Upload
lambao
View
214
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITOS HUMANOS,
CIDADANIA E POLTICAS PBLICAS
MESTRADO ACADMICO
MARIA LUCIENE FERREIRA LIMA
POLTICAS PBLICAS NO ENSINO SUPERIOR:
AES AFIRMATIVAS NA UFPB
JOO PESSOA
2014
MARIA LUCIENE FERREIRA LIMA
POLTICAS PBLICAS NO ENSINO SUPERIOR:
AES AFIRMATIVAS NA UFPB
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direitos Humanos, Cidadania e Polticas Pblicas - PPGDH, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Diretos Humanos. Orientadora: Profa. Dra. Rosa Maria Godoy Silveira Coorientador: Prof. Dr. Elio Chaves Flores
JOO PESSOA
2014
A Deus, que em sua infinita bondade, me deu sabedoria e
inspirao nas horas mais difceis desse dissertar,
presena constante em todos os momentos.
Aos meus familiares, que tanto me apoiaram nessa caminhada.
Aos meus colegas de mestrado, aos meus colegas de trabalho.
Ao Movimento Negro da Paraba e a todos que contriburam
para a implementao da poltica de cotas
na Universidade Federal da Paraba.
AGRADECIMENTOS
A Deus em primeiro lugar, ao meu esposo Jos Carlos, por me entender e apoiar em
todo esse percurso muitas vezes solitrio, mas que no seria possvel sem o apoio
daqueles que amamos.
s minhas filhas Vernica, Fernanda, Luana e ao meu filho Lucas, que souberam
entender o valor do conhecimento que eu buscava.
minha me, pelo apoio constante aos meus filhos nas minhas ausncias.
minha orientadora, a Professora Rosa Maria Godoy, pelas contribuies e
sugestes.
Ao meu coorientador, o professor Elio Chaves Flores, pela orientao, apoio e
empenho, sem os quais este trabalho no seria possvel.
professora Nazar Tavares Zenaide, por todas as sugestes bibliogrficas e a
disponibilizao de livros.
Aos professores da Ps-graduao em Direitos Humanos, Cidadania e Polticas
Pblicas, que tanto contriburam com a minha formao.
Aos meus colegas de Ps-Graduao e grandes amigos, em especial Maria das
Graas do Nascimento, Virginia Alves Sarmento, Maria das Graas da Cruz
Barbosa, Maria do Socorro Estrela Lopes e Rosa Maria Carlos Silva, que estiveram
junto comigo em muitos momentos, incentivando e compartilhando conhecimentos.
Aos meus colegas de trabalho, por todo o apoio e compreenso em todos os
momentos, pois no fcil desenvolver uma pesquisa sem se afastar do trabalho.
Universidade Federal da Paraba, pelo apoio na disponibilizao das informaes
necessrias.
RESUMO
A reserva de vagas com recorte social e tnico-racial para os Processos Seletivos, como uma poltica afirmativa instituda nas instituies educacionais, foi uma das conquistas mais marcantes dos movimentos sociais nos ltimos anos. No ano de 2010, foi aprovado o instrumento que criou a Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas para acesso aos cursos de Graduao da UFPB e oficializado com a publicao da Resoluo n. 09/2010, com previso de reserva de vagas com recorte social e tnico-racial para os Processos Seletivos, com entrada prevista para o vestibular de 2011. Assim, o estudo em tela tem como objetivos: discutir o processo de implantao da Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas (MIRV) para acesso aos cursos de Graduao na Universidade Federal da Paraba, descrevendo os desdobramentos da execuo dessa poltica, bem como analisar a interseco entre as Polticas de Aes Afirmativas na UFPB e os documentos normativos que tratam das Diretrizes Nacionais para a Educao em Direitos Humanos e das Diretrizes Curriculares Nacionais, fazendo um paralelo com as propostas pedaggicas dos cursos de Direito, Medicina, Engenharia e Pedagogia, buscando averiguar se houve alguma mudana significativa nas prticas pedaggicas. Esta pesquisa est inserida na interface do campo de estudo nas reas de Educao e de Direitos Humanos, e que assume metodologicamente uma natureza quanti-qualitativa tendo em vista a perspectiva de analisar as prticas vivenciadas dentro da instituio pesquisada, estabelecendo referncias entre a proposta apresentada pela universidade e o desenvolvimento da poltica de cotas. O escopo analtico desse estudo utilizou-se da analise documental, onde os dados levantados foram classificados-indexados. Nesse sentido, foram levantados, nos instrumentos e nas fontes documentais as evidncias expressas nos dados disponibilizados pela universidade estudada, os rebatimentos institucionais e acadmicos que a implantao da modalidade de ingresso por reserva de vagas teve sobre a estrutura de funcionamento da instituio nos primeiros trs anos de implementao da referida modalidade. Os resultados da pesquisa sinalizam que o sistema adotado admitiu o acesso dos cotistas universidade, proporcionando a redistribuio do bem cultural, que o acesso educao, sem, contudo, prever aes concretas que possibilitassem sua permanncia ou que contribussem para o combate ao racismo e discriminao e para o reconhecimento da poltica como um direito. . Palavras-chave: Ao afirmativa. Educao em Direitos Humanos. Poltica de Cotas. UFPB.
ABSTRACT
The reserve places with social and ethnic-racial stratification for Selection Processes, as an affirmative policy introduced in educational institutions, was one of the most remarkable achievements of social movements in recent years. In 2010, the agreement was approved that created the Entry mode for Jobs Reserve for access to undergraduate courses UFPB and formalized with the publication of Resolution No. 09/2010, Jobs booking forecast with clipping with social and ethnic-racial for Selection Processes, with input provided for the entrance exam of 2011. Thus, the study on Canvas aims to: discuss the implementation process of the entry mode for Jobs Reserve (MIRV) for access to undergraduate courses the Federal University of Paraba describing the consequences of the implementation of this policy and to examine the intersection of Affirmative Action Policies in UFPB and regulatory documents that address the National Guidelines for Human Rights Education and the National Curriculum Guidelines drawing a parallel with pedagogical proposals from law school, Medicine, Engineering and Pedagogy seeking to ascertain whether there was any significant change in teaching practices. This research is inserted in the field of study interface on Education and Human Rights, and methodologically assumes a quantitative and qualitative perspective with a view to reviewing the practices experienced within the research institution, establishing references between the proposal submitted by university and the development of the quota policy. The analytical scope of this study we used the documentary analysis, where data collected were classified-indexed. In this sense, were raised, instruments, and documentary sources the evidence expressed in figures provided by the university studied, institutional and academic repercussions that the deployment of reserves for openings per ticket modality had on the institution's operating structure in the first three years implementation of that mode. The survey results indicate that the system adopted admitted the access of shareholders to university, providing the redistribution of the object, which is the access to education, without, however, provide concrete actions that would enable its permanence or to contribute to the fight against racism and discrimination and recognition of politics as a right. Keywords: Affirmative action . Human Rights Education . Quota Policy. UFPB .
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Pesquisas acadmicas realizadas entre 2011 e 2013 sobre a temtica
das aes afirmativas ............................................................................... 18
Tabela 2 - Universidades Federais - 10 maiores ofertantes em no de vagas (2012-
2013) ........................................................................................................ 60
Tabela 3 - Universidades Federais - 10 maiores ofertantes em % de vagas (2012-
2013) ........................................................................................................ 61
Tabela 4 - Relatrio de Gesto 2012 ........................................................................ 85
Tabela 5 Nmero de matrculas de graduao por categoria administrativa Brasil
(2003 2009)
..................................................................................................................................100
Tabela 6 - Total geral de ingressantes na UFPB por tipo de escola e etnia
(2010)......................................................................................................102
Tabela 7 - Total geral de ingressantes na UFPB por tipo de escola e etnia (2011-
2013) ...................................................................................................... 104
Tabela 8 - Ingressantes PSS 2010 .......................................................................... 108
Tabela 9 - Nota mdia dos participantes do ENEM, rede e federao por rea de
conhecimento (2010) ............................................................................. 109
Tabela 10 - Nota mdia dos participantes no ENEM, por etnia (2010) ................... 110
Tabela 11 - Ingressantes PSS e SISU de 2011 a 2013 e a evaso por curso ........ 112
Tabela 12 - Maior e menor mdia dos ingressantes no vestibular de 2010 por curso
............................................................................................................... 115
Tabela 13 Maior e menor mdia dos ingressantes no vestibular (2011- 2012) por
curso ........................................................................................................................115
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Evoluo do nmero de ingressantes SISU (2011-2013) ....................105
Grfico 2 Evoluo do nmero de ingressantes PSS (2011-2013).......................105
Grfico 3 Evoluo da evaso PSS (2011-2013)..................................................106
Grfico 4 Evoluo da evaso SISU (2011-2013) ................................................106
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADIN - Ao Direta de Inconstitucionalidade
ADPF - Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental
CEBRAP - Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento
CESP - Centro de Seleo e de Promoo de Eventos
CGPAIC - Coordenao de Programas Acadmicos e de Iniciao Cientfica
CGPq - Coordenao de Ps-Graduao e Pesquisa
CIA Comit de Incluso e Acessibilidade
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
CNPC Conferncia Nacional de Polticas Culturais
CONAE - Conferncia Nacional de Educao
CONAPIR Conferncia nacional de promoo da igualdade racial
CONSEPE - Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extenso
CONSUNI - Conselho Universitrio
COPERVE - Comisso Permanente do Concurso Vestibular
DEM - Partido Poltico Democratas
