108
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA - FAUFBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO ADONIRAN DA SILVA SANTOS ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR Salvador 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA - FAUFBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO

ADONIRAN DA SILVA SANTOS

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:

PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR

Salvador

2014

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

ADONIRAN DA SILVA SANTOS

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:

PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, para obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profa. Dra. Naia Alban Suarez

Salvador

2014

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

S237 Santos, Adoniran da Silva. Entre o público e o privado: Praça Luiz Sande e Camarote Salvador / Adoniran da Silva Santos. 2014. 108 f. : il. Orientador: Profa. Dra. Naia Alban Suarez.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2014.

1. Arquitetura - Espaços públicos - Salvador (BA). 2. Planejamento urbano - Praças - Salvador (BA). I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. II.Suarez, Naia Alban. III. Título.

CDU: 712.253(813.8)

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

ADONIRAN DA SILVA SANTOS

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:

PRAÇA LUIZ SANDE E CAMAROTE SALVADOR.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre

em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade

Federal da Bahia.

Aprovada em 03 de novembro de 2014.

Naia Alban Suarez – Orientadora ___________________________________

Doutora pela Universidad Politécnica de Madrid, Madrid, Espanha.

Universidade Federal da Bahia

Urpi Montoya Uriarte ____________________________________________

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, Brasil.

Universidade Federal da Bahia

Sérgio Luis Abrahão _____________________________________________

Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas pela Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, Brasil.

FIAM-FAAM Centro Universitário

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

Ao meu pai, Antônio, por sua dedicação em me fazer

ver e entender o mundo, não por seus olhos, e sim

por minha própria percepção.

(in memoriam)

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

AGRADECIMENTOS

À Monica, pelo carinho de dividir com este trabalho, parte da minha vida.

À professora, Naia Alban Suarez, pela generosidade.

Ao professor Angelo Serpa, por uma luz de conhecimento.

Aos professores Urpi Uriarte, Angelo Serpa e Sérgio Abrahão pelas provocações

nas qualificações.

Aos meus filhos, irmãos, familiares e amigos, por momentos de alegria e

contentamento que ajudaram a dar sentido a tudo que tenho feito até aqui.

Ao Renato por estender nossa amizade à vida acadêmica.

À professora Elyane Lins, pela sensível experiência da docência que me

proporcionou.

À equipe do PPGAU, com especial carinho à nossa Silvandira, sempre presente,

com palavras acolhedoras.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

“As cidades são um imenso laboratório

de tentativa e erro, fracasso e

sucesso, em termos de construção e

desenho urbano. É nesse laboratório

que o planejamento urbano deveria

aprender, elaborar e testar suas

teorias”

Jane Jacobs (2003, p, 5)

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

SANTOS, Adoniran da Silva. Entre o público e o privado: Praça Luiz Sande e camarote Salvador. 108 p. il. 2014. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

RESUMO

As relações sociais, nos grandes centros urbanos, deterioram-se, não por uma

vocação, mas por uma inércia no trato do que é público e deveria ser o lugar de uma

transformação qualitativa dessas mesmas relações. É preciso atinar para a

deterioração dos espaços públicos urbanos e para os novos usos que o capitalismo

enxerga em toda porção de território que dê margem a uma nova expressão, seja

ela arquitetônica, econômica, artística, pois, muitas vezes, esses processos chegam

como formas de desconstruir um cotidiano de usos e práticas sedimentados por

parcelas da coletividade que permaneceram muito tempo naqueles locais e neles

perpetuaram essas mesmas expressões em formas e escalas diferenciadas. Em

outras situações, os usos são substituídos ou suprimidos, tornando os espaços

públicos locais desarticulados das práticas e dos usos coletivos, para que possam

atender ao consumo ou à especulação, enfraquecendo os conceitos de coletivo e

público, em favor de uma privatização sistemática do espaço urbano coletivo. As

praças se constituem em um elemento universal nas estruturas urbanas,

independentemente da escala que essas estruturas urbanas apresentam. As praças

são espaços coletivos, públicos, que proporcionam diversas das condições

necessárias às interações entre os seus usuários, mas também podem ser

transformadas em espaços de segregação, a partir de interferências e dos usos aos

quais sejam direcionadas. Este trabalho busca discutir o uso privado de um espaço

público, a Praça Luiz Sande, que se transforma conforme as diferentes formas de

uso coletivo.

Palavras-Chave: Espaço Público, Público, Privado, Praças.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

SANTOS, Adoniran da Silva. Between the public and the private: Luiz Sande Square and Camarote Salvador. 108 p. il. 2014. Master Dissertation – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

ABSTRACT

In large urban centers, social relations deteriorate, not by vocation, but due to inertia

in addressing what is public and should be the place for qualitative transformation of

those relations. Thus, it is necessary to comprehend the deterioration of urban public

spaces and interpret new uses that capitalism identifies in every portion of territory,

permitting either new architectural, economic or artistic expression, often, because

these processes occur as forms that deconstruct part of collectivity’s everyday uses

and sedimented practices that have remained over a long in those places and

perpetuated the same expressions in different forms and scales. In other situations,

the uses are replaced or deleted, turning public spaces into places that are disjointed

from collective practices uses, in order to comply with consumption or speculation,

weakening the concepts of collective and public in favor of a systematic privatization

of urban collective space. Squares constitute a universal element in urban structures,

regardless of the scale, which these urban structures present. The squares are

collective and public spaces, which provide many of the necessary conditions for the

interactions among their users, but can also be transformed into spaces of

segregation, corresponding to interferences and uses to which they are directed. This

work aims to discuss the private use of a public space, the Luiz Sande Square, which

transforms itself according to the different forms of collective use.

Keywords: Public Space, Public, Private, Squares.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Situação atual do Bairro de Ondina .............................................................................. 39

Figura 2 - Reprodução da planta do loteamento cidade balneária de Ondina – Fonte

Plandurb ............................................................................................................................................. 40

Figura 3 - Limites do bairro de Ondina – Fonte Google Earth..................................................... 47

Figura 4 - Lona do Circo Troca de Segredos no Bairro de Ondina – Reprodução do Correio

da Bahia .............................................................................................................................................. 50

Figura 5 - Praça Luiz Sande entre 1981 e 2010 – Fonte Google Earth ..................................... 67

Figura 6 - Praia de Ondina - 2012 - Fonte Google Earth ............................................................. 68

Figura 7 - Uso do solo em Ondina 1973. Scheinowitz, 1998, p. 97 ............................................ 69

Figura 8 - Praça Luiz Sande – 2013 – Fonte Google Earth ......................................................... 78

Figura 9 - Vista interior do camarote Salvador – Fonte Premium Empreendimentos – Site da

Empresa ............................................................................................................................................. 81

Figura 10 - Visão geral da praça e limite do camarote na cor vermelha – Google Earth ........ 82

Figura 11 - Acesso ao Circo Troca de Segredos em dia de show – Reprodução Correio da

Bahia ................................................................................................................................................... 91

Figura 12 - Interior do Circo Troca de Segredos em dia de show. Lazo Matumbe –

Reprodução Correio da Bahia ......................................................................................................... 92

Figura 13 - Folheto de divulgação do programa Salvador, Esporte e Cidadania. .................... 97

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Evolução da ABL (milhões de m2) ............................................................................... 37

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

LISTA DE FOTOS

Foto 1 - Loteamento cidade Balneária de Ondina - 1972 - Fonte Fundação Gregório de

Matos .................................................................................................................................................. 42

Foto 2 - Ocupação popular em Ondina - retirada em 1969 – Fonte Fundação Gregório de

Mattos ................................................................................................................................................. 43

Foto 3 - Visão geral da orla de Ondina – 1972 – Fonte Fundação Gregório de Mattos .......... 44

Foto 4 - Lanchonete SPEED e Banca de Revistas que atendem na Praça 24 horas – Acervo

Pessoal ............................................................................................................................................... 48

Foto 5 - Quiosques que comercializam coco e bebidas – Acervo Pessoal ............................... 49

Foto 6 – Visão geral do Camarote Salvador – Acervo Pessoal .................................................. 79

Foto 7 – Visão geral da Praça Luiz Sande – 2014 – Acervo Pessoal ........................................ 79

Foto 8 - Estrutura metálica do camarote Salvador montada na Avenida Oceânica – Acervo

Pessoal ............................................................................................................................................... 80

Foto 9 – Automóvel, com isopor para a venda de bebidas – Acervo Pessoal .......................... 96

Foto 10 - Alunos do programa Salvador Esporte e Cidadania – Acervo Pessoal .................... 98

Foto 11 - Coordenador do projeto passa instruções aos alunos – Acervo Pessoal ................. 99

Foto 12 - Vista dos sanitários da Praça Luiz Sande – Acervo Pessoal ................................... 100

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

LISTA DE ABREVIATURAS

ABL Área Bruta Locável

ABRASCE Associação Brasileira de Shoppings Centers

CREA Conselho Regional de Engenharia

DENATRAN Departamento Nacional de Trânsito

DMER Departamento Municipal de Estradas de Rodagem

DPU Defensoria Pública da União

IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano

ISBA Instituto Social da Bahia

MP Ministério Público

OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PDDU Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

PL Projeto de Lei

PLANDURB Plano de Desenvolvimento Urbano

PMS Prefeitura Municipal de Salvador

PPP Parceria Público Privada

RENURB Companhia de Renovação Urbana de Salvador

SEDHAM Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio

Ambiente

SEFAZ Secretaria da Fazenda do Município

SPJ Secretaria de Parques e jardins

SPU Superintendência do Patrimônio da União

SUCOM Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Munícipio

SURCAP Superintendência de Urbanização da Capital

TAC Termo de Acordo e Compromisso

UFBA Universidade Federal da Bahia

ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

Sumário

Introdução ........................................................................................................................................... 15

1. Coletivo, público e privado ....................................................................................................... 18

1.1. Usos cotidianos .................................................................................................................. 21

1.2. Níveis e dimensões ........................................................................................................... 31

2. As ocupações em Ondina: Praça Luiz Sande da lona ao camarote .................................. 37

2.1. O Bairro de Ondina ............................................................................................................ 39

2.2. Programas de Remanejamento da Orla Marítima ........................................................ 45

2.3. A praça, entre a ordem e a (des)ordem. ......................................................................... 58

2.4. Políticas Públicas de desenvolvimento ........................................................................... 70

3. A Praça e a Cidade ................................................................................................................... 77

3.1. Perspectiva dos usos na Praça Luiz Sande................................................................... 77

3.2. Escalas de apropriação da Praça .................................................................................... 89

3.3. Uma Paisagem Midiatizada .............................................................................................. 94

3.4. Coletivo, usuários e consumidores ................................................................................. 95

Considerações Finais ..................................................................................................................... 101

Referencial ....................................................................................................................................... 104

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

15

Introdução

Este trabalho traz uma reflexão sobre os conflitos que se estabelecem hoje

nos espaços públicos no Brasil, mais detidamente na Bahia e, especificamente, na

cidade de Salvador, onde se processa uma transformação das relações entre o

Estado, o capital e a sociedade no que se refere aos espaços públicos, como âmbito

do coletivo. Esses processos atingem, de modo geral, a gestão, mas também a

conceituação e a teorização do que passaremos a chamar de “estatutos” de público

e privado, para efeito deste texto.

Entende-se, pelo senso comum, que público e privado sejam polarizações

entre elementos antagônicos que se anulam e não poderiam estar no mesmo

contexto espacial, entretanto, a realidade teórica é que esses estatutos são mais

miscíveis que possamos imaginar e, cada vez, torna-se menos evidente a sua

limitação um em relação ao outro, principalmente, quando considerada a

sobreposição do estatuto privado, sobre o público.

Ao longo dos últimos anos, a produção e a manutenção de espaços públicos

atraíram o interesse e a ação do capital privado, que descobriu nos espaços

públicos, possíveis espaços privados de uso coletivo, um mercado em crescimento a

ser explorado, no qual passou a investir. Entretanto, optando por uma visão

privatista e não coletivizante desses espaços, numa evidente referência ao lucro,

mas também às garantias (segurança, conforto, etc.), segregando esses espaços ao

definir seu uso para certos grupos ou para certas classes sociais. Essas

transformações, com relevância aos espaços públicos para o capital privado, têm

amparo nas transformações dos estatutos de público e privado, além da forma como

se considera o que seja coletivo.

O primeiro capítulo trará a sedimentação de coletivo como o inverso de

individual, o que poderia definir público e privado como outras categorias análogas a

essa inversão, contudo, trataremos coletivo como um todo que contém, como

instâncias de uma estrutura maior, o público e o privado.

Considerando a natureza coletiva da cidade e da sociedade, podemos

perceber que nelas estão contidos aspectos de público e de privado, não sendo

simples, em muitos momentos, separá-los. Outra questão surge na leitura do social

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

16

como sinônimo de coletivo, em relação ao território, ao uso do solo, e à forma de

definição do que é próprio, mas também da propriedade do que é facultado ao uso

comum, o que evidencia a sedimentação dos estatutos de público e privado como

instâncias de poder sobre o uso do espaço, seja público ou privado.

Nesse sentido, escolheu-se como ambiente de estudo a Praça Luiz Sande,

para identificar, em suas raízes, um episódio que demonstra a transformação das

relações sociais e do homem com o lugar, caracterizada pela retirada das pessoas

de suas casas (moradores da ocupação de Ondina) por terem sido erguidas em um

terreno público, ou seja, apesar de coletivo, aquele espaço não está disponível a

todos os usos. Para sustentar a espoliação dos moradores da ocupação de Ondina,

coube o argumento do interesse turístico, como um interesse coletivo. Estaríamos,

assim, diante do conflito de interesses coletivos, em que a propriedade cumpriu um

papel de regulação, demonstrando a sua capacidade de definir o que tem uso

privado, pela titularidade e o que não tem, pela falta dela.

Ao longo do segundo capítulo, teremos a oportunidade de descrever e discutir

esse processo de transformação da Fazenda Areia Preta, no atual bairro de Ondina.

A cidade balneária de Ondina é o marco a partir do qual delimitamos o núcleo do

bairro (1932) que se consolida, e onde nasce Parque Zoobotânico Getúlio Vargas

(1956), e parte do campus da Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Em 1973, surge uma proposta de zoneamento do bairro, a partir do Programa

de Remanejamento da Orla Marítima, que vai definir diversas zonas determinando,

inclusive, uma para equipamentos de praia. Todavia, somente em 1981 foram

implantados equipamentos desse gênero na área que atualmente corresponde à

Praça Luiz Sande, sedimentando um espaço público e de serviços, que abrigará

uma ocupação inusitada em 1983, o circo, mas também trará discussões sociais

após sua reforma e requalificação em 2011, por abrigar um empreendimento,

parceria entre a empresa Premium Entretenimento e a Prefeitura Municipal de

Salvador – PMS -, que permite à empresa exploração da praça durante o carnaval

para implantação de um camarote que causa a interdição de toda a praça por 3

meses.

Desse ponto em diante, o terceiro capítulo irá traçar os parâmetros dessa

parceria público (PMS)/ privada (Premium Entretenimento) e discutir as implicações

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

17

e as alegações que cercam esse processo, seus conflitos e consensos, pelos pontos

de vista de alguns atores e sob a ótica do que podemos denominar de uma forma de

privatização do espaço público. O que não define privatização como algo bom ou

ruim, mas a percebe como um fenômeno que deve ser acompanhado pela

sociedade.

A ocupação do sítio da Praça Luiz Sande percorre um caminho de gradação,

que se inicia com a implantação de boxes comerciais passa pela ocupação da praia

por barracas, pela ocupação da lona do circo e culmina na construção do camarote.

Essa trajetória tem um caráter evolutivo da ocupação do espaço da praça, talvez

não qualitativo, mas, essencialmente, quantitativo, que não deve ser considerado do

ponto de vista da simples ocupação, e sim da transformação dessas relações ao

longo do tempo, e no espaço da cidade de Salvador.

Finalmente, serão feitas considerações sobre a privatização de espaços

públicos que vêm ocorrendo, sob certo aspecto, em função da oportunidade

proporcionada pela administração pública, diante de interesses muito mais políticos

que sociais, bem como, pela forma como o capital privado vê o espaço urbano como

um nicho de negócios, principalmente nas cidades costeiras, abundantes em

recursos naturais, vocação turística, mão de obra barata.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

18

1. Coletivo1, público e privado

O Espaço urbano, a cidade, pode ser admitido como um espaço coletivo em

que os cidadãos, reunidos, constroem e administram suas relações cotidianas.

“A cidade”, à maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organizado por operações “especulativas” e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação. De um lado uma diferenciação e uma redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões, deslocamentos, acúmulos, etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que não é tratável e constitui, portanto, os “detritos” de uma administração funcionalista (anormalidade, desvio,

doença, morte, etc.)2.

Nesse sentido, a cidade seria a articulação de “um número finito de

propriedades” com as práticas e os usos de seus cidadãos em seus processos

cotidianos, públicos e privados, já aí considerada uma cossubordinação do público e

privado aos cidadãos (coletivo) e vice-versa.

Contudo, a noção de coletivo se mantém, cada vez mais, à margem desse

cotidiano, apesar de encher as discussões em torno do destino de ocupações cada

vez mais extensas e complexas e de suas populações, menos capazes de gerenciar

suas necessidades de modo sustentável.

Coletivo é uma noção que se associa a uma ideia de todo, conjunto dos

entes. Ao falarmos de urbano, pode ser o conjunto dos cidadãos, dos moradores de

um bairro, uma associação de moradores. Além disso, coletivo não tem grau, é

comum a todos com a mesma intensidade, mesmo quando delimitamos parte

desses entes em certas categorias, em certos contextos, essas delimitações não os

desarticulam da noção de coletivo.

Se pensarmos em público e privado como estados contidos em coletivo,

estados que se alternam, que se sucedem ou convivem, para dessa forma

subcategorizá-los ao sentido de coletivo, há uma subjetividade nessa objetivação,

em estar desse ou daquele lado de um limite que é invisível. Ser público ou privado

define uma transição dentro de coletivo, pois na realidade ambos estão contidos

1Nesse texto, coletivo não pode ser admitido como sinônimo de público, conforme o verbete – público – do

minidicionário de sinônimos e antônimos, Edições Melhoramentos, 1994, p. 504. 2Certeau, Michel de, 2013, p.160 e 161.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

19

nele, denominados conforme uma realidade prévia em relação aos conceitos sociais,

que coexistem dentro do urbano; num contexto histórico; num processo hegemônico;

no imaginário de certo grupo ou na sociedade como um todo, que busca definir esse

limite entre público e privado, conforme suas necessidades.

Mas essa definição opera, ainda, conforme as castas e estratificações sociais

e/ou econômicas operem suas práticas para conformar o espaço físico da cidade,

impondo aos indivíduos uma atitude ou uma inércia em relação a esse espaço físico

a partir da forma como apreendem os conceitos dados de público e privado que, ao

longo do tempo, a arquitetura, depois o urbanismo, tornaram instrumentos para essa

conformação, teorizando as relações dos indivíduos e não do coletivo com o espaço

das cidades.

O indivíduo, desse modo, perde uma condição privilegiada ao buscar o seu

lugar nessa trama, respeitadas as relações sociais e econômicas. De início, balizado

pelas religiões e, posteriormente, por poderes laicos, findando no surgimento e

consolidação do capitalismo moderno, e nos fundamentos de público e privado e sua

evolução, como estatutos sob os quais se discute a questão da propriedade. Desse

modo, podemos pensar que a cidade já teve um sentido muito mais coletivo e o

desmembramento de espaço coletivo, em privado e público, no século XIX, a

transformou e distanciou dos indivíduos.

Outra questão seria, segundo Escóssia e Kastrup, a utilização do conceito de

coletivo, “para designar uma dimensão da realidade que se opõe a uma dimensão

individual”3 dentro dos processos psicológico e sociológico das relações que marcam

visões de diversos autores, inclusive Hanna Arendt, quando “critica o sentido

atribuído ao político na modernidade, bem como a oposição efetuada entre o privado

e o social”4.

Em, “O Declínio do Homem Público”, Sennett sugere que analisar uma

cronologia dos termos público e privado seria uma forma de situá-los na cultura

ocidental. Público sendo denominado enquanto bem comum, o que é manifesto e

aberto à observação geral. Tal denominação concorda com um senso comum de

público e o significado de público como algo ao alcance da observação de qualquer

3Escóssia, Liliana da; Kastrup, Virgínia, 2005, p. 295.

4Ibidem.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

20

pessoa. O termo privado, por sua vez, está relacionado à intimidade, à região

protegida da vida, da família, dos amigos. Visões do senso comum que ele nos

apresenta, claro, de forma introdutória à discussão, mais fáceis de acatar por

intentar o consenso.

No significado de privado, encontramos o sentido daquilo que é tratado como

íntimo, particular, restrito, que não pertence ao Estado, direcionado ao individual,

enquanto o público está direcionado ao que é coletivo, ao alcance de um conjunto

de pessoas, o que está aberto a qualquer pessoa, mas, nisto reside uma questão

importante: não a qualquer uso. Essa característica se intensifica no domínio do

Estado sobre o que se diz coletivo.

O sentido dessas palavras transparece ainda seu caráter antagônico e os

conflitos provenientes do antagonismo se apresentam de forma difusa, provável

consequência de uma cultura do privado em que os cidadãos abrem mão do

consenso pela disputa do espaço urbano que possua denominação de coletivo, mas

também é público e privado, em que, o que é privado não está ao alcance de todos

os cidadãos e o que é público está para ser alcançado, sob a tutela do Estado.

Entre esses dois contextos surgem ações dos indivíduos que intentam o uso

do coletivo, mas nem como público, nem com tutela do Estado, tampouco como

privado, limitados por sua incapacidade de dispor do espaço urbano como

propriedade privada. E isso marca também certa relação de valor, em que o senso

comum é de que o que é privado, por ter um proprietário, passa a tem um valor e o

que é público não teria um valor, pois não é de ninguém. Esse contexto beneficiaria

um crescimento pela busca do privado e pelo desconhecimento do público como

instância de uma vida pública.

Na modernidade, tem se apresentado um conflito entre poderes políticos,

econômicos e sociais, para se estabelecer e cumprir as demandas ou expandir o

raio de ação sobre o espaço urbano. Razão pela qual muitas questões transitam da

ordem privada para a ordem pública e vice-versa, em que se questiona como

“alcançar um uso do espaço quando a lei da concorrência (hoje, a competitividade)

sugere uma utilização cada vez mais privatista”5. Como resposta, talvez seja

possível que o conflito entre as demandas do mundo e do lugar constituam uma luta

5Santos, Milton, 1996, p. 270

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

21

permanente, na qual forças díspares se enfrentam, mas também pode ser entendido

como um campo, em que se disputa por expansão e contração, como se

estivéssemos numa bolha, um pequeno limite pessoal de domínio de um espaço

material e simbólico.

1.1. Usos cotidianos

Do ponto de vista desses limites pequenos e sensíveis que construímos ao

redor de nós mesmos, para balizar nossa fruição entre os espaços urbanos,

podemos dizer que a membrana social que nos reveste não permite uma osmose

plena com o ambiente. Nossa troca é, em muitos casos, com outros que possuem

membranas semelhantes, disso decorrendo uma proximidade dos iguais, no

contexto dos grupos que repercutem no espaço por eles ocupado.

A proximidade de certos grupos, de um ponto de vista da determinação e da

estruturação de um plano estratégico por parte do Estado, tutor do espaço coletivo,

tem como objetivo metas de efetivação e efeitos em curto prazo para áreas

específicas determinando a aplicação de recursos de forma a agregar mais valor

onde ele já existe. Tal articulação não se baseia em uma noção de coletivo, mas, em

certos casos, em demandas públicas e ou privadas, que,

com a “fuga” do Estado para fora do Direito Público, com a transferência de tarefas da administração pública para empresas, estabelecimentos, corporações, encarregados de negócios semi-oficiais, mostra-se também o lado inverso da publicização do Direito Privado, ou seja: a privatização do Direito Público. Os critérios clássicos do Direito Público tornam-se caducos uma vez que a administração pública se utiliza de meios do Direito Privado mesmo em suas funções de distribuir, prover e fomentar /31/. [...] Esta esfera não pode ser entendida completamente nem como sendo puramente privada nem como sendo genuinamente pública; também não pode ser univocamente classificada no âmbito do Direito Privado ou do Direito público

/32/6.

