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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL NAS REDES DO ARRASTO: ATIVIDADE E SAÚDE DOS PESCADORES DO MUNICÍPIO DE LUCENA (PB) João Batista Pereira Neto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIAMESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

NAS REDES DO ARRASTO: ATIVIDADE E SAÚDE DOS

PESCADORES DO MUNICÍPIO DE LUCENA (PB)

João Batista Pereira Neto

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NAS REDES DO ARRASTO: ATIVIDADE E SAÚDE DOS

PESCADORES DO MUNICÍPIO DE LUCENA (PB)

João Batista Pereira Neto

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Psicologia Social, no Centro de

Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade

Federal da Paraíba, como requisito para obtenção do

título de Mestre em Psicologia Social.

Orientadora: Profª. Drª. Mary Yale

Rodrigues Neves.

João Pessoa

2007

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NAS REDES DO ARRASTO: ATIVIDADE E SAÚDE DOS

PESCADORES DO MUNICÍPIO DE LUCENA (PB)

João Batista Pereira Neto

Dissertação de mestrado submetida à comissão julgadora nomeada

pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, no Centro de

Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal da Paraíba -

UFPB, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em

Psicologia Social.

Avaliado por:

____________________________________

Orientadora: Profª. Drª. Mary Yale Rodrigues Neves

____________________________________

Prof. Dr. Anísio José da Silva Araújo

____________________________________

Prof. Dr. José da Silva Mourão

João Pessoa

2007

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PEREIRA NETO, João Batista.Nas redes do arrasto: atividade e saúde dos pescadores do

município de Lucena (PB)João Batista Pereira Neto. João Pessoa: UFPB/CCHLA, 2007.

111p.Dissertação – Universidade Federal da Paraíba, CCHLA.1. Pesca artesanal. 2. Atividade de trabalho 3. Saúde do trabalhador

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, a Deus e às forças invisíveis da natureza que sempre estão disponíveis

para aqueles que com elas se conectam.

À minha querida mãe, Maria das Neves, que nunca deixou de doar seu amor

incondicional, educando-me da melhor forma possível e representando fielmente o

espírito da grande Mãe Criadora.

À todos meus familiares que direta ou indiretamente estão ligados energeticamente à

mim, meus irmãos Hugo, Domingos, meu padrasto Carlos Antônio, meu pai João

Batista Júnior, meu tio João de Melo, meus avós maternos Domingos e Iracema (com

muita saudade) e demais tias, primos e primas.

À minha família terrestre da irmandade do Santo Daime e da Apôitchá em Lucena/PB:

às madrinhas Selma e Andréa, ao Marcos, Abraão, Dani, Michele, ao cidadão Silva e

Izabel, ao padrinho Berg, ao Juan, Lena, Paulo, Cristiano, ao irmão peruano enviado

pelos incas, Victor Manuel, às crianças e a todos que fazem parte desta grande missão;

estes que nunca perderão o fio da caridade aqui nesta existência.

Aos grandes amigos que sempre se depuseram

em estar presente, compartilhando de seus saberes, talentos e alegrias, como o poeta de

Princesa Nelson e sua companheira Marcinha, a professora de inglês Andréa, os amigos

da UFPB e outros tantos personagens dessa história.

À professora Mary Yale, que acreditou nesta idéia e somou forças para que tudo isso

viesse a se realizar, lembrando-se sempre de nosso saudoso Diomedes em suas

qualidades e certezas. Á todos que fazem parte do GPST – Grupo de Pesquisa em

Psicologia Social, Subjetividade e Trabalho.

À minha querida uruguaia-baiana Cecília Nizarala, com seu grande amor,

companheirismo e inteligência inestimáveis. Que Deus sempre abra nossos caminhos

nesta vida e na de nossa criança!

Aos pescadores artesanais de Lucena/PB e a todos os trabalhadores que lutam pela

sobrevivência de suas famílias.

Ao Mestre Raimundo Irineu Serra e ao Padrinho Sebastião Mota de Melo, por mostrar-

nos mais um caminho de volta pra Casa.

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RESUMO

PEREIRA NETO, João Batista. Nas Redes do Arrasto: Atividade e Saúde dos

Pescadores do Município de Lucena (PB). Orientadora: Mary Yale Rodrigues

Neves. João Pessoa. UFPB/CCHLA. Dissertação.

O presente estudo teve como objetivo analisar a atividade de pesca artesanal de arrasto

de praia, incidente no município de Lucena (PB), e sua relação com a saúde dos

pescadores. Para isso, contamos com uma abordagem multidisciplinar, com ênfase nas

contribuições da ergonomia situada da atividade (Wisner, 1987; Daniellou, Laville &

Teiger, 1989; Guérin et al., 2001) e da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1992,

Dejours & Abdoucheli, 1994; Cru, 1987). Na metodologia empregada, contou-se com a

realização de entrevistas semi-estruturadas, observações da atividade, visitas e registros

de campo. Ao todo, foram realizadas 12 entrevistas, diversas visitas e duas observações.

A partir da análise desse material, constatamos que, no município de Lucena, a pesca de

arrasto está calcada, fundamentalmente, na formação de redes informais, cujos

pescadores, em sua maioria, inseriram-se precocemente. Apreendemos as condições e a

organização dessa atividade, abordando aspectos vinculados aos instrumentos

utilizados, às formas de pagamento e a produção coletiva de regras de trabalho - as

principais delas são o “esperar a vez” de lançar a rede, ajudar no “encalhe” de outra rede

e a suspensão da jornada de trabalho quando o tempo não está favorável. No que tange

aos sintomas de adoecimento, os participantes da pesquisa referem-se, principalmente, a

problemas osteomusculares, dermatológicos e oftalmológicos. Em relação ao

sofrimento, este é vivenciado pelos pescadores, sobretudo, através do desânimo frente à

“falta de produtos do mar”, às condições de pagamento e ao não-reconhecimento social

do seu trabalho. Para enfrentar essas formas de sofrimento, os pescadores têm utilizado

algumas estratégias defensivas, como o uso de “brincadeiras” durante a realização da

atividade, com o objetivo de amenizar o “peso do trabalho”. Por outro lado, observamos

entre os pescadores vivências de prazer oriundas de um contato direto com o mar e toda

a carga simbólica associada a esta interação ao longo de anos de trabalho, bem como a

possibilidade de extrair, desse ambiente, produtos que viabilizam seu sustento, e que são

fartamente utilizados e valorizados em nossa sociedade.

Palavras-chave: Pesca; Trabalho; Saúde.

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ABSTRACT

PEREIRA NETO, João Batista. In the Trawling net: Activity and Health of Lucena´s

Fishermen. Adviser: Mary Yale Rodrigues Neves. João Pessoa. UFPB/CCHLA.

Dissertation

The present work aims at the analysis of the relationship between the artesian trawling

net fishing activity and the health condition of the fishermen in Lucena district (PB). It

was applied a multidisciplinary approach emphasizing both the situated ergonomic

activities (Wisner, 1987; Daniellou, Laville & Teiger, 1989; Guérin et al., 2001) and the

psychodynamics works (Dejours,1992, Dejours & Abdoucheli, 1994; Cru,1987). The

methodology used was semi-structured interviews, observation, visits and field records.

From the analysis of the given material, it was seen that in Lucena, the trawling net

fishing activity is informal and the fishermen are very early inserted in it, forming a

friendly net. It was also observed the conditions and the organisation concerning to

payment, and to the production of some collective work rules such as ‘the turning’ to

fish, the helping when to encalhe and the decision to stop the activity due to bad

weather conditions. Considering health aspects, the individuals point out to Osseo-

muscle problems as well as dermatological and sight matters. There is also a suffering

situation mainly provoked by the “restrict amount of see food”, and by the social non-

recognition of the fishermen work. To avoid suffering, as a defensive strategy, the

fishermen play some games while working to minimise the ‘hard work’. On the other

hand, it was observed the pleasure of these individuals in dealing with the see and with

all the symbols it may bring along the years of such experience and in getting food for

their own sustainability which is so value in our society.

Word-key: fishing activity Work; Health.

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SUMÁRIO

APESENTAÇÃO ------------------------------------------------------------------ 1

INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------- 4

CAPÍTULO I: MARCO TEÓRICO DE INVESTIGAÇÃO ----------------------- 8

1. Ergonomia Situada da Atividade -------------------------------------------- 12

1.1. Trabalho Prescrito e Trabalho Real ----------------------------------- 15

1.2. Variabilidade e Atividade de Regulação ----------------------------- 17

1.3. Coletivo de Trabalho ---------------------------------------------------- 19

1.4. Carga de Trabalho ------------------------------------------------------- 21

2. Psicodinâmica do Trabalho -------------------------------------------------- 23

2.1. Estratégias de Defesa --------------------------------------------------- 25

2.2. Sofrimento Patogênico e Sofrimento Criativo ----------------------- 26

2.3. Inteligência Prática ------------------------------------------------------ 27

2.4. Cooperação, Coletivo e Regras de Trabalho ------------------------- 29

2.5. Dinâmica do Reconhecimento ----------------------------------------- 31

CAPÍTULO II: ASPECTOS GERAIS DA PESCA ------------------------------- 34

1. Resquícios Históricos: da Pequena Coleta à Captura em Grande Escala ------------------------------------------------ 34

1.2. Revolução Industrial da Pesca e o Impacto da Produção Capitalista ---------------------------------- 39

2. Panorama Atual da Pesca ----------------------------------------------------- 49

2.1. A pesca no Brasil -------------------------------------------------------- 51

Desenvolvimento da Atividade, Legislação e Incentivos Pesqueiros 53Crise do Setor e os Modelos de Gestão --------------------------------- 63Índices da Pesca na Paraíba ----------------------------------------------- 68

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CAPÍTULO III: METODOLOGIA DA PESQUISA ------------------------------ 73

1. Perspectiva Metodológica ---------------------------------------------------- 73

2. Participantes da Pesquisa ----------------------------------------------------- 79

3. Procedimentos e Instrumentos ----------------------------------------------- 81

3.1. Trabalho de Campo ----------------------------------------------------- 81

As entrevistas --------------------------------------------------------------- 83Observação da atividade -------------------------------------------------- 86Registro de campo --------------------------------------------------------- 87

3.2. Análise de conteúdo ----------------------------------------------------- 89

CAPÍTULO IV: ATIVIDADE DE ARRASTO DE PRAIAE A SAÚDE DOS PESCADORES -------------------------------------------------- 93

1. O Contexto: Lucena/PB ------------------------------------------------------ 93

1.1. História da Pesca no Município: da Caça empresarial da Baleia à Pesca Artesanal ---------------------------------------------------------- 95

1.2. A Colônia de Pescadores ---------------------------------------------- 991.3. Tipos de Pesca Atuais ------------------------------------------------- 100

2. Inserção Profissional: O Arrasto como “Refúgio” Ocupacional ------ 101

2.1. Outras Atividades Realizadas ---------------------------------------- 109

3. Condições e Organização do Trabalho ------------------------------------ 110

3.1. Formação das Turmas de Arrasto ------------------------------------ 1113.2. O Pagamento: divisão do “Quinhão” -------------------------------- 1133.3. Instrumentos de Trabalho --------------------------------------------- 1183.4. No Curso da Atividade ------------------------------------------------ 127

Variabilidades do Trabalho --------------------------------------------- 1353.5. Coletivos e Regras de Trabalho -------------------------------------- 141

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4. A Saúde dos Pescadores ---------------------------------------------------- 1444.1. Sintomas Físicos Relacionados ao Trabalho ----------------------- 1454.2. Vivências Subjetivas de Sofrimento e Prazer ---------------------- 148

Sofrimento e Defesas ---------------------------------------------------- 149Dinâmica do Reconhecimento ----------------------------------------- 152Sentido e Prazer no Trabalho ------------------------------------------- 154

CONDIDERAÇÔES FINAIS ------------------------------------------------- 157

BIBLIOGRAFIA --------------------------------------------------------------- 161

ANEXOS ------------------------------------------------------------------------ 167

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APRESENTAÇÃO

Desde o início de minha jornada no curso de psicologia, sempre busquei

motivação e inspiração para conhecer novos horizontes da psique humana em suas

diversas formas de expressão e entendimento. Essa busca não parou, e creio não cessar

enquanto estiver na jornada evolutiva de minha formação como psicólogo e como ator

social integrado a determinado tempo e espaço.

As experiências vivenciadas foram as mais diversas. Posso citar aqui a

militância no Centro Acadêmico (CA) de psicologia, muito importante para meus

esclarecimentos epistemológicos, políticos e institucionais. Ainda no início do curso,

participei de um grupo de psicólogos experientes que trabalhavam com psicoterapias em

grupo, com base na relação entre a psicologia e a arte.

Participei da realização de trabalhos na área da psicologia social experimental

(etno-psicologia), com financiamento de pesquisa transcultural entre Brasil e México

pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC), vinculada ao

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); e na

área de economia solidária, com a obtenção de bolsa proveniente do Programa de Bolsa

de Extensão (PROBEX), da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da

Universidade Federal da Paraíba (PRAC/UFPB). Nesse mesmo trabalho de incubação

de empreendimentos solidários, adquiri bolsa de estágio do Programa Nacional de

Incubadoras de Cooperativas Populares (PRONINC), com recursos advindos da

Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), em parceria com a Rede Universitária

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UNITRABALHO, que reúne 92 universidades em todo o país que lidam com a temática

do trabalho humano.

Atualmente, estou me interessando, também, na área clínica e holística da

psicologia, o que me possibilitou realizar palestras e cursos em instituições e encontros

de intervenção social relativos aos temas da humanidade, espiritualidade individual e

equilíbrio planetário.

O breve acúmulo dessas experiências fez-me perceber a necessidade de retribuir

à sociedade brasileira os benefícios que minha formação em universidade pública pôde

oferecer.

Foi, então que, ao concluir a licenciatura plena em psicologia, optei por fazer

mestrado em psicologia social do trabalho pela UFPB, em 2004. Os motivos que me

levaram a querer estudar o trabalho de pesca artesanal de arrasto de praia no município

de Lucena/PB, e sua relação com a saúde dos pescadores, se somam às estratégias de

trabalho educativo e social realizado pela Ong. APÔITCHÁ (Associação de Apoio ao

Trabalho Cultural, Histórico e Ambiental).

Minha participação nessa instituição sem fins lucrativos se deu desde o início de

suas atividades, com a elaboração e realização do projeto “Rede Participativa: Leitura,

Escrita e Meio Ambiente”, em fevereiro de 2002. O projeto atua junto com a

comunidade local em parceria com instituições públicas e privadas, visando o

fortalecimento das escolas públicas mais carentes do município e priorizando a

formação integral e inclusão cidadã de crianças e adolescentes em situação de risco e de

vulnerabilidade social, por meio de oficinas que estimulam a reflexão crítica da

realidade através da leitura, da escrita e da análise da problemática sócio-ambiental

existente na cidade.

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Como boa parte das crianças envolvidas direta ou indiretamente neste trabalho

educativo são filhos e/ou filhas de pescadores artesanais do município, decidi fazer, do

presente estudo, uma possível alavanca para o melhoramento das condições de trabalho

e de vida dessa população, na medida em que este sirva, pelo menos inicialmente, de

diagnóstico da situação laboral vivenciada cotidianamente pelos pais/pescadores.

O trabalho de arrasto de praia, além de ser uma maneira de garantir a

sobrevivência de muitas famílias, como uma das poucas possibilidades de renda

existentes na cidade, faz parte da história e da identidade cultural desses trabalhadores e

seus filhos.

Nesse sentido, acreditamos que a presente iniciativa de estudo possibilitará uma

reflexão sobre a pesca local, principalmente a pesca de arrasto de praia, na tentativa de

re-significar o sentido de ser pescador de arrasto. Como desdobramento da pesquisa,

esperamos poder articular os diferentes pontos de vista dos atores socais envolvidos

direta ou indiretamente com a atividade, para daí poder constituir parcerias que

viabilizem a construção coletiva de melhorias nas condições de trabalho e de vida dessa

população.

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INTRODUÇÃO

Nas sociedades contemporâneas, o trabalho tornou-se um elemento essencial de

análise acerca dos aspectos dinâmicos que determinam as condições de vida e de

existência do ser humano em sua relação com os outros e com o seu meio (Schwartz,

1992; Antunes, 1995).

Segundo Athayde (1996), o trabalho é um mediador de processos relacionais

entre o ser humano e a natureza, bem como da relação entre os seres humanos como

espécie vivente. Para este autor, o homem é produto e produtor da sociedade e do meio

em que vive, passível, em certa medida, de compreender e determinar suas próprias

condições de saúde e doença. Com essa perspectiva, o autor problematiza o

entendimento acerca da doença e da saúde na vida dos seres humanos, crítica esta que

será mais bem explicitada nos parágrafos que se seguem.

Dentro do exposto, o objetivo geral do presente estudo consiste em analisar a

situação de trabalho e a saúde dos trabalhadores da pesca artesanal de arrasto de praia

incidente no município de Lucena/PB.

Justificamos a importância do presente estudo pela necessidade de se produzir

conhecimento, à luz da psicologia do trabalho, relativo à promoção de saúde e renda em

comunidades tradicionais, e em nosso caso, a comunidade pesqueira de Lucena.

Em nossas análises, ressaltamos a crise nacional a qual o setor de pesca vem

passando, desde os anos 60, quando foram maciços os incentivos públicos para o

desenvolvimento de sua produção industrial, sem levar em conta as limitações

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ambientais dos recursos naturais disponíveis , em detrimento da manutenção e apoio à

pesca extrativa artesanal (Silva, 1972; Diegues, 1983; Mello, 1988; Cardoso, 1996).

A pesca artesanal é entendida como aquela sendo realizada dentro dos moldes da

pequena produção mercantil de base familiar e comunitária que comporta, em alguns

casos, a produção de pescadores-agricultores e se caracteriza pela utilização de baixa

tecnologia (Diegues, 1983, 1988).

No Brasil, existem cerca de um milhão de pescadores artesanais exercendo essa

atividade. Por ser uma atividade de base familiar, considera-se que 5 milhões de

pessoas, em média, retiram o seu sustento das lides pesqueiras nacionais (Cadernos de

Resoluções, 2003).

Como uma modalidade específica do modo artesanal de extração, a pesca de

arrasto de praia é uma das mais tradicionais praticadas no município de Lucena/PB,

possibilitando, em certa medida, a sobrevivência e a alimentação de muitas famílias.

Para entender a relação trabalho/saúde na atividade, recorremos à noção de

saúde desenvolvida por autores como Cangüilhem (1995), Dejours (1992) e Laurell

(1989). A discussão colocada faz referência ao complexo fenômeno que é a vida do

trabalhador, ao se desenvolver numa constante busca individual e coletiva em

administrar as exigências e pressões do trabalho. Por intermédio da mobilização das

forças criativas e do uso de seu corpo, os trabalhadores extraem energias necessárias

para a realização de sua atividade e mantêm-se em um mínimo de equilíbrio

psicossomático, equilíbrio este sempre instável e em vias de ser adquirido.

Ao investigar a atividade de trabalho e sua relação com a saúde dos pescadores,

contamos com uma abordagem pluridisciplinar, apoiando-nos principalmente na

ergonomia situada da atividade (Wisner, 1987; Daniellou, Laville & Teiger, 1989;

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Guérin et al., 2001) e na psicodinâmica do trabalho (Damien Cru, 1987; Dejours, 1992;

Dejours & Abdoucheli, 1994).

A ergonomia situada fornece-nos uma importante contribuição, ao atentar para

alguns fatores dinâmicos e para a complexidade de toda e qualquer atividade de

trabalho, com especial atenção na discrepância entre trabalho prescrito e trabalho real,

ressaltando que, em todo processo de trabalho, existem variabilidades interferindo na

sua realização. Ela também se preocupa em analisar as possíveis conseqüências das

cargas de trabalho para a saúde física, cognitivo e mental dos trabalhadores, além de

procurar entender a construção e o funcionamento dos coletivos de trabalho (Wisner,

1987; Daniellou, Laville & Teiger, 1989; Guérin et al, 2001).

A apropriação que fazemos da psicodinâmica do trabalho está relacionada ao

suporte que esta disciplina nos fornece, ao investigarmos os temas relacionados à saúde

mental e ao trabalho, buscando compreender as vivências subjetivas de prazer e

sofrimento dos trabalhadores, a partir, principalmente, de sua relação com a organização

do trabalho (Dejours, 1992; Dejours & Abdoucheli, 1994).

Neste sentido, para alcançarmos o objetivo geral desta pesquisa, que consiste em

analisar a relação entre trabalho e saúde na pesca artesanal de arrasto de praia no

município em Lucena/PB, elencamos os seguintes objetivos específicos de nosso

estudo:

• Apreender a organização e as condições de trabalho no arrasto de praia;

• Identificar as regulações elaboradas pelos pescadores para a realização da

atividade;

• Investigar as vivências subjetivas de prazer e sofrimento e os processos de

adoecimento vinculados ao trabalho;

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• Conhecer os mecanismos de proteção à saúde e as estratégias de defesa

desenvolvidas por estes;

Do ponto de vista formal, o presente texto encontra-se estruturado em quatro

capítulos. No primeiro capítulo, apresentamos os aportes teóricos que subsidiam nossa

investigação, a saber: discussão acerca da noção de saúde; uma apresentação da

ergonomia situada da atividade; e, por fim, uma explanação de alguns conceitos da

psicodinâmica do trabalho.

No segundo capítulo, contextualizamos minimamente a atividade de pesca no

mundo, abordando aspectos gerais de seu desenvolvimento ao longo da história.

Continuando o capítulo, apresentamos um panorama deste setor no Brasil e no estado da

Paraíba, destacando e afunilando algumas informações pertinentes ao objeto de nosso

estudo.

A postura investigativa, o caminho metodológico e as estratégias utilizadas na

construção e interpretação dos dados de nossa pesquisa estão expostos no capítulo

terceiro.

Por fim, no quarto capítulo, faremos uma breve apresentação do contexto de

nosso estudo e uma análise da dinâmica do trabalho no arrasto de praia e sua relação

com a saúde dos pescadores, tomando por base as vivências intersubjetivas e as

condições de vida compartilhadas cotidianamente por esta população.

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CAPÍTULO I

Marco Teórico de Investigação

Para investigarmos a relação trabalho/saúde numa dada atividade, faz-se

necessário inicialmente apresentarmos as noções de saúde existentes, pois cada uma

dessas concepções determina o modo de se entender o surgimento das enfermidades

relacionadas ao ser humano, e em nosso caso, entre este e o seu trabalho.

Na definição da Organização Mundial de Saúde - OMS, a saúde é entendida

como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste,

somente, em uma ausência de doença ou enfermidade”. Devido à sua insuficiência

conceitual, algumas críticas a esta noção de saúde foram elaboradas para dar conta da

complexa dinâmica deste fenômeno em nossa sociedade atual (Canguilhem, 1995;

Dejours, 1993; Laurell, 1989).

Canguilhem (1995) coloca a saúde e a doença como dimensões constitutivas de

um mesmo processo dinâmico que é a vida, estando cada uma dessas inserida na outra.

Para este autor, a saúde se refere à capacidade de o ser vivo poder estabelecer novas

normas, em um processo de detectar e responder às infidelidades e às agressões do meio

em que se está inserido.

Diferentemente da simples adaptação, o ser humano procura enfrentar, a partir

de sua interpretação e reações, os desafios colocados no seu cotidiano, estabelecendo e

instituindo normas constantemente cambiantes. Ser normativo, para o autor, é diferente

de ser normal. Nessa noção de saúde, é perfeitamente natural e aceitável que o

indivíduo possa cair em enfermidade e depois recuperar-se, mediante seu

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funcionamento psíquico e orgânico; pois todas as circunstâncias vivenciadas na vida são

interligadas umas às outras e a saúde será sempre um aspecto a ser conquistado.

Este autor problematiza, também, o sentido que é aferido ao conceito de normal,

ao colocar que a palavra refere-se àquilo que é considerado desejável em determinada

sociedade, em determinada época e sob determinadas condições de vida. Para ele, o

anormal então seria associado ao feio, ao não aceitável, ao monstruoso, e não à

enfermidade propriamente dita; e o conceito de normal não seria assim sinônimo de

saúde, bem-estar, mas do que é socialmente aceito. Nesse sentido, os conceitos de

doença/enfermidade e saúde são construídos a partir de determinações sociais,

correlacionados com os limites e as capacidades biológicas vitais dos indivíduos de

dada sociedade em determinado tempo. Desta forma, a saúde não somente se refere à

ausência de doença, mas também aos mecanismos de regulação vital que o indivíduo

dispõe e manifesta no corpo, em suas escolhas e comportamentos.

Como um mecanismo complexo, a saúde é construída de maneira particular no

dia-a-dia, mediante valores orgânicos e sociais que o indivíduo traz em sua constituição

psicofísica, favorecendo a capacidade de criar e recriar seus instrumentos, suas maneiras

e normas, construindo e reconstruindo o meio em que vive (Canguilhem, 1995).

Levando-se em conta a variável biológica (orgânica) da vida humana, o autor

supracitado dirige ao próprio indivíduo a responsabilidade de detectar o momento em

que a doença tem seu início, por ela mesma fazer parte da experiência do vivido, e por

corresponder à perda gradativa de sua capacidade de normatização que ele próprio

vivencia, revelando, então, uma dimensão corpórea que só o indivíduo conhece.

Desta forma, a saúde se define a partir do investimento pessoal na busca do

enfrentamento das exigências do dia-a-dia, ou seja, de um cotidiano que exige uma

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constante mobilização subjetiva por parte do indivíduo, para dar sentido à sua existência

e manter-se na busca da auto-realização (Dejours, 1993).

Para Dejours (1993), a saúde é algo que se altera todo o tempo, como toda a

manifestação de vida. Este autor salienta a necessidade de se assumir o compromisso

com esta realidade sempre em mudança, e ressalta a importância do papel de cada

pessoa e dos grupos em estarem sintonizados com a tênue e complexa dinâmica entre

saúde e doença.

É dessa forma, então, que o indivíduo busca constantemente a possibilidade de

realizar seus desejos, traçando seu próprio caminho em direção ao bem-estar físico,

psíquico e social, elaborando processos individuais de realização, de acordo com a

dinâmica relacional de uma determinada coletividade.

Em se tratando da relação trabalho/saúde, Dejours (1993) considera o trabalho

como elemento fundamental para pensar a saúde e a vida humanas, não apenas em sua

relação negativa (sofrimento, enfermidade e doença), mas também em sua forma

estruturante e promotora de saúde, através das experiências de prazer e reconhecimento

que os indivíduos podem vivenciar na realização do seu trabalho.

Para este autor, a organização do trabalho pode contribuir para o aparecimento

ou agravamento do sofrimento, levando o trabalhador progressivamente a estados de

mal-estar, devido às pressões enfrentadas. Por outro lado, o trabalho pode ajudar na

subversão do sofrimento, transformando-o em prazer e ajudando no processo de

construção da identidade do trabalhador. Assim, pode ser mais fácil para uma pessoa

que trabalha defender sua saúde do que outra que esteja desempregada ou sem nenhum

tipo de ocupação.

No Brasil e na América Latina, o campo da saúde do trabalhador tem origem nas

lutas trabalhistas pelo direito à saúde nos ambientes de trabalho, assumindo, como

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categoria central de análise, o processo da relação trabalho/saúde. Diversas pesquisas

sobre a saúde do trabalhador experimentaram formas de estudo nas quais a experiência

e a subjetividade do trabalhador eram tidas como fonte central de informação. O intuito

era questionar os limites da medicina tradicional, quando esta se propõe explicar a

promoção de saúde e doença em determinado contexto social, sem considerar a

realidade e o estilo de vida dessas populações (Laurell & Noriega, 1989; Brito, 2001).

Para Laurell e Noriega (1989), a análise do trabalho não foi o ponto de partida,

mas o ponto de chegada da medicina social. Segundos esses autores, essa corrente de

pensamento tinha a necessidade de entender a constituição da saúde/doença, não

somente a partir dos processos bio-psíquicos, mas também procurou enfatizar o caráter

sócio-cultural na construção e determinação das patologias humanas. Eles entendiam a

saúde/doença como uma expressão concreta, manifestada pelo corpo humano em dado

momento histórico, sob determinadas condições ambientais e evolutivas do homem,

reconhecendo, dessa forma, a existência de certo nível de complexidade ao se buscar

descrever e explicar tal fenômeno. Procurou-se, então, conceber o ser humano como um

agente biopsicossocial, inserido em “modos de levar a vida”; ou seja, modos esses

compartilhados durante processos de inserção individual em grupos sociais de pertença.

Partindo desta perspectiva de análise, reafirmamos as considerações de Brito

(1998) quando esta salienta que a busca pela interdisciplinaridade e, se possível, pela

transdisciplinaridade é fundamental para se alcançar melhorias no âmbito do trabalho,

ao colocar em evidência a experiência vivida pelo trabalhador, e ao possibilitar a este

sua participação no processo de promoção de sua própria saúde.

Do mesmo modo, aproveitamos as contribuições de Neves e Athayde (1998), ao

pensar a saúde como uma sucessão de compromissos assumidos com a realidade, que se

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altera, que se conquista, que se define em um campo de negociação cotidiana em

direção à permanência da vida.

Desvendar a relação trabalho/saúde nos dias atuais é um desafio para os

pesquisadores e promotores de saúde coletiva. Tarefa não menos difícil por parte do

presente estudo.

Como já mencionado, para investigar a atividade de trabalho em sua relação

com a saúde dos pescadores de arrasto de praia, inspiramo-nos em algumas ferramentas

teórico-metodológicas da ergonomia situada da atividade (Wisner, 1987; Guérin et al.,

2001) e da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1992), as quais serão explanadas nos

itens que seguem.

1. Ergonomia Situada da Atividade

Etimologicamente, a palavra ergonomia significa, do grego, Ergon – trabalho e

Nomos – leis, normas e regras. A primeira definição de ergonomia surgiu na égide do

movimento industrial europeu, em 1857, e pretendia estudar a relação homem-máquina,

seguindo o modelo experimental das ciências naturais e aplicando conhecimentos da

fisiologia, anatomia, e psicologia (Vidal, 2002).

Quase um século depois, o uso oficial do termo se deu na Grã-Bretanha, em

1947, respondendo às demandas da defesa nacional britânica durante a II Guerra

Mundial. Somente por volta da década de 1950 que a ergonomia começa seu

desenvolvimento na França, com a criação do laboratório de ergonomia, que

inicialmente era denominado de “estudos de fisiologia” (Wisner, 1987).

Enquanto que o objetivo da ergonomia inglesa era o de adaptar a máquina ao

homem, na França, os estudiosos objetivavam adaptar as condições de trabalho às

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necessidades humanas, contrapondo-se a mera adaptação do homem à sua profissão.

Essa vertente da ergonomia apoiava-se em disciplinas como a fisiologia do trabalho, a

antropologia, a biomecânica e a psicologia científica e experimental da época

(Bonnardel, 1943, citado em Wisner, 2004).

A ergonomia francesa surge em decorrência dos parques industriais que foram

parcialmente dizimados. A Renault foi a primeira indústria francesa a criar um

laboratório industrial, voltado para o desenvolvimento dos estudos ergonômicos. É

nesse momento, em 1949, que Suzanne Pacaud elabora os princípios da atividade em

situação real, denominado depois por Obrendane e Faverge, como análise do trabalho,

em 1955. Para estes autores, o planejamento e a projeção de um posto de trabalho

deveriam ser inicialmente estudados por um levantamento de dados etnográficos da

atividade. Foi então que Alain Wisner, em 1966, formaliza a proposta e denomina-a de

análise ergonômica do trabalho – AET (Vidal, 2002).

Para Wisner (1987), a AET deveria se debruçar sobre um conjunto estruturado e

complementar, de diversas análises situadas de uma mesma empresa, a partir da

solicitação da demanda, com o objetivo de elaborar um diagnóstico para o corpo técnico

de engenheiros, setor geralmente responsável pela concepção e planejamento do

funcionamento e do produto industrial. A partir das queixas da demanda, a AET

definiria a natureza da problemática, para daí poder realizar análises globais e

sistemáticas sobre os determinantes da atividade em questão, mediante o estudo da

população de trabalhadores, do processo produtivo, do absenteísmo, entre outros fatores

que constituem a produção (Vidal, 2002).

A AET surge como um meio propício de identificação de fontes científicas, com

o objetivo de produzir teorias, métodos e conhecimentos que possibilitassem o

entendimento e a resolução dos problemas existentes em situações de trabalho. Por

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essas características, a AET configurou-se em uma orientação para uma nova forma de

intervenção ergonômica, denominada de ergonomia situada da atividade, que tem, como

centro de interesse, a intervenção na realidade específica de trabalho, a teorização do

conhecimento produzido sobre o trabalho e a busca pela interdisciplinaridade em suas

análises (Wisner, 2004).

Com a perspectiva de compreender o trabalho para transformá-lo, a ergonomia

situada da atividade busca inseri-lo dentro de um caráter mais global, proveniente de

questões econômicas, técnicas e sociais relativas aos trabalhadores; bem como numa

perspectiva mais específica de análise do funcionamento da própria empresa,

considerando seus efeitos à saúde coletiva, sem esquecer a perspectiva de alcance da

eficácia econômica desta (Guérin et al., 2001).

Segundo Athayde (1996), as investigações revelaram um cenário determinado

pela variabilidade das condições de trabalho, em que o esforço requerido pelos

trabalhadores é o de reduzir essa variabilidade, na tentativa de regular a produção,

através do uso voluntário de mecanismos cognitivos como previsão, antecipação e

prevenção de incidentes estranhos à rotina de trabalho. Tal achado demonstra e explicita

a existência constante da defasagem entre a prescrição sócio-técnica do trabalho e o

trabalho que realmente é concebido pelo trabalhador no momento de sua realização

(Daniellou, Laville & Teiger, 1989).

O trabalhador se defronta com aquilo que está no mundo, que escapa à técnica, à

norma e à prescrição, fazendo com que este faça uso de seu corpo, de sua experiência e

inteligência para dar conta das exigências sociais, econômicas e estruturais da atividade.

