento sob a forma de decreto executivo

(decreto 16) que regulou as organizações sociais e que contemplou a possibilidade de dissolução forçada das

organizações sob a discricionariedade do Estado se ele considerar que não estão atingindo seus objetivos ou por

ingerência em políticas públicas. Esta última causa de dissolução foi aplicada para fechar a “Fundação

Pachamama” após protestos contra um leilão de concessão de um bloco petroleiro na Amazônia equatoriana.

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indígenas (e sua posterior repercussão na mídia)404

e pelas comunidades do povo Saraguro

quando a polícia invadiu suas casas e suas comunidades405

, nas mobilizações e paralização

nacional convocadas pela CONAIE e o FUT.

5.5 MEGAMINERAÇÃO, TERRA, ÁGUA E SOBERANIA ALIMENTAR: Eixos do

confronto e de construção dos sujeitos perigosos “fantasiados de ancestrais”

Após a aprovação da nova Constituição em 2008, um dos primeiros eixos de confronto

do governo Correa com o movimento indígena que motivou sua mobilização foi a expedição

de uma nova lei mineira aprovada pela Assembleia Nacional no ano 2009, para fomentar

investimentos de grandes empresas em projetos de mineração em grande escala e facilitar a

desapropriação das terras das comunidades localizadas nos projetos de mineração

considerados estratégicos, em uma clara linha de continuidade com as políticas neoliberais do

período anterior que tinham promovido a prospecção mineira em todo o território nacional406

e entregue a empresas grandes concessões mineiras equivalentes a 20% do território nacional

(SACHER e ACOSTA, 2012). No viés produtivista e desenvolvimentista do governo Correa,

a mineração metálica em grande escala aparecia já como a alternativa que poderia suplantar

ao petróleo. A partir desse momento, a defesa dos territórios indígenas e camponeses nas

regiões e comunidades atingidas pelas atividades de prospecção e exploração mineira se

constituiu um dois eixos de confronto principal das organizações indígenas com o governo,

particularmente das organizações regionais e locais filiais da Confederação de Nacionalidades

Indígenas do Equador (CONAIE).

Atualmente estão em andamento 27 megaprojetos de mineração de metais no país, em

diversas fases de implantação (ver anexo 6). Deles cinco foram considerados como projetos

“emblemáticos e estratégicos” pelo governo Correa (três para a extração de ouro e dois de

404

As lideranças indígenas Salvador Quishpe (Prefeito do governo Provincial de Zamora Chinchipe) e Carlos

Pérez (Presidente do Ecuarunari) e sua esposa a periodista franco-brasileira Manuela Picq, foram espancados

brutalmente numa manifestação de protesto em Quito. Posteriormente, Manuela Pick foi deportada e impedida

de retornar ao país. Ver <http://www.planv.com.ec/historias/politica/centro-historico-batalla-una-vez-mas>.

Acesso em: 15 fev 2018; <http://www.elcomercio.com/opinion/racismo-protestas-opinion-ecuador-

indigenas.html>. Acesso em: 15 fev 2018. 405

A repressão em Saraguro ganhou conotações internacionais depois as denúncias perante organismos

internacionais pelo nível de violência policial contra as mulheres indígenas e pela criminalização do protesto que

levou ao julgamento e condenação de vários indígenas. Ver

<https://www.youtube.com/watch?v=9e1adCwCzvY>. Acesso em: 15 fev 2018;

<https://cedhu.org/index.php/43-levantamiento-indigena-2015/boletines-y-pronunciamiento-institucionales/342-

coniae-inredh-cedhu-boletin-conjunto-represion-en-saraguro-en-operativo-policial-y-militar>. Acesso em: 15 fev

2018; <http://www.planv.com.ec/historias/politica/informe-especial-el-espeluznante-inventario-la-represion>.

Acesso em: 15 fev 2018 406

Tratou-se de um ambicioso projeto do então Ministerio de Energia y Minas chamado Proyecto de Desarrollo

Minero y Control Ambiental (PRODEMINCA) financiado pelo Banco Mundial.

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cobre) e estão localizados nas províncias de Morona Santiago, Zamora Chinchipe e Azuay, na

zona Sudeste e Sul do país. Os dois projetos maiores (os projetos cupríferos Mirador e

Panatza-San Carlos) são de grandes empresas chinesas, estão em fase de “desenvolvimento”,

última etapa previa a fase de extração do mineral e estão localizados em territórios da

nacionalidade Shuar (SACHER, 2017). As consequências ecológicas, o uso e degradação das

águas e os desastres ambientais provocados nas regiões da mineração metálica em grande

escala são conhecidas em outros países da América Latina e é o cenário que se vislumbra nos

megaprojetos de mineração metálica no Equador, a maior parte dos quais estão localizados

em zonas de alta biodiversidade e em ecossistemas frágeis (SACHER e ACOSTA, 2012;

SACHER, 2017).

A consolidação dos megaprojetos de mineração durante o governo Correa abriu um

cenário de violência e espoliação exercida pelo Estado e as empresas contra as comunidades

localizadas nas zonas de sua implantação, violência incrementada em resposta as ações de

resistência levantadas pelas comunidades, criminalizadas por essas ações. Despejos violentos

das comunidades, desapropriações, assassinatos, perseguição e prisão para as lideranças

indígenas e camponesas, militarização das regiões dos megaprojetos e dos territórios

indígenas são as marcas que vão deixando estes megaprojetos os últimos anos. Para o caso

equatoriano, coincidimos com Sacher (2017) que seguindo a Harvey compreende estes

processos e a atuação do Estado neles, como formas concretas que assume a “acumulação por

espoliação” no capitalismo contemporâneo, que neste caso têm os povos indígenas como

protagonistas.

Dado que os megaprojetos de mineração requerem de grandes áreas territoriais para

seu desenvolvimento, a violência começa com a desapropriação forçada das famílias

indígenas e camponesas localizadas neles e o controle das populações próximas. No entanto,

como sublinha Sacher (2017, p. 226), esses processos de desapropriação e a violência a eles

associada (material, simbólica e psicológica) desatam intensas ações e formas de resistência

contra as empresas envolvidas, que em determinados momentos incluíram a ocupação dos

acampamentos de mineração das empresas.