ENEM - Exame Nacional do Ensino Mdio
FIES - Fundo de Financiamento Estudantil
GTI - Grupo de Trabalho Interministerial
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IFES - Instituies Federais de Educao Superior
LDBEN - Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional
MEC - Ministrio da Educao
MIRV - Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas
MPR - Movimento Afrodescendentes
NEABI/UFPB - Ncleo de Estudos e Pesquisas Afrobrasileiros e Indgenas
NEAB/UFAL - Ncleo de Estudos Afros-Brasileiros da Universidade Federal de
Alagoas
ONU - Organizao das Naes Unidas
PAS - Programa de Avaliao Seriada
PBP - Programa de Bolsa Permanncia
PCERP - Pesquisa das Caractersticas tnica-raciais da Populao
PFL - Partido da Frente Liberal
PIBIC - Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica
PIBITI - Programa Institucional de Bolsas de Iniciao em Desenvolvimento
Tecnolgico e Inovao
PIVIC - Programa Institucional de Voluntrios de Iniciao Cientfica
PIVITI - Programa Institucional de Voluntrios de Iniciao em Desenvolvimento
Tecnolgico e Inovao
PL - Projeto de Lei
PNAES - Programa Nacional de Assistncia Estudantil
PNDH - Programa Nacional de Direitos Humanos
PNE - Plano Nacional de Educao
PNEDH - Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos
PRAPE - Pr-Reitoria de Assistncia e Promoo ao Estudante
PRG - Pr-Reitoria de Ps Graduao
PROINICIAR - Programa de Iniciao Acadmica
PROUNI - Programa Universidade para Todos
PSS - Processo Seletivo Seriado
REUNI - Programa de Apoio a Planos de Reestruturao e Expanso das
Universidades Federais
SDH/PR - Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
SECADI - Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e
Incluso
SEPPIR - Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
SISU - Sistema de Seleo Unificada
STF - Supremo Tribunal Federal
UEPB - Universidade Estadual da Paraba
UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFAL Universidade Federal de Alagoas
UFBA - Universidade Federal da Bahia
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFPB - Universidade Federal da Paraba
UnB - Universidade de Braslia
UNEB - Universidade do Estado da Bahia
SUMRIO
1 INTRODUO ....................................................................................................... 11
1.1 MEMORIAL DA PESQUISA................................................................................ 12
1.2 ESTRUTURA DA DISSERTAO.................................................................... 29
2 BRASIL RUMO A UMA DIVERSIDADE PLURAL: AS AES AFIRMATIVAS . 35
2.1 O SISTEMA DE COTAS NO BRASIL ................................................................. 36
2.2 O PAPEL DO ESTADO E OS PROGRAMAS IMPLEMENTADOS ..................... 62
2.3 O SISTEMA DE COTAS APS A OFICIALIZAO DA LEI 12.711/2012 .......... 71
3 A POLTICA DE AO AFIRMATIVA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA
PARABA ................................................................................................................. 81
3.1 O PROGRAMA DE AES AFIRMATIVAS ....................................................... 86
3.2 A RESOLUO NO 09/2010 E A INSTITUIO DA MODALIDADE DE
INGRESSO POR RESERVA DE VAGAS (MIRV) PARA ACESSO AOS CURSOS
DE GRADUAO ..................................................................................................... 91
3.3 A POLTICA DE PERMANNCIA DOS COTISTAS DESENVOLVIDA NA
INSTITUIO ............................................................................................................ 95
4 O IMPACTO DA POLTICA DE COTAS .............................................................. 100
4.1 O INGRESSO NA UNIVERSIDADE E AS COTAS.................................. 102
4.2 O PAPEL DA EDUCAO EM E PARA OS DIREITOS HUMANOS NA
EDUCAO SUPERIOR ........................................................................................ 117
4.3 AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAO EM
DIREITOS HUMANOS E O CURRCULO DOS CURSOS DE GRADUAO DA
UFPB ....................................................................................................................... 125
5 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 134
REFERNCIAS ....................................................................................................... 138
ANEXOS ................................................................................................................. 143
11
1 INTRODUO
Ningum deseja ceder direitos aos injustiados, sem que esses lutem por eles. As pessoas desejam sim, aumentar quaisquer direitos j conquistados e nunca ceder em favor dos menos favorecidos, quando tal ajuda implique em ter que dividir direitos. (Luther King Jr.1).
O pensamento de Luther King Jr. nos remete luta dos grupos do Movimento
Negro no combate ao racismo e ao polmico debate com relao s polticas de
Aes Afirmativas e, em especial, ao sistema de cotas nas universidades brasileiras.
O tema em tela de grande relevncia pelo fato de suscitar questes que,
aparentemente, pensamos estarem resolvidas em nosso pas, que denominado
plural e de todas as cores. Tal denominao tem nos levado a uma inrcia diante da
comprovada excluso social e racial no ensino superior.
O dossi intitulado Dossi Aes Afirmativas na UFPB: a longa dcada da
democratizao inconclusa no ensino superior (1999-2012)2, organizado pelo
Ncleo de Estudos e Pesquisas Afrobrasileiros e Indgenas - NEABI/UFPB3, sobre
as aes desenvolvidas no mbito da UFPB e encaminhadas aos rgos
institucionais da UFPB, no incio de 2013, para subsidiar a implantao de polticas
pblicas, no sentido de garantir a permanncia dos estudantes cotistas, assinala que
as primeiras discusses sobre a temtica das aes afirmativas se iniciaram em
1999. De acordo com o documento, os agentes do processo eram os movimentos
sociais, entre eles o Movimento Negro da Paraba, a Pastoral do Negro e os grupos
de capoeira. Tais discusses atravessaram uma dcada e foram apresentadas em
seminrios nacionais e internacionais envolvendo os movimentos sociais, os grupos
de pesquisa e se desdobrando em atividades de extenso, ofertas de disciplinas,
desenvolvimento de projetos, formaes e publicao de artigos, livros, revistas e
jornais.
1 Trecho do discurso de Martin Luther King Jr. na Marcha em Washington, em 1963.
2 Documento disponvel em: .
Acesso em: 4 set.2013. 3 O Ncleo de Estudos e Pesquisas Afrobrasileiros e Indgenas - NEABI est vinculado ao Centro de
Cincias Humanas Letras e Artes, Campus I. Foi criado pela Resoluo N 07/2012/CONSUNI. Ele tem como misso sistematizar, produzir e difundir conhecimentos, fazeres e saberes que contribuam para a promoo da equidade racial e dos Direitos Humanos, tendo como perspectiva a superao do racismo e outras formas de discriminaes, a ampliao e consolidao da cidadania e dos direitos das populaes negras e indgenas no Brasil e, em particular, na Paraba.
12
No ano de 2010, foi aprovado o projeto de Reserva de Vagas com recorte
social e tnico-racial para os Processos Seletivos, com entrada prevista para o
vestibular de 2011 e oficializado com a publicao da Resoluo n. 09/2010. O
instrumento criou a Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas para acesso aos
cursos de Graduao da UFPB. Como resultado desse momento de efervescncia
impulsionado pelos movimentos sociais, tivemos algumas publicaes que merecem
destaques, como o dossi Aes Afirmativas, publicado na edio de outubro de
2010 da revista Poltica & Trabalho - Revista de Cincias Sociais. Organizado pelas
pesquisadoras Surya Aaronovich Pombo de Barros (CE) e Teresa Cristina Furtado
Matos (CCHLA), o dossi traz inicialmente uma entrevista com o pesquisador Srgio
Costa, do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP), que fomenta o
debate e aponta caminhos sobre as aes afirmativas e as cotas raciais no Brasil. A
publicao complementada por mais seis artigos de pesquisadores que discutem
as aes afirmativas e o acesso s universidades pblicas. Outra publicao
importante foi a do livro Populao Negra na Paraba, organizado pelas professoras
Solange Pereira da Rocha (UFPB) e Ivonildes da Silva Fonseca (UEPB). O livro, em
dois volumes, traz artigos de vrios professores pesquisadores das trs
universidades pblicas do Estado, visando subsidiar a implementao da Lei
10.639/03 no Estado da Paraba (FONSECA; ROCHA, 2010).
Nesse sentido, este trabalho se situa na analise de nuances acadmicas e
institucionais que esto inscritas no percurso para a implementao da poltica de
cotas da UFPB e nos seus desdobramentos a partir da poltica de permanncia
desenvolvida na universidade, em trs anos de vigncia, que passam pela discusso
da importncia da educao em e para os direitos humanos como um dos caminhos
para o combate ao racismo e discriminao social.
1.1 A MEMORIAL DA PESQUISA: a delimitao do espao pesquisa e o aporte
metodolgico.
A Universidade Federal da Paraba (UFPB) foi fundada em 1955, como
Universidade da Paraba, atravs da Lei estadual no 1.366, de 02 de dezembro de
1955, resultado da juno de algumas escolas superiores isoladas. Foi federalizada
cinco anos depois pela Lei no 3.835, de 13 de dezembro de 1960. Atualmente, a
UFPB oferece 134 cursos em uma instituio multicampi, com atuao nas cidades
13
de Joo Pessoa, Bananeiras, Areia, Rio Tinto e Mamanguape. Em seu plano de
desenvolvimento Institucional ( 2010-2012), prope como misso:
Integrada sociedade, promover o progresso cientfico e tecnolgico, cultural e socioeconmico local, regional e nacional, atravs das atividades de ensino, pesquisa e extenso, atrelado ao desenvolvimento sustentvel e ampliando o exerccio da cidadania (PDI 2010-2012).
Nesse sentido que as polticas desenvolvidas por esta universidade devero
estar aliceradas na trade ensino-pesquisa-extenso e estar pautadas no respeito e
na promoo da participao da sociedade em suas decises, devendo, inclusive,
promover momentos de integraes para este fim.
As aes empreendidas por esta instituio devem salvaguardar os
compromissos com as finalidades propostas pela LDB 9394/96, que passam pelo
crivo dos elementos culturais, cientficos e tnicos de promoo da cidadania.
O interesse pelo tema surgiu quando cheguei para trabalhar na UFPB no ano
de 2011 e fui lotada na Pr-Reitoria de Ps-Graduao, na Coordenao Geral de
Pesquisa, atual Coordenao Geral de Programas Acadmicos e de Iniciao
Cientfica (CGPAIC) e comecei a tomar conhecimento de algumas dificuldades
enfrentadas por muitos bolsistas dos Programas de Iniciao Cientfica PIBIC/PIBITI
e alunos voluntrios PIVIC/PIVITI, que no conseguiam o acesso a alguns
programas de auxlio, como o Restaurante Universitrio e a Residncia Universitria,
j que tais programas ainda so oferecidos atravs de seleo a cada semestre,
pois no h vagas suficientes para todos que deles necessitam.