Para melhor compreendermos a função prática da ergonomia situada da

atividade, definiremos alguns conceitos e temas-chave que servem como categorias de

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análise no presente estudo, as quais são elas: trabalho prescrito e trabalho real;

variabilidade e atividade de regulação; coletivo de trabalho; e carga de trabalho.

1.1. Trabalho prescrito e trabalho real

Na ergonomia situada da atividade, os conceitos de tarefa e atividade são

denominados e associados aos conceitos de trabalho prescrito e trabalho real,

respectivamente.

A tarefa como trabalho prescrito é definida como aquilo que foi determinado

anteriormente pela gerência, visando o resultado da atividade a ser realizada, na medida

em que autoriza e legitima sua execução pelo trabalhador; sendo seu uso imprescindível

na organização de qualquer trabalho (Guérin et al., 2001; Daniellou, Laville & Teiger,

1989).

Tendo um caráter impositivo, a prescrição, por ser concebida separada dos

trabalhadores, gera constrangimentos durante a jornada de trabalho, levando-os a

administrar ativamente seus recursos físicos e mentais, para dar conta das variabilidades

que não são previstas pela prescrição técnica (Guérin et al., 2001).

Muniz (2000) afirma que, em situação de trabalho, podemos encontrar

referências ao conceito de tarefa não somente ligadas ao ambiente físico, mas inseridas

concomitantemente em uma dimensão histórica, de onde se processa a atividade. Este

autor ressalta que a prescrição, além de constituir as ordens de serviço e o planejamento

hierarquicamente antecipado pelo sistema sócio-técnico, ela também é constituída do

acúmulo histórico das inovações tecnológicas e organizacionais de determinada

atividade.

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Segundo Montmollin (citado em Muniz, 2000), existem três tipos diferentes de

tarefa: a tarefa prescrita, a tarefa para o operador e a tarefa efetiva. Retomando a

discussão anterior sobre a prescrição da atividade, o autor identifica a existência de uma

terceira tarefa que se encontra entre a tarefa prescrita e a que se realiza de forma efetiva

(atividade) no percurso da ação laboral. Neste caso, o autor define a tarefa para o

operador como uma releitura da tarefa prescrita que passa a ser interpretada pelo

operador, a partir de suas experiências e do acúmulo de conhecimento cultural, que é

construído pelos trabalhadores coletivamente, levando-os a orientar a realização de sua

atividade. Realizada a codificação da tarefa prescrita, o operador então põe em prática

suas forças físicas e psíquicas, realizando a tarefa efetiva, a qual Montmollin traduz

como sendo o trabalho real, a atividade (Muniz, 2000).

Para melhor entendermos os domínios cognitivos que estão presentes na

discrepância entre tarefa e atividade, apoiamo-nos nos achados de Guérin et al. (2001),

onde salientam que a tarefa não se constitui apenas da prescrição, mas também depende

das representações tanto da gerência quando dos trabalhadores para ser executada. É a

partir das representações dos trabalhadores que o indivíduo interpreta a tarefa e se

integra ao trabalho, construindo novos modos operatórios. Estes autores também nos

lembram da importância de atentarmos para as fontes das informações sobre os

determinantes da atividade em questão, a fim de detectar a perspectiva de suas

contribuições e a pertinência de sua veracidade para o contexto de análise.

Referenciando o já exposto, a atividade é então executada através do

compromisso assumido pelo operador de forma complexa. Ela se manifesta basicamente

através de dois aspectos: um externo ao indivíduo, relacionado à prescrição, aos

instrumentos e condições laborais; e o outro interno, que se configura nas diferentes

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partes que constitui o indivíduo - seu organismo, cognição, sua experiência de vida e

subjetividade (Daniellou, Laville & Teiger, 1989; Wisner, 1987).

O analista deve estar atento a esse conjunto de elementos estruturais para poder

identificar as conseqüências do trabalho para a saúde do trabalhador, bem como para

buscar promover o surgimento e a elaboração de competências e saberes laborais dos

próprios trabalhadores, enfatizando a eficácia de suas operações, a segurança no

trabalho e a qualidade da produção.

1.2. Variabilidade e atividade de regulação

Como já explanado, a toda prescrição se segue uma defasagem, a qual será

amenizada, a partir de um complexo investimento individual e coletivo na utilização dos

recursos disponíveis no momento da atividade, mediante as experiências e capacidades

dos próprios trabalhadores (Daniellou et al., 1989).

A defasagem entre o trabalho prescrito e o trabalho real se encontra no bojo das

discussões acerca da variabilidade no trabalho. Para Guérin et al. (2001), essa

defasagem genérica é constituída de duas grandes categorias: uma variabilidade normal,

que corresponde ao tipo de atividade em questão, mais ou menos previsível e

parcialmente controlada (mudanças climáticas do ano, variações sazonais da produção,

os diversos tipos de serviço e matéria-prima, etc); e uma variabilidade incidental, que

não é prevista e pouco controlável pelo sistema técnico gerencial (variações da

demanda, incidentes relacionados ao dispositivo técnico, etc).

Entretanto, conforme Piazza e Papet (1980, citado em Daniellou et al., 1989) e

Guérin et al. (2001), a manifestação da variabilidade em forma de incidente/acidente

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não surge de forma repentina, pois seu surgimento é gradativo e pode ser previamente

detectado pelos trabalhadores, mediante a percepção de sinais precursores à disfunção.

Ainda sobre a variabilidade do trabalho, é importante ressaltar que sua

manifestação se dá tanto na parte técnica da produção quanto através da variabilidade

intrínseca e inerente ao ser humano. Em relação ao segundo tipo de variabilidade, que

encontramos na natureza humana, Guérin et al. (2001) classificam-na em variabilidade

intra-individual, referente às mudanças internas de cada trabalhador, e variabilidade

inter-individual, que se manifesta nas relações entre os trabalhadores de um mesmo

processo produtivo, ou seja, no encontro das singularidades individuais.

Wisner (1987) e Daniellou at al. (1989) propuseram as três leis fundamentais da

noção de variabilidade: a) as capacidades físicas e psíquicas humanas variam de um

ciclo para o outro; b) os resultados de uma pesquisa breve não podem ser generalizados

para um período maior; e c) a diversidade entre os indivíduos não permite a adequação

perfeita do trabalho ao homem. Com estes achados, a seleção de pessoal então perde o

seu sentido em termos de escolher a pessoa certa para o cargo certo, ao mesmo tempo

em que a ação ergonômica passa a adequar o trabalho às necessidade dos trabalhadores.

De qualquer forma, as variações nas situações de trabalho sempre irão existir,

levando os trabalhadores a mobilizarem-se individual e coletivamente, com o objetivo

de regular sua atividade, mantê-la estável e sem incidentes. Segundo Daniellou et al.

(1989), uma atividade de regulação das variabilidades muitas vezes implica em

mudanças dos modos operatórios, na medida em que o trabalhador executa o seu

trabalho, com o intuito de manter a segurança, a qualidade e a quantidade produtiva

esperadas.

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É nesse momento que a eficiência do sistema é colocada à prova, pois a

regulação da atividade e a produção só são possíveis, mediante a articulação cognitiva

dos diversos meios e níveis de organização da atividade que o trabalhador faz uso para,

muitas vezes, infringir as normas anteriormente prescritas (Guérin et al., 2001;

Daniellou et al., 1989).

Segundo Muniz (2000), os achados sobre a regulação da atividade possibilitaram

o avanço nos estudos sobre o coletivo de trabalho. A partir das estratégias de

enfrentamento dos incidentes os trabalhadores garantem a produtividade e desenvolvem

competências construídas e compartilhadas no trabalho.

1.3. Coletivo de trabalho

A dimensão coletiva se faz presente em qualquer atividade de trabalho. Um fator

imprescindível para a auto-organização do trabalho no grupo é a cooperação (Athayde,

1996; Muniz, 2000; Figueiredo, 2001).

Para Athayde (1996), a atividade coletiva consiste na realização efetiva e

interdependente de uma tarefa por um grupo de trabalho, só sendo esta possível se a

mesma for compartilhada pelos indivíduos pertencentes a este grupo. Sendo assim, para

que haja atividade coletiva, deve haver também um coletivo de trabalho, o que, para

existir, é necessário a presença de certo número de metas a serem alcançadas, que

podem ser estas externas ao indivíduo, relativas aos resultados, às performances; ou

internas, que remetem às conseqüências do trabalho para o grupo em si mesmo, como:

carga de trabalho, coesão, conflito, regras de ofício, entre outras. Seus efeitos são

entendidos como o de retro-alimentação sobre a própria atividade do grupo,

organizando e estimulando os indivíduos para o trabalho.

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Os coletivos de trabalho reúnem, nas palavras de Athayde (1996), uma

“polivocidade” de enunciações, construída nas relações entre os indivíduos e

compartilhada, mediante acordos que possibilitam a expressão subjetiva e individual no

coletivo.

Buscando inspiração em Guérin et al. (2001), Athayde (1996) elabora uma

tipologia do trabalho coletivo em diferentes categorias de cooperação, denominando-os

de: coletivo de tarefa, em que os trabalhadores cooperam entre si na execução de uma

mesma tarefa; coletivo de linha, caracterizado pelo não contato direto entre os

trabalhadores, mas havendo dependência de resultados entre eles; coletivo de obra, que

difere do objetivo de tarefa porque as atividades simultâneas têm diferentes objetivos;

coletivo de regulação estrutural, que manifesta-se através da necessidade da organização

da atividade de outros e pelo conhecimento do conjunto da situação e antecipação das

tarefas engajadas; e coletivo de rede, em que uma realização ou acontecimento coletivo

se realiza independente da proximidade e da existência de um grupo formal.

Melhor esclarecendo sobre a cooperação, Athayde (1996) descreve as formas as

quais a cooperação pode ser observada pelo ergonomista, tendo em vista os tipos de

assistências, como por exemplo, as instruções de um operador antigo a um novato; as

fortes colaborações, que envolvem as ajudas entre operadores pelas mesmas

competências e funções; e da cooperação funcional complementar, em que uma função

complementa a outra. Para este autor, a comunicação é um dos grandes fatores para se

entender como se manifestam as atividades coletivas, assegurando a coordenação das

tarefas individuais e sendo o eixo comum das representações que orientam e controlam

a realização da atividade. É também a comunicação que reforça o sentido de identidade

e a função coletiva dos interlocutores, permitindo-os medirem os aspectos quantitativos

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(número, duração, freqüência) e qualitativos (os objetos, os modos postos em prática, os

papéis) do trabalho.

É através da comunicação que surgem as regras, as quais permitem aliviar as

insuficiências da organização do trabalho por intermédio do savoir-faire dos

trabalhadores, ao adaptarem as regras formais às condições e necessidades do momento,

aperfeiçoando a organização e o funcionamento do grupo (Cru, 1987; Athayde, 1996).

Para isso, são imprescindíveis o engajamento e a confiança recíproca entre os

trabalhadores. O compromisso assumido acerca do modo operatório negociado

coletivamente permite a autonomia individual e o compartilhamento de competências

historicamente desenvolvidas (Athayde, 1996).

1.4. Carga de trabalho

A carga de trabalho pode ser observada em diferentes tipos de incômodos que

atingem os trabalhadores, como os físicos, químicos, mecânicos, biológicos,

fisiológicos e psíquicos (Laurell, 1987).

O desgaste associado às cargas de trabalho pode ser definido como a perda da

capacidade efetiva e/ou potencial da biologia e do psiquismo humano. Como salientam

Laurell e Noriega (1989), só se chega a detectar a intensidade de uma carga de trabalho,

ao se realizar uma análise do processo de trabalho e dos elementos que inter-atuam entre

si e com o corpo do trabalhador. Muitas vezes, a carga de trabalho conduz ao desgaste

físico e mental, desenvolvendo sintomas como problemas osteomusculares, fadiga,

depressão, transtornos mentais, dependência química, entre outros.

Dois conceitos importantes da ergonomia fazem referência à carga de trabalho.

Um é o de contrainte,, que refere-se às pressões externas, exigências e limites impostos,

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ou seja, tudo o que, de certa forma, constrange o trabalhador; e o de astreinte, referente

às reações internas e orgânicas, decorrentes do processo de submissão do indivíduo ao

trabalho (Muniz, 2000).

Para Daniellou et al. (1989), a carga de trabalho se define, em boa parte, através

da observação da margem de manobra que o trabalhador dispõe no momento da

execução da atividade. Estes autores alertam para uma relação inversa entre a carga de

trabalho e a margem de manobra dos modos operatórios, isto é, quanto menor o número

dos modos operatórios – possibilidade de mudança pela margem de manobra – maior

será a carga de trabalho.

De certa forma, compartilhamos das contribuições de Neves (1999), quando esta

autora tece algumas críticas em relação ao conceito de carga de trabalho utilizado pela

ergonomia situada da atividade, sobretudo no que diz respeito ao fato de este conceito

ser associado principalmente aos aspectos fisiológicos e reduzir a análise da carga

mental aos componentes eminentemente cognitivos.

Mesmo com tais limitações no conceito de carga de trabalho, na medida em que

este se torna, algumas vezes, incapaz de fazer emergir uma compreensão mais

abrangente da inter-relação dos diversos elementos implicados na dinâmica da

atividade, consideramo-o em nosso estudo, na medida em que permite uma maior

visibilidade e descrição de aspectos importantes relativos às condições de trabalho.

Acreditamos ainda que a articulação desses conceitos da ergonomia com a noção

de organização de trabalho proposta por Dejours (1992) é fundamental nas análises do

contexto o qual estão submetidos os pescadores de arrasto de praia participantes de

nosso estudo, no sentido de nos esforçarmos em desvendar as vivências subjetivas

desses trabalhadores (Neves & Seligmann-Silva, 2006).

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2. Psicodinâmica do Trabalho

A psicodinâmica do trabalho é uma abordagem que vem sendo construída e

elaborada, a partir dos estudos realizados por uma das correntes da psicopatologia do

trabalho francesa (Athayde, 1996; Neves & Seligmann, 2003).

A psicopatologia do trabalho, que surge no final da II Guerra Mundial, mediante

o desenvolvimento dos estudos da psiquiatria e psicologia social, procurava identificar

as síndromes e doenças mentais caracterizadas pelas dificuldades que os trabalhadores

enfrentavam em exercer a atividade produtiva, concernente ao sistema de fábrica. Nesse

primeiro momento, estão em jogo as condições de sofrimento nas situações de trabalho

heterogestionário do taylorismo/fordismo. Na maior parte dos estudos, procurou-se

observar a relação entre as condições do trabalho e o desenvolvimento de somatizações

e patologias decorrentes da “inaptabilidade” corpórea e subjetiva dos trabalhadores,

inserindo-se em um modelo causalista de entendimento acerca da saúde mental no

trabalho (Athayde, 1996).

No decorrer de seu desenvolvimento, início dos anos 1970, a psicopatologia do

trabalho concentra seu interesse de estudos não mais estritamente no pólo da doença

mental, mas lança-se para o entendimento das estratégias psíquicas elaboradas pelos

trabalhadores em situação de trabalho. Acontece então uma virada epistemológica no

desvendamento dos mecanismos do aparelho psíquico diante das situações laborais

(Neves, 1999).

Um dos principais nomes e grande precursor da construção teórica desta nova

vertente, Christophe Dejours, tornou-se uma referência na área do conhecimento no

campo da saúde mental no trabalho. Foi, a partir de 1978, que o grupo de pesquisadores

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do qual fazia parte passou a se interessar pelas implicações mentais do trabalho, mesmo

que estas não fossem constatadas empiricamente (Athayde, 1996; Neves, 1999).

Surge, então, uma nova pergunta direcionada ao entendimento da relação

trabalho/saúde: “O que fazem os trabalhadores para não adoecerem frente às situações

de trabalho deletérias?” (Dejours, 1993).

É notadamente, a partir de 1980, através da obra Travail: usure mental, com

versão em português intitulada A Loucura do Trabalho, que Dejours começa a

construção teórica da psicodinâmica do trabalho, ainda com a denominação de

psicopatologia do trabalho.

O autor define-a como sendo o estudo dos movimentos psicológicos e afetivos

gerados pela evolução dos conflitos inter e intra-psíquicos durante o trabalho. Começa-

se, então, a considerar o aspecto dinâmico da relação entre o trabalho e a saúde dos

indivíduos, e o conceito de normalidade passa a exercer grande influência. Normalidade

essa entendida como um equilíbrio instável, produto da dinâmica intersubjetiva presente

no enfrentamento das dificuldades impostas pela organização e pelas condições de

trabalho (Dejours, 2004).

Nas circunstâncias em que, para o trabalhador, só resta a simples adaptação ao

sofrimento e à constante luta contra este sofrimento, o trabalho passa a ser vivenciado

como um infortúnio meio de sobrevivência, não cabendo ao trabalhador satisfazer suas

necessidades mais inconscientes (desejos) e tornando-se impossibilitado de realizar seus

processos sublimatórios de identidade (prazer), ligados à manutenção de sua

normalidade e, conseqüentemente, de sua saúde psíquica.

O ponto de mudança pra essa nova perspectiva emergiu de estudos que

detectaram a manifestação de comportamentos estranhos e paradoxais entre os

trabalhadores, mas esses comportamentos não eram tidos como patológicos. As

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reflexões acerca destes achados levaram os autores a procurarem entender os

comportamentos inseridos em sistemas subjetivos de defesa, utilizados na dinâmica do

sofrimento mental (Dejours, 1993).

2.1. Estratégias de defesa

Um estudo clássico sobre as estratégias defensivas foi realizado por Damien

Cru, em 1999, com os trabalhadores da construção civil. Frente aos constrangimentos,

estes trabalhadores elaboravam sistemas defensivos coletivos, contribuindo na formação

e dinâmica do coletivo de trabalho. Cru observou que os operários procuravam

persuadir a si e aos outros a não terem medo dos riscos de acidentes presentes no

trabalho. A não adequação a essa regra (revestida como estratégia de defesa coletiva)

excluía os operários infratores. Com base no consenso, tal tipo de estratégia consistia

em uma negação coletiva da realidade, protegendo-os do mecanismo patogênico do

trabalho, mediante o estabelecimento de uma rede intersubjetiva de defesa, em outras

palavras, a não manifestação de medo frente aos riscos existentes nos canteiros

(Athayde, 1996).

É posto em pauta, nesse momento, o princípio de uma racionalidade subjetiva

das condutas e das ações dos trabalhadores, com o objetivo de minimizar suas angústias

e buscar algum tipo de realização no trabalho.

Passou-se a dar importância às intenções que orientam as complexas estratégias

de defesa elaboradas pelos trabalhadores, de forma a apreender os conteúdos e

significados do sofrimento mental, tomando a normalidade como um enigma no qual o

trabalhador estará sempre atrás de manter para diminuir seu sofrimento (Dejours &

Abdoucheli, 1994).

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Dejours (1987) salienta que existem defesas individuais e coletivas na

administração do sofrimento, porém, mesmo acionadas, as defesas individuais não dão

conta das situações de trabalho e, por isso, são construídos sistemas coletivos de defesa

relativos a cada grupo social, de acordo com a natureza de sua organização. Esse

sistema coletivo de defesa funcionaria normalmente como regras, cuja existência

demanda um consenso normativo, diferentemente dos mecanismos de defesa

individuais.

Entretanto, de acordo com Dejours (1992), as defesas extremas podem impedir a

luta dos trabalhadores pela transformação do trabalho, quando estas camuflam o

sofrimento individual e coletivo, isto é, quando as defesas tornam-se um fim em si

mesmas, sem permitir detectar o sofrimento no trabalho. Nessa condição, elas então

passam a se configurar no que viria a ser uma ideologia defensiva do trabalho,

favorecendo ainda mais os processos de adaptação dos indivíduos a esse sofrimento.

2.2. Sofrimento patogênico e sofrimento criativo

Para Dejours, diferentemente das condições de trabalho, que afetam diretamente

a saúde física dos trabalhadores, a organização do trabalho, mediante suas pressões ao

trabalhador, é diretamente responsável pelo surgimento do sofrimento psíquico. A

“organização do trabalho é, por um lado, a divisão do trabalho - divisão de tarefas entre

os operadores, repetição, cadência e, enfim, o modo operatório prescrito; e por outro

lado, a divisão de homens - repartição das responsabilidades, hierarquia, comando,

controle, etc” (Dejours & Abdoucheli, 2004, p. 128).

No sentido de enfrentar os constrangimentos (contraintes) e manterem-se na

normalidade, os trabalhadores se mobilizam individual e coletivamente, de acordo com

a manifestação de suas pulsões psíquicas criativas que, em um primeiro momento,

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estabiliza o trabalho, e posteriormente manifesta-se na forma de criação, inventividade e

novidade (Dejours, 2001).

Segundo a psicodinâmica, há dois tipos de sofrimento no trabalho: o patogênico

e o criativo. Enquanto que o sofrimento patogênico é desestruturante e pode favorecer o

aparecimento de enfermidades nos trabalhadores, o sofrimento criativo possibilita ao

trabalhador vivenciar sensações de prazer e é capaz de permitir a construção de sentido

à tarefa, que se re-instaura concomitantemente como mobilização subjetiva para o

trabalho (Dejours & Abdoucheli, 1994).

O prazer então seria adquirido, mediante a liberação de energia psíquica

investida para a realização da atividade que a tarefa autoriza. Ao ser constatado pelo

indivíduo a possibilidade de engajamento de seu desempenho no trabalho (de natureza

coletiva), este se vê como parte funcional de um organismo o qual necessita de

integração, através de sua contribuição singular e criativa.

Para Dejours (1993), a organização de um trabalho que seja favorável ao

surgimento do prazer e da saúde teria como característica principal a flexibilidade,

dando condições aos trabalhadores de adaptar a tarefa às necessidades de seu corpo, às

variações de humor e aos seus desejos constantemente cambiantes.

2.3. Inteligência prática

Existem, contudo, aspectos imprescindíveis da realidade do trabalho que servem

de baliza para o estudo da dinâmica psíquica do trabalhador e para a construção de sua

identidade. Um deles é a possibilidade do exercício da engenhosidade. O ser humano é,

por si, engenhoso; e o trabalhador, que tem a prescrição de executar uma tarefa, é

levado a usar toda a sua inteligência corpórea e astuciosa, no intuito de realizar o que

não é dado pela organização do trabalho e nem pelo sistema técnico que o orienta,

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realizando, assim, a atividade que se define nas condições reais de sua execução

(Dejours, 2001).

A inteligência prática pode ser caracterizada em cinco aspectos, mediante as

contribuições de Dejours (1993; 1997). Primeiro, ela é enraizada no corpo. Os conflitos

encontrados pelo trabalhador diante do que é prescrito fazem com que este recorra a

técnicas eficazes, desenvolvidas primordialmente pelo corpo, embora esteja coligada

com a cultura e a racionalidade.

Este ato precede à exigência técnica, ou melhor, o corpo tem a capacidade de

antecipar o acontecimento ou a perturbação, interpreta-o e busca a re-normatização da

situação de trabalho. Para que tudo isso ocorra, é preciso certa experiência anterior,

vivida e experimentada pelo corpo do trabalhador, como um sistema integrado em

sintonia com os acontecimentos no/do trabalho.

Um segundo aspecto da inteligência austuciosa é que esta concede maior

importância aos resultados da ação, pois o que move essa tomada de decisão é a

economia do esforço, frente ao corpo e ao sofrimento. É preciso obter o máximo e

melhor resultado, mediante o mínimo de energia e esforço possível. Aqui ocorre a

esperteza, a astúcia, a malandragem, para que seja efetivada a ação inovadora.

A terceira característica da inteligência prática é que ela está presente em toda e

qualquer situação de trabalho humano, sejam estes manuais e/ou intelectuais. A

criatividade, inerente ao ser humano, define a quarta característica da inteligência

prática. A operacionalização da ação real faz emergir novas formas, novos modos

operatórios, movidos pela engenhosidade e perspicácia do trabalhador (Dejours, 1993).

Como quinta característica da inteligência prática, encontramos a necessidade de

o trabalhador conservar boas condições de saúde, para que seja possível sua

manifestação. Como já visto, a inteligência prática está essencialmente enraizada no

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corpo. Desta forma, se o trabalhador não gozar de boas condições gerais de saúde, ele

possivelmente não manifestará suas capacidades criativas (Dejours, 1997).

Para Dejours e Abdoucheli (1994), a criação imaginativa dos trabalhadores está

relacionada com a ressonância simbólica, advinda de suas histórias de vida, na medida

em que essa ressonância diz respeito à articulação do teatro privado e singular da vida

do sujeito com a situação real de trabalho. Após essa descrição, é importante alertamos

para as condições favoráveis à mobilização subjetiva da inteligência prática. De acordo

com os autores supracitados, tudo isso ocorre aliado a um contexto psicossocial que

permita aos sujeitos transformarem o sofrimento no trabalho em criação.

2.4. Cooperação, coletivo e regras de trabalho

Cooperação, para Dejours (1991), são laços construídos pelos trabalhadores em

vias de realizar, voluntariamente, uma obra comum. Para que haja os laços

cooperativos, é preciso existir relações de intercompreensão e interdependência. Esse

processo é construído coletivamente, mas sua construção não é impulsionada por

exigências externas (trabalho prescrito), mas por iniciativa dos próprios agentes (no

trabalho real).

Para poder coordenar as ações singulares, os agentes constroem regras de

trabalho. Essas regras apóiam-se nas experiências dos trabalhadores e se relacionam

diretamente com a inteligência prática. As regras são sempre oriundas do linguajar,

constituídas mediante articulações de sentido próprio e inerente a cada atividade de

trabalho (Cru, 1984).

Como já foi mencionado, para que essas regras sejam transmitidas entre os

agentes, com a finalidade de construir princípios comuns a todos os membros de um

coletivo e visando a arbitrar entre as diferentes modalidades de ajustamento, é

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necessário que os modos operatórios criados possam ser conhecidos pelos outros

membros. Essa dinâmica denota uma relação de confiança entre os agentes,

compreendida como o conhecimento que cada um tem dos princípios éticos que

organizam a conduta do outro.

Nesse mecanismo de construção coletiva das regras, encontra-se a necessidade

de inter-compreensão do sentido dado, através da comunicação simbólica que é mediada

pela linguagem e pelos espaços de discussão, nos quais são confrontadas as idéias e

opiniões no/do/sobre o trabalho (Dejours,1992).

Todo esse movimento se dá no espaço público, que é constituído pelos próprios

trabalhadores no momento em que são compartilhadas as relações de cooperação,

confiança e a construção coletiva das regras de trabalho. Nesse espaço, é preciso

assegurar a expressão da palavra, bem como do sofrimento, para que possam ser

buscadas novas maneiras de transformar a realidade de trabalho cotidianamente vivida

pelos trabalhadores (Dejours, 1992; 1993).

É dessa forma que os trabalhadores constroem os contratos sociais entre si, para

garantirem a produtividade e a promoção de sua saúde. As regras de trabalho podem ser

consideradas um exemplo de contratação ética, necessárias nos ambientes onde as

relações pessoais são estabelecidas.

Devemos lembrar que todo mecanismo de construção das regras e saberes

no/do/sobre o trabalho são gerados a partir da defasagem sempre existente entre a

prescrição e a atividade real. Além de transgredir as tarefas prescritas em direção à

realização da atividade, os trabalhadores necessitam de certa visibilidade, como

reconhecimento de seus esforços, na medida em que compartilham sua engenhosidade e

a sua experiência com os demais (Dejours, 1992a).

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O reconhecimento favorece os laços de confiança e a coordenação das atividades

organizadas e legitimadas pelo grupo, gerando uma fonte de retribuição para as diversas

contribuições individuais investidas no trabalho (Dejours, 1999).

2.5. Dinâmica do reconhecimento

É a partir do reconhecimento e julgamento do trabalho pelos pares e pela

hierarquia, pela confiança e pelos contratos éticos elaborados na comunidade de

pertença, que pode ser possível o acionamento da inteligência prática, auxiliando na

constituição da identidade e da mobilização subjetiva no trabalho (Athayde, 1996;

Neves, 1999).

A dinâmica do reconhecimento apresenta-se como condição para a construção

da vontade de ação no trabalho. Para a psicodinâmica do trabalho, a mobilização

subjetiva é um mecanismo sutil e está diretamente relacionada à relação

contribuição/retribuição no trabalho. Essa relação se manifesta quando o sujeito

contribui com a organização do trabalho e espera alguma retribuição em troca. Dejours

(1993) comenta que a única retribuição que o trabalhador almeja é que suas iniciativas e

desejos não sejam impedidos e, sim, reconhecidos simbolicamente. Se faltar essa

retribuição, o sujeito reage, desmobilizando-se para o trabalho, podendo sofrer sérias

implicações para sua saúde mental.

O reconhecimento se manifesta basicamente através de dois tipos de julgamento.

O julgamento de utilidade, que é o reconhecimento por parte da gerência e,

eventualmente, da clientela, ao constatar a qualidade do trabalho executado, a

engenhosidade empregada e os riscos corridos para sua realização. O julgamento de

utilidade se refere à utilidade técnica, econômica e/ou social das contribuições que o

indivíduo pode desempenhar para a organização do trabalho (Dejours, 1993).

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O segundo é o julgamento de beleza, que advém em avaliar a elegância, o rigor e

a engenhosidade do sujeito ao executar sua criação. À medida que o trabalhador passa a

ser reconhecido pelo seu trabalho, este pode vivenciar o prazer advindo do sofrimento

criativo, mobilizando-se subjetivamente de acordo com a utilização de sua inteligência.

O julgamento de beleza é um julgamento que se faz muito precisamente sobre a

conformidade das contribuições do sujeito às regras de trabalho e aos laços de

cooperação. Com efeito, o respeito às regras de trabalho confere à produção no trabalho

uma certa beleza. Este julgamento é proferido fundamentalmente pelos colegas, ou seja,

entre os pares de uma mesma atividade, e atribui, ao registro da identidade, o sentido de

pertencimento a uma comunidade ou a um coletivo. O indivíduo se sente um sujeito

como os demais. Para além do sentido de pertença, é preciso ainda haver o julgamento

de originalidade, para fortalecer, de forma mais enfática, a identidade individual stricto

sensu, o que permite reconhecer o porquê deste sujeito não ser idêntico a nenhum outro

(Dejours, 1993).

Não havendo o reconhecimento, toda uma cadeia de desmobilização ao trabalho

é desencadeada pelos agentes e sua identidade passa a ser abalada. Com efeito, o

reconhecimento toma a forma específica de retribuição psicológica no estabelecimento

da identidade individual no mundo do trabalho, sendo a identidade assim entendida

como o sustentáculo da saúde mental; pois toda descompensação implica uma crise de

identidade, no que tange às expectativas do sujeito, referentes à realização de si na

realidade (Dejours, 1993).

O reconhecimento, detentor de uma natureza eminentemente simbólica

(subjetiva), é o mecanismo pelo qual é conferida a construção do sentido no trabalho.

Essa construção se desenvolve nas situações reais de trabalho que, para o indivíduo,

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ressoa em sua história de vida (ressonância simbólica) e em suas expectativas e

vontades atuais.

Vale lembrar, também, que esse reconhecimento nunca está dado a priori, pois

ele sempre estará por ser conquistado pelo indivíduo. O reconhecimento nunca será

estável e sempre possuirá uma via indireta, na medida em que é medializado pelo

trabalho como objeto de julgamento que será, posteriormente, re-apropriado pelo sujeito

na administração da problemática de sua própria identidade.

Por fim, para Dejours e Abdoucheli (1994), é necessário que a organização do

trabalho construa espaços destinados a trocas e relações intersubjetivas entre os

trabalhadores, para que todo esse movimento em busca da saúde e sentido no trabalho

manifeste-se publicamente nas situações laborais e na vida dos trabalhadores como um

todo.

É com essa perspectiva que nos dispomos a analisar a relação entre trabalho e

saúde na pesca artesanal de arrasto de praia do município de Lucena/PB, de forma a

entender como são vivenciadas as experiências de prazer e sofrimento no trabalho, bem

como a produção de sentido elaborada pelos pescadores.

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CAPÍTULO IIAspectos Gerais da Pesca

O presente capítulo tem a finalidade de apresentar alguns aspetos relativos à

historicidade e ao desenvolvimento da pesca no Brasil e no mundo. Devido à grande

diversidade de informações ligadas a atividade como um todo, tentamos arbitrariamente

fazer recortes e escolhas para que fosse possível torná-la minimamente apresentável em

seus principais aspectos, pelos menos os quais optamos em aqui colocar e fazer uso, de

maneira que essas informações possa nos ajudar a entender seu desenvolvimento, sua

dinâmica e problemática atual.

1. Resquícios Históricos: da Pequena Coleta à Captura em Grande Escala

Na verdade, sabemos muito pouco sobre a pesca nas sociedades primitivas.

Segundo indicações arqueológicas e etnográficas, ela é anterior ao aparecimento da

agricultura e representou uma importante fonte de alimentação para o homem antigo.

Alguns restos de cerâmica, cascas de ostras e mexilhões encontrados na Escandinávia,

indicam a captura de moluscos para a alimentação em períodos anteriores ao neolítico

(Diegues, 1983).

Nas grutas de Madeleine, na França, existem gravuras de peixes ao lado de

bisontes, caracterizando culturas de caça para a sobrevivência, típicas desse tempo. Só

no final do período paleolítico é que foi inventado o anzol como instrumento de captura,

sendo este um importante avanço instrumental da época. No período neolítico, a

tecelagem primitiva permitiu o aparecimento das primeiras redes de pesca artesanal;

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seguramente, a pesca nesse período era lacustre e fluvial (Herubel,1928, citado em

Diegues, 1983)

Outro indício desta antiga atividade foi encontrado na costa da Guiné, antes da

chegada dos europeus. Os antigos pescadores, como por exemplo, os etsi e os tantí eram

muito hábeis e já tinham desenvolvido alguns mecanismos e instrumentos de pesca,

como a vela e a rede de fibra, a linha, a rede fixa, a rede para duas pessoas; já

realizavam a pesca noturna com tochas para atrair o pescado, a pesca de jereré e a pesca

de tarrafa. A embarcação desta etnia era a piroga, um barco cavado num tronco único

de árvore (P. de Marcos, 1602, citado em Diegues, 1983).

