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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PROGRAMA DE PS-GRADUA˙ˆO EM EDUCA˙ˆO `REA DE CONCENTRA˙ˆO: EDUCA˙ˆO, CULTURA E SOCIEDADE LINHA DE PESQUISA: EDUCA˙ˆO E MOVIMENTOS SOCIAIS Solange Pereira da Silva INDIGENISMO ALTERNATIVO: NO COMPASSO DA EDUCA˙ˆO INTERCULTURAL ENTRE OS KANAMARI DO MDIO JURU` - AM CUIAB` 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO id49020328 …livros01.livrosgratis.com.br/cp046272.pdf · 1. Indigenismo alternativo 2. Kanamari 3. ... PKN Œ Projeto KaiowÆ ŒNhandeva PPTAL

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

REA DE CONCENTRAO: EDUCAO, CULTURA E SOCIEDADE LINHA DE PESQUISA: EDUCAO E MOVIMENTOS SOCIAIS

Solange Pereira da Silva

INDIGENISMO ALTERNATIVO:

NO COMPASSO DA EDUCAO INTERCULTURAL

ENTRE OS KANAMARI DO MDIO JURU - AM

CUIAB

2007

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SOLANGE PEREIRA DA SILVA

INDIGENISMO ALTERNATIVO:

NO COMPASSO DA EDUCAO INTERCULTURAL

ENTRE OS KANAMARI DO MDIO JURU - AM

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, na rea de concentrao: Educao Cultura e Sociedade, na linha de pesquisa Movimentos Sociais Poltica e Educao Popular.

Professor Doutor Darci Secchi.

Orientador

CUIAB

2007

S586i Silva, Solange Pereira da

Indigenismo alternativo: no compassso da educao intercultural entre os kanamari do mdio Juru- AM/Solange Pereira da Silva Cuiab: UFMT/IE,2007.

133p.:il.

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, na rea de concentrao: Educao Cultura e Sociedade, na linha de pesquisa Movimentos Sociais Poltica e Educao Popular.

Orientador: Prof. Dr. Darci Secchi Bibliografia: p.118-125 Inclui apndices. CDU -376.74(=87)

CRB4 - 1467 ndice para Catlogo Sistemtico 1. Indigenismo alternativo 2. Kanamari 3. Interculturalidade

Agradecimentos

Ao meu orientador, Professor Doutor Darci Secchi, pela competncia

profissional ao discutir a questo indgena no Brasil e pelo aporte humano.

Agradeo de maneira muito especial Professora Doutora Beleni Salete

Grando, pela disponibilidade em participar desta banca e pelas suas contribuies. Tambm

Professora Doutora Maria da Glria Gohn, pelas reconhecidas anlises sobre os movimentos

sociais e pelas importantes observaes feitas a estes escritos, por ocasio do exame de

qualificao. Professora Doutora Maria Lcia Muller por defender com tanta veemncia as

oportunidades de repensar as relaes tnico-raciais.

CAPES pela bolsa de estudos que possibilitou minha permanncia no

mestrado. E UFMT.

OPAN, Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista, ao GTME, ao CIMI

e CESE, pelas oportunidades oferecidas.

Ao GPMSE e ao FORMAD. A tica e o zelo com o ser humano, caractersticas

destes grupos encorajam ao dilogo entre a prtica e a teoria.

A Arlindo, Kana, Rosa H. Dias da Silva, Joana, Gersem Baniwa, Itijo Kulina,

Djanem, Yakoware, Kadje, Kanamari, Ednelson Makuxi, Marcos, Tio, Maristela, Elton,

Adriana, Ktia, Terezinha, Dulcilene, Paula, Rosely Sanches, Vida, Fernanda, Prof. Passos e

Prof Artemis. Pelo entusiasmo militante e abertura ao dilogo.