O que mais me chamou a ateno foi que a universidade ainda no tinha uma
poltica especfica com vistas permanncia dos alunos que ingressavam no ensino
superior pelo sistema de cotas. Descobri tambm que algumas pesquisas sobre o
tema vinham sendo desenvolvidas atravs do PIBIC, mas que no conseguiam
chegar ao conhecimento de toda a comunidade acadmica, e, talvez, seja pela
pouca ateno que damos aos resultados de pesquisas j divulgadas nessa rea
que no consigamos avanar na construo de polticas para os reais problemas do
Brasil, ficando apenas nos debates e na anlise, sem, no entanto, nos
comprometermos com as aes concretas.
As informaes acima relatadas s vieram ao meu conhecimento aps o meu
ingresso no mestrado. Confesso que ainda no tinha a noo do quo forte e
14
mascarado era o racismo e a discriminao social no Brasil. O meu conhecimento
sobre o tema ainda era muito limitado, tendo sido ampliado atravs das leituras para
a seleo do mestrado. Naquele perodo, eu ainda possua uma viso inicial da
questo das cotas como um tema a ser analisado e discutido dentro do contexto dos
Direitos Humanos. Apenas depois de vrias leituras que comecei a perceber a
complexidade do tema, que ainda gera muitas controvrsias entre os que se
posicionam contra ou a favor das chamadas aes afirmativas.
Ao iniciar o estudo das disciplinas, ainda no primeiro semestre do curso, pude
entrar em contato com os referenciais tericos da temtica geral que fundamenta os
temas emergentes sobre os Direitos Humanos, comeando pelos marcos
regulatrios e algumas obras da rea. Nessas leituras iniciais, destaco o Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH3, 2010), o Plano Nacional da Educao em
Direitos Humanos (2007), e o livro Educao em Direitos Humanos: fundamentos
terico-metodolgicos (SILVEIRA, 2007). A obra apresenta artigos de vrios autores
e trata de diversos temas contemporneos, que nos fazem refletir sobre o real
significado dos direitos humanos e como poderemos superar as barreiras para a sua
universalizao.
O artigo Educao em/para os direitos humanos: entre a universalidade e as
particularidades, uma perspectiva histrica (SILVEIRA, 2007) traz tona as
principais dificuldades para a universalizao dos direitos humanos e faz uma
retrospectiva histrica de vrios momentos de lutas, entre vitrias e retrocessos, por
emancipao poltica, como, por exemplo, a aprovao da Declarao de 1948 e a
luta pela descolonizao da frica do Sul na dcada de 1960, alm do Movimento
Negro nos Estados Unidos, a resistncia contra o Apartheid na frica do Sul, o
movimento feminista e a revolta da juventude estudantil em vrios pases. Segundo
a autora, uma das dificuldades em universalizar a garantia dos Direitos Humanos
recomendada pela Declarao porque esta se apresenta mais como um desejo,
vontade poltica de muitos, que a vislumbravam como uma virtualidade para
construir um mundo diferente e melhor, e [porque] sem conflitos, do que uma ao
efetiva (SILVEIRA, 2007, p. 251).
Outro referencial terico importante nessa caminhada foi a Coleo Educao
para Todos, lanada em 2004 pelo Ministrio da Educao (MEC) e pela UNESCO,
que conta com a publicao de 33 volumes, dos quais destacamos quatro: o volume
dois, intitulado Educao Antirracista: Caminhos Abertos pela Lei Federal n
15
10.639/2003 (2005); o volume cinco: Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas
Amricas (2005); o volume 29: O Programa Diversidade na Universidade e a
Construo de uma Poltica Antirracista (2007); e o volume 30: Acesso e
Permanncia da Populao Negra na Educao Superior (2007). A partir das
demandas do Movimento Negro, eles abrem o debate sobre o direito dos grupos
socialmente desfavorecidos, no acesso ao ensino superior, especialmente para os
negros e indgenas. Ao mesmo tempo, apontam quais os caminhos a serem
percorridos para que se efetive a verdadeira incluso e a justia social. Essas
leituras foram fundamentais para um melhor esclarecimento do tema.
Destaco tambm a leitura do livro Subsdios para a Educao em Direitos
Humanos na Pedagogia (2010), organizado pelas professoras Lcia de Ftima
Guerra Ferreira, Maria de Nazar Tavares Zenaide e Adelaide Alves Dias, e que
compe a Coleo Direitos Humanos na Educao Superior: Subsdios para a
Educao em Direitos Humanos nos Cursos de Filosofia, Pedagogia e Cincias
Sociais. O volume aqui destacado soma 13 artigos e tem por objetivo nortear a
insero da Educao em Direitos Humanos no curso de Pedagogia, a partir do que
prope o Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos, no que diz respeito s
aes programticas para a Educao Superior, mas que podero servir de base
para qualquer rea de conhecimento, qualquer curso e qualquer nvel de ensino.
Neste volume, a professora Rosa Maria Godoy Silveira, em seu artigo intitulado
Universalidade e particularidade: a problematizao para a educao, mais uma
vez enfoca a questo da importncia da universalizao dos direitos humanos e nos
alerta que:
Ainda persiste, nos sistemas educacionais e nos processos educativos concretos, uma concepo, de lastro iluminista liberal, de uma pretensa igualdade perante a lei - a lei seria universal, aplicvel a todos -, o que asseguraria a educao a todos. Concepo que no resiste ao cotejo com os fatos e desmente e desmonta o discurso do acesso Escola como garantia de educao em termos substantivos, e no apenas formais. E menos resiste ainda, quando incide em uma sociedade como a brasileira, nem sequer plenamente configurada segundo os princpios iluministas de mais de duzentos anos, haja vista as marcas do privilgio, do clientelismo, do mandonismo, do nepotismo, que caminham em direo contrria universalidade. (SILVEIRA, 2010, p. 179).
Com esse texto, a referida educadora nos faz refletir sobre a
importncia de entendermos que uma viso de antagonismo, de dicotomia entre
universalidade e particularidade poder dificultar, em termos de teoria e prtica
16
educativa efetiva, a construo de uma cultura de Direitos Humanos que considere a
diversidade humana como ponto de partida para o respeito ao outro e tolerncia
no complexo mundo globalizado.
Para sintetizar todos essas questes que envolvem o reconhecimento e
respeito diversidade tnica brasileira, Vera Maria Candau, em um de seus textos
intitulado Sociedade multicultural e educao: tenses e desafios, nos alerta que, na
Amrica Latina e particularmente no Brasil, as relaes intertnicas tm sido uma
constante, por conta de um processo histrico doloroso e trgico, principalmente
para os grupos indgenas e afrodescendentes. Afirma a autora:
A nossa formao histrica est marcada pela eliminao fsica do outro ou por sua escravizao, formas violentas de negao de sua alteridade. Os processos de negao do outro tambm se do no plano das representaes e no imaginrio social. Nesse sentido, o debate multicultural na Amrica Latina nos coloca diante desses sujeitos histricos que foram massacrados, que souberam resistir e continuam hoje afirmando fortemente suas identidades na nossa sociedade, mas numa situao de relaes e de poder assimtricas, de subordinao e acentuada excluso. (CANDAU, 2005, p. 14).
As estratgias de resistncia do movimento negro, segundo Kabengele
Munanga significam que estes esto conscientes dos aportes que as culturas e as
civilizaes negras trouxeram civilizao dita universal. O fato que essa luta
representa o reconhecimento de sua alteridade e da resistncia condio de
escravos a que sempre foram assujeitados. obvio, que o fato de se ter negado o
acesso educao faz com que esses sujeitos histricos que foram massacrados,
continuem a s-lo, haja vista, que a educao a porta de acesso para outros
direitos tidos como fundamentais, como o trabalho, e que, por sua vez, determina a
qualidade de vida desses sujeitos. Nesse processo de luta e resistncia,
importante destacar que
nessa perspectiva histrica, na qual a memria do passado remete ao presente, ao imediato e ao cotidiano para se projetarem na construo do futuro, que devemos advogar em favor do multiculturalismo ou pluralismo militante, sem perder de vista a interculturalidade. verdade que num pas como o Brasil, as cercas do dilogo entre culturas e identidades, enquanto processos se interrompem ou se confundem, pois em todas as filosofias ser e existir partem do princpio ontolgico da diferena que contraria uma homogeneizao identitria costurada a partir da miscigenao. (MUNANGA, 2004, p. 9).
17
O Pluralismo militante deve, portanto, unir todas as vozes dos grupos
historicamente excludos, de forma que estes se fortaleam na luta pelos seus
direitos.
Os referenciais aqui expostos serviram de base para o amadurecimento
terico e para a reviso da proposta do meu projeto de mestrado, que foi
apresentado em fevereiro de 2013, no segundo semestre do curso, no seminrio de
dissertao. Na ocasio, as discusses que envolveram a minha arguio,
levantaram algumas questes que me surpreenderam bastante. Uma dessas
questes foi uma colocao de um dos participantes, que, ao se posicionar, afirmou
que: uma poltica como essa pode ocasionar a precarizao do ensino superior. O
que tem que ser feito melhorar a qualidade da educao bsica. No podemos
admitir a entrada na universidade de alunos que no tm a base do ensino mdio.
Sabemos que a frase reflete os discursos contrrios s polticas de aes
afirmativas de acesso ao ensino superior, pautados na supervalorizao do acesso
pela meritocracia, como se a responsabilidade ou a culpa de conseguir uma vaga na
universidade, ou no, fosse nica e exclusivamente do candidato/indivduo. Na
verdade, o que me surpreendeu foi o fato de ainda encontrar pessoas atuando no
campo dos Direitos Humanos e mantendo posies que refletem a negao do
acesso a direitos e construo de polticas pblicas voltadas para determinados
grupos.
O seminrio para a apresentao do projeto foi fundamental para que eu
pudesse perceber que o debate acumulado sobre o sistema de cotas na UFPB -
durante uma dcada -, tendo como atores os mais variados grupos sociais,
precisava urgentemente ser retomado e universalizado dentro da instituio, na
perspectiva de dar uma nova direo ao acompanhamento e avaliao da poltica
implementada.