Em relação ao método de conservação do pescado, foram encontradas no túmulo

de Mera, em Saqquarah – referente à sexta dinastia do império Menfita/Egito, esculturas

em baixo relevo que representavam trabalhadores egípcios secando peixes. A respeito

disso, no Egito Antigo, era grande o consumo de pescado advindo das enchentes

periódicas do rio Nilo; similarmente como acontecia com o atum seco na Grécia Antiga.

Já durante o Império Romano, existia a prescrição dos dias em que somente se

deveriam comer alimentos pescados. Essa regulação de costumes pelo estado romano

foi chamada de Lei Licínia, em que rápidas embarcações faziam a rota Sicília e Óstia,

transportando pescado conservado em azeite. Quanto à organização da produção,

existem poucas informações O que se sabe é que, nesse período, a pesca era uma

atividade de escravos, sendo o comercio controlado por negociantes especializados

(Diegues, 1983).

A pesca na Idade Média obteve grande avanço e pode ser dividida em dois

momentos. No primeiro, a pesca se realizava em propriedades feudais, ligadas à

agricultura, e era praticada principalmente em lagos, lagunas e zonas costeiras. Era

comum, na Inglaterra e França, que a renda da terra fosse paga em peixe e/ou em óleo

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de peixe pelo servo-camponês ao senhor dono da terra arrendada (Herubel, 1928, citado

em Diegues, 1983).

A pesca e a fabricação de rede eram atividades econômicas incentivadas pelos

monges, possivelmente para atender a crescente demanda de consumo entre os cristãos,

como no caso de Bolonha, onde fabricavam redes em mosteiros. Segundo Boyer (1967,

citado em Diegues, 1983), do século VII ao X, a alimentação através do pescado tornou-

se popular mesmo nas zonas rurais, consumindo-se principalmente o arengue, o atum

salgado e a carne de baleia; a aristocracia rural geralmente consumia salmão, lagosta e

outros pescados finos. O arengue era o peixe mais consumido na Idade Média e

possivelmente o seu comércio influenciou a fundação de todas as cidades e portos de

pesca do Mar do Norte e da Mancha.

No segundo momento, a pesca passou a ser uma atividade exercida, sobretudo,

nas grandes cidades medievais. Por exemplo, a república de Veneza foi fundada em

685, por pescadores e marinheiros de 72 cidades do mar Adriático. A pesca nesse

período era majoritariamente intensiva, exercida principalmente na Inglaterra, na

Escandinávia, no Mediterrâneo, na Bretanha e na Normandia (Diegues, 1983).

No período das invasões dos normandos, húngaros e sarracenos, o comércio de

pescado nessas cidades se desorganizou, mas foi logo restabelecido nos séculos X e XI.

A partir desse período, começaram a aparecer corporações ou confrarias de

comerciantes. Em Paris, e nas grandes cidades da França, existiam corporações distintas

para os comerciantes de peixe de água doce e de água do mar. Herubel (1928, citado em

Diegues, 1983) faz uma descrição das atividades pesqueiras em Boulogne, em fins do

século XI e início do século XII, no momento auge em que o arengue se tornara um

meio valioso de troca. O ciclo da pesca do arengue era realizado pelo mecanismo de

hôtage ou contrato, entre um burguês da cidade e um mestre de barco. Nessa relação, o

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primeiro adiantava o capital que serviria para a construção e armamento da embarcação.

Esta tinha de 10 a 15 toneladas e com tripulação entre 7 a 8 pescadores. O mestre –

hôte-marinier – vendia e entregava ao comerciante – hôte-bourgeois - um sole por quilo

de arengue. Na repartição, o mestre e o barco ficavam com uma parte, e os pescadores

com a outra; a venda era feita por leilão, através de um magistrado local.

No século XIV, na Holanda e Bélgica, desenvolve-se a preparação do arengue

em salmão, que passa a ser facilmente transportado e maciçamente comercializado na

Europa.

A conversão ao cristianismo dos povos escandinavos e eslavos, por volta do

século XI, provocou um considerável aumento do consumo e da captura do pescado,

principalmente o arengue do Mar Báltico e do Mar do Norte. A pesca do arengue era tão

importante nas cidades banhadas por esses mares, que a liga Hanseática, criada em 1241

e que reunia 90 cidades dessas regiões, passou a controlar o seu comércio, estocando a

produção e fixando os preços de venda. Seu monopólio exercia tanta influência que, em

1422, os navios da hansa afundaram alguns barcos de pesca holandeses. No século XV,

os holandeses eram os maiores produtores de arengue, utilizando mais de 1.000 barcos

de pesca (variando de 10 a 100 toneladas), tripulados por mais de 20.000 pescadores e

utilizando redes formadas por até 50 panos, com 300 pés de comprimento e nove pés de

altura cada. No século XIV, em 1357, foram estabelecidos os primeiros regulamentos da

pesca do arengue entre os reis da Inglaterra, Dinamarca, os Condados de Flandes e

Holanda. E em 1468, planejou-se uma conferência entre os ingleses, franceses e

holandeses, visando uma partilha das zonas de pesca do arengue. A competição era tão

intensa que os barcos de senhores de pesca do Mar do Norte foram expulsos pelos

holandeses, rumando em seguida para o Atlântico (Diegues, 1983).

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Em meados do século XII, surgiram, na Península Ibérica, as primeiras

corporações medievais – as confrarias de pescadores – que chegaram a declarar guerra

contra a Inglaterra, por conta própria, adquirindo o direito de pescar no litoral daquele

país.

Essas corporações eram organizadas para defender os direitos de seus

associados. Os diversos reis da Espanha, por exemplo, puderam reconhecer os seus

privilégios e conceder as suas reivindicações. A base regulamentar da Confraria de

Pescadores de Bermeo, fundada em 1353 no norte da Espanha, segundo avaliação de

Diegues (1983), é muito similar ao regimento funcional das colônias de pescadores do

Brasil. Os regulamentos dos señores ou alcaides del mar estipulavam contribuições à

igreja; cuidavam da segurança dos barcos e seus associados no mar em caso de ataque

pirata; distribuíam os pescadores mais idosos entre as várias tripulações existentes;

estipulavam a parte que os pescadores doentes recebiam; e controlavam as atividades

comerciais dos regateros e mulateros. As confrarias também proibiam os mestres de

despedir um pescador até terminar a temporada de pesca.

Inevitavelmente, as corporações de pescadores do mediterrâneo entraram em

choque com o poder do estado moderno, e acabaram sendo dizimadas em meados do

século XVI. Essas corporações impediam a livre utilização da força de trabalho pelo

capitalismo emergente, dificultavam o livre comércio e limitavam a competição;

conseqüentemente, elas freavam a acumulação de capital nas mãos da burguesia (Oroza,

1966, citado em Diegues, 1983).

À medida que a atividade pesqueira se deslocava para mares cada vez mais

distantes, era preciso mais capital para a armação dos barcos e manutenção dos

tripulantes. No século XV, os barcos pesqueiros bascos e bretões já alcançavam a

Península do Labrador (Canadá) à procura de bacalhau. O bacalhau era o peixe mais

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requisitado e capturado do século XVI ao XVIII, assim como o arengue foi o peixe da

Idade Média, e o atum, da antiguidade (Diegues, 1983).

Com o aparecimento da pesca de longo curso, o tamanho e o peso das

embarcações aumentavam consideravelmente, pois os barcos de pesca acompanhavam

as inovações da engenharia naval desenvolvido pelos navios das grandes viagens de

descobrimento. Aos poucos, as caravelas do século XVI foram substituídas pelos

brigantins no século XVII.

Dentre os diferentes tipos de redes, as de arrasto foram as que mais se

desenvolveram, principalmente a rede de trawl (arrastão) que, mediante um longo

processo evolutivo, passou de um simples instrumento de pesca artesanal para o

apetrecho industrial de maior poder de captura. Devido ao seu alto grau de exploração,

o arrastão ou trawl pode ser considerado o aparelho da grande pesca, desde então; o

barco que arrastava o trawl foi chamado posteriormente de trawler.

Com a crescente exploração dos recursos marítimos e com o acúmulo do capital

entre os burgueses donos dos barcos e dos avançados recursos de obtenção do pescado,

surgem, então, paulatinamente e de forma incisiva, os reflexos da crescente revolução

industrial capitalista no mundo da pesca, refletida em intensa exploração dos recursos

marinhos, na utilização subumana de mão-de-obra e nas diversas disputas entre países

pelo direito à pesca, em determinados mares e sobre determinadas espécies.

1.2. Revolução industrial na pesca e o impacto da produção capitalista

No período onde a pesca de longo curso ainda era feito com barcos à vela

(primeira metade do século XIX), alguns aspectos vieram incentivar o desenvolvimento

da produção pesqueira, um deles, ressaltado por Kerzoncuf (1917, citado em Diegues,

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1983), foi o melhoramento dos meios de transporte através das estradas de ferro,

facilitando a comercialização do pescado nos grandes centros urbanos.

As embarcações com redes cada vez maiores e com grande carga de gelo se

tornaram pesadas e difíceis de serem manobradas. Em 1862, os armadores de

Sunderland (Inglaterra) tiveram a idéia de rebocar os barcos de arrasto com barcos a

vapor. Foi então que, por volta de 1860 a 1880, apareceram os primeiros barcos

pesqueiros a vapor, iniciando um período de rápidas inovações tecnológicas, com

profundos reflexos na organização global das atividades pesqueiras.

A cultura da pesca do bacalhau, vinda da Europa, constituiu um exemplo típico e

mais avançado da empresa de pesca mercantilista dos séculos XVII e XVIII. Eram

comerciantes que equipavam os barcos bacalhoeiros nas expedições à Terra Nova

(também chamada de Ilha dos Bacalhaus), dividindo o lucro com os mestres e

pescadores. Dessa forma, surge um novo tipo de organização da cadeia produtiva que

atinge diretamente o pequeno pescador costeiro europeu, pois o volume de capital

necessitava cada vez mais de uma organização empresarial, baseada nas premissas do

capitalismo comercial emergente.

Em resposta contra as grandes embarcações a vapor que surgiam no decorrer do

desenvolvimento do capitalismo, em 1898 os pescadores do litoral atlântico, pequenos

proprietários de barcos à vela, protestaram contra o uso dos arrastões a vapor.

Essa reação era compreensível porque somente um desses barcos a vapor com

14 tripulantes pescava o equivalente a 80 veleiros tripulados por 600 pescadores; além

disso, a enorme captura baixava os preços do pescado e colocava em risco a

sobrevivência dos pescadores embarcados em barcos à vela (Kerzoncuf, 1917, citado

em Diegues, 1983).

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O barco a vapor, mesmo com suas vantagens, apresentava uma desvantagem: era

freqüentemente necessário retornar a terra para abastecer-se de carvão. Essa nova

dinâmica fez surgir inúmeros portos especializados em atividades pesqueiras. Por outro

lado, o surgimento desses portos fez desaparecer muitas vilas de pescadores, colocando-

os à mercê do capital e das grandes unidades produtivas que surgiam (Diegues, 1983).

A difusão do barco a vapor e o desaparecimento do barco à vela foram

acontecimentos bastante rápidos em toda a Europa. Na Inglaterra, onde os grande portos

surgiram em meados de 1912, a pesca realizada pelas grandes unidades a vapor

representava cerca de 95% do total do pescado capturado neste período (Kerzoncuf,

1917 citado em Diegues, 1983).

Essa intensificação do capital industrial, não só na captura, mas também na

industrialização e comercialização do pescado, teve importantes conseqüências sobre a

organização do processo de trabalho e sobre as relações de produção. Em muitas partes

da Europa, principalmente naquelas em que a exploração intensiva dos recursos

costeiros tornara cada vez mais difícil a sobrevivência dos pequenos pescadores, a pesca

a longo curso (que durava de um a seis meses) passou a ser realizada por empresas ou

por armadores capitalistas que não participavam diretamente das atividades de captura.

Na França, houve a diminuição do número de pescadores pela redução da

tripulação do barco a vapor, e pela competição acirrada entre a grande e a pequena

pesca. Ao mesmo tempo, houve um aumento da força de trabalho utilizada em terra

firme, nas atividades de descarga, armazenamento, industrialização, comercialização,

dentre outras. Como resultado disso surgem sérias mudanças nas relações sociais de

produção entre os armadores-proprietários e a tripulação. Começa então a surgir, além

do pagamento de partes, o pagamento de salário aos tripulantes, segundo sua função nos

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barcos: mestres, homens de bordo, tripulantes; e segundo as novas funções que surgiam,

como o mecânico, o maquinista, o cozinheiro, etc.

As novas condições de trabalho eram difíceis, pois, por um lado, havia grande

concentração dos meios de produção por parte do capital; e do outro, os pescadores

provenientes de áreas urbanas se inseriam em um mercado de trabalho em que as

características eram a instabilidade do emprego e a superexploração da mão-de-obra.

Tunstall (1969, citado em Diegues, 1983) faz uma descrição da dramática

situação desse proletariado do mar, que se engajava em viagens de três semanas, quando

trabalhava 16 horas por 24 horas nas condições difíceis do Atlântico Norte,

permanecendo 2/3 do ano no mar, enfrentado o vento e o frio constante. O tempo

restante era gasto nas pubs e nos bordéis, onde estes esperavam o momento de iniciar

outra viagem ao mar.

Segundo Diegues (1983), a exploração da força de trabalho na pesca se deu da

mesma forma descrita por Marx na indústria têxtil algumas décadas antes. Por volta de

1880, quando os sindicatos das indústrias manufatureiras haviam conseguido a

aplicação de leis trabalhistas, as condições de trabalho para pescadores de alguns portos

eram idênticas àquelas que, por volta de 1830, tinham horrorizado muitos autores; como

a exploração de menores, as longas horas de trabalho em condições de total

insalubridade, castigos físicos e brutalidades constantes.

Mas de onde vinham esses proletariados da pesca que vendiam a sua força de

trabalho nesses portos em condições tão adversas?

Smith (1971, citado em Diegues, 1983), ao analisar o surgimento de pequenas

comunidades pesqueiras nas ilhas de Shetland, ao norte da Inglaterra, fornece-nos

algumas pistas quanto a sua origem. Segundo este autor, até início do século XIX, a

pequena pesca familiar esteve intimamente ligada à agricultura, sendo também uma

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atividade dos pescadores-lavradores - farmer-fishermen. Para esse tipo de comunidade,

a terra poderia somente produzir alguns meses do ano. Era, então, com a pesca que se

conseguia o alimento complementar para a manutenção dessas famílias. Além disso, a

maioria dos arrendatários, que alugavam terras banhadas pelo mar, eram também

pequenos pescadores que pagavam a renda da terra com peixe. Também acontecia de o

proprietário comprar o excedente, financiando os seus arrendatários com aparelhos de

pesca e embarcações.

Passando a mecanizar a terra, os proprietários começaram a expulsar os

agricultores-pescadores. Alguns desses foram viver em comunidades pesqueiras,

trabalhando com barcos pertencentes aos novos comerciantes que financiavam o

equipamento e adiantavam o rancho (a alimentação a bordo). Outros, contudo, seguiram

o mesmo trajeto dos camponeses ingleses: a ida forçada para os grandes centros

urbanos, onde vendiam sua força de trabalho nas fábricas.

A partir desse contingente de exploração dos recursos da natureza e da força de

trabalho proveniente da pesca familiar, desenvolveu-se maciçamente a dominação

capitalista das forças produtivas na pesca, que passou a definir as formas de apropriação

dos recursos naturais e o controle sobre as condições de trabalho humano atuante na

atividade.

O trabalho infantil dos aprendizes da pesca industrial se caracterizava por uma

exploração extrema dos mais jovens, havendo sucintas paradas dessa exploração

somente em dias de mau tempo, em que, devido a fatores climáticos, não era possível

lançar a rede.

Nessa época, utilizava-se um sistema de pesca em frotilha, que levava o peixe

eviscerado e encaixotado através de caíques (tipos de embarcações menores) para o

barco-transportador. Nesse traslado, muitos marinheiros e pescadores jovens perdiam a

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vida, devido às precárias condições de trabalho, somado a fatores climáticos, tornando,

assim, muito alta a taxa de mortalidade entre os pescadores, que chegava a superar os

índices nas minas de carvão.

No caso dos aprendizes, as condições eram ainda mais subumanas, pois estes

eram obrigados a dormir poucas horas em fétidos beliches, em meio a fígados de

bacalhau em processo de decomposição (Tunstall, 1969 citado em Diegues, 1983).

Dessa forma, muitas empresas de pesca de portos como Hull e Grimbsy, na Inglaterra,

exploravam a mão-de-obra barata e sujeitavam muitas pessoas à lógica capitalista

emergente, alcançando, com isso, um considerável número de negócios e muito lucro

econômico.

Segundo Tusntall (1969, citado em Diegues, 1983), grande parte dessa mão de

obra era recrutada em bairros de pescadores, localizados próximo aos portos.

Aproximadamente 2/3 dos pescadores começavam a pescar aos 17 anos ou menos, ou

desenvolviam alguma outra atividade em terra ligada à pesca – carregadores de peixe no

mercado, ou outros serviços ocasionais. Todos os trabalhadores do navio (mestre,

imediatos, motorista, homens de convés, etc.) eram contratados em viagem de três

semanas. As empresas justificavam a empregabilidade ocasional, instável e sem

segurança basicamente por dois motivos: a sazonalidade da atividade dos barcos e a

liberdade dos pescadores em escolher o mestre com quem queriam trabalhar.

O autor supracitado problematiza a questão, considerando que os barcos

pesqueiros só paravam quando ficavam em conserto ou no verão, quando o preço do

pescado era baixo e o lucro não era compensador; períodos esses que, juntos, não

somavam 15% dos dias do ano. Em relação à liberdade do pescador de poder, depois de

uma viagem, ficar em terra e não ir à seguinte, o autor acha ser falacioso essa

argumentação, pois aos trabalhadores, que enfrentavam durante três semanas, 12 horas

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por dia de trabalho pesado e que ficavam em terra só dois dias e meio depois da jornada

de três semanas, era esperado que estes não agüentassem esse ritmo durante muito

tempo.

Contudo, esse movimento não se deu em toda a Europa, em países como a

Escandinávia, entre outros do Mar do Norte, a pequena produção pesqueira não foi

prejudicada, pois os mestres de pesca, conhecedores profundos das influências físicas e

climáticas, conseguiram se adaptar aos avanços da tecnologia crescente. O trabalho era

organizado, utilizando-se a força de trabalho familiar e integrando, ao nível da unidade

de trabalho, as diversas inovações técnicas que lhes permitiram aumentar a

produtividade sem tornarem-se proletários. O resultado é que, nesses países, a pequena

produção e a produção empresarial capitalista coexistem, sem que esta tenha destruído

aquela (Diegues, 1983).

De acordo com Wadel (1972, citado em Diegues, 1983) existiram alguns fatores

que permitiram a reprodução dessa forma familiar de produção. Em primeiro, os

pescadores/agricultores conseguiram forçar o estado a elaborar políticas públicas

favoráveis de financiamento da pesca artesanal. Em segundo, ocorreu a combinação de

temporadas sucessivas de boa pesca, e uma boa administração das finanças,

possibilitando o investimento em poupança, que serviu para assegurar o sustento dessas

famílias. Também eram incentivadas atividades complementares à renda familiar, como

a agricultura e o artesanato, redirecionando o dinheiro adquirido e valorizando o

trabalho árduo e a produção artesanal, em detrimento do consumo exagerado e

supérfluo da crescente lógica capitalista. Em terceiro lugar, os mestres de rede e barco

sabiam que, ao valorizar seu conhecimento prático (a mestria), que era um elemento-

chave no sucesso de uma pescaria, poderiam aumentar seus ganhos juntamente com

outros pescadores e parceiros, tornando possível a continuidade desse tipo de produção

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familiar. Um outro fator que foi preponderante para a não-extinção da unidade familiar

na pesca foi a criação de associações de pescadores, que passaram a ter um forte

controle sobre o mercado, restringindo algumas pescarias caracterizadas como

predatórias e subsidiando outras mais equilibradas.

Mais do que qualquer outra atividade econômica, a pesca é fortemente

influenciada pelas forças naturais e climáticas, refletindo imediatamente no

relacionamento dos grupos e classes sociais envolvidas no processo de produção, que

são levadas a regular a captura e balancear a formação de excedentes. Ou seja, “essas

condições em constantes mudanças exigem dos pescadores artes diferenciadas de

exploração dos vários recursos aquáticos, muitos deles constituídos por peixes

migratórios” (Diegues, 1983, p. 3). Diferentemente de outros setores produtivos, como a

indústria metalúrgica, por exemplo, a pesca se configura, nos dias atuais, como a única

e última atividade humana de caça realizada em grande escala.

A ideologia burguesa, implantada na cultura ocidental desde sua revolução

industrial, tornou legítima a apropriação indiscriminada dos recursos da natureza e da

força de trabalho dos proletários, como salientou Karl Marx (1982). Marx considera a

natureza constituída pelo ser humano e pela sociedade, determinada por uma complexa

relação com o homem; relação esta advinda da inter-relação transformadora,

proporcionada pelo sistema de exploração que define o modo como cada sociedade se

organiza em torno de sua produção material.

Historicamente, à medida que o capital técnico se torna cada vez mais poderoso,

e em nosso caso, a tecnologia de pesca e navegação, surge, então, a apropriação do

sobretrabalho dos indivíduos pescadores. A captura artesanal do pescado, como meio

de existência, aponta um estágio evolutivo da produção em que o homem e seu trabalho

se fundem com as condições naturais de produção. Nas sociedades pré-capitalistas, o

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homem utiliza-se da riqueza natural como objeto de trabalho, enquanto que, nas

sociedades desenvolvidas, a riqueza natural é considerada mais como instrumento de

trabalho. No caso da pesca artesanal, os objetos e instrumentos de trabalho não são

produtos do trabalho, mas fruto das condições naturais, às quais o ser humano não se

diferencia (Schmidt, 1971 citado em Diegues, 1983).

Para Lipietz (1977, citado em Diegues, 1983), as regiões de pesca de onde se

extraem o pescado fazem parte de um fenômeno histórico, resultado do

desenvolvimento das diferentes maneiras de se organizar a produção em graus

diferenciados de subordinação e dominação, entre a organização capitalista e a familiar

de base. Mais de 90% dos recursos marítimos se encontram nas plataformas

continentais. Entretanto, nem todos os países têm acesso a esses recursos por suas

limitações tecnológicas e de capital, como por exemplo, os países da costa oeste

africana e da África Austral. Não somente os objetos da natureza se transformam em

mercadoria, como também a força de trabalho é “arrancada” de sua situação primitiva

de extração sustentável dos recursos naturais, para se tornar objeto de compra e venda

por parte dos donos do capital e dos recursos pesqueiros.

Segundo Diegues (1983), com o aumento da produtividade em larga escala e o

escasseamento dos cardumes de animais aquáticos, os armadores europeus começaram a

vasculhar exploração em outros continentes, invadindo lugares como a costa da África e

se apoderando da enorme riqueza biológica marinha de países subdesenvolvidos, como

por exemplo, o Peru.

Foi então que surgiram diversos conflitos ao longo da história sobre o direito de

pesca em determinadas áreas do globo e em relação a determinados tipos de produtos do

mar, configurando um verdadeiro jogo de poder sobre os recursos naturais pesqueiros

desde o século XVII.

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Considerações de Kasahara (1975) ilustram duas coisas: primeiro, é longa a

história das disputas internacionais sobre questões de pesca; segundo, a maioria dos

acordos priorizavam muito diretamente problemas de natureza política e/ou econômica,

ficando o tema da conservação e preservação de espécies marinhas em segundo plano.

Outros aspectos como a distribuição dos recursos ou de produtos pesqueiros e os

direitos especiais de estados costeiros foram também maciços na maioria dos casos,

tendo ou não sido explicitados nas cláusulas das convenções respectivas.

Kasahara (1964) salienta que a complexidades dos fatores técnicos envolvidos

na regulamentação do direito nacional e internacional de pesca é frequentemente

subestimada pelas instâncias julgadoras, pois a pesca é basicamente uma atividade que

consiste em colher estoques selvagens de animais altamente móveis, não podendo ser

fechados em áreas limitadas ou marcadas como propriedade. Todas as espécies diferem

na história de vida, na sua distribuição geográfico-espacial migratória e nas reações a

mudanças ambientais provocadas pelo homem. A pesca excessiva em uma determinada

área pode afetar tanto os estoques pesqueiros de seus próprios limites quanto os de

outras áreas marinhas. Segundo o autor supracitado, em tais circunstâncias, é

extremamente difícil encontrar justificação social para o estabelecimento de propriedade

exclusiva sobre determinados recursos pesqueiros e fazer arranjos institucionais para a

exploração e execução de tal sistema. Por esse motivo é que os recursos pesqueiros têm

sido reconhecidos e utilizados tradicionalmente como “propriedade comum”, podendo

ser extraídos simultaneamente por mais de um indivíduo ou grupo econômico.

Na legislação interna de alguns países como o Japão e África do Sul, dentre

outras, os direitos de exploração de certos recursos pesqueiros são concedidos a grupos

de pescadores, companhias ou até mesmo a indivíduos, com a finalidade de restringir o

ingresso excessivo em determinados tipos de pesca.

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A heterogeneidade da indústria pesqueira é outro tipo de complicador para o

estabelecimento dos acordos, pois, em um mesmo país, pode haver a existência de

tecnologia avançada de pesca, convivendo com modos tradicionalmente antigos de

captura do pescado. Internacionalmente, os problemas se tornam ainda mais complexos.

Pescadores de nações com níveis diferenciados de desenvolvimento podem operar na

mesma área de pesca, desencadeando, em certa medida, acentuada desigualdade na

captura e distribuição dos recursos. Mesmo assim, tais recursos marinhos devem ser

reconhecidos como “propriedade comum”, sem domínio exclusivo por aqueles

autorizados a explorá-lo (Kasahara, 1964; 1975).

O desenvolvimento da pesca bem como o interesse por esse desenvolvimento

também são diferentes de nação para nação. Segundo Kasahara (1970, 1975), para

alguns, o desenvolvimento da pesca não é questão prioritária, seja porque tem

suprimento suficiente de proteína animal de outros tipos, ou porque podem comprar

tanto quanto precisam do mercado exterior.

2. Panorama Atual da Pesca

Segundo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES,

1996), a pesca, como uma das atividades mais antigas do homem, possui grande

relevância na alimentação de vários povos e nações, obtendo acentuado crescimento

após a II Guerra Mundial até os anos 80. Porém vem se verificando uma redução do

ritmo de expansão da produção, em função de problemas como a poluição, sobre-pesca

e agressões a regiões de reprodução.

Em 1994, a produção total de pescado em todo o mundo alcançou 109,1 milhões

de toneladas, o que revelou um crescimento anual de 11% em relação à 1993, que foi de

101,4 milhões de toneladas. Os três maiores produtores do mundo, China, Peru e Chile,

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produziram aproximadamente 36% do total mundial. Só a China produziu, em 1993,

20% desse total, sendo também o maior exportador do planeta. A distribuição por

continente fica da seguinte forma: Ásia, 41%; Europa, 26%; América do Sul

(especialmente no Oceano Pacífico), 18%; América do Norte, 10%; África, 4%; e

Oceania, 1%.

Os principais problemas detectados na pesca oceânica foram a falta de

regulamentação, sobre-exploração dos recursos, frotas pesqueiras com um grande

número de embarcações, falta de dados e informações suficientes e confiáveis sobre as

capacidades de extração de recursos em determinadas áreas, fiscalização insuficiente e

crescente poluição planetária. Com o avanço tecnológico da indústria de pesca e

expansão maciça de sua frota, a situação chegou a um ponto de quase esgotamento dos

recursos marinhos (BNDES, 1996).

Devido a esses agravantes, uma reestruturação vem ocorrendo desde o início dos

anos 90, devido ao super-dimensionamento das frotas e das indústrias de processo de

diversos países avançados. Nesse sentido, faz-se necessário a adoção de controle do

avanço do setor industrial, mediante a imposição de leis mais rígidas sobre o volume

mundial de pescado, que só é alcançado mediante um contingente de 15 a 20 milhões de

trabalhadores da pesca. De acordo com a Food and Agriculture Organization (FAO,

1996b), a indústria pesqueira hoje tem aproximadamente duas vezes a capacidade

necessária para fazer a pesca anual, pois, entre 1970 e 1990, registrou-se uma

duplicação da frota marítima mundial de 585 mil para um montante de 1,2 milhões de

barcos de pesca.

A pesca mundial, depois da difusão da boa saúde através de alimentos leves

como o peixe, aumentou consideravelmente, passando, em 1984, de US$ 17 bilhões

para US$ 45 bilhões em 1993 – um acréscimo de 159%. O Japão foi o maior

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consumidor per capita do mundo com 72 kg/pessoa/ano. Enquanto que a media per

capita do consumo mundial é de 13 kg/pessoa/ano; o consumo do Brasil se encontra

bem abaixo com 6,4 kg/pessoa/ano.

Segundo BNDES (1996), duas grandes tendências poderão mudar o perfil da

indústria pesqueira mundial: uma redução rápida e acentuada na quantidade de

indústrias de pesca marítima; e um aumento no consumo mundial de peixe, devido a

aspectos relacionados à saúde. Distintas estratégias podem ser elaboradas,

proporcionando conseqüências diferenciadas para as frotas de alto-mar e costeiras,

como a medida de estabelecimento do defeso em determinadas zonas e épocas, levando-

se em conta as diferenças tecnológicas de captura utilizada, os diversos tipos de

objetivos, os meios de produção, etc. Somando a isso, para que haja a adoção de

métodos de conservação e ordenação dos recursos, deve-se considerar a capacidade de

fiscalização, principalmente nos países em desenvolvimento, que, em muitos casos, não

estão em condições de consignar os efeitos da atividade em tempo real.

Projeções da FAO (1996a) indicam que o pescado se tornará um produto cada

vez mais escasso e mais caro nos próximos anos, o que possivelmente irá incentivar a

criação em cativeiros, mas insuficiente para frear a pesca indiscriminada.

2.1. A pesca no Brasil

O Brasil possui cerca de 8.500 km de linha litorânea e certa quantidade de ilhas,

efetuando um total de 3,5 milhões de km² de Zona Economicamente Exclusiva (ZEE),

que vai do Cabo Orange (5 ºN) até o Chuí (34 ºS), além de constituir a maior bacia

hidrográfica do mundo. Do ponto de vista da produtividade, as águas correntes do Brasil

são de níveis baixos, tanto em relação aos alimentos primários, referentes às populações

de zooplâncton, e fitoplâncton, como em outras categorias de animais, pois a

abundância destes depende da dinâmica e existência daqueles. A plataforma brasileira,

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que é o prolongamento do continente intra marinha, que vai da linha de 0 metros do mar

até 200 metros de profundidade, possui uma área de 732.800 Km2.

As condições oceanográficas aqui expostas de forma muito sumarizada, e os

acidentes físicos de plataforma, determinam, segundo Vazzoler (1975), pelo menos

quatro ambientes distintos ao longo da costa brasileira, cada um com suas características

particulares, determinando a qualidade da fauna habitante e sua abundância. Assim, ele

considera uma região norte (Cabo Orange - Rio Paraíba), uma região centro–oeste (Rio

Paraíba – Cabo Frio), uma no centro-sul (Cabo Frio – Florianópolis), e uma região sul

(Florianópolis – Chui).

Características oceanográficas sugerem uma super-estimativa do potencial do

mar que banha a costa brasileira, porém a região Nordeste fica com a menor

participação na produtividade pesqueira do país. Na região Sul/Sudeste, em algumas

regiões de extração, encontra-se a presença do fenômeno da ressurgência (fenômeno

marítimo que caracteriza a emersão de matéria orgânica para a superfície das águas), o

que possibilita uma maior reprodução e abundância de espécies. No caso da região

Norte, a boa produtividade se dá em função da grande atividade do rio Amazonas, que

descarrega grande quantidade de matéria orgânica, influenciando fortemente o

ecossistema oceânico da região (Dias-Neto & Mesquita, 1988).

O setor pesqueiro no Brasil representa aproximadamente 0,4% do PIB nacional.

Se considerarmos toda a cadeia produtiva da pesca, incluindo a produção de rações,

transportes, processamento e treinamento, este índice chega a 2%, contando-se com a

aqüicultura e a pesca oceânica (Cadernos de Resoluções, 2003).

Segundo o Grupo de Trabalho Interministerial para o Programa Nacional de

Financiamento da Ampliação e Modernização da Frota Pesqueira (Profrota, 2003), a

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frota pesqueira marinha e estuarina que opera no litoral brasileiro, tanto na zona costeira

quanto na pesca oceânica, está estimada em torno de 30.000 embarcações, 10% das

quais, consideradas de médio e grande portes, e conhecidas como frota industrial.

Significa que 27.000 embarcações são utilizadas pela pesca artesanal, composta por

embarcações de pequeno porte (jangadas, canoas, botes, etc.) que, pelas suas

características, têm pouco raio de ação e, conseqüentemente, limitada autonomia.

No caso específico da região Nordeste, a produção de pescado é

majoritariamente oriunda da pesca artesanal, determinando cerca de 75% das capturas

regionais. Diferentemente das regiões Norte e Nordeste, as regiões Sul e sudeste são

caracterizadas predominantemente pela pesca industrial, ou seja, 70% do pescado na

região sudeste e 80% na região sul. A pesca artesanal é mais representativa no norte,

nordeste e centro-oeste, considerando-se que boa parte da pesca extrativa continental é

de pequena escala. Pode-se então inferir que, nos dias atuais, este tipo de atividade

laboral é responsável por aproximadamente 60% de toda produção extrativa dos

recursos marinhos nacionais (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

Naturais Renováveis [IBAMA], 2001).

