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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS LORENA LÁISSE SILVA AVELAR A CONGADA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL NA CIDADE DE GOIANDIRA: um estudo sobre o Terno dos Carreiros Catalão 2014

universidade federal de goiás departamento de história e ciências

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁSDEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

LORENA LÁISSE SILVA AVELAR

A CONGADA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL NA CIDADE DE GOIANDIRA:

um estudo sobre o Terno dos Carreiros

Catalão2014

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LORENA LÁISSE SILVA AVELAR

A CONGADA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL NA CIDADE DE GOIANDIRA:

um estudo sobre o Terno dos Carreiros

Monografia apresentada como requisito parcial

para a obtenção dos graus de Bacharel e

Licenciado em Ciências Sociais, na

Universidade Federal de Goiás, Departamento

de História e Ciências Sociais, Regional

Catalão.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Alves.

Catalão2014

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LORENA LÁISSE SILVA AVELAR

A CONGADA COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL NA CIDADE DE GOIANDIRA:

um estudo sobre o Terno dos Carreiros

Esta monografia foi julgada adequada para obtenção dos graus de Bacharel e Licenciado em

Ciências Sociais, Regional Catalão.

Área de Concentração / Linha de Pesquisa: 7.03.03.00 – 2 – antropologia urbana.

Catalão, 30 de junho de 2014.

Prof. Dr. Daniel AlvesUniversidade Federal de Goiás

Orientador

Prof. Dr. Ismar da Silva CostaUniversidade Federal de Goiás

Membro da Banca Examinadora

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporteideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade Federal de Goiás –Regional Catalão, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidadeacerca do mesmo.

Catalão, 30 de junho de 2014.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e aos meus irmãos, pelo amor, pela sabedoria, pela paciência, pelo incentivo,pela compreensão e ajuda em todos os momentos da minha vida.

A todos os meus familiares pelo apoio e solidariedade

A Deus, por me dar força e sabedoria todo dia para tomar as melhores decisões para minhavida.

Aos professores do Departamento de História e Ciências Sociais da Regional Catalão daUniversidade Federal de Goiás por transformarem minha vida.

Ao professor Daniel Alves pela atenção e pelo tempo dedicados para a realização destetrabalho.

A Állison Pinto Batista pelo amor, pela paciência, pela compreensão, pela sabedoria e pelaajuda que me concedeu nos momentos mais difíceis.

Aos meus amigos de infância e os atuais pela amizade, compreensão e pelo apoio.

Aos meus colegas de curso: Bruna Ferreira, Deuza Aparecida, Diego Pereira, Flávia Almeida,Janine Machado, Luzia Inácio, Raquel Rosa, Zilma Carla, que me incentivaram e meajudaram nas horas difíceis durante o curso.

Ao senhor Antônio Pereira Neto pela ajuda prestada e pela abertura para a realização destetrabalho.

Aos integrantes do Terno Carreiro, pela colaboração e pela disponibilidade para ajudar narealização deste trabalho.

A todos os entrevistados, pela ajuda na realização deste trabalho.

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RESUMO

AVELAR, Lorena L. S.. A Congada como manifestação cultural na cidade de Goiandira:um estudo sobre o Terno dos Carreiros. 2014. 74 f.. Monografia (Graduação) – Departamentode História e Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, Catalão, 2014.

O presente trabalho diz respeito à cidade de Goiandira, no interior do Estado de Goiás, e,especificamente, conduz um estudo a respeito de um dos Ternos de Congo mais antigos dacidade, o Terno dos Carreiros. A ideia é analisar a trajetória traçada desde a fundação desteTerno ao longo do tempo por meio da descrição da história da cidade desde seu surgimento,tanto sob o ponto de vista dos estudiosos a respeito da Congada e de visões culturais, quantopor parte de moradores da cidade e de integrantes do Terno dos Carreiros. Este trabalho trata,também, da história da tradicional Festa em Louvor a Nossa Senhora do Rosário, SãoBenedito e Santa Efigênia, isto é, de toda a trajetória da festa desde que a mesma foiinicialmente organizada e criada até o presente, bem como a trajetória da Congada deGoiandira desde seus primórdios até o presente, trazendo consigo uma visão cultural presentefirmemente na cidade até os dias atuais.

Palavras-chave: Goiandira, Congada, festa do Rosário, Terno dos Carreiros, cultura,manifestação cultural.

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ABSTRACT

AVELAR, Lorena L. S.. Congada as cultural expression at the city of Goiandira: a studyconcerning Terno dos Carreiros. 2014. 74 f.. Monografia (Graduação) – Departamento deHistória e Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás, Catalão, 2014.

The study presented here concerns the city of Goiandira, in the state of Goiás, and,specifically, works about one of the most ancient of the Ternos of Congo in the city, Terno dosCarreiros. The idea, conducted by the study, is to walk through the paths outlined since itsfoundation throughout the time, by descripting the city’s history, analyzing some scholars’views and concernings about the Congada, but not limited to their opinions, and theperspective brought by the citizens and members of the Terno dos Carreiros. These papersconcern the Festa em Louvor a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, allabout how this festivity came and remained nowadays, and how the Congada kept upthroughout the time, bringing within them a cultural view still strongly present nowadays.

Keywords: Goiandira, Congada, festa do Rosário, Terno dos Carreiros, culture, culturalexpression.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Recorte da localização geográfica do Município de Goiandira.............................23

Figura 2. Recorte do mapa de Goiandira: localização da igreja Matriz de Goiandira...........27

Figura 3. Recorte do mapa de Goiandira: localização da igreja Católica Brasileira de

Goiandira................................................................................................................31

Figura 4. Recorte do mapa de Goiandira: localização da Capela Nossa Senhora de Fátima.

................................................................................................................................32

Figura 5. Vista frontal da Capela Nossa Senhora de Fátima.................................................35

Figura 6. Esquema com a estrutura mínima dos Ternos de Congo para o percurso do cortejo

na cidade.................................................................................................................41

Figura 7. Primeiro Capitão, Segundo Capitão e Sargento do Terno dos Carreiros, da

esquerda para a direita............................................................................................43

Figura 8. Esquema com a estrutura mínima de formação do Terno dos Carreiros................44

Figura 9. A farda do Terno dos Carreiros..............................................................................45

Figura 10. Esquema com linha de tempo dos Capitães do Terno dos Carreiros......................46

Figura 11. Esquema com linha de tempo das Rainhas da Coroa.............................................49

Figura 12. Foto da Família Ribeiro, em 1973..........................................................................52

Figura 13. Esquema genealógico dos membros ocupantes dos cargos de Capitão e de Rainha

da Coroa.................................................................................................................53

Figura 14. Foto na Alvorada, em frente a Barraca da festa.....................................................54

Figura 15. O Terno dos Carreiros em caminhada próximo a igreja Matriz de Goiandira.......55

Figura 16. Recorte do Mapa de Goiandira: Descrição resumida do trajeto percorrido em

função do Mastro e da Bandeira.............................................................................58

Figura 17. Rainha da Coroa e os Guardas coroa. Atrás estão o Rei e a Rainha do Congado..60

Figura 18. Recorte do Mapa de Goiandira: Descrição resumida do trajeto percorrido em

função da Coroa e Rainha da Coroa.......................................................................61

Figura 19. O Rei e a Rainha da Congada................................................................................63

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

CAPÍTULO 1: PESQUISAR A CONGADA COMO UM PROCESSO CULTURAL.....14

1.1 Cultura............................................................................................................................15

1.2 Congadas........................................................................................................................17

1.3 Congadas no País............................................................................................................20

1.4 Congadas em Goiás........................................................................................................21

CAPÍTULO 2: A CIDADE DE GOIANDIRA E SEU RELACIONAMENTO COM A

CONGADA..............................................................................................................................23

2.1 O surgimento de Goiandira............................................................................................23

2.2 Os efeitos de um fluxo migratório crescente..................................................................25

2.3 A igreja Católica Brasileira em Goiandira e a dimensão do conflito com a Congada. . .28

2.4 Uma nova capela para a Congada e a retratação da igreja Católica Romana................31

CAPÍTULO 3: O TERNO DOS CARREIROS E SUA INTEGRAÇÃO COM A FESTA

DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO................................................................................37

3.1 Os Carreiros e o surgimento da Congada.......................................................................37

3.2 Os primórdios da Festa de Nossa Senhora do Rosário...................................................39

3.3 O cortejo real dedicado a Nossa Senhora.......................................................................40

3.4 Organização interna do Terno dos Carreiros..................................................................42

3.5 A Coroa do Rosário e as Rainhas da Coroa....................................................................47

3.6 Um ato de fé do Exército de Nossa Senhora do Rosário................................................50

3.7 O cantarolar e o caminhar na festa.................................................................................54

3.8 A organização e os momentos sociais e religiosos durante a Festa de Nossa Senhora do

Rosário..................................................................................................................................65

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................68

REFERÊNCIAS......................................................................................................................70

ANEXO A – MÚSICAS CANTADAS PELOS INTEGRANTES DO TERNO DOS

CARREIROS DURANTE A CAMINHADA NA CIDADE.................................................72

ANEXO B – LISTA DOS DANÇADORES DO TERNO DOS CARREIROS..................74

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por norte o estudo da Congada na cidade de Goiandira, no

interior do Estado de Goiás, enquanto manifestação cultural originada e tradicional na cidade,

realizada pelo povo. Este estudo diz respeito à Festa de Nossa Senhora do Rosário, São

Benedito e Santa Efigênia e, mais precisamente, sobre o Terno considerado o mais antigo da

cidade, o Terno Carreiro, ou Terno dos Carreiros.

A cidade de Goiandira já perpassa seus 83 anos de existência enquanto Município do

Estado de Goiás. Diante deste fato, era de se esperar que a Congada se estabelecesse em um

período menor do que a existência do Município, o que não ocorre. A Congada surge antes

mesmo da atual cidade de Goiandira compor um Distrito do Município de Catalão, com os

Ternos mais antigos surgindo ao final da década de 1900.

Dentre os Ternos surgidos à época, encontram-se os Ternos Carreiro, Juliano e

Marinheiro, sendo que, destes, apenas o Terno Carreiro encontra-se íntegro até o presente,

trazendo consigo uma tradição oriunda do Estado de Minas Gerais. Os demais passaram ou

pelo processo de reformulação ou foram extintos por outros motivos.

A propósito, há algumas peculiaridades em relação aos Ternos de Congo em

Goiandira. O Terno dos Carreiros se diferencia substancialmente dos demais pela antiguidade,

por seus integrantes serem, em sua maioria, pessoas de mais idade, e, sobretudo, por ser um

Terno constituído em família. Eles participam anualmente da Festa em Louvor a Nossa

Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, referida ao longo do presente trabalho

como Festa de Nossa Senhora do Rosário, com devoção e vigor consideráveis.

Não obstante, parte considerável dos membros do Terno dos Carreiros atualmente não

residem na cidade de Goiandira, e vêm, anualmente, à cidade para celebrar e festejar Nossa

Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Isto não ocorre tão somente por uma

obrigação, mas como ato real de fé e devoção nos santos diante das dificuldades vividas.

Tendo em vista a situação apresentada, podemos realizar a análise partindo dos

seguintes pressupostos:

a) O Terno dos Carreiros tem relevância para a construção da cultura da cidade de

Goiandira.

b) Os moradores da cidade consideram a Congada parte de sua cultura enquanto

cultura afrodescendente.

c) Existe um motivo para que os membros do Terno dos Carreiros que residem em

outras cidades venham anualmente à cidade de Goiandira e participem da Festa de Nossa

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Senhora do Rosário.

A consolidação da Congada em Goiandira, por sua vez, passou por momentos

marcantes, que, inclusive, geraram conflitos e divisões por parte da população, ora a favor da

conduta tomada pela Congada, ora contrária a ela.

Outro norte para a realização desta pesquisa é o fato de a Festa de Nossa Senhora do

Rosário ser uma das festas mais importantes na cidade de Goiandira e, também, esperada

pelos moradores da cidade e das cidades vizinhas, fato este que a torna uma festa importante e

tradicional na região, na qual as pessoas, e, em especial, aquelas ligadas à Congada, podem

manifestar sua devoção e seus agradecimentos.

Com estas considerações, trabalhamos sob as proporções delimitadas pelos seguintes

aspectos: tradição, cultura afrodescendente, distinção entre grupos ou setores na cidade, e

distinção entre visões de cultura por grupos da cidade.

O presente trabalho requereu a participação em todas as etapas preparatórias para a

realização da festa, e durante a participação nela, realizando, com isso, uma observação

etnográfica de cunho participante, bem como levantamento de informações obtidas a partir

das memórias dos integrantes do Terno dos Carreiros e de outros moradores da cidade de

Goiandira, por meio de conversas e fotografias. Não obstante, foi necessário realizar

levantamento de documentos que pudessem esclarecer melhor os contextos em que as

memórias das pessoas situam os acontecimentos, situação um pouco delicada devido à

ausência de fontes escritas sobre as épocas relatadas pelas pessoas.

Os levantamentos bibliográfico e documental, nas visões de Lakatos e Marconi (1993)

e Gil (1999), consiste em levantar dados publicados ou registrados a respeito de um dado

assunto, por meio de material científico, no caso bibliográfico, ou de documentos emitidos

por instituições ou indivíduos, no caso documental. Tais levantamentos têm por finalidade

prover ao pesquisador o contato com todo o material escrito disponível a respeito de

determinado assunto.

A observação participante, na visão de Lakatos e Marconi (1993) e May (2004),

consiste no processo em que o pesquisador necessita estabelecer um relacionamento de longo

prazo com um conjunto de pessoas, vivendo um contexto, um conjunto de situações, próprio

delas com a finalidade de compreender e desenvolver uma compreensão científica a respeito

deste conjunto de pessoas. Destarte, o conhecimento daí obtido não pode ser analisado por

meio de valores numéricos, patamares numéricos, pois o contexto e o foco são os

acontecimentos, os processos, e o significado que as atitudes têm para as pessoas.

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Na visão de Silva e Menezes (2005), a pesquisa qualitativa é essencialmente

descritiva, de forma que os pesquisadores procuram analisar seus dados indutivamente,

tomando por focos principais de abordagem o processo e seu significado. Este tipo de

pesquisa considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um

vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser

traduzido em números. O método de pesquisa faz do pesquisador o principal instrumento para

a obtenção dos dados, e o ambiente natural é tomado como fonte direta para a coleta de dados.

A interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicas no processo de

pesquisa qualitativa.

Tomando por base o já exposto acerca do contexto e das técnicas a serem utilizadas, o

principal ponto a ser avaliado por meio do presente trabalho é uma resposta à seguinte

pergunta: como se reproduz social e simbolicamente um Terno de Congo em uma cidade do

interior Goiano?

Esta pergunta será respondida ao decorrer do trabalho, por meio do uso do raciocínio

lógico de caráter indutivo partindo das informações coletadas durante o processo de pesquisa,

atentando para a clareza nos contextos e a riqueza dos detalhes observados.

Sob o olhar de Lakatos e Marconi (1993) e Gil (1999), o método científico indutivo

consiste em um conjunto de processos físicos e de operações mentais empregados em uma

investigação científica, de modo a construir a linha de raciocínio adotada para a condução da

pesquisa. Esta linha parte da análise de premissas assumidas a respeito de situações

particulares, de modo a caracterizar a confirmação de dado fato em um contexto geral, ao qual

as situações particulares estudadas fazem ligação.

Por fim, apresentamos brevemente o que estaremos a discutir no presente trabalho. Ao

falarmos em Pesquisar a Congada como um processo cultural, discutiremos sob que noções

estamos falando sobre Congada, o que é a Congada e como ela se manifesta em diferentes

localizações do País, até alcançar uma visão geral e sintética a respeito da Congada em

Goiandira.

Em seguida, ao falarmos em A cidade de Goiandira e seu relacionamento com a

Congada, alinhamos o foco ao pano de fundo histórico a respeito da Congada e da cidade de

Goiandira, bem como os desenlaces da convivência da Congada na cidade, a instalação e a

realização da Festa de Nossa Senhora do Rosário, o conflito gerado entre a igreja Católica

Romana e os Ternos de Congo, e a instalação da igreja Católica Brasileira em Goiandira.

Por fim, ao falarmos em O Terno dos Carreiros e sua integração com a Festa de

Nossa Senhora do Rosário, alinhamos o foco no Terno dos Carreiros e na realização da Festa

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de Nossa do Rosário em si: estudamos a história dos Carreiros e da festa em paralelo à

história levantada anteriormente sobre as relações existentes na cidade de Goiandira.

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CAPÍTULO 1: PESQUISAR A CONGADA COMO UM PROCESSO CULTURAL

Observar a realização de um evento é uma oportunidade para revermos como nós

lidamos com os acontecimentos proporcionados por ele. Isto é, avaliar se somos espectadores

ou se o evento desperta uma curiosidade maior no intuito de conhecer todo o processo para

seu acontecimento, ou, mais ainda, no intuito de conhecer as pessoas que trabalham para

realizar um evento como a realização da própria vida.

A cidade de Goiandira, apesar de não ser muito considerada em uma abrangência

maior, traz consigo uma riqueza de caráter tradicional que não pode ser ignorada. A Congada

de Goiandira é organizada junto a uma das festas de maior movimento na igreja Católica

anualmente na cidade, a Festa de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia.

Esta festa inicia-se na segunda sexta-feira do mês de setembro e faz parte dos calendários da

igreja Católica Romana e do Município de Goiandira.

Apesar de muitos ligarem a festa à Congada com o foco na apresentação dos Ternos de

Congo em desfile na cidade, a Congada é mais além do que mera apresentação. Ela é uma

mostra de fé, e ainda hoje não é bem considerada por alguns moradores da cidade, que não

acreditam ser da fé a expressão da Congada.

As portas de entrada para a realização desta pesquisa, em particular, foram

proporcionadas pela boa receptividade do General da Congada da cidade, aliás, de uma das

Congadas da cidade, o senhor Antônio Pereira Neto. Através dele, pude conhecer e conviver

com alguns dos membros do Terno dos Carreiros, de modo que fui apresentada inicialmente à

senhora Tereza Ribeiro, uma das integrantes do Terno.

Através dela, pude conhecer a memória trazida pelos integrantes do Terno, como foi

todo o andamento da Congada ao longo dos anos, e, partindo daí, reconstruir, no que é

possível, toda a história não apenas do Terno dos Carreiros como também da Festa de Nossa

Senhora do Rosário, como se deu seu início e como seus organizadores e devotos de Nossa

Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia conduziram adiante a festa e que olhar

têm sobre ela.