Nos últimos anos, as maiores ações de violência contra as comunidades ocorreram

precisamente na região dos dois megaprojetos mais avançados. No caso do projeto Mirador

em 2015, em dois operativos de forças policiais conjuntamente com pessoal de segurança da

empresa ECUACORRIENTE, despejaram pela força a comunidade Shuar de Tundayme,

destruíram as casas, os pertences das famílias, as quais perderam também seus animais e

culturas. Em 2014 José Tendentza foi assassinado, liderança Shuar oposta a esse projeto de

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240

mineração e comprometido com a luta contra a mineração. Os responsáveis suspeitos

(funcionários da empresa ECUACORRIENTE) continuam na impunidade, bem como o

assassinato de Fredy Taish, outra liderança Shuar407

.

No caso do Projeto Panatza-San Carlos, também em território da nacionalidade Shuar

(povo Shuar Arutam), houve ações de resistência à apropriação do território por parte das

empresas transnacionais envolvidas nesse projeto por mais de uma década408

. Em 2006,

grupos Shuar ocuparam e destruíram os acampamentos instalados pelas empresas de

mineração e estabeleceram o centro Shuar chamado de Nantkins. No mês de agosto de 2016,

para atender os requerimentos das empresas de mineração chinesas Tongling y CRCC409

, o

governo Correa ordenou um operativo com centenas de militares e policiais para despejar as

famílias de Nantkins. Como ocorreu em Tundayme, as casas foram destruídas e as famílias

perderam seus pertences, culturas e criações. Meses mais tarde, em novembro de 2016, grupos

Shuar organizados ocuparam novamente a comunidade de Nantkins, como símbolo da

resistência antimineração, no lugar em que o consórcio de empresas chinesas estava

construindo um novo acampamento. No dia seguinte, montou-se um novo operativo com

forças policiais para despejar o acampamento, com enfrentamentos violentos que deixaram

vários policiais feridos e os grupos Shuar fugiram para a floresta. A zona foi militarizada e as

comunidades Shuar da zona foram hostilizadas e amedrontadas. Em 14 de dezembro de 2016,

grupos Shuar tentaram novamente ingressar em Nantkins, mas foram rejeitados pelos

policiais, com o resultado de um policial morto. A reação do presidente Correa foi imediata,

estigmatizou aos grupos Shuar que resistiram a mineração em grande escala, acusando-os de

“violentos, fantasiados de ancestrais”410

e declarou o Estado de Exceção em toda a Província

de Morona Santiago (que se manteve por dois meses até fevereiro de 2017). A província foi

toda militarizada, incluindo equipamento de guerra pesado, as comunidades Shuar da zona

próximas a Nantkins foram invadidas e as mulheres e crianças tiveram que sair da zona para

refugiar-se, enquanto os homens se esconderam na floresta para evitar serem detidos. As

liberdades básicas foram suprimidas, a sede da Federação Shuar foi invadida por militares e

407

Para o acesso à documentação detalhada de todos estes acontecimentos e suas consequências, inclusive os

dolorosos depoimentos das famílias envolvidas ver Sacher (2017, p.262-287); Colectivo de Investigación y

Acción Psicosocial Ecuador (2017). 408

Sacher (2017), tomando como base várias fontes, narra em detalhe a história da resistência e os recentes

acontecimentos de violência e espoliação em 2016 e 2017 na zona, incluindo depoimentos das mulheres

atingidas, que por sua relevância resumo a seguir. 409

China Railways Construction Corporation 410

Ver Diario El Telégrafo. Correa: “Hoy una familia está de luto por los violentos de siempre”, disponível

em: <https://www.eltelegrafo.com.ec/noticias/politica/2/correa-hoy-una-familia-esta-de-luto-por-los-violentos-

de-siempre>. Acesso em: 25 fev 2018.

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241

seu presidente Agustín Wachapá foi detido e enviado para o cárcere de máxima segurança em

Latacunga (Serra central) onde esteve preso até maio de 2017.

A descrição de Sacher (2017) destes acontecimentos conclui que o nível de repressão

militar e violência exercida durante o Estado de Exceção na Província toda, deve ser

entendido como um marco de referência repressivo a escala de toda a Província, direcionado

contra toda a nacionalidade e o território Shuar, como uma demonstração de poder e um

precedente contra um “ator de resistência potente” à expansão da megamineração no país

(SACHER, 2017, p. 309-310).

Outro dos eixos de confronto com o movimento indígena e camponês que se exprimiu

de diversas formas e em reiteradas ocasiões na esfera nacional esteve ligado à temática das

políticas agrárias e mais concretamente aos processos de discussão e formulação das leis de

soberania alimentar, águas, e terras (em substituição da lei de desenvolvimento agrário de

1994). A emissão desta legislação secundária obedeceu ao mandato constitucional e devia

precisar as formas concretas como se deviam interpretar os artigos da Constituição sobre a

temática, considerados conquistas do movimento indígena e camponês (a exemplo da

proibição do latifúndio e da privatização das águas, da declaratória do país livre de

transgênicos, os artigos sobre soberania alimentaria). Nesse sentido, estas leis eram

consideradas chaves para viabilizar as possibilidades de concretização das conquistas

constitucionais, de obter avanços tendentes a reverter a concentração da terra e da água nas

mãos do agronegócio e levantaram inicialmente grandes expectativas nas organizações

indígenas e camponesas que as colocaram em suas pautas políticas e de discussões. Não

obstante, os conteúdos finais impostos nessas leis pelo governo Correa e seu bloco

parlamentar, especialmente após de 2013, contribuíram a desativar todas as possibilidades de

concretizar os avanços obtidos na Constituição.