Desenvolvimento da atividade, legislação e incentivos pesqueiros

Embora a legislação específica sobre a atividade pesqueira no Brasil tenha seu

início no período colonial, a exploração dos recursos naturais foi praticada

historicamente no território brasileiro, com o objetivo de garantir a sub-existência

familiar em pequenos centros populacionais. Mas nem sempre o pescador militante

nessa atividade foi considerado um profissional e, dessa forma, contemplado por

normas regulamentares (Vazzoler, 1975).

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O acesso aos recursos pesqueiros, como uma das variáveis fundamentais para a

gestão dos seus usos, é condicionado pela tutela do Estado, assim como pelas variáveis

econômicas, sociais, culturais e biológicas. Cada Estado tem promovido o acesso

limitado ou regulado, por meio da outorga onerosa de licenças de pesca para um

determinado recurso ou para uma delimitada área de pesca. Esse número finito de

licenças pode estar ou não associado a um outro conjunto de regras que, no todo,

deveriam buscar assegurar o uso sustentável dos recursos pesqueiros (Profrota

Pesqueira, 2003).

Segundo Vazzoler (1975), a pesca começou a ser considerada oficialmente em

1934, com a criação do Código de Caça e Pesca, sendo encarada mais tarde como

atividade operacional e econômica complexa, sofrendo regulamentação em 1938, com a

criação do Código de Pesca. Esse código passou a perceber os pescadores como

elementos profissionais merecedores de apoio legal, levando-os a congregarem-se no

que ficou convencionado como Colônias de Pesca – órgão representativo da categoria

profissional.

O código define a pesca e caracteriza o seu exercício, considerando os diferentes

meios aquáticos, fixando os deveres de todo pescador, bem como certas restrições a sua

atividade, ao regulamentar os equipamentos, visando a conservação da fauna marinha.

Outros aspectos também eram previstos, como os trabalhos científicos, a regulação do

comércio de peixe vivo, a exploração de bancos naturais de animais e plantas aquáticas,

e o re-povoamento e defesa de águas interiores. A partir desse momento, a pesca

começa a ser considerada uma atividade econômica com certa estrutura física e legal.

Com o desenvolvimento da atividade, muitos adendos foram introduzidos na lei

básica para garantir certos serviços de amparo à saúde do pescador, como a criação, em

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1941, da Policlínica dos Pescadores. A policlínica atendia pescadores e seus familiares

do Distrito Federal e Rio de Janeiro, bem como pescadores em trânsito.

Também foi criada a Caixa de Crédito da Pesca, que provinha de uma taxa de

3% sobre a comercialização do pescado cobrado sobre produtos industrializados de

pesca de origem estrangeiras e outras fontes relacionadas às atividades pesqueiras ou

indústrias correlatas. Através da caixa de crédito, pescadores e armadores profissionais,

que deveriam ser brasileiros, podiam adquirir combustível, material de pesca, pequenas

embarcações e aparelhos de pesca, motores marítimos, gêneros alimentícios e artigos de

roupas e calçados (Vazzoler, 1975).

Em 1948, houve a ampliação dos serviços tidos como essenciais ao

desenvolvimento da pesca, como Seção de Pesquisa do Departamento Nacional de

Produção Animal, que se encarregava em estudar a fauna e a flora marinhas, sua

sistemática, biologia e parasitologia, como também estudos oceanográficos,

levantamento de poluição dos rios e meios de combatê-la.

Segundo o autor acima citado, sentia-se, nesse momento, a necessidade de

considerar a pesca uma atividade economicamente importante para o país, com o intuito

de desenvolvê-la, seguindo diretrizes de uma política nacional de pesca. Além disso,

estava sendo cogitada a organização e o planejamento de um programa de formação de

técnicos e profissionais da pesca e de indústrias afins, bem como a construção de portos,

estaleiros, frigoríficos, fábricas e escolas de pesca.

Tudo isso foi incluído na criação do Conselho de Desenvolvimento da Pesca -

CODEPE, em 1961, somado a ações para isenção fiscais de estímulos, para criação de

novas indústrias e construção de novas embarcações de pesca. A iniciativa do CODEPE

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foi estabelecer as bases do Programa de Emergência para o Desenvolvimento da Pesca

no Brasil, que objetivava “aproveitar plenamente as possibilidades através da indústria

pesqueira e criar condições para o seu desenvolvimento em escala industrial, dentro de

uma política de longo prazo, implantando a pesca industrial, amparando a pesca

artesanal e atendendo os objetivos econômicos e sociais de relevante importância no

processo de desenvolvimento nacional” (Vazzoler, 1975, p. 285).

De toda a análise realizada pela CODEPE, em seu curto período de existência,

foram apontadas algumas diretrizes para uma política nacional de pesca, sintetizada em

três objetivos básicos: expandir os índices de pescado para abastecer o país de proteína

animal mais barata que a carne bovina, especialmente as regiões mais pobres privadas

de suprimentos protéicos acumuláveis e a preço acessível – também eram realizadas

campanhas nacionais de incentivo ao consumo de pescado; fomentar a exportação para

poder custear a expansão da atividade, organizando a produção nacional de atum,

lagosta e camarão, bem como o desenvolvimento da indústria de peixe fino, associado à

fabricação de farinha e óleo de peixe; oferecer um padrão de vida ao contingente

humano da pesca artesanal, compatível com as possibilidades remunerativas das

diversas atividades. No estatuto que regulamentava a existência do CODEPE, já estava

prescrita a instalação da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE,

em 1962, pelo Governo Federal que, além da SUDEPE, esboçou o Plano Nacional de

Desenvolvimento da Pesca – PNDP.

O PNDP tomou forma em 1967, num corpo legal que caracterizava a pesca

como atividade múltipla, definindo, pela primeira vez, o que era indústria da pesca e

colocando-a como indústria de base. O plano também regulamentava os trabalhos na

faina de captura, definia o que era pescador profissional, além de outras normatividades

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quanto ao uso de equipamentos na exploração dos recursos pesqueiros nacionais. Tais

atividades envolviam a captura, industrialização, transporte e comercialização do

pescado. Dada a estrutura legal (Decreto nº 221, 28/2/1967) à proposição de auxílio

financeiro para projetos novos para indústria já existente, a SUDEPE, até dezembro de

1971, tinha aprovado 137 projetos com aplicação global. Cada projeto representava uma

empresa industrial de cada estado com interesse em exploração pesqueira. Dos projetos

aprovados, tivemos as seguintes distribuições por estado: São Paulo, 36 projetos; Santa

Catarina, 36; Rio-Guanabara, 35; Rio Grande do Sul, 20; Pará, 4; Espírito Santo, 1;

Ceará, 1; Pernambuco, 1; e Bahia, 1 projeto.

Mesmo com o incentivo público e a indústria pesqueira nacional em

desenvolvimento, Vazzoler (1975) observou que houve uma queda das aplicações entre

os anos de 1967 e 1973, acompanhadas, de um enfraquecimento da imagem da pesca e a

concorrência na captação de recursos por parte de outros programas de desenvolvimento

nacional. No entanto, foi possível ver um aumento na produção de 53%, com

crescimento anual na ordem de 8,9%. A maioria dessas empresas era de capital aberto,

sendo pouco numerosos os casos em que os armadores ou mesmo pescadores se

agruparam formando cooperativas.

Na história da pesca brasileira, houve uma demorada preparação da estrutura

física da pesca. Tal empreendimento ofereceu ao país, em 35 anos – de 1938 e 1973 -

um aumento na produção pesqueira da ordem de 5,5 vezes, o que, para os cálculos

otimistas da formulação da política nacional, ficou muito longe do esperado, que seria

de 20 a 25 vezes. De acordo com o autor supra citado, não houve o mesmo interesse ou

certo cuidado na preparação de pesquisas e conhecimentos adequados, necessários e

suficientes ao desenvolvimento industrial do setor da pesca; ou seja, as pesquisas

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científicas e técnicas não usufruíam de estratégias metodológicas eficazes para oferecer,

no tempo requerido, informações que apoiassem as dimensões do que se pretendia como

indústria pesqueira operante e lucrativa. Foram poucos os incentivos nessa área, além

do mais, não existia no país um corpo de pesquisadores especialistas que planejassem e

executassem as pesquisas de acordo com os problemas os quais o Plano Nacional de

Desenvolvimento da Pesca exigia resolver (Vazzoler, 1975).

Segundo Diegues (1983), as atividades desenvolvidas pela SUDEPE acarretou

inúmeras transformações na vida dos pescadores, que passaram a ser proletários do mar,

com grande e crescente divisão social do trabalho, sendo empregados pelos armadores

de pesca das grandes capitais.

No Brasil, antes de 1988, e mesmo na atualidade, a fragilidade do Estado tem

possibilitado que o sistema praticado de licenças leve o uso dos recursos pesqueiros

para uma situação de desregulamentação e ilegalidade. Cabe acrescentar que, em águas

internacionais, os recursos pesqueiros são juridicamente classificados como de “livre

acesso”. Neste caso, dependendo da situação da pescaria e do recurso, a Convenção das

Nações Unidas sobre o Direito do Mar – CNUDM - estabelece que os Estados devem

buscar formas de cooperação, para assegurar o uso sustentável dos recursos pesqueiros.

Com a sua entrada em vigor, a partir de 16 de novembro de 1994, tem sido crescente a

existência de normas, previamente acordadas, em fóruns internacionais específicos para

disciplinar e regular o acesso a esses recursos (Profrota, 2004).

A análise desse arcabouço legal evidencia que, nos últimos quarenta anos, é

possível identificar dois períodos com dinâmicas relativamente distintas: um, entre 1967

e 1987; e outro, de 1988 a 2001.

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No primeiro período, praticamente não houve mudança na legislação,

excetuando-se a aprovação da Lei da Previdência e de dois decretos que

regulamentaram aspectos específicos do Decreto-lei n.º 221/67. Este decreto-lei, hoje

bastante alterado e desatualizado, em relação às legislações nacional e internacional,

continua sendo a lei básica que rege a atividade pesqueira no Brasil.

Silva (1972), numa avaliação da aplicação desse instrumento legal, evidencia

que “a Lei 221 - convertida em ‘Lei Áurea da Pesca' - sobretudo pelo caráter anárquico

e velocíssimo de sua aplicação, transfigurou, mas também desfigurou a pesca brasileira”

(.

O segundo período foi bem mais dinâmico, constatando-se a aprovação de 8 leis

de abrangência direta ou específica e 13 decretos. Parte desses instrumentos implicou

em significativas e confusas alterações na moldura institucional de gestão do uso dos

recursos pesqueiros no Brasil, o que levou Dias-Neto (1999) a ponderar que se estava

vivendo um quadro de “anarquia oficializada”.

Segundo apanhado realizado no relatório do Profrota (2003), dentre os principais

atos jurídicos sobre a política de pesca no Brasil, a partir de 1988, pode-se citar:

- A Lei n° 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, que extinguiu a SUDEPE e criou o

IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis;

- A Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, que transferiu a competência da produção e do

fomento da atividade pesqueira ao MAPA - Ministério da Agricultura, Pecuária e

Abastecimento, permanecendo no MMA – Ministério do Meio Ambiente - e IBAMA as

responsabilidades relacionadas com a política de preservação, conservação e uso

sustentável dos recursos naturais;

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- O Decreto n° 2.681, de 21, de junho de 1998, que criou o Departamento de Pesca e

Aquicultura – DPA, na estrutura do MAPA, consagrou a competição por espaço dentro

do executivo. Apesar de o DPA não ter sido estruturado e dotado de recursos humanos

nos Estados para executar suas funções, a sua existência só veio intensificar as disputas

institucionais entre o MMA e MAPA, à medida que o DPA não demonstrou disposição

de trabalhar em conjunto com o IBAMA, para solucionar problemas concretos da pesca

marítima nacional;

- O Decreto n° 2.840, de 10 de novembro de 1998, introduziu três significativas e

polêmicas mudanças nas competências relacionadas com a gestão do uso dos recursos

pesqueiros no Brasil. A primeira, relacionada com a divisão das competências sobre a

gestão do uso dos recursos pesqueiros e a organização, a manutenção do Registro Geral

da Pesca e a concessão de licenças, permissões e autorizações para o exercício da pesca.

A segunda, com a transferência, para o MAPA, da competência de aplicação dos Mapas

de Bordo para todas as espécies, fato que, com a excessiva centralização daquele órgão,

dificultou a atuação do IBAMA/MMA no controle a geração de informações

fundamentais à gestão de recursos de sua competência. A terceira relaciona-se com o

arrendamento de barcos de pesca estrangeiros por empresas ou armadores nacionais.

Com essa prerrogativa, o MAPA introduziu várias modificações, as quais se destacam:

1) o período máximo do arrendamento, que era de três anos, passou para prazo

indefinido; 2) permitiu a interrupção da operação da embarcação estrangeira por até um

ano, o que dificultou ou impossibilitou o controle e a fiscalização da operação dos

barcos, especialmente se forem consideradas as dimensões da ZEE do Brasil. Assim, em

tese, um barco pode solicitar a interrupção da operação, mas continuar pescando em

águas nacionais e desembarcando em portos de outros países; 3) facultou, mediante

autorização do MAPA, o desembarque do produto da pesca em portos de outros países,

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o que promoveu total descontrole sobre o resultado da pesca dos barcos arrendados; 4)

possibilitou, no processo de composição da tripulação nas embarcações nacionais e

estrangeiras, uma proporcionalidade de brasileiros inferior ao previsto em lei, em

circunstâncias especiais, mas que, na prática, tornou-se regra;

- A Medida Provisória 1999-17, de 11 de abril de 2000, transformada no Decreto nº

4.118, de 07 de fevereiro de 2002, que corrige a divisão de competências sobre

preservação, conservação e uso sustentável dos recursos pesqueiros entre o MMA e o

MAPA, inadequadamente definida até então;

- O Decreto n° 3.833, de 5 de junho de 2001, criou a Diretoria de Fauna e Recursos

Pesqueiros, sem, no entanto, corrigir o Decreto n° 2.840/1998, e os conflitos de

competências entre o DPA/MAPA e o IBAMA/MMA.

Cabe ainda destacar a mais atual legislação que trata da criação da Secretaria

Especial de Aqüicultura e Pesca, ligada diretamente à Presidência da República, pela

Lei 10.683, de 28 de maio de 2003, a qual estabelece as seguintes competências, in

verbis (Profrota, 2003):

“Art. 23. À Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, compete assessorar

direta e imediatamente o Presidente da República na formulação de

políticas e diretrizes para o desenvolvimento e o fomento da produção

pesqueira e aqüícola e, especialmente, promover a execução e a avaliação

de medidas, programas e projetos de apoio ao desenvolvimento da pesca

artesanal e industrial, bem como de ações voltadas à implantação de infra-

estrutura de apoio à produção e comercialização do pescado e de fomento

à pesca e aqüicultura; organizar e manter o Registro Geral da Pesca

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previsto no art. 93 do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de

1967 ; normatizar e estabelecer, respeitada a legislação ambiental, medidas

que permitam o aproveitamento sustentável dos recursos pesqueiros

altamente migratórios e dos que estejam subexplotados ou inexplotados,

bem como supervisionar, coordenar e orientar as atividades referentes às

infra-estruturas de apoio à produção e circulação do pescado e das estações

e postos de aqüicultura e manter, em articulação com o Distrito Federal,

Estados e Municípios, programas racionais de exploração da aqüicultura

em águas públicas e privadas, tendo como estrutura básica o Gabinete, o

Conselho Nacional de Aqüicultura e Pesca e até duas Subsecretarias.

Este é um resumo das atribuições conferidas à Secretaria Especial de

Aqüicultura e Pesca (SEAP) em termos de políticas públicas, direcionadas ao

desenvolvimento e aprimoramento do setor pesqueiro nacional. Outros detalhes de sua

política de regulação e fomento se encontram no anexo I.

Crise do setor e os modelos de gestão

O desenvolvimento do setor pesqueiro no Brasil pode ser encontrado em

diversos autores que trabalham com esta questão (Silva, 1972; Diegues, 1983; Mello,

1988; Cardoso, 1996).

Cardoso (2001) sinaliza a existência de três momentos em que o Estado

brasileiro tenta traçar um modelo de gestão da pesca cuja crise é evidente e ainda sem

caminhos concretos para sua resolução.

O primeiro, estudado por Silva (1991), vem da formação do Estado nacional e

do estabelecimento da marinha de guerra brasileira. Nesse momento, a marinha atrela a

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si os pescadores brasileiros, através da criação do sistema organizativo da categoria:

colônias, federações estaduais e confederação nacional de pescadores.

O segundo momento se encontra na “modernização” da pesca promovida pela

SUDEPE, a partir de 1960. Através de incentivos fiscais e compra de barcos e

equipamentos, essa política desenvolveu a criação e a reprodução de uma estrutura

industrial para o setor.

E o terceiro momento, que foi chamado de consolidação dos nacionalismos

marinhos (Breton & Estrada, 1989), decretando unilateralmente durante os anos 70 que

o mar territorial brasileiro teria 200 milhas.

Com a instituição dessas instâncias de monitoramento e regulação e ao

estabelecer as colônias de pescadores e o restante da representação oficial da categoria,

os interesses hegemônicos que controlavam o Estado brasileiro procuraram aumentar a

manipulação sobre a força de trabalho dos pescadores. Com o fomento da indústria da

pesca pela SUDEPE, o Estado incentivou o avanço técnico e, ao delimitar as 200

milhas, pretendeu controlar o trabalho de pesca no território.

Segundo Cardoso (2001), esse três momentos seguem uma mesma lógica, a da

pesca nacional moderna, tecnológica e com certo teor de patriotismo; discurso que ainda

se encontra hoje, mesmo com tantos escândalos, desperdícios e depredação dos

recursos.

Autores como Diegues (1983), Mello (1988), Loureiro (1985), entre outros, já

analisaram esse projeto político-ideológico, que tinha, como premissa, a transformação

do setor pesqueiro de pesca artesanal tradicional, em pesca moderna industrializada para

exportação. Dos 134 projetos aprovados pela SUDEPE, entre os anos de 1968 e 1970, o

valor da produção alcançada nesses três anos ficou em torno de 75% do valor aprovado

para as empresas, sob a forma de incentivos fiscais (Cardoso, 2001). Em função desse

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maciço investimento, a sobrepesca de algumas espécies, a pesca predatória de outras e a

destruição de ecossistemas são só algumas conseqüências que acompanham o projeto de

modernização, contribuindo para a redução do pescado, situado ao alcance da pesca

artesanal.

Diegues (1983) subdivide a pesca no Brasil em duas subcategorias: a

desenvolvida por armadores de pesca e a empresarial/industrial. A pesca desenvolvida

por armadores de pesca, pessoas físicas ou jurídicas, caracteriza-se pelo fato de os

proprietários das embarcações e dos apetrechos de pesca, no caso os armadores, não

participarem de modo direto no processo produtivo, função delegada ao mestre da

embarcação. Estas são de maior porte e raio de ação que aquelas utilizadas pela de

pequena escala, e exigem certa divisão de trabalho entre os tripulantes: mestre,

cozinheiro, gelador, maquinista, pescador, etc. São motorizadas, e dispõem, ainda, de

equipamentos auxiliares à pesca e exigem algum treinamento formal para determinadas

funções que, no entanto, não substituem completamente o saber-fazer dos pescadores e,

sobretudo, do mestre.

Na pesca industrial, considerada empresarial, a empresa é proprietária, tanto das

embarcações, como dos apetrechos de pesca. É organizada em diversos setores e, em

alguns casos, congrega verticalmente as etapas de captura, beneficiamento e

comercialização do pescado. As embarcações dispõem de mecanização não só para

deslocamento, mas também para o desenvolvimento das fainas de pesca, como o

lançamento e recolhimento de redes e, em alguns casos, beneficiamento do pescado a

bordo, o que não acontece com as artesanais. A mão-de-obra, embora recrutada, em sua

maioria, entre pescadores de pequena escala, ou nos barcos de armadores, necessitam de

treinamento específico para a operação da maquinaria que vem substituir, de maneira

mais profunda, o saber-fazer adquirido pela tradição. O regime de salário é mensal ou

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semanal, embora ainda predomine o pagamento de partes que passam a ser calculados

sobre o valor global da produção (Diegues, 1983).

Na pesca marítima, boa parte dos trabalhadores do setor pesqueiro está excluída

da proteção social do Estado, já que, além do elevado índice de analfabetismo, a maioria

dos pescadores e tripulantes dos diversos tipos de embarcações pesqueiras nacionais não

possui vínculos empregatícios com os donos dos barcos, nem passa por uma devida

qualificação profissional (Profrota, 2003).

Tal modelo desenvolvimentista parece ter chegado ao seu limite, ou diríamos

melhor, a uma crise generalizada do setor. Segundo Dias Neto (1996), nos portos, o

abandono das frotas é visível. Barcos de seis tripulantes são operados por dois ou três

pescadores como uma forma de manter uma lucratividade mínima. A abertura do

mercado ampliou a oferta e reduziu os preços do pescado, principalmente entre os

países do Mercosul, acarretando o fechamento de indústrias de beneficiamento que,

desde sua origem, já apresentavam alta taxa de ociosidade.

Em um artigo em que Silva (1972) anuncia de forma profética essa crise, fica

claro o movimento forçado que o Estado brasileiro impôs ao desenvolvimento

desenfreado da pesca:

A pesca brasileira, tão subsidiada, faltou à sua missão mais

essencial: alimentar as populações mais pobres do Brasil. Arriscou

tudo em uma única cartada: o camarão exportado. Haja camarão a

exportar na abundância que requer, para salvar nosso colossal

investimento [...] Mas o índio defumando, o índio fazendo farinha

de peixe para alimentação humana, usando suas jangadas e canoas

(mas aprendendo bem rápido a usar o anzol de ferro e a grande

rede dos franceses), finalmente tinha mais razão (Silva, 1972).

Contudo, ao falar em crise de um modelo de gestão, faz-se necessário apresentar

a outra faceta dessa realidade: a produção simples dos pescadores artesanais.

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Como pesca artesanal, entendemos a produção extrativa de base comunitária,

abrangendo uma pequena rede comercial, direcionada principalmente para alimentação

familiar e com utilização de instrumentos e meios de captura equilibrados e etnicamente

elaborados no desenvolvimento histórico dessas comunidades (Diegues, 1983, 1988).

Porém essa concepção ainda é mais ampla, pois a identidade dessa população encontra-

se, segundo Cardoso (2001), na luta em oposição e no embate político referente aos

diferentes graus de incorporação tecnológica e de capital.

Como a política nacional da SUDEPE, alguns pequenos pescadores suportaram

assistir a suas áreas de pesca serem objetos de avanço de frotas pesqueiras de armadores

e empresas, acirrando a competição pelo mercado; mercado esse que, dominado por

atravessadores, subtraiu os seus rendimentos, refletindo mais uma das dificuldades

enfrentadas pelas famílias que necessitam vender o produto do seu trabalho

(Maldonado, 1985; Cardoso, 2001).

Outro agravante, de acordo com os achados etnográficos de Maldonado (1985),

em estudos realizados nas comunidades de pesca artesanal de Ponta de Mato, Camalaú e

Tambaú, no litoral paraibano, é a reação dos pescadores ao assalariamento e à

modernização, posto que a ordem hierárquica e solidária, que é característica desse tipo

de organização social, deixou-se levar pela crescente articulação com a familiaridade da

produção tradicional capitalista. Como salienta a própria autora, “ainda nessa temática,

grande parte do comportamento dos pescadores é sobredeterminada pela tensão que se

cria entre as duas lógicas produtivas: a tradicional e a industrial” (Maldonado, 1985,

p.14).

Parece que o ponto de tensão entre a pesca tradicional e a industrial divide

claramente o rio das águas. Por um lado, têm-se os diversos tipos de técnicas de manejo

e as mestrias dos pescadores locais, e, por outro, a crescente divisão social do trabalho

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inerente à pesca industrial, que minimiza as condições de vida e o saber do pescador

tradicional, atraindo-o para a estrutura tecnicista de exploração de sua força de trabalho

e sobre-explorando os recursos marítimos limitados (Diegues, 1983).

Em meio a tudo isso, a pesca artesanal sobrevive e ainda se reproduz. Nas

estatísticas oficiais, ela representa cerca de 50% da produção nacional e é responsável

por aproximadamente 75% do valor gerado na pesca (IBGE, 1990, 1991).

Durante o Fórum das ONG´s de diversos países na ECO 92, foi elaborado um

tratado sobre a pesca, firmando a importância da pesca artesanal na conservação dos

recursos e na proteção dos ambientes marinhos costeiros e de águas interiores (Fórum

de ONG´s, 1992, citado em Cardoso, 2001).

Em relação à organização da categoria, o funcionamento do sistema organizativo

(colônias, federações estaduais e confederação nacional) era imposto verticalmente,

geralmente dominado e dirigido por políticos, comerciantes e/ou oficiais da marinha.

Para mudar esse quadro, o caminho foi a conquista desses organismos. Na constituição

de 1988, o movimento constituinte de pesca logrou equiparar as colônias de pescadores

aos sindicatos dos trabalhadores, rompendo com uma longa história de impedimento

dos processos de organização dos pescadores.

Ao pensar em um modelo de gestão alternativo ao velho modelo imposto pelo

Estado brasileiro, Cardoso (2001) alerta para a necessidade de se levar em conta três

elementos fundamentais: o conhecimento empírico que os trabalhadores possuem sobre

a natureza, a politização de seu movimento e a territorialidade como instrumento de

gestão dos recursos naturais.

Índices da pesca na Paraíba

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O boletim estatístico de pesca apresentado pelo IBAMA (2004) divide a pesca

em quatro modalidades, a Extrativa Marinha, a Extrativa Continental, Aqüicultura, e

Maricultura.

A partir dos dados produzidos pelo boletim referentes à estimativa da produção

pesqueira de 2004, em todo o âmbito nacional, que foi na ordem de 1.015.914,0

toneladas, podemos fazer uma rápida análise comparativa do desempenho do Setor

Pesqueiro Nacional em relação ao ano de 2003 no quadro que se segue.

Produção (t) 2003 2004 Crescimentorelativo (%)

Pesca extrativa marinha

Pesca extrativa continental

Maricultura

Aqüicultura continental

484.592,5

224.551,0

101.003,0

177.125,5

500.116,0

246.100,5

88.967,0

180.730,5

+ 3,2

+ 8,2

(-) 11,9

+ 2,0

Total 990.272,0 1.015.914,0 + 2,6

Observou-se um crescimento na produção total, na ordem de 2,6%, determinado

principalmente pelos desempenhos da pesca extrativa marinha e continental, que

apresentaram um acréscimo de 3,2% e 8,2%, respectivamente. A aqüicultura continental

também apresentou um acréscimo de 2% em 2004, entretanto a maricultura, nesse

mesmo ano, apresentou um decréscimo de 11,9%, quando comparado ao ano de 2003.

A pesca extrativa marinha representou 49% da produção total brasileira em

2004. Em relação a essa modalidade de pesca, enquanto que a região Nordeste

apresentou um acréscimo de 3,8% em relação ao ano anterior, o estado da Paraíba

apresentou o maior decréscimo da região na ordem de 35%, devido à redução da

produção de atum, proveniente da frota pesqueira industrial arrendada.

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Da produção total brasileira, em 2004, o estado da Paraíba participou com

10.828,5 (t), aproximadamente 1% da produção nacional. Do total da produção do

Estado, foi proveniente da pesca extrativa industrial cerca de 11,5%, ou seja, 1.244,0 (t).

Da produção proveniente da aqüicultura continental, vieram cerca de 3.191,0 (t),

aproximadamente 29,5%. Nesse montante, a pesca artesanal configura-se como a maior

expressão da pesca no Estado, contribuindo com 59% da produção total, 6.393,5 (t).

Da pesca extrativa marinha, contando com a captura de peixes e crustáceos

(camarão), o total da produção estadual foi de 3.849,0 (t), sendo desse total, 1.244,0 (t)

produzido na pesca industrial e 2.605,0 (t) produzido na pesca artesanal. Do total de

crustáceos produzidos na extração marinha, 171,0 (t) foram de camarão, e dessa

produção, 100% foi oriunda da pesca artesanal.

Em relação à pesca extrativa continental, que nacionalmente representa 24,2% da

produção do pescado brasileiro, no Estado da Paraíba, a grande expressão veio

novamente da pesca artesanal com 100% da produção estadual, somando um total de

3.788,5 (t). Nesse total, o camarão, também proveniente da pesca artesanal extrativa

continental, chegou a produzir 1.289,5 (t) no ano de 2004, em todo o Estado.

Na modalidade relativa à maricultura, que chegou a expressar 8,8% da pesca

nacional em 2004, na Paraíba produziu-se, nesse mesmo ano, um total de 2.963,0 (t), e

desse total, 100% foi de camarão, ou seja, dos viveiros particulares de carcinicultura.

Segundo a Associação Brasileira de Criadores de Camarões – ABCC, os

camarões marinhos têm sua maior produção concentrada na região Nordeste, embora

também ocorra nas regiões Sudeste e Sul. No mesmo ano de 2004, a ABCC realizou um

segundo censo da carcinicultura em todo pais, registrando um número total de 68

fazendas no Estado da Paraíba, compreendendo uma área de 630 hectares, chegando a

produzir um total de 2.963,0 (t) de camarão em todo o Estado.

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Segundo o boletim de estatística da pesca do IBAMA (2004), o camarão, dentre

os 96 itens registrados, é o principal produto das exportações brasileiras, sendo

responsável aproximadamente pela metade (50,2%) das vendas ao mercado exterior,

cujos principais paises importadores são França, Espanha e Estados Unidos,

responsáveis por 82,6% das compras totais desse produto, em um universo de 26 países

importadores.

É importante registrar ainda que o preço médio do camarão exportado vem

caindo continuamente a cada ano. Enquanto que em 2000 seu preço foi de US$ 7,956/t,

em 2001 caiu para US$ 5,528/t, em 2002 passou para US$ 4,378/t, e em 2003, situou-se

em US$ 4,019/t. Já em 2004, houve uma diminuta recuperação, porém muito distante

dos preços praticados no início da década, chegando a US$ 4,024/t, fato que deve

preocupar os produtores brasileiros e, consequentemente, os fazendeiros paraibanos de

camarão. Ademais, verificou-se que, nos últimos anos, a participação do camarão,

dirigido ao mercado externo, tem aumentado em relação a sua produção, em função do

crescimento vertiginoso da produção oriunda dessa modalidade produtiva: a

carcinicultura.

Com este levantamento do perfil produtivo do Estado da Paraíba, podemos

observar que a pesca artesanal ainda é bastante significativa para a produção local, com

mais da metade da produção catalogada pelas instituições de pesca responsáveis.

A ênfase aqui dada aos dados sobre a produção de camarão local se deve à

grande valorização desse produto, por ser o principal item exportador da pesca

brasileira, e por ser este o principal pescado adquirido na pesca artesanal de arrasto de

praia em Lucena/PB.

Verificou-se a existência de grande incentivo público de fomento e

acompanhamento às fazendas de camarão e à sua venda para o mercado externo que,

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como visto, no Estado da Paraíba, chegou a produzir, em 2004, 100% da produção

registrada pelos órgãos de pesca, através das 68 fazendas de camarão. Este fato aponta

certa falta de incentivos públicos à produção artesanal do camarão, e em especial, a

produção oriunda das enseadas paraibanas.

De qualquer forma, ficam aqui registrados alguns apanhados da pesca, no que

tange aos aspectos macro e meso-econômicos que, de certa forma, ajudam-nos a

entender as condições locais de trabalho e suas implicações para a saúde dos pescadores

artesanais de arrasto de praia.

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CAPÍTULO III

Metodologia da Pesquisa

1. Perspectiva Metodológica

Um dos principais aspectos a ser considerado em uma pesquisa científica diz

respeito à estratégia metodológica que torne possível a descrição e a compreensão do

objeto a ser estudado. Essa busca do instrumental teórico-metodológico é essencial para

o desenvolvimento de qualquer investigação que possa trazer contribuições ao

entendimento da problemática em questão.

Minayo (1993) salienta que um bom método é aquele que possibilita uma

construção coerente dos dados, que ajude o pesquisador a refletir acerca da dinâmica

teórica pertinente. Desse modo, o método deve contar com teorias que orientem o

processo de investigação, da elaboração e delineamento do objeto à análise e

interpretação do material produzido.

No presente estudo, optamos em utilizar a pesquisa qualitativa, por acreditarmos

que ela possibilita uma maior aproximação com o objeto social a ser estudado. Nesse

sentido, Bogdan (citado em Triviños, 1987) expõe algumas características fundamentais

para a análise da pesquisa qualitativa. A primeira é reconhecer o ambiente natural como

fonte direta de informações e lugar onde as vivências humanas ocorrem. A segunda

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característica é considerar o pesquisador como instrumento-chave na apreensão dos

conteúdos construídos, usando suas próprias impressões para fazer emergir os

significados latentes.

Outra característica é que esta metodologia de pesquisa é também descritiva, em

que a interpretação das informações produzidas e registradas surge como totalidade de

uma especulação que tem, como base, a percepção do fenômeno em seu contexto

específico, buscando-se, com isso, as explicações para sua origem, dinâmica e

conseqüências ao ser humano.

Outro elemento profundamente debatido por Minayo (2004) se volta para a

capacidade criativa que o pesquisador deve acionar, ao dar procedimento a uma

pesquisa de cunho qualitativo. O potencial criativo e a experiência do pesquisador

detêm o poder de relativizar o aparato técnico e inovar sua utilização através da arte,

pois “esta qualidade pessoal do trabalho científico, verdadeiro artesanato intelectual que

traz a marca do autor, nenhuma técnica ou teoria pode realmente suprir” (Minayo, 2004,

p. 23).