Pesquisando não somente nas memórias vivas de Tereza e de Onofre Ribeiro, mas

também nas memórias de outros moradores da cidade e, quando possível, em documentos que

relatam o contexto vivido à época, é notável a expressão que a Congada causa em caráter

social na cidade, ao ponto de um conflito religioso tomar proporções muito grandes quanto à

divisão das pessoas em relação à situação ocorrida. Com efeito, houve quem foi a favor do

posicionamento da Congada e houve quem foi contrário, e estes alegam uma indisciplina que

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é, de certo cunho, duvidosa.

Não obstante, a pesquisa envolve registrar estes dados e fatos também por meio de

recursos fonográficos – em que as gravações de alguns dos relatos que as pessoas podem

informar têm papel importante no desenlace do estudo – e por meio de recursos de imagem,

através de câmera fotográfica e por meio de filmagens dos acontecimentos da festa e dos

integrantes do Terno dos Carreiros.

Por fim, são apresentados esquemas, recortes de mapas e fotografias, dizendo respeito

à organização e à realização da Festa de Nossa Senhora do Rosário, bem como ilustrar como

os fatos percorrem o tempo e que marcas deixam nas pessoas.

1.1 Cultura

Realizar uma análise de cunho cultural envolve observar situações, ou conjuntos de

situações, como uma expressão própria dos indivíduos que dela participam ao longo de um

período considerável em suas vidas. Se analisarmos nossas situações cotidianas, percebemos

que muitos dos costumes que hoje temos são fruto de uma convivência contínua entre

integrantes de um mesmo espaço físico e, consequentemente, social. Podemos observar, como

ponto de partida, nosso comportamento em nossas casas, com nossos familiares, e progredir

na extensão da análise, em meio a nossos amigos, no ambiente escolar, no ambiente

universitário, no ambiente de trabalho, dentre outras situações.

Podemos, também, observar nossas reações diante das situações inesperadas presentes

em nosso cotidiano e avaliar sob que razões tomamos decisões ao longo de nossa vida.

Claramente, estas ações que desenvolvemos ao longo da vida são inicialmente instruídas por

nossos pais, depois pelos professores das escolas, pelos professores das universidades, pelos

superiores ou chefes no ambiente de trabalho e, por fim, constituem certo padrão de que

poucas situações se afastam.

Observemos, além disso, que por podermos tomar decisões, também não nos tornamos

obrigados a seguir integralmente os conselhos e as instruções que nos são apresentados

durante este período. De certa forma, a partir de certa etapa da vida, passamos a questionar as

razões pelas quais ora nos são propostas para a tomada de decisões, para a formação de nosso

pensamento individual, do qual obtemos conclusões distintas uns dos outros a respeito de um

mesmo assunto, do qual observamos comportamentos distintos em relação à mesma atitude.

Ginzburg (1987) expressa esta visão ao estudar um moleiro, na Idade Medieval, que

formava sua própria opinião de modo contrário à visão dominante à época, aquela pregada

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pela igreja Católica, a respeito do surgimento e do encerramento da vida. Tal moleiro, por

contradição direta com as ideias pregadas pela igreja, frequentemente expunha sua visão às

pessoas, e não tardou muito para que a Inquisição o considerasse um herege. Com efeito, a

própria profissão dele mostrava a possibilidade de um novo olhar sobre a origem e o término

da vida, afetando, por consequência, as relações que ele tinha com os demais contemporâneos.

Podemos ver no estudo de Ginzburg a noção de resistência à imposição de um modo

exclusivo de pensar, resistir à aceitação de algo inteiramente pronto e inquestionável. Diante

disto, por via contrária, construímos nossas próprias noções, nossas próprias interpretações, a

respeito do mundo que nos cerca e, de maneira mais incisiva, nosso olhar a respeito de cada

situação vivida ou observada.

Com isso, podemos tratar as visões apresentáveis a respeito de cultura sob a dualidade

“alta cultura”, ou “cultura patrícia”, e “cultura popular”. A cultura patrícia é, necessariamente,

baseada no estilo de vida, nas orientações, nos estudos, nas predileções, da classe dominante

de uma sociedade, que detém o poder sobre as massas e que, de certa forma, delas depende

para manter sua visão e sua dominação. A cultura popular, por sua vez, é nascida do cotidiano

e, principalmente, da tradição oral oriunda das massas, das pessoas que são esquecidas pela

classe dominante até o momento em que são necessárias para suas necessidades e imposições.

A cultura popular traz uma característica em seu estudo que diz respeito à existência

de registros. Na maioria, senão na totalidade, dos casos, o único registro disponível é aquele

que as pessoas carregam em sua memória, de sua vivência, e o transmitem aos seus

descendentes não apenas como mera forma de perpetuação de suas ideias, memórias,

devoções e crenças, mas com o comportamento que mostram e os rituais que realizam para

expressar sua gratidão em meio aos acontecimentos.

Em geral, esta maneira própria de se expressar normalmente não se vê ligada à forma

de expressão difundida por parte da classe dominante como “a que tem valor”. Pelo contrário,

trata-se mesmo de uma forma de expressão própria dos integrantes daquele meio social, que

são ignorados ou mesmo maltratados em termos da visão que têm.

Thompson (1998), por sua vez, expressa esta situação de outro modo. Ao estudar a

Inglaterra do século XVIII, a análise feita diz respeito ao modo de imposição exercido pela

classe dominante. A motivação gerada é a necessidade de modernização dos costumes e das

relações. Por outro lado, as camadas populares, ou como dito pelo autor, classe plebeia, viam

esta imposição como um meio de estreitar as relações diretas de dominação, de exploração, de

perda por parte do povo, em favor da classe alta, que projetava e exercia as leis.

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Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura tradicional queé, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste,em nome do costume, às racionalizações e inovações da economia […] que osgovernantes, os comerciantes ou empregadores querem impor. A inovação é maisevidente na camada superior da sociedade, mas como ela não é um processotecnológico/social neutro e sem normas […], mas sim a inovação do processocapitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma exploração, aexpropriação de direitos de uso costumeiros, ou a destruição violenta de padrõesvalorizados de trabalho e lazer. Por isso, a cultura popular é rebelde, mas o é emdefesa dos costumes. (THOMPSON, 1998, p. 19, grifo do autor)

Com efeito, o patamar analisado por meio da cultura popular tem seu significado

concreto e completo em vista dos indivíduos que a produzem e que dela fazem parte. Assim,

fazer mera observação e relatar os acontecimentos em nada altera a característica de registro

de informações antes transmitidas por oralidade, sem fundo crítico. Por outro lado, a proposta

adotada é a de observar no intuito de realçar a importância da sequência de acontecimentos a

ser descrita, de modo a valorizar a visão e a opinião das pessoas que fazem parte de um

mesmo meio, em contraste com a adaptação obrigatória aos preceitos dos “mais importantes”.

Geertz (2008) analisa o ser humano como um emaranhado de significados por ele

criados e aprimorados constantemente. Geertz mesmo conduz sua análise para o ponto de

vista da observação e da descrição. Para ele, a etnografia como proposta por vários autores

trata-se meramente de um registro de observação; não há uma visão mais profunda a respeito

da observação realizada, ao ponto de realmente ser possível construir uma opinião com as

informações obtidas. Ao propor a apresentação da descrição densa, Geertz propõe também a

releitura da observação realizada e da coleta de informações, no intuito de aprofundar o

estudo iniciado através dos dados levantados e trazer à vista a significação dada pelas pessoas.

A análise é, portanto, escolher entre as estruturas de significação [...] e determinarsua base social e sua importância. [...] O que o etnógrafo enfrenta, de fato [...] é umamultiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ouamarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares einexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depoisapresentar. (GEERTZ, 2008, p. 7)

1.2 Congadas

Os ritos e celebrações nos apresentam um rico espaço de estudo e de conhecimento a

respeito de uma determinada cultura. No caso da cultura afro-brasileira, a mesma representa

meios de resistência e de sobrevivência da cultura reprimida durante séculos pelas colônias

americanas.

Como dissemos, as Congadas são uma expressão própria das pessoas que delas

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participam, e podem ser estudadas como uma forma encontrada pelos negros de manterem e

consolidarem suas tradições culturais em meio à situação de opressão em que viviam ao longo

da História brasileira. Não obstante, “a Congada pode ser vista através de seu mito fundador

como ‘uma forma de reinterpretação criativa da história do negro’” (SILVA, 2010, p. 12)

Com efeito, na visão de Caponero (2009), a Congada é um evento que faz parte do

folclore brasileiro e se trata de uma procissão que reúne elementos das tradições tribais de

Angola e do Congo, e se organiza no interior das irmandades religiosas. Além destes fatores,

na visão de Martins (2002), a Congada também pode ser analisada em função de um mito

fundador que envolve a aparição de uma santa no período da escravidão. Tal santa rejeita a

atenção dada pelos brancos nos louvores e nas capelas por eles levantadas, mas aprecia e se

encanta com as adorações dos escravos e, por isto, é considerada protetora do povo negro.

Na época da escravidão uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar.Os escravos viram a santa nas águas, com uma coroa cujo brilho ofuscava o sol. Eleschamaram o dono da fazenda e lhe pediram que os deixasse retirar a senhora daságuas. O fazendeiro não permitiu, mas lhe ordenou que construíssem uma capelapara ela e a enfeitassem muito. Depois de construída a capela, o Sinhô reuniu seuspares brancos, retiraram a imagem do mar e a colocaram em um altar. No diaseguinte, a capela estava vazia e a santa boiava de novo nas águas. Após váriastentativas frustradas de manter a divindade na capela, o branco permitiu que osescravos tentassem resgatá-la. Os primeiros escravos que se dirigiram ao mar eramum grupo de Congo. Eles se enfeitaram de cores vistosas e, com suas dançasligeiras, tentaram cativar a santa. Ela achou seus cânticos e danças muito bonitos,ergueu-se das águas, mas não os acompanhou. Os escravos mais velhos, então,muito pobres, foram às matas, cortaram madeira, fizeram tambores com os troncos eos recobriram com folhas de inhame. Formaram um grupo de Candombes eentraram nas águas. Com seu ritmo sincopado, surdo, com sua dança telúrica ecânticos de timbres africanos cativaram a santa que se sentou em um de seustambores e os acompanhou até a capela, onde todos os negros cantaram e dançarampara celebrá-la. (MARTINS, 2002, p. 75)

Assim, a Igreja, as autoridades, e os senhores de engenho em geral, aceitavam ou

prestigiavam a solenidade, animada por danças, cantos e música. A procissão acabava numa

igreja, e, em geral, as de irmandades de negros, como a de Nossa Senhora do Rosário, onde,

com a presença de uma corte e seus vassalos, acontecia a cerimônia de coroação do Rei

Congo e da Rainha Ginga de Angola.

Através da desenvoltura dos rituais e apresentações, podem se vislumbrar processos de

criação que buscam cobrir o vazio e as rupturas dos sujeitos que os inventaram. As

manifestações e a preservação de uma cultura não se dão somente no âmbito da preservação

de relíquias antigas, mas de repetir comportamentos que retratam e incorporam uma história

vivida.

Destarte, a Congada é exercida com rituais de estilo africano, mostrando a devoção

aos santos, como Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia; o que dá à

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Congada o caráter de um sistema simbólico e ritual:

Assim podemos perceber que o Congado, em sua totalidade, consiste em um sistemaritual e simbólico bastante complexo, pois envolve ritos variados, danças, cânticos,toques de tambores, coroação de reis e outros ritos, que representam símboloscarregados de significados e valores para seus participantes. (BRETTAS; FROTA,2012, p. 10)

Assim, compartilhando da visão de Silva (1999), consideramos que a Congada não

revela apenas os traços de uma cultura negra, mas parte de uma cultura propriamente

brasileira, como visto anteriormente, de modo que as especificidades ocorrem conforme a

crença regional ou conforme a relação da Congada com a igreja Católica, o que faz o festejo

ocorrer ou conforme o calendário religioso ou conforme a data de abolição da escravatura.

Por conseguinte, a Congada é um folguedo tradicional da cultura afro-brasileira

difundido em várias regiões do Brasil, folguedo este relacionado aos festejos coloniais dos

“reis do Congo”, incorporando elementos da cultura europeia, e se tornou uma manifestação

cultural popular afro-brasileira de cunho religioso.

No período de colonização do Brasil, no século XVI, muitos navios negreiros

aportaram em território brasileiro, transportando uma quantidade considerável de negros

vindos principalmente de Angola e do Congo, para servirem como mão de obra à sociedade

escravocrata. Ao adentrarem a nova terra, as bagagens cultural, religiosa e artística que lhes

eram próprias, representando um pedaço de sua terra natal, se mesclaram com a cultura local,

com a influência provocada pelos colonizadores.

As Congadas, devido à sua natureza, reúnem elementos das tradições tribais de Angola

e do Congo, com influências ibéricas no que diz respeito à religiosidade, formando, em parte,

o chamado sincretismo religioso. Na realidade, hoje há alguns lugares em que a devoção

influenciada pelos ibéricos parece mais expressiva, em especial a Nossa Senhora do Rosário,

a São Benedito e a Santa Efigênia, mantendo os elementos herdados da terra natal durante os

desfiles nas ruas. Originalmente, a Congada é um festejo que faz parte de festas populares,

com influências culturais dos negros da etnia bantus.

Esta prática é realizada em um processo de assimilação ou atualização cultural em

grupos integrantes de irmandades devocionais, como: Congos, Moçambique, Marinheiros,

Vilões e Catopés. O sincretismo, por sua vez, não se trata de mera identificação entre entes

cultuados de tradições culturais distintas; vai um pouco mais além. Ferretti (2007) faz um

estudo mais acurado do termo analisando-o em uma perspectiva multicultural. Em seus

estudos, Ferretti nos permite interpretar sincretismo como a assimilação de elementos

teológicos e epistemológicos por meio da influência mútua entre religiões e cultos diferentes,

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da reinterpretação contínua de valores socioculturais e do respeito à individualidade de cada

culto.

1.3 Congadas no País

Embora as Congadas sejam uma manifestação cultural presente em todo o País,

apresentam diferenças de acordo com sua localização. Em Pernambuco, por exemplo, Santos

(2011) mostra a transformação completa da Congada, pois os grupos de congo se tornavam

autônomos em relação à coroação dos “reis do Congo”, inserindo em seus ritos danças e

cânticos independentes, preservando apenas a coreografia e o cortejo. Desta transformação

resultou o que se caracteriza hoje por Maracatu.

Já em Minas Gerais, a migração partindo do Nordeste faz a instalação da Congada se

iniciar a partir de 1710, recebendo o nome de “Reinado de Nossa Senhora do Rosário”. A

migração, em si, manteve muitos dos atributos essenciais da Congada, como denominações e

rituais: fardas, soldados, capitães, marujada, quartel, palácio, reis, príncipes, etc.; e o sentido

de que o folguedo representa uma reunião entre a “nação” de Congos e a de Moçambique. O

fato de o Rei Congo ser alforriado facilitou muito a disseminação da Congada em Minas

Gerais, fazendo dela um fator de prestígio na então província.

No Paraná, não há muitos registros de Congadas, mas apenas a Congada da Lapa

permanece ativa. Esta Congada atualmente é identificada por doze atos, mantendo a noção de

hierarquia presente em sua origem: rei, rainha, príncipe, embaixador, fidalgos, duque, cacique,

secretário, guias, conguinhos e músicos. Silva, C. (2012) relata que a razão de remanescer

apenas esta Congada é o fato de logo ao se iniciarem as Congadas, no século XVIII, haver

certa resistência por parte da igreja Católica em relação aos festejos. Esta resistência foi

determinada pelo bispado de São Paulo, por meio de seu Visitador Ordinário, implicando em

multas para quem promovesse o folguedo e os festejos da Congada.

Em São Paulo, as Congadas datam desde pouco mais de 1850, e se tornavam mais

frequentes com o auxílio das Irmandades, que eram autorizadas a realizar os festejos das

Congadas. Por outro lado, as Congadas passaram a ser vistas com desdém e como mero

folclore, tanto pela diminuição do número de pessoas a eles associadas quanto por serem

consideradas “atrasadas” por parte das elites da época. Em Ilhabela, a mais tradicional,

Caponero (2009) percebe a expressão fiel às características originais das Congadas,

mantendo-se o mesmo ritual, as mesmas expressões de música e dança, de representação e

vestimentas, e esta manutenção se dá pela tradição de devoção pelo povo caiçara de geração

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em geração.

Em praticamente todos os casos, Silva (1999) critica a visão dada a respeito das

Congadas, por esta visão ser reduzida ao nível de folclore brasileiro, como manifestação

cultural a ser preservada pelos órgãos públicos, de turismo, ou simpatizantes com a cultura.

Com efeito, esta visão da Congada como folclore não traduz a realidade dolorosa da

escravidão, cujos efeitos perduram até o presente inclusive no que diz respeito à cidadania

plena do negro nos contextos social, cultural, econômico e político do Brasil. Na maioria dos

casos em que as Congadas permanecem ativas, ou houve alguma tentativa de inibi-las na

atualidade ou há certo desdém quanto à apreciação das mesmas.

1.4 Congadas em Goiás

Em Goiás, há várias cidades com histórico de realização de Congadas. A mais notória

delas é Catalão, pela visibilidade promovida pelos meios de comunicação da região, fator que

desperta interesse e movimenta um fluxo turístico razoável durante sua realização.

A tradição de Congadas em Catalão é datada em antes da década de 1930, visto que o

Terno de Congo mais antigo da cidade não possui registro de fundação. Desde então, a

Congada em Catalão se desenvolve a duras penas, visto a incompreensão junto a igreja

Católica por durante muitos anos. Katrib (2009) percebe que a Congada de Catalão veio a ser

consolidada nos patamares atuais a partir da década de 1950, quando a posição de festeiro,

dada a necessidade de quantia razoável de recursos para a festa, passou a ser oferecida a

famílias de posses mais altas, permitindo a participação de diversas fontes de capital junto à

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

Freitas (2011) ainda relata que Caiapônia também tem um registro de tradição em

Congadas, a saber, com memória de pouco mais de um século de existência, iniciando-se na

década de 1910. A Congada em Caiapônia ganhou maior força a partir da década de 1940,

tendo certa retração na década de 1960 e retomada ao final da década de 1970. Por outro lado,

mesmo com a retração, a Congada em Caiapônia persevera de modo que seus integrantes

continuam a demonstrar entusiasmo durante sua realização.

Na história da Congada de Goiandira, como analisaremos a seguir, há relatos de que a

Congada se iniciou, também, na década de 1910. Reis (2009) comenta que a origem da

Congada ocorreu com a migração de ex-escravos oriundos de terras mineiras, que

trabalhavam nas lavouras de café e cana-de-açúcar em Sacramento e Santa Juliana. Além

deles, contribuindo para a consolidação da Congada, havia pessoas oriundas também do Rio

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de Janeiro, em busca de trabalho na região, que tinha interesse relevante nesta época. Assim,

estes conjuntos de pessoas formavam Ternos de Congo no então povoado.