Destarte, essa pesquisa se justifica pela relevncia de que, ao retomarmos o
debate, discutiremos a poltica de cotas em nvel nacional, tendo como foco o seu
percurso, para entender o processo de implantao da Modalidade de Ingresso por
Reserva de Vagas (MIRV) no acesso aos cursos de Graduao da Universidade
Federal da Paraba. Alm disso, observamos a importncia de investigar se h uma
poltica de permanncia especfica a partir dos programas que esto sendo
desenvolvidos no interior da universidade, voltados para o seu pblico-alvo. Com
foco em nossos objetivos, a metodologia adotada foi de natureza quanti-qualitativa.
18
Embora, levante dados quantitativos, as anlises se restringem a elementos no
quantificveis.
Iniciei minha investigao sobre o tema das aes afirmativas no meu setor
de trabalho, fazendo um levantamento das pesquisas realizadas no mbito do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica (PIBIC/CNPq/UFPB) e,
posteriormente, nos cursos de Direito, Medicina, Engenharia Civil e Pedagogia, que
foram os escolhidos para esta pesquisa. O recorte temporal foi no perodo de 2010 -
ltimo ano de ingresso de estudantes sem critrios de cotas -, e os trs primeiros
anos da adoo da poltica de cotas, sendo eles 2011, 2012 e 2013.
Para um melhor entendimento, dividimos as pesquisas realizadas em trs
categorias; categoria X = Pesquisas de Iniciao Cientfica, Categoria Y = Pesquisas
de graduao, e Categoria Z = Pesquisas de Ps-Graduao, conforme descrito na
tabela abaixo. No desenvolvimento da investigao, recorri aos dados da CGPAIC
para as pesquisas de Iniciao Cientfica PIBIC, PIBIC-AF e PIBIT. Para as
pesquisas de Graduao e Ps-Graduao, recorri ao currculo Lattes dos
professores dos cursos mencionados, verificando as monografias, dissertaes ou
teses desenvolvidas ou em desenvolvimento sob a orientao dos professores,
conforme tabela abaixo:
Tabela 1 Distribuio das Pesquisas acadmicas realizadas entre 2011 e 2013 sobre a temtica das aes afirmativas, por categoria de pesquisa.
Curso dos
pesquisadores
Categoria X
Iniciao
Cientfica
PIBIC/PIBIT
Categoria Y
Graduao
Monografias
Categoria Z
Ps-Graduao
Dissertaes e
Teses
Total
Psicologia 11 - - 11
Psicopedagogia 01 - - 01
Direito - 03 - 03
Engenharia
Civil
- - -
Medicina - - - -
Pedagogia - - - -
Total 12 03 - 15
Fonte: Fontes: CGPAIC/UFPB; CNPq/Plataforma Lattes Tabela elaborada pela pesquisadora
19
A tabela 1(um) apresenta um panorama que permite inferir que, nos cursos
pesquisados, o interesse sobre o tema das aes afirmativas no ensino superior,
dentro do contexto da UFPB, no se apresenta de forma expressiva, nem mesmo no
curso de Direito, que, em tese, seria o curso que deveria demonstrar o maior
interesse pela temtica, contando com apenas trs pesquisas realizadas.
No recorte temporal apresentado na tabela 1- (2011-2013), foram aprovados
nove projetos de pesquisa de Iniciao Cientfica nas chamadas internas do
programa. Esses projetos se desdobraram em 12 planos de trabalho envolvendo a
temtica das aes afirmativas, com enfoque para a poltica de cotas e racismo, e
que foram desenvolvidos por bolsistas da rea de Cincias Humanas e Sociais,
dentro do programa PIBIC-AF. Desses planos de trabalho, cinco deles fazem sua
investigao em escolas pblicas e particulares de Educao Bsica, com o objetivo
de analisar os discursos dos estudantes sobre as categorizaes raciais e aes
afirmativas. Quatro procuram demonstrar os processos psicossociais que envolvem
a discriminao social, como o racismo, o machismo e a homofobia. Os trs
restantes enfocam os discursos no Judicirio brasileiro a partir do estudo da ata da
Audincia Pblica ocorrida em maro de 2010, no Supremo Tribunal Federal.
Um fato que chamou minha ateno, diz respeito ao curso de Pedagogia,
onde eu acreditava poder encontrar pesquisas sobre o tema. No entanto, ao
pesquisar os currculos Lattes dos professores, constatamos que os temas das
monografias e dos trabalhos de concluso de curso abordam questes dos direitos
humanos voltados para a rea do interesse de cada professor, e apenas um dos
professores orientou uma dissertao no Programa de Ps-Graduao em
Educao, envolvendo a temtica das aes afirmativas no ensino superior,
intitulada Do Debate implementao: a verso no oficial da adoo das cotas
raciais na UFPB4, com as lentes voltadas para os discursos presentes nos debates
que antecederam a aprovao da proposta, procurando mostrar como o REUNI-
UFPB e a Recomendao do Ministrio Pblico foram fatores decisivos para a
implementao da poltica.
Paralelamente a este trabalho, comecei a procurar livros de autores que se
posicionavam contra e a favor dessa modalidade de ao afirmativa, para
compreender em que estava sendo fundamentado cada ponto de vista. Assim, to
4 Disponvel em: . Acesso
em: 4 set.2013.
20
logo terminei as disciplinas, intensifiquei as leituras com a finalidade de formular
meus conceitos e construir a base terica para o desenvolvimento da minha
pesquisa, possibilitando a ampliao do debate sobre um tema to polmico.
Primeiro, quis entender quais os princpios que fundamentavam as teses
contrrias s polticas de aes afirmativas. O primeiro livro que me propus a ler, foi
o de Demtrio Magnoli, intitulado Uma gota de sangue - histria do pensamento
racial (2009). Nele, o autor aborda trs momentos assim divididos: a) a inveno da
raa, com o racismo cientfico do sculo XIX, b) a desinveno da raa aps a
Segunda Guerra Mundial, e c) a reinveno da raa, com o multiculturalismo.
Baseado nesses trs tempos histricos, ele pauta seu discurso na descoberta do
genoma humano, que comprova no existirem raas na espcie humana. Magnoli
critica as polticas de aes afirmativas por serem provenientes do multiculturalismo
apregoado atualmente no Brasil, e que se basearia, segundo o autor, no racismo
cientfico do sculo XIX, separando a espcie humana em raas, o que, segundo
Magnoli, causa a segregao racial ao trabalhar com a definio de raas.
Quanto a sua afirmao da reinveno da raa a partir do multiculturalismo
crtico, Magnoli insinua que a Resoluo que institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino da Histria
e Cultura Afro-brasileira e Africana, ao definir o Brasil como uma sociedade
multicultural e pluritnica, consagra oficialmente a categoria racial dos
afrodescendentes e defende que no se trata, portanto, de discutir na escola o
racismo ou o mito da raa, mas de elaborar uma identidade racial, imprimindo-a na
histria e na cultura (MAGNOLI, 2009, p. 334). E acrescenta que as escolas e os
professores so chamados pelo poder de estado a colidir de frente com todo o
movimento de ideias que produziu o conceito contemporneo de direitos humanos,
organizando uma pedagogia de raa (MAGNOLI, 2009, p. 335).
Magnoli faz ainda uma critica ao pensamento de Munanga, a respeito da
miscigenao. Em seu livro, ele cita a apresentao do livro Rediscutindo a
mestiagem no Brasil, edio de 2004, que foi assinada pelo socilogo Tefilo de
Queiroz Jnior. Nele, o prefaciador afirma que o objetivo do livro alertar para a
incapacidade dos homens brasileiros de saber e de poder reconhecer os prejuzos
que a mestiagem vem causando no Brasil. Em contraponto, Magnoli insinua que
Munanga compartilha da crena do racismo cientfico do sculo XIX na existncia
biolgica de raas humanas (MAGNOLI, 2009, p. 380).
21
Quanto ltima crtica, encontrei a resposta em um texto publicado por
ocasio da Conferncia de abertura proferida por Kabengele Munanga, no III
Pensando fricas e Suas Disporas-Encontro de Antropologia e Educao - I
Seminrio Municipal de Formao de Professores Para Relaes tnico-Raciais,
organizado pelo Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de
Ouro Preto, ocorrido no perodo de 26 a 28 de setembro de 2012. A conferncia
intitulada Negritude e identidade negra ou afrodescendente: um racismo ao
avesso?5 Na ocasio, Munanga se expressou da seguinte forma: a identidade afro-
brasileira ou identidade negra passa, necessria e absolutamente, pela negritude
enquanto categoria scio-histrica, e no biolgica, e pela situao social do negro
num universo racista. E acrescentou:
O ponto de partida do multiculturalismo a existncia, no seio de uma mesma sociedade, mesmo estado, nao, territrio geogrfico, etc., de mais uma cultura, uma comunidade (religiosa, lingustica, cultural, tnica, etc.). Alm dessas comunidades que produzem culturas comunitrias, supe-se a existncia de uma nica cultura nacional que se sobrepe s outras. Esta negao de outras comunidades e suas culturas pode engendrar conflitos culturais ou identitrios, chegando, em alguns pases, a provocar processos de separao ou de autonomias polticas dentro de um mesmo Estado Federativo. Em outras sociedades, a exemplo do Brasil, as comunidades, embora no reivindiquem a separao e a autonomia poltica, querem que suas culturas, histrias e vises do mundo sejam reconhecidas publicamente e integradas histria nacional e ao processo educacional nacional (MUNANGA, 2012, p. 7).
Esse debate, permeado por tenses e por atitudes que (re)produzem a
desigualdade e a excluso, sinaliza que precisamos de uma educao em/para os
direitos humanos que nos torne conscientes da importncia da alteridade, para que
se possa articular igualdade e diferena. Uma educao que no esteja pautada
apenas nos festejos de datas comemorativas como estamos acostumados a ver
acontecer nas escolas, e sim uma educao que aborde vrios temas e os conceitos
relativos diversidade cultural. Significa, portanto, que as polticas inclusivas s
tero sentido se estiverem em consonncia com um multiculturalismo que nos
permita o exerccio da empatia, para que possamos nos aproximar da realidade do
outro, do considerado diferente. Candau 2005 assume que, existem vrias
5 Disponvel em: . Acesso
em: 4 set.2013.