Em direção similar, vale expor os três princípios metodológicos das ciências

sociais que González-Rey (2000) considera importantes de serem incorporados em uma

pesquisa científica:

- o conhecimento é uma produção construtiva e interpretativa. Neste caso, o

conhecimento não é constituído pela soma de elementos observados no tempo empírico

da pesquisa, mas se apóia em interpretações do sentido das expressões dos próprios

sujeitos, de forma implícita e indireta, mediante a capacidade intuitiva do pesquisador e

de sua relação com os participantes;

- existe um caráter interativo no processo de produção de conhecimento. Entende-se

aqui que a relação entre o pesquisador e o pesquisado é uma condição necessária ao

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desenvolvimento de uma pesquisa. Nessa interação, deve-se saber lidar com os

elementos que surgem no processo de comunicação, de forma a compreendê-los e

utilizá-los como significativos para a construção de saberes. É recomendado, nesse caso,

apoiar-se em momentos informais de conversa como sendo propícios à produção

teórica;

- a singularidade dos acontecimentos e achados como aspecto legítimo da produção de

conhecimento. O reconhecimento de um saber científico se torna viável de acordo com

a qualidade explicativa de sua expressão, ou seja, uma comunicação expressa por um

sujeito pode ser suficiente para a produção de conhecimento, mediante seu poder

explicativo, não sendo necessária essa mesma comunicação aparecer em outros relatos

para ser digna de importância para o estudo.

Nesta perspectiva, é possível que haja certa aproximação da complexidade

dinâmica dos fenômenos a serem estudados, que, no caso do presente estudo, insere-se

no campo das relações que constituem a interface trabalho/saúde. Faïta (2002) nos alerta

que qualquer estudo referente à atividade humana será sempre superficial se não for

capaz de “estabelecer a relação entre as características observáveis e dedutíveis da

atividade verbal e as demais dimensões da atividade em geral” (p. 49).

Schwartz (1992) tece alguns comentários sobre os limites da linguagem

acadêmica, quando esta tenta dar conta de explicar a experiência dos trabalhadores.

Segundo o autor, a falta de recursos simbólicos dá margem a certa “ingratidão”, na

medida em que não consegue expressar a complexidade da experiência real vivenciada

pelo indivíduo, com seus sentimentos e emoções particulares.

Sobre esse mesmo aspecto, Nouroudine (2002) revela-nos a dimensão ética

existente em toda pesquisa ao se considerar que, na tentativa de descrever e interpretar a

experiência do outro, além de uma inadequada utilização do método, alguns

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pesquisadores, na utilização restrita da linguagem científica, podem correr o risco de

simplificar excessivamente ou fazer uma má interpretação da realidade em questão.

No caso da linguagem no/do trabalho, as verbalizações dos trabalhadores podem

estar mescladas pelas operações de rotina, pelas respostas socialmente esperadas no

momento da realização de entrevistas, por exemplo; ou mesmo, pela inacessibilidade

lingüístico-verbal de certas experiências e dimensões da atividade humana (Guérin et

al., 2001).

Mediante estes aspectos da linguagem, como nos afirmam os autores

supracitados, a fala dos trabalhadores passa a ter fundamental importância ao se

pesquisar a ação laboral. A atividade, na medida em que é expressa pela fala, vai além

das observações externas dos trabalhadores em ação, pois é capaz de trazer dimensões

subjetivas que, de outro modo, não seriam acessadas, conectando acontecimentos no

tempo (passado, presente e futuro) e possibilitando aos indivíduos uma visão mais

sistêmica e organizada das adversidades e implicações presentes no trabalho.

Ao reconhecer que somente o trabalhador pode expressar de forma adequada sua

experiência vivida, mesmo com limitações da língua, jamais a atividade poderá ser pré-

descrita por outrem, na medida em que ela sempre exige novos manejos, reajustes

inéditos por parte do trabalhador.

Schwartz (1992), um dos fundadores da ergologia francesa e pesquisador do

mundo do trabalho, propõe um dispositivo metodológico de três pólos para estudos

sobre o trabalho humano, os quais são: a) necessidade de se conhecer a herança cultural

acerca do objeto a ser estudado; b) escutar primordialmente os protagonistas da

atividade, os verdadeiros conhecedores de seu trabalho; e c) compromisso ético

articulado com as exigências epistemológicas que permitam uma aproximação

conceitual acerca do objeto.

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Para este autor, toda atividade humana está sendo continuamente re-instaurada

diante do debate sobre as normas antecedentes que são sempre atualizadas a cada nova

situação de trabalho, bem como pelos processos de renormatizações dessa

circunscrição; entre o explícito e o não formulado, entre a palavra e o corpo, entre o

coletivo e o individual, reconhecendo-se a constante construção de valores e normas no

âmbito coletivo e cultural do trabalho.

Ainda acerca deste debate, Schwartz (2000, 2002, 2003b) também comenta

acerca dos saberes que brotam do corpo e da história singular do indivíduo em um

trabalho sempre em mudança. Trata-se, portanto, da manifestação da inteligência

corporal (corpo-si) que se sincroniza com o tempo favorável ao seu aparecimento

(Kairos). Desse modo é que surge o debate de normas e valores, em que os tempos e as

escolhas fazem parte de uma dimensão avaliativa do funcionamento do trabalho, que se

modifica historicamente em função das experiências concretas vividas pelos indivíduos.

Atentando para a dimensão do não dito e considerando a importância da

vivência direta dos trabalhadores no trabalho, os estudos sobre a atividade humana

precisam articular métodos que andem de acordo com a particularidade da produção do

homem, na medida em que se interagem com a linguagem e com a atividade industriosa

(Schwartz, 1992).

Desse modo, reconhecemos também que os trabalhadores não têm idéia clara do

que sabem, ou melhor, seus saberes operacionais são tão magnificamente antecipados

em relação à consciência, que eles, geralmente, não chegam a refletir sobre o que fazem.

Nesse sentido, o pesquisador deve estar atento às práticas linguageiras no/do/sobre o

trabalho para poder detectar as sutilezas da comunicação nas relações que determinam a

realidade de cada atividade (Nouroudine, 2002).

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É referendando este aspecto que o presente estudo visa utilizar-se da

metodologia qualitativa, com o objetivo de poder abarcar minimamente a complexidade

da atividade de arrasto de praia e a forma como ela é vivenciada intersubjetivamente

pelos pescadores, considerando as abrangentes singularidades de expressão que podem

surgir no decorrer do processo investigativo.

De acordo com nossos objetivos de estudo, que consiste em analisar a relação

trabalho/saúde desses pescadores, faz-se necessário comentar também as contribuições

teórico-metodológicas de Dejours (1993a), quando salienta a existência de riscos que o

pesquisador enfrenta ao escutar a fala de um trabalhador relatando sua própria

experiência no trabalho.

O dispositivo de escuta com risco é constituído por três riscos básicos. O

primeiro risco se caracteriza pela identificação das angústias e sofrimentos dos

trabalhadores ao se entrar em contato com suas subjetividades, e portanto, com o

sofrimento psíquico de um coletivo de trabalho. O segundo risco se constitui na

necessidade de o pesquisador confrontar permanentemente a aplicabilidade da teoria no

entendimento da realidade em questão. E o terceiro risco deste dispositivo se configura

na construção do sentido dado às vivências de trabalho, levando-se em conta a

promoção da autonomia e de melhorias ao conjunto dos trabalhadores.

Na verdade, o intuito desse movimento é dar objetividade à subjetividade, para

que estes re-construam novos aparatos simbólicos e se re-apropriem de seu trabalho.

Isso nem sempre é possível em um processo de pesquisa, e a escuta com risco

caracteriza esse desafio a ser superado pelo pesquisador (Dejours, 1993a).

Corroborando as considerações sobre a postura atenta e alerta do pesquisador ao

se deparar com a atividade humana, entendemos, de acordo com Brito, Athayde e Neves

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(2003), que é extremamente importante e necessário que se ampliem os sentidos,

primordialmente a audição e a visão, ao investigar uma dada atividade de trabalho, pois:

Ampliar a escuta seria, antes de tudo, um uso que se pode fazer de si

mesmo, uma reinterpretação das nossas próprias concepções e

prejulgamentos, abrindo-se para que os outros pensam e dizem [...]

Ampliar o olhar significaria recusar os antolhos que levam a ver

como natural o que, na verdade, é sócio-histórico, produção humana

(p. 24).

Assim o faz também a ergonomia situada, com sua perspectiva de tratar cada

atividade como única e não menos complexa que outras. Essa disciplina também busca

a compreensão do trabalho em curso e em sua totalidade, para poder transformá-lo e

promover situações laborais dignas para os humanos (Daniellou at al., 1989).

2. Participantes da Pesquisa

Na escolha dos nossos participantes, recorremos às considerações de Goldenberg

(2000), quando esta salienta a importância do pesquisador relacionar os sujeitos da

pesquisa com os objetivos e atributos definidos no início do trabalho, sem descartar a

inserção de novos participantes e outros temas que possam surgir a partir do contato

com o campo e com as descobertas que emergem na relação entre pesquisador e o

contexto social em questão.

Nos contatos iniciais, tivemos a oportunidade de entrevistar o presidente da

colônia de pescadores, cujo roteiro de entrevista encontra-se em anexo II, esclarecendo-

lhe os objetivos da pesquisa e a importância do estudo para a comunidade pesqueira

local.

Ao contextualizar a atividade de pesca no município, recorremos a uma

entrevista com um pescador que trabalhou na pesca da baleia, a qual por muito tempo

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foi a principal atividade econômica de pesca exercida na cidade e no estado da Paraíba.

O roteiro de entrevista sobre a contextualização da pesca encontra-se no anexo III

Para a análise da relação trabalho/saúde na atividade de arrasto de praia,

contamos com a participação de dez pescadores artesanais de arrasto de praia, com

idades variando entre 15 e 69 anos, sendo estes provenientes de aproximadamente sete

“turmas” (equipes) distintas de arrasto.

Todos os pescadores foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e sobre a

manutenção do sigilo de suas identidades em termos da utilização das informações

produzidas, assegurando-lhes o máximo de privacidade ao responder as questões

colocadas pelo roteiro (anexo IV). A duração média das entrevistas durou

aproximadamente de 15 a 20 minutos.

O tempo de envolvimento dos pescadores na atividade variou entre um mês e 55

anos de trabalho, com média de 18 anos. Dos dez entrevistados, cinco são solteiros, três

casados e dois moram com cônjuge. Seis pescadores têm de três a quatro filhos. A

média de moradores em casa é de seis pessoas, e a renda mensal dos pescadores varia

entre R$ 20,00 e R$ 280,00 por mês, com média de R$ 150,00.

Em relação à escolaridade, três cursaram até a 3ª série do ensino fundamental e

um ainda cursa a 3ª série; dois cursam a 2ª série; um pescador estudou até a 1ª série do

ensino fundamental; um estudou até a 4ª série; um cursa o 3º ano do ensino médio e um

pescador nunca estudou. Para ilustrar o perfil dos participantes, encontra-se, no anexo

V, um quadro contendo as informações básicas relativas aos dados sócio-demográficos.

Dos pescadores participantes da pesquisa, dois são “mestres de rede”, quatro são

“cordeiros” e os outros quatro são “pescadores de arrasto”.

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Os “mestres de rede” são pescadores que administram as redes de arrasto, seus

instrumentos e equipes. Eles são os que organizam o dia de trabalho e convocam os

pescadores para compor as turmas.

Os “cordeiros” são responsáveis em “fazer as cordas” (enrolar) que puxam a

rede e realizam as tarefas designadas pelos “mestres de rede”.

E os “pescadores de arrasto” são os pescadores que participam das diversas

etapas da atividade de arrasto de praia: empurram a jangada para o mar e para fora,

puxam a rede, realizam “lances de rede” e demais tarefas, como veremos mais adiante.

3. Procedimentos e Instrumentos

Nosso estudo se apóia na articulação de diferentes dispositivos metodológicos

que nos possibilitaram perceber a diversidade das relações humanas no contexto cultural

da atividade em questão.

Desse modo, foi então que utilizamos visitas, entrevistas semi-estruturadas e

observações da atividade no local onde o trabalho é realizado, além do uso detalhado de

registros de campo que descritiva e interpretativamente foram elaborados durante o

processo de construção de conhecimento junto aos pescadores artesanais de arrasto.

3.1. Trabalho de campo

O trabalho de campo é um processo permanente de construção de conhecimento

e estabelecimento de relações entre os elementos encontrados em determinado contexto

de estudos (Minayo, 1998; González-Rey, 2002).

Segundo Minayo (1998), o pesquisador, ao entrar no campo, deve antecipar os

detalhes do impacto social que sua pesquisa pode acarretar, ou seja, a forma como

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apresentar o estudo, como apresentar-se a si próprio, por quais intermediários se

aproximar e com quais pessoas estabelecer os primeiros contatos.

Tomando por base os cuidados assinalados pela autora supracitada, o trabalho de

campo desta pesquisa se estendeu de janeiro a setembro de 2006, e foi iniciado

mediante visitas à colônia de pescadores, com o intuito de apresentar os objetivos do

estudo ao corpo gestor desta instituição. Nessas visitas iniciais (Neves, 1999), visamos

também um levantamento prévio de informações gerais sobre a pesca, bem como as

condições de vida e de saúde dos pescadores locais.

As informações iniciais sobre os diversos tipos de pesca e sobre a conjuntura

geral da atividade no município foram levantadas na medida em que conversas

informais com os pescadores e moradores da cidade iam surgindo. Também tivemos

informações coletadas através dos funcionários da própria colônia de pescadores.

A opção em estudar a modalidade de pesca artesanal de arrasto de praia, dentre

todas as outras existentes, foi ponderada mediante sua abrangência social, levando-se

em conta a facilidade de acompanhamento operacional do trabalho. Sendo esse tipo de

pesca uma das mais praticadas atualmente no município, e ao mesmo tempo, de fácil

acesso, decidimos convidar pescadores que desenvolvem esta atividade para

participarem da pesquisa e contribuir na construção de conhecimento acerca de seu

cotidiano de trabalho. As estratégias utilizadas para entrar na realidade de vida e

trabalho desses pescadores foram as mais diversas, com o objetivo de tentar abarcar a

complexidade da realidade em estudo.

Somado a tudo isso, devemos comentar, também, que minha aproximação com a

comunidade local foi anteriormente estabelecida através de trabalhos sócio-ambientais

que realizei junto a Apôitchá (Associação de Apoio ao Trabalho Cultural, Histórico e

Ambiental) desde 2002. Os trabalhos desenvolvidos por esta organização civil são

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direcionados à educação integral de crianças e adolescentes com vistas a diminuir a

incidência de abuso sexual e de violência familiar, visando a participação das escolas

públicas municipais.

Como muitos pescadores são pais de crianças atendidas pela instituição, a

Apôitchá não hesitou em promover apoio em diversos momentos do estudo, com o

fornecimento de material de pesquisa e com alimentação e alojamento durante as idas

ao município.

Em nosso trabalho de campo, fomos levados a adotar uma postura etnográfico-

antropológica, visando fundir nossas perspectivas de estudo com os anseios e modos de

viver dos pescadores e da comunidade local.

As entrevistas

Das diversas técnicas de cunho qualitativo, a entrevista individual é uma das

mais freqüentes nas pesquisas sociais. Ela possibilita o desvendamento de estruturas

simbólicas e sistemas de valores, através da fala, considerando-se que esta mesma fala

pode expressar os conteúdos compartilhados por determinado grupo social, em

condições histórico-culturais, sociais e econômicas específicas (Minayo, 1998).

Haguette (1997) define entrevista como “um processo de interação social entre

duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de

informações por parte do outro, o entrevistado” (p. 86).

Para Thiollent (1987), a entrevista possibilita momentos de articulação entre as

características individuais e o contexto social o qual as pessoas entrevistadas estão

inseridas. Este autor comenta que há certo teor de afetividade além de processos

cognitivos e ideológicos presentes nas entrevistas.

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Reafirmando este aspecto, Goldenberg (2000) salienta que esses elementos que

surgem durante a fala precisam ser considerados na análise e interpretação do material

produzido pelo pesquisador junto aos entrevistados.

Nesse sentido, o pesquisador deve estar atento às iniciativas dos entrevistados

durante o processo de entrevista, para que possa ser minimizado qualquer tipo de

desigualdade na interação. Adentrar em um universo sócio-cultural de onde não se tem

origem é o maior desafio para um pesquisador, pois qualquer grupo, para manter sua

existência, guarda segredos do universo familiar e de sua privacidade (Minayo, 1998).

As entrevistas realizadas foram conduzidas de acordo com os princípios éticos

da pesquisa, com especial atenção em fundir os modos culturais de ambas as partes.

Dessa forma, os roteiros das entrevistas seguiram uma formulação semi-estruturada,

contemplando aspectos de cunho sócio-demográfico e questões norteadas pelos aportes

teóricos que subsidiam nossa investigação. Mesmo assim, no momento da realização

destas, houve plena abertura para novos temas e questões colocadas pelos pescadores.

De acordo com as considerações acima, fizemos uma primeira entrevista-

conversa com o presidente da colônia Benjamin Constant, com o objetivo de realizar

um levantamento inicial da pesca local e conhecer a dinâmica de funcionamento desta

instituição, que é responsável pelo apoio sindicalmente da categoria dos pescadores no

município. Esta primeira entrevista, realizada em fevereiro de 2006, durou

aproximadamente 2 hs. Com ela, foi possível conhecer o modo de funcionamento da

colônia, os diversos tipos de pesca existentes no município, além de algumas questões

relativas à saúde dos pescadores.

Ao se acercar da situação geral da pesca e dos diversos tipos existentes, o passo

seguinte foi afunilar o objeto de estudo e optar por uma modalidade de pesca. Passamos

a enfocar, então, a pesca artesanal de arrasto de praia.

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Logo, partimos para a elaboração do roteiro de entrevistas individuais semi-

estruturadas. A partir da adesão voluntária dos pescadores, realizamos dez entrevistas

entre os meses de julho e agosto de 2006. Na escolha dos pescadores, pretendemos

garantir certa diversificação entre eles, no tocante à sua participação em equipes de

arrasto, à idade e ao tempo de trabalho, na medida em que estes aceitavam participar da

pesquisa.

Das dez entrevistas realizadas, seis foram respondidas no próprio ambiente de

trabalho, ou seja, à beira-mar. Destas seis entrevistas, quatro foram respondidas logo

após a jornada de trabalho, uma durante a jornada e outra logo após o seu término.

Das quatro outras entrevistas realizadas fora do ambiente de trabalho, três foram

realizadas na própria residência dos pescadores e uma no ambiente de trabalho de outra

atividade desenvolvida pelo entrevistado.

Todas as entrevistas foram registradas em um gravador de áudio, com o intuito

de garantirmos o máximo de fidedignidade das verbalizações e expressões dos

pescadores. Em seguida, todas elas foram transcritas na íntegra.

Nas situações em que as entrevistas foram respondidas à beira-mar, por ocasião

do forte vento que fazia no momento, foram comprometidas algumas poucas

verbalizações dos pescadores. Contudo, o conteúdo das passagens dos discursos não foi

integralmente danificado.

De acordo com as considerações de Minayo (1998), sobre a qualidade dos dados

de uma entrevista, foi possível construir uma relação entrevistador-entrevistado de

forma tranqüila e respeitando-se os interesses de cada parte, fato que possibilitou,

muitas vezes, o aprofundamento de temáticas tanto teóricas (previstas anteriormente)

quanto empíricas (que surgiam no momento da investigação).

Observação da atividade

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Em um primeiro momento, a forma como procedemos às observações foi

inspirada no dispositivo metodológico referente à observação participante proveniente

da antropologia cultural (Foote-Whyte, 1980; Brandão, 1987).

Assim, nossa inserção no contexto da pesca de arrasto de praia adotou, em certa

medida, uma perspectiva etnográfica de investigação, baseando-se no relato da cultura,

levando-nos a compartilhar e, de certa forma, a fundir modos culturais. O objetivo foi

viabilizar o entendimento dos significados que estão por trás das evidências empíricas,

bem como codificar e entender os gestos e expressões peculiares da cultura local.

Segundo Minayo (1994), o universo sócio-cultural a ser conhecido pelo pesquisador

leva-o à necessária distinção entre este universo e sua própria experiência de vida.

Quando se busca captar informações pertinentes à dinâmica relacional entre

trabalho e saúde, o convívio nos ambientes de trabalho é um exercício sutil de

desenvolvimento das acuidades auditivas e visuais do pesquisador. Minayo (2004) nos

lembra a importância de se observar o maior número de situações possíveis, no decorrer

de uma pesquisa de campo, com o intuito de apreender as regras grupais instituídas

pelos sujeitos.

Para conhecer as condições e a organização do trabalho na pesca de arrasto de

praia, recorremos às observações sistemáticas da atividade inspiradas nas

recomendações da ergonomia situada da atividade (Guérin at al., 2001; Wisner, 1987).

De acordo com Guérin et al. (2001), a observação sistemática é a maneira mais

direta de investigar a atividade de trabalho e pode ser realizada de forma aberta (um tipo

de observação livre que ocorre nas primeiras visitas ao local de trabalho) ou de forma

mais sistemática, para a obtenção das categorias de análise ou de informações

previamente elencadas.

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Durante a observação sistemática, o pesquisador pode fazer perguntas para

compreender os procedimentos e estratégias adotadas na realização das ações. Para tal,

o pesquisador precisa utilizar alguma forma adicional de registro, podendo ser

anotações de campo do que foi observado e escutado, ou pode recorrer a gravações de

áudio e vídeo.

Neves (1999) reconhece que a observação sistemática da atividade de trabalho

favorece o acesso a um vasto material e permite a complementaridade com a entrevista,

ao ser desvendado novos elementos de análise. É possível, através da observação, captar

várias dimensões da realidade e conhecer as condições de trabalho em foco.

Foram realizadas, ao todo, duas observações da atividade, uma parcial e outra

abrangendo todo um dia de trabalho. Em nossas observações, procuramos registrar os

acontecimentos, ações e verbalizações, além do local em que elas ocorriam, a

quantidade de pessoas envolvidas e o tempo gasto para sua realização. Somado a isso,

tentamos observar e registrar as posturas de trabalho e os esforços requeridos em cada

movimento e ação, as tomadas de decisão e demais acontecimentos no trabalho. Para o

registro das observações sistemáticas, utilizamos um modelo de registro proposto por

Guérin et al. (2001) e Muniz (2000) (anexo VI), em que foram anotados com caneta e

papel os elementos de análise do trabalho acima citados.

Registros de campo

Segundo Thiollent (1986), uma pergunta se faz necessária na determinação do

foco de estudo ao iniciarmos o trabalho de campo: Quais são as informações mais

adequadas para se estudar o fenômeno social em questão? Não existem partes isoladas

do real; todas as informações são relacionáveis entre si, configurando um complexo

sistema de sentido que conduzirá a uma interpretação que busque o máximo de

descrição possível da realidade, para que se possa concluir idéias e posposições válidas.

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São inúmeras as direções das informações obtidas em um contexto real, mas o

pesquisador deve estar atento ao seu diário de campo, tentando registrar todo o

fenômeno que surja e que traga um sentido interpretativo. Nesse momento, é crucial a

escolha de quais informações são importantes, com o objetivo de delimitar o conteúdo

de sentido que irá ser atribuído após a descrição do que foi observado.

Segundo Triviños (1987), existem dois tipos de anotações de campo, a saber: a

descritiva e a reflexiva. A descritiva prima pela exatidão na descrição dos fenômenos

observados, clareza em seu relato para facilitar a formulação de futuras inferências

interpretativas.

As descrições podem ser dos sujeitos, também do meio físico, além dos diálogos

e atividades específicas. Cada um dos elementos que podem ser descritos na primeira

fase trazem consigo idéias e hipóteses latentes. As anotações reflexivas podem também

trazer idéias sobre a metodologia da pesquisa, facilitando a avaliação e o aprimoramento

desta ao longo do percurso investigativo. Outra reflexão que pode ser registrada é se os

conceitos pelo qual o pesquisador se orienta, confirmam as suas intuições, se eles estão

sendo respaldados pela realidade, ou se será preciso agrupar um outro conjunto de

idéias que possam explicar as características da situação em análise (Triviños, 1987).

Os primeiros registros de campo deste estudo datam de janeiro de 2006, quando

começamos a anotar todas as impressões relacionadas com a pesca artesanal e registrar

conversas informais com moradores do município, que nos relataram suas percepções

do trabalho de pesca e como esta atividade se reproduz em seu cotidiano.

Ainda em janeiro de 2006, foi realizada uma primeira visita ao local de trabalho

dos pescadores: a praia. Nesse momento, foram anotados alguns comentários, ações e

algumas conversas informais mantidas com alguns pescadores que se encontravam

realizando o seu trabalho. Em seguida, fizemos a primeira visita à colônia com o

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objetivo de captar, ao máximo, o que se passava em relação aos problemas habituais

com as carteiras de pesca e os demais mecanismos de segurança social dos pescadores

profissionais, chegando, inclusive, a anotar algumas verbalizações e conversas entre os

pescadores presentes.

Os registros foram de fundamental importância na articulação das outras

técnicas utilizadas (entrevistas individuais semi-estruturadas e observações da

atividade), pois os detalhes e as impressões percebidas no campo puderam

complementar as informações, ajudando-nos na interpretação dos dados produzidos em

conjunto com os pescadores.

3.2. Análise de conteúdo

Para interpretarmos o material produzido nas entrevistas, nas observações

sistemáticas e nos registros de campo, servimo-nos dos procedimentos metodológicos

da análise de conteúdo - um conjunto de técnicas de análise das comunicações.

Para Laville e Dionne (1999), a análise de conteúdo constitui “um conjunto de

vias possíveis nem sempre claramente batizadas para a revelação – alguns diriam para a

reconstrução, do sentido do conteúdo”. Para tanto, cabe ao pesquisador “fazer prova da

imaginação, de julgamento, de nuança, de prudência crítica”, ao interpretar as

informações (p. 216).

Esta técnica é um dos procedimentos metodológicos de interpretação mais

usados nas pesquisas sociais de base qualitativa (Minayo, 2004). Ela nos serve para

avançar na construção de novas categorias empíricas, e reconstrução de categorias

levantadas e analisadas em pesquisas anteriores (Laville & Dionne, 1999); ajudando-nos

a inter-relacionar conjuntos de elementos encontrados na realidade subjetiva com o

contexto o qual os sujeitos participantes estão inseridos (González-Rey, 1997, 2002).

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Com o intuito de tratar dos significados manifestos e latentes reunidos em nossa

pesquisa, priorizamos a análise temática, como uma das técnicas da análise de conteúdo.

A análise temática se processa em torno de assuntos específicos, permitindo um istmo

de possíveis relações a serem apresentadas em forma de palavras, resumo ou frase.

Laville e Dionne (1999) lembram de algumas dificuldades no trabalho com essa

técnica, pelo fato de ela possuir baixa limitação de conteúdo ou pela eventual

priorização de alguns conteúdos em relação a outros; o pesquisador deve estar atento a

isso, pois ele poderá encontrar todos esses aspectos dispersos e mesclados na realidade,

conforme a dinâmica temática de estudo. Os autores destacam que é possível se

aproximar do sentido do conteúdo, a partir de sua capacidade de compreensão dos

temas e núcleos de sentido do próprio objeto, fazendo uso de suas inferências e de

indicadores encontrados e julgados como pertinentes ao desenvolvimento da temática.

Numa pesquisa, devemos relacionar os temas sugeridos aos conteúdos e “ao conjunto

dos outros elementos aos quais vêem-se ligados e que lhes fixam o sentido e valor” (p.

217).

Processualmente, operacionalizamos essa técnica seguindo três passos básicos

sugeridos por Minayo (2004), Laville e Dionne (1999) e González-Rey (1997, 2002),

embora com distintos nomes, mas guardando etapas em comum.

O primeiro momento, agrupamento das informações mediante categorias e

temas de análise. Para Minayo (2004), essa fase é composta de uma leitura flutuante do

material, realizada com o objetivo de conhecer o conteúdo manifesto e de construir o

corpus de análise. Nesse momento, formulam-se as hipóteses e os objetivos, na tentativa

de responder as questões teoricamente colocadas e confrontá-las com a realidade.

Após a transcrição das fitas, dos registros de campo e das observações

sistemáticas, agrupamos as informações de sentido próximo, levantamos e formulamos

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as categorias de análise teóricas e empíricas, de acordo com os objetivos e temas da

pesquisa.

O segundo momento foi constituído de uma revisão crítica do material, revendo

as informações particulares e atentando para as suas singularidades, ocorrendo, assim,

“a ampliação ou a subdivisão de categorias existentes e a definição de novos critérios de

pertinência” (Laville & Dionne, 1999, p. 222).

No trabalho de revisão, realizamos um recorte do texto em unidades de registro

–palavras, frases, acontecimentos, gestos, etc – seguindo com a classificação e a

agregação das informações para escolha das categorias teóricas que norteariam as

especificidades dos temas, conservando a totalidade do discurso em torno de rubricas

claramente definidas (Minayo, 2004; Laville & Dionne, 1999).

Ao prosseguirmos, submetemos os materiais aos processos analíticos, para

sabermos acerca da relevância das informações obtidas. Nesse momento, foram

elaboradas e explicitadas as interpretações dos pesquisadores (em conjunto com a

orientadora deste estudo) e das relações estabelecidas com o arcabouço teórico adotado.

É uma fase em que “revelará que o produto da pesquisa é um momento da práxis do

pesquisador” (Minayo, 2004, p. 53).

Laville e Dionne (1999) atentam para a necessidade de se tomar precauções

diante das análises, ao comentar que “o estudo da significação de um conteúdo, a partir

do implícito, antes do manifesto, obriga a inferências às vezes delicadas, e uma falta de

cuidado, de prudência e de sentido de nuança nessas matérias pode conduzir a

conclusões, no mínimo, lamentáveis” (p. 218).

Sendo assim, o material produzido e coletado passou por diversas leituras e

discussões conjuntas dos pesquisadores envolvidos, além de revisões do professor-

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leitor, procedimentos esses que possibilitaram reflexões, a partir de diversos olhares,

ajudando-nos nas devidas precauções interpretativas da realidade.

Um procedimento adotado em nosso estudo, pelo qual acreditamos ser bastante

proveitoso para a comunidade científica, é a disponibilidade, em CD, de todo o material

produzido na comunidade de pescadores de Lucena. Esse material consta das

entrevistas, as observações da atividade e os registros de campo construídos ao longo do

ano de 2006.

Minayo (2004) ressalta que os resultados obtidos em uma pesquisa é sempre um

produto final e provisório, que “inclui, no mesmo projeto, o objeto, o sujeito do

conhecimento e as próprias interrogações em movimento totalizador” (p. 237). Pois é

essa aproximação que faz emergir uma realidade ainda não conhecida, é colocar em

questão o que ainda não está dado e o que ainda não foi desvelado.

Isto posto, buscamos então revelar a dimensão complexa e dialética da situação

social investigada, ao procurar relacionar o abstrato com o concreto, o particular com o

geral, respeitando as contradições, os condicionamentos históricos e a “dimensão

ontológica do ser humano enquanto criador” de suas próprias condições de vida

(Minayo, 2004, p. 246).

CAPÍTULO IV

Atividade de Arrasto de Praia e aSaúde dos Pescadores

O presente capítulo irá se debruçar sobre a descrição e análise da atividade de

arrasto de praia, ressaltando sua dinâmica de funcionamento e as condições de trabalho

que interagem com as condições de vida e saúde dos pescadores.

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1. O Contexto: Lucena/PB

O município de Lucena encontra-se a 50 Km de João Pessoa, capital da Paraíba,

e possui 92.4 Km2 de extensão territorial. Atualmente, boa parte de sua população, que é

constituída de aproximadamente 10.362 habitantes, sobrevive da pesca artesanal, da

agricultura e da pecuária de subsistência, além de pequena atividade de comércio local e

de serviços.

São diversos os problemas encontrados no cotidiano dessa população. A cidade

abriga a criação de grandes latifúndios de monocultura, como as plantações de cana-de-

açúcar da usina Japungu e de coco da fábrica de alimentos Maguari. A utilização de

agrotóxicos e pulverizantes para o controle de pragas nessas plantações compromete

fortemente o ecossistema e o meio ambiente local, ao serem esses produtos escoados

para as águas dos rios e manguezais, comprometendo a qualidade de vida da população

e impossibilitando, inclusive, a cata de pequeno pescado proveniente de águas interiores

(Apôitchá, 2002).

Segundo o Ministério da Educação e Cultura – MEC - (2000), estudos

ecológicos tornaram evidentes que a destruição e até a simples alteração de um único

elemento do ecossistema pode ser nocivo e mesmo fatal para o sistema como um todo.

Grandes extensões de monocultura, por exemplo, podem determinar a extinção regional

de algumas espécies e a proliferação de outras formas de vida, como os fungos

produzidos pelos rios, para digerir os agrotóxicos que chegam das lavouras de

monocultura.

A especulação imobiliária, também, é um grande problema sócio-ambiental no

município. As diversas casas de veraneio, prédios e condomínios diminuíram e

continuam diminuindo, gradativamente, as áreas de praia onde, antes, eram ocupadas

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pelas residências e vilas de pescadores, afastando estes de sua área de trabalho: a beira-

mar. Todo esse impacto é facilmente observado ao longo da costa lucenense,

provocando, também, a diminuição das extensas áreas de coqueiros nativos da região.

Em se tratando das ofertas de ocupação e renda, pouca coisa advém de seu

pequeno comércio local de base eminentemente familiar e da pequena oferta de serviços

gerais. A cidade, hoje, consta como uma das mais pobres do estado da Paraíba, ao

apresentar salário médio de R$ 158,31 (Apôitchá, 2002).