Dessa forma, a leitura dos estatutos de público e privado se torna um desafio

que nem sempre se cumpre com a devida excelência, deixando margens aos

equívocos por parte dos gestores da coisa pública. Assim, o uso e a ocupação do

6Habermas, Jürgen, 2003, p. 180.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

22

espaço urbano passam a ser balizados por regras e princípios que se coadunem

com as demandas do privado.

Podemos dizer que o uso determinado, e não o uso efetivo, estabelece os

critérios de denominação do estatuto dos espaços urbanos nas cidades brasileiras,

pois a cada dia é mais difícil, a certas parcelas da população, efetivar o uso dos

espaços urbanos, o que estabelece constantes conflitos.

É o uso determinado pelo poder público, dentro de parâmetros privados, e

não aquele vivenciado pelos cidadãos, que trará aos espaços coletivos uma

dimensão de espaço público, o que causa uma distorção desses espaços em suas

características mais relevantes à coletividade. A praça, ao servir de exemplo do

espaço urbano, onde podem ocorrer estatutos diferentes de publicização ou

privatização, que pode alterar seus usos para coletivos ou restritos, demonstra que o

critério pode não estar balizado pela frequência, mas pela proximidade que certos

grupos têm desse espaço. As sucessivas urbanização e requalificação da Praça Luiz

Sande têm sua afirmação nessa referência de proximidade, diferentes grupos locais,

mesmo diante da diversidade, partilham interesses, podendo exercer certas ações

sobre o destino daquele espaço, o que vai ser diluído pelos limites a partir da

expansão e contração dos grupos.

Se, por outro lado, pensarmos a cidade como fixo no espaço, mas não no

tempo, podemos considerar que essa mobilidade é temporal e nela a ausência de

dinâmicas das estruturas podem promover necessidade em se estabelecer

dinâmicas nas estruturas. Nessa relação, o espaço público é o espaço

“desocupado”, livre para o uso, onde se construíram menos funções materiais e

onde elas podem ser alteradas, sem grandes constrangimentos, onde se pode

ocupar com diferentes formas de expressão do viver e do conviver; possível espaço

do hibridizar, numa ação contínua e fluída. Ligações e caminhos possíveis aos que

trocam usos, sem lhes atribuir valores restritivos e determinantes. Espaço de

proximidades.

Desse modo, os espaços públicos estão vulneráveis a ação de todos os

usuários que, em dado momento, articulam formas de exploração do espaço, em

detrimento da fruição, aproveitando a sua proximidade para compor usos, trocas, em

práticas conjuntas.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

23

Pensado a partir dos conceitos ordem e desordem, publico e privado, coletivo

e os usos múltiplos apropriados, buscamos questionar: são os usos que definem as

noções de espaço? Essas noções podem e devem ser dinâmicas? Caso sejam,

cabem como prática tanto no espaço público como privatização quanto no privado

como publicização? Questões conduzidas ao ambiente em estudo.

No ambiente da Praça Luiz Sande temos, de forma mais marcante, duas

ocupações, a do circo e a do camarote, como objetos da análise deste trabalho.

Ambas utilizando e modificando o espaço, permitindo novos usos em diferentes

escalas. Em primeiro lugar, a menos conflitiva, por permitir usos concebidos e

vivenciados do espaço público, que se privatiza e publiciza, permitindo ao mesmo

tempo, os usos públicos e os usos privativos. Em segundo, a mais restrita e

intensamente conflitiva, por implicar numa ocupação que impede outros usos,

segregando o espaço e excluindo parcelas da população, que, apesar de alterar as

relações do espaço com outros usuários em certo período, não impede a presença

de uma diversidade de usos marcados pelas temporalidade e espacialidade, por

eles construídas.

Contudo, em escala mais próxima ao espaço da praça, temos ocupações que

sugerem uma adaptação ou integração dos ocupantes do e ao espaço. São elas, a

ocupação permanente dos sanitários públicos por moradores de rua, e a ocupação

do estacionamento por ambulantes que, de modo desviante, estabeleceram um local

de comércio e convívio que concorre com o comércio e o espaço de convivência

formal.

Retomando o espaço público e concordando com Vaz quando o define como

“conjunto de lugares de domínio do coletivo”7, entendemos como característica do

espaço público o livre acesso garantido a todos os cidadãos, e que o coletivo a que

ele se refere seriam os cidadãos, de uma forma indiscriminada, fato pelo qual seria

“proibida a sua utilização privada, o que não impede que estas mesmas áreas

tenham o uso permitido ao setor privado através de concessão”8. Esse conceito

possibilita deduzir, segundo esse autor, que coletivo é algo que pode ser público ou

privado, permitindo a existência de lugares privados de uso coletivo, que sejam fruto

7Nelson Popini Vaz in: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/arq5605/Espacospublicos.htm

8Nelson Popini Vaz in: http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/arq5605/Espacospublicos.htm

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

24

da privatização do espaço público e ainda da publicização de espaços privados a

exemplo dos shoppings, centros comerciais, mercados, etc.

Agrega a esse raciocínio a definição de Macedo sobre os espaços livres

quando os conceitua como, “aqueles não contidos entre as paredes e tetos dos

edifícios construídos pela sociedade para sua moradia e trabalho”9. Esses espaços

livres são passíveis de múltiplos usos, dentre esses os coletivos e públicos, que

permitam a mobilidade, o lazer e a contemplação. Entretanto, a difusão do modelo

de parcerias público-privadas, entre capital e estado, possibilitou novas alternativas

a tais espaços, antes relacionadas a dispositivos menos flexíveis de concessão,

além do fato da visibilidade que esse modelo obteve no final da última década no

Brasil.

Os espaços públicos são locais em que se pressupõem haver interações

intensas na definição de uma apropriação simbólica e, de modo mais complexo, na

apropriação social, não simplesmente provenientes de uma transitória permanência

e apropriação espacial. Isso se orientado pelo conceito de apropriação como uma

atitude fundada num ato que altera a realidade de modo efetivo, transformando-a em

um novo estar, possibilitando, assim, pensar tanto a forma coletiva quanto a

individual, definidas como apropriação do espaço em suas múltiplas possibilidades.

Se para o policial trata-se de jurisdição, para o morador de rua pode ser relacionado

ao lar, enquanto para o artista de rua, o palco - tudo isso em função do mesmo

espaço, contudo,

A forma do espaço social é o encontro, a reunião, a simultaneidade. O que se reúne? O que é reunido? Tudo o que há no espaço, tudo o que é produzido, seja pela natureza, seja pela sociedade, - seja por sua cooperação, seja por seus conflitos. Tudo: seres vivos, coisas, objetos,

obras, signos e símbolos10

.

Tendo uma visão do espaço como um substrato necessário, que se permite

apropriar e expropriar sistematicamente, para diversos usos, apesar das

transitoriedades que possam comportar. O exemplo citado acima vincula-se ao tipo

de uso, que no caso em específico, é produzido por uma ocupação ou apropriação

9Macedo, Sílvio Soares, 1995, p.16.

10Lefebvre, Henri, A Produção do Espaço – Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins (do original: La

production de l’espace, 4 ed. Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

25

que, para Lefebvre, é descrito como desvio que, mesmo ao passar de uso comercial

para residencial, não ocorre modificação da natureza, mas, na função.

Diante do exposto, considerando os espaços edificados e livres, cada qual

desenvolve uma relação com os corpos que cativa ou liberta pelo uso. Essa relação

tem uma ordem, que pode estar estabelecida no limiar entre um e outro desses

espaços, sem ser possível rompê-los e transbordá-los, em quaisquer dos sentidos,

pois seus limites são materiais. Já no concernente ao que seja público ou privado,

esses (público e privado) tendem à complementaridade e à harmonização, ao

contrário dos anteriores, permitem rompimentos e transbordos.

É necessário perceber que o privado e o público podem ser miscíveis, ou

seja, publicizáveis e privatizáveis, parcial ou totalmente, segundo a forma como

estejam constituídos e quanto ao contexto das ações e relações sociais que os

constituem, no espaço urbano em que se constrói sua leitura. Essas noções não

atribuem ao espaço uma característica imutável, estão próximas a uma ordem dos

usos que nasce da ação dos agentes.

Quanto aos espaços coletivos, esses, mesmo os públicos, podem passar ao

âmbito do privado. Ocorrem, assim, diversos usos nos espaços urbanos coletivos

que se alteram entre espaço urbano coletivo público, determinado pela ação do

Estado que define, aparelha e conserva tais espaços, e o espaço urbano coletivo

privado, aquele dos empreendimentos comerciais e espaços de serviços.

No caso da Praça Luiz Sande, ela irá conter as duas formas, tendo sua

cronologia dividida entre os meses de ocupação pelo camarote, em que seu uso é

restrito, e o resto do ano quando permanece acessível a todos os cidadãos.

Na verdade, o conceito de coletivo antecede o conceito de público ou mesmo

privado, entretanto, é coerente pensar que o público seja originário do coletivo. No

instante em que se define o privado, busca-se dar ao que era coletivo uma

nomeação distintiva, de algo pessoal, mas também garantir que seu uso não é livre.

Diante disso, o que não é privado é propriedade do Estado. O crescimento dos

conceitos de público e privado obscureceu a noção de coletivo num movimento em

que as partes se tornaram maiores que o todo.

Do ponto de vista jurídico e institucional, é possível, sim, determinar a

natureza do espaço. Porém, nas práticas dos especialistas, como nas dos

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

26

indivíduos, já se consolida uma confusa discussão quanto a essas noções, quanto

ao que possa ser público ou privado. É preciso perceber as características que lhes

garantem a condição estatutária, mediante a qual, são reconhecidos, assim se pode

evitar um possível equívoco, dada a forma como ambos se tornaram

complementares, mesmo considerando seu processo dialético.

É a razão pela qual, ao falar desses dois domínios, é necessário pensá-los como uma molécula: são modos de expressão humana concorrentes, localizados em diferentes situações sociais, e que são corretivos um do

outro11

. Encontramo-nos hoje diante de uma reconfiguração dos sentidos clássicos de público e privado, sobretudo se considerarmos os países ocidentais, e, talvez estas denominações históricas não consigam abarcar as diversas práticas urbanas contemporâneas. Mesmo nomeado como público, muitas

vezes um espaço é usado ou incorporado por alguns de forma privada12

.

Hoje, a convivência urbana nos traz pequenos dilemas diários que estão

marcados nos conflitos entre nossos espaços privados e os espaços públicos, cada

vez mais intensos e variados em seus usos. Há uma disputa crescente pelo espaço

externo aos nossos espaços privados, evidente na quebra do silêncio, nos usos

comerciais em áreas residenciais, na invasão de calçadas e ruas, que também se

estabelece na privatização de espaços públicos por condomínios e residências.

Richard Sennett nos apresenta uma visão sobre os estatutos do público e do

privado a partir da consolidação da burguesia na Europa e da determinação de uma

diversidade no âmbito do que seria público. As cidades se tornam o espaço de um

indivíduo cosmopolita aquele que absorve as diversas realidades que lhe são

apresentadas e que, mais recentemente, tem que unir culturas diversas, consumindo

uma produção mercadológica, não só de novos produtos, mas de possibilidade de

novos usos e inserções, nos mais variados mercados, pelas vias da globalização.

Os espaços públicos se caracterizaram, naturalmente, como aptos a servir de reduto

e principalmente de vitrine dos novos comportamentos, antes restritos aos salões e

seus saraus.

Arendt (2007) estabelece dois sentidos para público, o que se relaciona com

este texto é aquele em que,

11

Sennett, Richard, 1998, p. 120. 12

Silva, Breno e Ganz, Louise, 2009, p.10

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

27

o termo <<público>> significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. [...] A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos

outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer13

.

Para Arendt, a natureza das relações público e privado ecoa desde os gregos,

até nossos dias, reverberando conceitos, podendo ser percebida como definitiva

para as estruturas espaciais das relações humanas. O homem necessita definir seus

espaços, pois essa compartimentalização faz parte de sua concepção de mundo e

da realidade contida nele. “Todas as atividades humanas são condicionadas pelo

fato que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser

imaginada fora da sociedade dos homens.”14. Essas ações passam a ser

dinamizadas e condicionadas pela construção de uma estrutura de informação que

permite definir, para a maioria, o modo e a forma de viver, com a globalização

tornando esses processos um verdadeiro fetiche global.

Podemos inferir que essa ação, que decorre da sociedade dos homens, tem

um domínio espacial que deve ser definido, ou como no caso dos estados de

exceção, rechaçado. Além disso, percebemos que na construção do espaço urbano

se faz necessária a existência de um domínio em que o político se encontre com o

coletivo, e esse se torne político, estabelecendo as bases para a ação, que de outro

modo irá se constituir clandestina, pois é inerente ao ser humano e aos processos

sociais.

Nos dicionários da língua francesa compostos no século XIX, ou seja, no

momento em que a noção de vida privada adquiria seu pleno vigor,

descubro de início um verbo, o verbo privari, significando domar, domesticar

e o exemplo dado por Littré, “um pássaro privado”, revela o sentido; extrair

do domínio selvagem e transpor para o espaço familiar da casa. Descubro

em seguida que o adjetivo privado, considerado de maneira mais geral,

também conduz á ideia de familiaridade, agrega-se a um conjunto

constituído em torno da ideia de família, de casa, de interior. entre os

exemplos que escolheu, Littré cita a expressão que se impunha em seu

tempo; "A vida privada deve ser murada” e por esta glosa, em minha opinião

13

Arendt, Hannah, 2007, p.62 14

Ibidem, p.31

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

28

bastante expressiva: “Não é permitido procurar e dar a conhecer o que se

passa na casa de um particular”. Todavia, e é isso que marca bem o termo

particular, em seu sentido primeiro, mais direto, mais comum, o privado se

opõe ao público. Assim, no Littré, estas duas citações, uma Vauvenargues:

“Aqueles que governam cometem mais faltas que os homens privados”; e

outra de Massillon: “Nada é privado na vida dos grandes, tudo pertence ao

público”.

Eis-me então remetido à palavra público. Definição de Littré: “o que

pertence a todo um povo, o que concerne a todo um povo, o que emana do

povo”. Portanto, a autoridade e as instituições que sustentam essa

autoridade, o estado. Esse primeiro sentido evolui para uma significação

paralela: diz-se público o que é comum, para uso de todos, o que não

constituindo objeto de apropriação particular, está aberto, distribuído,

resultando a derivação no substantivo o público, que designa o conjunto

daqueles que se beneficiam dessa abertura e dessa distribuição. Muito

naturalmente, o deslocamento do sentido prossegue: é dito público o

ostensivo, o manifesto. Assim, o termo vem opor-se, de um lado, a próprio

(o que pertence a tal ou qual), do outro, a oculto, secreto, reservado (o que

é subtraído).15

Nos espaços públicos se desenrolaria a odisseia das razões humanas, pois a

razão só é dada em público, ao privado, resta conspirar contra a variedade dos

discursos que profana, na distância da conveniência, na distância do que está

confinado, sob o manto obscuro do determinismo.

Na visão de Habermas, “a decomposição da esfera pública, que é

demonstrada na alteração de suas funções políticas, está fundada na mudança

estrutural das relações entre esfera pública e setor privado”16. Essas transformações

devem interferir na comunicação, entre os estatutos de público e privado e

conformar uma conjunção em que o posterior realinhamento desses estatutos trará

uma racionalização ao cotidiano social. Dessa forma, “a partir do momento em que

as leis do mercado, dominam a esfera dos negócios e do trabalho, penetram

também na vida privada dos indivíduos, “reunidos” artificialmente em um “espaço

público””17, com a degeneração da ação em consumo. A desqualificação e

artificialização de praças e ruas, agora dotados de facilidades e serviços facultados

pela publicização dos espaços privados em substituição das formas convencionais

do urbano é o fenômeno que melhor traduz os espaços de uma nova vida pública.

Que se forma em meio

15

Duby, Georges, 2009, p. 18-19. 16

Habermas, Jürgen, 2003, p. 170-171. 17

Serpa, Angelo, 2007, p.17.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

29

[...] a um ‘intercâmbio de gostos e preferências’ e são determinadas grupalmente. Em geral a família, o grupo das pessoas com a mesma idade, os conhecidos no local de trabalho e na vizinhança – com as suas estruturas específicas de orientação da opinião e de prestigio da opinião, assegurando a natureza coercitiva das opiniões grupais – são o focus para

essa camada de opiniões movidas de fora18

.

A análise comportamental e adequação dos citadinos a esses novos espaços,

demonstra que os hábitos são alterados, em relação aos espaços públicos ou

privados para favorecer o consumo. Passamos a consumir espaços seguros,

organizados e que possuem opções de consumo, numa metalinguagem do

consumo. O consumo do espaço privado de uso coletivo é a forma e o conteúdo do

consumo. Ele nos expõe a um consumo característico de espaços, serviços e

produtos que implica na escassez do espaço, em sua pulverização entre muitos e

diversos usos, e em sua capacidade de atrair com esses usos o cotidiano das

pessoas. Nesse sentido, Santos (1993) nos afirma que:

No mundo de hoje, cada vez mais as pessoas se reúnem em áreas mais reduzidas, como se o habitat humano minguasse. Isso permite experimentar, através do espaço, o fato da escassez. A capacidade de utilizar o território não apenas divide como separa os homens, ainda que

eles apareçam como se estivessem juntos19

.

Isso ocorre à medida que o território20, a partir de determinados usos,

segrega-se, definindo limites ou apresentando estigmas, em que um muro, ou um

simples comportamento, separa grupos e coletividades que dividem um mesmo

espaço, enquanto, simbolicamente, outros são apartados pelo discurso dominante

ou mesmo a ação política. A proximidade não confere às coletividades, por vezes

direcionadas por forças sociais e econômicas diversas, as mesmas condições de

acesso e uso do espaço urbano.

Segundo Debord, “o esforço de todos os poderes estabelecidos, após a

experiência da Revolução Francesa, para manter a ordem nas ruas culminou

18

Habermas, Jürgen, 2003, p. 285. 19

Santos, Milton, 1993, p.59. 20

(...) a territorialidade é definida por Sack como “a tentativa, por um indivíduo ou grupo, de atingir/afetar,

influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos pela delimitação e afirmação do controle sobre

uma área geográfica. Esta área será chamada território” (1986:6). Enquanto isso Raffestin, numa visão bem mais

ampla, considera territorialidade “o conjunto de relações estabelecidas pelo homem enquanto pertencente a uma

sociedade, com a exterioridade e a alteridade através do auxílio de mediadores ou instrumentos” (1988:265)

(Haesbaert, Rodrigo, 2011, p. 86 e 87).

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

30

finalmente na supressão da rua”21. Essa supressão não tem sentido num contexto

urbano capitalista contemporâneo, pois nele ocorre definição de ruas para certos

grupos, espaços mediados por um valor de troca e não de uso, em que o consumo

multiplica a produção de novos usos, que multiplicam o consumo.

Desse modo, a praça pública – como lugar de reunião e encontro da cultura – simplesmente desapareceu e todas as atividades que nela se congregavam (um espaço aberto onde as pessoas se comunicavam e compartilhavam suas experiências) foram substituídas por uma nova arquitetura, a do centro comercial, inscrita no mundo do consumo. Uma

nova maneira de se relacionar vital e espacialmente esta se impondo22

.

O desaparecimento desses espaços abertos, lócus das reuniões, lazer e

trocas paulatinamente substituídos por mercados cobertos, a exemplo dos

shoppings centers, trazem a disfunção dos espaços públicos, que não podem

proporcionar tais estruturas de consumo, nem mantê-las seguras. Na opinião de

Kostof apud Silva Pinto, “a depender do uso previsto para a praça, é necessário um

programa de revitalização”23, o que muitas vezes não passa de uma simples

atualização dos materiais utilizados ou da reconstrução da praça, o que não

consegue torná-la um equipamento diferenciado com a condição adequada “de

incentivo para que a população sinta-se atraída pelo local, fato ocorrido pela

disseminação dos shoppings centers, com seus inúmeros atrativos”24. É como se os

espaços privados, ao proporcionar a fruição, objetivada ao consumo, simulassem o

espaço ideal para a vida pública e, com isso, um espaço de vivências, uma

experiência das ruas de forma simultânea.

Ali, a família pode se dedicar a inúmeras situações de modo individual ou

coletivo, além disso, os eventos têm o suporte das formas variadas de remuneração

dos serviços e a variedade de produtos e facilidades adquiridas produzem uma

crença na sua eficácia pela constante adesão de novos itens e pela evolução de

suas estruturas, produtos diferenciados, inovação e tecnologia. Essa sedução faz

parte de uma cultura do valor agregado, na qual estamos inseridos e pela qual, em

muitos casos, o importante é a quantidade e não a qualidade do que possamos

vivenciar nesses espaços.

21

Córtes, José Miguel G., 2008, p.86. 22

Córtes, José Miguel G., 2008, p.86 e 87. 23

Silva Pinto, Renata. 2011, p. 244. 24

Silva Pinto, Renata. 2011, p. 244.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

31

1.2. Níveis e dimensões

O uso do espaço urbano demanda estratégias e táticas que, por um lado,

envolvam a consolidação de estruturas e a hegemonia de grupos dominantes que

vão estabelecer sua permanência através das práticas que programam o uso do

espaço, ou, por outro lado, representam a capacidade do indivíduo de opor-se em

suas práticas e fazê-lo, na inserção ou na dispersão do corpo aos processos

hegemônicos em que vive, por ocasião de um ordenamento espacial e ou temporal.

Assim, “uma reapropriação do corpo ligada à reapropriação do espaço faz parte

integrante de todo projeto atual, utópico ou realista, se ele evita a mediocridade pura

e simples”25. Entretanto, há situações nas quais há uma apropriação pela inserção,

de modo que os indivíduos habilitem comportamentos que os auxiliem a conviver em

estruturas hegemônicas.

Os vínculos nas estruturas urbanas estão para os corpos de tal forma que

qualquer intervenção que os desloca da realidade cotidiana, já predeterminada e

aliada ao desejo de vencer a todo custo os obstáculos e de cumprir nossas rotinas,

os faz cair num espiral, num fluxo descendente condicionado à invisibilidade, em que

qualquer interação é rarefeita. Assim ocorreria naqueles espaços esquecidos do

comportamento individualizado e disperso dos projetos hegemônicos de controle e

padronização. Se por um lado podem existir esses comportamentos individuais de

dispersão, por outro existem estruturas e estratégias de formação e consolidação de

uma prisão dos corpos.

A sociedade urbana se articula dentro de um espaço urbano em que os níveis

podem ser distintos, conforme Lefebvre, seriam três esses níveis: o global que

decorre da vontade e da representação; o misto relacionado ao edificado ou não; o

privado que indica o habitar e o habitat. E mais as dimensões: (1) da projeção das

relações sociais no solo; (2) do confronto entre estratégias; (3) das práticas urbanas,

além de dimensões simbólicas, paradigmáticas e sintagmáticas, passíveis aos

processos do espaço urbano, o que resume um arsenal de práticas e processos,

individuais e coletivos, que vão desde caminhar na calçada ou fora dela, num

25

Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sergio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.

Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

32

deliberado ato de indisciplina, até as ações institucionais que definem o direito dos

cidadãos em certos locais da cidade.

No nível global, Lefebvre traduz a presença de uma estratégia e de uma

ideologia na ação dos que detêm esse poder, sendo que a ideologia pode ser a de

um grupo ou de um indivíduo. Os acordos entre grupos políticos e empresariais,

segundo ações neoliberais ou neodirigistas, de ocupação da cidade pertencem, para

ele, às formas principais de estratégia nos países capitalistas, em que “se exerce o

poder, o Estado, como vontade e representação”26.