22
tendncias desse universo conceitual denominado multiculturalismo que vem sendo
conceituado por diversos autores e, baseado nesses conceitos, acredita que o
interculturalismo como um enfoque que afeta a educao em as todas as suas
dimenses, favorece uma dinmica de crtica e autocrtica, valorizando a interao e
a comunicao recproca entre os diferentes sujeitos e grupos culturais.
Um tema bastante polmico atualmente com relao poltica de ao
afirmativa com reserva de vagas para acesso ao ensino superior aos grupos
historicamente excludos como os negros, os ndios e as pessoas com deficincia,
que tem por objetivo a equidade nas oportunidades de acesso Educao Superior.
Quanto a esse aspecto, Kabengele Munanga argumenta que as polticas de aes
afirmativas so uma demanda no s da populao negra, mas de toda a sociedade
brasileira, que entendeu ser necessrio investir em polticas especficas e centradas
nos reais problemas que o Brasil enfrenta. Isso porque ainda h um abismo muito
grande em matria da educao para negros, que as polticas universalistas no
conseguem responder. Em entrevista revista Carta Capital, ao ser interrogado se o
sistema de cotas deveria ser combinado com a renda familiar, ele respondeu que:
Sempre defendi as cotas na universidade tomando como ponto de partida os estudantes provenientes da escola pblica, mas com uma cota definida para os afrodescendentes e outra para os brancos, ou seja, separadas. Por que proponho que sejam separadas? Porque o abismo entre negros e brancos muito grande. Entre os brasileiros com diploma universitrio, o porcentual de negros varia entre 2% e 3%. As polticas universalistas no so capazes de diminuir esse
abismo (Munanga, em entrevista revista Carta Capital, edio de 30 dez. 2012)
Ao defender essa modalidade de ao afirmativa, considerando o recorte
social e tnico-racial, na mesma entrevista Munanga alerta para o fato de que muitas
leis j esto em vigor, mas so difceis de serem aplicadas na prtica, citando como
exemplo as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatrio o ensino da
cultura e da histria do negro e dos povos indgenas na sociedade brasileira.
Durante a mesma entrevista, Munanga chama a ateno para a importncia de que:
Primeiro preciso formar os educadores, porque eles receberam uma educao eurocntrica. A frica e os povos indgenas eram deixados de lado. A histria do negro no Brasil no terminou com a abolio dos escravos. No apenas de sofrimento, mas de contribuio para a sociedade.
23
A afirmao acima, proferida em outras palavras, de que a formao ideal
de que necessitamos, aquela que possa fazer de:
Ns verdadeiros educadores, capazes de contribuir no processo de construo da democracia brasileira, que no poder ser plenamente cumprida enquanto perdurar a destruio das individualidades histricas e culturais das populaes que formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira (MUNANGA, 2005, p. 17).
Cumpre-se, assim, o que preconiza o artigo 242, 1, ao anunciar que o
ensino da Histria do Brasil levar em conta as contribuies das diferentes culturas
e etnias para a formao do povo brasileiro. O no cumprimento desse dispositivo
evidencia que:
A ignorncia em relao histria antiga dos negros, as diferenas culturais, os preconceitos tnicos entre duas raas que se confrontam pela primeira vez, tudo isso, mais as necessidades econmicas de explorao, predispuseram o esprito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptides intelectuais. O negro torna-se, ento, sinnimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pr-lgica (MUNANGA, 1986, p. 9).
Nesse sentido, preciso desconstruir os esteretipos enraizados em nossas
estruturas mentais, at porque:
O resgate da memria coletiva e da histria da comunidade negra no interessa apenas aos alunos de ascendncia negra. Interessa tambm aos alunos de outras ascendncias tnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educao envenenada pelos preconceitos, eles tambm tiveram suas estruturas psquicas afetadas. Alm disso, essa memria no pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente fruto de todos os segmentos tnicos que, apesar das condies desiguais nas quais se desenvolvem, contriburam cada um de seu modo na formao da riqueza econmica e social e da identidade nacional (MUNANGA, 2005, p. 16).
Esse pensamento compartilhado tambm por outros pesquisadores que, ao
longo de seus estudos, perceberam que a educao tambm contribuiu muito para a
perpetuao da produo e a reproduo da discriminao racial contra os negros e
seus descendentes, como afirma Abdias Nascimento:
24
O sistema educacional [brasileiro] usado como aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminao cultural. Em todos os nveis do ensino brasileiro elementar, secundrio, universitrio o elenco das matrias ensinadas, como se se executasse o que havia predito a frase de Slvio Romero, constitui um ritual da formalidade e da ostentao da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se conscincia memria e futuro, quando e onde est a memria africana, parte inalienvel da conscincia brasileira? Onde e quando a histria da frica, o desenvolvimento de suas culturas e civilizaes, as caractersticas do seu povo foram ou so ensinadas nas escolas brasileiras? Quando h alguma referncia ao africano ou negro, no sentido do afastamento e da alienao da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as populaes afro-brasileiras so tangidas para longe do cho universitrio como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do pas o mesmo que provocar todas as iras do inferno, e constitui um difcil desafio aos raros universitrios afro-brasileiros (NASCIMENTO, 1978, p. 95).
A questo da reproduo da imagem negativa dos negros, retratada nos livros
didticos, influenciou significativamente na construo de uma identidade do negro
como um ser inferior diante da supremacia branca. O socilogo Pierre Bourdieu, em
sua obra A Reproduo (2013), nos explica melhor essa relao de poder ao
analisar o sistema de ensino francs, descrevendo como as instncias escolares,
atravs de suas aes pedaggicas, exercem essa violncia simblica, reproduzindo
as estruturas sociais de gerao em gerao, ao afirmar que:
O trabalho pedaggico (seja ele exercido pela Escola, por uma Igreja ou um Partido) tem por efeito produzir indivduos modificados de forma durvel, sistemtica por uma ao prolongada de transformao que tende a dot-los de uma mesma formao durvel e transfervel (hbitus), isto , de esquemas comuns de pensamentos, de percepo, de apreciao e de ao, pelo fato de que a produo em srie de indivduos identicamente programados exige e suscita historicamente a produo de agentes de programao eles mesmos identicamente programados e de instrumentos padronizados de conservao e de transmisso (BOURDIEU, 2013, p. 231).
Ainda segundo o autor, essa violncia simblica passa por trs instncias: a
famlia, a escola e a comunicao social, de forma que, o habitus imposto pela
famlia a base para o fortalecimento do poder simblico, que, mesmo sendo
invisvel, contribui para legitimar a cultura dominante.
25
Com relao ao acesso educao superior, Bourdieu entende que a
segregao acontece desde seu ingresso na universidade. Um dos motivos
porque as instituies de ensino superior asseguram ou legitimam o acesso das
classes dominantes aos cursos considerados de alto prestgio social. Afirma o autor:
Os mecanismos objetivos que permitem s classes dominantes conservar o monoplio das instituies escolares de maior prestgio (ainda que aparentemente tal monoplio seja colocado em jogo em cada gerao) se esconde sob a roupagem de procedimentos de seleo inteiramente democrticos cujos critrios nicos seriam o mrito e o talento, e capazes de converter aos ideais do sistema membro eliminado e os membros eleitos das classes dominadas, este ltimos os milagrosos levados a viver como milagroso um destino de exceo que constitui a melhor garantia da democracia escolar (BOURDIEU, 2013, p. 231).
Dessa forma, o vestibular regula a entrada das classes dominantes e impe
sua autoridade s classes dominadas. Destarte, preciso acabar com o estigma da
excluso da populao negra e indgena do acesso ao capital cultural que a
educao pode proporcionar, haja vista que o determinante deste capital s pode
ser medido pelo ttulo acadmico e pela profisso escolhida, como afirma o prprio
Bourdieu. Por isso, as aes afirmativas tornaram-se uma demanda urgente e
necessria para esses segmentos da populao.
Outro aspecto importante a ser observado, diz respeito afirmao de Abdias
Nascimento e tem a ver com a luta que vem sendo travada pelo Movimento Negro.
Ela se refere a quando o importante lder menciona a provocao que falar da
identidade negra dentro de uma universidade. Isso nos remete ao ano de 2006,
marcado por manifestaes6 que acreditamos terem sido motivadas pelo fato de que
a luta pela incluso tnica e racial no ensino superior brasileiro tm provocado
grandes preocupaes, a ponto de levar 113 intelectuais brasileiros a apresentarem
um Manifesto anticotas, posicionando-se contra a aprovao de leis raciais no Brasil
e justificando que tais leis podem acentuar ainda mais o racismo. Esses intelectuais,
na sua maioria professores de vrias universidades, solicitaram na poca, ao
Congresso Nacional, que recusassem o Projeto de Lei 3/1999 (PL das cotas) e o
projeto de Lei 3.198/200 (PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da
6 Para saber mais sobre os manifestos contra e a favor das cotas apresentados ao Congresso em
2006, acesse: .
26
democracia do pas. Esse manifesto visivelmente desconsidera as desigualdades
presentes em nossa sociedade, ao defender que:
O PL de Cotas torna compulsria a reserva de vagas para negros e indgenas nas instituies federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificao racial oficial dos cidados brasileiros, estabelece cotas raciais no servio pblico e cria privilgios nas relaes comerciais com o poder pblico para empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratao de funcionrios. Se forem aprovados, a nao brasileira passar a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela "raa". A histria j condenou dolorosamente estas tentativas7.