Por fim, encontramos atualmente em Lucena uma forte tendência à difusão de

criação de camarão em cativeiro. O camarão, como foi visto no capítulo 2 sobre a

contextualização geral da pesca, é o principal produto exportador do Brasil, atingindo o

equivalente à metade do total do pescado exportado em 2004. Com sua alta

rentabilidade e seu direcionamento voltado ao mercado externo, esse produto está sendo

cada vez mais incentivado pelos órgãos públicos de pesca. Isso é observado pela forte

tendência de criação de fazendas de camarão no município e em todo o país,

promovendo a devastação de áreas de mata atlântica e o afastamento de populações

ribeirinhas das áreas alagadas, como o caso de Forte Velho, lugarejo próximo à Lucena,

onde várias famílias foram retiradas de suas áreas de origem, para dar lugar à criação de

carciniculturas particulares, incentivadas pela própria prefeitura da cidade de Santa

Rita/PB.

A posição da presidência da colônia, ao indagarmos sobre projetos para os

pescadores de arrasto, é de transformar o pescador de arrasto de praia em um

“fazendeiro de peixe”, criando artificialmente, e em cativeiro, o seu próprio produto.

Ainda não sabemos bem a respeito das conseqüências desse tipo de

investimento, mas sabe-se que a política de carcinicultura e os incentivos públicos e

privados para esse tipo de investimento, além de causar impactos ao meio ambiente e

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desrespeitar patrimônios cultural e historicamente conquistados por suas populações,

promove, prioritariamente, empreendimentos privados altamente rentáveis e voltados ao

mercado externo, sem levar em conta a problemática e o padrão sócio-econômico locais.

1.1. História da pesca no município: da caça empresarial da baleia à pesca artesanal

Para fins de nosso estudo, faremos aqui um breve recorte histórico que vem

desde o início do século XX até os dias atuais, traçando um rápido perfil da pesca no

município.

É possível afirmar que, em Lucena, estão resumidos vários aspectos relativos às

discussões que apresentamos no capítulo geral sobre a pesca, principalmente o referente

à dicotomia das gestões de extração dos recursos marinhos entre o modelo industrial e o

artesanal.

O histórico da atividade em nosso contexto de estudo apresenta-nos um modelo

de pesca industrial predatório, que hoje, é proibido mundialmente: a pesca da baleia.

Esse tipo de atividade no município teve início no início do século passado, na praia de

Costinha/Lucena, e nessa época, ela era coordenada pela empresa COPESBRA -

Companhia de Pesca Norte do Brasil. Abaixo, foto datada do mesmo ano de sua

inauguração em 1911 (Hardman & Leonardi, 1982).

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Em 1957, esta empresa baleeira foi vendida a um grupo japonês. Na venda aos

japoneses, permaneceram intactos os prédios, dirigentes de alguns setores, funcionários

de terra e pescadores locais que vendiam sua força de trabalho nos navios. Foi daí que a

pesca da baleia se consolidou como uma atividade eminentemente empresarial aos

moldes internacionais. Em entrevista com um pescador aposentado de Costinha, que

trabalhou tanto para a COPESBRA quanto para os japoneses, ele expõe claramente a

transição entre essas duas fases.

Era tudo daquele jeito grosseiro, como se diz na história, o português

bem claro [...] Aí já foi uma mudança muito grande. Só tinha um

navio aí, veio logo dois do Japão [...] já veio completo de japonês

dentro [...] matava muita baleia nessa época, baleia muita mesmo,

tinha dia de até 24 baleias. Aí também o corte era mais rápido. Na

época do brasileiro, passava mais de dois dias pra cortar uma baleia;

e na época dos japoneses, quando chegou [...] a baleia “espardati”,

30 minutos, com 16 metros, 17 metros [...] Aí pronto, agora era tudo

rápido; muita baleia mas era rápido o trabalho, era ligeiro, era carne

pra todo lado.

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O que se percebe é que houve um aumento súbito na captura da baleia, e o

impacto da indústria pesqueira internacional foi bastante visível em termos de sobre-

exploração desta espécie ao longo da costa local.

Em 1981, a empresa japonesa empregava diretamente 331 pessoas, sendo 221

operários, 39 cargos administrativos e técnicos, e 31 de diversos outros serviços. As

técnicas japonesas foram ensinadas aos brasileiros; e nos navios, a atividade se resumia

à caça predatória das baleias (COPESBRA, 1981).

Foi quando ecologistas, movimentos sociais e ong´s ambientalistas, como a

Associação Paraibana dos Amigos da Natureza – APAN, empreenderam um longo

período de luta contra a pesca da baleia, que teve sua paralisação aprovada em 1985,

pelo Congresso Nacional; e em 1995, foi extinta definitivamente do litoral paraibano.

A pesca empresarial da baleia exercia grande influência na economia local.

Além dos empregos diretos, a carne da baleia era um produto extensamente

comercializado pela população que comprava e revendia para outros mercados.

Quando a pesca foi definitivamente extinta, a estrutura física foi então vendida a

um grupo português para o trabalho com viveiros de peixes e demais atividades

pesqueiras permitidas.

Como ajuda aos pescadores remanescentes da pesca da baleia, um grupo de

extensão da Universidade Federal da Paraíba tentou encaminhar projetos de cunho

associativista, empreendimento que não deu muito certo pela dificuldade de gestão que

garantisse os interesses dos pescadores na aplicação dos recursos arrendados fora do

Brasil.

Trouxe uma atividade aqui pra uma associação, arrumou um setor de

estrangeiro, que veio uma verba pra aqui pra comprar uns

barcozinho de pesca, uma rede, umas camarãozeira, uns negócio, aí

ainda deu uns empreguinho pro pessoal que pescava, aí foi o tempo

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que o organizador não soube administrar o dinheiro, ele só olhava o

lado dele e não olhava o dos pescadores, aí quando terminou a verba,

terminou tudo, acabou. Aí pronto, ficou isso [...] Foram 2 anos, foi

muito dinheiro que foi. Mas é como eu digo pra você, os dirigentes

não souberam o dinheiro que foi aplicado, ficava mais com o saco de

dinheiro.

Parece-nos que o problema da gestão dos recursos direcionados à pesca no

município é mais um entrave enfrentado pelos pescadores locais na busca de melhorias

das condições de trabalho, fato que se entende a outras instâncias públicas.

Vale ressaltar que, depois da atividade empresarial da pesca da baleia, a pesca

do camarão, nos arrastos de praia, tornou-se uma das mais importantes atividades de

trabalho desenvolvidas no município, porém ainda sem se configurar como uma

alternativa segura e viável que garanta uma renda mínima para as famílias e

comunidade de pescadores.

Este breve histórico das condições de vida e ocupação em Lucena aponta para

um caminho de constante degradação ambiental e de perda da qualidade de vida de sua

população. Dos exemplos que podemos ilustrar como conseqüências dessa realidade,

encontramos a diminuição do consumo de alimentos básicos, como peixe, camarão e

caranguejo, causada pela contaminação dos mares, rios e manguezais da região

(Apôitchá, 2002).

Contudo, a pesca ainda é a principal atividade ocupacional de sua população,

contribuindo minimamente para a alimentação das famílias e para pouca obtenção de

renda através do trabalho desenvolvido pelos pescadores locais.

1.2. A colônia de pescadores

A colônia de pescadores Z-5 Benjamin Constant, composta de 1.500 pescadores

associados, é, como toda a colônia de pescadores, equiparada ao sindicato dos

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trabalhadores rurais, através do parágrafo único do artigo 8º da Constituição Federal de

1988; órgão sindical, sem fins lucrativos e que tem como função encaminhar todo e

qualquer benefício ao pescador. Por ser um órgão representativo da categoria, passa a

ter fé pública e regula toda documentação legal referente aos direitos da pesca, dos

quais podemos citar: a aposentadoria, através de documento reconhecido pelo INSS; o

seguro desemprego do pescador; o auxílio maternidade das mulheres pescadoras; e

auxílio doença, em caso de acidentes no trabalho. Além disso, é credenciada a

encaminhar a emissão das carteiras de pesca emitidas pelos órgãos reguladores da pesca

(B.Faustino, comunicação pessoal, Janeiro 30, 2006).

A carteira de pesca profissional é concedida a todo pescador profissional, ou

seja, aquele que faz da pesca sua profissão ou meio principal de vida, que já foi inscrito

junto ao Registro Geral da Pesca - RGP, seja através da SEAP/PR – Secretaria Especial

da Pesca – em seus escritórios estaduais ou equipes itinerantes que visitam os

municípios com maior número de pescadores; ou através dos órgãos anteriormente

responsáveis por este controle: a) Superintendência de Desenvolvimento da Pesca -

SUDEPE; b) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis - IBAMA; e/ou c) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento -

MAPA.

A colônia de pescadores Benjamin Constant é constituída de uma diretoria com

secretário, tesoureiro e presidente, cada cargo com um suplente, e dois funcionários

auxiliares administrativos que trabalham na parte de secretaria da instituição. Para

subsidiar a atividade no município, a colônia contém, em sua estrutura física,

equipamentos, uma casa com salão para reuniões, uma câmara fria com capacidade de

armazenar quatro toneladas de pescado, um computador com internet e uma copiadora

multifuncional.

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Segundo o seu presidente, faltam incentivos de apoio à pesca tanto em termos de

políticas públicas municipal e estadual quanto no fomento de ações da colônia. Segundo

ele, o orçamento municipal não prevê rubrica para a pesca, dificultando, assim, o

desenvolvimento da atividade no município.

O que ficou claro em nosso trabalho de campo é que há certa divergência

política entre a secretaria de pesca da prefeitura e o corpo diretor da colônia, não sendo

promovida, entre essas duas instâncias públicas locais, nenhuma ação em conjunto que

venha a beneficiar a pesca artesanal e os pescadores do município como um todo.

1.3. Tipos de pesca atuais

De acordo com o levantamento realizado, há atualmente em Lucena basicamente

três tipos de pesca. Um é o processo de cata de caranguejo, de siri e marisco, atividade

litorânea (região banhada pelo mar ou situada à beira-mar; costa) e estuarina (tipo de foz

em que o curso de água se abre mais ou menos largamente). Também está incluída aqui

a pesca de “tarrafa” – em que uma pessoa lança rede pequena para pegar peixe, e a

pesca de “mangote” - praticada em redes pequenas que são manuseadas por duas

pessoas.

O segundo tipo de pescaria é realizado por dois ou três pescadores que

embarcam em baiteras, em jangadas e avançam cerca de 3 milhas mar adentro, com até

20 ou 30 metros de profundidade. Nesse tipo de pesca, necessita-se de gelo para que o

pescado não se estrague, pois as embarcações são pequenas e precariamente equipadas

para pegar os peixes de porte médio, como: cação, pescado, guarajuba, xixau,

garatimbóia, cioba, dourado, cavala, bonito, dentre outros. Nessa pescaria, também é

contemplada a capturada da lagosta, mas que não tem tradição na cultura da pesca local.

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E a terceira é a pesca do camarão “branco”, através dos arrastos de praia. Essa

pesca é bastante praticada e de grande herança cultural no município. Existem, hoje,

aproximadamente 50 redes de arrasto em toda a extensão litorânea do município que vai

de Costinha, passando por Fagundes, Gameleira até Lucena.

A cidade de Lucena é vista como possuidora de grandes privilégios naturais em

termos de proliferação do camarão “branco”. Nas palavras do presidente da colônia:

Lucena é privilegiadíssima pela natureza, em função dela ficar ao

norte da boca do rio Paraíba. Então todo rejeito que desce, desde

Monteiro, passando pelo açude Epitácio Pessoa, passando por

Acauã, isso vem tudo munido de contribuições orgânicas que são

lançados no mar. Como o vento e a maré empurra pro norte, essa

matéria orgânica todinha vem acabar se depositando nessas

pequenas enseadas que o mar faz de Costinha pra cá, mais

particularmente de Fagundes pra cá. O camarão de costinha é

pequeno, agora, o camarão de Fagundes e o de Lucena é hoje, pode-

se dizer que Lucena tem um dos melhores bancos camaroneiros do

nordeste. O camarão branco é único em termos de qualidade e

tamanho, isso gera aqui a formação do arrasto de praia.

2. Inserção profissional: o arrasto como “refúgio” ocupacional

Em nosso estudo, constatamos algumas características marcantes presentes na

pesca de arrasto de praia, relacionadas à forma como os pescadores se inserem

profissionalmente na atividade.

Historicamente, a pesca artesanal de arrasto de praia segue indiscutivelmente

um padrão econômico informal. Uma das principais questões em relação à

informalidade é quanto e como pode se situar essa economia sob a ótica da produção,

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sua relação com a economia formal e as questões de exclusão e acesso ao espaço

público (Conserva, 2003); e no caso da pesca, o acesso às riquezas naturais disponíveis.

Pouchmann e Amorin (citado em Conserva, 2003) analisam os índices de

participação de assalariados em ocupações formais na idade ativa e concluem que

36,1% das cidades brasileiras apresentam pouca participação nesse tipo de ocupação,

ficando às regiões Norte e Nordeste os lugares onde o trabalho assalariado não se

generalizou. Segundo os autores, isso se relaciona com a grande incidência da

agricultura familiar, do pequeno comércio e da pesca artesanal nessas localidades,

atividades estas marcadas fortemente pela economia informal.

Para Conserva (2003), o setor informal insiste em afirmar-se através de

trabalhadores movidos mediante contraposição à condição de vagabundagem e

bandidagem que a exclusão do assalariamento formal lhes atribui. Para esta autora,

realizar uma atividade informal não se traduz somente como uma estratégia de

sobrevivência econômica, mas também no sentir-pensar-agir de pessoas inseridas numa

rede social de sustentação, em especial a rede familiar e comunitária, constituída por

laços pessoais de confiança, ajuda mútua e solidariedade.

O termo informal caracteriza-se por ser polissêmico, mas podemos destacar aqui

a definição de alguns autores, ao caracterizarem esse setor como de pequena escala de

operação, qualificação adquirida fora do sistema formal de ensino, autônomo e

desprovido de regulamentação oficial (Oliveira, 1982; Cacciamalli, 1982 e Singer,

2000, citados em Conserva, 2003).

Segundo Conserva (2003), as atividades informais existentes na realidade

brasileira estão intrinsecamente relacionadas com os seguintes processos:

a) Forte influência da formação sócio-histórica da realidade brasileira,

relacionada com o regime colonial escravista e latifundiário, onde se produziu um

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sistema agro-exportador e um grande contingente de trabalhadores livres, pobres e

marginais;

b) A denominada sociedade salarial, definida por Castel (1998) como trabalho

assalariado integral, estável, bem remunerado e com proteção social, não se consumou

na realidade brasileira;

c) Acrescenta-se a tudo isso a crise econômica nos anos de 1970, com acentuada

precarização das condições e das relações formais de trabalho, produzindo uma nova

informalidade, caracterizada pela flexibilização no/do trabalho.

Dessa forma, o trabalho ou atividade informal diversifica-se em formas de

recriação e distingue-se pela produção e reprodução de sua dinâmica e funcionamento,

isto é, as atividades informais, em suas inúmeras modalidades, produzem uma

correlação com o setor formal de trabalho, sendo conhecidas pelo trabalho não-

reconhecido (Conserva, 2003).

A bipartição prática, comentada acima, traz-nos a necessidade de repensar o

setor da informalidade em nossa sociedade, no sentido de apontar para uma nova

afirmação do trabalho, ao nos referirmos sobre a sua centralidade na vida atual das

pessoas e às questões relativas à autonomia e independência, pelo menos no que tange

às representações e oportunidades de ocupações disponíveis (Schwartz, 2002; Dejours,

1993; Athayde,1999; Antunes,1995).

Nessa perspectiva, partimos da compreensão de que as redes sociais se

constituem em um parâmetro para analisarmos a atividade de arrasto de praia,

retratando, em certa medida, aspectos relevantes da trajetória histórica das formas de

organização da sociedade civil latino-americana. (Schwrer-Warrem, 1993, citado em

Conserva, 2003).

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Santos (1991), ao desenvolver seu estudo sobre redes sociais e mercado de

trabalho na Espanha, salienta os seguintes aspectos: a) a organização das ações sociais é

fator central na estruturação das redes; b) em resposta à segregação moderna do

mercado de trabalho, a sociedade utiliza relações sociais preexistentes como canais de

busca e acesso ao emprego, em outras palavras, se o mercado não funciona bem, são

acionadas antigas instituições, como a família e/ou grupos de amigos. Em sua análise,

este autor faz uso da noção de capital relacional, supondo que cada relação informal

proporciona uma espécie de vantagem ocupacional, tornando indispensável o

investimento e a revalorização das relações sociais extra-mercantilistas (Santos, 1991,

citado em Conserva, 2003).

No caso da pesca artesanal de arrasto de praia existente no município de

Lucena/PB, encontramos a reprodução de uma atividade que se insere nos limites do

que poderíamos chamar aqui de “refúgio ocupacional”, caracterizando-se como uma das

poucas alternativas de trabalho que converge, para si, um grande contingente de

trabalhadores informais em redes locais de sustentação. Essas redes relacionais são

formadas por amigos e suas famílias em busca da subsistência, as quais os mantêm na

“batalha” da vida, propiciando o acesso ao pescado e à certa remuneração proveniente

do trabalho na pesca.

Somos todos amigos e a gente sai mesmo como uma família. Aí:

-“Vamos?”, -“Vamo!” [...] A gente sai na casa de um e de outro

perguntando quem quer trabalhar [...] às vezes muda, mas, pronto, eu

tomo conta de um arrasto, por exemplo, aí vou na casa dele: -“Tu

quer ir pescar amanhã mais eu? ... eu tô tomando conta de uma

arrasto...”, -“Eu vou, que eu tô parado.”. Aí ele vai. Depois eu vou

na casa desse outro. Aí sai juntando a turma.

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Há casos, também, em que os pescadores começam a entrar na pescaria mais por

influência de amigos, denotando que a atividade se reproduz tanto na base da família, de

pai para filho, quanto nos ciclos sociais de pertença.

Teve um rapaz que me ensinou a pescar lá fora. Compadre Leví foi

quem me ensinou a pescar lá fora. Ele tava com uma idade de uns 35

anos. Ele tomava conta de motorizado, aí quando chamou, eu fui, eu

e o moreno chamado Nego de Ferro.

Foi o pessoal, os meninos me chamaram pra pescar, aí eu fui [...]

Não, meu pai não era não.

Outra forte característica relacionada com a inserção profissional desses

pescadores é que a sua grande maioria, nove dos dez entrevistados, começaram a

trabalhar ainda quando jovens, mostrando-nos que a atividade se reproduz com base no

trabalho infantil/precoce de crianças e adolescentes, com pouca ou sem nenhuma

oportunidade de ocupação.

Segundo Alberto (2002), apesar das categorias de trabalho infantil e trabalho

precoce não estarem bem definidas conceitual e sociologicamente, vamos encontrar

autores que definem trabalho infantil como aquele realizado por crianças com idade de

zero a doze anos de idade, e trabalho precoce para referir-se a pessoas que começam a

trabalhar com até pouco menos de 16 anos de idade.

Como já assinalado no capítulo que trata da contextualização da pesca, o

trabalho produtivo de crianças e adolescentes teve seu início no século XVIII, com a

expansão do maquinal capitalista e sua lógica de exploração de mão-de-obra frágil.

O abuso do trabalho infantil é bastante condenado em todo mundo. A

Organização Internacional do Trabalho – OIT - reconhece que a criança não pode

esperar para constituir-se integralmente, reservando-lhe o direito aos aspectos básicos

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favoráveis ao seu desenvolvimento. Contudo, a prática do trabalho infantil ainda não foi

efetivamente inibida pelas leis de proteção que asseguram o pleno crescimento e

desenvolvimento das crianças e adolescentes em condições de vulnerabilidade social

(Alberto. 2002).

Segundo Moura (1995), em sentido mais amplo, o desenvolvimento compreende

o amadurecimento de órgãos e sistemas internos para aquisição de novas e mais

específicas capacidades. Para analisar o crescimento e desenvolvimento de crianças e

adolescentes, o autor nos chama a atenção para os seguintes aspectos: Físico, em que

estão inseridas as mudanças de estatura e considera-se seu início na fase fetal até as

complexas variações metabólicas da puberdade; Intelectual, referente ao

amadurecimento do sistema nervoso central e a capacidade de comunicação, corrente na

idade escolar e na adolescência; e Emocional, relativo à capacidade da criança

estabelecer laços afetivos de grande significação para ela - os fatores determinantes são

os culturais e sociais.

Segundo o autor, o adequado conhecimento do crescimento e do

desenvolvimento dos indivíduos em cada etapa de vida e os fatores externos que

incidem sobre eles possibilitam uma análise avaliativa fidedigna acerca do estado e das

condições de saúde de uma determinada população.

No contexto brasileiro, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD),

realizada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE –

(2001), considerada a principal pesquisa sócio-econômica do país, estimava a existência

de 6.263 milhões de crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos de idade ocupadas em

atividades econômicas durante o ano de 2001. Além destas, foi detectada a existência de

280 mil crianças entre 5 e 9 anos de idade, também trabalhando em alguma atividade.

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De acordo com a legislação brasileira e sua Emenda Constitucional Nº 20 de 16

de dezembro de 1998, aos adolescentes de 16 a 18 anos de idade está proibida a

realização de atividades insalubres, perigosas ou penosas, trabalho noturno, ou trabalhos

que envolvam cargas pesadas, jornadas longas, e ainda os trabalhos em locais ou

serviços que lhes prejudiquem o desenvolvimento psíquico, moral e social.

Como muitas situações agressivas no trabalho precoce colocam em risco a

adequada seqüência das etapas de crescimento e desenvolvimento desses jovens, não é

tarefa fácil identificar os efeitos que os ambientes de trabalho exercem sobre crianças e

adolescentes.

Dessa forma, Moura (1995) salienta algumas conclusões em relação ao trabalho

precoce e seus riscos para a saúde: a) não é possível um organismo em desenvolvimento

expor-se aos mesmos riscos e condições de trabalho que um organismo adulto; b) o

sofrimento de um jovem colocado em trabalho cujas condições são insalubres é maior,

pois seu sistema de desintoxicação ainda não amadureceu suficientemente para lidar

com essas situações; c) ao analisarmos as defesas orgânicas que as crianças e

adolescentes utilizam contra os riscos dos ambientes de trabalho, é importante lembrar a

estreita relação entre estas capacidades e a sua alimentação, pois como se sabe, estas são

geralmente subnutridas e, com isso, podem sofrer maiores impactos no trabalho; e d) é

consenso, também, que o desenvolvimento físico desses indivíduos é afetado pelo peso

excessivo que transportam ou pelas posturas adotadas no trabalho.

Segundo Hudson (citado em Moura, 1995), são inúmeras as conseqüências do

trabalho precoce para o desenvolvimento e para a saúde dessas crianças. Podemos

apontar, ainda, como uma dessas conseqüências, a acentuada evasão escolar que impede

a formação educacional desses jovens, propensos a se tornarem futuros trabalhadores

sem qualificação.

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Consoante com essa discussão, constatamos que a inserção profissional dos

pescadores de arrasto de praia se reproduz na base da família e desenvolve-se na

formação de redes locais de trabalho, constituídas por grupos de vizinhos e amigos,

caracterizando um tipo de atividade inserida nos moldes da pequena produção e

utilizando-se, também, em certa medida, da força de trabalho infanto-juvenil.

Os principais aspetos relatados neste item ficam claramente visíveis nos

depoimentos que seguem.

,

Ah! Desde quando meu pai trabalhava, eu trabalhei também, desde

pequeno [...]. Eu me lembro quando ele dizia assim, com 8 anos: - eu

vou botar esse menino já pra pescar mas eu. [...] Eu cheguei a ser

pescador com o meu pai. Ele é quem indicou tudo, que era pra mim

pescar, pra mim poder ganhar o meu dinheiro mesmo.

Pesquei com meu pai no alto, 8 anos de idade. Aí eu comecei a pescar

de arrasto. Arrumei essa vaga com Valdinho agora. Já arrumei com

Carlinho, Sivirino. Bocado de gente eu já pesquei, e a rede que eu

quiser o povo me bota.

Percebemos, assim, que a atividade de pesca, e mais especificamente, a pesca de

arrasto de praia começa muito cedo na vida desses pescadores. Dos dez pescadores

participantes de nossa pesquisa, a média de idade a qual eles começaram a trabalhar foi

em torno dos 12 anos de idade. Essa condição é passada principalmente de pai para

filho, pois é o homem pescador quem geralmente mantém a subsistência de suas

famílias e incentiva os filhos a “batalhar” na pescaria com os amigos.

- Eu comecei a pescar com 12 anos de idade [...] Meu pai já pescava,

sabe? Aí num tinha outro serviço, ai ele me puxando logo pro

arrasto. Aí eu fui logo cedo batalhar.

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Como já explanado anteriormente, as condições de trabalho infantil são

entendidas como a influência do meio laboral e de vida proveniente de forças externas à

criança, dirigindo-a para o trabalho precocemente, fato que irá atingir, com o passar do

tempo, dimensões da saúde física e interferirá em seu desenvolvimento psíquico e social

(Alberto, 2002).

2.1. Outras atividades realizadas

Devido à baixa escolaridade, são poucas as alternativas de emprego remunerado,

sobrando para o pescadores trabalhos penosos e pouco rentáveis, como o corte da cana,

oferecido pela usina Japungu, e o trabalho na monocultura do coco, oferecido pela

empresa Maguarí, ambas com plantações (monoculturas) localizadas nos arredores do

município. Três dos dez entrevistados já prestaram serviços nos coqueirais, e quatro dos

dez entrevistados já trabalharam no corte da cana, variando de três meses a quatro anos

de serviço.

Além destas, outra atividade realizada pelos pescadores foi o trabalho na

construção civil. Três responderam que já trabalharam ou trabalham neste tipo de

serviço como um “biscate”, exercendo principalmente o papel de ajudante de pedreiro,

como forma de obter alguma renda extra e ajudar na manutenção de suas famílias.

Entre outros “biscates”, apareceram ocupações como limpar mato, faxina em

casa de veraneio, jardinagem, trabalho no comércio local, corte de lenha, produção de

carvão e pesca nos manguezais. Por fim, encontramos outras atividades já

desenvolvidas, como o caso de um deles que foi motorista, e outro que já trabalhou de

eletricista; hoje, ambos só trabalham na pesca.

Todas as evidências apontam que a pesca artesanal de arrasto de praia

configura-se como um “refúgio ocupacional” para a comunidade de baixa renda da

cidade que não tem acesso a outros meios de trabalho.

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Já fiz muita coisa aqui. Porque aqui, como a pesca é o ultimo refúgio

pra trabalho, já fiz um monte de coisa já. [...] só que na maioria das

vezes que não dá certo esse trabalho, aí tem que voltar pra pesca

mesmo.

Dada sua importância em favorecer ocupação para o contingente de homens da

cidade que não têm como garantir um emprego pouco mais rentável e seguro, é através

da pesca de arrasto de praia que os pescadores conseguem garantir a manutenção de

suas famílias e, de certo modo, uma renda mínima para sobreviver.

3. Condições e Organização do Trabalho

Ao estudar o nexo biopsíquico de uma coletividade em sua relação com o

processo de trabalho, Laurell e Noriega (1989) salientam a necessidade de se levar em

conta a construção histórica da biologia humana na definição das representações do

corpo.

A questão central colocada pelos autores é a de entender esta historicidade, como

diz Tambellini, através dos “modos de andar a vida”, que definem a adaptabilidade do

ser humano em responder com plasticidade às condições específicas de seu

desenvolvimento. Isso se traduz em mudanças específicas nos processos corporais,

expressadas em características biológicas, não significando essa adequação um retorno

ao normal, mas podendo metamorfosear-se em uma contínua desintegração do corpo

físico (Laurell & Noriega, 1989).

Ao se remeter as características do processo de trabalho no modelo capitalista, é

preciso não esquecer que sua finalidade estratégica é a extração da mais-valia, posto em

jogo em determinado momento histórico pelo processo de valorização. Nesse sentido, o

processo de trabalho torna-se a “materialização do processo de valorização e divisão do

trabalho, e somente decifrável a partir dele” (Laurell & Noriega, 1989, p. 105).

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Partimos, então, para a descrição e entendimento dos elementos dinâmicos

presentes na atividade de arrasto de praia que, conforme veremos mais adiante,

influenciam a saúde dos pescadores.

3.1. Formação das “turmas” de arrasto

De acordo com o que foi discutido, o arrasto de praia é uma categoria de

agrupamento social, enraizada nos moldes do trabalho informal, o que denota a

construção comunitária de redes locais onde a atividade é reproduzida (Schwrer-

Warrem, 1993, citado em Conserva, 2003).

Nesse sentido, as turmas de arrasto são formadas mediante vínculos de trabalho

entre vizinhos, amigos e parentes (pais, filhos, sobrinhos, tio, enteado, netos, etc). As

“turmas” se organizam de diferentes formas; uma delas é constituída por sete ou seis

pescadores. Este desenho organizacional é um dos mais usuais na realidade da pesca do

arrasto de praia em Lucena, onde há seis pescadores, um deles desempenhando a função

de “cordeiro”, e o sétimo integrante exercendo a função de “mestre de rede”. Existem

turmas em que o mestre forma o sexto pescador, número mínimo para que o trabalho no

arrasto se realize.

Tem o mestre, tem 6 pescador, 7 com o mestre. O mestre serve pra

varejar e fazer corda e os 6 pescador pra puxar, agora fica três de

um lado e 3 do outro.

Geralmente, essas equipes de arrasto são formadas a partir de um “dono de

rede”, o qual também possui os outros instrumentos de pesca, como a jangada, as varas,

a bóia e etc. O dono desses meios de produção, na maioria das vezes, não participa

diretamente da pesca, transferindo a responsabilidade gerencial do arrasto (instrumentos

e pescadores) para um “mestre de rede”, o qual tem a função de juntar a turma e

organizar o trabalho.

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A gente sai na casa de um e de outro perguntando quem quer

trabalhar [...] pronto, eu tomo conta de um arrasto, por exemplo, aí

vou na casa dele: -“Tu quer ir pescar amanhã mais eu? ... eu tô

tomando conta de um arrasto...”, -“Eu vou, que eu tô parado.”. Aí

ele vai. Depois eu vou na casa desse outro. Aí sai juntando a turma

[...] Aí eu digo: - pois amanhã, na hora da pescaria, a gente sai de

casa em casa chamando.

O “mestre de rede” é o responsável direto pelo intercâmbio entre os pescadores

que fazem parte da “turma” e o “dono do arrasto”, ficando, também, encarregado de

efetuar o pagamento e demais acordos de trabalho.

Além das “turmas de arrasto” que realizam a atividade propriamente dita, na

cadeia produtiva local do arrasto de praia há a participação do “pombeiro”, que é a

pessoa que compra o camarão semanalmente dos pescadores, mediante a negociação

com o “mestre de rede”. Há casos em que o “dono do arrasto” é o próprio “pombeiro”.

Outro tipo de “turma de arrasto” é quando o “dono da rede” e dos instrumentos

de trabalho é o próprio “mestre de rede”. Nesse caso, ele também participa diretamente

do trabalho de arrasto com os outros pescadores e tem as mesmas funções que qualquer

outro mestre. O pescado, como todos os outros arrastos, é sempre escoado

imediatamente para um “pombeiro”, que junta o montante de cada dia de trabalho para

efetuar um único pagamento, de acordo com a produção realizada.

3.2. O pagamento: divisão do “quinhão”

Quando chega o dia do pagamento, que é geralmente efetuado aos sábados, o

mestre encarregado do arrasto “faz as contas” na casa do “pombeiro” ou do “dono do

arrasto” e, depois, desloca-se de casa em casa para pagar o “quinhão” dos pescadores.

A divisão da produção é feita da seguinte forma: do total capturado, ocorre a

repartição mediante as quotas-parte, o “quinhão”. O “quinhão” é um décimo do total do

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pescado, ou seja, dividida a produção em dez partes iguais, o “quinhão” é um décimo

dessas partes.

Para entender melhor, podemos acompanhar o seguinte exemplo: se numa

semana foi capturado 10 quilos de camarão “branco”, vendido à R$ 12,00 o quilo e 50

quilos de camarão “espegudo”, vendido à R$ 2,00 o quilo, então a produção total dessa

rede nessa semana equivale à R$ 220,00, ou seja, R$ 120,00 do total de camarão do tipo

“branco” e R$ 100,00 do camarão tipo “espegudo”. Um quinhão nessa produção

equivale então a R$ 22,00. Isso quer dizer, então, que cada pescador tem direito a

ganhar R$ 22,00 pela produção realizada na semana.

São diferentes divisões do “quinhão”, de acordo com as diferentes funções

exercidas no trabalho. O “pescador de arrasto” fica com o equivalente a um “quinhão”

por seu trabalho, que consiste em descer e subir a jangada, puxar a rede, manusear os

demais instrumentos de trabalho e resolver os imprevistos da pesca, como veremos mais

adiante.

O “cordeiro”, que é a pessoa que fica responsável por “fazer as cordas” e de

desempenhar as tarefas que o “mestre de rede” designa realizar, ganha meio (½)

“quinhão” por produção.

No caso do mestre, se este trabalha para um “dono de rede”, ele ganha um

“quinhão” e meio. O meio “quinhão” é pago pelo “dono do arrasto”, referente à sua

responsabilidade perante os instrumentos de pesca e pescadores. Se esse mesmo mestre

costurar a rede, que é um saber-fazer bastante valorizado no meio de trabalho, ele ganha

mais meio “quinhão” do dono, computando um total de dois “quinhões” do valor

produzido semanalmente no arrasto.

Se o “mestre de rede” for o próprio “dono da rede” e pescar junto, formando o

sexteto da pescaria, ele fica com seu “quinhão” de pescador e mais quatro “quinhões”

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referente à propriedade dos instrumentos de trabalho. Então, ele fica com 50% do total,

ou seja, o “quinhão” de pescador e mais quatro por possuir a rede, jangada e demais

instrumentos.

São poucos os pescadores que têm os próprios meios de trabalho, prevalecendo o

tipo de relação entre o “dono do arrasto”, o “mestre” e os “pescadores de arrasto”. A

divisão do “quinhão” segue respectivamente a ordem hierárquica do que ganha mais

para o que ganha menos, ou seja, do “dono do arrasto”, que chega a ganhar até quatro

quinhões, e o “cordeiro”, que ganha apenas meio quinhão do total de camarão

capturado.