A Congada de Goiandira esteve relacionada diretamente com a igreja Católica

Apostólica Romana, mas a conduta da igreja gerou um conflito sério com a Congada. Silva

(1999), ao estudar o desenrolar dos eventos ocorridos em função desta conduta em Goiandira,

analisa o conflito gerado pelas posições e imposições da igreja como causa para a realização

de dois festejos anuais atualmente.

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CAPÍTULO 2: A CIDADE DE GOIANDIRA E SEU RELACIONAMENTO COM A

CONGADA

Figura 1. Recorte da localização geográfica do Município de Goiandira.Fonte: Arquivo pessoal com mapas de base fornecidos pelo IBGE.

2.1 O surgimento de Goiandira

O Município de Goiandira, no interior do Estado de Goiás, mais precisamente na

microrregião conhecida como Sudeste Goiano, é um município conhecido por “Terra Branca”

devido a seu solo predominantemente argiloso. Atualmente, o Município é habitado por 5.491

pessoas e tem sua economia baseada na pecuária, conforme informações do Censo

Demográfico do IBGE.

Acredita-se, em conjunto com as observações feitas por Araújo (2000), que a extensão

do atual Município foi habitada por indígenas da etnia caiapó, que se fixavam nas margens

dos rios Dourado, Fartura e Água Fria, bem como em outros lugares na região. Esta área era

considerada apenas espaço de passagem, como a uma rodovia, mas passou a ser explorada por

agricultores e pecuaristas, no interesse de cultivar em suas terras.

Goiandira outrora era composta por cinco fazendas, conforme relata Inácio (1995),

conhecidas como Campos Limpos, Lageados, Dourados, Água Fria e São Miguel. Inácio

ainda comenta que estas fazendas eram ocupadas e habitadas pelas famílias Garcia,

Cassimiro, Martins, Teixeira, Anastácio, Felipe, Nicola, Lara, Mariano, Silva, Doca, Pacheco,

Barbosa, Vieira, Periquito, Belisário, Moura, Potenciano, Borges, Gonçalves, Mello, Tristão,

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Araújo, Dama, Albino, Cavalcante, Vigário, Costa, Alves, Porto, Guimarães e Faria. Como a

economia da região era estritamente baseada na agropecuária, as culturas mais frequentes na

época eram arroz, feijão, milho, mandioca, algodão, café e hortaliças. Muitos destes

fazendeiros eram conhecidos como coroneis, sendo proprietários de vastas extensões de terra,

e determinavam como seria a circulação da produção da região, bem como tinham controle da

política local.

A população residia em zona rural, vivendo da pecuária, de modo que ficavam

privadas dos meios de comunicação. Com isso, as informações eram repassadas por tropeiros

e carreiros que passavam pela região e despertavam nos moradores a curiosidade, pelo fato de

conhecerem um pouco da habilidade de escrita.

No final da década de 1900, com o início da construção da estrada de ferro na região, a

cidade passou a lidar com um processo de migração intenso, a tal ponto que a população,

predominantemente rural, passou a se urbanizar. Aí surgem as primeiras habitações urbanas,

feitas ou em taipa ou em alvenaria. Estas habitações pertenciam aos trabalhadores da empresa

Estrada de Ferro Goyaz, sob a responsabilidade do engenheiro-chefe Balduíno de Almeida,

que cedeu o nome à pequena estação ali em construção.

Com o fluxo migratório devido à vasta extensão de terras para a finalidade

agropecuária, como citado, entra em cena a migração oriunda dos Estados de Minas Gerais e

do Sudeste Brasileiro de muitos fazendeiros e ex-escravos que trabalhavam em fazendas

nestes Estados, dentre eles, alguns membros das famílias Martins e Ribeiro, que se

estabeleceram nesta região.

A família Ribeiro, que, em parte, organiza e conduz o chamado Terno dos Carreiros, se

deslocou do Estado de Minas Gerais, onde seus membros trabalhavam em lavouras na região

mineira que comporta os atuais municípios de Sacramento e Santa Juliana. Eles trabalhavam

para alguns membros da família Martins que decidiram explorar novas terras em território

goiano.

Ao se estabelecerem no território que atualmente corresponde ao Município de

Goiandira, o senhor José Ribeiro, juntamente à sua família, com a tradição que traziam

fundavam, ainda no final da década de 1900, o chamado Terno Velho. Como havia migrantes

de outros Estados, houve a associação do senhor José Ribeiro com mais pessoas, entre elas o

senhor José Juliano, e fundavam, na mesma época, o chamado Terno Novo, dando início ao

estabelecimento da Congada no território de Goiandira.

Em meados da década de 1910, com as mudanças trazidas também pela presença da

ferrovia, o povoado que surgira foi reconhecido como Distrito do Município de Catalão, de

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sorte que já era considerado, em parte, área urbana. O fluxo migratório gerado pela ferrovia

causou certo impacto em Goiandira, pela busca de oportunidades de trabalho na região, a tal

ponto que, no início da década de 1930, o Estado de Goiás reconhece o Distrito de Goiandira

como Município autônomo.

2.2 Os efeitos de um fluxo migratório crescente

Na década de 1930, a linha ferroviária se consolidou na região, aumentando o fluxo de

pessoas e, com isso, potencializando alguns interesses particulares. A ferrovia trouxe diversas

pessoas de outros Estados, que procuravam melhores condições de trabalho e de vida. Muitas

destas pessoas se associavam com o pessoal da cidade formando Ternos de Congo. Dentre os

Ternos surgidos após os Ternos Carreiro e Juliano (renomeação do Terno Novo), encontram-

se os Ternos Bagaceiro, Marujeiro e Marinheiro, compostos por pessoas oriundas de Minas

Gerais, de Municípios próximos aos que outrora foram ocupados pelos membros da família

Ribeiro. Houve, também, Ternos formado por pessoas oriundas de outros Estados, como o

Terno Carioca, surgido à mesma época, composto por pessoas oriundas do Estado do Rio de

Janeiro. Alguns destes Ternos se desfizeram, com parte de seus membros se integrando em

outros Ternos.

Não obstante, o fluxo atraiu também estrangeiros para a região, em especial, padres

franciscanos norte-americanos, com o interesse em consolidar a presença da igreja Católica

Romana na região. Esses padres assumiram as paróquias de Catalão e Goiandira, que foram

entregues aos cuidados dos recém-chegados padres franciscanos norte-americanos, que

prestavam assistência também para Cumari, Anhanguera, Nova Aurora e a comunidade do

Veríssimo. Nesta época ainda não existia a Casa Paroquial. O senhor José Martins, filho do

senhor Dário Martins, cedeu a casa de seu pai para servir à igreja como Casa Paroquial.

Somente em 1949 iniciou-se a construção de um novo convento franciscano em um terreno

adquirido pelos frades ao lado da Matriz.

Estes padres logo conseguiram recursos para construir a Casa Paroquial, ou Casa

Residencial, e o Colégio Santa Maria Goretti. Na prática, este Colégio se revelou como o

local onde os filhos da elite de Goiandira estudavam. Com efeito, nos arredores da igreja

Matriz, residem os moradores mais influentes da cidade e que detêm poder aquisitivo

razoavelmente alto. Como a Casa Residencial e o Colégio foram construídos ao lado da igreja

Matriz, então o local se revelou muito importante devido à presença destes moradores, em

específico. Não obstante, o terreno ocupado pelas edificações da igreja Católica, denominado

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posteriormente “Praça da Matriz”, se situa junto à principal avenida de trânsito da cidade,

Avenida Sinfrônio Martins.

Uma pequena escola primária paroquial foi inaugurada em 1949. Os custos para

manter a escola foram pagos por meio de recursos particulares dos franciscanos. Em 1950, o

prédio da nova escola paroquial começou a ser construído e foi empreitado pelo senhor

Francisco Tozi, de Catalão; a planta foi feita pelo arquiteto e frei Caetano Baumann, de Nova

York. A escola paroquial ficou sob os cuidados de irmãs que coordenavam a escola e

ministrava as aulas e os alunos do colégio tinham por dever participar das atividades e missas

da igreja.

Os padres norte-americanos que se encontravam em Catalão se tornaram responsáveis

pela Capela São Sebastião, em Goiandira, desde 19471. Por outro lado, a presença destes

padres criou, com o passar dos anos, certo clima de indisposição. Os padres se incomodavam

com a manifestação realizada pela Congada na Festa de Nossa Senhora do Rosário, e

passavam a alegar que a Congada não tinha responsabilidade alguma com a igreja, impedindo,

logo ao início da década de 1950, que a Congada realizasse a festa do Rosário e,

consequentemente, que tivesse seu espaço junto à igreja Católica.

Barros (2010) nos permite visualizar a postura dos padres norte-americanos como um

reflexo da política norte-americana desenvolvida desde a Guerra de Secessão, na década de

1860, até a década de 1960, onde se pregava a segregação racial por bairros ou mesmo por

edificações, especificamente nos estados do sul dos Estados Unidos, mesmo com

manifestação presidencial ordenando o contrário. Isto poderia ser um motivo para a não

aceitação de uma cultura afrodescendente dentro da igreja. Assim, a Congada fica sem espaço

para poder realizar suas manifestações e seus votos a Nossa Senhora do Rosário.

Não obstante, algumas pessoas, em Goiandira, veem esta situação como uma tentativa

de imposição por parte destes mesmos padres, pois eles cobravam uma presença mais

concreta da Congada junto à igreja, participando ativamente das celebrações, exigindo o

respeito aos preceitos e procedimentos da igreja. Não obstante, os padres utilizaram-se de

outros motivos como argumentos para justificar a retirada da Congada, como a falta de lucro

na Festa de Nossa Senhora do Rosário, os atrasos nas missas da Congada, que a Congada era

mero “carnaval”, dentre outras possíveis razões.

1 Os padres que se encontravam até o início da década de 1950 foram os seguintes: frei Domingo Foley, queorganiza a nova paróquia em 1948, com auxílio dos frades Miguel Brenan, João Antonio Janson; este últimose tornou pároco em Goiandira; frei João Antonio auxiliado pelo frei Luis Foley, iniciando o convento dosPadres, em 1949; frades João Antonio, José Wider, Windrifo Wiseman e Geraldo Quigley, em 1950 e 1951;frades João Antonio e José Wider, até 1954, conforme Livro Tombo dos registros da igreja CatólicaApostólica Romana na cidade de Goiandira.

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Figura 2. Recorte do mapa de Goiandira: localização da igreja Matriz de Goiandira.Fonte: Mapa de base renderizado. Mapas de Goiandira fornecidos pela Prefeitura e pelo Google Maps.

Entretanto, Tereza Ribeiro, Dançadora da Congada, vê isto de outro modo. Para ela, a

expulsão ocorreu pois os padres franciscanos viam a Congada como “carnaval”, e cobravam

da Congada um compromisso maior com a parte religiosa. Segundo eles, a Congada não tinha

esse compromisso. O conflito, na visão da senhora Tereza, foi motivado pela falta de respeito

e de fé por parte dos demais integrantes da Congada:

Foi desentendimento que os padres franciscanos tinham em relação a terno decongo. Eles achavam que era carnaval, então exigiram que a Congada fosse para aigreja, e fizessem aquela conduta de frequentar a igreja e comungarem. E o pessoalficava a noite inteira na festa, na farra, nos bares e tudo, e de manhã iam comungar.E os padres achavam ruim o pessoal ir comungar, passando a noite inteira bebendo,e às vezes até comia e não respeitava os preceitos da igreja. Os padres começaram aimplicar e quando foi uma Festa de Nossa Senhora do Rosário, o pessoal estava tudona igreja e o padre falou que não ia celebrar a missa. Aí houve revolta geral daCongada, inclusive meu tio entrou no meio. Daí, os padres resolveram que não iriammais celebrar a missa, não iam fazer mais a festa lá em cima. (Entrevista dada àautora, realizada em 10 de setembro de 2013)

O senhor Onofre Ribeiro, morador da cidade de Goiandira e também Dançador da

Congada, endossa o ponto de vista de Tereza no sentido de não haver respeito por parte dos

demais à época:

Houve um ‘entreveiro’ entre os padres americanos e a Congada, aí a congada seafastou, porque disseram que não iriam mais deixar a Congada fazer a festa lá emcima porque estava começando a atrasar para o horário da missa e a missa era daCongada. E eles queriam que toda a Congada participasse da missa. Neste dia (o do‘entreveiro’), o meu tio foi fazer visita e atrasou, ficou rodeando com o terno noviaduto, e quando chegou na porta da igreja, chegou batendo (as caixas) e o padresaiu da igreja, mandando parar. Ele desobedeceu ao padre e o padre falou que nãoiria mais ter festa na igreja. Eles achavam que aquilo era bandalheira, não tinha a vercom tradição, não compreendiam o ritual das coisas. (Entrevista dada à autora,realizada em 25 de abril de 2014)

O senhor Clemente Rosa Oliveira, morador da cidade de Goiandira, fala desse conflito

em outro viés. Para ele, os padres franciscanos não aceitavam a manifestação da Congada

nem a imagem de Nossa Senhora do Rosário na igreja:

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O padre, não sei o que deu nele, o padre da igreja lá de cima chegou na festa lá efalou: ‘Pega essa santa e joga fora! Não quero essa santa aí de jeito nenhum!’. Aí,tinha um povo que dançava congo, avançou nele e tomou a santa Nossa Senhora doRosário; ele queria jogar ela fora, não queria ela mais na igreja. Meu pai falou: ‘Seeu estivesse lá, o padre que saía da igreja! O Santo não sai não!’ (Entrevista dada àautora, realizada em 21 de maio de 2014)

O senhor José Teixeira, morador da cidade de Goiandira, ex-vereador e ex-prefeito, em

entrevista dada à autora em 14 de maio de 2014, fala que o padre da época, frei João Antonio

Janson, queria que a Irmandade realizasse a missa e dela participasse. Por outro lado, os

Ternos de Congo chegavam atrasados na hora da missa, o que trouxe a ira do padre e,

consequentemente, a expulsão da Congada.

A igreja Católica Romana já possui outro argumento sobre o conflito. Segundo eles,

havia “elementos” comunistas e maçons que iniciaram uma campanha para estabelecer na

cidade uma capela da “Igreja Livre”, como era por eles designada a igreja Católica Brasileira.

Para eles, houve, na ocasião, um movimento subversivo contra a paróquia na Festa de Nossa

Senhora do Rosário. Com isto, o padre da “Igreja Livre” e seus auxiliares não pouparam

esforços para tomar conta da festa e ganhar toda a gente da irmandade dos congos, conforme

registro da época2.

Diante da situação assim criada, inicia-se um conflito sério na cidade, que se arrasta

por duas décadas, entre 1950 e 1970, pois a Congada fica sem espaço para realizar a Festa de

Nossa Senhora do Rosário junto à igreja Católica Romana e, devido a isto, fica sem espaço na

cidade. Com isto, os organizadores da Congada e da festa decidiram continuar a sua

realização em outro espaço, sem se vincularem à igreja temporariamente.

2.3 A igreja Católica Brasileira em Goiandira e a dimensão do conflito com a Congada

Diante da situação provocada pelos padres franciscanos norte-americanos, os

integrantes da Congada decidem realizar seus rituais e festejos no espaço inicialmente

conhecido como “Rancho Verde”. Ali, eles organizavam a festa da mesma maneira em que a

organizavam quando eram parte da igreja Romana, levantando seu barracão com vigas de

madeira, lona e adornando-a com folhas de bacuri.

O terreno onde se localizava o Rancho Verde foi doado pelo senhor Jerônimo para a

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em 1951, e lá foi construída uma nova igreja,

conhecida na época como “Igrejinha”. O bispo da igreja Católica Apostólica Brasileira

2 Informação obtida do Livro Tombo de registros da igreja Católica Apostólica Romana em Goiandira. Estelivro inicia seus registros na década de 1940.

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Melquíades Rosa Garcia, na época, se interessava em se tornar padre da igreja Brasileira, pois

conhecia alguns membros da cúpula da igreja Brasileira, conforme as informações levantadas

por Silva (1999). O senhor Melquíades entrava em contato com padres da igreja Brasileira

convidando-os a celebrar as missas da Festa de Nossa Senhora do Rosário, fato que colaborou

fortemente para a igreja Brasileira se estabelecer em Goiandira, na nova igreja construída

pelos integrantes da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

Alguns moradores contam que, durante o surgimento da igreja Brasileira, a população

da cidade de Goiandira ficou dividida, ocasionando não poucos conflitos entre a igreja

Romana e a igreja Brasileira. Eles ressaltam que os conflitos tinham feitio de “guerra”. Além

disso, a igreja Brasileira trouxe muita força para a Irmandade e recebia pessoas

desfavorecidas materialmente, trazendo certo incômodo à igreja Romana.

Foram muitos os problemas presentes em ambas as igrejas. O senhor Clemente Rosa

comenta que a igreja Brasileira sempre foi vista com “maus olhos”, com desconfiança, pela

população de Goiandira. Ele comenta que as pessoas passavam em frente a igreja e nem

sequer olhavam para ela. Muitos moradores da cidade diziam que a igreja era “igreja do

capeta” (Entrevista dada à autora em 21 de maio de 2014).

Durante os festejos da Semana Santa, aconteciam procissões em ambas as igrejas. O

fato de ambas se cruzarem no viaduto da cidade, que se encontra na região central, era motivo

para conflito e difamação: ali acontecia toda forma de desqualificação e preconceitos em

relação à igreja Brasileira por parte dos fiéis da igreja Romana. Enquanto o pessoal da igreja

Brasileira se organizava e aguardava para sair em procissão, os membros da igreja Romana

olhavam o pessoal em procissão, verificando se não havia fiéis deles na procissão da igreja

Brasileira. Os fiéis da igreja Romana eram severamente proibidos de participar de qualquer

evento promovido pela igreja Brasileira e, caso descumprissem esta proibição, eram expulsos

da igreja.

O acirramento era tão forte entre as duas igrejas que, durante o final de uma Festa de

Nossa Senhora do Rosário realizada na igreja Brasileira, as luzes da cidade foram apagadas

durante a procissão, em caráter de completo desrespeito. Segundo Raciná Regina Silva,

moradora da cidade de Goiandira, em entrevista dada à autora em 3 de maio de 2014,

membros da igreja Romana se mobilizaram e solicitaram ao senhor conhecido por “Delfim da

Prada”, que trabalhava para a companhia energética “Prada”, atualmente posto da CELG

(Companhia Elétrica de Goiás), o corte da energia elétrica no sentido de atrapalhar o

andamento da festa junto à igreja Brasileira.