Como resposta, no mesmo ano, outro manifesto foi apresentado ao Senado,
desta vez a favor das aes afirmativas no Ensino Superior e contou com 330
assinaturas, alm de uma lista de 60 apoiadores. Esse manifesto defende, entre
outras coisas, que:
O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma resposta coerente e responsvel do Estado brasileiro aos vrios instrumentos jurdicos internacionais a que aderiu, tais como, a Conveno da ONU para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial (CERD), de 1969, e, mais recentemente, ao Plano de Ao de Durban, resultante da III Conferncia Mundial de Combate ao Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, ocorrida em Durban, na frica do Sul, em 20018.
Dois anos depois, representantes do Movimento Negro, intelectuais e
acadmicos elaboraram outro Manifesto9, contando com mais de trs mil
assinaturas, com o objetivo de reforar seu apoio, defender a legalidade das aes
afirmativas e apresentar a repercusso positiva de vrias inciativas de universidades
que, ao adotarem um modelo de sistema de cotas, pressionavam a articulao e a
produo intelectual e apontavam os caminhos a serem percorridos, no sentido de
promover o acesso ao ensino superior de forma equitativa. O manifesto expressa:
7 Manifesto Todos Tm Direitos Iguais na Repblica Democrtica, realizado em 2006. Disponvel em:
< http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml>. Acesso em: 18 set.2013. 8 Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, realizado em 2006.
Disponvel em: < http://www.observa.ifcs.ufrj.br/manifesto/index.htm>. Acesso em: 18 set.2013. 9 Manifesto apresentado ao Supremo Tribunal Federal em 2008. Disponvel em: . Acesso em: 18 set. 2013.
27
A repercusso positiva de tais iniciativas mostra que elas se adequam perfeitamente aos ideais de justia partilhados por amplos setores da sociedade brasileira que veem nas aes afirmativas uma forma legtima de democratizar o acesso de camadas excludas da populao a um tipo de bem (o ensino superior) que historicamente esteve ao alcance de poucos10.
Diante desse embate que a sociedade brasileira enfrenta por conta da
formao histrica de sua identidade coletiva, o que temos por certo que a
descoberta da cincia, de que raa no existe, no ajudou em nada a combater o
racismo, bastando observar os resultados das estatsticas oficiais com relao a
emprego, renda, sade e escolaridade para comprovar o racismo e a desigualdade
social que reinam em nosso pas. E por todos esses motivos aqui relatados que foi
necessrio criar dispositivos legais com o objetivo de assegurar direitos culturais,
sociais e tambm materiais aos grupos historicamente excludos. .
Destarte, como alerta a filsofa americana Nancy Fraser, a luta pela
afirmao da identidade de um determinado grupo e o reconhecimento de suas
diferenas requerem tambm a redistribuio tanto material como cultural e carrega
junto dessa premissa um paradoxo, j que:
O resultado que a poltica do reconhecimento e a poltica da redistribuio parecem ter com frequncia objetivos mutuamente contraditrios. Enquanto a primeira tende a promover a diferenciao do grupo, a segunda tende a desestabiliz-la. Desse modo, os dois tipos de luta esto em tenso; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra o outro (FRASER, 2006, p. 233).
Fraser atenta para o fato da injustia cultural e da injustia econmica
estarem intrinsecamente relacionadas com as lutas pela afirmao dos direitos dos
grupos que sofreram ou que sofrem qualquer tipo de discriminao; e que as
polticas afirmativas precisariam, de um lado, da redistribuio e do reconhecimento,
e, do outro, da afirmao e da transformao. Tomando como exemplo o caso da
poltica de cotas, no qual o bem a ser redistribudo seria o acesso de um
determinado grupo universidade seriam necessrias essas duas formas de
combates para resolver os conflitos que se instaurarem, porque no basta apenas
reconhecer a necessidade da redistribuio do bem, mas, tambm, procurar resolver
as origens das desigualdades.
10
Manifesto em Defesa da Justia e da Constitucionalidade de Cotas, realizado em 2008. Disponvel em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1405200808.htm>. Acesso em: 19 set.2013.
28
Dessa forma, necessrio proporcionar mudanas de ordem cultural para o
reconhecimento das diferenas, alm de educar para o entendimento de que no
basta s reconhecer nossas mazelas, mas, sobretudo, entender os motivos que
impedem que elas se resolvam. Paulo Freire, em seu livro Pedagogia do Oprimido,
afirma que a investigao temtica se faz assim, um esforo comum de conscincia
da realidade e da autoconscincia, que a inscreve como ponto de partida do
processo educativo, ou da ao cultural de carter libertador (1987, p. 57). A
temtica geral a ser investigada , portanto, a ao afirmativa (cota) e as palavras
geradoras so educao, igualdade, discriminao, racismo, desigualdade e Direitos
Humanos, dentre outras. , portanto, a partir da compreenso crtica da realidade
que obteremos as respostas e a realizao de prticas efetivas.
Nessa perspectiva, precisamos enfrentar um grande desafio, a ser alcanado
pela poltica de ao afirmativa para as universidades brasileiras, que ser o de
redistribuir com equidade o bem cultural acesso ao ensino superior, para negros,
indgenas e a outros grupos notoriamente segregados. Qualquer que seja o
beneficiado , o fundamento deve estar em reconhecer que a igualdade que se
pretende, depende do respeito a todas as diferenas. Da a importncia de no focar
a poltica s na redistribuio, mas, sobretudo, investir em uma poltica de
reconhecimento das diferenas culturais. O caminho, com certeza, investir na
educao em e para os direitos humanos.
As chamadas aes afirmativas surgem, ento, como resposta aos apelos
dos mais variados grupos, em um perodo ainda marcado pela discriminao e pelo
racismo em nvel internacional, mas ganharam maiores propores e
desencadearam um processo de redemocratizao. Como desdobramento, surgiram
convenes, pactos, tratados, protocolos e planos com propostas e recomendaes
aos Estados Nacionais, para que possam reparar o quadro de desigualdades que
apresentam e que necessitam de uma educao em/para os Direitos Humanos
como fundamento das prticas do reconhecimento. Isso porque no adianta oferecer
acesso s universidades e conferir diploma de concluso de curso, se no houver o
reconhecimento desse profissional, garantindo as mesmas oportunidades de acesso
ao mercado de trabalho.
29
1.2 ESTRUTURA DA DISSERTAO
Essa pesquisa abordou uma das modalidades das aes afirmativas
denominadas como polticas de cotas para as universidades, tendo como foco o
perodo de 2010 a 2013. Assim, para uma melhor exposio da pesquisa, ela esta
apresentada em quatro captulos a partir do seguinte roteiro: inicialmente, neste
captulo introdutrio, fizemos uma exposio do memorial da pesquisa apontando a
conexo com a contextualizao do cenrio nacional das aes afirmativas, em
especial o sistema de cotas para as universidades; que serviram de bssola para
discutimos a atuao do Estado na efetivao do sistema de cotas, atravs de seus
vrios rgos, bem como examinamos programas e projetos desenvolvidos com
este direcionamento.
Fechamos a exposio sobre os propsitos da pesquisa, tecendo
consideraes sobre polticas de cotas, conferido destaque para discusses acerca
da importncia da educao em e para os direitos humanos como um dos caminhos
para o combate ao racismo e discriminao social, que conduziram a formulao
das consideraes finais pertinentes pesquisa..
No captulo dois, intitulado Brasil rumo a uma universidade plural: as aes
afirmativas, analisamos na primeira seo, os principais marcos legislativos em
nvel nacional e internacional que conceituam e fundamentam as aes afirmativas,
quais sejam: Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), Conveno pela
Luta contra a Discriminao no Ensino (1960), Conveno sobre a Eliminao de
Todas as Formas de Discriminao Racial (1965), Constituio Federal (1988),
Programa Nacional de Direitos Humanos em sua trs verses: PNEDH1(2006),
PNEDH2 (2009), PNEDH3 (2010), Conferncia de Viena (1993), Conferncia de
Durban (2001), Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos (2007), Estatuto
da Igualdade Racial (2010) e Resoluo n 01 de maio de 2012, que instituiu as
Diretrizes Nacionais para a Educao em Direitos Humanos. Os dispositivos legais
aqui elencados fundamentam e (re)afirmam a necessidade da poltica de cotas para
acesso aos cursos superiores como medida de reparao ao bem cultural que a
educao, e ratificam as reinvindicaes apresentadas pelo Movimento Negro, que
buscam esse reconhecimento, alm do reconhecimento poltico, civil, histrico-
cultural e econmico. Em seguida, configuramos o processo de implantao da
poltica de cotas nas universidades brasileiras, com destaque para a Universidade
30
de Braslia (UnB), a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade Federal
da Bahia (UFBA), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade
Estadual da Bahia (UNEB), pelo fato de terem sido as primeiras universidades a
adotarem um modelo de reserva de vagas, garantindo cotas para negros e
indgenas. Apresentamos como ocorreram s formas de acesso nas supracitadas
instituies e alguns resultados positivos aps a implementao da referida poltica.
Para a elaborao desse tpico, utilizamos como fonte de pesquisa os documentos
e textos disponveis nos portais das universidades, como as resolues dos seus
conselhos superiores, Planos de Metas, artigos e avaliaes publicadas e os editais
que regulamentam o sistema adotado em cada uma daquelas IES.
Prosseguindo o estudo, discorremos, na segunda seo do segundo captulo,
sobre a atuao do Estado, os desdobramentos das polticas desenvolvidas a partir
da criao da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
(SDH/PR), da Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
(SEPPIR/PR) e da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade
e Incluso (SECADI/MEC), bem como os respectivos programas criados e
desenvolvidos por cada uma dessas secretarias. E, ainda, as diretrizes nacionais
que servem de parmetros para direcionar as aes e a construo de polticas
pblicas que proporcionem o combate ao racismo e discriminao nas instituies
escolares.