Outro aspecto relativo à dinâmica de pagamento dos trabalhadores são os

diferentes preços do produto. O “peixe de praia” ou “sardinha” é vendido a R$ 0,30 ou

R$ 0,40 o quilo. O camarão “espegudo”, que é o menor dos três tipos de camarão, varia

entre R$ 0,50 e R$ 2,00 o quilo. Já o camarão do tipo “branquinho”, que tem um

tamanho mediano, é vendido a R$ 4,00, podendo chegar, dependendo da época do ano,

até R$ 8,00 o quilo. E o principal produto, o camarão “branco” (Litopenaeues schimitti),

o maior deles, varia entre R$ 10,00 e R$ 20,00 o quilo.

De fato, a variação dos preços do produto ofertados pelo “pombeiro”, o

atravessador, interfere diretamente na obtenção de renda e na vida dos pescadores de

arrasto. Entre os pescadores entrevistados, como dissemos anteriormente, a média da

renda na atividade varia entre R$ 20,00 e R$ 280,00 mensais. Essa variação se dá tanto

em termos das variabilidades climáticas referentes à procriação do pescado do mar

quanto pelo preço que é estipulado pelos “pombeiros” na hora de comprar o produto dos

pescadores.

Se ele paga uma semana de 15, na outra semana ele já abaixa para

12. Aí quando ele paga aquela semana de R$12,00, na outra ele já

abaixa pra R$10,00. Sempre é R$ 2,00 á mais que ele tira, desconta.

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Aí quando pensa que não, está de 6, de 7, aí vai aumenta pra 8. No

carnaval é que aumenta mais um pouquinho, aumenta o camarão um

pouquinho. O único que tem o preço normal só é o peixe, que é R$

0,40 o quilo, e de R$ 0,40 não sobe nem desce.

Contudo, algumas sugestões de melhorias das condições de trabalho são dadas

pelos pescadores como medidas que poderiam melhorar sua renda. Mesmo assim, as

sugestões elaboradas por eles não ultrapassam a relação com o “dono da rede”, em

termos da divisão do “quinhão”, nem a relação de entrega e venda do produto ao

“pombeiro”; faltando-lhes, assim, projeções mais claras e de maior impacto social para

que melhorias sejam realmente efetivadas.

O problema da condição do arrasto aqui em Lucena... A condição

que tinha era se o camarão aumentasse e ficasse naquela preço

mesmo, que nem... uma comparação: você vai comprar no

supermercado, o preço não é aquele no mercado!? Aí se o camarão,

quando a gente fosse entregar, fosse só aquele preço, fosse R$ 12,00;

se chegasse a R$15:00.

Ao menos deixava 80% pros pescadores, ficava só 20% pro dono.

Melhorava mais pros pescadores. A gente pesca com 6, dividido pra

10. De R$ 100,00, fica só 10 pra cada um, 40 pro dono. Que é 2 da

jangada e 2 da rede (nesse caso, 2 quinhões).

Em muitos casos, há a falta de perspectiva de que essa estrutura mude, pelo fato

de não haver incentivos que possibilitem uma outra forma de organização da cadeia

produtiva local.

Só que é aquela coisa, nunca vai mudar. O pescador ganha isso e é

isso mesmo. Poderia ser algum pescador dono de rede [...] algum

dono de rede aí poderia ter a consciência disso [...] mas isso não

acontece não, desde o início a mesma coisa. O pescador ganha isso e

pronto.

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Outras sugestões de melhorias nas condições de vida e renda são expressas com

o intuito de deixar o trabalho da pesca e vender sua força de trabalho para a indústria.

Eu acho que tá faltando tudo. Agora, a gente vive de maré porque a

gente aqui não tem uma indústria pra empregar ninguém, emprego,

esses negócio [...] O negócio é esse, eu acho que todos os pescadores

pensam assim.

Devido à complexidade de fatores, elaborar sugestões que dessem condições

reais de mudança é tarefa bastante difícil para esses pescadores ao refletirem sobre o

cotidiano do seu trabalho. Parecem faltar-lhes perspectivas que possibilitem a

construção de outros modos de desenvolver a pesca local, imaginando que o melhor

para si seria exercer sua força de trabalho em empregos formais, heterogestionários.

Com o baixo nível de renda no arrasto, alguns pescadores só conseguem manter

suas famílias com a ajuda de programas do governo federal, como a bolsa família, que

auxilia a educação de menores mediante ajuda financeira.

Ou vendia ou dava pra comer mesmo, porque o dinheiro [...] Minha

mãe começa a receber agora a bolsa família.

Essa problemática econômica poderia ser amenizada, se fosse reconhecido o

período de defeso do camarão branco (Litopenaeues schimitti) em Lucena/PB. Para não

chegarmos a um colapso da pesca, as épocas de defeso foram estipuladas pelo IBAMA

e consistem em períodos de paralisação obrigatória da pesca de determinado recurso

pesqueiro. O defeso também prevê pagamento de três a quatro meses aos pescadores, ao

paralisarem suas atividades, fato que ajuda no desenvolvimento e reprodução de

espécies marinhas sobrexploradas.

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A reivindicação realizada pela colônia de pescadores Benjamin Constant desde

2000, até hoje, por divergências de técnicas de análise da biologia marinha local, ainda

não foi concedido pelo IBMA.

Para os pescadores com carteira de pesca e regulares com as contribuições

previdenciárias dirigidas à colônia, há, todo o ano, a emissão do seguro desemprego,

mediante o estabelecimento de inscrição como segurado especial. Os pescadores, nessas

condições, recebem três salários mínimos por ano da previdência pública social.

No caso dos pescadores participantes de nosso estudo, poucos são os que

adquiriram a carteira profissional de pescador artesanal. De fato, em nosso

levantamento, a grande maioria dos pescadores de arrasto não usufrui devidamente dos

seus direitos de pesca, e desse modo, não recebem a devida ajuda previdenciária.

3.3. Instrumentos de trabalho

A pesca artesanal de arrasto de praia só é possível a partir de um número mínimo

de instrumentos de trabalho, indispensáveis para realização de suas diversas etapas

simultâneas. Para obter esse material, no intuito de formar um arrasto de praia, é preciso

ter um investimento base que varia de R$ 7.000,00 a R$ 10.000,00; quantia esta

bastante dispendiosa para a realidade sócio-econômica dos pescadores locais.

Sigamos, então, com a apresentação, em fotos, dos instrumentos necessários com

uma sucinta explicação de sua utilidade:

a) a “rede de arrasto”

Podemos afirmar que a “rede de arrasto” é o principal instrumento de trabalho

da pesca de arrasto de praia, pois é nela que vêm o camarão e os peixes. Abaixo, vemos

uma “rede de arrasto”, à beira-mar, onde são guardados alguns instrumentos de

trabalho.

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Próprio Autor, janeiro de 2007

As redes variam de tamanho, entre 80 braças (≈ 140 metros) e 200 braças (≈ 400

metros), e seu peso, quando seca, fica em torno de 300 a 400 quilos. Em dias de

trabalho, quando as redes entram e saem da água, elas podem chegar a pesar até pouco

mais de 500 quilos, ou seja, meia (½) tonelada; peso carregado pelos pescadores em

toda jornada de trabalho. No meio da rede, existe o que os pescadores chamam de

“cópi”, que é uma espécie de “saco” onde o pescado se acumula durante a “puxada da

rede”.

b) a “jangada”

A jangada é a embarcação que transporta os pescadores ao mar, para que a rede

seja lançada e, posteriormente, puxada pelos pescadores em terra firma. O fundo dessa

embarcação é preenchido por isopor e seu revestimento é de madeira. São embarcações

feitas geralmente pelos próprios pescadores.

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P. A., janeiro de 2007c) a “caiçara”

A “caiçara” é o local onde são guardados os instrumentos de pesca, assim como

o “combo”. A “caiçara”, como é visível na foto, é uma espécie de casa, e nela, o

pescador pode proteger o material da chuva, do sol intenso e de possíveis furtos. É uma

construção feita de palha de coco e madeira, localizada, geralmente, à beira-mar.

P. A., janeiro de 2007

Dentro dessa “caiçara” há o que é conhecido como “tanque”, lugar onde é

realizada quinzenal ou mensalmente uma tintura na rede para sua manutenção. Não é

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toda a “caiçara” que tem um “tanque”, podendo esse serviço de manutenção ser feita em

outro lugar, na casa do mestre ou do “dono da rede”.

P. A., janeiro de 2007

d) os “chumbos”

Os “chumbos são colocados ao longo da corda da rede, na sua parte de baixo,

para que esta possa, no decorrer do percurso de volta à terra, vir arrastando tudo que

estiver no fundo do mar. Colocar o “chumbo” na corda da rede é um dos passos para se

confeccionar uma “rede de arrasto”.

P. A., janeiro de 2007

e) as “bóias”1

Assim como os “chumbos”, as “bóias” também são fixadas pelos pescadores ao

longo da corda da rede, só que, nesse caso, na sua parte superior para que essa possa

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flutuar na parte de cima, permitindo a abertura necessária para que os peixes sejam

capturados no seu meio, no “cópi” ou “saco”.

P. A., janeiro de 2007

f) as “cordas”

Para que a rede seja lançada e puxada de dentro do mar, é preciso que haja

bastante corda. Os pescadores puxam-nas em sua cintura e executa a “puxada de rede”,

trazendo a rede e o pescado até a areia da praia.

P. A., janeiro de 2007

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g) as “varas”

As “varas” do arrasto servem como remos, porém sua função é tocar o fundo do

mar para projetar a jangada na direção que o pescador deseja, no momento de subida e

de volta do “lance da rede” no mar. Há pescadores que colocam uma proteção de metal

na ponta da “vara” que toca o fundo, como manutenção desse material.

P. A., janeiro de 2007h) o “balaio”

O “balaio” é o cesto onde é guardado o pescado capturado pela rede. No

“balaio”, geralmente é depositado somente os três tipos de camarão que serão depois

pesados pelos pescadores na entrega ao “pombeiro” ou “dono da rede”. Existem, no

máximo, dois balaios por rede de arrasto.

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P. A., janeiro de 2007

i) o “calão”

O “calão” serve para fixar as duas extremidades laterais da rede, quando esta é

lançada ao mar, e sua função é dar estabilidade à “puxada de rede”.

P. A., janeiro de 2007

As cordas, que os pescadores manuseiam para arrastar a rede no mar, são

fixadas diretamente nos dois “calões”, correspondentes às duas pontas da rede. Na

armação do “combo” (lugar onde a rede e a jangada são guardadas), o “calão” serve de

apoio para armar sua estrutura, ficando a rede apoiada sobre eles.

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j) os “pequis”

2

Os “pequis” são quatro varas menores, com uma ponta dupla que serve de base

para armar a estrutura do “combo”, fixadas perpendicularmente à areia. Os “pequis”

ficam numa base de quatro, paralelos uns aos outros, dando apoio à colocação do

“calão”. Além de estruturar a armação do “combo”, os “péquis” e o “calão” são fixados,

também, no momento em que os pescadores vão lavar a rede com água do mar,

guardando-a, em seguida, para o próximo dia de trabalho.

P. A., janeiro de 2007

l) o “capitão”

O “capitão” é um tipo de bóia que fica presa ao meio da rede de arrasto,

fazendo com que os pescadores puxem-na de forma simétrica, não deixando que um

lado do arrasto seja puxado mais do que o outro. É a única forma de saber onde está o

meio da rede, quando esta vem sendo puxada submersa na água.

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Cecília Nizarala, janeiro de 2007

m) as “puxadeiras”

Para puxar a rede de arrasto do mar, os pescadores usam as “puxadeiras”,

prendendo-as na altura da cintura e amarrando suas cordas nas cordas que vêm

arrastando a rede pelo “calão”. Em análise ergonômica, como será visto mais adiante,

detectamos que esse instrumento de trabalho causa sérios problemas para a saúde física

dos pescadores.

P. A., janeiro de 2007

n) os “rolos”

Os “rolos” são troncos de coqueiros que têm a utilidade de fazer a jangada

descer e subir do “combo” para o início e termino da atividade, bem como de fazê-la

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entrar e sair da água. São usados dois “rolos” para essas tarefas; a jangada é colocada

em cima e, na medida em que ela vai sendo conduzida para o local desejado, vai um

pescador, pega o rolo de trás e passa para frente, e assim, sucessivamente.

P. A., janeiro de 2007

o) “agulhas e linhas”1

Para remendar a rede, os pescadores utilizam agulha e linhas especiais.

Frequentemente, alguns peixes arrebentam suas gomas ou algum outro obstáculo

durante a “puxada de rede” pode danificar sua estrutura. Remendar a rede é um saber

prático (savoir-faire) de alguns mestres de arrasto, sabedoria bastante valorizada pela

comunidade local.

P. A., janeiro de 2007

3.4. No curso da atividade

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Guérin et al. (2001) e Daniellou, Laville e Teiger (1989) definem tarefa ou

trabalho prescrito como tudo aquilo que é determinado anteriormente, como forma de

antecipar os resultados esperados. Para esses autores, a prescrição é imprescindível para

a organização de todo e qualquer trabalho. Mesmo assim, durante a jornada de trabalho,

a prescrição não é suficiente e os trabalhadores são levados a administrar ativamente

seus recursos físicos e mentais de forma a conceber a realização da atividade, entendida

aqui como o trabalho real.

De acordo com essa discussão sobre a prescrição do trabalho, Schwartz (1995,

2001), grande ícone da ergologia, afirma que todo trabalho é constituído por normas

antecedentes que são cristalizadas a partir das aquisições da inteligência, da experiência

coletiva e dos poderes estabelecidos. Em seu caráter híbrido, as normas antecedentes

são constituídas de três aspectos básicos. O primeiro é que ela é elaborada

hierarquicamente, a partir de uma expressão de poder dogmático, amparado social e

cientificamente. O segundo aspecto salienta que essas normas são construções

históricas, fazendo parte de um patrimônio lingüístico-conceitual de determinado povo

sobre seus próprios avanços técnicos. E em terceiro, as normas sofrem grande influência

dos valores. Esses valores são objetos de debates, de conflitos e atendem aos anseios

das pessoas que vivem em sociedade, sob a regência de instituições e são criados,

também, nos ambientes coletivos de trabalho.

Na pesca de arrasto de praia, o trabalho a ser realizado é passado culturalmente

pelo conhecimento comunitário, e sua reprodução se dá na base da família, dos mais

velhos para os mais jovens, ou seja, quando os pais encaminham seus filhos para o

trabalho na pesca.

Nesse sentido, como salienta Muniz (2000), apoiado nas contribuições teóricas

da ergologia, a noção de tarefa se encontra inserida dentro de uma dimensão histórica

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onde se processa a atividade. Com isso, podemos afirmar que a prescrição, além de

tentar prever as ordens das ações e planejar o trabalho, é constituída do patrimônio

histórico que leva ao aprimoramento técnico e organizacional da atividade, dependendo

diretamente das representações dos trabalhadores para sua execução. A partir das

representações compartilhadas entre os trabalhadores, o indivíduo interpreta a tarefa e se

integra ao trabalho, construindo novos modos operatórios.

Dessa forma, na idade em que é designado ao jovem participar do trabalho para

contribuir na manutenção da família, o aprendizado prático acontece na realização do

ofício, a partir da relação entre o indivíduo e as tarefas a serem executadas, ou seja, o

aprendizado acontece no dia-a-dia.

É porque você pensa que tá fazendo de um jeito, só que não é, é de

um jeito diferente. Aí a gente tem que receber instrução.

Sobre negócio de pescaria, pra dizer como o cabra pesca, não. A

gente desenrola a gente mesmo.

Nesse sentido, devemos considerar que a formação do trabalhador só é possível a

partir da relação que é estabelecida com o trabalho, ou seja, no contato com as normas e

valores transpassados no repertório prático das ações e funções difundidas no trabalho

(Dejours, 1992; Dejours & Abdoucheli, 1994).

Os dias de trabalho no arrasto de praia são de segunda a sábado. O domingo é

um dia em que o expediente é facultativo, podendo ser um momento de descanso do

trabalho realizado durante toda a semana, ou a possibilidade de os pescadores poderem

aumentar a produção e ganhar um pouco mais. Geralmente, quando se trabalha no

domingo, eles folgam na segunda-feira, chamando essa folga de “dominguinho”.

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O trabalho é gerenciado, como vimos, pelo “mestre de rede”, que detém a função

de agrupar a equipe de pescadores do “seu arrasto”, manter o bom funcionamento dos

instrumentos e fazer a mediação entre os pescadores, o “dono da rede” e o “pombeiro”.

No momento de iniciar a pescaria, quando são acionados um por um pelo mestre,

cada pescador vai mobilizando-se para o trabalho e esperam em pontos determinados da

praia, para dar início à jornada diária. Quando a turma está completa, segue-se, então, a

pescaria com base, geralmente, em sete pescadores, desempenhando suas respectivas

funções, mediante as etapas seqüenciais que o arrasto de praia requer.

Destacamos, a seguir, as principais etapas do arrasto de praia, com algumas

imagens ilustrativas, compreendendo desde o seu início, quando os pescadores já estão

reunidos à beira-mar, até o seu término, quando estes partem para suas casas.

a) Descer a rede, jangada e varas

Todos os pescadores realizam essa etapa inicial. Os equipamentos ficam

guardados no “combo”, geralmente com exceção do “balaio”, das “puxadeiras” e das

“cordas”.

Para descer a jangada, os pescadores precisam utilizar os “rolos”, que são

troncos de coqueiros que facilitam o deslocamento da jangada para o mar. Retira-se

então a rede do “combo”, coloca-se na jangada juntamente com as “cordas”, os dois

“calões” e as duas “varas”. Essa etapa inicial de descida do material é bastante rápida,

dura cerca de dois minutos. Nesse momento, sobem três pescadores na jangada com o

material necessário para realizar o “lance de rede”: a rede, as duas varas, as “peças” de

corda e os dois “calões”.

b) “Lance de rede”

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Essa é a principal etapa do arrasto, em que é escolhida a direção e o local para

onde a rede vai ser lançada. Nesse momento, é preciso experiência para saber

exatamente onde pode estar o cardume de camarão, com base na observação dos ventos

e no movimento da maré.

Com a jangada no mar, é fixada uma ponta de corda em um dos “péquis” fixado

em terra firme. Em seguida, dois pescadores vão “varejando” (empurrando a jangada

com as varas) até certa altura no mar, em direção ao horizonte, aproximadamente de 300

a 500 metros. Atingida essa distância, eles então giram 90º (em direção norte ou sul) e

vão soltando a rede ao longo do percurso numa trajetória paralela à praia. Depois, eles

voltam em direção à terra firme, trazendo a outra extremidade das cordas presa ao outro

“calão” da rede. Essa fase do trabalho, que compreende o “lance de rede”, dura em

torno de 14 minutos. É nesse momento, então, que os pescadores em terra firme

começam a “puxada da rede”.

c) “Puxada de rede”

Depois que a jangada chega com os três pescadores e a outra extremidade das

cordas que ficam presas aos “calões” da rede, começa então a “puxada de rede”.

Utilizando as “puxadeiras”, que são amarradas na base da cintura, os pescadores forçam

a puxada através de um nó que é dado para fixar a corda da “puxadeira” às cordas

presas aos “calões” da rede que vem sendo arrastada.

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Victor Manuel, janeiro de 2006

À medida que a rede é puxada, os pescadores e as pontas das cordas vão se

aproximando gradativamente até um ponto onde elas se cruzam, coincidindo com a

chegada da rede à beira-mar. Os pescadores passam, em média, 36 a 40 minutos

puxando a rede do mar.

e) “Encalhar e virar a rede”

Esse é um momento áureo da pesca de arrasto, em que os pescadores podem ver

o quanto de pescado foi capturado. Nessa etapa, a equipe tem muito cuidado para fechar

as duas extremidades verticais da rede para o camarão e os peixes não saírem dela.

Outros pescadores vêm ajudar nessa fase. Passa-se, então, a puxar a rede com mais

pessoas que o início, até porque, é nessa saída da água que a rede fica mais pesada e

exige mais da força física dos pescadores, que chamam esse instante de “encalhar a

rede”.

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Victor Manuel, janeiro de 2006

Daí, a rede é então arrastada pelas mãos até aproximadamente cinco metros fora

da água, e virada para soltar o pescado e o sargaço que foram arrastados. Essa fase dura

em torno de sete a dez minutos.

f) “Catação do lance”

2

No momento em que o pescado capturado é despejado na areia da praia, começa-

se, então, a “catação do lance”, que consiste em separar do sargaço o camarão e os

peixes. Enquanto os outros três pescadores vão preparar a rede para o próximo lance, o

restante da turma fica na “catação”, com a ajuda de outras pessoas que contribuem nesta

etapa. Como veremos, nem todos os pescadores gostam de realizar essa parte da

pescaria, que dura em torno de 30 a 40 minutos em média.

É nesse momento, também, que entram em cena as “catadeiras”, que são

mulheres da comunidade, que vão para a beira-mar ajudar na “catação” do arrasto, e

com isso, ganhar algum “peixe de praia” para ajudar na alimentação em casa.

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Victor Manuel, janeiro de 2006

d) “Fazer cordas”

No decorrer da “puxada de rede”, as cordas vão se acumulando ao longo da praia

e um pescador fica encarregado de “fazer as cordas”, que consiste em enrolá-las em

forma de circulo, preparando-as para utilizá-las no próximo lance de rede. Essa é uma

função designada ao “cordeiro”, mas existem casos em que o “mestre de rede” faz essa

tarefa.

Os mais jovens, ao se integrarem inicialmente à atividade de arrasto, começam

desempenhando a função de “cordeiro”, que detém a responsabilidade de “fazer as

cordas” e fazer o que o mestre da rede ordenar. Por essa função ser relativamente “mais

leve” que as demais, ela é geralmente recomendada para os menos experientes que

queiram começar na atividade, ou mesmo para aqueles que têm algum problema de

saúde.

g) “Bater a rede”

Assim como as cordas são “feitas”, quando o material capturado pela rede é

despejado na areia, e dá-se início a “catação do lance”, imediatamente os pescadores

vão “bater a rede”, que consiste em retirar os restos de sargaço e peixe que ficam

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fixados na rede. Essa tarefa é feita com a rede colocada em cima da jangada, e serve

como uma preparação para o próximo “lance de rede”.

Podemos considerar que até aqui foi realizado um “ciclo” da pesca de arrasto,

que consiste na realização do “lance de rede”, passando pela “puxada de rede”, até a

virada do material na areia da praia e início da “catação”. Cada ciclo desses, ou cada

“lance”, é realizado numa média de 1 hora e 15 minutos, sem contar com o tempo total

de “catação do lance”. Dependendo das condições climáticas do dia e da época do ano,

os pescadores chegam a trabalhar até 14 horas seguidas, parando somente para realizar

as principais refeições (café da manhã e almoço), dando uma média de nove a dez

lances por dia.

Agora, a maré grande [...] Aí a gente vai, se tiver bom, a gente pesca

o dia todo [...] Se tiver boa a gente rola o dia [...] Quando tá bom

mesmo a gente começa de 3hs, saí de 3hs daqui e chega de 6 da noite,

estando bom.

Terminada a jornada diária, os pescadores então limpam definitivamente a rede

na beira-mar da praia, utilizando a água do mar, juntamente com os “pequis” e os

“calões”, depois, sobem todo esse material para montar o “combo’ mais acima. Nesse

momento, eles também empurram a jangada e o restante dos instrumentos para o

“combo”, as “puxadeiras”, o “balaio” e as cordas, eles guardam na “caiçara” ou o

mestre leva para a sua casa.

h) Separar, pesar e entregar o camarão

Por fim, com todo o camarão catado no “balaio”, dois a três pescadores e o

mestre levam-no para um local de pesagem (podendo ser tanto na casa do “pombeiro”

ou do “dono da rede”, como no mercado público), onde serão separados os três tipos de

camarão - o “branco”, “branquinho” e o “espegudo” - e anotadas as suas respectivas

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quantias. Os “peixes de praia”, escolhidos para o baleio, são geralmente repartidos entre

os pescadores. Daí então, todo o camarão vai ser entregue ao “pombeiro” ou “dono do

arrasto”, para ser armazenado e, posteriormente, vendido em outros mercados.

Variabilidades do trabalho

Para Athayde (1996), os estudos desenvolvidos sobre a atividade de trabalho

pelos ergonomistas fizeram emergir um cenário onde a variabilidade é fator central na

determinação das condições reais de trabalho. E, para dar conta da produção, os

trabalhadores fazem uso constate de mecanismos cognitivos de previsão, antecipação e

prevenção de incidentes que surgem regularmente no curso da atividade.

Guérin et al. (2001) salientam que a defasagem sempre existente entre o

trabalho prescrito e o trabalho real faz surgir dois tipos de variabilidade. Um tipo é a

variabilidade normal, que seria correspondente a cada atividade e, por isso,

parcialmente previsível e controlada. E a outra, é a variabilidade incidental, que não

pode ser prevista e nem controlada pela prescrição. No entanto, esta última pode ser

previamente detectada pelos trabalhadores, através da percepção de sinais no trabalho

que apontam para a disfunção.

Além da variabilidade de trabalho, os autores supracitados salientam a

existência de uma outra variabilidade que é inerente ao ser humano, dividindo-a em

intra-individual, mudanças internas ao indivíduo; e inter-individual, que se manifesta

entre os trabalhadores.

A existência das variabilidades leva os trabalhadores a regularem o trabalho

tanto individual quanto coletivamente, construindo formas de agir no momento da

realização da atividade. Segundo Daniellou et al. (1989), regular os diversos tipos de

variabilidades que surgem no processo da atividade implica em mudanças nos modos

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operatórios de realizar o trabalho. Essas mudanças visam principalmente manter a

segurança e a qualidade da produção no trabalho.

Na pesca artesanal de arrasto de praia, a primeira dessas variabilidades é

referente aos ciclos das marés, seguida da condição do tempo (se está chovendo ou não).

O primeiro passo de um dia de trabalho na pesca de arrasto é saber a hora em

que a maré começará a baixar. Os pescadores, com seu conhecimento cultural e prático

(teleológico), desenvolvido pela experiência (Schwartz, 1998), sabem os horários de

variação da maré e, com isso, prevêem, com exatidão, a hora em que ela estará no

momento propício para iniciar a jornada laboral.

Como se sabe, a terra realiza uma volta em torno de si mesma a cada 24 horas.

A lua se move ao redor da terra, e isso faz com que o ciclo das marés se complete a cada

24 horas, 50 minutos e 24 segundos em média. Como são duas marés durante todo o

dia, contando com a noite, a água sobe e desce a cada 12 horas, 25 minutos e 14

segundos. As marés repetem-se com regularidade, contudo chegam todos os dias

aproximadamente 48 minutos mais tarde do que o dia anterior, e atinge a sua amplitude

máxima a cada 15 dias.

Quando é identificado o horário em que a maré começa a baixar, a próxima

condição que permitirá a realização da pescaria será a qualidade do tempo. Se o tempo

estiver chuvoso, dificilmente os pescadores enfrentarão o mar, pois nessas condições é

exigido ainda mais esforço físico ao lidar com os ventos e a maré forte.

Às vezes, quando o vento está acelerado, ninguém entra porque vai

ter dificuldade de encarar o lance, aí vai sofrer mais, aí ninguém

entra. Mas quando o vento tá bom, porque a gente também tá ali com

o vento.

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Percebe-se que, em dias em que amanhece chovendo, os pescadores afirmam ser

mais difícil o trabalho pelo fato do “mau tempo” exigir mais esforço físico e a

temperatura ser mais baixa, dificultando inclusive a saída deles de suas casas.

Só quando a gente tá no tempo, o tempo tá enxuto é um dia bom do

caba trabalhar, mas quando tá chovendo, eu não saio nem de dentro

de casa.

Mesmo com todos os elementos acima citados estando favoráveis à realização

da atividade, é somente quando é dado o primeiro lance que os pescadores conseguem

prever efetivamente se o dia será de longa jornada de trabalho ou se “não dará produto”,

interrompendo então a pescaria no primeiro ou segundo lance.

Os ciclos sazonais, como as diferentes estações do ano, também determinam

épocas em que a pesca será boa ou não.

Agora no verão, nesse mês que entra em diante, a gente tá esperando

só melhorar. De setembro em diante a gente já espera a melhora da

maré [...] Quando tá bom a gente desenrola mesmo, quando não tá a

gente vem pra casa.

O ser humano é, por si, engenhoso e criativo. Na execução de uma tarefa, ele é

lavado a usar toda a sua inteligência corpórea e astuciosa para conhecer as nuanças de

seu trabalho e, assim, poder realizá-lo (Dejours, 2001).

A regulação coletiva da atividade é um fator preponderante para que a produção

se realize minimamente e é, nesse momento, que a inteligência prática se manifesta.

Vimos, segundo Dejours (1993), que a inteligência prática está caracterizada em cinco

aspectos: a) ela é enraizada no corpo; b) concede maior importância aos resultados das

ações, c) está presente em toda situação de trabalho; d) é criativa; e) para seu

surgimento, é preciso que o trabalhador guarde boas condições de saúde.

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Nas condições em que se desenvolve o arrasto de praia, os pescadores são

levados a “andar” conforme a natureza, respeitando seus tempos e movimentos, pois as

variabilidades enfrentadas influenciam diretamente o desenvolvimento do trabalho e o

acionamento dessas capacidades.

Entre as variabilidades existentes, detectamos que as mais recorrentes foram

relativas ao “lance” e a “puxada de rede”. Essas são variabilidades eminentemente do

tipo operacionais, em que o pescador, geralmente o mestre, com seu saber específico e

responsabilidade no arrasto, coordena uma das mais importantes etapas da pesca: o

“lance de rede”, atentando para o cuidado em livrar a rede dos obstáculos sem danificá-

la, e assim, não comprometer seu principal instrumento de trabalho durante a “puxada”.

Acontecem casos em que a rede atola, dificultando ainda mais o trabalho e

exigindo ainda mais esforço dos pescadores na “puxada da rede”. Essa variabilidade

corresponde a certa sazonalidade dos ciclos naturais, pois o obstáculo (um tipo de

“lama”) é formado em épocas específicas do ano, geralmente no inverno. Em casos

extremos, a rede pode chegar a virar, provocando a perda total do lance. Nesse caso,

todo o esforço físico dos pescadores se perde.

Ás vezes atola. Ali em baixo tá atolando, tem muita lama ali. Só de

Agosto em vante é que começa a sair mais, começa a ventar aí

começa, a terra começa à aterrar a lama.

Outro imprevisto também é dar o lance e a rede chegar a virar, se

tiver muito “cisco” a rede pode virar e eles perdem o lance todinho.

Outro problema que os pescadores têm que regular é quando as cordas

“engalham” em outra rede, quando estas estão operando muito próximas, ou quando

elas arrebentam no momento da “puxada do lance”. Se o vento estiver muito forte, pode

ser um fator que dificultará a regulação dessa variabilidade.

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Se tora corda, quando tora uma corda assim, a gente corre logo,

chama o outro menino pra levar outra corda, pra emendar lá fora.

Quando tá “terrá” assim é bom, agora quando venta, o vento leva a

corda pra fora, aí dá mais dificuldade.

Ainda em relação às variabilidades existentes ao lidar com as cordas, quando

estas enrolam em outras redes de arrasto, além do aspecto operacional e prático que

exige a habilidade dos pescadores em remendar ou desenrola-la dentro do mar, pode

haver casos em que isso seja motivo de discussão entre pescadores de “turmas”

diferentes de arrasto.

Às vezes tem gente que discute também, porque às vezes engalha e

enrola uma corda no arrasto aí ninguém gosta, aí vai cortar a corda,

depois a gente tem que emendar.

Em relação às discussões entre os pescadores, isso também é percebido como um

tipo de variabilidade de trabalho, que denota certo envolvimento por parte do mestre

responsável para resolver a questão. No caso que segue, a discussão é pautada acerca da

coleta de “peixes de praia” de baixo valor econômico que são capturados pela rede e

que ficam à disposição para “quem quiser pegar”, principalmente entre aqueles que

interagem na pescaria.

O fato é que, como essa prática é bastante difundida entre os pescadores e na

comunidade local, nem sempre há o estabelecimento de um parâmetro normativo que

regule a coleta desse pescado entre as pessoas que ajudam na pescaria e os pescadores

que estão trabalhando.

O imprevisto que tem é quando eles discutem com o outro, aí tem que

acalmar eles pra não arengar, pra não discutir. Quando vem um caba

de fora e quer mandar no serviço, pegar o peixe, aí ele diz que não

pega, aí o caba às vezes quer ser mais do que ele. Porque eles é que

são os donos, porque... comparação: são 6, todos os 6 têm o direito

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de mandar. Aí vem um caba e quer pegar mais do que eles que

puxaram a rede, aí o caba vem pegar: eles vão reclamar, o cara quer

ser mais do que eles, aí eles querem partir pra cima pra brigar

porque é deles [...] Aí tem que acalmar, pedir que ele não faça e

deixar isso pra lá; ele vai, atende e pronto, aí se acalma.

Outra variabilidade é quando falta algum pescador para o trabalho. Isso também

se configura como um imprevisto que a turma terá que resolver, pois a pesca no arrasto

só acontece com um número mínimo de seis pescadores, devido ao esforço físico

requerido nas diversas funções simultâneas a serem realizadas.

O imprevisto que acontece na pesca, às vezes, que não é

frequentemente, pode faltar um pescador, ir chamar e faltar um

pescador [...] quando isso acontece, às vezes, tem dias na praia que

não vão pescar, aí tem um pescador sobrando, aí eles pegam, aí no

caso, esse pescador que pesca na outra rede, ele vai ganhar só pela

aquela rede nesse dia.