A Denny Neves, Cludio, Jnior, Luzanete, Santo, Nazar, Suely, Joo Paulo,

Selma, Ivonete, Jonia, Gemaque, Amintas, Wemerson, Caetano, Tameny, Yodje, Kawahere,

Djoreom, Tsawe, Lygia, Mnica, Augusto Csar, Enedina e Terclia. Agradeo pela acolhida.

minha enorme famlia, na pessoa de meu pai, que garantiu as condies

materiais para que os oito filhos estudassem e minha me que sempre nos encorajou nas

tarefas escolares, temperando com afeto a nossa trajetria. E tambm famlia Moraes.

A Silas Moraes, que tm vivido comigo a alegria dos Kanamari e as

descobertas nas relaes que vamos tecendo. Foram de suma importncia suas providncias

na sistematizao dos dados de campo, na reviso das verses iniciais do texto, assim como

nas tarefas cotidianas do nosso lar. Sua presena qualificou estas experincias.

E muito especialmente, ao povo Kanamari que mostra diariamente os

benefcios de se cultivar a alegria. Mostra tambm a sua profunda sabedoria contida na

laboriosa construo de pontes que articulem os mundos. Nisto acreditam e isto

cotidianamente exercitam sempre de maneira muito animada, pois nisto pem sua alma.

RESUMO

O texto aqui apresentado trata do Programa de Educao para o Povo

Kanamari, implementado por agentes do chamado indigenismo alternativo, considerando a

realidade concreta vivida por aquela sociedade habitante do Rio Juru, no Amazonas.

Objetivamos realizar uma descrio densa e uma reflexo circunstanciada sobre teorias e

prticas educacionais em contextos de alteridade. uma tentativa de amplificar a voz de

grupos sociais amaznicos pouco considerados nos espaos acadmicos e polticos brasileiros.

Os dados baseiam-se na abordagem etnogrfica, tentando desvelar interaes simblicas

significantes para os Kanamari na relao com indigenistas e com a sociedade nacional.

Seremos parte modificada e modificadora do contexto observado. Apresentaremos aspectos

referentes aos grupos Djapa, unidades distintivas da sociedade Kanamari. Buscaremos

elucidar os desdobramentos prticos e simblicos de sua organizao e das suas relaes

internas e externas. Pretendemos mostrar como os aspectos caractersticos da organizao

social dos Djapa e o conjunto de conhecimentos e valores determinaram os processos

educativos ali realizados. A estratgia investigativa constituiu-se de entrevistas, conversas

informais e observao dirigida durante os eventos que compunham o Programa de Educao

para o Povo Kanamari. Alm de consultas aos dirios de campo e relatrios de equipes que

atuaram na regio recentemente e em pocas passadas. Os resultados obtidos apontam que o

dilogo propiciado pelas atividades do Programa fortaleceu aos indgenas e suas instituies

tradicionais. Sugerem tambm que ganharemos todos, indgenas e sociedade nacional pela

superao das limitaes, pela rica vivncia intercultural, favorecendo uma convivncia

pacfica e respeitosa.

Palavras-chave: Indigenismo alternativo. Povo Kanamari. Interculturalidade.

ABSTRACT

The text presented here deals with the Program of Education for the Kanamari

People, implemented by agents of the so called alternative indigenism, considered the

concrete reality lived by that society which inhabits the Juru river, in Amazonas. We

objectify to carry out a dense description and a circunstancial reflexion about education

theories and practicing. It is an attempt to amplify the voice of the amazonian social groups

little considered in the brazilian academic and political spaces. The data is based on the

ethnographic boarding, trying to unveil significant symbolic interactions for the Kanamaris in

their relation with indigenists and the national society. Part of us will be modified and the

other part will be modifier in the observed context. We will present aspects referring to the

Djapa groups who are a distinctive unit of the Kanamari society. We will search to elucidate

the practical and symbolic unfoldings of its organizations and its internal and external

relations. We claim to show how the characteristic aspects of the Djapa social organization

and their whole knowledge and values may determine the educative processes wich exist

there. The strategy of investigation was based on interviews, informal conversations and

direct observations during the events that composed the Program of Education for the

Kanamari People, beyond the consultation of field diaries and reports of the team that acted in

the area recently or in the past time. The obtained results pointed out that the dialogue brought

up by the program activities fortified the indigenous and their traditional institutions. It also

suggests that we all will win, indigenous and national society, by the over going of

restrictions, by the rich intercultural experience, favoring a pacific and respectful

acquaintance.