Quando ainda primava o espírito das reformas constitucionais se iniciou a discussão

da Ley Orgánica del Régimen de Soberania Alimentaria (LORSA) em 2008, a qual foi

aprovada em 2009. Na avaliação que fizeram as organizações e movimentos camponeses e

indígenas nesse momento consideravam que a correlação de forças não permitiria maiores

avanços com esta lei e se procurou manter e garantir os avanços constitucionais e estabelecer

mecanismos institucionais de participação das organizações no debate das leis e políticas

relativas à soberania alimentar, adiando a discussão das aspirações redistributivas da terra e da

água, para a discussão das esperadas leis de águas e de terras. Com a LORSA se cria a

Conferencia Plurinacional e Intercultural de Soberania Alimentaria (COPISA) como espaço

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de participação e de debate das organizações e movimentos em torno das leis e políticas

relativas à agricultura e alimentação. Na proposta originalmente debatida e aprovada na

Asamblea Nacional, a COPISA tinha um caráter deliberativo diante do Estado, mas esse

caráter foi objeto do veto presidencial e na lei aprovada ficou apenas com um cunho

consultivo. Nos anos posteriores, por meio da COPISA foram canalizadas algumas iniciativas,

debates e propostas de leis dos movimentos camponeses e sociais para o Ministério de

Agricultura e para a Asamblea Nacional (a exemplo da proposta de lei de terras das

organizações camponesas e indígenas, ou da proposta da lei de agrobiodiversidad, semillas e

fomento agroecológico impulsionada pelo movimento agroecológico), embora elas não

tenham sido consideradas pela Asamblea (lei de terras) ou foram profundamente modificadas

(lei de sementes)411

. Nos últimos anos, a COPISA se manteve funcionando, porém com uma

participação maior das organizações camponesas e indígenas mais próximas ao governo e

com um papel limitado diante da orientação predominante das políticas agrárias da gestão

Correa.

As leis de águas e de terras foram as que provocaram maiores confrontos e uma

diferenciação forte de posições das organizações indígenas e camponesas, especialmente a

CONAIE, diante do governo nacional. A proposta original da lei de águas iniciou sua

discussão na Asamblea Nacional em 2009, mas pela força que tomaram as mobilizações

indígenas contra essa proposta de lei em 2009 e 2010 (com a denúncia que a proposta de lei

abria o acesso as fontes de água as corporações mineiras e que se pretendia uma forma de

privatização da água)412

, seu trâmite foi adiado até que se definissem os mecanismos de

consulta prévia da mesma. Esta lei só foi retomada, aprovada e expedida em 2014, sem ter um

caráter redistributivo das concessões estabelecidas, apesar dos novos protestos indígenas que

questionavam que as sugestões das organizações não foram consideradas na lei,

especialmente no que diz respeito à constituição de um conselho plurinacional como máxima

autoridade para a gestão da água.

Em complementariedade com as lutas pelo acesso e redistribuição da água em

benefício das comunidades indígenas e camponesas, a elaboração de propostas para uma lei

que propiciasse a desconcentração e a distribuição de terras também fez parte dos esforços e

demandas das organizações indígenas e camponesas, no contexto das lutas pela soberania

alimentar. Por meio da participação na COPISA, as organizações camponesas com a liderança

411

Entrevista Roberto Gortaire, 25 janeiro 2015. 412

Uma descrição das mobilizações indígenas em 2009 e 2010 contras as leis de mineração e de águas, dos

posicionamentos das organizações e dos debates políticos com o governo Correa encontra-se em Becker (2015).

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da FENOCIN formularam uma proposta de lei que foi apresentada à Asamblea Nacional sob a

figura da iniciativa cidadã com o respaldo de aproximadamente 40.000 assinaturas. Estas

propostas não tiveram eco no governo e diante da oposição levantada pelos empresários

agrícolas a qualquer projeto desta índole, a posição do presidente Correa foi explícita para

bloquear estas iniciativas (Hidalgo, 2013). A posição de autonomia que a FENOCIN adotou

diante do governo, liderando o processo de apresentação da proposta de lei de terras, a qual a

CONAIE se somou, foi duramente atacada pelo governo e por meio de manobras internas, seu

presidente Luis Andrango, que mantinha uma posição crítica ao governo, foi afastado da

presidência dessa organização413

. Posteriormente, já em 2016, a nova legislação de terras

denominada “Ley de tierras rurales y territórios ancestrales” foi aprovada. Esta lei não se

direciona para a redistribuição da terra, pois não estava no horizonte das políticas agrárias do

governo abrir uma frente que confrontasse as classes dominantes no campo e questionasse o

padrão de acumulação capitalista sob o domínio do agronegócio. A lei promove uma visão

produtivista das políticas agrárias, sob o suposto da harmoniosa convivência do agronegócio e

a agricultura familiar camponesa, dando continuidade, atualizando e enfeitando os conteúdos

da lei agrária neoliberal de 1994.

Paralelamente, a orientação fundamental das políticas agrárias no governo Correa

esteve voltada para melhorar a produtividade, favorecer a agricultura industrial e a expansão

de monoculturas sob o controle de grandes empresas, além de favorecer os encadeamentos

produtivos e a integração vertical camponesa por meio da agricultura de contrato (LASSO,

2017), as quais fundamentalmente potencializaram a concentração econômica no agro em

torno dos grupos econômicos mais poderosos (BAEZ, 2017) e reforçaram as condições de

subordinação e exploração camponesa e indígena aos agronegócios, afastando-se da

perspectiva da soberania alimentar.

413

Entrevista Luis Andrango, 5 maio 2014.

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6 CONCLUSÃO

O percurso realizado nesta pesquisa e ao longo desta tese me permitiu desenvolver

uma abordagem panorâmica sobre as mudanças produzidas na relação do Estado equatoriano

com o movimento indígena, a partir de sua irrupção na arena política nacional com sua

própria voz e discurso político no levantamiento indígena de 1990. Na construção desta

perspectiva, teve uma particular significação para a compreensão das mudanças produzidas no

Estado e no movimento indígena na sua mútua relação, a conexão estabelecida com as

caraterísticas específicas adotadas pelo processo de desenvolvimento capitalista no campo,

nas diversas regiões do país e em distintos momentos históricos. Ao traçar alguns elementos

chaves e momentos centrais da história agrária do país, essa conexão me permitiu

compreender as particularidades do processo de formação do movimento indígena durante o

século passado, as formas de resistência desenvolvidas diante do sistema de hacienda

tradicional na Serra como espaço de articulação das relações de exploração do trabalho

indígena e da dominação étnica de origem colonial, as lutas levantadas pela terra na Serra e

pela defesa dos territórios das nacionalidades amazônicas ameaçados pelos processos de

colonização e as arremetidas para extração de matérias primas na floresta amazônica, as

mudanças das relações de classe no campo e como o acúmulo dessas lutas e a memória

transmitida delas derivou no processo de confluência das organizações da Serra e da

Amazônia e na constituição do movimento indígena nacional como hoje é conhecido.