As relações da apropriação e do uso devem ser consideradas, segundo as

maquinações do Estado, entre as necessidades do cidadão, e, como tudo pode ser

manipulado, em situações distintas, com parcelas crescentes e decrescentes de

participação de ambos os lados (capital e estado), considerando-se o Estado e o

cidadão como agentes que se estranham, no decorrer do processo. O Estado como

figura de força ideológica e hegemônica que dispõe do espaço urbano, interpõe

estratégias e instrumentos para seu disciplinamento conforme lhe seja conveniente.

O cidadão pode ser pensado enquanto um possível agente contra hegemônico aos

usos determinados, utilizando suas táticas de ação e reação, para viabilizar o uso

segundo critérios pessoais e criativos, inclusive para sua sobrevivência.

[...] a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base

para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas27

.

Taticamente, portanto, age-se para conquistar um espaço de uso na cidade,

compondo artesanalmente sua ocupação espacial. E nesse processo de construção,

manifesta-se uma cultura, ideologia ou socialização própria aos indivíduos ou grupos

de resistência ou ainda, a dispersão do corpo aos estratagemas do Estado.

Desse modo, dentro dessa estrutura maior resultante da ação do Estado,

poderíamos perceber não só as construções que ocorrem por força dessa ação, mas

também aquelas que surgem de processos isolados e, no caso do próprio cotidiano,

26

Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.

Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006) 27

Certeau, Michel de, 1998, p. 100.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

33

das ações momentâneas e fugazes daqueles que não podem materializar de forma

definitiva novos processos ou sustentá-los, diante das limitações ao uso ou à

permanência em espaços públicos ou coletivos - o que seria possível de analisar a

partir da confrontação entre o edificado e o não edificado do nível misto.

No nível misto, entre espaços edificados e não edificados, tem-se a

necessidade de ocupar a cidade, dentre esses os espaços públicos. Espaços que,

em graus diferenciados, encontram-se fragilizados a uma ocupação por diversos

usuários, como também, no âmbito das transformações do espaço urbano, para

proporcionar serviços e viabilizar a logística da cidade em processos que acumulam

importância cotidiana, determinando os caminhos para a apreensão do urbano, e

analisados esses aspectos e construídas as discussões da materialidade, que para

Lefebvre,

[...] persiste sob olhar da reflexão conserva uma forma relacionada com o sítio (o meio imediato) e com a situação (o meio distante, condições globais) Esse conjunto especificamente urbano apresenta a unidade característica

do “real” social, o agrupamento: formas-funções-estruturas28

.

A acomodação entre esses fatores passa a produzir uma realidade

determinada e limitada, que é reproduzida pelos diversos agentes em escalas

compatíveis com sua realidade econômica e social. Cada vez mais, as pessoas

ajustam sua realidade pessoal e cotidiana ao que assimilam de uma realidade que

lhe é atribuída ou até mesmo imposta. Em toda sua construção material, a tradução

do discurso abstrato sobre o espaço gera uma entropia no espaço real. Todos

querem uma porção da realidade abstrata do discurso urbano, mas, para isso, é

necessária uma parcela material desse espaço, que se traduz para muitos na

desigualdade de acesso e na falta de oportunidade de ocupar.

Considerando o proposto por Lefebvre, a apropriação do espaço natural, se

materializa na figura das ocupações, invasões, em muitos casos numa

(re)apropriação que se multiplica por lotes industriais, terras devolutas, e no entorno

de loteamentos e condomínios. Nesses locais, firma-se uma tática de ocupação e

uso, que marcou profundamente a estrutura urbana de Salvador. Espaços sem

infraestrutura de lazer e serviços públicos, onde espaços coletivos, quando ocorrem,

28

Lefebvre, Henri, 1999, p. 80.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

34

não participam de programas ou projetos do Estado, resultando da iniciativa das

comunidades, lideranças e particulares.

O nível privado é o mais determinante de uma ocupação relativa ou efetiva,

considerando que pode ser resultado de uma sequência variável de fatos, que se

distribuem por uma rede de ações e projetos e que por conter o nível global e misto,

suas manifestações traduzem ações em ambos. Lefebvre discute essa

complexidade no habitar, só que no sentido do necessário recolhimento em face de

uma privacidade para a alma, entretanto, afirma sua importância ao destacar que:

“Antes do habitat, o habitar era uma prática milenar, mal expressa, insuficientemente

elevada à linguagem e ao conceito, mais ou menos viva ou degradada, mas que

permanecia concreta”29.

Para o cidadão, o urbano se torna aquilo que é apropriado de forma concreta

e definitiva. “O ser humano não pode deixar de edificar e morar, ou seja, ter uma

morada onde vive sem algo a mais (ou a menos) que ele próprio: sua relação com o

possível como com o imaginário.”30 Assim, ele precisa apropriar o espaço da cidade,

por mais precária que seja a forma. Contudo, essa relação, na massa dos

indivíduos, determina as inferências da construção do “real”, conformando também o

externo, o não edificado, pois esse faz parte do imaginário e daquilo que o possível

nos coloca como alternativa a cada ponto do tempo, em cada parte do espaço.

A praça é um local de simbolismos, de conquistas antigas e novas, marcos,

símbolos cívicos. A praça representa, em nossa cultura ocidental, a materialização

dos conflitos no espaço da cidade. É a partir da praça, que se formam movimentos

urbanos, nela eles se concentram. Ela se faz presente quase que indistintamente,

como um importante espaço público, nas estruturas urbanas atuais, seja de

pequenas cidades ou grandes metrópoles.

Gomes ressalta que uma concepção do espaço público que, além da ideia de liberdade e igualdade, tenha como base a separação do privado ou a delimitação jurídica, ou mesmo a garantia do acesso livre, é insuficiente para definir o caráter fundamentalmente político de seu significado. Para Gomes, “os atributos de um espaço público são aqueles que têm relação com a vida pública [...] E, para que esse lugar opere uma atividade pública,

29

Lefebvre, Henri, 1999, p. 80. 30 Ibidem.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

35

é necessário que se estabeleça, em primeiro lugar, uma copresença de

indivíduos”31

.

Sem garantir o acesso, se entende não haver a interação entre os indivíduos,

necessária, para efeito de estabelecer o estatuto público do espaço urbano. Alex

(2011) cita três tipos de acesso, para poder apropriar e usar um espaço: o físico, o

visual e o simbólico ou social.

“Acesso físico refere-se à ausência de barreiras espaciais ou arquitetônicas (construções, plantas, água, etc.) para entrar e sair de um lugar. No caso do espaço público, devem-se considerar também a localização das aberturas, as condições de travessia das ruas e a qualidade ambiental dos trajetos. Acesso visual, ou visibilidade, define a qualidade do primeiro contato, mesmo a distância, do usuário com o lugar. Perceber e identificar ameaças potenciais é um procedimento instintivo antes de alguém adentrar qualquer espaço. Uma praça no nível da rua, visível de todas as calçadas, informa aos usuários sobre o local e, portanto, é mais propicia ao uso. Acesso simbólico ou social refere-se à presença de sinais, sutis ou ostensivos, que sugerem quem é e quem não é bem-vindo ao lugar. Porteiros, guardas na entrada podem representar ordem e segurança para muitos e intimidação e impedimento para outros. Construções e atividades também exercem o controle social de acesso, principalmente aos espaços fechados, em que decoração, tipos de comércio e política de preços são

frequentemente conjugados para atrair ou inibir determinados públicos”32

.

A despeito de se pensar, conforme Gomes e Sun, o acesso, deve-se pensar

de igual forma que as estruturas a se acessar tenham a capacidade de produzir uma

continuidade cultural e social indistinta, que possibilite a ligação do ambiente

edificado com a realidade natural ou artificial que o cerca e, de modo definitivo, que

todo esse processo traduza as necessidades e produza efeitos sobre as

possibilidades dos diversos grupos em interação naquele espaço.

Poderíamos pensar nesse conjunto de características como aquelas que se

devem ou se possam esperar de um espaço público, capazes de atender às

demandas que se apresentam para as cidades e o variado perfil das populações

urbanas brasileiras, principalmente, em relação ao contexto de desigualdade e

segregação que vivem hoje.

Pensando dessa forma, poder-se-ia concluir que teríamos de ter espaços tão

variados quanto os diversos grupos que povoam nossas cidades e que esses

espaços exigiriam uma proximidade aos diversos grupos que não só seria afetada

31

Alex, Sun, 2011, p. 19. 32

Ibidem, p. 25

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

36

pelas diferenças sociais, mas, contudo pela dimensão que alcançaram as cidades,

sendo necessários espaços diferenciados para comunidades diferentes.

Como pensar os espaços públicos? Como pensar a copresença no espaço

público? Certamente, pensando-os como espaços coletivos, tendo a coletividade

como alvo, entendendo coletividade como algo que se aproxima mais da ideia de

cidadão e cidadania e menos da ideia de uma indeterminação que ameaça ou

amplia direitos, entendo que, mesmo quando ligado de alguma forma a algum

elemento ou ação privada, deva manter sua essência de público. Devemos

considerar que a presença do privado possa ser limitada a ações que tenham por

objetivo a retribuição ao coletivo e não a sua segmentação em coletivos –

denominando grupos ou parcelas da sociedade – destacando-os dos demais.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

37

2. As ocupações em Ondina: Praça Luiz Sande da lona ao camarote

Em sua cronologia, o sítio da Praça Luiz Sande conta com um histórico de

usos diferenciados e até peculiares. Originalmente, foi uma ocupação popular,

caracterizada como uma invasão pelo poder municipal e transferida para uma área

menos valorizada (Boca do Rio), no final da década de 1960. As intervenções

posteriores, ao longo do tempo, conformaram suas atuais características, após a

urbanização com a instalação de equipamentos esportivos, quiosques e outros

aparelhos (banheiros, rampas, bancos).

Contígua à praia, na Av. Oceânica33, num bairro de contrastes, onde

empreendimentos de luxo convivem com comunidades de baixa renda, constituindo

verdadeiros enclaves urbanos a exemplo do Calabar e do Alto de Ondina, ambas

classificadas como ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social - pelo Plano Diretor

de Desenvolvimento Urbano (PDDU), a praça serve como exemplo, no contexto

contemporâneo, da fragmentação que ocorre na cidade, segregada, gradativamente

esvaziada da vida pública. A estrutura de comércio e serviços, e o acesso aos

mesmos, inclusive por moradores de outros bairros, promovem intensa circulação de

pessoas nos espaços públicos nesse bairro, com um crescimento relativo da

violência urbana.

Nesse e em outros pontos próximos, na orla urbana, a agorafobia decorrente

do sentimento de insegurança provém do medo midiatizado que causa a constante

impressão de perigo, precarizando, consequentemente, a utilização do espaço

público, não mais entendido enquanto local de pertença. Souza (2008), já em sua

introdução, diz que o que predomina e prevalece é o “medo – sempre um inimigo da

liberdade. Em que vão se transformando tantas e tantas grandes cidades de hoje,

convertidas em verdadeiras “fobópolis” (gr. phóbos = medo), em cidades do medo”.

Nesse sentido, cresce a demanda por espaços privados, onde as pessoas podem se

reunir coletivamente sem temor dessa violência e suas consequências.

Nos shoppings, os cidadãos, convertidos em consumidores, passam a

construir relações associadas ao consumo, principalmente de serviços. Graça

enfatiza que os centros comerciais representam hoje “um papel central no cotidiano

33

Antes Avenida Presidente Vargas, aberta ainda no período de J.J. Seabra.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

38

urbano do cidadão europeu, que em média visita um centro comercial [shopping] 17

vezes por ano, ou seja, aproximadamente de 3 em 3 semanas [...] sendo visível o

peso destes espaços enquanto estrutura de divertimento e lazer”. A nossa realidade

não deixa de se assemelhar e, desde meados da década de 1970, os shoppings

centers fazem parte do imaginário baiano, com o emblemático empreendimento do

Shopping Center Iguatemi - até a atualidade, um dos maiores da cidade e também

dos mais representativos do país, com médias de mais de 130 mil visitantes diários.

Transparece, nessas observações, que há condições locais e globais que

influenciam e sedimentam os comportamentos dos usuários do espaço urbano, de

forma inversamente proporcional do espaço público para o privado.

Tabela 1 - Evolução da ABL (milhões de m2)

Dados da Associação Brasileira de Shoppings Centers (ABRASCE)

demonstraram um incremento, entre 2006 e 2013, da ordem de 70% nas unidades

construídas o que demandou 60% de aumento da Área Bruta Locável (ABL), em

ANONº DE

SHOPPINGS

ABL (MILHÕES DE

M2)LOJAS

FATURAMENTO

(EM BILHÕES DE

REAIS/ANO)

EMPREGOS

TRÁFEGO DE PESSOAS

(MILHÕES VISITAS /

MÊS)

2006 351 7,492 56.487 50 524.090 203

2007 363 8,253 62.086 58 629.700 305

2008 376 8,645 65.500 64,6 700.650 325

2009 392 9,081 70.500 74 707.166 328

2010 408 9,512 73.775 91 720.641 329

2011 430 10,344 80.192 108 775.383 376

2012 457 11,403 83.631 119 877.000 398

2013 495 12,94 86.271 129 843.254 415

SHOPPING CENTERS NO BRASIL 2013

Fonte: ABRASCE - Associação Bras i lei ra de Shopping Centers

(1) Novo critério: A série inclui apenas shoppings já inaugurados;

(2) Os dados referentes a Número de Lojas, Salas de Cinema e Empregos foram calculados com base em uma

amostra de shoppings e não terão atualização mensal;

(3) Alguns dados referentes a 2009 foram revistos com base nos resultados do Censo do Setor, da Price

Waterhouse Coopers;

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

39

metros quadrados. Nesse mesmo período, o tráfego de pessoas nessas unidades

teve um crescimento superior a 100%, passando de 203 para 415 milhões mensais.

O crescimento desses empreendimentos trouxe, a reboque, uma evolução na

estrutura implantada nos espaços públicos que passam a ter maior valorização,

conforme os equipamentos ali instalados, não só as qualidades estéticas, mas

também as infraestruturas de serviços passam a compor as características que

esses espaços devem proporcionar aos seus usuários, o que significou, a partir de

1980, também um processo de valorização dos espaços públicos, dos bairros da

Orla Atlântica.

2.1. O Bairro de Ondina

Figura 1 - Situação atual do Bairro de Ondina

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

40

Na urbanização de Ondina, é relevante o registro da implantação do

loteamento Cidade Balneária de Ondina34, que ocorre em 1932, realizado pela

construtora Magalhães e Cia, numa área de quase 190 mil metros quadrados, na

Avenida Adhemar de Barros, onde foram delimitados 156 lotes, com uma média de

600 m2. Para os lotes foi definida uma taxa de ocupação de 40%. O loteamento que

consta do Decreto 1029/52 da Prefeitura Municipal localiza-se numa área quase em

frente à Praça.

Figura 2 - Reprodução da planta do loteamento cidade balneária de Ondina – Fonte Plandurb

A conformação de um contexto de segregação, na ocupação do solo em

Salvador, representou uma realidade em que a população de baixa renda foi e ainda

vem sendo transferida de áreas, alcançadas pela valorização imobiliária, num ciclo

que, a partir dos anos 50,

viria a se intensificar até comprometer grande parcela do território municipal com novos loteamentos, numa oferta de terrenos para edificação muito

34

PLANDURB, Inventário de Loteamentos, 1976, p. 35.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

41

superior à demanda efetiva de espaço para moradia e outros usos, mesmo considerando o significativo contingente de excluídos desse mercado imobiliário em função das limitações de renda da maioria da população

local.35

Os conflitos entre o poder municipal e os habitantes de lotes não

regularizados, como a ocupação de Ondina, onde hoje se localiza a Praça Luiz

Sande, ocorreu ao ser definida como área de interesse público; deu-se através da

Lei 2181/68 e do processo de alienação de terras públicas para ocupação do

município em função da Reforma Urbana, regulamentada pelo Decreto 3.684/69,

conduzindo a uma sistemática erradicação do que, na época, era descrito como

ocupações irregulares, o que ocasionou uma lei específica. Assim, a “lei 2.222/69,

também viria tratar [...] da erradicação de favelas localizadas em áreas valorizadas e

de interesse turístico”36, tornando-se um instrumento para a desocupação e

transferência das famílias para o bairro da Boca do Rio.

A Reforma Urbana objetivava abolir práticas fundiárias, herdadas do período

pré-republicano, abrindo espaço às novas estruturas e conformações jurídicas e

cartorárias, de forma a recompor as relações de ordem e poder sobre o território,

permitindo a implantação e desenvolvimento de atividades ligadas ao projeto da

nova cidade, além da preocupação com espaços urbanos valorizados, ainda

ocupados e sem perspectiva de apropriação pelo capital imobiliário. Apesar dos

parâmetros de organização legal e de planejamento do uso e ocupação do solo,

nem sempre se adotou o zoneamento sugerido por tais planos.

A reurbanização da margem contígua à praia, na Av. Oceânica, e a instalação

de empreendimentos institucionais e de serviços como o Centro Espanhol, Prefeitura

da Aeronáutica e empreendimentos hoteleiros (Salvador Praia Hotel, Othon, Ondina

Apart Hotel), ocorreu após remoção das habitações ali existentes. Segundo

Vasconcelos (2002, p.360), em conformidade com Scheinowitz, a localização e

vocação turística do lugar, a partir do programa de remanejamento da orla marítima,

especializou o bairro no seguimento da hotelaria.

35

SEDHAM, 2009, p.45 36

SEDHAM, 2009, p.47 e 48

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

42

A desocupação da Invasão37 de Ondina, conforme adotemos a visão do

sociólogo francês Henri Lefebvre que afirma que para apropriar é necessário ter

“modificado para servir as necessidades e possibilidades de um grupo”38, um espaço

natural, foi o ponto inicial para uma transformação dos critérios de utilização da orla

em Ondina.

As fotos 2 e 3, a seguir, mostram respectivamente o local onde foi instalada a

Praça Luís Sande. Através delas, é possível perceber a qualidade construtiva das

habitações demolidas e a demolir, denotando, consequentemente, a existência de

um núcleo urbano consolidado nessa área até 1969. Dos idos de 1969 a 1972, e

assim sucessivamente, a expansão do sistema viário que possibilitasse tanto a

consolidação quanto a necessária mobilidade, especialmente por veículos

37

Apesar de não considerar a ocupação popular em Ondina, uma invasão, para efeitos de referencia aos fatos da

época, seguiremos utilizando esse termo. 38

Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.

Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006)

Foto 1 - Loteamento cidade Balneária de Ondina - 1972 - Fonte Fundação Gregório de Matos

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

43

automotores, tornou-se objetivo principal dos planos urbanísticos para dotar a cidade

de uma rede de circulação que desafogasse o centro antigo e o ligasse a partir das

avenidas de vale, como o Vale do Canela, Av. Garibaldi, Mario Leal Ferreira, dentre

outras, a outros pontos da urbe.

Foto 2 - Ocupação popular em Ondina - retirada em 1969 – Fonte Fundação Gregório de Mattos

Atente-se, a título de referência, que o número de veículos, segundo

Scheinowitz, aumentou exponencialmente. Seus estudos sobre o

macroplanejamento da cidade do Salvador demonstram que “Em 1967, vendem-se

60 carros por semana; em 1968, o numero é de 120 e, em 1969, ultrapassa 200. Em

1970, chega-se a 320 veículos semanalmente. Este incremento tem se mantido,

sendo que nesta cidade, o número de automóveis passou de 375.911, em 2002,

para 785.527, em 2013”39. Razão de se pressupor que o amplo estacionamento,

planejado, lindeiro à avenida, tem, dentre suas funções, atender ao mercado

automobilístico, à liberdade de ir e vir, função do transporte individual e mesmo aos

interesses mercadológicos à época (expansão imobiliária com valorização dos

39

http://www.denatran.gov.br/

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

44

espaços abertos). Veja-se que um posto de abastecimento de gasolina já se

encontrava instalado no local, favorecendo tal interpretação.

Foto 3 - Visão geral da orla de Ondina – 1972 – Fonte Fundação Gregório de Mattos

Nesse caminho, também, a construção civil acompanha pari passu o

movimento expansionista em que novas ruas emergem em vazios urbanos, locais

até então pouco habitados ou em áreas de interesse da cidade, a exemplo da

Ondina, em que sua frente marítima é descortinada numa compreensão de

visibilidade da paisagem natural e de valorização da terra. Assim, vias de acesso à

orla foram implantadas a partir de 1949, em conformidade com o Decreto-Lei nº 701,

de 1948, ocasionando forte transformação da cidade, tendo em vista a busca por

interligação entre os bairros existentes e novos, como também, pela abertura de

espaço às residências e serviços em suas extensões.

Com a abertura da ligação Barra/Rio Vermelho (1912-1922) e a Amaralina/Itapuã (1942-1949) a Orla Atlântica foi aberta para os loteamentos residenciais. Entre 1932-1939 foram implantadas as Cidades Balneárias de Ondina e de Amaralina, assim como o Loteamento Cidade da

Luz (Pituba)40

.

40

Vasconcelos, Pedro, 2011, p. 358.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

45

No que se refere à valorização e uso do solo a partir da facilidade de acesso e

localização, muito presente no planejamento urbano e na especulação imobiliária,

conforme uma releitura pormenorizada e guardada as devidas proporções e

períodos temporais, que distinguem políticas e ações urbanísticas de cada época,

concordamos com Scheinowitz ao afirmar que com a “densificação da malha urbana

e consequente valorização dos terrenos localizados perto das grandes

concentrações demográficas e de fácil acesso, houve uma transformação de uso do

solo que ainda está em curso”.

2.2. Programas de Remanejamento da Orla Marítima

Notadamente, o planejamento da orla já vinha sendo abordado e atenções

sendo direcionadas aos seus potenciais: econômico, social e ecológico. Postos em

prática, entretanto, esses potenciais, como hoje, eram disputados de maneira

incompatível e conforme interesses adversos que se sobrepunham aos da

coletividade. Para Scheinowitz, a fim de resolver as querelas urbanas, a sociedade

moderna estabeleceu uma série de leis no intuito de atenuar as divergências

territoriais. Foi a partir do planejamento urbano que países como Noruega, Grã-

Bretanha, França, dentre outros, buscaram soluções para a organização da orla.

Esse autor, na primeira abordagem verifica que,

A Bahia, por sua vez começa a refletir sobre o problema, em 1973, e produz, em abril, um documento preliminar relativo ao “remanejamento da Orla Marítima – Trecho compreendido entre a Barra e a foz do rio Pojuca”. Nessa primeira abordagem consta-se que “A ocupação desordenada do litoral de Salvador se dirige aceleradamente para o comprometimento definitivo de uma larga faixa de vocação natural para ser equipada como área de lazer da população da cidade, representando por outro lado, uma ameaça, a curto prazo, à preservação do seu potencial turístico-paisagístico. Assim, a falta de um plano diretor para a área, o aparecimento caótico de loteamentos, a poluição das praias, a devastação da fauna e flora provocam, em consequência, o agravamento dos problemas de desenvolvimento urbano e acarretam uma sobrecarga nas finanças do

poder público com obras corretivas ou restaurantes41

.

41

Scheinowitz, A.S., 1998, p. 80.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

46

No caso de Ondina, a requalificação da orla marítima, compreendendo o

trecho Barra/Pituba, já se encontrava bem servido de infraestruturas, estando a

circulação de veículos definida e interligada por avenidas de vale ao novo sistema

viário. Por outro lado, verificado o fortalecimento turístico da época, especialmente a

partir de 1990, observa-se, como afirmado por Silva (2004), que

“as cidades turísticas brasileiras encontram-se, nesse contexto, pressionadas pela necessidade de manter a atratividade e de tentar solucionar ou amenizar os conflitos urbanos comuns à realidade nacional, que têm sua raiz em problemas estruturais históricos, sobretudo na má distribuição de renda. Todos esses conflitos só poderão ser resolvidos por meio de ações e politicas igualmente estruturais e que demanda longo prazo. Na paisagem, porém, eles revelam de maneira evidente e imediata, tornando necessária a busca de soluções contingenciais. De fato, em muitas cidades turísticas as obras de melhoria urbanas têm um caráter embelezador, que objetivam evidenciar aspectos visuais mais desejáveis e atraentes da paisagem e do espaço urbano, condizentes com uma estética do lazer. Os lugares explorados pelo turismo são, em grande parte, vendidos como cenários produzidos sobre uma base paisagística preexistente que, associada a aspectos culturais, históricos e geográficos, constitui matéria-prima para o processo contínuo de produção e consumo

do espaço” 42

.