Key words: Alternative Indigenism , Kanamari People, Interculturality.

Lista das ilustraes

Ilustrao 1 Mapa da localizao da famlia lingstica Katukina ......................................... 19

Ilustrao 2 Mapa das Aldeias Kanamari no Mdio Juru .................................................... 20

Ilustrao 3 Mapa do Igarap Trs Bocas ............................................................................. 57

Ilustrao 4 Mapa do Igarap Matrinch .............................................................................. 87

Ilustrao 5 Mapa do Igarap Mamori ................................................................................ 115

Lista das Fotografias

Fotografia 1: Chegada do Kerewenom. Igarap Matrinch. 1998. ......................................... 13

Fotografia 2: Coleta de cip na vrzea. Igarap Degredo. 1992 ............................................ 24

Fotografia 3 Preparando a massa da mandioca. Igarap Maloca. 1997. ................................. 44

Fotografia 4: Ritual dirio do Koya. Igarap Trs Bocas. 1995. ............................................ 48

Fotografia 5 Chegada do Kerewenom. Igarap Matrinch. 1998. .......................................... 68

Fotografia 6: Encontro de Lideranas Kanamari e Kulina. Eirunep. .................................... 84

Fotografia 7: III Curso de Formao para Educadores Kanamari. Igarap Matrinch. ......... 109

Fotografia 8: Lideranas Kanamari no I Seminrio de Educao Indgena. Eirunep. 1998. 113

Lista de siglas e abreviaturas

ANA Associao Nacional de Apoio ao ndio. CCPY- Comisso Pr Parque Yanomami CEDI - Centro Ecumnico de Documentao e Informao CEEEI/AM Conselho Estadual de Educao Escolar Indgena do Amazonas CFEK Curso de Formao para Educadores Kanamari. CIMI - Conselho Indigenista Missionrio CIR Conselho Indgena de Roraima CNBB Conferncia Nacional dos Bispos CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira. COMIN Conselho de Misso entre ndios COPIAR Comisso dos Professores Indgenas do Amazonas, Acre e Roraima. CPI Comisso Pr-ndio. CPT Comisso Pastoral da Terra CTI - Centro de Trabalho Indigenista DSEIs Distritos Sanitrios Especiais Indgenas. FDDI Federao de Defesa dos Direitos Indgenas FNS Fundao Nacional de Sade FOIRN Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro FORMAD Frum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento FUNAI - Fundao Nacional do ndio GPMSE Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educao GTME - Grupo de Trabalho Missionrio Evanglico IBAMA Instituto Brasileiro de INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ISA Instituto Socioambiental LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educao MEC - Ministrio da Educao e Desporto MEVA Misso Evanglica MIA - Misso Anchieta MMA Ministrio do Meio Ambiente MMK Misso Metodista junto aos Kanamari MNTB - Misso Novas Tribos do Brasil MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetizao MST Movimento dos Trabalhadores sem Terra. NEI - Ncleo de Educao Indgena ONG Organizao no Governamental. ONU Organizao das Naes Unidas. OPAN - Operao Amaznia Nativa PDPI Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas PKN Projeto Kaiow Nhandeva PPTAL Projeto de Proteo s reas Indgenas da Amaznia Legal. PRODEAGRO: Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado de Mato Grosso PUC Pontifcia Universidade Catlica RCNEIs Referencial Curricular Nacional para Escolas Indgenas SEMEC - Secretaria Municipal de Educao. SIL Sociedade Internacional de Lingstica SPI - Servio de Proteo aos ndios

SPILTN Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais SUDAM - Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia SUDECO - Superintendncia do Desenvolvimento do Centro-Oeste UCDB - Universidade Catlica Dom Bosco UDR - Unio Democrtica Ruralista. UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UNB Universidade de Braslia UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao a Cincia e a Cultura UNI Unio das Naes Indgenas. UNICAMP Universidade de Campinas USP Universidade de So Paulo