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Mesmo com todos os esforços por parte da Congada para continuar a realização da

festa do Rosário, Silva (1999) comenta que a festa sofreu uma medida de embargo devido a

um assassinato ocorrido em meados da década de 1950. Na ocasião, a juíza da comarca de

Goiandira, Maria Madalena Vanais Pontes de Abreu, impediu a realização da festa com o

argumento de que a Congada dançava sobre o sangue do homem assassinado. A pessoa que

foi assassinada, entretanto, não tinha ligação com a Congada. Era apenas um cidadão que

passava por Goiandira rumo à casa de seus parentes, e se envolveu em uma briga. Com isso,

acredita-se que o embargo se tenha dado não pelo assassinato, mas pelo fato de a festa ser

realizada em uma igreja diferente da igreja Romana. A senhora Terezinha relata melhor o fato:

A gente estava nos dias de festa do Rosário, nas vésperas da festa do Rosário, houveum assassinato na porta da igreja lá, da igrejinha, brasileira. No sábado, antes dafesta, iam levantar o mastro e tudo, e houve um assassinato na porta da igreja. Umpassageiro que tinha vindo de Goiás, e estava indo para a terra dele para ver afamília, foi lá assistir a festa, houve desavença com outra pessoa, e foi assassinadona porta da igreja. E, por causa disso, no dia seguinte, os congos estavam todos narua e a juíza embargou a festa. Daí, os ternos pararam de dançar e foi aquele negócioque o pessoal vai para cá, vai para lá, e vai atrás de político, de não sei quem de lá…eu fui embora para casa, para São Paulo e não voltei mais nessa fase. (Entrevistadada à autora, realizada em 10 de setembro de 2013)

Não obstante, a mesma juíza procurava mover embargos à festa durante todo o período

em que se encontrou em Goiandira. O senhor Clemente comenta que a juíza estava coligada à

igreja Romana, dizendo que ela era uma mulher muito “difícil” e “braba”, bem complicada

para se lidar. Para Clemente, a juíza estava unida à causa dos padres franciscanos da igreja

Romana para acabar com a festa da igreja Brasileira.

Ainda de acordo com Clemente, a juíza, em caráter concreto de preconceito em

relação à igreja Brasileira e à Congada, intimou o padre José Maria e o senhor Jerônimo, que

doara o terreno à Irmandade a uma audiência e ela dizia a Jerônimo: “Você é um homem

limpo e honesto! Você não pode se misturar com gente suja! Você não pode lavar suas mãos

em água suja!”. Para a juíza, o pessoal que frequentava a igreja Brasileira era “sujo”, no

sentido de desordeiro, indigno.

Não raras vezes, a festa contou com a presença forte da Polícia Militar em Goiandira.

A juíza sempre buscou impedir a realização da festa junto à igreja Brasileira e enviava tropas

da Polícia Militar com ordem expressa para tanto. Por outro lado, os próprios membros da

Congada coordenavam ações de colaboração por parte da Polícia Militar para realizar a festa.

Esta colaboração era útil, inclusive, para dar proteção ao padre da igreja Brasileira à época,

senhor José Maria, que vinha de Minas Gerais para celebrar as missas nos dias de festa.

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O conflito perdura por quinze anos desde a fundação oficial da igreja Brasileira e só

teve um fim devido à ação do último padre franciscano que se encontrava em Goiandira, frei

Beraldo Francisco McInerney, ao final da década de 1960. Durante este período, a Congada

funda a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário junto à igreja Brasileira em 1956,

registrando sua ata de fundação e todos os membros integrantes da Irmandade junto à igreja

Brasileira. Esta ata ainda se encontra nos arquivos locais da igreja Brasileira em Goiandira.

O terreno ocupado pela sede da igreja Brasileira, por sua vez, é rodeado por

residências de pessoas, em sua maioria, simples, mas há, atualmente, pequenos proprietários

de terras e membros de famílias tradicionais da cidade. A discriminação contra a igreja

Brasileira era mais severa pelo fato de esta se situar próximo à rua Rui Barbosa, que abrigava

muitos adeptos da nova igreja, e estes ajudavam a organizar e a realizar os festejos. Outro

fator foi o fato de a igreja Brasileira receber ativamente pessoas marginalizadas pela

sociedade.

Figura 3. Recorte do mapa de Goiandira: localização da igreja Católica Brasileira de Goiandira.Fonte: Mapa de base renderizado. Mapas de Goiandira fornecidos pela Prefeitura e pelo Google Maps.

Além disso, a sede da igreja Brasileira em Goiandira ocupa o espaço de uma praça,

antigamente nominada Praça Castro Alves, que, conforme Silva (1999), fora renomeada

devido à presença da mesma com o nome de um de seus bispos, Melquíades Rosa Garcia. Isto

nos leva a perceber que houve uma conquista de poder por parte da igreja Católica Apostólica

Brasileira, pois um bispo da mesma teve seu nome registrado em uma praça da cidade.

2.4 Uma nova capela para a Congada e a retratação da igreja Católica Romana

Ao final da década de 1960, os padres franciscanos norte-americanos deixam a cidade

de Goiandira, após anos de consolidação da igreja Católica Romana na cidade. O último

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deles, frei Beraldo3, desejava ver a Festa de Nossa Senhora do Rosário voltar a ser realizada

na igreja Romana, como antes de todo o conflito gerado por parte da mesma contra a

Congada.

O próprio padre tomou para si a necessidade de construir uma nova capela na cidade

de Goiandira. Porém, devido à falta de terrenos considerados “destacados” e “bem situados”

na cidade para viabilizar a construção da nova capela, o padre procurou pelos membros das

família Moreira para adquirir uma permuta de terra na Avenida Agostinho Martins, recebendo

por doação terrenos que se encontravam contíguos na avenida Agostinho Martins e na rua

Oscar de Lima, antigamente denominada avenida Goiás. Nestes terrenos se encontrava,

também, a casa de sopa São Vicente, levantada pelos padres franciscanos; esta casa prestava

assistência aos necessitados e tinha como funcionária a senhora Rita Martins, que nela morava

com sua família. Ela prestava um grande trabalho distribuindo para os mais pobres sopa, leite

em pó e outros alimentos.

Figura 4. Recorte do mapa de Goiandira: localização da Capela Nossa Senhora de Fátima.Fonte: Mapa de base renderizado. Mapas de Goiandira fornecidos pela Prefeitura e pelo Google Maps.

Para a construção da capela, entretanto, a casa de sopa teve de fechar suas portas. O

padre Beraldo conduz uma movimentação massiva na cidade para a construção desta nova

capela e com o intuito de convidar novamente a Congada a fazer parte da igreja Romana, e a

população adere à iniciativa. Com isto, ele se associa a alguns cidadãos influentes na cidade,

como os senhores José Teixeira, vereador à época, Agostinho Martins, funcionário do Estado

3 Os padres norte-americanos que se encontraram entre 1954 e 1969 foram os seguintes: frades Celso Hayes,José Wider, Artur Meyer e Estêvão, em 1954; frades Celso Hayes, José Wider, Estêvão e Miguel, em 1955;frades Celso Hayes, José Wider e Estêvão, em 1956; frades Estêvão, Celestino e Pedro, em 1957; fradesEstêvão, Geraldo McCain, Pedro e Cristóvão, em 1958; frades Estêvão e David, em 1959; frades ArturMeyer, Dunstan Dooling e Tiago McGeady, em 1960; frades Artur Meyer, Dunstan Dooling, TiagoMcGeady e Brendão Sullivan, em 1961; frades José Sullivan e Rogério Leech, em 1962; frades Inácio Smithe Rogério Leech, em 1963; frades Inácio Smith e José Wider, em 1964; frades João Antonio Janson e AquinoReding, em 1965; frades João Antonio Janson e Juvenal Leahy, em 1966; frades João Antonio Janson,Juvenal Leahy e Celso Hayes, em 1967; frades Beraldo Francisco McInerney e Antônio Knopke, em 1968.Informação obtida no Livro Tombo de registros da igreja Católica Apostólica Romana em Goiandira.

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de Goiás, Idelmar, funcionário dos Correios, e José Marques de Paula, membro da Liga

Católica, e, com este grupo, procura o senhor Laerte Pereira, à época, ferroviário-chefe da

estação. Ele tinha muita influência junto à Congada, pois tinha muita experiência e não raro os

Ternos de Congo o chamavam para ser Capitão interino.

Com isto, o padre Beraldo conduz uma retratação da igreja Romana perante a

Congada, expondo seus motivos e convidando a Congada a retornar para a igreja. O senhor

Laerte, por sua vez, ficou muito feliz em ver o posicionamento da igreja Romana perante a

Congada depois de duas décadas de conflito, e assim, junto com o senhor Laerte Pereira,

deslocam-se para a casa dos capitães dos ternos de congo. O próprio Laerte afirmou que

retornaria somente se fosse para a capela; ele se recusava a retornar para a Matriz. Após a

reunião com os capitães, alguns Ternos apoiaram o retorno sob a condição proposta pelo

senhor Laerte, de permanecerem na capela. Outros, porém, decidiram não retornar, tendo em

vista os anos anteriores.

Assim, é levantada uma nova Irmandade de Nossa Senhora do Rosário junto à igreja

Romana, e o padre Beraldo conduz os meios de poder ver o conflito resolvido, em parte.

Deste modo, passavam a existir, de maneira independente, duas Irmandades de Nossa Senhora

do Rosário em Goiandira, que atualmente realizam seus festejos sem conflitos entre si.

A fundação da nova Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Goiandira ocorreu

em 5 de junho de 1971 e hoje conta com oito Ternos de Congo, totalizando 366 Dançadores.

A irmandade é composta por mulheres e homens e nela todos são considerados “irmãos”. A

Irmandade conta com um Presidente, responsável por gerenciar o andamento geral dentro da

Irmandade e dos Ternos de Congo. As reuniões, ao longo do ano, são divididas em mensais e

quinzenais. Quanto mais próximo da época de festa, as reuniões passam a ser quinzenais.

Pouco depois da prestação de contas da festa, o calendário de reuniões passa a ser mensal.

Atualmente, o Presidente desta nova Irmandade em Goiandira é o General da

Congada, Antônio Pereira Neto. Em Goiandira, os mesmos membros da Irmandade fazem

parte da Associação da Congada de Goiandira, pois isto evita, ao passo do que ocorre em

Catalão, o uso da Irmandade ou da Associação para fins políticos. A Associação possui CNPJ,

um Estatuto, e uma conta bancária para a captação de recursos. Normalmente, seus cargos têm

validade de dois anos e, para ocupar os cargos, é necessário realizar uma eleição. Os votantes

devem possuir idade mínima de 16 anos.

Associados à nova Irmandade, encontram-se oito Ternos de Congo, que descrevemos

brevemente em termos de seu histórico e de suas vestimentas:

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Terno Carreiro (ou Terno dos Carreiros): fundado em 1909 por José Ribeiro,

conhecido à época por José Carreiro. A farda deste Terno é, basicamente, em tom marrom

claro, com alguns enfeites cujas cores variam em outros tons, exceto preto. O nome “Terno

Carreiro” prevalece em registros de documentos e históricos do Terno; por outro lado, seus

próprios integrantes e os moradores da cidade se referem ao Terno como “Terno dos

Carreiros”, sendo, assim, uma referência à profissão de carreiro, exercida pelo fundador.

Terno Marinheiro: fundado em 1925 por Antônio Pereira Dias. A farda deste Terno é

de tons azul e branco, sendo os casquetes e as calças azuis e as camisas brancas; os sapatos

são de cor preta.

Terno Romano (ou Terno Juliano): fundado em 1971 por Inácio Rosa e Laerte Pereira.

O Terno era nomeado Terno Juliano antes do conflito entre as igrejas. Com o retorno parcial

para a igreja Romana, mudam o nome do Terno para Romano, pois já existia um Juliano na

igreja Brasileira e parte deles não quis retornar para igreja Romana. A farda deste Terno é

predominantemente branca, sendo o capacete montado com fitas coloridas.

Terno Mirim: fundado em 1971 por Francisco Cirilo dos Santos. A farda deste Terno é

composta de tons verde e amarelo, em que as camisas e os bonés são amarelos e as calças,

verdes.

Terno Moçambique: fundado em 1971 pelo senhor José Felício. Esse Terno surge

através de um desentendimento com um dos capitães do Terno dos Carreiros. O Terno

Moçambique se encontrava na igreja Brasileira, mas a Congada da igreja Romana não tinha

um Terno Moçambique associado a ela. Assim, pessoas do Estado de Minas Gerais vêm e

fundam o Terno Moçambique. Este Terno tem uma responsabilidade grande na parte religiosa

e, durante os dias de festa, a Coroa sempre está em sua posse. A farda deste Terno é

integralmente branca.

Terno Gregoriano: fundado em 1983 por Laerte Pereira. A farda deste Terno é em tons

verde e branco, em que os casquetes e as calças são brancos e as camisas, verdes.

Terno Catupé Penacho: fundado em 1992 por Geso Borges da Silva. A farda deste

Terno é composta por chapéus brancos, camisas amarelo-ouro, calças pretas e sapatos pretos.

Terno Vilão São Benedito: fundado em 1996 por Silvano de Paula Silva. A farda deste

Terno é composta por calças pretas, camisas rosas, e faixas na cintura de cor azul.

O senhor José Teixeira conta, em entrevista dada à autora em 14 de maio de 2014, que,

na época da construção da capela, o bairro era denominado “Patrimônio”, mas não dispunha

de infraestrutura adequada para a instalação de residências ou de comércios. Além disso, as

pessoas que ali viviam passavam por muita dificuldade. Na visão dele, a população aderiu à

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ideia da nova capela com vistas ao fim da rivalidade entre a igreja Romana e a igreja

Brasileira.

Para tanto, houve ainda facilitação por parte da Diocese de Ipameri, por parte do

Bispo, com o motivo de poder evangelizar mais pessoas, autorizando o senhor Oscar de Lima

a legalizar as casas presentes no bairro. Com isso, o bairro é renomeado por “Bairro Nossa

Senhora de Fátima” devido à nova capela ser denominada “Capela Nossa Senhora de Fátima”.

A nova capela foi construída por meio de doações de praticamente toda a cidade e

recursos financeiros externos obtidos pelos padres franciscanos. Com a chegada do padre

italiano Lino Dalla Poza, em 1970, a nova capela recebe melhorias e evidências de sua

dedicação a Nossa Senhora do Rosário. A imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz foi

esculpida em madeira pelo próprio padre Lino Dalla Poza e a capela recebe um altar e uma

imagem de Nossa Senhora do Rosário, que ainda hoje permanecem na capela. Nos arredores

da capela, residem pessoas de poder aquisitivo alto, e existem vários estabelecimentos

comerciais. A economia urbana do Município gira em torno das avenidas Sinfrônio Martins

Teixeira e Agostinho Martins, onde se localizam os principais pontos de concentração da

igreja Católica Romana na cidade.

Figura 5. Vista frontal da Capela Nossa Senhora de FátimaFonte: Arquivo pessoal, 05 de maio de 2013.

Com o término da construção da Capela Nossa Senhora de Fátima, o padre Lino

conduz ao retorno da realização da Festa de Nossa Senhora do Rosário, que via ocorrer

anualmente na igreja Brasileira. Com a nova Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, passa-

se, então, aos esforços para a realização da nova festa com a Congada.

Nesta mesma época do retorno, o Terno dos Carreiros também volta a fazer parte da

Congada, junto à igreja Romana. Desde o início do conflito até este momento, apenas alguns

integrantes do Terno decidiram continuar a dançar e a festejar em outros Ternos na igreja

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Brasileira, mas não é possível determinar se todos eles voltaram a dançar junto ao Terno dos

Carreiros.

Mesmo com o retorno parcial da Congada para a igreja Romana, a Festa de Nossa

Senhora do Rosário na igreja Brasileira continuou a ser realizada e continuou a haver

participação da comunidade durante a festa. A nova festa criada na igreja Romana passou a

ser realizada no mês de setembro pois, como conta o atual General da Congada na igreja

Romana, Antônio Pereira Neto, não faria muito sentido retornar para a igreja Romana e

manter uma rivalidade com a igreja Brasileira. Tanto é que, mesmo com o retorno, há auxílios

prestados pela nova Irmandade à festa realizada na igreja Brasileira.

Atualmente, a Festa de Nossa Senhora do Rosário junto à igreja Brasileira não tem

tamanha receptividade quanto há, aproximadamente, duas décadas. Moradores da região onde

se encontra a igreja Brasileira comentam que, enquanto o pátio da mesma era um espaço

aberto, a festa do Rosário ali realizada, conforme os moldes de sua origem e de sua história,

atraía atenção e tinha certo espaço junto à sociedade goiandirense. Entretanto, quando alguns

padres da igreja Brasileira que ali chegaram decidiram fechar o terreno, a festa do Rosário na

igreja Brasileira passou a perder seu espaço de sociabilidade junto à cidade. A festa ainda é

realizada anualmente no mês de maio, mas conta com pouca participação popular durante a

sua realização.