No contexto do processo de transformações agrárias experimentadas no país, nessa

travessia pela história das lutas e das formas organizativas assumidas pelas organizações

indígenas ao longo do século XX, evidenciou-se a continuidade histórica do processo

organizativo do movimento, de seus principais conteúdos políticos, das formas de construção

e de afirmação de uma identidade coletiva que apela a referentes étnicos e classistas e da

estruturação do discurso indígena e suas principais referências, através das quais as

representações do passado recriam-se e relacionam-se com as lutas e condições do presente.

Nesse sentido, nos afastamos das análises do processo político indígena, dominantes no meio

acadêmico, que estabelecem uma espécie de ruptura entre o ciclo das mobilizações indígenas

aberto a partir de 1990, caracterizado nessa visão pela “emergência” étnica, e as lutas

camponesas anteriores, das abordagens que operam sobre a base da separação artificial da

classe e da etnia, da economia e da cultura, como dimensões separadas e desconectadas dos

processos concretos de reprodução social e cultural dos povos indígenas. Nesse sentido,

assumimos a necessidade de compreender de forma articulada a questão da classe e da

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etnicidade no processo político indígena em relação às dinâmicas concretas de

desenvolvimento do capitalismo que configuram as práticas de subordinação e resistência.

De outro lado, a análise detalhada do processo de transformações agrárias

experimentado na região Interandina me permitiu compreender as principais tendências

existentes que marcaram o rumo das políticas agrárias, as mudanças na estrutura fundiária, a

formação de uma burguesia agrária altamente capitalizada dedicada à pecuária de leite e a

floricultura para a exportação, junto com um enorme setor camponês indígena que combina a

produção nas suas chakras e a vida em suas comunidades com o assalariamento em uma

condição quase permanente de semiproletarização. Nessas condições, se desenvolveram as

organizações indígenas da Serra, suas lutas e confrontos, que propiciaram a formação de uma

camada de lideranças indígenas, as quais desempenharam um papel importante no processo de

articulação organizativa nacional e na consolidação de um discurso indígena-camponês e das

propostas político-organizativas que derivaram posteriormente na proposta do Estado

plurinacional.

Paralelamente, na região amazônica as primeiras organizações indígenas se

constituíram para a articulação de estratégias de defesa de seus territórios ameaçados pela

avançada dos processos de colonização, a expansão da exploração de petróleo e do projeto

desenvolvimentista e integrador do Estado equatoriano. Esse processo organizativo suscitou

ações de resistência e de negociação com o Estado, que permitiram posteriormente articular as

diversas experiências organizativas no âmbito regional, amadurecer as reivindicações

territoriais e favorecer processos de reconstituição e afirmação étnica como povos com suas

particularidades específicas. Nesse contexto, se produz a retomada e reelaboração da noção de

nacionalidades indígenas que teve um papel estratégico para a definição identitária e para a

articulação do movimento indígena nacional a partir da década de 1980, ao contribuir para a

confluência de distintas concepções e reivindicações diferenciadas decorrentes dos processos

da Serra e da Amazônia e permitir fusionar os elementos étnicos e classistas presentes nas

lutas, num discurso coletivo e num projeto político comum.

O levantamiento indígena de 1990 abriu um novo tempo político no país e foi o

momento culminante no processo de consolidação do movimento indígena nacional, ao

irromper como um novo sujeito político no topo da arena política nacional, com sua força

sustentada em sua capacidade de mobilização, levantando a luta por terra e territórios como

garantia para sua sobrevivência enquanto povos e demandas que confrontavam a estruturação

neocolonial do Estado nacional. A partir do levantamiento de 1990, os temas da

plurinacionalidade e do reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas tornaram-

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se centrais no debate nacional, ao tempo que o Estado equatoriano começou a processar a

questão étnica para colocá-la num terreno assimilável pelo Estado. Por sua vez, a força da

mobilização alertou a burguesia agrária, que se preparou para enfrentar as ameaças que a

mobilização indígena representava para o processo de acumulação capitalista no campo,

criando as condições políticas para obter a finalização do processo de reforma agrária no

Equador.

A partir do levantamiento de 1990, na travessia empreendida nesta pesquisa indagando

as mudanças nas relações entre o Estado e o movimento indígena, mostrei que o Estado

equatoriano fez algumas concessões diante da mobilização indígena e articulou

progressivamente durante as últimas décadas uma política neoindigenista compatível com o

neoliberalismo. A perspectiva teórica adotada nesta tese no espaço de confluência das noções

de governamentalidade e biopolítica em Foucault e de hegemonia e Estado ampliado em

Gramsci me permitiu compreender essa política como uma política de “administração de

populações”, isto é como uma biopolítica que tomou como objeto e sujeito dela a população

indígena e desenrolou uma série de mecanismos reguladores e dispositivos de poder para

atenuar a ameaça que esta representava para o desenvolvimento capitalista no campo. Assim,

a questão étnica foi colocada num campo assimilável para o Estado através da adoção do

discurso e dos dispositivos do multiculturalismo na governamentalidade neoliberal, que

articulou e deu coerência a essa política. Um dos elementos centrais dessa política na

abordagem multiculturalista foi a abertura de espaços institucionais no Estado e a

incorporação de representantes indígenas na sua gestão, o qual condicionou a atuação do

movimento indígena, modelou seu discurso e transformou suas expectativas e práticas

organizativas e políticas, contribuindo para a domesticação do movimento indígena, suas

reivindicações e lutas. A aplicação dessa política garantiu a adoção de políticas agrárias

neoliberais, desmontou progressivamente os eixos contestatórios e antissistema presentes no

movimento indígena e bloqueou gradualmente sua capacidade de mobilização.