SUMRIO

1 INTRODUO ............................................................................................................... 11

2 O RIO JURU - TERRITRIO DJAPA ................................................................... 21

2.1 DO QUE TRATA O TEXTO ............................................................................................... 21 2.2 CONTEXTO GERAL DO ESTUDO ...................................................................................... 22 2.3 A VRZEA AMAZNICA, CENRIO DE ENCONTROS E DESENCANTOS. .............................. 24 2.4 CONTEXTO ESPECFICO DO ESTUDO ............................................................................... 30

2.4.1 Djohko Universo Mtico ..................................................................................... 36 2.4.2 Liderana poltica ................................................................................................. 40 2.4.3 Produo, usufruto e reciprocidade. ..................................................................... 41 2.4.4 Festas e Brincadeiras ........................................................................................... 48 2.4.5 Cultura Material ................................................................................................... 54

3 O CAMPO DE ATUAO INDIGENISTA NO BRASIL ........................................ 58

3.1 MLTIPLOS INDIGENISMOS ........................................................................................... 58 3.2 A TUTELA INTEGRACIONISTA E A TUTELA NORMATIVA .................................................. 60 3.3 COM O PERDO DA M PALAVRA .................................................................................. 66 3.4 INDIGENISMO ALTERNATIVO ......................................................................................... 68 3.5 A PALAVRA INDGENA .................................................................................................. 72 3.6 PBLICO, PORM, NO ESTATAL. .................................................................................. 79 3.7 DE DEMANDATRIOS A EXECUTORES ............................................................................ 82 3.8 TTICAS REFORMULADAS, ANTIGAS NECESSIDADES. ..................................................... 84

4. O INDIGENISMO COMO AO POLTICA E PEDAGGICA ............................. 88

4.1 A REINVENO KANAMARI .......................................................................................... 88 4.2 O LOCAL E O UNIVERSAL .............................................................................................. 92 4.3 EDUCAO PARA O DILOGO INTERCULTURAL .............................................................. 95 4.4 MIRANDO O MUNDO A PARTIR DA ALDEIA ................................................................... 103 4.5 ESCOLARIZAO KANAMARI...................................................................................... 106

5 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 116

REFERNCIAS ............................................................................................................... 118

APNDICES .................................................................................................................... 126

APNDICE A MATERIAL ELABORADO PARA OS TEMAS SADE E

EDUCAO .................................................................................................................... 126

APNDICE B ENCONTROS DE FORMAO DE LIDERANAS ....................... 127

APNDICE C - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1995............................................. 128

APNDICE D - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1996............................................. 129

APNDICE E - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1997 ............................................. 130

APNDICE F - PLANILHA DE ATIVIDADES DE 1998. ............................................ 131

APNDICE G - QUADRO DE ATIVIDADES EM ESCOLARIZAO MMK E OPAN

- (1993 A 1998) ................................................................................................................. 132

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1 INTRODUO

Sou de um tempo em que as pessoas ouviam mais o rdio. Ouviam-se as vozes

matutas dos mestres violeiros e de tantos outros poetas do serto e da zona da mata, lugar

igualmente castigado pelo mando dos senhores de engenho.

Dom Helder Cmara nos incitava a agir em favor de um mundo novo. As

mensagens dirias eram reforadas pelo padre Jaime, na Braslia Teimosa, um bairro e uma

gente que, criativamente, teimam em existir, em Recife, capital de Pernambuco.

Pelo rdio tambm chegavam as vibrantes msicas de Luiz Gonzaga, Jackson

do Pandeiro, Joo do Vale, alm das complexas e refinadas melodias do frevo. Dancei

profissionalmente vrios ritmos da regio corporalizando as imagens sonoras reproduzidas

pela saudosa rdio PRA8.