Finalizamos o captulo dois com uma terceira seo, enfocando o sistema de
cotas aps a sua oficializao pelo Estado brasileiro, partindo da leitura e anlise do
texto da Lei n 12.711/2012, que dispe sobre o ingresso nas universidades federais
e nas instituies federais de ensino tcnico de nvel mdio que compem o sistema
federal de ensino11, para alunos oriundos do ensino mdio pblico, em cursos
regulares ou da educao de jovens e adultos. H tambm uma anlise dos
argumentos trazidos pelo voto da Arguio de Descumprimento do Preceito
Fundamental 186 (ADIN 186/2012)12, do Distrito Federal, que teve como relator o
11
O sistema federal de ensino compreende as instituies de ensino mantidas pela Unio, as instituies de educao superior, criadas e mantidas pela iniciativa privada e os rgos federais de educao. Art. 2 do Decreto N 5.773 de 09 de maio de 2006. Disponvel em: . Acesso em: 18 set.2013. 12
Ajuizada na Corte em 2009 pelo Partido Democratas (DEM), tendo como advogada Roberta Fragoso, orientanda do Ministro Gilmar Mendes, alegando que a poltica de cotas da UNB feria vrios preceitos fundamentais, entre eles o direito universal educao. Importante destacar que o Ministro Gilmar Mendes, mesmo fazendo ressalvas ao sistema adotado pela UNB, se posicionou favorvel s aes afirmativas, desde que estas partam do recorte social.
31
ministro Ricardo Lewandowski, em resposta questo colocada quanto
constitucionalidade dos programas de ao afirmativa que estabelecem um sistema
de reserva de vagas para acesso ao ensino superior com base em critrio tnico-
racial, levando-se em conta o programa de ao afirmativa institudo pela
Universidade de Braslia e outras universidades que tambm adotaram um sistema
dessa natureza.
No terceiro captulo, A poltica de ao afirmativa da Universidade Federal da
Paraba, passamos a discutir o sistema de cotas implementado no mbito da UFPB.
O objetivo desse captulo foi investigar a poltica aplicada na universidade e
conhecer os programas e os projetos adotados para oportunizar melhores condies
de permanncia aos alunos cotistas. Para tanto, utilizamos as informaes
presentes no sitio oficial da instituio, como tambm documentos que oficializam o
sistema adotado.
O roteiro que nos guiou neste captulo, resultou em trs sees. No primeiro,
intitulado O Programa de Aes Afirmativas, tivemos como objetivo iniciar o debate
sobre o embasamento para a adoo do modelo de reserva de vagas adotado e o
caminho percorrido at a sua efetivao, discorrendo sobre a institucionalizao da
poltica de cotas na UFPB. Utilizamos como fontes documentais o Programa de
Aes Afirmativas, elaborado em 2007; a proposta de 2009 - a Recomendao do
Ministrio Pblico Federal da Paraba encaminhada ao Reitor da UFPB, chamando a
ateno para a urgncia em adotar estratgias que assegurassem o acesso a
candidatos oriundos de escolas pblicas, bem como para afrodescendentes e
indgenas; o Parecer da relatora Maria Creusa de Arajo Borges, com relao
aprovao da Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas para acesso aos
cursos da UFPB; e o Dossi elaborado pelo NEABI/UFPB e encaminhado Pr-
Reitoria de Graduao em 2013, no qual consta um relatrio de todas as aes
desenvolvidas pelos Movimentos Negros da Paraba.
Na segunda seo do mesmo captulo, A Resoluo N 09/2010 e a
instituio da Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas (MIRV) para acesso
aos cursos de graduao, retomamos o Programa de Aes Afirmativas da UFPB
com a finalidade de descrever as possibilidades e lacunas existentes na poltica
aprovada, fazendo um comparativo com todos os documentos analisados no
primeiro tpico e que serviram de norte para a elaborao da proposta final,
tentando identificar quais foram as metas e aes planejadas para subsidiar a
32
execuo da proposta. Apresentamos, tambm, as adaptaes ocorridas para
atender implementao da Lei 12.711/2012, que oficializou a poltica de cotas em
nvel nacional.
Na terceira seo, A poltica de permanncia dos cotistas desenvolvida na
instituio, o intuito foi fazer um balano dos programas de assistncia estudantil
existentes na UFPB que podem contribuir para a permanncia dos cotistas, alm de
uma breve exposio comentada dos dados informativos sobre os trs primeiros
anos de vigncia da poltica implementada. Para tanto, recorremos s informaes
contidas na pgina da Pr-Reitoria de Graduao (PRG) e da Pr-Reitoria de
Assistncia e Promoo ao Estudante (PRAPE) e em dados disponibilizados pela
Superintendncia de Tecnologia da Informao (STI) da UFPB.
O quarto captulo, O impacto da poltica de cotas tem por finalidade
apresentar os primeiros dados sobre o nmero de ingressantes nos trs primeiros
anos de execuo da poltica, 2011 a 2013, fazendo uma breve exposio
comentada. Na primeira seo, O ingresso na Universidade e as cotas, partimos
inicialmente do ano de 2010, no qual no havia ainda o sistema de reserva de vagas
para o ingresso na instituio, com o objetivo de verificar a evoluo da insero
quantitativa dos estudantes cotistas da UFPB e se est havendo equidade no
acesso a todos os cursos. Na seo dois O papel da Educao em e para os
Direitos Humanos na educao superior, apresentamos o escopo analtico, em que
so apresentadas as analises a partir da interface entre educao, direitos humanos
e polticas afirmativas. Nosso olhar voltou-se para as Propostas Curriculares
Nacionais dos cursos de Direito, Engenharia Civil, Medicina e Pedagogia,
dialogando com as Diretrizes Nacionais para a Educao em Direitos Humanos, a
fim de averiguarmos se estas propostas direcionam as estratgias que precisam ser
adotadas pelas universidades para que os currculos de seus cursos de graduao
possibilitem aes concretas, no sentido de desenvolver a educao em/para os
Direitos Humanos que contribuam para o conhecimento e o reconhecimento das
questes tnico-raciais.
Na terceira e ltima seo do quarto captulo, As Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educao em Direitos Humanos e o currculo dos Cursos de
Graduao da UFPB, verificamos se as Propostas Curriculares da UFPB para os
cursos aqui elencados atendem proposta nacional e se houve alguma alterao
significativa que observe os preceitos do Plano Nacional de Educao em Direitos
33
humanos e da Resoluo N 1, de 30 de maio de 2012, que estabelece as Diretrizes
Nacionais para a Educao em Direitos Humanos.
Dissertar sobre os embates e as conquistas vivenciadas no universo da UFPB
sobre o programa de ao desenvolvido pela referida instituio, tomando como
referncia os cursos de Direito, Engenharia Civil, Medicina e Pedagogia do Campus
I, foi o nosso grande desafio. Os cursos foram escolhidos porque apresentam
tambm caractersticas que os distinguem dos demais. O primeiro, pelo fato de ser
um curso que, em tese, deveria estar mais aberto s questes filosficas que
fundamentam as polticas de aes afirmativas, mas que, ao contrrio, demonstra
um forte racismo arraigado ao dispositivo de que todos so iguais perante a lei e
ao tradicional discurso de que independente da cor ou da classe social, todos tm
condio de passar no vestibular.
Enquanto isso, os cursos de Engenharia Civil, Medicina e Pedagogia nos
permitiu traar um panorama da acepo quanto poltica de ao afirmativa
desenvolvida pela universidade, nas trs grandes reas do conhecimento. Alm
disso, o curso de Pedagogia o que oferece o maior nmero de vagas para alunos
cotistas, desde 2011 - ano em que ocorreu o primeiro vestibular com critrios de
reserva de vagas, at 2013.
Desta maneira, esperamos contribuir para suscitar novos olhares e
possibilidades de convivncia e o respeito diversidade, ao analisar a instituio da
poltica de aes afirmativas adotada, mirando o olhar para as condies de acesso
e permanncia do pblico-alvo. Objetivamos, assim, incentivar o dilogo e fomentar
a participao desse grupo como protagonista de suas conquistas e que
proporcione, concomitantemente, a execuo da poltica e possibilidades de
universalizao do ensino superior. Isso porque esses nossos tempos esto
requerendo pessoas formadas na sensibilidade para o Outro, diverso do Eu/Ns, e
para resolues dialgicas mediante as quais no ignorar os conflitos, mas atac-los
de frente, sob novas formas (SILVEIRA, 2010, p.180). Como defende a autora,
preciso assegurar vez e voz s pessoas que tiveram seus direitos historicamente
interditados.
Portanto, ao trazer tona todo esse debate, contra e a favor, porque
tambm acreditamos que
34
Se o eixo central, tanto das lutas sociais dos movimentos negros como dos debates polticos e intelectuais engajados, a mudana da sociedade brasileira visando a incluso e a participao qualitativa e quantitativa do negro, essa mudana no se constri no vazio. Ela deve partir da situao concreta do negro, enfocando positivamente sua participao poltica e econmica nos diversos momentos da histria do Brasil e apontando suas contribuies no complexo cultural (artes plsticas, cincias, msicas, literaturas, religio, etc...). Apontar e valorizar a participao passada e presente, as contribuies anteriores e recentes, um dos melhores caminhos para destruir as imagens negativas que bloqueiam o processo de construo de uma autoestima justa e para questionar e desconstruir os mitos sobre a incapacidade inata do negro que, dizem os racistas, no teria trazido nada de bom para a histria do Brasil e da Humanidade. (MUNANGA, 2004, p. 8)
Por fim, a nossa inteno contribuir para que possamos lanar o nosso
olhar para a crise que vivemos e para a emergncia de novos desenhos formativos
no campo dos Direitos Humanos, a partir da interseco entre educao e as aes
afirmativas para acesso ao Ensino Superior, numa perspectiva intercultural que nos
faa refletir e buscar solues viveis para lidar com o preconceito e a discriminao
que continua atuando no interior das instituies.
35
2 BRASIL RUMO A UMA UNIVERSIDADE PLURAL: AS AES AFIRMATIVAS
Focamos, neste captulo, os caminhos para a construo da poltica de ao
afirmativa no Brasil, descrevendo e analisando o seu percurso. A proposta dessa
parte do trabalho est apoiada no princpio de que a ao afirmativa (cotas) se
constitui em um mecanismo para a promoo da equidade e da interao social, tal
como defendida por Flvia Piovesan (2005) e complementada pelo que prope John
Rawls em sua obra Liberalismo Poltico (2011), ao enfocar a necessidade de justia
como equidade.