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CAPÍTULO 3: O TERNO DOS CARREIROS E SUA INTEGRAÇÃO COM A FESTA

DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

3.1 Os Carreiros e o surgimento da Congada

Para entender a organização de um determinado grupo, é preciso desenvolver

capacidades essenciais para entender sua história e sua rotina. Geertz faz este paralelismo por

meio dos requisitos para serem entendidas noções com que trabalhamos:

Não podemos entender o significado de lek a não ser que entendemos o que é odramatismo balinês, da mesma maneira que não saberemos o que é uma luva deapanhador se não conhecemos o jogo de beisebol. Ou não entenderemos o quesignifica uma organização social mosaica sem saber o que é nisba, como não épossível compreender o platonismo de Keats, sem ser capaz de captar o fio condutordo pensamento intelectual. (GEERTZ, 2009, p. 106, grifo nosso)

Como dito, a família que atualmente compõe, em parte, o Terno dos Carreiros, é

oriunda do Estado de Minas Gerais, onde trabalhavam em lavouras na região mineira que

comporta os atuais municípios de Sacramento e Santa Juliana. Antes de se fixarem no

território de Goiandira, eles tentaram se estabelecer em terras pertinentes ao atual Município

de Catalão. O senhor Onofre Ribeiro, neto do senhor José Ribeiro, comenta que

anteriormente, o pessoal tentou se integrar à Congada em Catalão, mas não gostavam muito

do andamento da Congada. Portanto, deslocaram-se para terras no atual Município de

Goiandira e passaram a trabalhar para vários fazendeiros, dentre eles, o senhor Dário Martins,

que os convencera a migrar para Goiás, os Ferreira, os Mariano, e outros fazendeiros da

época. Ainda com as palavras do senhor Onofre,

Eles moravam na fazenda dele, dos pais do senhor Dário, Dário Martins. Aí, elesfaleceram e o senhor Dário vendeu as terras lá e disse: vamos desbravar o Goiás.Juntou a turma dele, que morava nas fazendas dele lá, e trouxeram para cá, aí vierammuita gente. Goiandira ainda não existia, corruptela, um ranchinho aqui, umranchinho ali. Era terra branca antigamente, depois passou para Alto Querosene,Campo Limpo e depois Goiandira. O senhor Dário era da família dos Martins, quetem o Érico, os Ferreira, naquela época. Aí, os irmãos dos meus pais foram morar alinas terras da dona Maria Ferreira, os outros para o senhor Adolfo Mariano, OlórioMariano, e espalhou para todo e qualquer lado. E os Julianos ficaram aqui na saídada Água Fria, Lageado, nesse setor. (Entrevista dada à autora, realizada em 25 deabril de 2014)

Ainda reportando ao que foi citado anteriormente, o senhor José Ribeiro funda, no

final da década de 1900, dois Ternos, um deles com os membros de sua família,

denominando-o Terno Velho, e o outro em associação com outros companheiros de trabalho,

denominando-o Terno Novo. Devido a seu trabalho de carreiro, os integrantes do Terno Velho

decidem renomeá-lo como Terno dos Carreiros, e por outros motivos, os integrantes do Terno

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Novo renomeiam-no como Terno Juliano. Nas palavras do senhor Onofre,

O terno surgiu quando eles vieram de Minas, veio meu avô e trouxe os filhos, osparentes tudo para aqui em Goiandira. Primeiro eles montaram em Catalão,fundaram o terno lá, meu avô participou mas não gostou muito não. Então elesvieram para Goiandira e fundaram dois ternos aqui, entrou em contato com o senhorJoão Juliano, que viera com eles de Minas, e aí fundou o terno Carreiro, primeiro eraterno Velho, que eram só os filhos do meu avô, e foi lá no seu José Juliano e elefalou: não, vamos montar, e ele tinha uma ‘fiarada’ também e montou o terno delecom os filhos. Daí surgiu o terno Velho e o terno Novo. (Entrevista dada à autora,realizada em 25 de abril de 2014)

O Terno dos Carreiros é um Terno de composição prioritariamente familiar, isto é, seus

principais membros são membros de uma mesma família. O fundador do Terno, senhor José

Ribeiro, foi apelidado “José Carreiro” pelo serviço que exercia nas lavouras, de carreiro,

condutor de carro de boi. E devido a isto, o Terno fundado recebeu por nome o termo

“carreiro”. Nas palavras da senhora Tereza Ribeiro, neta de José Carreiro,

Meu avô veio de Minas Gerais também, vindo de Sacramento, e fundou o terno dosCarreiros. No começo, foi ele, os filhos e os netos, por isso. Como ele era carreiro,carreava boi, trazia os sacos de arroz da roça no carro do boi, então ficoudenominado ‘José Carreiro’. Daí, originou o nome do terno dos Carreiros, que eramaioria só família dos Carreiros. (Entrevista dada à autora, realizada em 10 desetembro de 2013)

Quando os Carreiros chegaram em Goiandira, junto ao pessoal trazido pelo senhor

Dário Martins, nada havia no terreno. Eles lançaram os primórdios da Festa de Nossa Senhora

do Rosário na área onde hoje se localiza a igreja Matriz de Goiandira. Os congadeiros

montavam a festa do Rosário inicialmente por meio de uma barraca levantada na área, e

tinham incentivos partidos dos fazendeiros para a celebração da festa; recebiam doações dos

fazendeiros dos arredores e recebiam folga nestes dias para celebrar a festa.

Até o início da década de 1940, a região era assistida por padres de outros lugares,

como, por exemplo, Catalão, que também dava assistência para outras cidades da região. Com

a chegada de mais pessoas na região, foi levantada uma capela na área onde hoje se encontra a

igreja Matriz, denominada Capela São Sebastião, onde a festa do Rosário era celebrada

anualmente. Esta capela era localizada no chamado Ranchão, um terreno doado por um

fazendeiro influente e muito rico da região, e depois da emancipação do município de

Goiandira, durante a década de 1940, chegaram padres norte-americanos na cidade e estes

construíram a igreja Matriz de Goiandira onde se encontrava esta capela. Nas palavras do

senhor Onofre,

Primeiro começou na Matriz, eles vinham da roça e não tinha Matriz naquela época.Eles vinham ali, onde tem o pátio da Matriz, ali era tudo mato, eles montavam suasbarracas e faziam a festa no pátio da igreja. Arrumavam folha de bacuri, traziam oscarros de boi, faziam o rancho de folha de bacuri e enfeitavam. A festa ficava por

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conta de todo mundo que estava participando: os fazendeiros arrumavam um carropara eles virem para a cidade, trazia os mantimentos e tudo, durante os nove dias defesta eles ficavam acampados ali. Tinha nada de voltar para a roça, capinar algumacoisa, na época da festa já estava tudo pronto. Não existia a Congada ainda, ela foiinventada pelos dois, o senhor João Juliano e o meu avô. Eles faziam a festa no pátioda Matriz e, nessa época, vieram os padres franciscanos e levantaram a igrejaMatriz. A igreja, nessa época, fazia o ranchão lá e continuava a mesma coisa, até queeles construíram o pátio, depois as irmãs dominicanas vieram e levantaram oColégio, e depois levantaram a Casa dos Padres. (Entrevista dada à autora, realizadaem 25 de abril de 2014)

Com efeito, ao longo do tempo surgiram questões que culminaram no

desentendimento entre a igreja Romana e a Congada, fazendo a Congada se apartar da igreja

Romana e se associar, em parte, ao pessoal da igreja Católica Brasileira, fundando a sede local

da igreja Católica Brasileira em Goiandira, em meados da década de 1950. Duas décadas

depois, devido ao apelo popular promovido pelo pessoal da igreja Romana, como visto

anteriormente, há o retorno parcial da Congada e o restabelecimento da Festa de Nossa

Senhora do Rosário na igreja Romana, de modo que, atualmente, são mantidas duas festas:

uma, junto à igreja Brasileira, e outra, junto à igreja Romana, ocorrendo nos meses de maio e

setembro, respectivamente.

3.2 Os primórdios da Festa de Nossa Senhora do Rosário

A Festa de Nossa Senhora do Rosário, como comentado anteriormente, tem suas

origens remontadas ao estilo da festa na época existente nos territórios correspondentes aos

atuais Municípios de Sacramento e Santa Juliana, no Estado de Minas Gerais. Esta festa foi

trazida, como visto, por meio das famílias Martins e Ribeiro, cujos principais motivadores

foram os senhores Dário Martins e José Ribeiro, este último conhecido por José Carreiro.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário, em Goiandira, ocorria entre os dias 3 e 13 de

maio na época em que foi iniciada, entre as décadas de 1910 e 1920. Nela, a Congada

representa os povos negros, e criava, assim, um espaço de sociabilidade entre os negros. Para

a realização da festa, os congadeiros contavam com a ajuda dos fazendeiros dos arredores

com doações, e recebiam folga nestes dias para celebrar a festa. Acredita-se que, à época, a

Congada tinha ligação com a comemoração da Lei Áurea, concedente da abolição da

escravatura no Brasil.

Inicialmente, com seu surgimento, a Congada era composta por dois Ternos de Congo,

denominados “Terno Velho” e “Terno Novo”, sendo seus nomes alterados, em meados da

década de 1910, para “Terno dos Carreiros” e “Terno Juliano”, devido a seus idealizadores,

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José Ribeiro e João Juliano, respectivamente. Com a chegada de mais pessoas oriundas de

outros Estados, em particular, da região sudeste do Brasil, formaram-se mais Ternos de

Congo, ampliando, assim, a estrutura da Congada.

A festa do Rosário, até o início da década de 1950, era realizada no terreno onde hoje

se localiza a igreja Matriz de Goiandira, uma sede da igreja Católica na cidade. Ali se

montava um barracão, conhecido como Barracão de São Sebastião, montado à sua estrutura

tradicional, composta por vigas de madeira, uma lona e decoração feita com folhas de bacuri.

3.3 O cortejo real dedicado a Nossa Senhora

A Congada, em caráter geral, possui uma estrutura para sua organização interna e tal

estrutura se torna visível durante sua apresentação: o Congado, o Reinado e os Ternos; sendo

que todos os participantes estão associados a uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. A

estrutura descrita também está presente na Congada em Goiandira.

O Congado é constituído de todo o conjunto de pessoas pertinentes ao cortejo, todos

os Ternos que, através do som, do ritmo, da dança e da música, fazem suas manifestações. Sua

regência máxima se evidencia no General da Congada, a quem incumbe a organização geral, e

a quem se reportam os demais membros da Congada. O cargo pode variar de nome de acordo

com o lugar, sendo chamado por Capitão-mor, Coordenador ou General, conforme as

observações feitas por Silva (2010). É esperada do General da Congada uma função

mediadora tanto em caso de conflitos entre os integrantes do Terno quanto entre integrantes de

Ternos distintos, atuando primariamente como conciliador.

Em consonância com Brandão (1985), o Reinado, por sua vez, é o conjunto das

pessoas que, durante os festejos, são coroadas, recebendo homenagens e sendo conduzidas em

cortejo com o conjunto dos Ternos. Destacam-se as figuras do Rei Congo e da Rainha Ginga,

que são, simbolicamente, a ligação com os ancestrais africanos. Devido a isto, o Rei e a

Rainha são importantes e respeitadas autoridades aos quais se prestam reverências por parte

dos Ternos. Brandão, de modo semelhante, afirma que “o rei do congo ou da Irmandade, junto

a sua esposa, filhos e filhas, constitui o próprio reinado” (BRANDÃO, 1985, p. 38).

Os Ternos são grupos de pessoas organizadas hierarquicamente. A autoridade primeira

é o Capitão, responsável pela organização do grupo, e este tem autoridade única e direta sobre

os demais integrantes. A Capitania tem um suplente, de onde os cargos de Primeiro Capitão e

Segundo Capitão. Na ausência do Primeiro Capitão, o Segundo Capitão assume todas as

responsabilidades por aquele deixadas. Há outros auxiliares, responsáveis pela ordem e

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disciplina no Terno, e os demais integrantes são ditos Dançadores. Além disso, a identificação

visual de cada Terno traz consigo um significado próprio para os integrantes do mesmo, que

diz respeito não apenas à apresentação, mas à própria conduta na Congada e no espaço onde

vivem.

Não seria exagero afirmar que são inúmeros os exemplos conhecidos bemconhecidos de todos nós em que a categoria ‘cor’ destaca-se como um tipo de‘signo’ especial a demarcar fronteiras e afirmar diferenças […]. Todos sãorepresentados por ‘cores’ escolhidas em algum momento do passado como elementodistintivo do grupo social e da sua presença marcante. (SILVA, R., 2012, p. 131)

Figura 6. Esquema com a estrutura mínima dos Ternos de Congo para o percurso do cortejo na cidade.Fonte: Arquivo pessoal.

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Além desta estrutura, há uma posição de especial destaque na Congada de Goiandira,

que diz respeito ao zelo pela Coroa do Rosário, símbolo ao qual todos os integrantes, e em

especial o Terno Moçambique e o Terno dos Carreiros, prestam cuidado e respeito. Esta

pessoa é dita Rainha da Coroa. Em geral, esta posição é ocupada por alguém do Terno

Moçambique, por ser este o Terno responsável pela guarda da Coroa e por efetuar as

coroações do Reinado. Em Goiandira, entretanto, esta posição é tradicionalmente ocupada por

integrantes da família do Terno dos Carreiros, sendo que a Rainha da Coroa se desloca para

junto do Reinado durante o cortejo, dispondo de dois Guardas para a Coroa.

3.4 Organização interna do Terno dos Carreiros

Um Terno de Congo é organizado por um conjunto de pessoas relacionadas por meio

de hierarquia descendente. O Terno é a menor unidade do Congado; porém, cada Terno se

distingue um do outro por sua coreografia, por seu ritmo de batuque e por seus símbolos

sagrados:

Cada terno distingue-se pelo estilo particular da sua indumentária, coreografia eritmo de batuque. Esse conjunto de elementos, que ao mesmo tempo, padroniza ediferencia um grupo ritual de outro, também representa símbolos sagrados, umaforma de expressão religiosa da comunidade congadeira e do seu elo com as origensda tradição do Congado. (SILVA, 2010, p. 17)

A principal autoridade é o Capitão, que coordena as atividades internas ao Terno

durante seu preparo e durante sua apresentação. Não obstante, este tem autoridade única e

direta sobre os demais integrantes do Terno. Este Capitão, denominado Primeiro Capitão, tem

um suplente, denominado Segundo Capitão, que, normalmente, se encontra ou nas filas de

dança ou ao lado do Primeiro Capitão durante a apresentação. Geralmente, há também uma

espécie de fiscal de postura, denominado Sargento ou Meirinho, situando-se imediatamente

atrás de todos os componentes do Terno e fiscalizando o ritmo da instrumentação musical e

dos cânticos. Por fim, os demais integrantes que se posicionam na apresentação entre os

Capitães e o Meirinho são denominados Dançadores.

O Terno Carreiro se organiza sob a estruturada citada anteriormente, tendo, também,

em sua linha de frente, anterior à linha do Capitão, integrantes denominados Coroinhas ou

Bandeirinhas. São, em geral, crianças e adolescentes, cuja vestimenta é ornamentada de modo

a chamar visualmente a atenção dos espectadores. Há também, situado no interior da estrutura

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entre Capitão e Meirinho, um Dançador denominado Sanfoneiro, que ajuda a orquestrar a

música durante a apresentação.

Figura 7. Primeiro Capitão, Segundo Capitão e Sargento do Terno dos Carreiros, da esquerda para a direita.Fonte: Arquivo pessoal, 22 de setembro de 2013. Recorte e combinação de três fotografias.

Pelo fato de o Terno dos Carreiros ser de composição prioritariamente familiar, de

membros de uma mesma família, as pessoas imaginam que não é possível ingressar nas

fileiras do Terno, mas a restrição se impõe apenas para os cargos máximos internos ao Terno,

isto é, os Capitães. Estes são prioritariamente destinados aos membros da família dos

Carreiros, sendo permitido o ingresso externo somente quando nenhum membro da família

desejar ocupar o cargo de Capitão. Por outro lado, não há impedimento para que as pessoas

ingressem nas filas do Terno enquanto Dançadores; apenas se requer o cumprimento de uma

vocação de fé, nas palavras do senhor Onofre Ribeiro:

Os cargos são de tradição, sempre em família. Meu avô passou para meu pai, meupai passou para meu tio, meu tio passou para meu irmão, e assim estamos até hoje.Por exemplo, se hoje ou amanhã eu falecer, aí o segundo capitão pode escolheroutro. O primeiro capitão já entra escolhendo o segundo capitão. Tem que ser umapessoa da família para ocupar o cargo de primeiro ou segundo capitão. Enquantoexistir um Carreiro, o terno tem que se chamar ‘Carreiro’. A linha de frente mesmo ésó a família. Agora, aqueles que querem entrar no terno, dançar, cumprir umapromessa, ficam na fila. Primeiro os Carreiro, para entrar depois aqueles que queremcumprir uma promessa, ou senão, quer participar do terno porque achou algumacoisa interessante, então, já têm um lugar deles reservado na fila. Geralmente quementram são pessoas que se interessam ou que têm alguma vocação de cumprir umapromessa, porque recebeu alguma graça. (Entrevista dada à autora, realizada em 25de abril de 2014)

A vestimenta padrão, ou “farda”, usada pelos Dançadores do Terno dos Carreiros é

composta por uma camisa e uma calça, basicamente, cuja cor corresponde a um tom marrom-

claro, semelhante ao da farda utilizada pela Polícia Militar de Goiás. A cor, de acordo com o

senhor Onofre, simboliza o fato de os Dançadores fazerem parte de um mesmo Exército, o

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Exército de Nossa Senhora do Rosário. Conforme ele comenta, a farda não tem por objetivo

recordar o período ou a condição de escravidão.

Tem nada a ver com a questão dos escravos. A cor da farda representa que somossoldados de Nossa Senhora. Você não vê a Polícia de Goiandira, do Estado de Goiás,em todo lugar a farda não é amarela? Então meu avô falou que a farda seria amarela,que é o verdadeiro soldado de Nossa Senhora. (Entrevista dada à autora, realizadaem 25 de abril de 2014)

Figura 8. Esquema com a estrutura mínima de formação do Terno dos Carreiros.Fonte: Arquivo pessoal.

Além da farda, há ainda um capacete utilizado pelos Dançadores, confeccionado

artesanalmente, com faixas coloridas bordadas nele. O Primeiro e o Segundo Capitães

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utilizam casquete ao invés deste capacete. A faixa componente da farda tem um modo singular

de ser disposta na farda. Este modo não permite que a faixa seja amarrada, como a um nó. A

faixa deverá se expor de modo a perceber que há liberdade, que não há impedimentos. Nas

palavras do senhor Onofre,

A roupa normalmente é composta também por um capacete enfeitado e bordadoartesanalmente com variadas cores somente o capitão e nem seu suplente usa ocapacete mas sim é utilizado o casquete de cor marrom-claro. E tem uma forma paraamarrar a faixa. Você deixa a faixa presa com um prendedor. Se você amarrou, vocênão tem liberdade. Qualquer coisa, olho gordo, inveja, …, pega você. Agora, se afaixa está presa no prendedor, você está livre, liberado. Mas, se você amarrouqualquer coisa no seu corpo (na sua farda), você está puxando alguma coisa de mal,negativa, para você. (Entrevista dada à autora, realizada em 25 de abril de 2014)

Figura 9. A farda do Terno dos Carreiros.Fonte: Arquivo pessoal, 25 de abril de 2014. Combinação de duas fotografias.

Os instrumentos utilizados pelo Terno dos Carreiros são caixas de batuque, sanfonas,

pandeiros e viola. As caixas de batuque são essencialmente artesanais, sendo confeccionadas

de maneiras diferentes para os adultos e para as crianças. Os pandeiros também são revisados

artesanalmente. O senhor Onofre comenta que:

As caixas são feitas de couro de vaca mais grosso para dar um som mais forte, estassão levadas pelos adultos. As caixas das crianças são feitas por um couro de vacamais fino para ter um som menos forte. As caixas são quadradas; normalmente acaixa é pintada com spray da cor amarela e usam também sanfonas, pandeiros eviolas. Nas bordas dos pandeiros, são colocadas tampas de ferro para fazer barulhode chocalho. (Entrevista dada à autora, realizada em 25 de abril de 2014)

Por fim, dispomos uma linha do tempo dos Capitães do Terno dos Carreiros, listados a

seguir na ordem em que ocuparam o posto de Primeiro Capitão do Terno: José Ribeiro, o

fundador; José Ribeiro Filho; Rosemar Ribeiro, conhecido como “Negrinho Carreiro”; Aldair

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Ribeiro, conhecido como “Bila”; Onofre Ribeiro, conhecido por “Bolô”; e, atualmente,

Amélio João Ribeiro, conhecido por “João Amélio”.

Figura 10. Esquema com linha de tempo dos Capitães do Terno dos Carreiros. 4

Fonte: Arquivo pessoal.