Se verificada essa premissa, pode-se aventar que as ações públicas de

embelezamento da orla da cidade, como as que ocorreram e ainda ocorrem em

Salvador, buscavam, em sua maioria, atender aos anseios econômicos, vinculados

ao turismo, setor imobiliário e de serviços em que a comercialização e

mercantilização da faixa de terra lindeira à frente marítima representava, como ainda

representa, forte atrativo à expansão e valorização urbana.

No caso especifico do Bairro de Ondina, as ações públicas executadas pela

prefeitura em 1981 podem ser consideradas a primeira intervenção nessa área livre,

servindo como projeto piloto a praia de mesmo nome, dotando aquele espaço de

equipamentos de lazer, esporte, paisagismo e manutenção das áreas de

estacionamento já existentes. Fato registrado em matéria do Jornal Correio da Bahia

de 1981: “A quadra de patinação e hóquei possui dimensões oficiais, como as

outras, e é a primeira do gênero na Bahia construído em área publica”43. (grifo

nosso)

42

Silva, Maria da Gloria Lanci, 2004, p. 21. 43

CORREIO DA BAHIA, 19/03/1981.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

47

Figura 3 - Limites do bairro de Ondina – Fonte Google Earth

Provavelmente, objetivando valorizar a praça com serviços, em 1983, a

Companhia de Renovação Urbana de Salvador – RENURB - disponibilizou, através

de licitação, uma cessão de uso devidamente legalizada com alvará de

funcionamento, para a instalação da infraestrutura necessária ao comércio de

alimentos e bebidas para os banhistas. Assim surge o Speed Lanches, numa

demonstração do interesse municipal em proporcionar maior conforto àquele local

de convivência. O interessante é que, em 1994, o concessionário recebeu proposta

para concessão de alvará definitivo, da prefeitura, através da aquisição do ponto

comercial e da posse do terreno na praça. O que causa estranheza e levanta a

questão da relação entre espaço público e atividade privada, nesses espaços.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

48

Foto 4 - Lanchonete SPEED e Banca de Revistas que atendem na Praça 24 horas – Acervo Pessoal

É possível perceber, já naquele momento, a fragilidade das relações entre o

que era público e o que era privado quando o próprio município oferece parte de

uma área pública de forma definitiva ao possuidor de uma concessão pública.

No interesse de manter seu comércio e visando à manutenção dos seus

direitos futuros sobre a posse, de forma precavida, esse concessionário registrou-a

no Sistema de Cadastramento Imobiliário. Cabe salientar que, em função da

inscrição no referido cadastro e respectivo lançamento para recolhimento do IPTU, a

posse foi regularizada e tem facultado sua permanência ainda hoje no espaço

público da praça de Ondina. Em suas palavras:

- Depois de dez anos me obrigou a comprar (RENURB), se transformou em aluguel, esse arrendamento, me obrigou a comprar o imóvel. - Eu questionei a legalidade da venda, se eu compro o módulo o que me dá garantia, (tenho tudo documentado), o que lhe garante permanecer no local é o seu alvará, concedido pela SEFAZ, (nem tinha SUCOM).

- Meu alvará é definitivo44

.

Conforme o cessionário, a legalização foi o que evitou sua retirada, pois, em

2010, quando da licença concedida para edificação do camarote, ele sequer foi

notificado, sendo surpreendido pela montagem do tapume que isolava tanto o

espaço da praça como seu estabelecimento comercial.

44

Falas do proprietário da lanchonete existente na praça desde 1983.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

49

Foto 5 - Quiosques que comercializam coco e bebidas – Acervo Pessoal

No mesmo período em que ocorreu a disponibilização do módulo comercial,

1983, ergue-se uma lona, na área da arena e parte da praça torna-se picadeiro do

Gran Circo Troca de Segredos, resultado da iniciativa do grupo de teatro amador

Troca de Segredos em Geral e pelas mãos de Paulo Conde e da professora de

dança Maria Tereza. Também fizeram parte da construção desse espaço cultural:

Carlos Monteiro, Margareth Menezes, Chica Carelli, João Elias, Fernando Fulco e

Edmundo Viana. Nutridos pela oportunidade de compor um espaço artístico

alternativo, refletindo experiências como a do Circo Voador no Rio de Janeiro,

espetáculos de teatro, shows de grandes nomes da música popular local e nacional,

e presença marcante do meio musical amador baiano, tornaram-se uma constante.

Essa ocupação pode ser traduzida como mais um uso privado não

relacionado a usos tradicionais nas praias do litoral Atlântico de Salvador (barracas,

ambulantes, etc.). Posteriormente, o uso da arena da praça se transfere ao Circo

Picolino, uma escola de artes circenses que propõe disseminar a arte do picadeiro e

atender menores em situação de risco, até sua desocupação em 1988 quando “O

Circo Troca de Segredo foi ao chão. Junto com a lona, desabou também um dos

espaços culturais mais badalados da cidade e toda uma história de grandes ideias e

programação criativa.”45.

45

TRIBUNA DA BAHIA, 28/08/1988.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

50

Figura 4 - Lona do Circo Troca de Segredos no Bairro de Ondina – Reprodução do Correio da Bahia

Se por um lado há uma efetiva trama econômica fundamentada no turismo e

na exploração da paisagem, parece-nos que essa visão encontra-se desvinculada

aos tipos de “olhar”, ressaltados por Urry. Seriam eles o conceito romântico e o

coletivo. No primeiro, é enfatizada a natureza em que o intocado é valorizado,

enquanto no segundo, nas grandes cidades são privilegiados os locais públicos,

aglomerações de pessoas. Trata-se da valorização a partir da frequência desses

lugares. É dessa forma que Silva (2004, p.36) expõe a produção e o consumo dos

espaços turísticos e que nessa cidade, também, apresenta-se consolidada.

Veja-se que o lugar (Ondina) teve suas funções e paisagem alteradas a partir

do planejamento urbano. Sua fruição foi gradativamente suplantada; público e

privado em conflito pelo espaço, na praça; o descortinamento da natureza e, ao

mesmo tempo, na edificação de hotéis, o encobrimento da paisagem, em parte

desse bairro, a partir de um dos segmentos que fomentou as condições de

desenvolvimento do turismo, da habitação de alto padrão - que no mercado, juntos,

favorecem novas maneiras de uso e vivencia na cidade e trazem o paradoxo da

atividade que destrói sua base de edificação.

Talvez seja possível inferir que, entre as transformações que sucederam a

ocupação de Ondina pelos moradores da Invasão de Ondina; a praça; a ocupação

privada para produção cultural; ocupações que não aconteceram somente a partir

dos moradores da comunidade, relocados para o bairro da Boca do Rio, estes sim,

transformadores do natural, conforme a definição de apropriação criada por

Lefebvre. Seria a ocupação pelo circo a que representa uma forma de

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

51

transformação, que busca adequar a praça para dela se servir em suas

necessidades e possibilidades, o que poderia ser uma forma de apropriação.

Considerando a ocupação inicial, quando ainda havia casarios e habitantes

na borda, é possível cogitar que, em função da proposta de atividades culturais e

econômicas ali exercidas, houve produção de um espaço diferencial. É nesse lugar

de criação e fantasia, na ocupação e construção de relações com a comunidade e

entorno a fim de interagir e de propagar a arte, que se encontra divisada a dialética

do publico e privado, em que,

O lugar é o quadro de uma referencia pragmática ao mundo, do qual lhe vem solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações de espontaneidade e de

criatividade. 46

Milton Santos define o convívio, no urbanizado, a partir do que se condiciona

como nexo econômico e produtivo que deve nortear a vida urbana, mas também

como convulsão criativa das paixões humanas que, ao permitir uma espontânea

manifestação criativa, possibilita o imprevisível. Entretanto, ao mesmo tempo em que

encerra um aspecto de troca criativa, não apenas capitalista, de ocupação e uso dos

lugares, implícita a uma atividade que se constitui de sobrevivência, presume-se,

também, relações de troca entre os indivíduos e o espaço que os envolve - modo

pelo qual assume característica heterotópica47, de abrir um espaço dentro do

espaço, de tempo paralelo ao da ordem da cidade, numa conotação de espaço

paralelo, inusitada.

O circo implicou numa experiência de ocupação, privada, em que os fazeres

de um grupo conseguiu se estabelecer sob os estatutos da legalidade e

normatividade do espaço público operacionalizado pelo município. Entretanto, não

deixa de estar sob seus próprios estatutos uma liberdade de ocupar48, materializada

46

Santos, Milton, 1996, p. 258 47

Essas heterotopias não estão orientadas para o eterno; bem pelo contrário, são de uma absoluta cronicidade, são

temporais. É o que encontramos nas feiras e nos circos, sítios vazios colocados nos limites da cidade que duas

vezes por ano, pululam com barraquinhas, montras, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres serpentes, pessoas

que leem o futuro nas mãos, entre muitos outros. De outros espaços – conferência proferida por Michel Foucault

no Cercie d’Études architecturales, 14 de março de 1967 (publicado igualmente em Architeture, Movement,

Continuité, 5, 1984) 48

Entenda-se que esta liberdade é característica do empreendimento circense, neste caso a atividade é fixa,

definitiva até a queda da lona, mas ele tem a qualidade itinerante, pois sua estrutura, provisória, pode ser

transferida a qualquer momento por não ser edificação fixa.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

52

em sua característica mobilidade; porém sobrevive aos determinismos do capital,

amealhando a prata do povo, no espaço que privatizou. Naquele momento, uso e

consumo dividiram o mesmo suporte. Sob a lona e no picadeiro esses processos

foram instantâneos.

Dois espaços diversos e contíguos: o abstrato e o diferencial emergem na

praça. Segundo Lefebvre, “Tais espaços”, as Praças, dentre outros, “abundam, ainda

que não seja sempre fácil dizer em que e como, por quem e para quem, eles foram

apropriados”49. Seria correto afirmar, então, que a praça construída pelo município,

em parte, é ocupada pela lona do circo, considerando ser a ação do município

dissociada de necessidade e possibilidade, em sentido material, tendo em vista não

haver uso pelo município, havendo só a construção de um valor simbólico. Podemos

considerar que implicou ocupação e uso por um grupo, “‘maneiras de fazer’ que

seriam aquelas [...] práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço

organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural”50

Nesse sentido, a mais relevante característica do circo, para esse trabalho, é

sua ocupação do espaço, tendo em vista que ele se instala em terrenos que podem

ser privados, entretanto, passam momentaneamente a um status de uso coletivo. De

certa forma, o uso condiciona o estatuto do espaço, alterando-o momentaneamente,

mesmo que sob a anuência de seu proprietário.

Nesse espaço, uma nova discussão ocorre em 2012, agora pautada pela

ocupação de camarote na mesma praça. Num processo licitatório, a Prefeitura de

Salvador, através da Superintendência de Controle do Ordenamento e Uso do Solo

– SUCOM-, concedeu à empresa Premium Entretenimento, por cessão de uso,

direito a requalificar a área de 9.837m² do antigo Parque de Ondina. Dentre as

condições dessa Parceria Publico Privada51, a empresa ocuparia a praça por período

de cinco anos, durante o carnaval. A empresa, para retribuir essa cessão de uso,

passa a ser responsável pelo projeto e execução de requalificação, obras,

49

Lefebvre, Henri, (Tradução de Doralice Barros e Sérgio Martins do original: La production de l’espace, 4 ed.

Paris Editions Anthropos, 2001, primeira versão início – fev.2006) 50

Certeau, Michel de, 1998, p. 41. 51

De acordo com Mukai (2006), a regulamentação das parcerias público-privadas pela Lei federal no 11.079, de

30.12.2004, veio contribuir com suas disposições para ampliar as discussões e alimentar o fogo em que são

aquecidos os ingredientes que fazem da mistura interesse público e interesse privado material antagônico de alta

combustão. Se durante séculos foram antagonistas, já há algum tempo vêm vivendo um processo de

aproximação, inevitável, mercê do crescimento das necessidades do Estado.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

53

manutenção e pagamento de uma taxa anual no valor de R$250.000,00 em

contrapartida ao uso da praça e construção de uma estrutura de camarote durante o

carnaval52.

Essa ocupação sazonal privatiza, de modo provisório, a praça em sua

totalidade, não permitindo outros usos, de modo diverso à ocupação do circo que,

apesar de permanente à época, não restringia outras atividades, a exemplo do uso

das quadras, tampouco a circulação. Apesar do diferencial, devemos lembrar que as

escalas, épocas e usos são distintos em dimensão e que aqui não se objetiva

estabelecer maiores críticas a PPP ou traça comparações entre os eventos. O que

se pondera nesse momento é a ocupação da praça, desde o momento da colocação

das estruturas até completa retirada após a festa momesca, que suprime da

coletividade o direito de uso por aproximadamente dois meses. Essa supressão foi a

razão que culminou numa manifestação da sociedade civil denominada Movimento

Desocupa53 marcada por protestos, publicações em periódicos impressos e digitais,

em que a devolução da praça aos cidadãos, porque não dizer à cidade, fez-se

permanente.

Cabe mencionar que a ocupação esteve marcada por inúmeros

descompassos, primeiro com a Superintendência do Patrimônio da União – SPU/BA-

, por ocupar, sem autorização desse órgão, 6.000m² da União, área pública e de uso

comum. Posteriormente, com o Ministério Publico/BA, pelo não cumprimento dos

prazos de reforma e devolução do espaço ao público e pela morosidade na sua

devolução após o fim do carnaval. Finalmente, com a Defensoria Pública da

União/BA onde foi registrada denúncia que originou a ação civil pública nº 0004552-

17.2012.4.01.3300. Essa também gerou denúncias, ações e discussões da

sociedade e entre órgãos em instâncias municipal, estadual e federal.

No pedido, motivado após denúncias de setores da sociedade civil, a DPU/BA solicita, em caráter liminar, a restituição da área pública ao uso comum do povo e a remoção imediata da estrutura construída, sob pena de multa diária de R$ 200 mil reais. “No período da festa, a praça pública (grifo nosso) costumava ser frequentada por trabalhadores, catadores de lata e

52

As informações acima constam do Diário Oficial do Município de Salvador, 16/09/2011. 53

O Movimento surge a partir da ocupação da Praça de Ondina pelo luxuoso Camarote Salvador, com o aval do

poder público ante pagamento de R$250 mil por ano (uma esmola diante do faturamento de cerca de R$66

milhões previstos) e uma reforma na Praça. Pouco tempo depois de ter finalizado a reforma, a empresa fechou a

Praça com tapumes para a “obra do Camarote Salvador”, quase três meses antes do carnaval.

Fonte: http://movimentodesocupa.wordpress.com/historico/

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

54

todos os demais cidadãos. A área utilizada deveria estar disponível à população de baixa renda, que disputa espaços no Carnaval da Bahia”, concluiu o defensor

54.

Nesse ínterim, a empresa concessionária da Prefeitura, conseguiu articular

ação judicial que produziu efeitos de proibições e sanções a indivíduos e

organizações da sociedade civil que exerciam seus direitos de manifestar e de ir e

vir, com a obstrução de qualquer ato público na região de Ondina, na Av. Oceânica,

em frente ao camarote. A partir de então, as ações perpetradas pela sociedade civil

organizada e por órgãos de defesa do patrimônio público foram caracterizadas como

atos contra o Carnaval de Salvador.

A presença da lona e do camarote nessa praça são condições conflitivas que,

mesmo em função da escala para maior ou menor, expõem conceitos e

pensamentos que aplicamos, por vezes orientados por um senso comum, do que

possa ser espaço, uso, público, privado, coletivo, por vezes equivocados.

Inúmeros autores discutem sobre tais conceitos. No concernente ao estatuto

do público e do privado, esses são, na maioria das vezes, vistos sob uma ótica

confusa de sobreposição o que faculta manifestações de ambos num mesmo lugar.

Essa hibridização causa certa dificuldade na leitura, principalmente do que possa ser

público. Talvez, uma condição proporcionada pela natureza do que possa ser

coletivo e pela associação ao conceito de uso livre, que por ser público é tido com

pertencente a todos, logo de uso comum. Todavia, a generalização conceitual não é

saudável, pois, a partir de uma visão equivocada, constroem-se falácias que

resultam em privatização, mesmo que temporária, do espaço55 público, como o do

camarote e de outros que deveriam estar acessíveis à coletividade e não restritos a

grupos determinados que passam a arbitrar o uso e a mobilidade nessas partes da

cidade.

As alterações, no decorrer do tempo, são marcadas por uma maior presença

do município determinando e concebendo novos usos na urbe, agora não em função

de elementos simbólicos, como o veículo automotor, mas segundo necessidades

estratégicas de definir uma imagem para a praça que pode ser explorada, ligada aos

equipamentos esportivos, por exemplo, ou de lazer e serviços e mesmo estéticos e

54 DPU/BAHIA. 55

Em Geografia conceitos e temas, Correa utiliza também a definição de Lefebvre em que o espaço é o lócus de

reprodução das relações sociais e de produção.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

55

artísticos (esculturas, fontes) em decorrência de interesses adversos, imobiliários,

turísticos, como é possível perceber a partir de matérias de jornal, em propaganda

acerca das ações do município, pois “O predomínio do Global, do lógico e do

estratégico, ainda faz parte do “mundo invertido” que é preciso reinverter”56.

No caso do Circo Troca de Segredos, montada a lona, há uma nova forma de

uso daquele espaço que não se articula com os predeterminados pelo Estado. É um

espaço vivenciado por um grupo norteado por uma vivência artística e pela

percepção de vazios que podiam ser preenchidos no espaço institucional. É possível

pressupor um espaço de confluência, que tem uma lógica da semelhança, nele os

elementos socialmente compartilhados produzirão reconhecimento entre grupos

distintos, através de manifestações culturais. Há um distanciamento entre a cena da

produção cultural - numa iniciativa pioneira e alternativa, restrita a parte da praça

numa convivência com outras ocupações, bem diferente na forma de uso, em função

da escala - e aquilo que constitui ocupação do camarote, que não permite presença,

co-presença ou confluência de grupos diferenciados.

A apropriação do espaço da praça que já passa a contar com fluxos externos

e com grande visibilidade mercadológica é uma articulação política entre público e

privado no intuito de atingir a expectativa almejada57 por um público externo, já aí

pontuando a presença de necessidades e possibilidades materiais que servirão a

esses agentes, mas caracterizando um valor de troca. Segundo níveis do fenômeno

urbano, seria um habitat edificado e produzido segundo políticas públicas de uso

restrito, que corresponde a um planejamento estratégico (ideológico e hegemônico)

voltado a conformar espaços que representem valorização imobiliária e introduzam

padrões, por vezes, externos à nossa realidade.

Esses processos são condizentes ao desenvolvimento de um valor agregado

que uniformiza o produto cidade. O camarote traz ao carnaval o lócus do consumo,

com sua estrutura climatizada e controlada, concebida para reproduzir o espaço dos

shoppings. Ele é o shopping no carnaval, considerando a semelhança de espaço

privado de uso coletivo e a ligação ao consumo de serviços, num mix semelhante ao

56

Lefebvre, Henri, 1999, p. 83 e 84. 57

O carnaval constitui evento de grande monta que abarca em seu conjunto investimentos e resultados

expressivos ao turismo, geração de emprego e renda e da imagem da cidade destacando a cidade no cenário

mundial nessa categoria.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

56

que se faz em shoppings centers, na expectativa de prever e atender o desejo e as

necessidades de um determinado público consumidor.

Esses aspectos, visíveis na concepção de um produto que não reúne

somente características da festa carnaval, promovem outros gêneros musicais e

agregam uma série de ações mercadológicas que permitem ampliar a permanência

e a frequência do seu target58 que, invariavelmente, irá consumir o produto camarote,

segundo um critério de segregação que limita os que podem estar ali. Observe-se,

inclusive, que o camarote é implantado na praça, sem maiores preocupações com

outros usuários, mobilidade, direitos ou dinâmicas. Talvez, o simples fato de

integração física com o Ondina Apart Hotel, quase uma extensão, de certo modo,

deixe-o alheio à visão da coletividade por estar camuflado por essa estrutura, ao

ponto de não causar o incomodo que poderia ou deveria causar quando da

privatização de um espaço público tão extenso.

A utilização do espaço público é uma das prerrogativas da cidadania. “O

conceito de cidadania guarda uma concretude que possui, na sua origem, íntima

relação com a cidade, na condição de realidade histórica”59. Entretanto, ao

considerá-la “como uma prática historicamente construída, delimitada por um poder

de Estado que busca estabelecer os contornos de suas possibilidades de

realização”60, deve-se perceber o risco de que tais contornos assumam uma forma

sutil e dissimulada de opressão, que suprime direitos para garantir direitos, como os

que ocorrem na Praça Luiz Sande, que assume, sob o emblema da representação, a

condição de determinar necessidades e possibilidades ao cidadão, suprimindo a

capacidade de apropriar-se de si (corpo) e da cidade (espaço), inclusive

distanciando-os.

Desse modo, as dimensões globais do fenômeno urbano vêm a ser caminhos

que convergem para o mesmo ponto, formas diversas que o aparato simbólico

assume para embotar o senso e contaminar o imaginário, estabelecendo, através de

instrumentos e ações do município e das instituições, dentre elas a Mídia, “verdades

e realidades” que podem não passar de mitos, furtando o exercício da cidadania ao

promover uma ideia preconceituosa sobre a urbanidade ou sobre certas partes dela,

58

Expressão da propaganda que designa grupos de consumidores 59

Oliveira, Márcio Pinon, 2011, p.178 (In: A Produção do Espaço Urbano) 60

Oliveira, Márcio Pinon, 2011, p.178 (In: A Produção do Espaço Urbano.)

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

57

ou ainda, ao propagar os “monstros” dessa mitologia urbana presentes na violência

e na segregação socioespacial que distancia os habitantes.

Observemos que, de forma específica, espaços públicos podem ser alvo de

mitos, como os descritos anteriormente, que asseguram ao Estado o dever e o

direito de alterar os estatutos desses espaços de forma arbitrária. O Parque de

Ondina nos serve como exemplo dessa situação, um equipamento carente de

manutenção que, por seu abandono, passou a sofrer frequências indesejáveis de

uma forma mais intensa. A falta de manutenção (iluminação) e segurança restringia

a presença de usuários, principalmente ao cair da noite. O que bem caracterizou o

responsável pela SUCOM, em janeiro 2012, quando qualificou a praça como “[...]

área usada inclusive para o tráfico de drogas”61.

Veja-se que o Estado, ao não intervir diretamente nessa manutenção, justifica

o direito de facultar o uso privado naquele espaço, de forma provisória, através de

sua parceria público privada que restringe a alguns cidadãos esse direito. Estaria

assim a resgatar um espaço apropriado por uma atividade marginal que não pode

conviver com a cidadania. Essas situações levam a ponderar que os conflitos de

usos, especialmente em áreas privilegiadas, podem estar relacionados com a

sobreposição dos mesmos por atividades econômicas variadas em pontos que se

contrapõem e conflitam com interesses que se processam de forma desarticulada

nesse espaço: urbanização, especulação imobiliária, lazer, turismo e usos.

A conciliação entre resgate do espaço público e desenvolvimento de uma

atividade privada nos demonstra que o objetivo principal desse processo não é o

bem comum e sim a iniciativa individual característica do negócio capitalista. Não

passa tempo que nos traga relações mais equilibradas entre o capital e a terra, em

última instância, essa sempre irá compor como suporte à empresa, daqueles que

melhor manipulam os favores da política e os subterfúgios do poder.