No processo de articulação progressiva dessa política analisei três momentos chaves

na história recente por sua significação política e por suas implicações para a reconfiguração

das modalidades de representação indígena diante do Estado. Estes momentos foram:

a) O processo de negociação de uma lei agrária de “consenso” entre o Estado, o

movimento indígena e as Câmaras empresariais de Agricultura em 1994, por meio da qual se

enterrou a Reforma Agrária, geraram-se as condições para a expansão da agricultura

capitalista no campo e propiciou-se uma desativação das demandas agrárias do movimento

por quase uma década, para abrir passo nos anos seguintes a um discurso etnoinstitucionalista

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focado na abertura de espaços para a participação indígena no Estado. Iniciava-se assim uma

modalidade de negociação do Estado com o movimento indígena na qual o Estado

incorporava e reconhecia aos representantes do movimento como interlocutores legítimos na

discussão e negociação das políticas, ao tempo que enquadrava os limites de sua atuação sem

modificar significativamente a orientação neoliberal predominante das políticas públicas.

b) O processo de aprovação dos direitos coletivos indígenas na constituição de 1998,

com escassa aplicabilidade diante da ausência da legislação secundária, desativou os

conteúdos interpeladores diante do Estado e da sociedade nacional presentes até aquele

momento na proposta da plurinacionalidade e contribuiu para a entrada dócil do movimento

indígena no terreno do multiculturalismo, enquanto paralelamente se corroíam os alicerces

das condições de produção e reprodução social das comunidades indígenas.

c) Com o dispositivo multiculturalista consolidado, a incorporação política de

representantes indígenas na gestão do Estado em altos cargos em governos neoliberais, que

teve seu ponto culminante no governo Gutiérrez e implicou o desdobramento dentro do

movimento indígena de amplos mecanismos de cooptação clientelista com um forte efeito

desmobilizador, confirmando uma tendência de inclusão de representantes indígenas

convocados a desempenhar um papel específico na implantação das políticas neoliberais:

articular as dinâmicas das organizações indígenas em torno desses mecanismos. Através da

inclusão no aparelho do Estado se alcançava o consentimento ativo de representantes do

movimento indígena e sua conversão na figura do “índio permitido”, como parte da política

de administração de populações e do dispositivo multicultural na governamentalidade

neoliberal.

A criação de entidades estatais direcionadas especificamente para a população

indígena e geridas pelos representantes indígenas constituiu um dos eixos centrais de

operação do dispositivo biopolítico multiculturalista, como ponto nodal de articulação do

Estado com as organizações indígenas, no espaço de confluência entre o campo político e o

aparelho do desenvolvimento. Por meio dessas entidades se canalizou a incorporação de

funcionários e intelectuais indígenas vinculados às organizações indígenas na lógica do Estado

neoliberal. A dinâmica gerada a partir dessas instituições e dos projetos de desenvolvimento

para as populações indígenas fortaleceram a presença de uma tendência etnoinstitucionalista

dentro do movimento indígena a qual priorizou a inclusão e participação institucional indígena

no aparelho do Estado a partir da afirmação étnica, provocando a “estatização” do movimento e

uma perda de sua autonomia. Essa dinâmica converteu-se na dominante em todas as expressões

organizativas nacionais do movimento indígena no final da década de 1990 e na primeira

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metade da década de 2000 e atravessou também as instâncias intermediárias de atuação local ou

provincial do movimento. A participação no Estado converteu-se numa finalidade em si mesma

provocando o enfraquecimento de uma perspectiva política transformadora da realidade social

no movimento e a perda dos conteúdos contestatórios na proposta da plurinacionalidade, ao

ficar restrita ao âmbito da participação institucional no aparelho do Estado.

O aparelho institucional do desenvolvimento rural como dispositivo de poder/saber

também desempenhou um papel significativo na política neoindigenista de administração da

população indígena ao funcionalizar as dinâmicas organizativas na lógica dos projetos de

desenvolvimento. Também incorporou lideranças indígenas na gestão dos projetos, provocando

uma tendência a sua tecnocratização, como novos intermediários desse entretecido institucional.

A influência do aparelho institucional do desenvolvimento rural nas dinâmicas das organizações

indígenas foi significativa nas instâncias organizativas intermediárias do movimento (locais e

provinciais), subordinando-as aos discursos dominantes no dispositivo do desenvolvimento,

suplantando uma prática política mais autônoma, o qual ocasionou a perda paulatina de uma

dimensão de luta, mobilização e construção de uma perspectiva política transformadora.

A subordinação das organizações indígenas frente ao aparelho institucional do

desenvolvimento, também se expressou no deslocamento do âmbito e do sentido da luta político

– eleitoral do movimento indígena do nível nacional para a esfera local, por meio do acesso de

representantes indígenas aos governos locais em cantões e províncias com maior população

indígena. A gestão desses governos locais também ficou circunscrita aos limites marcados pelo

Estado neoliberal e significou mais uma via de colonização e subordinação do discurso indígena

aos discursos dominantes presentes no campo político e no aparelho de desenvolvimento,

diluindo-se as possibilidades de um questionamento crítico do capitalismo e das condições

estruturais geradoras das desigualdades sociais e econômicas. A ênfase dessas experiências de

gestão de governos locais na “participação cidadã” se orientou fundamentalmente para legitimar

as autoridades indígenas diante da população mestiça dos centros urbanos, principais incluídos

nos processos participativos, em contextos locais nos quais prevalecem preconceitos e práticas

racistas contra os indígenas.

O processo de participação política eleitoral por meio do Movimento Pachakutik, a

gestão de representantes indígenas nos governos locais e nas entidades estatais e projetos de

desenvolvimento favoreceu a criação de uma “elite” indígena que reproduz e amplia relações e

redes clientelistas para sua manutenção nas instâncias de poder político, que derivaram na

constituição de práticas políticas e estilos cacicais de liderança. Esta tendência na representação

indígena é reforçada pelos processos de diferenciação econômica existentes nas comunidades e

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a tendência dos governos de usar as figuras locais com amplo respaldo eleitoral, como

operadores políticos locais. Isso tudo tem contribuído para o desgaste e a perda dos sentidos

políticos originais para os quais foi criado o movimento Pachakutik.