4 O senhor Amélio João Ribeiro exerce efetivamente o posto de Primeiro Capitão desde, pelo menos, 2011.Não há registro apontando a data em que ele realmente assumiu este posto, mas, segundo alguns membrosdo Terno dos Carreiros e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Goiandira, ele está no posto há, nomínimo, três anos.

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3.5 A Coroa do Rosário e as Rainhas da Coroa

A Coroa do Rosário é a coroa simbólica para o Reinado, utilizada para a coroação do

Rei Congo e da Rainha Ginga. Em Goiandira, nos primórdios da instauração da Congada, não

há relatos sobre como era composta esta coroa, se era, de fato, uma coroa com as mesmas

aparências de uma coroa real ou se era uma coroa improvisada.

O senhor Onofre conta que, anteriormente à emancipação de Goiandira enquanto

Município, não havia coroa, de fato, na festa. A coroa foi doada pelo primeiro prefeito de

Goiandira, Absay Martins Teixeira:

Não tinha coroa. Então o prefeito de Goiandira, o primeiro prefeito de Goiandira, foiao Rio de Janeiro, adquiriu esta coroa e a entregou nas mãos da minha avó. E disse:‘De agora em diante, a guarda da Coroa é da senhora e de sua família. Estão aquitodos os documentos’. (Entrevista dada à autora, realizada em 25 de abril de 2014)

Não obstante, esta doação também envolve esforço realizado pelos integrantes do

Terno dos Carreiros, em específico a avó de dona Terezinha Ribeiro, dona Honória Antônia da

Paixão, que trabalhava para o referido prefeito. Desde a obtenção desta coroa, a

responsabilidade sobre ela é devida aos integrantes da família Ribeiro, que compõe o Terno

dos Carreiros, não se admitindo o deslocamento desta responsabilidade para outras pessoas.

Dona Tereza tomou para si a responsabilidade de mantê-la íntegra, devido ao esforço

empreendido para obtê-la:

Minha avó, mãe da minha mãe, mandou essa coroa vir do Rio de Janeiro, trabalhouna casa dos Martins, não lembro se foi o Absay ou se foi o irmão do Sinfrônio. Elatrabalhou e doou a coroa para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Ela,depois, não pôde acompanhar, faleceu, e minha mãe se tornou rainha, depois foiminha prima, depois foi eu. Eu levei a coroa para São Paulo para reformar, para darum banho de prata nela, porque a coroa estava aí e ninguém tomando providênciaspara mandar arrumar a coroa. (Entrevista dada à autora, realizada em 10 de setembrode 2013)

O zelo empenhado por dona Tereza, entretanto, foi alvo de críticas severas em meados

da década de 1950, pouco depois de a Congada se deslocar para a igreja Católica Brasileira. A

organização geral da Congada, na época, criticou duramente dona Tereza pela atitude tomada.

Nas palavras de Tereza,

Aconteceu este mesmo episódio neste mesmo ano mesmo (1956), eu tinha levado acoroa para São Paulo para fazer uma reforma na coroa, e eles pegaram e juntaram oscapitães, o pessoal influente na cidade, me chamaram lá, me humilharam demais,porque eu tinha levado a coroa para São Paulo para poder arrumar. o ‘Jerominho’pegou e falou para mim assim: ‘com ordem de quem você levou a coroa para SãoPaulo?’. Estavam os capitães, estava o ‘José da Barba’, na época ele era general, o‘José da Barba’, os lá da igrejinha. Ele era general, estava o compadre ‘Negrinho’,estava o ‘Nenzico’, estavam os capitães... eles fizeram um ‘zangueiro’ e mechamaram lá para me dar um sermão. Aí eu falei para ele. Eu levei a coroa para São

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Paulo para reformar, para dar um banho de prata nela, porque a coroa estava aí,ninguém tomando providências de mandar arrumar a coroa. Na hora que estavamfazendo a reunião, não ia ter festa, porque a coroa não estava aqui, e tinha umasenhora daqui chamada Norvina, que o dia que cheguei e desci do trem na estação,ela estava lá e falou pra mim: ‘o povo está em tempo de acabar com seu irmão,porque você levou a coroa para São Paulo e se você mandasse pelo correio os padrespegavam a coroa e não ia ter mais festa’. Um diz-que-diz, que aqui rola é issomesmo. Aí peguei e trouxe a coroa e falei para ele: ‘olha, eu levei a coroa para SãoPaulo, porque a coroa estava aqui, precisando duma reforma, precisando dar umbanho de prata, ela é muito antiga, ela não tem valor monetário, mas é um valor derelíquia, de antiga, que ela é antiga, e tem que mandar consertar ela, fui em muitosourives que não tinham mais o modelo daquela coroa para poder consertar. Aí eulevei a coroa não foi para fazer maldade, não fiz mesmo, foi para conservar acoroa!’. E depois, quando eu cheguei em casa, eu chorei bastante, porque eles mehumilharam parando no meio da rua, e eu vim embora rua afora com o estandarte namão. Chorei, chorei, chorei, e vinham na minha cabeça essas mensagens: ‘Choranão. Não foi por sua causa que não teve a festa. Foi por outros motivos que nãohouve a festa. Você não tem culpa de nada.’. Aí parei de chorar e não chorei mais efui embora para São Paulo e não voltei mais. (Entrevista dada à autora, realizada em10 de setembro de 2013)

Além disso, com o conflito gerado entre a igreja Católica Romana e a Congada, dona

Tereza relata ainda que, após esta situação, a Coroa do Rosário sob sua posse não foi cedida

para a Congada enquanto a Festa de Nossa Senhora do Rosário não passou a ser realizada

junto a igreja Católica Romana. No ponto de vista defendido por Tereza, a festa, como um

todo, trata-se de devoção, e a movimentação para a igreja Brasileira feria a tradição da

família:

Desentendimento que os padres franciscanos tinham uma conduta em relação a ternode congo. Eles achavam que era carnaval. Daí, os padres resolveram que não iriammais celebrar a missa, não iriam fazer mais a festa mais lá em cima, então o pessoalresolveu resolveram trazer um padre brasileiro e fazer a igreja verde, lá onde é aigrejinha hoje, onde é a igrejinha brasileira. Inclusive a festa foi até muito bonitanessa época, e aí ficou a festa lá. Ninguém mais dançou lá (junto à Matriz), menos onosso terno, o terno dos Carreiros, que não dançou lá em baixo. Depois que mudou,tudo, só depois, bem depois que estavam lá, que a gente foi dançar lá na festa. Tantoé que a coroa nossa não participava lá da festa, eles arrumaram outra coroa, o ReiCongo, que era seu Acácio e a dona Joaquina, ficaram lá o Demésio, o outro guardacoroa, tudo ficaram lá. Até as espadas que eram do pai do Demésio ficaram lá, nãotrouxeram nada para cá. E tanto é que a nossa coroa não participou da festa daigrejinha, a gente não participou. A minha mãe é muito religiosa, da igreja católicaapostólica romana, aquela lá de cima, então a gente achou por bem (não participar).Depois a gente aderiu também, meu irmão aderiu e foi dançar. Só que ele tinhamuito medo de a gente trazer muita influência lá no meio, e acabar com a festa de lá,e trazer a festa de volta pra cá. (Entrevista dada à autora, realizada em 10 desetembro de 2013)

Após este período, na década de 1970, a curiosidade do padre Lino Dalla Poza a

respeito de a Festa de Nossa Senhora do Rosário ser realizada junto à igreja Católica

Brasileira culminou na construção de uma capela dedicada ao pessoal da Congada e na

realização da festa do Rosário junto à igreja Católica Romana novamente. Somente depois

disso, o Terno dos Carreiros voltou a dançar junto à Congada e também a Coroa do Rosário

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sob posse deles. Dona Tereza demonstra, em todos os aspectos, que a realização desta festa

está diretamente relacionada com a fé das pessoas, e, em especial, a dela e a dos demais

integrantes do Terno dos Carreiros. Nas palavras de Tereza,

Figura 11. Esquema com linha de tempo das Rainhas da Coroa.Fonte: Arquivo pessoal.

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Meu irmão mais velho, que era capitão do terno dos Carreiros, o Negrinho Carreiro,foi lá no casamento da minha irmã, lá em São Paulo, e eu falei para ele assim: ‘eutinha promessa de fazer a Festa de Nossa Senhora do Rosário quando minha mãeesteve doente, do último parto dela, que ela teve uma hemorragia muito grande, defazer a Festa de Nossa Senhora do Rosário.’. Aí ele pegou e falou para mim quetinha reunido a Irmandade, e o padre Lino tinha perguntado para ele, viu passar ocortejo da festa do Rosário lá para a igrejinha, e perguntou por que tem essa festa láem baixo e essa festa aqui não tem. Aí, o pessoal contou a história para o padre Lino,o padre Lino reuniu com seu José Marcos, o pessoal da Irmandade de NossaSenhora do Rosário, e o pessoal da Irmandade se reuniu e fez a festa em 1971. Aí eufalei para o meu irmão que eu queria que voltasse a fazer a festa. (Entrevista dada àautora, realizada em 10 de setembro de 2013)

Com isso, as Rainhas da Coroa são escolhidas junto ao Terno dos Carreiros. Em geral,

também as Rainhas deveriam ser escolhidas pela comunidade presente na Irmandade de

Nossa Senhora do Rosário, mas devido à tradição, as Rainhas são indicadas diretamente pelo

Terno dos Carreiros.

Não há um período que as Rainhas devam cumprir junto à Congada; este período é

razoavelmente volátil. Na prática, as Rainhas são empossadas e, depois de certo tempo,

geralmente com um casamento, deixam o cargo, não sendo, portanto, um cargo vitalício como

o de Capitão.

Desde a obtenção da Coroa, as Rainhas da Coroa são listadas na seguinte ordem:

Honória Antônia da Paixão, avó de Tereza; Antônia Ribeiro, mãe de Tereza; Maria Helena

Ribeiro, irmã de Tereza; Tereza Ribeiro; Maria Helena Ribeiro; Marli Antônia das Graças,

filha de Rosemar Ribeiro, o “Negrinho Carreiro”; Ângela Ribeiro, irmã de Marli; Consolação

Aparecida Ribeiro; Juliana Ribeiro; Cecília Ribeiro; Lorena Ribeiro, filha de Ângela; Jeane

Ribeiro, filha de Ângela; e, atualmente, Beatriz Ribeiro, neta de Tereza.

3.6 Um ato de fé do Exército de Nossa Senhora do Rosário

Os integrantes do Terno dos Carreiros, durante sua participação na Festa de Nossa

Senhora do Rosário, se apresentam ali não como meros dançantes, mas como pessoas que

demonstram um certo apreço e devoção pelos santos a quem se cultua e festeja, Nossa

Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Esta devoção é impressionante no sentido

de que perdura até o presente, e isto é demonstrado por eles durante as conversas e entrevistas

com eles realizadas ao longo da observação do presente trabalho.

Para eles, inclusive a maneira de se realizar a Congada, antigamente, era encarada

como ato próprio da fé dos congadeiros junto à igreja Católica Romana. Nas palavras de dona

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Tereza, a visão de fé se explica na determinação que os congadeiros tinham em realizar a

festa:

Na época que ‘quando eu me entendo por gente’, lembro bem que meus tios, quandochegava na sexta-feira, vinham da roça, às vezes antes da sexta-feira, vinham com ocarro de boi, as coisas tudo, alugavam casa aqui e ficavam aqui até acabar a festa.Naquele tempo não se tinha ajuda de ninguém: eles compravam as roupas deles,tinham aquela fé e aquela devoção e dançavam com muita fé mesmo. Quatro horasda manhã soltavam morteiro na Matriz e o meirinho do terno, sargento, que falo, iade casa em casa chamar os soldados que não tinham chegado para dançar congo.Quatro horas da manhã, para você ver a fé que as pessoas tinham. Não chegavamatrasados na missa em nem um minuto: se a missa era nove horas, quinze para asnove já estava todo mundo dentro da igreja. (Entrevista dada à autora, realizada em10 de setembro de 2013)

Por outro lado, esta visão carecia de uma conduta acolhedora por parte da mesma

igreja Romana. Os congadeiros entendem isto como uma divergência de caráter cultural, onde

há choque de preceitos. O senhor Onofre entendeu a situação da seguinte forma:

Houve um ‘entreveiro’ entre os padres americanos e a Congada, aí a Congada seafastou, porque disseram que não iriam mais deixar a Congada fazer a festa lá emcima porque estava começando a atrasar para o horário da missa e a missa era daCongada. E eles queriam que toda a Congada participasse da missa. (Entrevista dadaà autora, realizada em 25 de abril de 2014)

Outro fator importante para este movimento de devoção é a dificuldade em que os

congadeiros viviam na época. Até mesmo alimentação e vestimentas eram algo complicado

para se obter à época, em especial antes da década de 1960. Vinham Ternos de Congo de

outras cidades para endossar, e possivelmente tornar mais atrativa, a festa do Rosário em

Goiandira. À época, praticamente todos os integrantes da Congada eram pessoas com uma

dificuldade financeira muito severa, eram pobres, literalmente, mesmo trabalhando.

Entretanto, a fé deles foi muito forte, a ponto de ser praticamente o único motivo para manter

a tradição da festa, visto que havia motivo relevante para sua suspensão. Dona Tereza relata a

situação:

“Na minha casa, depois que meu pai decidiu sair do terno do vovô, ele virou osegundo capitão do Moçambique, e era o terno Moçambique muito grande, vinhampessoas de Catalão ajudar eles, sem interesse nenhum. Quantas vezes no domingo àtarde, na minha casa mesmo não tinha nem o de comer! E a casa cheia e o pessoaldançando com aquela fé viva, e a minha mãe preocupada porque não tinha comidapara aquele povo comer. Na segunda feira estava todo mundo lá para aquela hora,todo mundo sabia, quatro horas da manhã, no dia da festa, o som já estava na rua.”(Entrevista dada à autora, realizada em 10 de setembro de 2013)

Com efeito, quando questionada a respeito da motivação para o deslocamento de

vários dos Dançadores do Terno dos Carreiros para Goiandira, visto que muitos deles não

residem na cidade, no intuito de participar da Festa de Nossa Senhora do Rosário, e de

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mostrar sua devoção por Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, dona

Tereza afirma categoricamente que não há outro motivo além da fé:

Fé, fé, fé. Nada mais do que fé. Fé na minha Nossa Senhora, na minha mãe, no Paido Céu e na minha mãe Maria Santíssima. Faço tudo, tudo, tudo, tudo. Gosto de virdesde o primeiro dia da novena, não gosto de perder nem um momento de NossaSenhora. Se teve três pessoas dentro da igreja, estou lá. Agora não sei se vouconseguir andar no sol por causa da minha pele, mas eu vou mais devagar. Éimportante levar a bandeira, porque a gente está louvando São Benedito, SantaEfigênia e Nossa Senhora do Rosário, agora acho importante que tenha os trêssantos para a gente estar louvando. (Entrevista dada à autora, realizada em 10 desetembro de 2013)

Do mesmo modo, quando o senhor Onofre comenta a respeito da descrição da farda do

Terno dos Carreiros, ele realça a questão da fé, o motivo pelo qual todo ano eles se reúnem

em orações e festejos. Reavendo a fala do senhor Onofre:

A cor da farda representa que somos soldados de Nossa Senhora. Você não vê aPolícia de Goiandira, do Estado de Goiás, em todo lugar a farda não é amarela?Então meu avô falou que a farda seria amarela, que é o verdadeiro soldado de NossaSenhora. (Entrevista dada à autora, realizada em 25 de abril de 2014)

Atualmente, a situação financeira de muitos dos integrantes da família Ribeiro

melhorou em um patamar bom para conceder mais benefícios à geração presente, dos filhos e

netos dos senhores Onofre e Tereza. Dos Dançadores, boa parte deles é aposentado, pois são

os mais velhos no Terno. Há alguns Dançadores que exercem outras funções, como a de

mecânico, ou trabalham em confecções, em restaurantes, como caminhoneiros, em artesanato,

há um que é operador de patrola na Prefeitura de Goiandira, há professores, estudantes, enfim.

Figura 12. Foto da Família Ribeiro, em 1973.Fonte: Arquivo pessoal de Marli Antônia das Graças.

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Não obstante, os integrantes do Terno dos Carreiros não impedem outras pessoas de

participarem junto ao Terno. Apenas requerem delas que as mesmas entrem no Terno com o

espírito de fé e de devoção, demonstrando, com isso, um bom comportamento perante os

demais; com isto, basta apenas entrar em contato com os membros do Terno para que possam

ser recebidas. As pessoas ingressantes passam por alguns ensaios antes da festa para que

aprendam os cantos e a dança no Terno.

Figura 13. Esquema genealógico dos membros ocupantes dos cargos de Capitão e de Rainha da Coroa.Fonte: Arquivo pessoal.

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3.7 O cantarolar e o caminhar na festa

Durante a festa, o movimento inicial começa a partir da Alvorada, em que todos os

Ternos se reúnem para iniciar os festejos. Na sexta-feira, 13 de setembro, às quatro horas da

manhã, aconteceu o encontro dos Ternos Carreiro, Marinheiro, Romano, Mirim, Moçambique,

Gregoriano, Catupé Penacho e Vilão São Benedito, para a Alvorada. Para os congadeiros, é

considerada o momento de abertura oficial da festa, anunciando os nove dias de festa que

estão para vir. Em sua maioria, os Ternos eram compostos por crianças, adolescentes e muitas

pessoas negras; porém, havia pessoas não negras que também eram Dançadores nos Ternos.

No total, havia 85 pessoas.

Figura 14. Foto na Alvorada, em frente a Barraca da festa.Fonte: Arquivo pessoal, 13 de setembro de 2013.

A Capela Nossa Senhora de Fátima foi aberta para receber os congadeiros para a

realização de orações e avisos. O General da Congada avisou aos presentes como seria a

organização das novenas e que Terno era responsável para cada dia da novena. Logo em

seguida, os Ternos se deslocaram para a Barraca da festa, que fica na Avenida principal da

cidade, Avenida Agostinho Martins, junto com seus instrumentos para o café que seria servido

pelos festeiros, a saber, pão com manteiga, café e leite.

Durante este prazo, os integrantes de todos os Ternos se interagem bem uns com os

outros. Como eles já são conhecidos na cidade, criam, também com isso, um espaço de

sociabilidade entre eles.

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Logo em seguida, os Capitães dos Ternos sinalizam por apito para que os Ternos se

organizem para iniciar a saída da Alvorada. O apito, segundo o General da Congada, Antônio

Pereira Neto, é instrumento que demonstra autoridade por parte de quem o utiliza, mostrando

também o responsável pela organização dentro de um Terno. Somente os Capitães de Terno

possuem apitos.