61

http://bahiatododia.com.br/index.php?artigo=10751

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

58

2.3. A praça, entre a ordem e a (des)ordem.

A ordem seria a diminuição da possibilidade de aleatoriedade dos fatos e

comportamentos dentro do contexto do urbano, ao menos no que se refere ao nosso

texto, no sentido do que está posto, do concebido, daquilo que é recebido pronto,

arestado, sendo a desordem um contrário possível ou presumível, diante da

suposição de que lhe cabe a existência desse contrário. A desordem seria também

entendida, como uma contraposição à ordem, suas possíveis limitações e

castrações.

“A visão de ordem nos conduz, explica BAUMAN, a de pureza, a de estarem as coisas nos lugares “justos” e “convenientes”. É uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. [...] Explica BAUMAN que ‘ordem’ significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita – de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis,

alguns virtualmente impossíveis62

.

Utilizamos como referência o conceito que o autor constrói a partir da visão de

Bauman, ele inclusive se colocando contra essa lógica e entendendo-a como solo

fértil à produção de estados de exceção e à construção de regimes totalitários. E a

reflexão nos indica a necessidade de um diapasão para as relações no espaço

urbano, que se faz bem mais complexo que o simples certo ou errado, de uma

ordem que pode degenerar em injustiça.

A construção da ordem coloca os limites à incorporação e à admissão. Ela exige a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser assimilado – a deslegitimação do outro. Na medida em que a ânsia de por termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é intolerância – mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou

generoso e o deixarei viver) 63

.

A ideia de ordem e desordem, estabelecida na cidade burguesa do século

XIX, é, por Pechmam, descrita como surgida com as propostas de reordenação do

espaço público com o estabelecimento de normas direcionadas a solução dos

62

Jr Lopes, Aury – in: http://atualidadesdodireito.com.br/aurylopesjr/ 2014/01/20/sobre-os-rolezinhos-os-concentos-

de-ordem-desordem-e-pureza/ 63

Bauman, Zigmunt, 1999, p. 16.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

59

problemas da urbe. Era preciso promover a funcionalidade, principalmente da rua,

que se transformava em espaço de circulação da produção, como da salubridade da

cidade.

A presença das multidões nas ruas das grandes cidades, a provocação à ordem e a ameaça latente de revolta se constituem num grande desafio à redefinição de uma ordem pública. E a ordem pública passa a ser percebida

a partir da necessidade de reordenação do espaço público64

. (grifo nosso).

Transformada a ordem social e reestruturada a forma da cidade, criou-se um

modelo que satisfizesse às necessidades da sociedade burguesa. “Pensava-se

tratar de poções, remédios, panaceias para cidade doente, mas ao final do processo

admite-se que era uma questão de lei, de estrutura, de princípio”65 que juntas

objetivavam o ordenamento dos usos, permitindo o controle, pois as atividades da

população não se harmonizavam aos interesses da burguesia.

As propostas de ordenamento urbano desenvolvidas a partir de meados do séc. XIX prepararam o campo conceitual para as transformações espaciais que se estabeleceram na cidade do séc. XX. Exemplos como a intervenção monumental na cidade de Paris, empreendida pelo então prefeito George-Eugène Haussmann (1853-70); o projeto de expansão da cidade de Barcelona, idealizado pelo engenheiro Ildefonso Cerda (1859) e as utopias socialistas, com suas propostas de configurações urbanas, consolidaram princípios urbanísticos arraigados à crença de transformação social e

construção de um novo mundo66

.

Esses ordenamentos e o estabelecimento de boas práticas, com a remoção

dos comerciantes informais, com criação e manutenção das vias de circulação livres,

dentre outras, promoveram a segregação desses grupos populares, que “se nutriam

da “desordem” calcada na ocupação indiscriminada do espaço público”67. Por outro

lado, “a colaboração mais direta do urbanismo moderno, à cidade tradicional, não

está contida dentro dos limites dos espaços livres públicos e sim dentro do lote e da

quadra urbana, onde o edifício isolado dos demais é considerado como um

padrão”68. Pois,

Limpando a rua da presença popular e elevando a vida privada a uma conquista da humanidade, o urbanismo quer ter, com suas práticas de intervenções e suas representações legitimadoras da ordem urbana organizado cientificamente a cidade, colocando cada coisa em seu lugar e

64

Pechman, Robert Moses, 1993, p. 31. 65

Gille, Didier (apud Pechman, Robert Moses, 1993, p. 32.) 66

Caldeira, Júnia Marques, 2007, p. 197. 67

Pechman, Robert Moses, 1993, p. 32. 68

Macedo, Sílvio Soares, 1995, p. 39.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

60

em cada lugar uma coisa, evitando os aglomerados por um lado e os

perigos do vazio por outro69

.

Esses espaços vazios aqui apresentados, também, enquanto espaços livres,

utilizados como instrumentos de organização e de controle no reordenamento do

edificado, guardaram características que lhes eram inerentes e ainda o são em

cidades por todo o mundo. Ao final, a rua acabará por não permanecer destituída

dessa presença, mas as práticas e usos se alteram e estabelecem meios de

relações estéreis, pois deixam de ser utilizados para a fruição e interação, para uma

relação decorrente do trânsito de pessoas e da produção, proporcionado pelo

pensamento positivista que, também, (re)ordena valores e princípios.

Espaços Livres – muitas são as acepções que podem ser dadas a este conjunto de palavras, que são utilizadas indistintamente pelos mais diversos grupos sociais para se referir ora a ruas, ora a jardins ou até mesmo e exclusivamente às áreas de lazer. Podemos, de um modo preciso, definir espaços livres como aqueles não contidos entre as paredes e tetos dos

edifícios construídos pela sociedade para sua moradia e trabalho70

.

Assim, a praça se torna “um espaço livre público cuja principal função é o

lazer”71. Ela possibilita as dinâmicas do uso e acata a possibilidade do diverso, do

diferente, sem, contudo, promover a quebra de continuidade. Jane Jacobs72

descreveu essa descontinuidade nos parques urbanos de Nova York, onde, ao se

ordenar os usos, afastaram-se os usuários das ruas e comportamentos habituais,

que ficaram restritos aos parques.

A análise do New York Times de setembro de 1959 revela que todos os crimes cometidos por bandos de adolescentes em Nova York, durante a última década, foram realizados dentro de parques. Mais: observa-se, cada vez mais frequentemente, não só em Nova York, mas em outras cidades, que as crianças que participaram desses delitos moravam nesses grandes conjuntos, precisamente onde seus jogos cotidianos foram banidos da rua,

ou até mesmo, a própria rua foi suprimida73

.

Jacobs discutiu muitos aspectos míticos do que sejam espaços públicos, ao

analisar os parques urbanos: sua relação com as comunidades; a natureza de seus

projetos; seus usos. E afirma,

69

Pechman, Robert Moses, 1993, p.33 70

Macedo, Sílvio Soares, 1995, p. 19. 71

Loboda, Carlos R.; De Angelis, Bruno Luiz D, 2005, p.133. 72

Jacobs, Jane, 1961 (apud. Choay, Françoise, 2003, p. 297.) 73

Choay, Françoise, 2003, p. 297.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

61

os parques urbanos não conseguem de maneira alguma substituir a diversidade urbana plena. Os que têm sucesso nunca funcionam como barreira ou obstáculo ao funcionamento complexo da cidade que os rodeia. Ao contrário, ajudam a alinhavar as atividades vizinhas diversificadas, proporcionando-lhes um local de confluência agradável; ao mesmo tempo, somam-se à diversidade como um elemento novo e valorizado e prestam um serviço ao entorno, como a Rittenhouse Square e qualquer outro bom

parque74

.

O Estado tem uma visão prática quanto aos espaços públicos, relacionados

com o nível global que, segundo Lefebvre, constitui representação e vontade

daqueles que se utilizam do poder para impor uma ideologia espacial hegemônica,

provavelmente uma visão subjetiva que se agrega ao pensamento comum. Na

concepção do uso e estruturação desses ambientes, eles podem sofrer influência

desse ordenamento em sua forma, orientação vocacional, localização, etc., mas no

caso da praça, ainda lhe cabe certa flexibilidade conforme a possibilidade de

múltiplos usos e relações identitárias, como as existentes no âmbito do habitar

enquanto forma criativa como destacado por Lefebvre.

Delgado, ainda em relação aos usos, ressalva que a apropriação dos espaços

públicos provém das necessidades e desejos, razão pela qual enfatiza “que el

espacio público es escenario de situaciones altamente ritualizadas pero

impredecibles, protocolos espontâneos”75, e que, na praça, essas necessidades e

desejos ocorrem a partir de apropriação e representação, quando alguém lê seu

jornal, crianças ou adolescentes brincam, pessoas se exercitam, dentre outros usos,

em que a interação ocorre em função de um fio condutor que os relaciona com o

espaço.

Nesse processo, é possível pensar essa relação em escalas diversas. No

caso presente, analisaremos a ocupação de um espaço em relação a sua escala

local e global de influência política, o que não impede que apropriações em seus

níveis variados possam interligar as escalas, que podem apresentar dimensões mais

generosas, ao atingir pequenas porções da urbe. Pensando a praça em seus

múltiplos usos e níveis, global, misto, privado, e interligando as dimensões variadas

no espaço, por sua característica de fomento ao convívio, podemos considerar,

74

Jacobs, Jane, 2001, p. 110. 75

Delgado, Manuel, 1999, p. 119.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

62

ainda, ser essa, essencialmente, um espaço que guarda certa ancestralidade de

espaço público, contemporânea ao urbanismo.

Essa ancestralidade relacionada ao traço urbano propicia um ambiente de

reunião, de encontro com o outro, uma identidade estabelecida, de forma distinta

que vem “substituindo antigos terrenos baldios e várzeas, antes livremente utilizados

por para o [plantio e mesmo] lazer, e, que pouco a pouco, cedem lugar à

urbanização em expansão”76. Essa identidade está ligada a um contexto local, a

tradições, aos costumes e, como no passado, a uma vivência do espaço, que,

conforme evolui a ocupação dos espaços residuais nas cidades, altera-se.

Essa temática explorada por Serpa (2001), da produção do espaço periférico

metropolitano, traz questões acerca da apropriação social do espaço, da importância

do bairro77 como unidade morfológica da cidade, demonstrando, inclusive, que esse

“se presta como ‘recorte espacial’ adequado para a análise do sistema de espaços

livres de edificação de uso coletivo e as diferentes formas de apropriação social

dessas áreas”78. Uma determinante da vivência da praça, presente nos bairros

periféricos de Salvador, é o transpor da porta para a rua, em que o espaço livre de

uso coletivo não é necessariamente definido por estatutos, mas por vivências, o que

lhe facilita a mistura e variedade de usos.

No caso do bairro de Ondina, o relato de um comerciante sugere que essas

apropriações podem ter dimensões em outro contexto, não apenas de fruição, mas

também de controle, tais como a da segurança e acessibilidade aos equipamentos79.

Segundo ele, um grupo de moradores propôs, ao município, assumir a manutenção

da praça, contratar vigilância privada, cuidar dos sanitários, hoje ocupados por

moradores de rua, tornando-os indisponíveis. Entretanto, a burocracia do Estado

coíbe qualquer intervenção particular, proveniente dos anseios da comunidade local,

mesmo diante do abandono institucional que propicia o vandalismo e amplia a

delinquência no lugar.

76

Macedo, Sílvio Soares, 2001, p.159. 77

Bairro é a porção do território que reúne pessoas que usam o mesmo equipamento, que mantém, relações de

vizinhança e que reconhecem seus limites pelo mesmo nome. 78

Serpa, Angelo, 2001, p. 28. 79

Esse se deve à impossibilidade de uso dos banheiros públicos edificados na parte posterior da praça que,

segundo relatos, permanece a maior parte do tempo sob o controle de moradores de rua.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

63

Nesse mesmo caminho, matéria recente80 versa sobre o esvaziamento dos

bairros de classe média da orla atlântica de Salvador com o cair da noite, e segue:

“Cultura? Medo da violência? Falta de transporte, opções de lazer e serviços? Fato é

que, depois que o sol se vai, a Salvador que poderia vibrar nos espaços públicos se

torna uma cidade fantasma”, condição que, segundo reportagem, dada a

insegurança e criminalidade que propicia, conforme Souza, e “medo generalizado”

que se apresenta em diversas cidades, afasta as pessoas das ruas e as aproxima

de lugares fechados como shoppings e condomínios fechados.

Agora, se pensarmos no nível global é possível ainda compreender, como

sugerido por Lefebvre, o que é a norma urbana, constituída por planos diretores,

códigos de obras, etc., que definem o uso do solo inscrevendo certos espaços em

planos, limitando as opções de ocupação e apropriação, a partir de zoneamentos e

restrições. Entretanto, esses mesmos instrumentos, quando isolados, não

conseguem garantir a efetiva utilização dos espaços públicos, necessitando, para

isso, de um aparato de gestão e manutenção que gradativamente substitua a

morosidade do Estado, por práticas, muitas vezes consolidadas pelo mercado, pois,

“A não formalização de um sistema completo de espaços livres para lazer, adequados, dimensionados, acessíveis e seguros se observa como resposta à internalização do lazer em praças, parques e clubes privados, que sob a forma de condomínios, de quadras e lotes fechados cumprem as

funções antes destinadas prioritariamente aos espaços públicos”81

(grifo nosso)

A tentativa de assumir a gestão da praça, apresentada anteriormente, faz-se

presente, não apenas pelo uso, mas principalmente pela proximidade do

equipamento que em seu abandono, conforme habitantes/proprietários, em face da

insegurança, que desvaloriza o lugar. Devido a esse quadro de insegurança, novos

empreendimentos imobiliários, a partir de uma estrutura de mercado, intensificaram

a importância das áreas comuns como solução à ausência de espaços públicos e

não tão somente como forma de agregar valor comercial. Essa cultura tem atingido,

em Salvador, especialmente os bairros considerados nobres, onde prédios ou

grupos de prédios são protegidos por muros e gradis, estando suas próprias vias e

praças estabelecidas, já a partir do projeto. Em conjuntos habitacionais populares,

80

Correio da Bahia 27/10/2013. 81

Macedo, Sílvio Soares, 1995, p.49.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

64

essas práticas consistem numa mimetização dos conceitos do condomínio fechado,

em alguns casos, incorporando áreas públicas e trechos de ruas, em substituição a

espaços públicos que não favorecem uma fruição ou à inexistência deles.

Se considerarmos que no Brasil a praça teve como característica o fato de

que,

“[...] abre um território especial, uma região teoricamente do “povo”. Uma espécie de sala de visitas coletiva, onde se situam em nichos especiais o poder de Deus, cristalizado na Igreja matriz ou Igreja central, frequentemente a primeira a ser fundada naquele local que deu origem à

cidade, e o poder do Estado, manifesto no palácio do governo82

.

Ela se apresenta, então, enquanto representação expressiva do espaço, o

que por certo período marcou a própria estrutura urbana colonial. Ela era o local ao

qual todos tinham acesso ao urbano mais possível de ser socializado, local de

contemplação, onde, a partir dos costumes e representações do lugar e do

sentimento de pertencimento, pode-se até mesmo se entrecruzar o enxergar na

expressão do outro. Contudo, as praças, que por muito tempo constituíram ponto

dos acontecimentos na cidade, da convergência espacial, passaram a lugar de

passagem, de fluxos que se tocam e cambiam informações de modo sutil.

Elas, as praças, em certos casos, são apreendidas como elementos de

valorização fundiária, complemento estético do planejamento estratégico83 da cidade,

no contexto urbano. Considere-se ainda que em parte do país existem poucos

“programas reais de implementação de sistemas de espaços livres de edificação

destinados seja ao lazer, à conservação de mananciais ou encostas, sendo que, em

parte dos casos, nem estão contidos em planos urbanísticos”84. Notadamente, essa

escassez se faz na efetivação tendo em vista a existência de legislação específica

que, posta em prática, poderia reverter tal quadro.

Contemporaneamente, alguns episódios mostraram populações em

movimentos reivindicatórios reunidas em suas praças, tal qual centros nervosos de

uma ordem a ser estabelecida. Em Salvador, como em tantas outras cidades, as

82

DaMatta, Roberto, 1991, p. 49 e 50. 83

Concentración en temas críticos – La planificación estratégica supone una concentración de esfuerzos e las

atividades y los problemas clave de la ciudad, donde las actuaciones tienem más potencial de alcazar objetivos.

Así, um plan estratégico oferece la opoertunidad de observar más allá de las preocupaciones cotidianas, y

distingue entre las decisiones verdadeiramente importantes y las que presentan impacto meramente coynuntural.

(Guell, José Miguel Fernández, 2006, p. 57.) 84 Macedo, Sílvio Soares, 1995, p. 48.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

65

reivindicações aconteceram em contraposição aos desígnios do Estado, numa clara

reivindicação da manutenção de direitos.

No concernente à Praça Luiz Sande, as manifestações ocorreram em

protesto contra sua apropriação no carnaval, que, apesar de propiciar benefícios

decorrentes de uma espécie de Parceria Publico Privada – PPP, suprime totalmente,

por período aproximado de três meses85, o uso de um espaço coletivo.

Em contraposição a essa ordem pública, pode ocorrer a (des)ordem.

Enquanto uma pode implicar no êxodo, face ao ordenamento incipiente dos

espaços, a outra pode representar uma viabilidade espontânea o que significa dizer,

no caso do uso coletivo, abordagens diferenciadas da mesma realidade, pois essa

pode vincular-se ao olhar criativo, à possibilidades e necessidades de um uso

individual e, principalmente, coletivo.

Aproveitando a visão de Pechmam, a desordem consiste num uso livre,

descrito por ele como “usos e abusos” no cotidiano da população europeia no

período de consolidação da burguesia. É possível, ainda, considerar, as relações

entre o habitar enquanto prática milenar, “mal expressa, insuficientemente elevada à

linguagem e ao conceito, mais ou menos viva ou degradada, mas que permaneceria

concreta, ou seja, ao mesmo tempo funcional, multifuncional, transfuncional”, como

apresentado por Lefebvre.

Se observada a palavra desordem, em seu sentido etimológico, verifica-se,

ainda, que essa se forma pelo antepositivo (des-), com ideia de oposição, mais

(ordo), “arranjo de elementos feito conforme certos critérios”, “exigência de

disposição regrada de elementos, comando”, relacionado ao verbo ordiri, “ordenar,

mandar”. Atentemos, entretanto, que sua aplicação nesta dissertação nada tem a ver

com uma teoria do caos, ou mesmo com algum processo de desestabilização, tendo

em vista que o indivíduo ou mesmo a coletividade não pretende desestabilizar o

Estado, mas agir em prol de uma ordem pessoal, emergente, de uma necessidade

que precisa ser posta em prática e podendo, inclusive, estender-se à coletividade.

A (des)ordem possibilita o apropriar-se com a ocupação dos interstícios do

espaço urbano, dominado pela formalidade urbanística e arquitetônica, que busca

85

É o período que o Camarote Salvador ocupa desde sua montagem até a desmontagem que o movimento

Desocupa questiona, justamente pela usurpação do direito de uso coletivo, sem omissões ou constrangimento

durante esse tempo.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

66

impor-se ao corpo e controlá-lo, “são as formas arquitetônicas que, com seus

projetos espaciais, são responsáveis pela observação e espionagem; uma

arquitetura vigilante que tem objetivos disciplinares e que institucionaliza a

tecnologia do poder”86.

Tudo que está no espaço urbano se encontra regido pela ordem e a

sociedade busca a própria ordem, uma contra-ordem, uma desordem, uma liberdade

de uso como apresentado por Pechmam. Desse modo, é possível considerar que a

evolução do espaço da Praça Luís Sande, entre 1978 e 2010, possa demonstrar

essa transformação, certa (des)ordem em espaço de ordem pública, em que a

ocupação proceda pelo ordenamento institucional, sob efeito de leis e normas,

seguindo uma leitura preestabelecida, que através de um processo abstrato,

apropria e, em seu nome, predetermina os usos do espaço por sabê-lo necessário

ao indivíduo e entender que, ao exercer um controle sobre um, poderá controlar o

outro.

A praça, em 1978, é uma porção de terreno com características distintas da

atualidade. Não há grandes construções à beira-mar, deixando plena visibilidade da

paisagem da costa, hoje, sensivelmente prejudicada por construções com gabaritos

elevados ao longo de toda faixa litorânea. Entretanto, apesar dessa situação, esse

lugar aprazível, ainda em nossos dias, tem a praia frequentada, intensamente,

estando todo o espaço de praia disponível ao uso coletivo.

Ao que parece, no uso daquele espaço, a inexistência de equipamentos

públicos, somente implantados em 1981, talvez não dificultasse os usos, até os

favorecesse.

Excepcionalmente, nos bairros da Ondina ao Rio Vermelho, a ocupação por

empreendimentos hoteleiros, principalmente, tomam áreas próximas a faixa de areia

o que comprometeu a estética natural, consequência de uma legislação diferenciada

que beneficiou esses empreendimentos.

Até 2010, percebe-se que a configuração implantada em 1981, quadras de

esportes, rinque de patinação, a arena, são mantidas. Esses elementos

permaneceram até o final da primeira década desse século, quando ocorre

requalificação, nos moldes das que ocorreram na Praça Nossa Senhora da Luz na

86

Córtes, José Miguel G., 2008, p. 42.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

67

Pituba e nas Praças do Comércio. Nessa época não estão presentes as barracas de

praia, suprimidas pelo reordenamento da orla atlântica, definido por sentença

judicial.

Figura 5 - Praça Luiz Sande entre 1981 e 2010 – Fonte Google Earth

Conforme Scheinowitz:

No que concerne aos equipamentos, a situação, em 1973 pode ser resumida de maneira seguinte. Inexistência de equipamentos de praia. Presença de esgotos pluviais com ligações sanitárias clandestinas nas praias. Carência de serviços e sanitários públicos. Pequena extensão das áreas de belvedere e passeios a beira mar. Inexistência de áreas verdes equipadas, inadequação e insuficiência de equipamentos comerciais

servindo as praias87

.

87

Scheinowitz, A.S., 1998, p.87

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

68

Foto 5 - Praia de Ondina – 1978 – Autor Desconhecido

Figura 6 - Praia de Ondina - 2012 - Fonte Google Earth

A Figura 7, mapa de uso e ocupação do solo de Ondina, produzida por

Scheinowitz, anterior às edificações hoteleiras atuais, demonstra onde as diversas

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

69

zonas, áreas verdes e fluxo de circulação de pedestres deveriam ser implantados à

época. Nele, o complexo hoteleiro está na Avenida Adhemar de Barros (amarelo),

zona residencial em letra set (azul), zona de comércio em letra set (marrom) na via

principal da Avenida Presidente Vargas, zona de equipamento de praia na porção

posterior a pista em frente à praia em letra set (azul claro), provável localização do

Instituto Social da Bahia – ISBA-, zona universitária em letra set (cinza) e área de

circulação para pedestre (marrom escuro).

Nesse mapa, destinado a orientar o Plano Diretor da Orla Marítima, através do

Decreto 23.662, de 3 de setembro de 1973, fica patente que nada do proposto foi

efetivado, sendo as áreas (re)zoneadas de maneira aleatória, indo, inclusive na

contramão dos planos efetivados em outros países como citado anteriormente.