Após o esfacelamento político, as fraturas internas e as dificuldades experimentadas

pelo movimento indígena com sua participação no governo Gutiérrez, as lutas contra a possível

assinatura do Tratado de Livre Comércio com Estados Unidos permitiram ao movimento

indígena retomar na sua pauta a agenda agrária e iniciar um processo de recomposição interna

procurando uma conexão mais próxima com as preocupações e demandas de suas comunidades

de base e recuperar sua capacidade de mobilização para incidir nas políticas nacionais.

A chegada ao governo de Rafael Correa levantou expectativas no movimento indígena

pelas mudanças anunciadas e pelo processo de elaboração da nova Constituição aprovada em

2008. Nela se processaram algumas das propostas apresentadas pelos movimentos sociais

registrando-se várias conquistas e o reconhecimento de direitos, entre elas a definição do

Estado equatoriano como um Estado plurinacional e intercultural. Não obstante, além das

mudanças constitucionais, o projeto neodesenvolvimentista do governo Correa pôs em

andamento um agressivo processo de modernização capitalista com o protagonismo do Estado

para desenvolver as condições para a valorização do capital, afastando-se de uma perspectiva

que prefigure mudanças radicais no padrão de desenvolvimento, com participação das

organizações e movimentos sociais. O projeto neodesenvolvimentista do governo Correa

impôs várias mudanças de acima para baixo, sem se perguntar sobre o tipo de Estado

necessário, limitando os espaços para o exercício de uma política autônoma por fora da

centralidade do Estado. O sentido imposto das mudanças caracterizou-se por uma visão

produtivista e do “progresso”, compatível com a governamentalidade neoliberal, ao criar um

clima favorável de negócios para o capital corporativo e promover o desenvolvimento

capitalista com fortes investimentos públicos para a construção de infraestrutura.

O governo Correa aproveitando uma conjuntura extremamente favorável pelos altos

preços do petróleo impulsionou transformações no âmbito da reforma e modernização

institucional do Estado para adequá-lo às necessidades estratégicas de desenvolvimento do

capital, entre elas a estabilidade política. Neste sentido, o processo político desenvolvido na

última década permitiu a recomposição da hegemonia burguesa no Equador, garantiu

melhores condições para a acumulação capitalista nos distintos setores econômicos, e marcou

uma direção para o conjunto da sociedade, produzindo e organizando o consentimento de

vastos setores da população.

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Na medida em que sua legitimidade nasceu e se montou sobre o acúmulo das lutas

sociais contra o neoliberalismo o governo apropriou-se dos elementos simbólicos e

significantes construídos pelos movimentos sociais e o movimento indígena, transformando

seus conteúdos e inserindo-os dentro da lógica desenvolvimentista do Estado. Essa

apropriação foi útil no processo de construção de hegemonia, que permitiu ao governo

apresentar-se como portador de um novo rumo alternativo de desenvolvimento, garantindo a

adesão de amplias camadas da população e o consenso social com suas políticas. Mas essa

retórica esteve amalgamada com um processo efetivo de controle e desmobilização das

organizações e movimentos sociais que expressavam questionamentos críticos ao governo,

especialmente por seu viés extrativista. Isso reverberou na promoção de formas clientelistas

de relação com as comunidades com o objetivo de enfraquecer as organizações nacionais,

além da desqualificação das lideranças nacionais na mídia e o uso da repressão direta, a

judicialização e criminalização dos protestos quando os movimentos levantaram ações de

resistência. Ainda assim, alguns movimentos conseguiram reconfigurar sua autonomia e

reestabelecer antigas alianças entre setores para realizar mobilizações confrontando o discurso

governamental. Isso provocou uma maior repressão os últimos anos. Nesse sentido,

configurou-se um novo momento no exercício da hegemonia caracterizado pelo incremento

do grau de coerção real ou latente contra as resistências existentes, reconfigurando o

equilíbrio na combinação da força e do consenso.

O projeto neodesenvolvimentista do governo Correa não significou uma ruptura

radical com a política neoindigenista de administração da população indígena e seu

dispositivo multiculturalista. De um lado reforçou e agudizou alguns elementos desta política

e de outro provocou algumas inflexões, provocando como consequência a degradação dos

sentidos do reconhecimento constitucional do Estado plurinacional e de outras conquistas

alcançadas pelo movimento indígena e camponês na Constituição. Em todos os temas críticos

para as organizações indígenas e para sua sobrevivência como povos, a legislação secundária

emitida nos anos posteriores bloqueou a possibilidade de concretizar os avanços alcançados

na Constituição e desativou todo seu potencial transformador diante do processo de expansão

capitalista no campo e do viés extrativista do projeto do governo que favoreceu a implantação

da megamineração. Processos que abriram novos cenários de confronto com o movimento

indígena em torno das lutas de resistência pela defesa dos territórios indígenas e a soberania

alimentar.

O projeto do governo Correa trouxe uma versão renovada de uma política indigenista

integradora que nega às principais organizações indígenas o protagonismo político e

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transforma as comunidades em receptores passivos das ações do governo e em sujeitos

obedientes. Dessa forma, a noção da plurinacionalidade foi instrumentalizada em função dos

requerimentos do padrão de desenvolvimento capitalista, reduzindo-a e degradando-a ao

suprimir por meio da legislação secundária qualquer vestígio de autonomia e

autodeterminação indígena na mesma. Esta concepção aprofundou o dispositivo

multiculturalista ao restringir e enquadrar mais o alcance dos direitos aceitáveis pelo Estado e

bloquear todos aqueles que pudessem colocar em risco o padrão de desenvolvimento

capitalista.

Isso se complementou com as respostas confrontadoras do governo diante dos

protestos indígenas, a ativação do aparelho repressivo e a judicialização e criminalização dos

protestos com a acusação de sabotagem e terrorismo contra centenas de lideranças indígenas.

Implantou-se uma política sistemática de intervenção, controle e desestruturação sobre as

maiores organizações indígenas autônomas e de desqualificação de suas lideranças, por meio

de campanhas midiáticas. Essa política repressiva estigmatizou as lideranças indígenas como

sujeitos “perigosos” e “recalcitrantes” ativando preconceitos racistas, em contraposição à

figura do “índio permitido”. Nesse sentido, radicalizou esta oposição característica do

dispositivo multiculturalista na governamentalidade neoliberal.