Praieira, nordestina, aprendi que Serto significava um lugar onde viviam

pessoas incrivelmente fortes, que tinham costumes e saberes admirveis.

Decidi ser assistente social e aprendi que o que se passava nos sertes tambm

ocorria, por esse mundo de meu deus. Conclu que j no se tratava de uma profisso, mas

de um projeto de vida, de uma escolha de um lado.

Ento, um dia conheci Abel Kana1 que trabalhara com o povo indgena

Kulina, no Acre. As descries pormenorizadas sobre o trabalho indigenista l desenvolvido,

faziam parte de sua estratgia de arregimentao de novos aliados causa indgena.

Adiantei meu trabalho de concluso do curso de Servio Social e ingressei no

Curso de Formao Indigenista da OPAN, cuja proposta poltico-pedaggica prev temas

inspirados na vida dos ndios brasileiros: conceitos chaves da Antropologia, Poltica

Indigenista, Lingstica, Legislao, Sade, Economia/Sustentabilidade, Educao, entre

outros (ZORTHA, 2006, p 6).

Tambm aprendi muito vivendo a diversidade scio-cultural com os outros

participantes deste Curso. ramos dez pessoas vindas do Sul, Sudeste, Nordeste, convivendo

durante quase oito meses, nas regies Norte e Centro-Oeste. O Curso transcorreu entre maio e

dezembro e foi organizado em duas etapas tericas intermediada por uma prtica.

1 Kana historiador e trabalhou no Acre e Sul do Amazonas por mais de dez anos, projetos do CIMI e da OPAN. Atualmente consultor da Coordenadoria Ecumnica de Servios (CESE).

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As assessorias das trs etapas foram fundamentais. Cludio Conte, Egydio

Schwade, ngela Kurovski, Rosa Monteiro, Mrcio Silva, Darci Secchi e Arlindo Leite,

marcaram positivamente na ocasio e nos anos posteriores. Muitos ensinamentos vieram das

equipes de rea: Ednelson Makuxi, Cleacir S, Paulo Roberto, Danilo, Marcos Weslley.

Fiz estgio prtico no Juru, com os Kulina, porm assumi pela OPAN outros

trabalhos nos rios Purus e Madeira. Apenas no incio de 1995 voltei ao Rio Juru, l fiquei at

incio de 1999. Fui para trabalhar com o povo Kanamari, a partir de uma parceria com uma

equipe da Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista. Marcos Weslley e Silas Moraes

tinham sido meus colegas de estgio e desejavam inaugurar um trabalho alternativo2 s aes

que a sua instituio vinha desenvolvendo em outras partes do pas.

A distncia geogrfica e as limitaes da equipe da coordenao, determinaram

nossa auto-formao. Os prprios indgenas foram nossos maiores mestres. A receptividade

dos povos amaznicos nos d outra dimenso das possibilidades das relaes pessoais. O

grande aprendizado aqui foi que se pode viver e aprender com alegria.

Silas tornou-se mais que um companheiro de trabalho e comigo passou a

compartilhar a vida. Samos do Amazonas, decididos a escrever sobre a vida entre os

Kanamari e Silas ajudou na sistematizao de muitas informaes rememorando e

pesquisando nos relatrios.

Abel Kana e Arlindo Leite deram apoio intelectual e humano, e a CESE, o

GTME e a Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista, ofereceram condies materiais

neste tempo de transio e sistematizao dos dados de rea. Ao final de uma primeira

redao percebemos que havia muitas lacunas tericas e metodolgicas. Decidimos que este

trabalho seria lapidado num momento oportuno.

Fomos viver no litoral do Cear. L tivemos oportunidade de conhecer o povo

Trememb, que com alegria reelebora formas ancestrais de relao baseadas na reciprocidade.

Os povos ressurgidos so como mandacaru desabrochando depois de uma longa estiagem.

Foi bom voltar Regio Amaznica com um projeto de implantao de sistema

de rdio-fonia e formao de comunidades para o uso do equipamento, em Rondnia, Par e

Amazonas. Os seringueiros, castanheiros, palmiteiros, quilombolas, pescadores artesanais,

agricultores familiares e indgenas, ensinaram que atualizam constantemente suas culturas.