Figura 7 - Uso do solo em Ondina 1973. Scheinowitz, 1998, p. 97

Assim,

“Examinando os pontos críticos do trecho Barra Pituba, o plano constata que, do ponto de vista da regulamentação, a fixação imprecisa e insuficiente dos gabaritos das construções, impedindo a consolidação da imagem

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

70

turística urbana, e sublinha que é crescente o processo de apropriação do litoral pra uso privado (clubes, hotéis e outros), em alguns casos desvirtuando o sentido da função recreacional e turística do sítio”

88

Considerando o referido estudo e verificada a aplicação do mesmo a partir da

Figura 7, pode ser inferido que a inabilidade gestora da coisa pública, interesses

mercadológicos ou ambas conduziram à opção pela mudança dos sítios para

instalação dos equipamentos e zoneamento, numa reorientação espacial que

comprometeu a paisagem pelo acortinamento de trecho da frente marítima deste

bairro, desde a Prefeitura da Aeronáutica até o Ondina Apart Hotel. Atualmente, com

a instalação do Camarote no carnaval, temos ampliada a obstrução da paisagem e a

supressão da praça, dos usos coletivos, em sua plenitude, para um uso particular

que atende aos interesses, anseios e possibilidades de alguns.

Vale salientar que as possibilidades aventadas na proposta de zoneamento

do plano de 1973 conceberam uma distribuição das necessidades de ocupação

comercial e de serviços que as mantinha afastadas da faixa litorânea, cedendo

destaque para o trato da paisagem, preservando-a como área não edificada, da qual

se havia retirado uma comunidade consolidada, (Invasão de Ondina), considerada

uma ocupação irregular. Hoje o adensamento, principalmente por empreendimentos

hoteleiros, implicou no comprometimento visual, de contemplação da paisagem

natural, restrita aos hospedes da hotelaria. Talvez este comprometimento atinja,

mesmo, a própria fruição dos habitantes desta cidade.

2.4. Políticas Públicas de desenvolvimento

Gestão e organização das cidades demandam produção, aplicação e aferição

de um conjunto de leis, normas e programas urbanísticos a se cumprir pelo esforço

de articulação capaz de produzir elementos conceituais (planos e programas),

operacionais (procedimentos e praticas), funcionais (determinação de

responsabilidades de recursos materiais e financeiros) e desburocratizados (a partir

de uma estrutura célere de atendimento).

Na gestão publica, Salvador, tem se notabilizado, principalmente, por práticas

e investimentos que visam atender espaços públicos em áreas de interesse turístico

88 Scheinowitz, A.S., 1998, p.87.

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

71

ou com vocação para expansão imobiliária. Conforme Santos (2007), “a orla de

Salvador é considerada no PL apenas como área destinada às atividades voltadas

ao turismo, priorizando a hotelaria, além de promover a especulação imobiliária”89.

Este posicionamento é reforçado por Scheinowitz ao comentar sobre o plano

urbanístico da orla de 1973, que em sua visão, dada a imprecisão e insuficiência dos

gabaritos, impede a consolidação de imagem turística urbana.

Essa prática se consolida nos anos 80 e alcança seu ápice na década

seguinte. Os investimentos tomaram por base as tendências internacionais do

planejamento estratégico e a construção de uma marca para as cidades, fundada no

modelo Barcelona90, o que representa uma realidade de inúmeras cidades

brasileiras, sem, contudo, conduzi-las a uma filtragem que as adeque às

necessidades locais.

O final do século 20 marca uma nova referencia na constituição da paisagem brasileira, que assume novas configurações morfológicas, na medida em que exprime e representam as intenções sociais e contemporâneas da sociedade nacional, então em um franco processo de transformação e liberação econômica.

91

De igual modo, a estratégia urbanística de espaços públicos, em Salvador

tem contemplado os parques metropolitanos com requalificação, como da

concessão de licenças para serviços e demais necessidades que possam dar

suporte a programas culturais destinados à consolidação do uso. Modo pelo qual “O

discurso oficial defende a ideia de que os novos equipamentos tem fomentado um

novo comportamento nas atividades de lazer dos baianos (até então restritas à

praia)”92. Apesar desta condição a gestão incipiente de alguns parques tem

produzido efeitos inversos, baixa frequência e abandono, proveniente da falta de

manutenção e proteção de suas poligonais, o que permite ocupações e apropriação

por parte de posseiros e grileiros urbanos e fomenta a insegurança.

89 Santos, Jonas Dantas dos - Análise do projeto de Lei N.°216/2007 Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

do Município do Salvador – PDDU – CREA-BA, 2007, p. 13. 90 A ideia de se criar uma nova Barcelona a partir da criação e intervenção em espaços públicos era tese do

arquiteto Oriol Bohigas, aceleradas em sua passagem pela Diretoria de Planejamento de Barcelona no período de

entre 1980 e 1984, e que foi abraçada pelo geografo e sociólogo Jordi Borja durante sua passagem pela prefeitura

de Barcelona no período de 1983 a 1995. Há em Jordi forte convicção que o espaço público é um instrumento

urbanístico fundamental para o resgate da cidade democrática contemporânea, seriamente ameaçada pela

dissolução, fragmentação e privatização de seus espaços. Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 45. 91 Macedo, Silvio Soares, 2001, p. 145. 92 Serpa, Angelo, 2007, p. 51.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

72

Os programas de adoção de espaços públicos, decreto: 11.579–11/04/97 –

Programa Municipal de Adoção de Praças, Áreas Verdes, Monumentos e Espaços

Livres, iniciado em 1997, compreende, dentre tantas alternativas, a manutenção

destes espaços. Em que,

A parceria se dá de três formas. A prefeitura tem os projetos, que podem ser elaborados pela Secretaria do Planejamento ou pela Superintendência de Parques e Jardins (SPJ). O adotante assume esse projeto em convênio com SPJ. A partir daí se definem as obrigações entre as partes. Nesse caso, a inciativa privada executa e cuida da manutenção. Outra forma é o empresário se propor a fazer o projeto sozinho, executando e ficando responsável pela manutenção. O projeto, porém, tem que ser analisado pela equipe técnica da SPJ para sua aprovação. No terceiro caso, o empresário ou a prefeitura elabora o projeto, sendo a execução e manutenção dividida entre os dois. Qualquer alteração no projeto só poderá ser feita com a permissão da SPJ

93

Os decretos 15.629 – 02/05/2005 – Programa Nossa Praça e 19.852 -

08/2009 – Reedição do Programa Nossa Praça, substituíram o texto anterior,

11.579–11/04/97, pouco alterando seu teor quanto aos equipamentos, projetos e

prazos de requalificação, além de ordenar a divulgação por placas fixadas nos

locais, com dimensões preestabelecido, de forma a evitar a propaganda

indiscriminada ou desvio da natureza desses espaços. Iniciativa esta que perdura no

Decreto Nº 23.820 de 21 de março de 2013 – VERDE PERTO, que mantem os texto

das gestões anteriores, divergindo apenas no Art. 12., em que, o espaço público

adotado não poderá ter seu uso impedido.

É importante salientar que os espaços sugeridos pela municipalidade para os

programas tendem a estar, majoritariamente, em áreas centrais e da orla atlântica

de Salvador. Nelas constantemente se fazem investimentos públicos, inclusive com

grandes campanhas publicitárias que propiciam a visibilidade dos projetos e ações

concretas, tão almejada por estas administrações.

Não obstante outros processos e ações se somam para fortalecer a

apropriação não só desses espaços, mas, também ao alinhamento estratégico

orientado ao consumo, suplantando à simples fruição do uso casual ou constante,

em função da produção ou adequação de manifestações culturais, esportivas e

religiosas ao contexto da cidade, objetivando, com isso, proporcionar a visitantes e

cidadãos uma dinâmica de mercado pautada na cidade produto. Estratégia que visa

93 Jornal A tarde 22/08/1999

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

73

agregar valor a estas comunidades, propiciando a descentralização do uso e do

consumo.

Pode ser verificar nas imagens anteriores, como no referencial, que a

qualidade ambiental da orla Atlântica de Salvador foi comprometida, desde a

abertura de grandes vias que direcionaram fluxos de investimentos, atraindo para a

borda atlântica maior densidade populacional e empreendedorismo, muitas vezes

incompatíveis com as dinâmicas de usos concorrentes que ampliam a fragilidade do

ecossistema costeiro. Nesta cidade os planos urbanísticos, interferem diretamente

na silhueta e paisagem urbana. Empreendimentos diversos foram e estão sendo

implantados em áreas contiguas as praias obstruindo parcialmente o contato com

este elemento da paisagem natural.

No caso do bairro de Ondina, apesar da densidade significativa, como em

outras áreas da orla, vem sofrendo franca ocupação e requalificação imobiliária,

valorizadas com a inserção de novos equipamentos como da manutenção dos

existentes e, principalmente, com alteração do PDDU que ampliou os índices do

gabarito. Nele duas praças se fazem mais visíveis, a Bahia Sol projeto piloto para

portadores de necessidades especiais e a Praça Luiz Sande definida como projeto

piloto na década de 80, proveniente de programa de requalificação na Orla Atlântica

executado pela Superintendência de Urbanização da Capital – SURCAP; Secretaria

de Parques e Jardins - SPJ e Departamento Municipal de Estradas de Rodagem -

DMER.

A localização do bairro e seu potencial paisagístico contribuíram, conforme

Scheinowitz para a implantação de programas urbanísticos de ocupação,

especialmente o segmento de hotelaria que se mantem em franca atividade. A

Praça Luiz Sande, objeto do estudo, foi construída com o objetivo de proporcionar

uma completa infraestrutura esportiva e de serviços aos frequentadores. Esse

formato vigora como uma tendência contemporânea de “especialização radical de

usos das praças públicas” proporcionando uma paisagem padronizada. Em outras

localidades “algumas prescritas como verdadeiras praças de alimentação e uma

grande maioria delas produzidas como espaços para recreação, especialmente para

práticas esportivas”94.

94 Macedo, Silvio Soares, 2001, p. 166.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

74

Dentre os programas e políticas aplicadas aos espaços públicos, surgem

projetos que tendem a privilegiar certos usos, transformando-os, por vezes, em

áreas com maior carga estética que funcional, pois não apresentam equipamentos

que favoreçam a permanência prolongada a exemplo de abrigos, bancos, condição

que limita sua utilização, talvez consistindo em estratégia de segregação espacial,

tornando-os insípidos e em certas condições hostis aos usuários.

Para Serpa as “posições socioeconômicas equivalentes, onde as relações e

representações estão “socialmente referenciadas””95 , marcam as ações e

concepções do espaço, direcionando-o a um uso estabelecido, na forma adotada de

implantação de equipamentos ou facilidades, que venham a atender as

reinvindicações de grupos específicos. Este raciocínio pode se estender a outras

formas de ação de um grupo hegemônico sobre a totalidade, presente “no conceito

de habitus, naquilo que concerne aos comportamentos das classes médias ao se

apropriarem do espaço público contemporâneo”96.

Retomando os espaços livres, estes “[...] representam alegorias do tempo e

dos poderes que os conceberam”97. Isso corrobora com o pensamento de Lefebvre

sobre a vontade e representação do nível global, que atinge o espaço da cidade.

“Esse nível global é o das relações as mais gerais, portanto, as mais abstratas e, no

entanto, essenciais: mercado de capitais, política do espaço. Ele não deixa de reagir

mais e melhor no prático-sensível e no imediato”98, se projetando por vezes no

edificado e nos espaços livres.

Compor a paisagem urbana de espaços livres e com isso produzir visibilidade

é uma estratégia de mercado, que, aliada à produção do espaço edificado, a partir

da composição entre Capital e Estado, produz uma abordagem direta e com sua

proximidade pode constituir um diferencial aos empreendimentos, loteamentos ou

bairros novos, presentes na Orla atlântica, como na Ondina em que há franca oferta

de investimentos em unidades habitacionais para as classes de maior renda.

Neste sentido, “a distribuição, mas, sobretudo, a frequentação dos parques e

jardins públicos em Salvador podem revelar, todas as nuances da organização sócio

95 Serpa, Angelo, 2007, p. 21. 96 Ibidem. p. 21. 97 Ibidem, p. 69. 98 Lefebvre, Henri, 1999, p. 79.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

75

espacial da metrópole”99, o que privilegia certas regiões da cidade em detrimento de

outras. Esta condição configura uma perspectiva política de valorização de

potenciais turísticos e imobiliários que caminha na contramão dos critérios

democratizantes para instituição de espaços livres e de valorização, presentes na

articulação do espaço urbano a partir do fim de 1960, em Salvador, como na maioria

das grandes cidades,

O crescimento urbano se caracteriza pela suburbanização intensiva tanto de bairros ricos como populares e por um processo de verticalização de porte, fruto de uma indústria de construção e imobiliária em expansão, que transforma extensas áreas e, portanto, paisagens consolidadas em novas paisagens, alterando de um modo expressivo a hierarquia e a constituição de seus espaços públicos e privados.

100

A despeito do que se possa ler em documentos oficiais e matérias de jornais,

a realidade do espaço público é auxiliar na construção da imagem do espaço

privado, agregando valor no projeto da expansão imobiliária, que cresce, através da

urbanização verticalizada (Macedo), principalmente na faixa litorânea de Salvador,

onde os terrenos valorizados asseguram o investimento na construção de número

maior de itens de lazer e unidades.

Outro aspecto é o posicionamento que o Estado assume em relação aos

espaços livres.

Nas grandes cidades do Brasil e do mundo ocidental, a palavra de ordem é, portanto, investir em espaços públicos “visíveis”, sobretudo os espaços centrais e turísticos, graças às parcerias entre os poderes públicos e as empresas privadas. Esses projetos sugerem uma ligação clara entre “visibilidade” e espaço público. Eles comprovam também o gosto pelo gigantismo e pelo “grande espetáculo” em matéria de arquitetura e urbanismo

101.

O trecho acima se materializa nas ações, em curso, para revitalização de

nove pontos da orla desta cidade.102 Os projetos, propostos de forma verticalizada,

não refletem a necessidade dos usuários, tão pouco a necessidade dos espaços em

99 Serpa, Angelo, 2007, p. 90. 100 Macedo, Silvio Soares, 2001, p. 149. 101 Serpa, Angelo, 2007, p. 26. 102 São Thomé de Paripe, Tubarão, Ribeira, Barra, Jardim de Alah/Armação, Rio Vermelho, Boca do Rio, Piatã e

Itapuã. Neles com um investimento de pouco mais de 110 milhões, serão implantados 50 mil m² de novas

calçadas, 16 mil m² de espaço compartilhado entre pedestres e carros, seis quilômetros de ciclovias, 10 km com

nova iluminação pública, além de quadras, praças e restaurantes. Essas informações fazem parte do vídeo

publicado no site Youtube pela Prefeitura Municipal de Salvador, em junho de 2013.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

76

que se implantam. Outra questão relevante é que eles não refletem um cotidiano

para o qual, em certos casos, trarão mudanças sensíveis. Toda carga simbólica e

identidade preexistentes nesses locais são descartadas em prol do projeto. Disso

pode nascer uma precariedade dos espaços de uso coletivo.

Ondina, apesar de não fazer parte desse projeto, conta hoje com a

implantação de mais um espaço público, o Bosque das Aroeiras, fruto de um acordo

entre a Prefeitura Municipal de Salvador e a Construtora Ondina Lodge, responsável

pela obra do empreendimento Costa Espanha, que irá arcar com os custos da

urbanização e requalificação da área em frente à Prefeitura da Aeronaútica, como

parte de um TAC – Termo de Acordo e Compromisso – com o Ministério da

Aeronaútica, somado à concessão do habite-se do Costa Espanha.

A lei estabelece que não haja impedimento para a fruição dos bens comuns,

“os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças”103

pertencem a todos os cidadãos, este direito esta assegurado, cabe aos gestores

públicos, proporcionar as garantias para que se faça esse uso, com segurança,

higiene e mobilidade, de forma a preservar o cidadão e sua família. Criar espaços de

uso coletivo, não significa simplesmente implantar praças, parques e outros

equipamentos, mas na adoção de políticas integradas de lazer, mobilidade,

segurança e saúde pública, dentro de um planejamento urbano que articule o

Estado, as comunidades e os parceiros privados, no intuito de produzir ações de

curto, médio e longo prazo.

Nas recentes ações de requalificação, a prefeitura atinge determinadas áreas

da orla atlântica e da cidade, mas apenas a Barra e Piatã, conforme o projeto

apresentado, sofrerão profundas transformações em sua mobilidade e serviços. Dos

mais de 110 milhões, orçados para a totalidade do projeto, 75 milhões serão

investidos nestes dois pontos da orla, ou seja, quase 3/4 dos recursos, enquanto os

investimentos na Baia de Todos os Santos, relativo a áreas como o subúrbio

ferroviário, que conta com diversas praias, pouco mais de 10%, algo em torno de 13

milhões serão destinados.

103 Art. 99 do Código Civil

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

77

3. A Praça e a Cidade

3.1. Perspectiva dos usos na Praça Luiz Sande

Os critérios para entendimento do que seja espaço público, de modo a

lastrear as ações dos gestores públicos, considerando o aparato legal cabível, é o

Plano Diretor do Desenvolvimento Urbano - PDDU -104 e toda legislação

hierarquicamente superior em relação à instância e abrangência legais, que sejam

requeridas para sua elaboração e cumprimento, qual sejam, Constituições Federal e

Estadual, Lei Orgânica do Município e Estatuto das Cidades.

No PDDU de Salvador, as praças estão previstas como Espaços Abertos

Urbanizados – EAU -105. São esses os locais para a vida pública da cidade. O PDDU

também prevê a extensão do acesso, o aproveitamento do potencial e a ampliação e

diversificação da oferta desses espaços para lazer, esporte e recreação em seu

artigo 113, capítulo VI, parágrafos I, II e III. Além disso, possibilita que sejam

estabelecidos convênios e parcerias com a iniciativa privada para a manutenção e

promoção de eventos nesses espaços.

O ambiente costeiro tem qualidade de coisa pública, espaço comum a todos,

por ser patrimônio da União, logo, presumidamente, pertencente ao povo. Interferir

na paisagem litorânea, a partir da praia, denota uma necessidade de apropriar

institucionalmente, em outro nível, algo que já produz efeitos como espaço público,

como espaço coletivo, espaço a habitar, a partir dos conceitos de Lefebvre.

É, pois, através de práticas cotidianas que os cidadãos vivenciam esses

espaços de forma simples e criativa, bastando, para isso, o acesso. Considerando

as dificuldades de mobilidade numa cidade carente de espaços públicos, cabe

questionar se não seria mais sensato ocupar aqueles espaços que não estão

prontos, ou que não permitem usos diversos por carecer de infraestrutura, mas que

estão próximos às comunidades. Parece óbvio que, em cidades com muitas

carências e recursos limitados, a mobilidade seja o ponto de partida. Ela pode

104

Lei 7400/2008 Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador – PDDU

2007. 105

Correspondente a área pública urbanizada destinada ao convívio social, ao lazer, à prática de esportes e à

recreação ativa ou contemplativa da população, correspondendo aos parques de recreação, às praças, largos,

mirantes e outros equipamentos públicos de recreação e lazer.

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

78

inclusive promover a inclusão em muitos sentidos, principalmente se observada do

ponto de vista da consolidação dos percursos e não só da sua produção.

Figura 8 - Praça Luiz Sande – 2013 – Fonte Google Earth

A Praça Luiz Sande, na Avenida Oceânica em Ondina, está localizada no

Trecho 7 da Borda106 Atlântica da cidade de Salvador/BA. Conforme o PDDU,

compreende a faixa litorânea de Ondina até a Praia da Bacia das Moças. Nela,

existem diversos equipamentos urbanos destinados ao uso coletivo, quadra

106

Área de contato ou proximidade com o mar, que define a silhueta da Cidade, representada pela faixa de terra

entre as águas e os limites por trás da primeira linha de colinas ou maciços topográficos que se postam no

continente.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

79

poliesportiva, estacionamento, lanchonete, quadras de futebol, sanitários, boxes e

quiosques destinados ao comércio de coco, tendo ainda vegetação composta por

coqueiral. O acesso à praia pode ser realizado por rampa lateral ou pela própria

praça, que se estabelece em níveis diversos até a areia, como é percebido na

imagem a seguir.

Essa praia é frequentada, principalmente, por moradores do bairro e entorno,

turistas, mas, de modo geral, por pessoas de toda cidade. É um espaço para os

atletas cotidianos que buscam vencer uma vida sedentária, jovens e idosos, que

praticam a caminhada matinal, pessoas aposentadas e outras em plena atividade

que aproveitam a praça como local para o alongamento ou um breve descanso,

apreciando o mar, antes de prosseguir no retorno para casa. E ainda, aproveitam

como local de passeio.

Tem, além dos pontos regulares como quiosques e boxes a presença de

comerciantes ambulantes que vendem doces, cervejas e água mineral. Notabilizou-

se como espaço do carnaval e apoteose dos festejos do circuito Barra/Ondina.

Foto 6 – Visão geral do Camarote Salvador – Acervo Pessoal

Foto 7 – Visão geral da Praça Luiz Sande – 2014 – Acervo Pessoal

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

80

Foto 8 - Estrutura metálica do camarote Salvador montada na Avenida Oceânica – Acervo Pessoal

Os camarotes, no circuito Barra/Ondina, já garantiram seu destaque, o que

ocorreu pelo incremento e profissionalização, atingidos ao longo dos últimos anos,

especialmente, para os vinculados aos empreendimentos hoteleiros locais. O

Camarote Salvador, serve como exemplo dessa condição. Apesar de surgir em

2000, como espaço particular utilizado por um grupo para brincar o Carnaval, em

2007, evoluiu para um espaço coletivo privado, citado por seus produtores como “o

mais exclusivo para brincar o Carnaval de Salvador”. Ele reúne diversos atributos

que lhe garantem o status de camarote mais procurado pelos turistas.

Ao que parece, a parceria com a empresa Premium Entretenimento, em 2009,

produziu a ampliação do negócio, agora vinculado às ações do Hotel Salvador107,

alterando a dimensão, bem como o modelo organizacional, conduzindo à

reconfiguração das estratégias, transformando-o num evento interior ao evento

Carnaval. Se inicialmente atendia-se cerca de 3000 pessoas/dia, atualmente têm-se

informações em site institucional de atender a aproximadamente 20 mil pessoas

durante o período do carnaval, verificando-se um acréscimo de quinze por cento. A

107

Hospedagem de luxo que promove pool parties durantes os dias de folia, com muita mordomia e serviços

exclusivos, como salão de beleza, customização de abadás e massoterapia. (Disponível em: <

http://glamurama.uol.com.br/saiba-da-historia-de-um-dos-camarotes-mais-badalados-do-brasil/>. Acessado em:

05 fev. 2014).

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

81

imagem abaixo, da área interna do camarote, permite-nos perceber, mesmo que

parcialmente, as dimensões do equipamento, bem como a organização que

demanda.

Figura 9 - Vista interior do camarote Salvador – Fonte Premium Empreendimentos – Site da Empresa

A ocupação que esse equipamento, como tantos outros, faz do espaço

público, na medida em que implica alguma forma de privatização ou que contempla

algum processo político ou econômico, acaba se chocando com as tipologias de

usos esperadas do sistema de práticas urbanas em suas funções predominantes:

circulação, permanência, lazer, visitação (Popini). No caso do Camarote Salvador,

sua dimensão chama atenção por ocupar o espaço público em sua totalidade, tanto

da praça como do estacionamento.

Verificando tal situação, temos reconhecida tendência a permitir o uso de

espaços públicos urbanos por atividades e interesses privados, ou ainda, a

tendência a buscar, na PPP, condição de manutenção e conservação desses

espaços. Inobservadamente, a supressão desses espaços, praças e ruas, resultam,

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

82

conforme “qualquer possibilidade de identificação ou reconhecimento por parte de

seus habitantes”108.

Figura 10 - Visão geral da praça e limite do camarote na cor vermelha – Google Earth

A preocupação quanto à presença e manutenção desses espaços está

relacionada à sua importância como “fóruns tradicionais de troca de opiniões e de

um jeito civilizado de liberar as tensões de classe”109, compreendendo espaços

coletivos que não entrincheiram grupos nem marginalizam minorias. Limitar aos

espaços coletivos privados uma fruição de grupos selecionados pode produzir uma

série de fenômenos dentre os quais os já conhecidos e reprimidos rolezinhos110.