Nesse sentido, fizemos uma retrospectiva dos principais marcos legais que
assinalam que as aes afirmativas se constitui em um mecanismo adotado para
promover justia social. Recorremos ainda tese de Fraser (2006), que nos alerta
que a justia social requer, de um lado, a redistribuio e o reconhecimento, e do
outro, a afirmao e a transformao, por conta das injustias sofridas, seja de
ordem socioeconmica resultantes da explorao, seja de ordem cultural, decorrente
do no reconhecimento de determinados grupos sociais.
A redistribuio a que aqui nos referimos, a da educao, que tem como
moeda o capital cultural, entendido e reproduzido como um dom, e no como uma
herana familiar, advinda dos fatos que compem a sua cultura, como por exemplo,
o conhecimento da lngua culta para um melhor entendimento dos contedos
ensinados na escola, como define Bourdieu (2013, p. 99). Na republicao da obra
A Reproduo: elementos para uma teoria do sistema de ensino, ele defende que a
redistribuio desse bem cultural em nossa sociedade foi sempre pautada no mrito
individual que, no caso brasileiro, foi tambm pautada pelo mrito famliar, isto , o
pertencimento dos indivduos a famlia com poder e riqueza. Alm disso, apregoa
Bourdieu que os contedos ensinados a partir de uma cultura dominante
reproduzem e reforam a excluso dos grupos dominados em um processo de
aculturao, pelo fato de no ser valorizada nem muito menos ensinada a sua
histria cultural. No Brasil, isso fica comprovado pela forma como se d a seleo
dos alunos para o acesso ao ensino superior, na escolha dos contedos e na forma
como estes so repassados pela escola, alm do fato de que a nfase dada
meritocracia tambm vale para os alunos cotistas.
Para conhecermos algumas experincias adotadas em nosso pas, tomamos
como referncia o modelo do sistema de cotas adotado por trs universidades
36
federais, a UnB. A UFAL e a UFBA, bem como as iniciativas adotadas por duas
universidades estaduais, a UERJ e a UNEB. O objetivo apresentar um panorama
com as primeiras iniciativas dessa natureza. Enfocamos tambm o papel do Estado,
a partir da implantao de rgos e a elaborao de programas, polticas e aes
que visam garantir a efetivao do acesso e a permanncia dos cotistas.
2.1 O SISTEMA DE COTAS NO BRASIL
Sabemos que as discusses e as reivindicaes com o objetivo de favorecer
a integrao de determinado segmento da populao no so recentes em nosso
pas. Elas se fizeram presentes nos sculo XIX e XX e foram intensificadas no
sculo XXI com a atuao de vrios grupos ligados a diversos movimentos sociais.
Em 1948, e depois de duas grandes guerras mundiais, os lderes polticos dos
pases vencedores fundaram a Organizao das Naes Unidas (ONU) e
mobilizaram a sociedade, fortalecendo a atuao desses grupos para a elaborao
de documentos internacionais que garantissem a igualdade de acesso aos seus
direitos. No entanto, vrios embates foram necessrios para vencer o regime
ditatorial, em uma caminhada difcil, atravessando um estreito caminho de uma
transio poltica rumo a um regime mais democrtico.
De acordo com Gomes (2005), a adoo de aes afirmativas como uma
poltica social teve seu incio nos Estados Unidos, concebidas inicialmente como
mecanismo para solucionar o problema da marginalizao social e econmica do
negro, e, posteriormente, estendidas s mulheres, a outras minorias tnicas raciais,
aos ndios e a pessoas com deficincia.
No Brasil, o movimento pela adoo de aes afirmativas intensifica-se na
dcada de noventa com a atuao do Movimento Negro, que reivindicava aes
concretas para a superao das desigualdades presentes na sociedade e que aos
poucos se tornaram reconhecidas como um conjunto de polticas pblicas que
devem ser dotadas pelo Estado no intuito de sanar as desigualdades histricas e
sociais, que ainda persistem em nosso meio e que s podero ser rompidas com
aes focadas nos grupos sociais com histrico de excluso.
Um marco histrico para o Brasil nesse sentido foi a promulgao da
Conveno pela Luta Contra a Discriminao no Ensino, adotada pela Organizao
das Naes Unidas para a Educao, Cincia e a Cultura em 1960, atravs do
37
Decreto 63.223 de 6 de setembro de 1968, expressando que fosse executada
inteiramente o seu teor. Um dos princpios da referida Conveno tem o intuito de
coibir qualquer conduta de:
Distino, excluso, limitao ou preferncia que, por motivo de raa, cor, sexo, lngua, religio, opinio publica ou qualquer outra opinio, origem nacional ou social, condio econmica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matria de ensino, e, principalmente: a) Excluir uma pessoa ou um grupo de acesso aos diversos graus e tipos de ensino; b) Limitar a um nvel inferior a educao de uma pessoa ou de um grupo; c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Conveno, instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados para pessoas ou grupos; d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condies incompatveis com a dignidade do homem. 2. Aos efeitos da presente Conveno, a palavra "ensino" se refere em seus diversos tipos e graus, e compreende o acesso ao ensino, ao nvel e qualidade desta e as condies em que se d (Conveno pela Luta Contra a Discriminao no Ensino, art.1)13
Nesse sentido, e buscando tambm assegurar a igualdade material, em 1968
o Brasil ratificou a Conveno sobre a Eliminao de todas as Formas de
Discriminao Racial, aprovada pela ONU em 1965, assinalando em um de seus
considerandos que:
Todas as doutrinas de superioridade fundamentadas em diferenas raciais so cientificamente falsas, moralmente condenveis, socialmente injustas e perigosas, e que no existe justificativa, onde quer que seja, para a discriminao racial, nem na teoria e tampouco na prtica.
Entendendo que o caminho percorrido na busca por uma cultura dos direitos
humanos est registrado em vrios pactos e tratados, o Brasil d mais um passo
nessa direo ao assumir, em 1972, na forma de decreto14, o compromisso de
executar e cumprir o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e
Culturais aprovado pela Assembleia Geral das Naes Unidas, em dezembro de
13
Disponvel em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132598por.pdf Acesso em 18 de jan. 2013 14
Decreto n 591, de 06 de julho de 1972. Disponvel em: . Acesso em: 19.set.2013.
38
1966. Com relao educao, o Pacto afirma, no pargrafo primeiro do artigo 13
que
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa educao. Concordam em que a educao dever visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educao dever capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreenso, a tolerncia e a amizade entre todas as naes e entre todos os grupos raciais, tnicos ou religiosos e promover as atividades das Naes Unidas em prol da manuteno da paz.
O pargrafo em destaque nos faz refletir sobre a necessidade de desconstruir
a cultura herdada do colonialismo e do regime escravocrata que prevaleceu no
Brasil por mais de trs sculos, e que, ainda hoje, continua arraigada em nossos
discursos e prticas. O contedo desse pargrafo rico em seu contexto, pois
ressalta que a educao dever fortalecer e capacitar as pessoas para o exerccio e
o respeito aos direitos humanos. Ele sugere o caminho tico a ser seguido para que
possamos encontrar o equilbrio entre culturas diversas, exercitando a tolerncia e o
respeito ao outro.
importante ressaltar tambm que, mesmo sob o regime militar, o povo
brasileiro corrobora com o pensamento de que as diferenas entre os homens no
so motivos para prticas de injustias uns com os outros. Esse consenso expresso
pela ratificao de pactos, tratados e convenes impulsionou cada vez mais as
reinvindicaes de direitos por vrios grupos fortalecendo a resistncia em aceitar
uma cultura dominante. Na histria brasileira, os negros foram os que mais lutaram
contra essa cultura dominante. Segundo Moura (2004), vrias foram as formas de
resistncia: as Irmandades religiosas, Candombls, Levantes, atravs da imprensa,
do teatro e da formao de Quilombos, sendo este ltimo, do ponto de vista de
organizao e de continuidade histrica, a maior expresso de resistncia
escravido. O referido autor ressalta que essa tendncia do negro se organizar no
surge por acaso:
39
Na rea profissional, na empresa, na escola, no mbito social mais abrangente, o negro sofre um processo de peneiramento e discriminao to intenso e constante que se no tivesse se organizado estaria fadado a destruio biolgica. Essa continuidade organizacional, a que vem dos quilombos e passa pelas favelas e alagados atuais - cria patamares amortecedores sua destruio. Temos, assim, na sociedade brasileira vrios tipos de organizaes especficas que o elemento negro criou para se autodefender da sociedade discriminatria. Essas organizaes percorrem toda a extenso do perodo escravista, continuam aps a escravido e persistem at hoje (MOURA, 2004, p. 44).
Como exemplo concreto da articulao dessas organizaes, podemos citar
o Movimento Negro Unificado (MNU) que surge em 1978. Criado a partir de um ato
pblico, contou com a participao de Clvis Mora e Abdias Nascimento dentre os
organizadores do evento, que tinha como objetivos a instituio de cotas,
reparaes e a legalizao das terras dos quilombos. Neste estudo, nosso olhar
estar focado no primeiro objetivo.
Como exemplo da resistncia e da participao poltica do negro no campo da
educao, no ano de 1983, o ativista negro Abdias Nascimento, ento Deputado
Federal, apresentou no Parlamento o projeto de Lei n 1.332/198315 - primeira
proposta de ao afirmativa que propunha algumas demandas consideradas
urgentes para o Movimento Negro, entre elas, um percentual de 20% de cotas para
negros nos servios pblicos, alm da oferta de 40% de bolsas de estudos para
estudantes negros em todos os nveis de ensino e a afirmao histrica da
populao negra. Isso foi feito atravs da incorporao de uma imagem positiva do
povo africano, prevendo no art. 8 do referido projeto de lei a incluso da histria da
frica nos currculos escolares em todos os nveis de ensino, de forma que o
Ministrio da Educao e as Secretarias de Educao Estaduais e Municipais, em
conjunto com entidades negras e intelectuais, passaram a estudar e programar
modificaes curriculares, no sentido de:
Art. 8 I - Incorporar ao contedo dos cursos de Histria Brasileira o ensino das contribuies positivas dos africanos e seus descendent