Enfim, após desta extensa travessia para compreender a relação do Estado com o

movimento indígena no Equador durante as últimas décadas, em relação com as cinco

questões centrais que orientaram esta pesquisa podemos concluir:

a) Como consequência da presença política do movimento indígena na arena política

nacional com sua força sustentada em sua capacidade de mobilização, o Estado equatoriano

articulou uma serie de respostas que implicaram concessões ao movimento (demarcação de

territórios na região Amazônica, solução de alguns conflitos de terra na Serra) e

transformações no aparelho do Estado (criação de instituições e projetos do Estado

direcionados para as populações indígenas), no quadro jurídico (reformas constitucionais

incluindo o reconhecimento do Estado plurinacional) e nas práticas políticas (reconhecimento

da legitimidade da representação indígena) para incorporar a participação social e política

indígena no Estado. Embora, estas concessões e transformações do Estado equatoriano

implicaram uma reconfiguração das modalidades de dominação étnica e mudanças no papel

do Estado na administração da questão étnica, preservaram ao mesmo tempo as dinâmicas de

acumulação e reprodução capitalista no campo, especialmente no que diz respeito à expansão

das atividades extrativas nos territórios das nacionalidades amazônicas (petróleo,

megamineração) e dos agronegócios na Serra e na Costa, barrando possibilidades mais

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abrangentes de redistribuição da terra e das concessões da água para irrigação ou da

participação indígena nas decisões sobre atividades extrativas nos seus territórios

(consentimento prévio). Dessa forma, não alteraram substancialmente as condições de

subordinação e de exploração indígena e camponesa, definidas pelas características do padrão

de desenvolvimento capitalista no campo.

b) O conjunto de evidencias apresentadas ao longo desta tese mostraram como as

respostas geradas pelo Estado equatoriano, as concessões feitas ao movimento indígena e o

desenvolvimento progressivo da política de administração da população indígena foram

altamente compatíveis com as reformas neoliberais e com as diretrizes centrais das mudanças

operadas no padrão de desenvolvimento capitalista. Nessa direção, o próprio reconhecimento

do caráter plurinacional do Estado equatoriano, dos direitos coletivos indígenas e a

incorporação de representantes indígenas na gestão dessa política enquadraram-se dentro da

perspectiva multiculturalista, para permitir um tratamento adequado da questão étnica e das

diferenças culturais no neoliberalismo, marcando os limites dos direitos aceitáveis pelo

Estado e conjurando os perigos e ameaças que representava a mobilização indígena e seus

questionamentos às reformas neoliberais.

c) Além das diferenças entre os distintos governos, a política de administração das

populações indígenas consolidou-se como política do Estado equatoriano na segunda metade

da década de 1990 e ganhou um alto grau de coerência ao adotar como seu eixo articulador o

multiculturalismo como discurso dominante e dispositivo de poder. Ao posicionar-se como

linha diretriz para conduzir a atuação do Estado diante da questão étnica, o multiculturalismo

permitiu ao Estado equatoriano encontrar na diversidade cultural o espaço para sua

legitimação e para a construção de hegemonia. A criação de entidades do Estado direcionadas

para as populações indígenas geridas por representantes indígenas e a confluência do

dispositivo multiculturalista com o aparelho institucional do desenvolvimento rural,

articularam esta política neoindigenista, contribuindo para a subordinação das dinâmicas das

organizações indígenas.

d) Sem significar uma ruptura com o dispositivo do multiculturalismo neoliberal que

organizou a política de administração da população indígena, o projeto neodesenvolvimentista

impulsionado na última década pelo governo Correa aprofundou alguns elementos desta

política e provocou inflexões em outros. Essas inflexões, ao trazer uma versão renovada de

uma política indigenista integradora, cuja dimensão é a construção de sujeitos obedientes,

modificaram negativamente os sentidos do reconhecimento do Estado plurinacional e de

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outras conquistas alcançadas pelo movimento indígena. Trata-se então de um Estado

plurinacional degradado em relação aos conteúdos da plurinacionalidade defendida pelo

movimento indígena, no que diz respeito à organização indígena e sua qualidade de sujeito

político, ao exercício dos direitos coletivos, bem como à autonomia e autodeterminação dos

povos e nacionalidades indígenas. Nesse processo, o governo apropriou-se de elementos

simbólicos e discursivos provenientes do movimento indígena (como a defesa da

“Pachamama” e do “Bem-Viver”) e das lutas sociais contra o neoliberalismo, como base de

uma retórica para a construção da hegemonia e a obtenção do consentimento de vastos setores

da sociedade. Esta dinâmica política combinou-se com a permanente desqualificação das

lideranças indígenas e a criminalização do protesto social, incrementando o grau de coerção

real e latente contra as resistências existentes.

e) Como resultado do processo de interação com o Estado e da política de

administração da população indígena se produz uma progressiva desmontagem dos conteúdos

contestatórios presentes no discurso do movimento indígena, transformando gradualmente as

expectativas e o perfil de seus representantes e diminuindo parcial e progressivamente sua

capacidade de mobilização. A relação com o Estado fortaleceu uma tendência

etnoinstitucionalista dentro do movimento indígena que priorizou a participação institucional

indígena dentro do aparelho do Estado e contribuiu para a criação de uma “elite” indígena que

reproduz práticas clientelistas arraigadas na cultura política. O processo político do

movimento indígena ficou marcado pelas tensões internas decorrentes da política de

administração da população indígena, a qual gerou dinâmicas complexas que se deslocam

entre a subordinação, a negociação e as lutas de resistência, redefinindo assim as formas de

luta e confronto e o caráter do movimento em diversas conjunturas.

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Janeiro de 2015.

Floresmilo Simbaña. Liderança da CONAIE. Entrevista realizada em 1 de Maio de 2014.

Franco Viteri. Liderança do povo Sarayaku e ex-presidente da CONFENIAE. Entrevista

realizada em 21 de Janeiro de 2015.