No caso da Praça Luiz Sande, não é a supressão dos espaços públicos,

tampouco os efeitos da instituição de um uso coletivo privado, mas a sobreposição e

108

Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 51. 109

Ibidem, p. 55. 110

(diminutivo de rolê ou rolé, em linguagem informal, significa "fazer um pequeno passeio" ou "dar uma

volta") é um neologismo para definir um tipo de flash mob ou coordenação de encontros simultâneos de centenas

de pessoas em locais como praças, parques públicos e shoppings. Os encontros são marcados pela internet, quase

sempre por meio de redes sociais como o Facebook.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

83

a momentânea alteração da natureza de uso, de coletivo público para coletivo

privado, que deve ser observada. Apesar de atribuído pelas práticas e operações de

seus usuários costumeiros, o caráter público de um lugar, que poderia ser

considerado como garantia de efetivação dos usos futuros, cede sob pressões

exercidas por novos usos, alterando os usos futuros num horizonte mais distante,

porém não menos possível de serem alcançados.

A análise da ocupação da Praça pelo Camarote serve como exemplo dessa

pressão sobre o espaço público urbano. A natureza sazonal dessa ocupação não

inviabiliza trazê-la como objeto de investigação desse processo, tão pouco sua

relação com o contexto do Carnaval, uma vez que o camarote já assumiu certo

protagonismo, quanto à sua relação com a festa. A natureza da apropriação e a

quem ela representa, podem, também, ser relevantes, e os valores do camarote per

si, feminino para todos os dias da festa R$ 4.590 e masculino 6.790, demonstram

coerência dessa afirmativa.

Agora, se consideradas as características desse sítio, de estar na jurisdição

do município e da União, temos uma (re)leitura bastante interessante do que ocorre

na praça, pois permite tanto visualizar, quase que de forma geral, como o estatuto

da coisa pública é visto jurídica e socialmente por níveis de governo e por escalas.

O Carnaval já acumula aspectos relacionados à segregação socioespacial,

amplamente discutidos, ao ser associada à privatização (itinerante) ocasionada

pelos blocos; às relações trabalhistas dos cordeiros; aos ambulantes entre

licenciados e clandestinos; à informalidade variada durante a festa. A isso tudo se

soma a privatização de espaços públicos urbanos que atinge calçadões e ruas, em

ambos os circuitos.

As formas de ocupação, ao longo do tempo, permitem ainda uma leitura dos

modos como esses estatutos foram alterados para satisfazer interesses distintos.

Em Ondina, considerando a trajetória de reapropriação e posterior requalificação a

partir da retirada das famílias da Invasão da Areia Preta, as pressões sobre esse

espaço foram de ordem ambiental, urbanística, econômica e social. Para aquelas

pessoas, a relocação para a Boca do Rio, a reterritorialização em lugar distante

representava perdas significativas que interferiam na vida, no cotidiano, no

sentimento de pertença e nas relações sociais construídas no lugar e entorno.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

84

A (des)(re)territorialização pode ser entendida como a incapacidade do grupo

excluído de se representar perante a sociedade, pode ser resultado de interesses ou

bem coletivo, justificados pelos “benefícios” a uma coletividade já segregada em sua

espacialidade, e em sua capacidade de resiliência. Hoje, as audiências públicas que

se fazem por conta de projetos que, inevitavelmente alterarão territórios e cotidianos,

independente dos seus resultados ou de possíveis mitigações, representam bem

essa condição.

Entretanto, mesmo sabendo que,

desterritorialização, ao contrário de “exclusão social”, não tem uma valoração exclusivamente negativa (ver, no seu extremo oposto, algumas proposições de Deleuze e Guatari, que vêem na desterritorialização como “linha de fuga” um sentido amplamente positivo, por seu potencial

transformador, criador, de “devir”111

Não se quer dizer, com isso, que desterritorializar não signifique excluir e que

aqueles retirados de suas casas, mesmo em troca de novos lotes e promessas de

uma nova condição de vida, não estejam, em última instância, sofrendo uma ação

negativa sob o aspecto de suas relações individuais e coletivas, considerando que

não foi efetivada nenhuma proposta de reurbanização para os relocados.

De modo contrário, no Rio de Janeiro, quase à mesma época, ocorre uma

experiência conduzida pelo grupo do arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos na

Favela Brás de Pina, no Estado da Guanabara. Apesar do movimento ter

conquistado a permanência (1969) e a urbanização do local ser executada, em seu

retorno, ao analisar a urbanização de Brás de Pina por ocasião de sua dissertação

de mestrado (1979):

Carlos Nelson reconheceu que as questões reveladas na urbanização de Brás de Pina, sobretudo com relação à dificuldade dos seus moradores em se articularem em torno de um espaço permanente de participação e reivindicação de direitos – espaço público político – não eram reflexos de uma crise de caráter urbano, mas consequência da maneira como as cidades, sob o domínio do autoritarismo, foram apropriadas pelo modelo desenvolvimentista capitalista brasileiro e transformadas pelos pressupostos

urbanísticos progressista-racionalista112

.

111

Haesbaert, Rogério, 2011, p. 312. 112

Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 115 e 116.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

85

Em seu texto dissertativo, Carlos Nelson descreve o desenvolvimentismo

brasileiro como um modelo que, para os grandes centros urbanos, criou forte

atração de mão de obra, sem, contudo, haver a devida contrapartida de recursos e

projetos de inclusão para essas pessoas, e sinaliza seu surgimento e evolução a

partir da industrialização. Ele também entendia que o momento histórico

proporcionava ao autoritarismo recursos e mecanismos que apoiavam um poder

ilimitado e anulava oposições. E, se considerarmos ainda a condição da cidade, “[...]

sempre política, ela constitui o meio mais favorável à constituição de um poder

autoritário”113 que, invariavelmente, age por um grupo ou grupos de poder e força

com o intuito de manutenção da hegemonia, que, numa associação público privada,

pode significar a alienação de parte dos conceitos associados a um dos estatutos.

Diante dessa condição, Eulálio afirma que,

para Habermas, na sociedade industrial organizada como Estado-social novas normas são introduzidas, normas do assim chamado Direito Social e, consequência disso é que à medida que o setor público se imbrica com o setor privado, o modelo de separação rígida entre o público e o privado se torna inútil. Surge uma esfera social repolitizada e porque não dizer

potencialmente promíscua114

.

Abrahão, por sua vez, argumenta acerca da importância que tem o espaço

público enquanto espaço político e de representação, que serve à problematização

coletiva das questões cotidianas e à hierarquização das necessidades de todos, no

sentido de estabelecer prioridades comuns e auxiliar a composição de uma unidade

de interesses e ações que promove a articulação de indivíduos e grupos. Ele afirma

que,

a partir das formulações de Arendt observa-se que o grau zero do mundo público imposto pelo totalitarismo induz a um isolamento social que corresponde a um espaço desolado, habitado por indivíduos supérfluos, justamente sem lugar, que só pode ser vencido pela ação da vida em público. Para Otília Arantes (1995: 115), tais formulações implicam em “um certo número de imagens espaciais sugestivas da correspondência entre a reflexão sobre a condição humana moderna e a organização social do

espaço”115

.

113

Lefebvre, Henri, 1999, p. 89. 114

Eulálio, Marcelo Martins, 2009, p. 47. 115

Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 23.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

86

O totalitarismo, contudo, não parece ser a única via para promover essa

desolação. Ela ganhou outros contornos e se modificou, assumiu uma condição

mais ardilosa e, assim como talvez não sejamos tolos ao ponto de nos deixar

dominar, talvez não sejamos hábeis ao ponto de nos mantermos livres de suas

influências.

Com a urbanização da orla do bairro de Ondina retomou-se relação direta sob

a perspectiva do mar e seus benefícios estéticos. Sua inclusão no Plano Diretor da

Orla Marítima de 1973 evidenciou amplo interesse em preservar a paisagem.

Conforme se analisa o zoneamento indicado, à época, é possível compreender ser

destinado o lado oposto ao mar às zonas residenciais, comerciais e de serviços. O

que não correspondeu à efetiva ocupação do bairro, provável desvio dos princípios

de gestão e organização espacial, como pode ser observado na Figura 7 de uso do

solo (página 68).

A não adesão ao plano e a modificação dos critérios urbanísticos nele

estabelecidos favoreceram intensa ocupação da frente marítima, alavancando o

bairro como cluster hoteleiro, definindo a degradação da paisagem natural,

sedimentando uma paisagem artificial, dificultando a relação visual com o mar,

aspecto que valoriza a localização da Praça Luiz Sande na Praia de Ondina como

resquício espacial ao qual se pode recorrer como espaço de possibilidades, lugar de

vivenciar relações espontâneas e processos criativos, que cada vez mais não

encontram lugar, em toda cidade.

É importante ressaltar que a simples visão de um espaço aberto já evoca ao

indivíduo a ideia de estabelecer certo uso, possivelmente associada a necessidades

e possibilidades mais iminentes, talvez, daí, a formulação de Lefebvre de que o uso

para atender tais processos caracterize a apropriação, não sendo, contudo, obrigado

que o substrato a ser apropriado seja um espaço natural.

Veja que, já nos anos 80 do século XX, intensificava-se uma discussão sobre

a vida pública e os espaços para sua fruição. Abrahão traz a referência dos textos de

Brill (1989) e Rivlin (1992): o primeiro, para o qual pesam o zoneamento e legislação

como depreciadores da vida pública e, a segunda, que definiu uma confluência de

forças sociais, funcionais e simbólicas como modeladoras desses espaços. Para

Brill, a transferência dos espaços públicos, para o que ele “identificou genericamente

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

87

como ‘canais de comunicação’: internet, jornais locais, programas de tevê, etc.”116

recrudescia a vida pública americana.

Quanto a isso, Sennett afirma que “a atomização da cidade colocou um fim

prático num componente essencial do espaço público: a superposição de funções

dentro de um mesmo território, o que cria complexidade de experiências naquele

determinado espaço”117, necessárias às relações do trabalho e da família que,

compartilhadas, aproximam a sociabilidades e propiciam os encontros impessoais.

Na praia de Ondina, a experiência da multiplicidade de usos foi enriquecida

em 1983 a partir da instalação do Circo Troca de Segredos na Praça Luiz Sande.

Justificou-a, Paulo Conde, em matéria do Correio da Bahia:

E por que não o teatro? Por que justamente naquele período, Salvador passava por mais uma etapa de urbanização [...] “Foram as duas primeiras praças da orla. No Bico de Ferro, teve até resistência e algumas casas foram derrubadas com trator. Lá, passou a se chamar Jardim dos Namorados, e aqui em Ondina, pouca gente sabe, mas a praça recebeu o nome de Jardim da Paquera”, conta com memória de menino o vendedor de água-de-coco Luiz Fernando Souza de Brito, 47. [...] A reforma transformou o chão que abrigava os barracos da Areia Preta em quadras de futebol e patinação, e criou ainda uma arena com arquibancada de cimento, destinada a abrigar eventos culturais. Na época, ninguém sabia, mas era ali

que o circo Troca de Segredos seria instalado118

.

Arte, música, teatro, grandes públicos e uma intensa relação com movimentos

de renovação do cenário artístico baiano marcaram a presença do circo na praça.

Passados 30 anos, ainda se comenta essa presença e a repercussão desse espaço

na vida cultural do bairro de Ondina e da cidade. A ocupação pelo circo é a

apropriação da praça e do espaço público por uma forma de exploração privada que,

por seis anos, produziu um valor de troca, mas proporcionou um valor de uso

coletivo, sem, contudo, evitar outras formas de utilização da Praça Luiz Sande.

A Praça, em sua configuração mais recente, foi fruto da PPP entre Prefeitura

Municipal de Salvador – PMS - e a empresa Premium Entretenimentos. O objetivo foi

requalificar e promover sua manutenção. Entretanto, a discussão que se faz sobre

os elementos conceituais e práticos referentes ao espaço urbano de uso coletivo e a

aderência dos conceitos de público e privado, presentes e efetivos nessa relação, é

116

Abrahão, Sérgio Luis, 2008, p. 146. 117

Sennett, Richard, 1988, p. 362. 118

Jornal Correio da Bahia, 19/03/2006, p. 04 – Arena Urbana.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

88

que se fazem relevantes. Justificar a ocupação por 3 meses da totalidade da praça

em contrapartida aos 9 meses de espaço liberado e conservado, parece não ser

entendido como um pacto perfeito por alguns, mas se conforma como um arranjo

satisfatório que agrada e atende a outros.

Os movimentos e discussões originados na efetivação da apropriação e as

ramificações jurídicas, econômicas, sociais, oriundas do processo, referem relações

entre o espaço público urbano e o capital privado na maioria das capitais brasileiras,

e por que não dizer no mundo, presentes nos questionamentos de urbanistas,

sociólogos, geógrafos e demais especialistas que lidam com o tema cidade. Elas

refletem os desafios para construir relações mais equitativas e para elucidar e

consolidar conceitos como público, privado e coletivo e suas conexões e

intersecções.

O que Lefebvre trata por apropriar e pela relação do individuo com a natureza,

do homem com a terra, é o costume, a tradição, e não implica intermediações.

Talvez possa ser entendido como uma condição de privado, não no sentido

individualizado que perturba as relações, mas no sentido de guardar uma condição

natural, de guardar permanências, para as quais o público seria o desenvolvimento

da cultura, conhecimento, mediação, transformação em função de uma

superestrutura.

Por outro lado, conforme Sennett, “uma comunidade é também uma

identidade coletiva”119. Essa condição produz, quando necessário, uma ação coletiva

que aproxima os indivíduos. “Em geral podemos dizer que o ‘senso de comunidade’,

de uma sociedade que tem uma forte vida pública, nasce [...] do eu coletivo

compartilhado”120. Podemos entender esse eu coletivo como antagônico à

superestrutura que afasta os indivíduos e causa a erosão, mesmo que parcial da

vida pública. Mas Sennett percebeu que “o imaginário compartilhado se torna um

freio à ação compartilhada [daí] a única transação que poderia engajar o grupo é a

purificação, a rejeição e o castigo daqueles que não são ‘como’ os outros”121.

119

Sennett, Richard, 1995, p. 275. 120

Sennett, Richard, 1995, p. 275. 121

Ibidem, 1995, p. 276

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

89

3.2. Escalas de apropriação da Praça

A escala, do ponto de vista espacial, implica “traço fundamental da ação

humana, relacionada a práticas que se realizam em âmbitos espaciais mais

limitados ou mais amplos, mas não dissociados entre si”122. Dessa forma, as

transformações são ocasionadas por um processo contextualizado que atinge certa

parcela do espaço urbano, muitas vezes por ocasião de um alinhamento ou

coerência que pode se estabelecer no âmbito da cidade. A praça possui um histórico

no qual podemos identificar três modos diversos - ocupação, apropriação e

privatização - a partir da presença de três equipamentos distintos: o módulo

comercial, o circo e o camarote.

A implantação do módulo comercial, onde funciona o SPEED Lanches, é

limitada, em suas perspectivas de intervenção, por sua concessão de uso (alvará),

sendo permitido à lanchonete explorar economicamente apenas uma atividade, sem

lhe facultar a liberdade de arbitrar usos diversos para aquele espaço. Há, contudo,

nessa apropriação, uma função para a praça, proporcionando serviços que atendam

seus usuários o que o torna parte do microcosmo da praça.

Esse módulo foi determinação do poder público (RENURB), articulado por

uma tendência e orientado por um processo administrativo e político que definiu um

objetivo (alimentação), uma forma (tamanho, localização), um modo de ação ou

prática (licitação, alvará, licença) para a sua instalação que, apesar da condição

definitiva, mantém a qualidade de espaço coletivo privado, onde o uso é público e o

resultado, no âmbito das relações com a cidade, ocorre de modo mais intenso no

bairro, mas também integra pessoas e turistas - nem todos que frequentam a praça

consomem no módulo; há uma elegibilidade no uso do módulo.

Essa apropriação não implica maiores questões para a cidade. A privatização

ocorrida com o módulo comercial é uma simples condição de ocupação e uso

privado do espaço coletivo, mas, em relação, por exemplo, às antigas barracas de

praia, conta menos no sentido da invasão dos estatutos ou da quebra dos limites,

pois é quase que assimilada no projeto da praça. Esse foi instituído pelo município

122

Correa, Roberto Lobato, 2011, p. 41.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

90

como suporte às atividades e ao funcionamento da praça como equipamento

público.

Uma vez que o município não tem como prover tais serviços, a partir de sua

própria estrutura, essa concessão apresenta natureza de parceria entre o Estado,

limitado por seus estatutos, e o concessionário, que é autorizado, naquele espaço

público, por sua capacidade particular de mobilização e manutenção de um

empreendimento e da atividade que dele decorre, a suprir a necessidade da

sociedade. Assim, o módulo faz parte do contexto dessa praça.

De certa forma, o módulo está para a praça como a praça está para a cidade,

numa gradação dos valores de uso contidos no cerne dessa relação, que não ferem

o processo socioespacial, pois o uso do equipamento não subordina o uso do

espaço.

Já a apropriação do Circo Troca de Segredos, iniciativa que privatizou a arena

da praça para produzir eventos culturais e musicais por seis anos, apesar de

funcionar como negócio, cobrando ingressos para venda de serviços, reivindicou um

estatuto de espaço cultural. Sua estrutura era particular, mas contou com apoio da

Prefeitura de Salvador que permitiu a ocupação e uso e, além disso, doou as

ferragens da estrutura.

Suas relações estavam no âmbito da cidade, promovendo eventos que

traziam pessoas de diversos bairros, conforme depoimento de um frequentador:

“Nós nos encontrávamos para ver o show no Troca de Segredos. Eu descia da

Federação e os outros vinham do Nordeste, Liberdade, Pau Miúdo, Ribeira e Boca

do Rio”123.

Sua frequentação era variada em função da diversidade de atrações e

gêneros musicais que apresentava, além de teatro e outras atividades culturais.

Nesse caso, a frequência do circo não se fazia em função da praça, e sim foi

constituída uma polarização entre praça e circo, exemplo disso é o depoimento do

proprietário da lanchonete Speed: “Nos dias de maior movimento no circo, as

vendas chegavam a ser cinco vezes maiores que o normal”124. Apesar da polarização

e dos usos concorrentes entre os frequentadores da praça e do circo, ainda assim,

123

Informação prestada por frequentador do circo, em entrevista. 124

Jornal Correio da Bahia, 19/03/2006, p. 07 – Arena Urbana

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

91

havia convívio entre formas diversas de uso e sua característica de espaço coletivo

público era simultânea ao espaço coletivo privado do circo.

A privatização que vem com o circo alcança a cidade em uma escala

significativa, principalmente considerando a Salvador de trinta anos passados, onde

as relações ainda eram muito localizadas e enquanto ainda se saia de um regime

autoritário. Arte, música, eram expressões que tomavam outra forma. Passariam a

privar de uma liberdade, não só de expressar, mas de construir formas de

expressão. Nesse contexto, o circo assumiu uma perspectiva de espaço alternativo,

mas também de espaço inusitado, de experimentação.

Figura 11 - Acesso ao Circo Troca de Segredos em dia de show – Reprodução Correio da Bahia

O circo também tinha um caráter de elemento estranho à praça, por sua

permanência, por suas parcerias e patrocínios numa relação direta com a iniciativa

privada. Porém, mesmo diante desse processo maior e de certas circunstâncias

especificas, o circo não tem a mesma relação que o módulo comercial. De outra

forma, ele exerce alguma subordinação sobre a praça, diante das grandes

audiências externas que reunia, além do seu espaço original.

A apropriação promovida pelo Camarote é a privatização mais facilmente

percebida do espaço da Praça Luiz Sande e, apesar de ser encoberta parcialmente

pela presença do Carnaval, é visível a uma parcela que tem informação e que lida

com o dia a dia da gradativa privatização da cidade. “Estamos verificando que a

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

92

cidade como sistema de serviços públicos se enfraquece, tende a se privatizar, com

tudo o que isso pode significar de negação da cidadania e conversão em um fator de

ruptura da estrutura social”125.

Figura 12 - Interior do Circo Troca de Segredos em dia de show. Lazo Matumbe – Reprodução Correio da Bahia

Se por um lado a privatização produz uma dissociação do sentido coletivo por

ocasião da restrição do uso e do acesso à praça, por outro, é necessário atentar

para o fato de a parceria entre o município e a empresa de entretenimento produzir

uma requalificação e manutenção da praça pública. Nesse sentido, essa

privatização traz um elemento novo, a contrapartida ao uso do espaço público. Isso

não se estabelece nos processos anteriores, sendo que o primeiro implica apenas

na prestação de serviços e o segundo implicou na produção de um valor simbólico,

cultural, contudo não se traduziu em infraestrutura ou manutenção dos

equipamentos existentes.

O camarote exerce uma forma complexa de privatização em que o município

e a empresa se unem para produzir um espaço coletivo privatizado, com seu uso

mediado pelo consumo do produto camarote, segregando o uso da praça. A

discussão nos conduz aos usos que povoam as relações com o espaço público

urbano, por força do individualismo que reina nas relações que se constroem na

cidade. Podemos considerar a referência que Abrahão faz de Lipovetsky, de que,

125

Córtes, José Miguel G., 2008, p. 98.

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

93

Sem o polo público a privatização urbana havia se tornado um instrumento de autonomização das pessoas, ou ainda, de uma vida privada mais livre, onde a sociabilidade se resumia em alguns casos a mero encontro de massa (metrô, por exemplo), e em outros a uma sociabilidade do espetáculo

e do divertimento126

.

A história de apropriação, da lanchonete ao camarote, pode demonstrar

sociabilidades associadas a algum tipo de evento, a uma forma mais complexa de

apropriação e uso, envolvendo algum modo de consumo.

Nomear o Ondina Apart Hotel como equipamento urbano127 da praça nos

guiando por uma visão do uso coletivo não é absurdo, nem equivocado, pois o uso

coletivo pode ser privado, o apart hotel é um equipamento urbano128, e ele está

localizado na praça, ao menos sua lateral é contígua a esse espaço. Não implica,

contudo dizer que seu uso está disponível a qualquer cidadão, uma vez que é

mediado por uma relação de consumo, pois o hotel presta um serviço de

hospedagem.

A praça também é um equipamento urbano, mas, nela, as mediações são

feitas pela sociabilidade para a qual foi destinada e não pelo consumo, o que

também não implica dizer que sociabilidade e consumo não possam estar ligados ou

interligados.

O fato de ser temporário não anula do camarote a característica de ser um

equipamento de uso coletivo, em que as relações são mediadas pelo consumo,

nesse caso seu próprio consumo. Sua sobreposição à praça, o equipamento urbano,

o espaço coletivo público, a faz não existir e não permite nenhuma relação com a

cidade, pois deve extrair o melhor retorno do espaço ocupado para quem tem a

concessão. Podemos dizer, na visão do capital, não só tempo, mas espaço é

dinheiro.

Quando Anne Buttimer (1979, p. 279) observa que “entre as preocupações centrais para a geografia moderna encontra-se a organização do espaço e do tempo”, seu objetivo não é explicitamente uma descoberta da experiência humana total, mas, antes, da experiência técnica, ou da

126

Abrahão, Sergio Luis, 2008, p. 148. 127

Equipamentos Urbanos - Todos os bens públicos ou privados, de utilidade pública, destinados à prestação de

serviços necessários ao funcionamento da cidade, implantados mediante autorização do poder público, em

espaços públicos ou privados (NBR 9284). 128

Equipamentos urbanos – instalações públicas ou privadas destinadas ao apoio às necessidades da comunidade

atendida localizada dentro de uma área urbana (PDDU Salvador).

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

94

utilização racional do espaço-tempo, visando assegurar eficácia econômica

à administração dos investimentos129

.