3.5. Coletivos e regras de trabalho

Para Athayde (1996), a atividade coletiva só existe mediante a realização

conjunta de uma tarefa levada a cabo por um grupo de trabalho. Para isso, é necessário

que este coletivo seja acionado por certo número de metas a serem cumpridas. Segundo

o autor, as metas podem trazer conseqüências externas ao indivíduo, na forma de

resultados esperados; e conseqüências internas, através das cargas de trabalho, da

coesão, dos conflitos e da elaboração das regras de trabalho. Essas conseqüências

funcionam como retro-alimentação sobre a atividade do grupo, organizando e

estimulando-o para o trabalho.

Na dinâmica do trabalho, construir amizades é percebido como uma atitude que

ajuda a sua realização, fortalecendo ainda mais o espírito de solidariedade

compartilhada pelos pescadores.

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Às vezes chega gente pra pescar assim, freqüentemente, aí é ali que

ele faz novas amizades [...] Rapaz, o que facilita é a amizade, a

amizade é muito fácil a gente se apegar às pessoas da praia. A

amizade é fator principal.

Os pescadores se percebem como “iguais”, e isso parece conferir um espírito de

companheirismo em sua convivência diária.

Todos são amigos aqui, todo mundo considera um aos outros, são

todos iguais. Todo mundo conhece a gente aqui na pescaria: -

“Fulano, Vamos pescar?”. Aí vai aquela bagunça todinha. Aí fica

aquela alegria.

Cru (1987) e Athayde (1996) asseguram que a comunicação é um importante

elemento para se entender como funciona determinado coletivo de trabalho, visto que

sua função é coordenar as tarefas individuais e promover a construção das

representações que orientam os trabalhadores na atividade. Há comunicações que

servem para tratar de assuntos relacionados à organização da atividade e à busca de

melhorias das condições de trabalho.

O que a gente fala é sobre a pesca mesmo. Reunir pra hora de sair.

Por exemplo: -“Amanhã a gente vai sair mais cedo”.

Só tem as conversas que eles dão quando o camarão aumenta, aí tem

que falar com o “pombeiro”. A conversa que tem é essa: sobre o

camarão e o peixe. Aí o caba vai lá falar com o pombeiro do camarão

pra aumentar o camarão.

Contudo há outras finalidades para as comunicações, que geralmente estão

relacionadas a mecanismos de distração, de divertimento. As conversas descontraídas

durante o trabalho são formas de manter o andamento do coletivo e possibilita a coesão

dos pescadores enquanto o esforço físico é requerido. Como veremos mais adiante,

muitos desses momentos são revestidos de “brincadeiras” entre os pescadores.

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A comunicação também promove o sentido de identidade no grupo de trabalho,

ao serem elaboradas as regras de trabalho, que favorecem a realização da atividade e o

funcionamento do grupo mediante o savoir-faire, o saber-fazer dos trabalhadores (Cru,

1989; Athayde, 1996).

Dessa forma, foram identificadas, em nosso estudo, algumas regras bastante

difundidas entre os pescadores, construídas coletivamente no curso histórico da

atividade de arrasto.

A primeira delas é o respeito em “esperar a vez” de lançar a rede, sem passar à

frente de outros grupos de arrasto que já estejam à espera. A consciência de igualdade

de direito entre eles, para a obtenção dos recursos do mar, levam-nos a produzir essa

regra, e com isso, poder organizar as oportunidades de cada “turma” em lançar sua rede.

Quando a gente dá lance aqui, a gente dá por vez. Agora, em agosto é

o mês do vento, o mês do produto, de aparecer mais camarão. Aí

cada um dá um lance por vez, não pode entrar na vez do outro.

No intuito de coordenar as ações singulares, são construídas coletivamente as

regras de trabalho. Consideradas como exemplo de contratação ética entre os

trabalhadores, estas regras apóiam-se na experiência e na inteligência construídas no

cotidiano da atividade de trabalho.

Outra regra difundida no arrasto é a ajuda que é oferecida por pescadores de

outros coletivos de trabalho quando uma rede vai sair da água no momento de

“encalhar” e virá-la na areia. É o momento em que a rede está mais pesada, devido à

água do mar, às algas marinhas (“sargaço”) e ao pescado acumulado em seu meio.

Geralmente, saem dois pescadores de cada rede para ajudar nessa etapa, marcando

fortemente um tipo de solidariedade no trabalho entre as distintas “turmas” de arrasto.

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Pronto, vamos supor, a gente tem 7 e tem duas redes fora pescando

também, aí, de cada uma rede, vem 2. Então 7 com 4 dá? Já é ajuda

que vem ajudar a gente. Já a gente, quando eles vão encalhar, já vai

2 de novo pra lá pra outra rede [...] E quando a gente dá lance, que

encalha por derradeiro, os outros têm que esperar ali, se senta em

cima da jangada, bota pra cima, e esperando pra ajudar a gente

também.

Quando está um dia difícil de trabalho, como “mau tempo”, ou quando “não está

dando produto”, há uma regra que consiste em aceitar o pedido de alguns pescadores em

parar o trabalho, suspendendo, naquele momento, o dia de pescaria.

Quando 2, 3 não quer, aí a gente vai pra casa e pronto, a gente não

trabalha. Às vezes, quando o vento está acelerado, ninguém entra

porque vai ter dificuldade de encarar o lance.

Além das regras operacionais, encontramos, também, uma regra social e

solidária, existente entre os pescadores e a comunidade que consiste em retribuir as

pessoas da comunidade que ajudam na “catação” e/ou em alguma outra etapa do

trabalho. Essa retribuição é dada com a doação dos “peixes de praia”, que tem baixo

valor comercial e servem de complemento alimentar para as famílias.

A manifestação de solidariedade em doar esse pescado é um patrimônio da

cultura local do arrasto de praia lucenence, visto que muitas pessoas da própria

comunidade, que por ali procuram algo para comer, como no caso das “catadeiras”, têm

as mesmas dificuldades sócio-econômicas vivenciadas pelos pescadores de arrasto.

4. A Saúde dos Pescadores

Para Laurell (1987), somente a análise do processo de produção permite dar

conta de como se encontra configurado o nexo biopsíquicossocial de uma coletividade

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de trabalhadores, remetendo-nos a pensar o trabalho concreto em suas condições

ambientais, impressas no corpo dos indivíduos. Nessa perspectiva, ressalta a

importância do conceito de carga de trabalho para apreender parte da saúde coletiva dos

trabalhadores.

Como vimos no capítulo I, as cargas de trabalho podem ser identificadas através

dos incômodos que atingem os trabalhadores na realização de sua atividade. Segundo

Laurell e Noriega (1989), as cargas de trabalho provocam desgaste físico e mental

observado por intermédio de problemas osteomusculares, fadiga, depressão,

dependência química, entre outros.

Assim, na análise das implicações das condições ambientais de trabalho na

saúde dos pescadores de arrasto em Lucena/PB, buscamos identificar os elementos do

processo de trabalho que interatuam entre si e com o corpo do trabalhador, gerando

processos de adaptação que se traduz em desgaste e sofrimento. Para tanto,

estabelecemos uma aproximação inicial das cargas de trabalho, proveniente das queixas

dos trabalhadores, que agrupamos em seus diferentes tipos.

4.1. Sintomas físicos relacionados ao trabalho

Na pesca de arrasto de praia encontramos diversas queixas favorecidas

possivelmente por algumas cargas de trabalho, como problemas oftalmológicos,

problemas osteomusculares, problemas dermatológicos, incidência de resfriados e

lesões vasculares.

Em relação aos problemas osteomusculares, as queixas assinalam que a

principal área do corpo dos pescadores afetada pelo trabalho é a coluna. Os problemas

de coluna são provenientes de posturas inadequadas e dos intensos e repetitivos esforços

exigidos nas diversas etapas do processo de trabalho.

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Observamos, assim, que, constantemente, os pescadores adotam posturas onde a

coluna não repousa ou não adquire uma posição adequada (ereta), a não ser no momento

do “lance de rede”, no qual os que são encarregados de “varejar” ficam de pé e, com as

varas em mãos, as empurram no contato com a superfície de areia do mar para

locomover a jangada na direção necessária. Mesmo assim, todo o corpo é tensionado e a

coluna mantém-se em inclinação e tensão constantes.

Isto pode ser observado, também, tanto na “puxada de rede”, onde são usadas as

“puxadeiras” que ficam na altura da cintura, forçando a base da coluna, como no “fazer

as cordas” e ao se carregar a rede encharcada de água do mar para o “combo”.

Fiquei doente assim quando entrei, porque a rede é muito pesada de

colocar pra cima, muito pesada mesmo, em torno de mais de 100 Kg.

São 4 pescadores que pega em cada ponta. Eu adoeci porque fiquei

com as costas doendo, com o corpo todo dolorido por causa do peso

que eu peguei.

De arrasto é puxado e bota muita força, tanto bota na cintura quanto

nas pernas, tem dia que a gente não pode nem ir de noite, se move

pra um canto se move pra outro e a perna doendo e a cintura.

Quando é no outro dia a gente vai pro mesmo serviço, normalmente é

isso.

Quando a gente pega a corda que amarra na gente pra fazer força e

puxar. Quando a gente bota a puxadeira aqui (acima da cintura).

Agora quando a gente bota a puxadeira aqui (na altura da bacia,

logo acima das pernas), começa logo a doer as pernas, aí a gente não

tem força pra puxar [...] Sou novo demais pra pegar a rede. Os

pescadores não pega, a gente que é criança pega e sente o peso.

Em relação ao uso das “puxadeiras”, problemas podem ser desencadeados em

partes internas do corpo, ocasionados ao forçarem a “puxada de rede”. Os movimentos

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impedem a livre movimentação de alguns órgãos, como os rins, pressionando-os de

forma inadequada, o que pode gerar problemas em seu funcionamento.

A “catação” também é uma fase do trabalho que exige posturas onde a coluna

fica curvada e o pescador chega a permanecer horas agachado. Constatamos, também, o

uso inadequado do corpo ao “bater a rede”, ao “fazer as cordas” e ao empurrar a jangada

para o início da jornada de trabalho, bem como para seu término.

Para diminuir o desgaste físico exigido, alguns pescadores realizam, às vezes, a

função de “cordeiro”, como estratégia de trabalho. Essa opção não é suficiente para dar

conta do excesso de peso carregado pelos seus corpos, pois os instrumentos de pesca

sempre exigem bastante esforço ao serem manuseados no trabalho.

Para minimizar as dores intensas, em muitos casos, os pescadores recorrem ao

uso de comprimidos analgésicos. Existem pescadores que, em crises muito fortes,

deixam de lado a pesca de arrasto e partem para a cata de alguns peixes provenientes de

manguezais e rios para “somente catar um caranguejo, pegar um siri, um aratú, que

são os peixe mais maneiros que tem” (Pedro V. da Silva, comunicação pessoal, agosto

24, 2006).

Um outro aspecto, no que concerne ao sofrimento físico, diz respeito à ação dos

raios solares nocivos incidindo diretamente em seus corpos, na sua maioria,

desprotegidos. Diversas patologias dermatológicas, como o câncer de pele e problemas

visuais, são relatados com certa freqüência e vistos como uma grande dificuldade no

andamento do trabalho e no estabelecimento da saúde.

Ás vezes a pele descasca muito [...] A possibilidade é grande aqui de

dar câncer de pele. Às vezes, muitos têm mas não sabem. Só que é o

sol, o sol é o maior fator que pode causar esse tipo de doença.

Tem muitos que adoecem. Dói até a vista; o sol, a maresia. Muita

gente fica enxergando até mal.

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A utilização de chapéus, bonés e blusas de manga comprida são algumas

estratégias utilizadas pelos pescadores para amenizar esse contato direto do sol na pele.

Um outro problema físico relatado pelos pescadores está relacionado

diretamente às mudanças climáticas e condições de trabalho. Muitos referem-se a

resfriados constantes, que muitas vezes são tratados com auto-medicação sem a visita ao

posto de saúde local ou mesmo sem indicação médica.

Mesmo com todos os problemas acima relatados, os pescadores adaptam-se a

essas enfermidades, superando os limites do seu corpo para garantir a própria

sobrevivência e a de suas famílias.

Porque, depois de um tempo, se acostuma e não sente o corpo doer, é

só no início mesmo [...] Só que a pessoa precisando não vai sair da

pesca porque tá doente, tem que se acostumar mesmo, de uma jeito

ou de outro.

Já agüentei muita postura ruim, agüentei não, agüento, tô

agüentando, porque tem minha mulher pra dar de comer, tem 5

filhos, tem que trabalhar mesmo.

4.2. Vivências subjetivas de sofrimento e prazer

Em se tratando da saúde mental, a psicodinâmica do trabalho sinaliza para a

importância de compreender as vivências subjetivas de sofrimento e prazer dos

trabalhadores e a contínua administração psíquica desses dois pólos. Vale lembrar,

também, que os aspetos relacionados à dinâmica do reconhecimento estão presentes no

jogo intersubjetivo vivido e levado a cabo pelos trabalhadores de uma determinada

coletividade, influenciando fortemente nas vivências de sofrimento e prazer.

Como vimos no capítulo I, a organização do trabalho joga um importante papel

na administração intersubjetiva destas vivências, quando determina a divisão do

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trabalho e a divisão de homens nos processos produtivos. A divisão do trabalho se

manifesta na distribuição das tarefas, dos compromissos e responsabilidades que cada

trabalhador assume no conjunto da atividade. Já a divisão de homens se refere à

hierarquia, à separação entre eles, promovendo, muitas vezes, o estabelecimento de

controles e limites aos trabalhadores (Dejours & Abdoucheli, 1994).

Sofrimento e defesas

O sofrimento é inerente ao ser humano, não podendo ser eliminado, mas

transformado em algo novo. Ao referirmo-nos a esta vivência como própria da vida

humana, compreendemos que ela preexiste antes mesmo do indivíduo se inserir no

mundo do trabalho (Dejours, 1986).

Na pesca artesanal de arrasto de praia, as vivências de sofrimento psíquico no

trabalho parecem estar relacionadas, principalmente, com a “não oferta de produtos no

mar” e com o “mau tempo”. Os pescadores vivenciam esses momentos com certa

desesperança e desolamento em ver que o dia de trabalho não será produtivo.

Um dia assim quando dá um lance e puxa só lixo. Aí não tem

condições não, aí tira, bota logo pra cima pra ir simbora. Desanima

todo mundo. Quando tá também bem chuvoso, quando o tempo tá

trancado, tem muitos que olha da porta, e nem vem, não sai nem de

casa, a gente vem pra aqui, esperando, se molhando e -“ cadê o

pessoal chegar? ”, fica esperando o dia certo.

A “falta de produto no mar” influencia diretamente as condições de vida das

famílias de pescadores. Chegar em casa sem ter obtido nada na pesca é vivenciado

como uma situação desagradável, fato que atinge toda a família.

Um dia ruim de trabalho é você vir pra praia e não dá bom, você

luta, luta bastante, dá lance e não dá bom [...] porque sabe que no

fim de semana não vai ter uma renda boa pra chegar em casa falar

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pra sua mulher, pro seu filho que não conseguiu alguma coisa pra

comer.

De acordo com Dejours e Abdoucheli (1994), frente às dificuldades presentes no

trabalho, os trabalhadores são levados a desenvolverem estratégias de defesa. Para os

autores, as estratégias defensivas construídas nos ambientes de trabalho são

procedimentos que ajudam a constituir a saúde coletiva, afastando o sofrimento e

mantendo-os na “batalha” diária.

Durante a atividade de pesca, é muito freqüente a existência de “brincadeiras”

entre os pescadores. Essas brincadeiras são percebidas por alguns como um aspecto

negativo nas relações interpessoais e no andamento do trabalho.

O que dificulta é a brincadeirinha de mau gosto que às vezes sai na

hora do trabalho [...] Tipo não quiser trabalhar e estiver com muita

brincadeira com o pescador. Assim, tem cara que fica puxando, aí

solta de uma vez.

Identificamos, aqui, dois tipos “brincadeiras”, uma que se manifesta entre os

pescadores que já têm certo nível de interação, e outra de cunho mais “agressivo”,

“desagradável”, partindo dos pescadores mais velhos para os mais novos. Esse segundo

tipo, as “brincadeiras de mau gosto”, são percebidas negativamente pelos mais novos no

trabalho.

Outro elemento presente na relação entre os pescadores é o uso de “palavrões”,

fato que, de certa forma, incide sobre a auto-imagem de ser pescador e na dificuldade

inicial em compartilhar os princípios e condutas da maioria mais velha.

Um fala da mãe de um, o outro fala da mãe dos outros [...] Dificulta

[...] Os pescadores daqui só é dizer: - “vai dar o cú, chupa meu pau,

isso aí, isso lá vem”. E! Os pescadores daqui são assim. Aí vai e

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passa uma senhora de idade e escuta, vão dizer o quê? Pescadores

sem respeito. Aí não tem jeito.

Há, entretanto, novatos que não se incomodam e acham que as conversas entre

os pescadores não atrapalham o trabalho, visto mais como um fator que pode auxiliá-los

na “distração”, ao conversarem assuntos dos mais diversos e, ao mesmo tempo, de

mantê-los “na atividade”.

Tem, sempre teve. No caso, fica 3 de um lado e 3 do outro, eles

sempre conversam. É a maior diversão, só que não esquecendo que

estão trabalhando. No caso, não esquecendo de puxar. Fica

conversando, às vezes com brincadeira e tudo mais, mas não esquece

que está puxando não. Mas sempre ficam conversando, de tudo, de

mulher, de futebol, tudo que envolve o brasileiro [...] Esse eu acho

que é o bom do pescador, é a única coisa que ele se diverte, porque o

trabalho é pesado demais... a única coisa que eles se divertem é

através das brincadeiras, e as conversas que eles têm na praia (grifos

nossos).

O que nos parece é que, devido ao trabalho “pesado”, os pescadores conversam

e “brincam”, com o objetivo inconsciente de suportar os esforços empreendidos pelo

corpo, para dar conta da difícil jornada diária de trabalho.

Nesse sentido, pensamos que as “conversas”, “brincadeiras” e até “palavrões”,

além de funcionarem como estratégias coletivas de defesa, favorecem a coesão entre os

pescadores. O processo de aceitação de um novo integrante se manifesta, inclusive, pela

identificação com esses recursos, postos em prática pelo coletivo de trabalho como uma

construção de modos de ser e agir (Dejours, 2004).

Dentre os procedimentos defensivos relatados acima, observamos também certo

consumo de álcool, que nos parece ter a função de diminuir o desgaste e o sofrimento

dos pescadores durante o trabalho.

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Quando a gente pega que arreia um lance, vai cuidar de arrumar

ligeiro [...] Aí a gente toma uma, ligeirinho, avexado e entra de novo.

Entretanto, perguntamo-nos se o uso constante dessa substância pode

desencadear conseqüências para a saúde dos pescadores e para a convivência diária. A

questão que fica para ser avaliada é: até que ponto as defesas coletivas não os alienam

da realidade vivida? Pois estas, quando funcionam bem demais, podem produzir uma

espécie de anestesia do vivido, tornando os trabalhadores inconscientes de seu próprio

sofrimento na realidade de trabalho e incapacitando-os de empreender melhorias nas

condições de vida (Dejours, 1986).

Na discussão acerca do sofrimento, consideramos importante saber como os

pescadores percebem o julgamento dos demais em relação ao seu trabalho na pesca, e

como isso, de certa maneira, é vivenciado por eles em seu cotidiano de trabalho.

Dinâmica do reconhecimento

Dejours (1992) considera que os laços entre os trabalhadores implicam relações

que confluem para uma interdependência, ou seja, dependência de contribuições

individuais compartilhadas umas em relação às outras. Em outras palavras, quando há

investimento na realização de algo, é esperado alguma coisa em troca, uma retribuição.

Assim, o trabalhador contribui com o trabalho e espera ser, minimamente, reconhecido

por seus esforços. Segundo o autor, esse reconhecimento é fundamentalmente simbólico

e facilita a construção de sentido no trabalho.

Além das vivências subjetivas de sofrimento acima elencadas, detectamos a

falta de reconhecimento entre eles, quando estes recebem julgamentos depreciativos da

comunidade em relação ao trabalho de pesca, fato que implica fortemente na

identificação e no sentido de pertença dos pescadores à comunidade pesqueira local.

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Não, nenhum valoriza o outro não, porque sabe que todos ali são

iguais [...] Principalmente o pessoal da comunidade mesmo, é uma

discriminação grande, porque – “o pescador é isso, é aquilo, não sei

o quê, sofre muito, não ganha nada”. A discriminação é grande aqui.

Ao falarem acerca de possíveis ações da prefeitura em apoio a atividade de

pesca de arrasto, eles relatam total desinteresse do poder público local em impulsionar

seu desenvolvimento, caracterizando mais um tipo de não-reconhecimento vivido por

estes trabalhadores.

Eu acho que está faltando alguma coisa de incentivo pros pescadores,

porque muita gente vê o trabalho de pesca como motivo de vergonha.

Quem é pescador é pobre e isso e aquilo outro. Falta muito

reconhecimento pro lado das pessoas (do poder público) que podem

incentivar mais a pessoa a pescar, ver que é um trabalho digno, falta

muito incentivo do pessoal e reconhecimento também. O trabalho é

uma coisa digna, principalmente pescar.

Mesmo com todas as dificuldades, há, entretanto, a existência de certo

reconhecimento entre os pescadores de arrasto. Dejours (1993), ao teorizar acerca da

dinâmica do reconhecimento, comenta que esta se manifesta através das duas formas

clássicas, ou seja, pelo julgamento de utilidade, manifestado pela hierarquia e,

eventualmente, pelos clientes, em avaliar a utilidade da ação realizada no trabalho; e

pelo julgamento de beleza, que ocorre entre os pares em julgar a elegância ao se

executar uma criação, e ao conformar-se aos laços de cooperação e regras de trabalho.

Na dinâmica da atividade, segundo o depoimento dos pescadores, o

reconhecimento de utilidade se processa do “mestre de rede” para os “pescadores de

arrasto” e o “cordeiro”, quando este mestre avalia positivamente a capacidade dos

demais em contribuir para o trabalho de pesca.

Assim, eles (mestres) vêm em casa me chamar, por exemplo, Ele

chega em casa dizendo: -“Xiquito, tu vai querer pescar hoje?”, aí eu

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digo: -“vou!”...-“então lá pras 2hs nos estamos saindo!”... –“tá!”.

Na vaga dele ir chamar outro preguiçoso, aí ele vem me chamar,

porque eu sou bom de cordeiro. Todo mundo gosta de pescar comigo.

E eu ajudo mais, eu não deixo meu serviço pra fora não.

Observamos, também, entre os pescadores, o reconhecimento através do

julgamento de beleza, quando ocorre a valorização da experiência, principalmente, dos

pescadores mais velhos que “conhecem das coisas do mar”. O fato de conhecer outros

tipos de pesca e saber manusear práticas diversificadas de trabalho pesqueiro é

valorizado pelos pares, inclusive quando estes pescadores ainda detêm vigor físico e

continuam “trabalhando no pesado”.

Para Dejours (1999), os seres humanos são dedicados à busca de seu

acabamento, processo através do qual se define sua saúde mental e sua identidade, que

jamais se estabiliza, sendo uma conquista que se opera constantemente na ordem da

inter-subjetividade. Ela é dada pelo olhar do outro, sob a forma de reconhecimento

frente ao investimento afetivo e cognitivo no trabalho, ou seja, um reconhecimento do

fazer, promovendo o surgimento de prazer e de mobilização para o cumprimento do

trabalho. Na presença do reconhecimento, são desencadeados processos sublimatórios,

os quais vão possibilitar o sentido de realização no mundo do trabalho (Dejours, 1999).

Sentido e prazer no trabalho

Como vimos, segundo Dejours (1986), o trabalho pode ser patogênico, mas

também pode promover prazer e contribuir na luta pela conquista e pela defesa da

saúde. Para este autor, cada organização de trabalho implica procedimentos defensivos

específicos, colocando-se em evidência defesas elaboradas individualmente e defesas

coletivas construídas pelos grupos de trabalhadores.

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Dejours (1993) afirma, ainda, que a organização do trabalho pode desencadear

processos de produção de saber, na medida em que as capacidades cognitivas e afetivas

dos trabalhadores encontram espaço para se manifestarem. Nesse sentido, se a

organização do trabalho possibilita a descarga de energia pulsional, em um terreno onde

o trabalhador concretize suas aspirações, idéias e desejos, ela pode promover, a partir

das escolhas e gestos desenvolvidos pelos indivíduos, vivências de prazer e,

conseqüentemente, construção de sentido no trabalho.

No arrasto de praia, as vivências de prazer, assim como as de sofrimento, são

experienciadas mediante as condições naturais de oferta do pescado capturado no mar.

Quando os pescadores conseguem realizar uma boa pescaria, eles vivenciam momentos

de prazer e alegria no trabalho, sabendo que vão levar “uma renda boa pra sua casa”.

Quando a gente puxa um lance que vem bom produto, aí o caba fica

todo animado, quando vem camarão, peixe graúdo; tem tirado lance

de espada, ôxe! É bonito demais. Aí anima todo mundo, aí - “vamo,

ligeiro, vamo trabalhar, aí acho lindo demais.

Depende também, porque o que dá mais prazer é quando a gente vê

que tá dando pra arrumar alguma coisa, aí dá mais prazer em

trabalhar, em arrumar a corda mais rápido, colocar em cima da

jangada e ir pro mar. Isso é que dá prazer, que vê que se tá dando

bem. Tem que aproveitar o dia que está bom, aí dá mais prazer, dá

vontade de fazer as coisas mais rápido e tudo mais.

Quando foi perguntado aos pescadores se existia algo no trabalho que fosse

benéfico para a saúde, foram dadas várias respostas, inclusive que não existia nada que

fosse bom. Contudo, no decorrer dos depoimentos, foram aparecendo elementos do

trabalho que beneficia, de alguma maneira, a saúde: o mar, a hora de acordar, o pescado.

Eu acho que o mar é tudo aqui, a vida do pescador é o mar aqui [...]

é difícil ver pescador doente, porque o mar é tudo, o mar cura tudo.

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Todo pescador acredita nisso, por isso que é difícil ver pescador

doente.

Diante do exposto, observamos que, mesmo com todas as dificuldades

enfrentadas pelos pescadores de arrasto de praia, o fato de lidar com os recursos do mar,

com a natureza e seus ciclos secretos, os fazem construir, intersubjetivamente, recursos

identitários capazes de assegurar sua normalidade e a busca pela sua saúde. Desse

modo, parece-nos compreensível que, nas condições laborais em que estes se

encontram, fosse possível garantir o modo atual de levarem a vida, mediante a

articulação solidária em rede e a perspicácia de enfrentar o “tempo” e os obstáculos de

um cotidiano instável e nada seguro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo com todos os percalços do trajeto investigativo aqui desenvolvido,

empreender algo que aponte para um desfecho ou mesmo uma simples conclusão não é

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tarefa menos difícil se comparado ao critério ético e ao rigor científico assumidos desde

o início deste estudo. Todavia, de acordo com a análise aqui desenvolvida, apontamos,

nestas considerações, alguns aspectos na tentativa de disponibilizar um movimento

aproximativo e reflexivo sobre questões presentes na atividade de pesca de arrasto e sua

relação com a saúde dos pescadores do município de Lucena/PB.

Diante da falta de alternativas de ocupação e renda no município, verificamos

que a pesca artesanal de arrasto de praia se configura atualmente como um “refúgio”

ocupacional, fato que faz convergir um bom número de pessoas para essa atividade

pesqueira.

Inicialmente, procuramos entender o modo de inserção profissional desses

pescadores. Constatamos que a atividade de arrasto, por se desenvolver em redes

comunitárias e ter forte reprodução familiar, tem um caráter eminentemente informal

em seu modo de organização e funcionamento, definindo boa parte da dinâmica laboral,

no tocante às condições de trabalho. Outra dimensão da inserção desses pescadores é

que, através dos pais ou vizinhança, as crianças e/ou os mais jovens são encaminhados

precocemente para o trabalho na pesca, como uma forma de ajudar na manutenção de

suas famílias.

No tocante às condições de trabalho, os pescadores são levados a lidar com os

ritmos naturais da maré. É quando entram em jogo as variabilidades relativas às

características próprias da atividade, que se desenvolve de acordo com as oportunidades

de procriação e oferta do camarão no mar, podendo haver dias em que “não há

produto”. São condições climáticas e sazonais que variam sem nenhum controle

humano, afetando diretamente a obtenção de renda e a manutenção dessas famílias.

Outras variabilidades encontradas dizem respeito ao processo de trabalho, no manuseio

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dos instrumentos como a rede, as cordas, e na relação entre os pescadores, quando

surgem “discussões” ou quando há a falta de algum membro do grupo.

Observamos que os pescadores desenvolvem procedimentos reguladores

bastante eficazes para algumas das variabilidades existentes no cotidiano de trabalho.

Dentre as regulações que identificamos, está o conserto de cordas, a substituição de

pescadores ausentes, a mudança do local da pescaria e as “conversas” para amenizar

certos conflitos.

O trabalho nas turmas de arrasto é organizado de acordo com a construção de

regras. Uma delas é a “espera da vez”, entre as diversas turmas que operam em um

mesmo local de pesca, fazendo com que haja oportunidades iguais no “lance da rede”.

Outra importante regra de trabalho é o apoio que é oferecido quando uma rede é retirada

do mar, em que, no mínimo, dois pescadores de cada turma ajudam no “encalhe” de

uma outra rede. Por fim, há, também, uma regra que consiste na paralisação da pescaria

em dias que “não está dando produto”, através do pedido de alguns pescadores que

preferem poupar seus esforços e esperar a chegada de outro dia de trabalho.

Vimos que o pagamento do trabalho funciona de acordo com a produção na

pescaria, e a divisão do “quinhão” entre os pescadores e o “dono do arrasto” se

caracteriza por ser uma relação desigual, ficando cerca de 40% do total para o dono, e o

restante dividido entre os sete pescadores. Outro fato relativo ao pagamento está na

relação com o atravessador, o “pombeiro”, que detém a regulação do preço do produto

recém saído do mar. Contudo, constatamos que os pescadores compartilham da

percepção de que a divisão do “quinhão” e a venda do produto ao “pombeiro” definem

condições injustas de renda, relatadas por eles como um aspecto difícil nas condições

gerais de trabalho.

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Ao tratar das implicações do trabalho sobre a saúde dos pescadores, as queixas

mais freqüentes são problemas de coluna, causados pelo excesso de peso e por posturas

inadequadas adotadas no trabalho, e problemas dermatológicos e oftalmológicos,

ocasionados pelo sol intenso e pelo constante contato com a água e maresia.

O sofrimento psíquico é vivenciado pelos pescadores principalmente através do

“desânimo” causado em dias de “maré ruim”. Este se manifesta principalmente quando

os pescadores não conseguem capturar “produto no mar”, fato que compromete a

alimentação em casa e que possibilita vivências subjetivas de desprazer no trabalho.

Contudo, os pescadores elaboram estratégias defensivas para continuarem

realizando suas atividades e manterem-se no campo da normalidade. As estratégias

defensivas individuais e coletivas funcionam como mecanismos subjetivos contra o

sofrimento provocado pelas dificuldades do trabalho. Entre as defesas encontradas, as

principais foram as “brincadeiras” e o uso de “palavrões”, ocorridos durante o processo

de trabalho, bem como certo consumo de álcool entre alguns pescadores.

A desvalorização social do trabalho na pesca também é desencadeadora de

sofrimento e potencialmente desestabilizadora da saúde desses trabalhadores, ao

sentirem-se desvalorizados pelo julgamento depreciativo das pessoas da comunidade e

entre eles próprios. Além disso, há também o não reconhecimento pelo seu trabalho

expresso pela falta de incentivo público local direcionado à atividade de pesca.

É visível, entretanto, a importância do papel da dinâmica do reconhecimento

para a saúde mental desses pescadores. O julgamento de utilidade, feito pelo mestre

para os pescadores sobre seu trabalho, e as relações de companheirismo e amizade entre

eles, possibilitam uma importante gratificação identitária e asseguram-lhes o mínimo de

“equilíbrio psíquico”, mesmo que instável, conferindo-lhes sentido e mobilizando-os

para a realização da atividade.

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Se, por um lado, as condições, organização e pressões no trabalho têm

contribuído para o aparecimento de vivências de sofrimento e adoecimento dos

pescadores, por outro lado, observamos que as vivências prazerosas experienciadas no

trabalho são de fundamental importância para a construção e fortalecimento da

identidade desses pescadores, e em especial, quando estes conseguem capturar os

“produtos do mar”.

Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, percebemos que o que mobiliza

esses pescadores a permanecerem e investirem no trabalho de pesca é a busca pela

manutenção de sua sobrevivência e o prazer em estar em contato com a natureza, de

poder retirar seu sustento do mar; fato que atribui sentido na realização dessa atividade

de trabalho.

Por fim, esperamos ter contribuído para a análise da realidade laboral na pesca

artesanal de arrasto de praia e sua relação com a saúde dos pescadores do município de

Lucena/PB. Ainda que este estudo tenha suas lacunas a serem preenchidas e

complementadas, esperamos que todos os esforços aqui empreendidos tenham

alcançado, minimamente, seus objetivos e metas, corroborando, assim, a importância da

ética em toda produção de conhecimento.

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ANEXOS

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Anexo V

Dados sócio-demográficos dos participantes:

pescador idade escolaridade Estado civil

filhos Pessoas em

casa

Idade que

começou

Tempo na

pesca

Função

1 36 3ª série/fund casado 2 6 12 24 anos mestre2 16 2ª série/fund solteiro - 5 16 1 mês cordeiro3 15 2ª série/fund solteiro - 8 8 7 anos cordeiro4 37 3ª série/fund casado 5 5 10 27 anos mestre5 18 3º ano/médio solteiro - 3 8 10 anos cordeiro6 16 3ª série/fund solteiro - 7 8 8 anos cordeiro7 29 3ª série/fund solteiro 2 2 23 6 anos pescador8 69 nunca casado 5 7 14 55 anos pescador9 43 1ª séire/fund casado 6 8 41 2 anos pescador10 40 4ª série/fund casado 2 8 17 23 anos pescador