Chegando em Cuiab, em 2003, houve a oportunidade de conhecer outras

realidades pelo Frum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD)

participando de vrios eventos dos movimentos sociais. O Grupo de Pesquisa Movimentos 2 Baseavam-se nas Diretrizes Pastorais para a Ao Missionria Indigenista.

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Sociais e Educao (GPMSE), antes mesmo de ingressar no programa de mestrado foi uma

feliz descoberta. Compromisso, competncia e gentileza, marcas destes Grupos.

J no incio do mestrado, surgiu o mpeto de mudar de tema ao saber, pela

mdia, que prefeituras do interior do estado de Mato Grosso estavam interceptando nibus que

vinham do Nordeste do pas com trabalhadores que pretendiam se instalar no Norte do estado.

Segundo as notcias da imprensa televisiva a polcia agia tambm destruindo hospedarias de

maranhenses, como genericamente chamavam estes migrantes nordestinos.

Pensei: Winston Parva aqui! Pessoas que tambm migraram estigmatizam e

repudiam os que pretendem se alojar. A Professora Doutora Lcia Mller aprofundou a

reflexo desta situao especfica luz da leitura de Norbert Elias, Os Estabelecidos e os

Outsiders.

Porm, manter o foco no processo vivido junto aos Kanamari, significava

retribuir os apoios obtidos ao longo dos anos l vividos. Queria de alguma forma voltar a

conviver com eles. Retomar as lies cotidianas, visualizar suas cores e suas formas, ouvir os

seus sons. Sentir a sua contagiante alegria.

A anlise dos documentos reavivou na memria a realidade, complexa,

ambgua, contraditria at, mostrando vrias nuances da ao indigenista. Explicitou o

improviso, o amadorismo da ao, mas tambm explicitou o compromisso que determinava

que cada ato, cada abordagem fosse permeado de inteno, da esperana na reconstruo da

histria, da relao entre ndio e branco, entre a aldeia e cidade, entre o mar e o serto.

Fotografia 1: Chegada do Kerewenom. Igarap Matrinch. 1998.

Fonte: Luciana Galante.

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A verdadeira solidariedade interpessoal e tambm intercultural; na reciprocidade; enriquecendo-se mutuamente as diferentes culturas. Somente a comunho das alteridades pode construir a outra mundialidade que sonhamos. (CASALDLIGA, 2006)3

Para apresentar a temtica especfica a ser discutida nesse estudo, iniciamos

com este depoimento esperanoso de D. Pedro Casaldliga que um convite para sermos

mais propositivos diante das questes da interculturalidade.

Os conflitos motivados por razes tnicas, econmicas ou religiosas compem

o cenrio mundial desde os seus primrdios. Desde a metade do sculo XX, porm, os de

natureza tnico-cultural ganharam grande visibilidade e destaque miditico uma vez que se

expressaram por vrias formas de barbrie o aniquilamento de povos e culturas em todo o

mundo. Tais fatos aparentemente corriqueiros exigem atitudes pessoais e institucionais para a

prtica de aes localizadas que promovam um ambiente de justia e paz.

No Brasil - um pas tido como racialmente democrtico verificamos

espantosos nmeros de violncias diretas ou indiretas contra os grupos tnicos minoritrios,

marcadamente, os negros e os indgenas.

Junto a estes grupos culturalmente diferenciados, possvel observar um

quotidiano de discriminao que se caracteriza por diversas formas de agresso pessoal ou

grupal e pela rotineira omisso da assistncia por parte do poder pblico.

O presente estudo pretende evidenciar, a partir de um contexto determinando,

como os povos indgenas tm conseguido sobreviver fisicamente, apesar das discriminaes

cotidianamente sofridas e como se foi constituindo um sujeito poltico coletivo indgena para

garantir sua existncia cultural nos contatos estabelecidos ao longo destes cinco sculos,

marcados regularmente por uma relao assimtrica que no atende aos seus interesses.