Desse modo, é essa eficaz administração dos recursos, inclusive aqueles que

pertencem à coletividade, mas estão disponíveis de modo sazonal, e estão ao

alcance da argúcia do capitalista e de suas estruturas de exploração, que deve

prevalecer e não uma visão preocupada “com todas as formas de existência”, pois é

possível a essa administração, cada vez mais, produzir o tempo necessário à sua

ação no espaço pela necessidade de garantir o lucro. O Camarote, que no primeiro

Carnaval, em 2011, demandou quatro meses entre montagem e desmontagem,

demorou pouco mais de dois meses no Carnaval de 2014, economia alcançada pelo

uso de técnicas, materiais e equipamentos diferenciados.

3.3. Uma Paisagem Midiatizada

No carnaval, a paisagem no entorno do circuito é alterada para servir aos interesses

de entidades e instituições que montam estruturas nos espaços livres ou em vazios

ou ainda sobrepostas às estruturas arquitetônicas e urbanas existentes. Forma-se,

então, um conjunto de fachadas e de grandes empenas que servirão de suporte à

informação do carnaval e à promoção das marcas que participam do evento.

Nesse sentido, o valor alegórico do carnaval de Salvador foi gradualmente

substituído pela publicidade e os camarotes se tornaram a materialização e a

representação mais extrema desse processo que se iniciou nas laterais dos trios

elétricos e passou a ocupar fantasias e vestimentas (abadás) do Carnaval. Hoje, o

camarote é um equipamento publicitário, símbolo de um status de consumo, de

poder e de diferenciação entre os foliões, como o bloco já foi.

O crescimento dos camarotes implicou uma expansão da demanda por

espaços no circuito Barra/Ondina que atinge não só os espaços privados, ocupando

os hotéis e demais construções existentes, mas também os espaços livres contíguos

a esses, chegando também ao espaço público da praça.

Ao contrário do que ocorre no carnaval do Rio de Janeiro, apesar da

propaganda, o alegórico ganhou um espaço cada vez mais crescente para uma

129

Santos, Milton, 1996, p. 40.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

95

representação artística mais elaborada do carnaval com os carnavalescos

assumindo uma posição de destacada importância como elementos de ligação entre

a cultura do samba e as redes de tecnologia e cultura acadêmica.

Em Salvador, o que ocorreu foi justamente a adesão a um projeto

mercadológico que, de modo crescente, ocupou o espaço da população e cunhou

uma nova forma para a imagem do Carnaval baiano, inclusive influenciando sua

espacialidade. Nesse processo, a transferência do carnaval dos clubes, em virtude

do enfraquecimento de tais instituições a partir da década de 1970 e a ascensão dos

blocos na década de 1980, foi determinante para a popularização do carnaval de rua

entre as classes mais altas, promovendo a elitização da festa.

Na década de 1990, surge uma demanda para espaços fechados, ligados,

principalmente, a ações promocionais de artistas e empresas, dentro dos circuitos.

Essa utilização de espaços fechados cresce e passa a se tornar uma atividade

integrante do evento, marcada pela presença cada vez maior de celebridades e

artistas, e com músicos com atuações em diferentes estilos, do sertanejo ao funk ou

pop. Mais do que uma eclética condição de convívio entre estilos, essa é uma

necessidade que os promotores viram de trazer ao seu público jovem uma variedade

de atrações, para encher suas ações promocionais. E é essa necessidade de mais e

maiores ações promocionais que aqueceu um mercado novo, popularizando os

camarotes, já presentes em ações que compunham o arsenal de outros eventos e

estilos musicais, ampliando sua presença em Salvador.

3.4. Coletivo, usuários e consumidores

A noção de coletivo que perpassa o uso do espaço público não se altera pela

natureza desses usos e dos usuários, contudo, não se comporta da mesma forma

sob o aspecto daqueles que sejam usuários/consumidores. Isso por que os

consumidores requerem relações complexas de consumo que são inerentes ao

capitalismo e conformam sua estrutura formal. Diante disso, é possível entender, ao

menos para efeito do espaço público de uso coletivo, todo consumidor sendo

usuário, mas nem todo usuário sendo consumidor, o que pode ou não se aplicar ao

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

96

espaço privado de uso coletivo, por ocasião das práticas que ali ocorram, apesar da

tendência atual de massificação do consumo nesses espaços.

Pessoas passam pela calçada; outras param para tomar água de coco; umas

descem até a praia; outras ainda praticam esportes nas quadras, na areia; algumas

fazem refeições na lanchonete; compram jornais ou simplesmente, param seus

carros no estacionamento, sem nem notar a paisagem ou a praça. Todas essas

situações, que também podem ocorrer de forma simultânea para algumas desas

pessoas, podem ser práticas diárias para muitas.

A praia de Ondina foi point na década de 1990, sofreu um déficit em sua estrutura de

atendimento, na areia praia, com a remoção das barracas de praia, mas continua

atraindo banhistas, esportistas de fim de semana, praticantes de corridas matinais,

geralmente moradores das proximidades, jovens, turistas, um público muito

diversificado, composto por pessoas que vêm das comunidades do entorno, em

momentos distintos do dia.

Foto 9 – Automóvel, com isopor para a venda de bebidas – Acervo Pessoal

Os comerciantes estabelecidos formalmente convivem com a presença de

ambulantes como Andrade, todos os dias, caso não chova, que faz de seu

automóvel uma fonte extra de renda, vendendo cervejas, refrigerantes e água

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

97

mineral, parando-o no estacionamento da praça. Mesmo aposentado, ele completa o

salário com sua atividade na praia, para pagar as contas e sustentar a família.

- Venho todos os dias a quase sete anos, só não venho se chover, mas se estiver só nublado eu venho. - Vendo umas cervejas, refrigerantes, trago tudo no isopor... depois comecei a trazer os banquinhos, tenho alguns clientes de todo dia. - Os malandros me respeitam e quando estou aqui eles evitam encostar. - Não consigo ficar em casa, ai venho para a praia vender minha

mercadoria130.

Figura 13 - Folheto de divulgação do programa Salvador, Esporte e Cidadania.

Uma atividade, desenvolvida na Praça é a presença do programa da

organização “De peito aberto”, uma OSCIP, sediada em Minas Gerais, que atende, a

partir de um convênio com o município, crianças de comunidades próximas a

Ondina, com idades entre os 7 e os 17 anos, com atividades desportivas de futsal e

130

Falas do Sr. José Andrade, aposentado do serviço público estadual e ambulante na Praça Luiz Sande.

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

98

handebol, através do projeto “Salvador Esporte e Cidadania”131. As atividades

acontecem nas quadras de Ondina em dias alternados de segunda a sexta, pela

manhã e pela tarde em turno contrário ao da frequência do aluno à escola.

Foto 10 - Alunos do programa Salvador Esporte e Cidadania – Acervo Pessoal

O coordenador do projeto em Salvador, Ricardo Santana (foto), atentou para

a importância do projeto e para a procura efetiva pelas comunidades próximas. Foi

possível acompanhar uma manhã de atividades, turno em que, segundo os

instrutores, há maior ocorrência de alunos: os alunos, separados por faixa etária,

com camisas patrocinadas pelo Camarote Salvador, num momento, corriam na

quadra da arena, em outro estavam sentados ouvindo as preleções de seus

instrutores. Com aquele grupo, foi possível acompanhar não só jogos e exercícios,

mas também brincadeiras e a interação entre eles, favorecida pelo amplo espaço da

praça.

131

Lançado no 2º semestre de 2013, o projeto Salvador Esporte e Cidadania atua nas comunidades de São

Lázaro, Alto de Ondina e Calabar, em Salvador (BA), oferecendo aulas de futsal e handebol a dezenas de

crianças. Com atividades orientadas por profissionais de Educação Física, o projeto atende a 100 crianças e

adolescentes de 7 a 17 anos que estejam matriculados em escola regular. Ainda, a iniciativa beneficia 100

adultos, entre pais e acompanhantes, com aulas de alongamento, caminhada e corrida de rua.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

99

Foto 11 - Coordenador do projeto passa instruções aos alunos – Acervo Pessoal

O outro instrutor do programa, que faz parte da comunidade de São Lazaro, e

alegou ser participante da entidade de moradores do bairro, elogiou o apoio do

Camarote e sinalizou também, positivamente quanto à reforma da Praça Luiz Sande.

Ele afirma que, com a reforma, a praça melhorou, não só esteticamente, mas

também se tornou mais funcional para os usuários.

Além desses ocupantes e usuários no estacionamento e nas quadras,

respectivamente, acontece outra forma de comércio na praça, o aluguel de parte do

espaço dos sanitários, permanentemente ocupados, por moradores de rua, onde é

feita a guarda de material de trabalho dos ambulantes da praia. Presenciei o

trabalho e a saída para casa, de um dos ambulantes da praia que deixa seus

pertences do dia a dia sob a vigilância dos ocupantes dos sanitários. Em cada

sanitário há uma família que mora e explora uma parte do equipamento público

como um depósito.

Essas pessoas transformaram a dificuldade dos antigos barraqueiros, que

hoje exercem seu comércio de forma precária na praia, pois tiveram suas barracas

de praia demolidas, em uma fonte de renda.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

100

Foto 12 - Vista dos sanitários da Praça Luiz Sande – Acervo Pessoal

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

101

Considerações Finais

Ao abordar a ocupação da Praça Luiz Sande, foi possível perceber que as

opiniões se dividem, alguns cidadãos apresentam preocupação com geração de

renda, manutenção dos espaços públicos, mas, principalmente com o uso privado

de espaços públicos e sua indisponibilidade, mesmo que temporária. Em comum,

apresentam a necessidade mais intensa do Estado na produção e manutenção

desses espaços.

A Praça Luiz Sande representa um potencial ambiental e turístico a ser

explorado, um elemento coadjuvante e reserva potencial destinada à ampliação da

ocupação imobiliária e cluster econômico, já amadurecido em suas perspectivas de

sedimentação e ampliação em unidades de receptivo hoteleiro consolidado. Diante

das possibilidades, tanto moradores, quanto comerciantes, prestadores de serviço e

investidores entendem esse lugar como fonte de oportunidades.

Muitas dessas oportunidades, contudo, podem significar interferências nas

condições preexistentes como comprovado pela ocupação que sedimentou o uso do

solo no bairro de Ondina, que cedeu margem à intensa ocupação. Ao desconsiderar

planejamentos, a exemplo daqueles da década setenta, que previam mais cautela

no planejar a urbe, deixou espaço remanescente, que apesar de diminuto diante da

extensão apropriada para edificações diversas (hotelaria e habitações verticais),

serve, em sua completude, ao usufruto da sociedade como as praças Luiz Sande e

Bahia Sol, sobras das proposições urbanísticas de ampla valia ao uso coletivo.

Ao longo do tempo, nem mesmo os potenciais ambiental e turístico de Ondina

favoreceram uma preservação mais esmerada, como os qualifica o PDDU. Apesar

da preocupação reconhecida e presente no plano de 1973, com a efetiva proteção

da área em questão, essas foram preocupações que, ao não se traduzirem em ação,

legaram um pesado passivo social.

Hoje, a discussão do espaço ocupado na praça reflete essas ações de 40

anos atrás e demonstram o prejuízo que um zoneamento frágil pode trazer ao

contexto da cidade. Talvez, se propostas do plano de 1973 tivessem derivado em

ações concretas, efetivadas ao longo desses anos, não se estivesse a discutir o

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

102

destino dos espaços coletivos de Ondina. Não é possível afirmar, mas, ao menos

sob certo aspecto, teríamos uma preservação mais ampla da paisagem costeira.

A intensa ocupação é um fator que restringe as transformações ao longo do

tempo por salientar fatores econômicos e sociais que necessitam ser superados em

virtude de grandes transformações do espaço urbano edificado, o que direciona a

forma como se desenvolverão os fenômenos urbanísticos. Desse modo, pode haver

dificuldade em definir os limites dos conceitos que podemos ou devemos aplicar ao

espaço urbano, quase sempre com prejuízo ao público e ao coletivo. Contudo, ao

zonear, apesar de não se resolverem todos os problemas, cria-se, com o

zoneamento, uma ferramenta que poderá auxiliar a discussão quanto aos usos

possíveis e efetivos do espaço.

As diversas ocupações em Ondina, na praça, demonstram uma presença do

Estado na determinação e manutenção, na cooperação e no subsídio, na permissão

e concessão de atividades, formas diversas de ocupação em que há variados graus

de privatização. Demonstram o decréscimo do coletivo público, valendo salientar

que coletivo não implica em público. Coletivo passa a ser um espaço de tudo,

indivíduos e usos diversos. Percebesse, daí, o crescimento do espaço coletivo

privado no espaço público. Os espaços podem ter usos coletivos, que podem se

configurar em público ou privado, seja no espaço público ou no privado, mas, no

caso do espaço público, essa configuração requer a anuência do Estado e se baseia

em um acordo ou consenso jurídico e institucional que, na praça, apresentam-se em

escalas diversas.

O aspecto das relações que ocorrem em espaços públicos de uso coletivo se

alterou, e essas relações e representações se transferiram a outros lugares,

principalmente por influência do consumo nos espaços privados de uso coletivo que

produzem um efeito de atração, a partir do valor agregado de serviços e facilidades.

Em contraponto, o Estado tem diminuído seu investimento em espaços coletivos

públicos e amparado ações do capital privado para criação de seus espaços de

consumo.

Essas relações, a partir das parcerias público-privadas, estão promovendo um

processo de privatização cada vez mais significativa do espaço público, que se torna

privatizado, mas preserva uma característica de coletivo, contudo mediado pelo

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

103

consumo, o que pode implicar em segregação, como a que ocorre com o Camarote

Salvador na Praça Luiz Sande.

Outra questão relevante é a aderência desses conceitos nos projetos da

gestão pública, que se alastram pelo país e, em diversas capitais, mudaram

profundamente a capacidade de articulação do capital com o Estado em detrimento

da capacidade de articulação e reação de grupos e organizações que lutam pelos

direitos coletivos, pela inclusão social e pelo direito à cidade.

Cada vez mais a privatização institucionalizada por governos cooptados a um

projeto de desenvolvimento que alcance os horizontes de uma cronologia política,

circunscrita a mandatos e reeleições, descredibiliza as relações com a sociedade, ao

fragilizar a participação popular, ao transgredir a legislação que permite a construção

de um consenso na destinação dos espaços urbanos e na sua habilitação a usos

coletivos e possíveis a qualquer cidadão.

Os usos, apesar de não definirem as noções de espaço, definem os espaços

no sentido das necessidades de seus usuários. As práticas dos usuários constituem

uma forma de domínio que se estabelece em função de um momento ou período de

fruição, que se aplica ao espaço coletivo seja em suas formas privada ou pública.

A dinâmica das noções de espaço estão presentes na ordem, na desordem,

no público e no privado e, como todos esses elementos estão contidos do coletivo,

esse último também é um princípio dinâmico. Essa dinâmica é que permite a

transposição entre público e privado, que promove a privatização e publicização de

espaços que assumem formas em níveis graduais ou absolutos.

Os espaços podem ser resultantes de estatutos que se somam e estão entre

a percepção do indivíduo e sua ação sobre eles e sobre si mesmo. Assim, os

movimentos dos indivíduos na sociedade marcam um caminho como um rastro na

grama, o que leva outros a seguirem essas impressões, em direção ao consenso e

ao dissenso entre o concebido e o percebido, para a construção do vivido.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

104

Referencial

ABRAHÃO, Sérgio Luis – Espaço Público do Urbano ao Político – 1ed. São

Paulo: FAPSEP/Annablume, 2008.

ALEX, Sun – Projeto da Praça: Convívio e exclusão no espaço público – 2 ed.

São Paulo: Editora Senac, 2011.

ARENDT, Hanna – A Condição Humana – Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2007.

BAUMAN, Zigmunt – Modernidade e Ambivalência – Rio de Janeiro, Jorge Zahar

Editor, 1999.

CARVALHO, Inaiá M. Moreira de; PEREIRA, Gilberto Corso (Orgs.) – Como anda

Salvador e sua Região Metropolitana – Salvador: Edufba, 2008.

CABANES, Robert [et. al.] (orgs.) – Saídas de Emergências: ganhar perder a vida

na periferia de São Paulo, 1ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

CARLOS, Ana Fani Alessandri; SOUZA, Marcelo Lopes de; SPOSITO, Maria

Encarnação Beltrão (Orgs) – A Produção do Espaço Urbano – agentes e

processos, escalas e desafios – São Paulo: Editora Contexto, 2011.

CERTEAU, Michel de – A Invenção do Cotidiano – Rio de Janeiro: Vol. 01, Vozes,

1996.

CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre – A Invenção do Cotidiano –

Rio de Janeiro: Vol. 02, Vozes, 1998.

CHOUAY, Françoise – O Urbanismo – São Paulo: Perspectiva, 2003.

CÓRTES, José Miguel G. – Políticas do Espaço: Arquitetura, gênero e controle

social – São Paulo: SENAC, 2008.

CORREIA, Roberto Lobato – Sobre agentes sociais, escala e produção do

espaço – (In) A Produção do Espaço Urbano – agentes e processos, escalas e

desafios – São Paulo: Editora Contexto, 2011.

Da MATTA, Roberto – A casa & a rua- Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.

DELGADO, Manuel – El animal público – Barcelona, Espanha : Editorial Anagrama,

1999.

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

105

DUBY, Georges – História da vida privada – vol 2: da Europa feudal à Renascença

- São Paulo: Cia das Letras, 2009.

GÜELL, José Miguel Fernández – Planificación estratégica de ciudades: nuevos

instrumentos y processos – Barcelona, Editorial Reverté, 2006.

HABERMAS, Jürgen – Mudança estrutural da Esfera Pública – 2ed. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

HAESBAERT, Rogério – O Mito da Desterritorialização – 6ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2011.

JACOBS, Jane – Morte e Vida nas Grandes Cidades – São Paulo, Martins Fontes,

2003.

JEUDY, Henri Pierre & JACQUES, Paola Berenstein (Orgs.) – Corpos e Cenários

Urbanos – Salvador: Edufba, 2006.

JÚNIOR, Milton Esteves; MONTOYA URIARTE, Urpi (Orgs.) – Panoramas

Urbanos: reflexões sobre a cidade – Salvador, Bahia: Edufba, 2003.

LEFEBVRE, Henri – A revolução Urbana – Minas Gerais: Editora UFM, 1999.

_______________ – La production de l’espace, 4 ed. Paris: Editions Anthropos,

2001. (Tradução de Doralice Barros e Sergio Martins do original primeira versão

início fev.2006).

MACEDO, Silvio Soares – Produção da paisagem urbana contemporânea

brasileira o final do século 20, (In) Paisagem e Ambiente, São Paulo: USP, 2001.

_____________________ – Espaços Livres – (In) Paisagem e Ambiente, São

Paulo: USP, 1995.

OLIVEIRA, Marcio Pinon de – Para Compreender o “Leviatã Urbano” – A

cidadania como nexo político-territorial – (In) A Produção do Espaço Urbano –

agentes e processos, escalas e desafios – São Paulo: Editora Contexto, 2011.

PECHMAN, Robert Moses – Os excluídos da rua: ordem urbana e cultura

popular, (In) Imagens da Cidade séculos XIX e XX, São Paulo: FAPESP, 1993

SILVA PINTO, R. I. B. P. – A Praça na História da Cidade, o caso da Praça da Sé:

suas faces durante o século XX (1933/1999). In: Hugo Gama; Jaime Nascimento.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

106

(Org.). A Urbanização de Salvador em Três Tempos - Colônia, Império e República.

1ed. Salvador: Fast Design, 2011, v. II, p. 241-285.

SAMPAIO, Heliodório – Dez necessárias falas – Salvador: Edufba, 2010.

SANTOS, Milton – A Natureza do Espaço – Técnica e Tempo. Razão e Emoção –

São Paulo: USP, 1996.

_____________ – O espaço do cidadão – São Paulo: Nobel, 1993.

SCHEINOWITZ, A. S. – Macroplanejamento da Aglomeração de Salvador –

Salvador: EGBa, 1998.

SEDHAM, Cadernos da Cidade – Uso e Ocupação do Solo – Salvador: Vol. 1,

2009.

SENNETT, Richard – O declínio do homem público: As tiranias da intimidade –

São Paulo: Cia das Letras, 1999.

SERPA, Angelo – Fala, periferia! Uma reflexão sobre a produção do espaço

periférico metropolitano, Salvador: UFBA, 2001.

_____________ – O espaço público na cidade contemporânea – São Paulo:

Edufba/Ed. Contexto, 2007.

SILVA, Breno & GANZ, Louise – Lotes Vagos, ocupações experimentais – Belo

Horizonte, Minas Gerais: ICC, 2009.

SILVA, Maria da Glória Lanci da – Cidades Turísticas – Identidades e Cenários de

Lazer – 1ed. ALEPH, São Paulo, 2004.

SITTE, Camillo – A construção das cidades segundo seus princípios artísticos

– São Paulo: Editora Ática, 1989.

SOUZA. Marcelo Lopes – Fobópole – o Medo Generalizado e a Militarização da

Questão Urbana – Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

TORRES, Carlos – Bahia Cidade Feitiço – Salvador, Bahia: 1969.

TOSHIO, Mukai et al. – Parceria Público-Privadas – 2 ed. São Paulo: Editora

Forense Universitária, 2006.

URRY, John – O Olhar do turista: lazer e viagem nas sociedades

contemporâneas – 3 ed. São Paulo: Studio Nobel, SESC, 2001.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

107

VASCONCELOS, P. A. - Salvador: transformações e permanências (1549-1999)

– 1ed. Ilhéus: Editus, 2002.

Referencias Digitais:

CALDEIRA, Junia Marques – A Praça Brasileira: trajetória de espaço urbano –

origem e modernidade – 2007, 434 p. Tese (Doutorado em História) Instituto de

Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo:

2007.

LOBODA, Carlos Roberto; De ANGELIS, Bruno Luiz D. – Áreas verdes públicas

urbanas: Conceitos, usos e funções – Paraná jan/jun 2005, disponível em:

revistas.unicentro.br /index.php/ ambiencia/ article/download/ 157/185 acesso em: 07

ago. 2013.

ESCÓSSIA, Liliana da; KASTRUP, Virgínia – O Conceito de Coletivo como

superação da dicotomia indivíduo-sociedade – Psicologia em Estudo, Maringá,

v.10, n.º02 p. 295-304, maio/agosto 2005.

EULÁLIO, Marcelo Martins, - A significação do público e do privado – A

concepção clássica de Rousseau e concepção moderna Habermas Revista

Interdisciplinar NOVAFAPI, Teresina. v.3, n.1, p.43-48, Jan-Fev-Mar. 2010.

Disponível em: http://uninovafapi.edu.br/ sistemas/ revistainterdisciplinar/

v3n1/reflex/rev3-v3n1.pdf. acesso em: 12 jun. 2013.

GRAÇA, Miguel Silva – Espaços Públicos e uso Colectivo de Espaços Privados

– Diponível em: ecultura.sapo.pt/Anexos/«EspaçosPublicos%26Privados»%20.pdf.

acesso em: 05mai. 2013.

E-books:

MARX, Karl – Para uma crítica da Economia Política – (1857), Rocket Edition de

1999 a partir de html www.jahr.org.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Ufba...Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT In large urban centers, social relations deteriorate, not by

108

Periódicos:

Atarde, 22/08/1999, 23/12/2011.

Correio da Bahia, 19/03/1981, 19/03/2006, 27/10/2013.

Diário Oficial do Município de Salvador, 16/09/2011 – 5454. 23/04/2013 – 5839.

Tribuna da Bahia, 28/08/1988.

Sites:

http://www.cepam.org/cursos-e-eventos/material-de-apoio/encontro-

tem%C3%A1tico-sobre-uso-coletivo-do-espa%C3%A7o-p%C3%BAblico-para-

eventos.aspx acesso em 10/10/2013

http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7432:acao-

civil-publica-pede-embargo-de-camarote-em-salvador-&catid=36:destaque2 acesso

em 24/11/2013

http://movimentodesocupa.wordpress.com/ acesso em 07/05/2012

http://www.youtube.com/watch?v=2cTp0Eprf1A

http://www.panoramio.com/user/3797578 Ondina e Rio Vermelho ao fundo - 1978.