Cada Terno sai, um de cada vez. Porém, o Terno responsável pela abertura da Alvorada

é o Terno Moçambique, e saiu primeiro. É este o Terno responsável, também, pela Coroa de

Nossa Senhora do Rosário. Ao sair para a Alvorada, cada Terno passa primeiro na frente dos

festeiros e os reverenciam, em sinal de agradecimento, saindo, logo em seguida, para as ruas

da cidade. Todos os Ternos andam pelas ruas da cidade e cada um para na casa de seu

Capitão, para ali prestar agradecimentos a Nossa Senhora do Rosário e, também, repassar

informações aos Dançadores.

O Terno dos Carreiros se apresentou composto por pessoas negras, em sua maioria, e

de mais idade. Eram onze os integrantes naquele dia pois ainda viriam mais pessoas de outras

cidades, como São Paulo, Goiânia e Anápolis, para integrar o Terno. Os seus instrumentos

eram pandeiros, tambores, sanfona e violas. Os tambores são confeccionados artesanalmente

pelos próprios integrantes do Terno.

Figura 15. O Terno dos Carreiros em caminhada próximo a igreja Matriz de Goiandira.Fonte: Arquivo pessoal, 22 de setembro de 2013.

Durante todo o trajeto, o Terno cantou músicas compostas por seus próprios

integrantes, tais como: “Salve São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário”.

Suas batidas são muito lentas e seus passos, também, o que os torna diferente dos demais

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Ternos, que possuem ritmo e batida mais acelerados e agitados. Suas vestimentas, ou “fardas”,

são de cor marrom com uma fita vermelha na cintura.

Consolação Aparecida Ribeiro, moradora da cidade de Goiandira, integrante e

Dançadora do Terno dos Carreiros, fez a confecção das roupas. A roupa, segundo ela, tem a

cor marrom para lembrar os escravos – de acordo com a visão do pai dela, Rosemar Ribeiro –

e a fita vermelha é um acessório. Por outro lado, a fita possui um jeito especial de ser

amarrada: seu laço tem que ficar voltado para dentro da farda, pois assim o Terno estará

protegido de “algo ruim”. Outro acessório é o capacete, confeccionado por dona Leonor

Ribeiro, para os Dançadores do Terno. A costura deles é artesanal e são compostos por fitas

coloridas. Porém, no dia da Alvorada, os Ternos não vestem suas fardas e nem seus

acessórios, pois estes são usados somente no domingo e na segunda, próximo ao

encerramento da festa. Os demais Ternos também tocam músicas compostas pelos integrantes

do Terno dos Carreiros.

Após a Alvorada, o Terno dos Carreiros parou na casa de dona Tereza Ribeiro da Silva

para encerrar a caminhada da Alvorada. Tereza possui uma casa localizada na avenida

Ildefonso Telles, próximo à entrada da cidade. Nesta avenida, encontram-se casas de porte

simples, em que as pessoas não possuem muito poder aquisitivo. Ali, o Segundo Capitão

senhor Onofre Ribeiro apita, de modo a sinalizar aos integrantes que a caminhada se encerra

ali.

No mesmo dia, às 15h30min, compareci à casa de dona Vicentina de Fátima dos

Santos, que fica no bairro Vila Mariana, em um setor conhecido como “Praça do Congo”. A

praça é uma homenagem aos congadeiros, e a maioria dos Dançadores mora na região.

Antigamente, tinha uma caixa semelhante às utilizadas pela Congada, simbolizando a

presença da mesma na praça, como conta o senhor Antônio Pereira Neto, em entrevista dada à

autora em 19 de junho de 2014. A Praça do Congo é considerada um bairro periférico da

cidade e composto por casas simples.

Vicentina é capitã do Terno Moçambique e é a única mulher capitã de um Terno. Na

casa de dona Vicentina, foi rezado o terço da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, São

Benedito e Santa Efigênia, para todos os Ternos; porém, quase nenhum apareceu. O Terno

Moçambique é o responsável em buscar o Mastro e a Bandeira da festa. Após o terço, o Terno

Moçambique prepara para a saída pelas ruas, mas, antes, eles realizam um ritual próprio,

fazendo várias orações e, em seguida, bebendo leve porção de um vinho, para fortificar as

cordas vocais dos Dançadores. Dona Vicentina me explicou que a imagem de Nossa Senhora

do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia é peregrina durante a realização da festa. A

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imagem fica na igreja durante 10 dias; fora da festa, ela fica todas as sextas-feiras nas casas

das pessoas da cidade para oração.

Apos o ritual, a capitã do Terno Moçambique apita, sinalizando aos integrantes para

que se organizem para iniciarem a saída. Os instrumentos do Terno Moçambique são

tambores, reco-recos e patogamas. Os patogamas são feitos de folha de zinco, geralmente

coloca-se chumbo ou pedrinhas dentro do patogama, de modo a fazer um barulho de chocalho

quando do andar dos congadeiros. O patogama é amarrado nas pernas dos Dançadores. Todos

os instrumentos trazem características e sonoridades oriundas da África. Sua batida é mais

forte e agitada. A capitã do Terno fica na frente do Terno e carrega o bastão e o apito como um

sinal de respeito e autoridade.

Em seguida, o Terno Moçambique se dirige à casa de Elaine Aparecida Pereira

Ribeiro. Elaine reside em uma área da cidade em que os moradores possuem razoável poder

aquisitivo. Ela é filha do Presidente da Irmandade, que coincidentemente é o General da

Congada, para buscar o Mastro. Elaine era a Mordomo do Mastro, responsável por enfeitar o

Mastro.

Após buscar o Mastro, o Terno Moçambique segue para buscar a Bandeira na casa de

Raquel das Graças de Oliveira, que era a Mordomo da Bandeira. Raquel reside em um setor

de moradias mais simples, onde os moradores não têm um poder aquisitivo razoável, podendo

ser considerado uma área periférica da cidade. Quando o Terno Moçambique foi buscar a

bandeira, encontrou com o Terno Catupé. Estes abriram espaço para o Moçambique passar no

meio deles e logo em seguida vieram atrás, o que mostra ser somente o Terno Moçambique o

responsável em buscar o Mastro e a Bandeira.

Normalmente, quando o Terno Moçambique passava por uma linha férrea, os

integrantes todos viravam as costas. Na prática, este gesto é seguido por todos os integrantes

da Congada: para eles, antigamente acreditava-se que, ao passarem viradas de costas para a

linha férrea, as pessoas ganhavam proteção contra “coisas ruins”, como “mau olhado”, inveja,

desavenças, dentre outras.

O Terno Catupé é composto por adolescentes. As batidas do Terno eram muito fortes,

com ritmo de dança que contagia a todos, e o Terno é considerado o mais bonito na Congada.

Seus instrumentos são tambores de couro de vaca e, para a dança, utilizavam-se de certo tipo

de bastão.

Elaine e Raquel acompanharam os Ternos de Congo até sua chegada na Capela Nossa

Senhora de Fátima, para dar abertura ao primeiro dia da Novena, cujo lema de abertura foi:

“família, escola da fé, construção de valores humanos e cívicos”.

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Durante a novena, cada Terno estava responsável a cada dia da semana. Neste dia,

sexta-feira, o Terno responsável pelos cantos e leituras foi o Terno Mirim, que contou a

história do Terno. O Terno dos Carreiros não pôde participar durante o período da tarde, pois,

por serem pessoas de mais idade, eles já estavam razoavelmente cansados por conta da

Alvorada. Por outro lado, à noite, na novena, todos participaram.

Figura 16. Recorte do Mapa de Goiandira: Descrição resumida do trajeto percorrido em função do Mastro e daBandeira.

Fonte: Mapa de base renderizado. Mapas de Goiandira fornecidos pela Prefeitura e pelo Google Maps.

Após as orações do dia de novena, a Bandeira com a imagem dos santos a quem são

prestadas as devoções foi levada para a parte externa da Capela. Neste momento, a Congada

está toda reunida para prestar homenagens aos santos. Os Ternos dançam, tocam seus

instrumentos e cantam, ao redor do Mastro que é erguido. Em seguida, ocorre a queima de

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fogos. “Não há outro momento tão carregado de alegria em toda a festa, de música, de danças

e cantos” (BRANDÃO, 1985, p. 24). Assim, a Congada está comunicando a todos o início da

grandiosa festa: este é o momento do marco. “O levantamento do mastro é entendido na

pesquisa como sendo o momento simbólico significativo, principalmente para os congadeiros,

pois personifica a demarcação do território sagrado da festa” (KATRIB, 2009, p. 99).

No domingo, 22 de setembro, bem cedo os Ternos começaram a se reunir nas casas de

seus Capitães para começarem a dançar. Neste dia, a reunião foi na casa de dona Tereza

Ribeiro da Silva. Ali, além dos integrantes do Terno residentes na cidade de Goiandira,

estavam os familiares de outras cidades, como Anápolis, São Paulo, Caldas Novas e Goiânia,

que vieram dançar na Congada no Terno dos Carreiros. Na casa de dona Tereza, foram feitos

os últimos preparativos. Os integrantes receberam suas faixas e pegaram seus instrumentos: a

caixa, o pandeiro, o violão e a sanfona.

O Terno dos Carreiros, antes de sair para o Barracão da festa na igreja Matriz, onde

seria servido o café da manhã para a Congada, o Segundo Capitão, Onofre Ribeiro, distribuiu

para os integrantes do Terno uma folha de Guiné. Maria Cristina da Silva, Dançadora do

Terno, comenta que esta folha protege os Dançadores e evita “mal olhado” das pessoas. O

senhor Onofre Ribeiro também comenta a respeito da folha de Guiné como uma proteção:

A folha de Guiné é uma proteção para espantar os males. Muitas pessoas, só aoolharem você, fazem você sentir uma dor de cabeça, uma dor de dente, etc.. Se vocênão tiver consciência (percepção), é a isto que ela combate. Só se joga fora a folhadepois que termina a festa; a folha a gente joga na água e deixa a água levar, ela levaos males que você recebeu aqui. A folha fica sequinha. Pode chover, fazer sol, torratudo mesmo, cai tudo ali (na folha). (Entrevista dada à autora, realizada em 25 deabril de 2014)

O Capitão Amélio João Ribeiro, de posse do bastão, apita sinalizando aos dançadores

para se organizarem para a saída.

Antes de sair, o Terno canta à Santíssima Trindade: “Em nome do Pai, do Filho e do

Espirito Santo, …”; em frente a bandeira do Terno, que é a imagem de Nossa Senhora do

Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. A bandeira do Terno tem uma armação de madeira

que é conhecida como estandarte.

O tecido da bandeira de cada Terno é da cor usada pelo Terno com a estampa de Nossa

Senhora, São Benedito e Santa Efigênia; ela é colocada na frente do Terno. Os Ternos

possuem a seguinte formação: na frente, vêm as Bandeirinhas, um conjunto de meninas que

desfilam na frente do Terno, usam o ritual do canto, danças e passos, e são uniformizadas; as

do Terno dos Carreiros vestem uma saia marrom claro, camisa marrom clara e um chapéu

com rosas vermelhas, de cor amarela; logo em seguida vem o Primeiro Capitão, ele assume o

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comando; necessariamente possui as mesmas qualidades técnicas, conhece e sabe os

procedimentos a serem seguidos na dança; o Segundo Capitão possui as mesmas funções do

Primeiro Capitão; vem, logo após, o Sargento ou Meirinho, organizando as filas, o ritmo de

toque dos instrumentos, atendendo às determinações dos Capitães do Terno, fazendo a guarda

das crianças; e, por fim, os Dançadores, que são os membros de cada fila, tocando

instrumentos e cantando.

O Bastão é uma peça abençoada e simboliza a força e o respeito do comandante. O

apito serve para alertar os Dançadores para iniciarem uma dança, se reunirem ou se

silenciarem. O apito também é utilizado se o Terno estiver se apresentando, para dar ritmo. As

vestimentas dos dois Capitães são diferentes para serem melhor identificados. Estes são

responsáveis pelo andamento do Terno. Para alguém se tornar Primeiro Capitão é preciso ter

experiência na Congada, ter um bom comportamento social e religioso, devoção, ser

competente e ter controle do grupo, presença como liderança, capacidade e criatividade e ter

um vasto repertório, ter a capacidade de improvisar cantos dentro dos ritmos.

Figura 17. Rainha da Coroa e os Guardas coroa. Atrás estão o Rei e a Rainha do Congado.Fonte: Arquivo pessoal, 22 de setembro de 2013.

Em seguida, o Terno sai da casa de dona Terezinha para ir à Barraca da Matriz, onde

todos os Ternos tomariam o café da manhã. Ao chegarmos lá já havia alguns Ternos tomando

café. Quando os Ternos chegam, eles ficam de frente às pessoas que preparam o alimento para

eles e cantam músicas de “agradecimento” pela alimentação. O Terno Moçambique tem uma

mesa separada em todas as refeições, porque com ele ficam a Família Real e a Rainha da

Coroa. O café foi bastante reforçado com pão, roscas, café e leite, e as refeições foram

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realizadas com trabalhos voluntários de pessoas da cidade e de doações de alimentos dos

moradores.

Após o café, os capitães de todos os Ternos apitam para que seus Dançadores se

organizem para a saída da Barraca para buscar a Rainha e a Coroa. Seguindo o mesmo ritual,

os Ternos ficam de frente, novamente, às pessoas que fizeram o café da manhã para,

novamente, “agradecer”. Os Ternos não viram as costas para a Barraca para sair: permanecem

de frente, mas andam para trás.

Em seguida, todos os Ternos, sob o comando do General Antônio e dos Capitães dos

Ternos, se deslocam juntos até a casa de dona Tereza Ribeiro para buscar a Rainha da Coroa.

A rainha da Coroa é Beatriz Brito Silva, neta de Tereza, estudante, residente em São Paulo.

Figura 18. Recorte do Mapa de Goiandira: Descrição resumida do trajeto percorrido em função da Coroa eRainha da Coroa.

Fonte: Mapa de base renderizado. Mapas de Goiandira fornecidos pela Prefeitura e pelo Google Maps.Como explicado antes, a Coroa da festa sempre girou em torno da família de dona

Tereza Ribeiro, pois, segundo ela, para ser Rainha da Coroa tem que ser de família. A

primeira Rainha da Coroa foi a avó dela. Assim, todos os Ternos chegam na casa de dona

Tereza e a Rainha da Coroa, junto aos Guardiões acompanham o Terno Moçambique. A

Rainha da Coroa é responsável em conduzir a Coroa durante os principais momentos da festa.

Em nenhum momento ela pode deixar a Coroa sozinha: quem a carrega deve possuir sinais de

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veneração, responsabilidade, amor e devoção; pois esta Coroa é o símbolo da festa.

A Rainha é protegida pelos Guardas coroa ou Guardiões: estes são responsáveis pela

segurança da Coroa e da Rainha; cada um deles usa uma espada para a escolta. Quem fazem

esta proteção são um rapaz e uma senhora, esta última residente na cidade, o senhor Elves

Rosemar da Silva, residente em Uberlândia, e a senhora Dagmar Ferreira da Silva, moradora

da cidade de Goiandira. A espada possui dois posicionamentos: a guarda aberta, quando, em

qualquer momento, os Ternos ou devotos podem chegar e saudá-la; e a guarda fechada, onde

não pode ser saudada, geralmente ocorrendo quando a Coroa está em movimento.

Em seguida, os Ternos seguem até a casa de dona Julieta. Julieta reside próximo à casa

de dona Tereza, ainda na avenida Ildefonso Telles, em localização mais próxima da entrada da

cidade. É ela quem fica com a Coroa todos os anos. A Rainha da Coroa entra com o Terno

Moçambique para pegar a Coroa. Como dito, a Coroa é o mais importante símbolo da

Congada, peça em prata com alguns brilhantes, e foi passada de geração em geração, sendo

considerada a Coroa de Nossa Senhora do Rosário. Após a Rainha pegar a Coroa, cada

integrante de cada Terno pede a proteção para a Coroa de Nossa Senhora tocando e beijando a

Coroa. Na medida que cada Terno ia pedindo a bênção, os Ternos se organizavam para saírem

juntos para a Capela, participarem da missa da Congada.

A Rainha da Coroa e os Guardiães da Coroa vestem bonés, jaquetas, camisas, calças

de brim brancas, tênis, sapatos e meias brancas. Na escolta por eles feita, é usada uma espada.

Cada uma como demonstração de segurança no cortejo. O Rei usa por uniforme: camisa e

calça de linho ou brim branco, túnica branca com capa azul em seda nas costas e Coroa na

cabeça.

Segundo o General da Congada, o Rei e a Rainha são escolhidos através de eleições

feitas pela Irmandade. Para se candidatar ao cargo de Rei a pessoa tem que participar

ativamente na igreja e pertencer a algum Terno de Congo. Segundo ele, a pessoa dá o nome

para a Irmandade e, em seguida, acontecem as eleições. Todos da Congada, com no mínimo,

16 anos, podem votar. Normalmente, o Reinado é feito pela família do próprio Rei, em que

sua esposa se torna também a Rainha da Congada. O Rei da Congada é o senhor Rubens Nei

Gomes e a Rainha, sua esposa, a senhora Helena Maria Alves Gomes. A Rainha usa uma

coroa, veste roupa branca com capa de seda azul.

Após a missa, os Ternos voltaram para a Barraca de festas da Matriz para o almoço.

Chegando lá, ocorreu o mesmo ritual do café da manhã, com cânticos de agradecimento e

posicionamento frente a Barraca. Foi servido arroz, feijão, carne, salada e refrigerante. O

almoço foi feito também com doações de alimentos dos moradores da cidade.

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Após o almoço, cada Terno realizou visitas nas casas de moradores da cidade.

Normalmente, estas visitas são feitas a pedido dos próprios moradores, sem distinção de

classe social. Quando o Terno dos Carreiros chegava nas residências, era feito um lanche para

os integrantes, onde o espaço das residências se tornava um espaço de sociabilidade. Ali

trocavam conversas e experiências da caminhada do Terno, do cotidiano e outros assuntos

mais.

Quando saíam, o Capitão tocava o apito para a organização do Terno e as pessoas

cantavam: “Adeus, adeus, os Carreiros vão embora”. Foi assim a tarde inteira. Após as visitas,

o Terno dos Carreiros parou na casa do senhor João Vaz, que é Dançador do Terno. É ele o

Sargento do Terno, responsável por olhar se o Terno está organizado enquanto “dança” nas

ruas. Ele também possui um bastão. Em sua casa, o Terno canta músicas de agradecimento à

Bandeira de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Lá foi servido

também refrigerante. Depois disto, cada integrante voltou para sua casa. Ao todo o Terno dos

Carreiros contava com 31 pessoas.

Figura 19. O Rei e a Rainha da Congada.Fonte: Arquivo pessoal, 22 de setembro de 2013.