Guillermo Churuchumbi. Ex-presidente da Confederación del Pueblo Cayambe e Prefeito de

Cayambe. Entrevista realizada em 6 de Maio de 2014.

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Humberto Cholango. Ex-presidente da CONAIE. Entrevista realizada em 12 de Maio de

2014.

Jorge Herrera. Ex-presidente da CONAIE. Entrevista realizada por Florencia Campana e

Fernando Larrea em 22 de Novembro de 2014.

Leonidas Iza. Ex-presidente de la CONAIE. Entrevista realizada por Florencia Campana e

Fernando Larrea em 22 de Novembro de 2014.

Lourdes Tibán. Ex Presidenta do Movimiento Indígena y Campesino de Cotopaxi, ex

Secretaria Ejecutiva del CODENPE,ex-asambleísta por Pachakutik. Entrevista realizada em

abril de 2005 por Luis e Jorge Corral. Entrevista realizada em 22 de janeiro de 2015 por

Fernando Larrea.

Luis Andrango. Ex-presidente da FENOCIN. Entrevista realizada em 27 de Fevereiro de

2010. Entrevista realizada em 5 de Maio de 2014.

Luis Macas. Ex-presidente da CONAIE. Entrevista realizada em Maio de 2005 por Luis e

Jorge Corral. Entrevista realizada em 6 de Maio de 2014 por Fernando Larrea.

Mario Unda. Profesor e pesquisador da Escuela de Sociología de la Universidad Central del

Ecuador. Entrevista realizada em 08 de Maio de 2014.

Natalia Greene, Carlos Larrea e Carmen Seco. Equipe da pesquisa sobre el Buen vivir como

alternativa al desarrollo de la Universidad Andina Simón Bolívar. Entrevista colectiva

realizada em 30 de Janeiro de 2015.

Nina Pacari. Liderança da CONAIE, Ex-asambleista por Pachakutik. Entrevista realizada em

25 de Janeiro de 2015.

Pablo Dávalos. Profesor e pesquisador da Pontificia Universidad Católica del Ecuador.

Entrevista realizada em 19 de Janeiro de 2015.

Pocho Alvarez. Cineasta e produtor independente. Entrevista realizada em: 21 de novembro

de 2014.

Roberto Gortaire. Ex-presidente da COPISA e liderança do Colectivo Agroecológico del

Ecuador . Entrevista realizada em 25 de Janeiro de 2015.

Victoria Carrasco. Equipe pastoral de Ayora Cayambe. Entrevista realizada em 29 de Abril de

2014.

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ANEXOS

ANEXO 1

Mapa físico do Equador

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ANEXO 2

Mapa Político do Equador

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ANEXO 3

Territórios das Nacionalidades indígenas equatorianas

Fonte: ORTIZ (2012, p. 443)

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ANEXO 4

Área dos Territórios indígenas na Região Amazônica Equatoriana

Fonte: López A. V., Aragón J., e Ulloa J.( 2016).

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ANEXO 5

MANDATO POR LA DEFENSA DE LA VIDA Y LOS DERECHOS DE LAS

NACIONALIDADES INDÍGENAS

Debemos tener presente que agotados los esfuerzos por la vía legal, el pueblo tiene la palabra.

Por esta razón exigimos el cumplimiento de este mandato por parte del gobierno; de no ser

así, tenemos la obligación moral e histórica de ejecutarlo por nosotros mismos.

1. Entrega, solución y legalización en forma gratuita de la tierra y territorios para las

nacionalidades indígenas.

2. Solución a los problemas de agua, considerado como un problema social, bajo tres

aspectos: agua para regadío, consumo y políticas de no contaminación a través de un

instructivo para el control del medio ambiente.

3. No al pago del predio rústico.

4. Cumplir y hacer cumplir el Acuerdo de Sarayacu.

5. Exigir la creación de partidas presupuestarias para las direcciones provinciales y nacionales

y entrega de recursos económicos permanentes del convenio MEC-CONAIE.

6. Condonación de las deudas por parte del FODERUMA, IERAC, FEPP, Banco de Fomento

y otros.

7. Reforma del artículo 1 de la Constitución, que declare el Estado Plurinacional.

8. Exigir la entrega inmediata de los fondos presupuestarios para las nacionalidades indígenas,

a través de un proyecto de ley presentado por la CONAIE, discutido y aprobado por el

Congreso Nacional.

9. Congelamiento de los precios de los productos industrializados de primera necesidad,

mínimo por dos años, y fijación de precios justos de los productos campesinos de la economía

de subsistencia, a través de la autonomía en el mercado.

10. Cumplimiento, terminación y realización de las obras prioritarias de infraestructura básica

de las comunidades indígenas.

11. Libre importación y exportación para los comerciantes y artesanos miembros de la

CONAIE.

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12. Aprobación de ordenanzas a nivel nacional, que declaren el control, protección y

desarrollo de los sitios arqueológicos, por parte de la CONAIE y sus organizaciones filiales.

13. Expulsión del Instituto Lingüístico de Verano (ILV), por medio del cumplimiento del

decreto ejecutivo 11-59 de 1981.

14. Exigimos respeto a los derechos del niño, por lo que rechazamos las propuestas de este

gobierno de convocar a elecciones a la población infantil, sin haber trabajado para que ésta

tenga una conciencia crítica de la situación en que vivimos.

15. Exigimos que mediante decreto sea legalizada y financiada por el Estado la práctica de la

medicina indígena.

16. Exigimos la inmediata derogatoria de los decretos con los que se han creado instituciones

paralelas a los Consejos Provinciales y Municipales, como el CORNOFORT, organismos que

están dirigidos por un solo partido político, que los utiliza para montar empresas electorales

que trafican con las conciencias de nuestras comunidades indígenas.

¡Viva los 500 años de resistencia indígena y popular!

¡Viva el Levantamiento Indígenas Nacional!

¡Viva la lucha por la recuperación de nuestra Madre Tierra!

¡Viva la unidad de los sectores populares por una causa justa!

Fuente: RICCHARISHUN Boletín No. 2. Levantamientos indígenas.

ECUARUNARI, Quito

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ANEXO 6

Mapa de ubicação dos megaprojetos de mineração

Fonte: Sacher (2017, p. 175)