Durante a noite, os Ternos se encontraram na igreja Matriz para buscar a imagem de

Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, levando-a para a Capela Nossa

Senhora de Fátima, a fim de iniciar a procissão. As pessoas que levaram as imagens eram

pessoas devotas e moradores da cidade. Os Ternos desceram em procissão para a Capela atrás

das imagens. Enquanto as imagens passavam, as pessoas olhavam com olhar de admiração e

emoção fazendo seus pedidos para os santos. Participamos da novena e, em seguida, dirigimo-

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nos para a casa do senhor João Vaz para deixar os instrumentos.

No dia seguinte, o dia do encerramento da festa, segunda-feira, 23 de setembro, os

integrantes do Terno dos Carreiros se encontraram na casa do senhor João Vaz para pegarem

os instrumentos e cantar: “Em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo, …”; junto à

bandeira do Terno. O Terno saiu um pouco mais tarde devido ao cansaço. Em seguida, foram

para a casa do Presidente da Associação e General da Congada Antônio Pereira Neto, para

tomar o café da manhã oferecido por ele para todos os Dançadores. Todos os Ternos foram

para a casa do General e quando chegavam, cantavam: “meu general mandou me chamar”.

Também na casa do General, o Terno Moçambique possuía uma mesa para tomar o café

separado dos demais Ternos.

Apos o café da manhã, os Ternos saíram para as visitas nas casas de moradores da

cidade; estes moradores são de vários setores da sociedade e moram em bairros próximos a

igreja Matriz, à Capela Nossa Senhora de Fátima e na Avenida Agostinho Martins. Em cada

casa que o Terno visitava, as pessoas se alegravam e ficavam emocionadas com a visita do

Terno. Em todas elas, foi oferecido algum lanche. Essas visitas normalmente eram variadas,

algumas demoravam mais, outras em torno de meia hora, e fizemos visitas até a hora do

almoço.

Logo após as visitas, os Ternos voltaram para o Barracão de festas da igreja Matriz

para o almoço. O almoço oferecido foi arroz, feijão, carne, salada e refrigerante. O almoço foi

feito com a ajuda de doações e de voluntários para cozinhar. O Terno Moçambique ficava em

uma mesa separada para o almoço e as mesas já estavam arrumadas com forros, pratos,

refrigerantes com porções de arroz, salada, feijão e carne. Ficavam na mesa o Rei e a Rainha

da Congada e a Rainha da Coroa.

Após o almoço, o Capitão do Terno apita sinalizando aos integrantes para pegar os

instrumentos para sair e continuar as visitas. Antes de saírem, os Ternos ficaram de frente para

as pessoas que fizeram o almoço junto com os festeiros, e cantavam músicas para agradecer o

alimento. Após o almoço, continuamos nossas visitas para os moradores da cidade; as visitas,

em sua maioria, eram em casas de pessoas idosas. Fizemos visitas até fazermos a entrega da

Coroa.

Após as visitas, os Ternos voltaram para a Barraca de festa da Capela Nossa Senhora

de Fátima. Ali já se encontravam o Rei e a Rainha do Congado, os Guardiães e a Rainha da

Coroa em uma mesa. Juntamente estava a Coroa, esta é colocada dentro de uma bandeja de

prata com rosas em volta. A mesa em que ela fica tem de estar coberta com uma toalha

branca, e as espadas são colocadas ao seu redor. Todos os Ternos passaram na frente deles e

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dançaram.

Em seguida, foi oferecido pelos festeiros um lanche para a Congada. Após o lanche,

fomos com os outros Ternos para a casa dos novos festeiros, senhor Paulo Inácio e senhora

Fátima Pacheco Inácio, para fazer a entrega da Coroa, momento em que o festeiro velho faz a

entrega para o festeiro novo na casa do novo festeiro junto com a Rainha da Coroa e o Terno

Moçambique. Logo após, fomos com os festeiros à casa dos novos Mordomos da Bandeira e

do Mastro, senhora Maria Aparecida Gonçalves e senhor Rômulo Gonçalves da Silva,

respectivamente, moradores da cidade de Goiandira. A casa deles também fica nos arredores

da “Praça do Congo”, e são entregues a eles o Mastro e a Bandeira. Por fim, os Ternos, os

novos festeiros e o pároco responsável pelas comunidades da igreja Católica Romana de

Goiandira se dirigem à casa de dona Julieta, onde a Coroa permanece até a festa do próximo

ano. Neste momento, os Ternos se despedem da Coroa, muito emocionados, pedindo graças e

votos para o ano seguinte.

Após a entrega da Coroa, continuamos a fazer visitas. O Terno dos Carreiros visitou o

Asilo São Vicente e após a visita fomos para a Barraca de festa da Praça do Congo para a

janta que seria oferecida para a Congada. Ainda depois do jantar fizemos mais visitas.

A noite se aproxima e todos já estão cansados, mas ainda faltavam as despedidas. Após

as visitas, paramos na casa de dona Tereza Ribeiro para encerrar o dia. Ali, o Terno dos

Carreiros cantou músicas de seu repertório em louvor a Nossa Senhora do Rosário, São

Benedito e Santa Efigênia, e em seguida rezaram um pai-nosso e uma ave-maria como forma

de agradecimento por participarem da festa naquele ano. Mesmo com o semblante cansado,

todos estavam felizes por estarem ali e pediam, em suas orações, o retorno para o próximo

ano.

3.8 A organização e os momentos sociais e religiosos durante a Festa de Nossa Senhora

do Rosário

A Festa de Nossa Senhora do Rosário, como dissemos, é realizada toda segunda sexta-

feira do mês de setembro, sendo a abertura oficial da festa a realização da Alvorada. Durante

os nove dias de festejos, é realizada também a Novena em Louvor a Nossa Senhora do

Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Em 2013, a festa tinha por lema: “família, escola da

fé, construção de valores humanos e cívicos”.

A novena contava com a participação de toda a comunidade, incluindo a Congada.

Para cada dia da novena, um dos Ternos ficava responsável por conduzir as músicas a serem

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tocadas e a liturgia, como um todo, contando a história do Terno.

Antes da novena, a comunidade reza um terço, e em cada dia da festa vem um

celebrante diferente. Geralmente, fica em Goiandira apenas um padre, de modo que durante a

festa são convidados outros padres das redondezas, geralmente Catalão ou Ipameri. O Bispo

de Ipameri também costuma vir celebrar alguma missa durante a festa. Em 2013, os

celebrantes foram, de acordo com os dias: padre Emerson Costa, dom Guilherme, padre

Emerson Costa, padre Emerson Simplício, padre Paim, padre João César, padre Borges e

padre Wellington Silva (celebrou no domingo e na segunda-feira).

A cada dia, o tema em destaque durante a novena era diferente. Os temas abordados

durante a festa foram os seguintes, na ordem dos dias: “Maria no rosto da Congada”, “Maria

no rosto de nossas famílias”, liturgia normal do domingo, “Maria no rosto das mulheres”,

“Maria no rosto das crianças”, Maria no rosto dos jovens”, “Maria no rosto dos homens”,

“Maria no rosto dos portadores de deficiência”, “Maria das Missões”, e a liturgia normal do

domingo. Os Ternos responsáveis, em cada dia, foram: Mirim, Moçambique, Marinheiro,

Romano, Catupé, Vilão, Gregoriano, Carreiro; nos dois últimos, foram os membros do Terço

da Irmandade e a Associação da Congada.

Os festeiros têm muito trabalho para a preparação e a realização da festa. Devido à

carga de responsabilidade por eles assumida, é necessário que eles sejam pessoas de fé,

devotos, com disposição e disponibilidade. Os nomes dos possíveis festeiros passam por um

comitê na igreja, constituído pelo pároco, pelo Presidente da Irmandade e pelos Capitães dos

Ternos de Congo. Caso seja aceito ao menos um nome, a pessoa é convidada pela Irmandade

a ser festeiro.

A responsabilidade dos festeiros se inicia na organização para arrecadar recursos e

doações para realizar a festa, sendo necessário procurar patrocinadores, realizar tomadas de

preço, dentre outras. O intuito da tomada de preços é semelhante ao das licitações, isto é,

obter e trabalhar com a proposta mais viável para todos os bens a serem adquiridos. Este

processo é feito para alugueis de mesas, cadeiras, refrigeradores, alimentos, bebidas,

contratação de bandas, etc.. Os comerciantes locais ajudam muito na divulgação da festa,

enquanto os fazendeiros oferecem leitões como doação. A festa de 2013 contou com muitas

doações por parte da comunidade: a Irmandade solicitava aos coordenadores das paróquias da

cidade auxílio por meio de doações para arrecadar alimentos, principalmente.

Os festeiros do ano de 2013 foram os senhores Francisco Antônio Almeida Silva, e sua

esposa Mauriângela de Araújo Almeida, e Idelmir de Araújo Almeida, e sua esposa Orni do

Rosário Nascimento Almeida. Apenas Francisco e Mauriângela residem em Goiandira ainda

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hoje. Orni é residente em Goiânia.

Durante a realização da festa, também há um espaço social, normalmente comentado

como a parte social da festa. Vêm pessoas de toda a região para participarem da festa, com

público variando em todas as faixas etárias, mas com maior presença de adolescentes. Estes

vêm à procura de diversões, sociabilidade, trocas de alianças, entre outros atrativos.

O espaço social da festa também é enfeitado, normalmente com a ajuda da

comunidade. Os enfeites usados em 2013 foram obtidos por meio de reparo dos enfeites

usados em anos anteriores, consistentes de decoração em forma de flores, geralmente feitos

com plásticos. Foram montados vasos em formato de bola com flores, e arcos enfeitados com

flores.

Além disso, há um barracão dedicado à festa, montado em frente à Capela Nossa

Senhora de Fátima. Ali são leiloadas prendas oriundas de doações de moradores da cidade.

Em geral são frangos, porcos, vinhos, chocolates, dentre outros. Também é convidada uma

banda para animar as noites de festa após a parte religiosa.

No barracão, também são vendidos alimentos e bebidas, estes também oriundos de

doações por parte dos moradores da cidade, dos comércios locais e alguns de outras regiões.

Há também, próximo ao barracão, barracas de ambulantes que ou são da própria cidade ou são

visitantes, de Catalão, Goiânia, dentre outras cidades, para vender roupas, bebidas e

alimentos. Em 2013, a festa contou com um parque de diversões, trazendo a alegria das

crianças.

Os vendedores ambulantes, antes de poder levantar as barracas, precisam de um alvará

sanitário expedido pela Vigilância Sanitária de Goiandira. Após isto, existe um responsável

por organizar as localizações e as armações das barracas, aos quais os vendedores se dirigem.

A taxa para a armação das barracas varia de acordo com a extensão, em metros quadrados, da

barraca, mas é válida para o período inteiro de festa. Estes vendedores normalmente acampam

em suas barracas, tendo à disposição os banheiros da Capela Nossa Senhora de Fátima para

tomarem banho. As taxas recolhidas são encaminhadas aos festeiros para posterior repasse à

igreja.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória da realização deste trabalho traz uma contribuição importante para nossas

vidas e, em especial, as dos moradores da cidade de Goiandira, pois revive uma parte de um

passado ou esquecido ou ignorado por muitos de seus moradores. A realização deste trabalho

passou por etapas difíceis e em meio a muita luta para a obtenção dos dados, e nos permite

conhecer melhor a Congada de Goiandira tomando por ponto de partida o Terno dos

Carreiros, um dos mais antigos da cidade.

Durante a pesquisa, o foco foi compreender como o Terno dos Carreiros contribuiu,

através de sua história, para a fundação de uma festa de caráter popular e que importância teve

ele para o surgimento e o estabelecimento da Congada na cidade de Goiandira.

Através das entrevistas feitas com alguns Dançadores do Terno e alguns moradores da

cidade, notamos que o Terno dos Carreiros é um dos Ternos mais importantes e que a ele é

atribuído o papel de fundador da Congada. Com efeito, a partir das informações levantadas,

concluímos que, de fato, foram os integrantes deste Terno os lançadores da Congada e da

Festa de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia na cidade de Goiandira, e

até hoje a levam a bom termo. Mesmo com as mudanças significativas ocorridas na

sociedade, tanto em caráter geral quanto em caráter local, percebemos que o Terno dos

Carreiros mantém firme a sua tradição e a sua devoção a Nossa Senhora do Rosário.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário traz consigo um espaço importante para os

Ternos de Congo e para os moradores. Trata-se de um espaço de sociabilidade e de troca de

experiências de vida, sendo também um espaço que remete as pessoas à memória dos

integrantes da Congada, aos quais estão ligadas a tradição e a ancestralidade, fazendo com

que eles vivam o presente revivendo, também, seu passado.

Desde os preparativos até o momento da participação na festa, os integrantes do Terno

dos Carreiros se remetem muito ao passado, o que permite aos Dançadores viverem não

apenas os festejos e as comemorações do presente, mas também as pessoas que trazem

consigo em suas memórias e não se encontram mais no meio deles, mas cuja contribuição foi

e é muito importante para o surgimento e a manutenção do Terno. Assim, viver a festa e a

Congada é importante para reviver o passado, as lembranças e as recordações destes

Dançadores, em que criam seu espaço de pertinência dentro da Congada.

Cada evento proporcionado através da festa, seja em aspecto social, religioso ou

comemorativo, isto é, durante a caminhada na cidade, durante as missas e novenas ou no

espaço social proporcionado pela festa, cada um daqueles que ali se encontram experimentam

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aqueles momentos de uma maneira única, diferente, de modo que a experiência se torna

importante para as suas vidas e as suas histórias.

É nesse sentido que a direção de mostrar, com este trabalho, como o Terno dos

Carreiros se mantém e procura se perpetuar, até ao presente, vivendo uma história centenária.

Através das falas e narrativas de seus integrantes, podemos compreender como era Goiandira,

quem eram as pessoas de maior importância na cidade, como surgiram a Congada e a Festa de

Nossa Senhora do Rosário. Vimos que a Congada lutou muito para ter seu espaço reconhecido

na cidade de Goiandira, sendo alvo de críticas severas por parte dos setores religiosos, em

especial a igreja Católica Romana, da qual vimos surgir um conflito religioso que perdurou

por cerca de vinte anos, abrindo espaço para a fundação da igreja Católica Brasileira,

acolhendo os Dançadores e a festa, não permitindo que a Congada ou a festa acabassem.

Enfim, percebemos que a cidade de Goiandira foi, por muito tempo, um espaço de

transformação e de conflitos. Por outro lado, o Terno dos Carreiros se manteve firme em seus

princípios e em sua tradição, contribuindo significativamente para a consolidação de um

espaço cultural proporcionado através da criação da Congada e, por conseguinte, de uma festa

muito esperada e na qual se mostra muita devoção religiosa.

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REFERÊNCIAS

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BRANDÃO, Carlos R.. A festa do santo de preto. Rio de Janeiro: Funarte – InstitutoNacional de Folclore; Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1985.

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ANEXO A – Músicas cantadas pelos integrantes do Terno dos Carreiros durante a

caminhada na cidade.

O Barco

Meu barco está na prôa, tá pronto paranavegar Vou levar nosso reinado na capela para rezar.

Sem título

O rei mandou o batalhão nesta jornadao que é bom passa para frente não fica naretaguarda.

Sem título

O meu general mandou me chamarO meu general eu vou la visitarReunir o batalhão para brincarNa sua casa eu quero entrar.

Comemoração do Centenário

Eu me chamo Terno Velhoverdadeiros congadeirosO fundador desse Ternoé o senhor José Carreiro

Ê João! oi José!Completamos 100 anos do Carreiro e Juliano

Quando eu vim de minas eu era rapazlá na minha terra eu não voltei mais,Ô minha querida terraTerra de Minas Gerais

Na cidade de Goiandira onde eu fui criadosomos congadeiros na marinha eu sousoldado.

Virgem do Rosário

O minha virgem do Rosárioo minha virgem dolorosaEla está nos pés da cruztoda lastimosa

ré ré ré ré ré ré

Ô minha virgem do RosárioÔ minha virgem dolorosaEu vim de longeEu trago cravos e rosas.

Ô juíza hoje é diada nossa alegriaVamos no rosário festejar Maria.

São Benedito e Nossa Senhora do Rosário

Cheguei, cheguei. Cheguei do lado de láSalve São Benedito, Santa Efigênia e Senhorado Rosário.

Sem título

Lá vai, lá vai, vaitremendo a terra pego a bandeira de pazdeixo a bandeira de guerra

Convidamos os sete anjospara limpar o caminho da glória Já limpo vamos levara coroa de nossa senhora

Sabiá pediu licença para nesta festa brincareu vou saber do capitãoque licença vão me dar

Eu vou saber da beija florcomigo quer ajustarpara poder varrer a ruapara nosso terno passar.

Música de marcha

Deus o nosso pai Jesus Cristo e nosso irmãoSalve a virgem do Rosário e também protetordos doentes e também do povo aflito

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Ó minha virgem do RosárioHoje eu canto em céuLouvor eu quero te pedirAbençoa mãe queridapara aumentar nosso amor

Sem título

Eu vou Eu vou

Gente eu vou eu vou genteaonde Jesus mandoueu vou eu vou gente

Sem título

Os anjos me procuroaonde que você vai eudesci daquela serraeu vim beira mar.

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ANEXO B – Lista dos Dançadores do Terno dos Carreiros

Nome Completo Residência

Amélio João Ribeiro Anápolis – GO

Cássia Daniele Vaz da Costa Caldas Novas – GO

Consolação Aparecida Ribeiro Goiandira – GO

Cristina de Cesário Brito Silva São Paulo – SP

Danilo Rosemar Ribeiro Goiandira – GO

Denilson Henrique Tristão Cardoso Goiandira – GO

Edna Lúcia Tristão Goiandira – GO

Flávio Cesário da Silva São Paulo – SP

Geovanna Cristina Tristão Cardoso Goiandira – GO

Giovanna de Brito Cesário da Silva São Paulo – SP

Gustavo Cesário da Silva São Paulo – SP

Iasmin Laís Ferreira Goiandira – GO

Jandira Vaz da Costa Goiandira – GO

Jerônima da Silva Vaz Goiandira – GO

João Vaz Goiandira – GO

Juliana de Brito Cesário da Silva São Paulo – SP

Juliana Ribeiro da Silva São Paulo – SP

Leni Gonçalves Tristão Goiandira – GO

Leonor Honória da Paixão São Paulo – SP

Maria Cristina da Silva Goiandira – GO

Maria Helena Ribeiro da Silva São Paulo – SP

Nathália de Brito Cesário da Silva São Paulo – SP

Oldovandro Gonçalves Tristão Goiandira – GO

Onofre Ribeiro Goiandira – GO

Robson Ribeiro Goiandira – GO

Sebastião Francisco Gonçalves Goiandira – GO

Sirlei Oliveira da Silva Goiandira – GO

Tereza Ribeiro da Silva São Paulo – SP

Wilian Darc de Souza Goiandira – GO