Procura-se desvelar a vocao Kanamari para a interao com outras

sociedades e culturas, bem como a sua intencionalidade, disposio e capacidade de dialogar

nos diferentes ambientes que essas relaes estabelecem.

No seu processo de pacificao do branco, os indgenas tm conquistado

aliados de vrios matizes. Neste trabalho trataremos de um importante apoiador das lutas

indgenas ao longo da histria do Brasil, a quem convencionou-se chamar de indigenismo

alternativo.

3 Entrevista concedida por ocasio do Jri Popular dos acusados da tortura e assassinato do Jesuta Vicente Caas, a quem ele chamava de Mrtir das Causas Amerndias.Disponvel em: < www.cimi.org.br>. Acesso em: 23 out. 2006.

http://www.cimi.org.br>.

15

Uma das mais fortes caractersticas do modo de ao do indigenismo

alternativo tem sido a insero direta nas aldeias, o fortalecimento das organizaes

tradicionais, a criao de espaos de reflexo e formao e o apoio ao protagonismo indgena.

A ao pedaggica, articulada, propositiva e intencional entre os povos

indgenas e esta vertente do indigenismo, teceu uma importante teia de parcerias locais,

regionais, nacionais e internacionais, entre indgenas e demais aliados, determinando avanos

significativos na legislao relativa aos direitos tnicos, o que se traduziu em ganhos

substanciais no texto final da Carta Magna.

Os direitos indgenas foram reconhecidos em diversos trechos da Constituio

Federal de 1988, especialmente no seu CAPTULO VIII, que trata especificamente Dos

ndios, Art. 231.

So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 1. So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias a sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies.

De fato, estes avanos foram determinantes para o reconhecimento dos direitos

indgenas, porm, na prtica, ainda falta muito para que tais direitos sejam plenamente

efetivados e o Brasil se afirmar como uma nao que zela pelos direitos diversidade. Um

dos exemplos mais lastimveis o descumprimento do estabelecido nas Disposies

Constitucionais Transitrias, referente demarcao das terras indgenas no prazo de cinco

anos a contar da promulgao da Constituio Federal (correspondeu a 1993).

Como conseqncia desta omisso observa-se o fortalecimento das foras anti-

indgenas financiadas ou identificadas com latifundirios e com outros espoliadores dos

territrios indgenas, muitas vezes compostas por frentes paramilitares e parlamentares

identificadas no cenrio poltico brasileiro. Chamamos aqui de paramilitares as frentes

constitudas dos soldados da borracha, especialmente arregimentados para garantir a

ocupao dos territrios indgenas onde existiam campos naturais de seringueiras.

No mbito de uma discusso mais geral sobre a realidade indgena brasileira,

pretendemos neste estudo dedicar ateno discusso dos pressupostos tericos e

metodolgicos do modo de ao indigenista desenvolvida pela organizao no-

governamental denominada Operao Amaznia Nativa (OPAN), uma das precursoras do

chamado indigenismo alternativo. Nossa inteno ser evidenciar como as aes

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desenvolvidas por seus membros e pelas prprias comunidades indgenas se expressam em

uma prxis poltica e pedaggica. Ou nas palavras de Gohn:

So experincias educativas, questionadoras do status quo vigente, preocupadas no apenas com a aquisio de bens materiais mas tambm com a qualidade de vida que estamos construindo, com o projeto para o futuro que estamos gestando no presente (GOHN, 1992. p. 9).

importante ressaltar, porm, que esse sentido poltico da ao e a perspectiva

de interveno num determinado tempo e espao, no exclusivo dessa instituio e

tampouco dos trabalhos aqui discutidos. O indigenismo alternativo bem mais amplo do que

o caracterizado pelas aes da OPAN e ela prpria desenvolve (ou desenvolveu) diversos

projetos em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Rondnia.

O foco de anlise especfico nesse estudo ter como cenrio uma iniciativa de

educao popular desenvolvida junto ao povo Kanamari, no Mdio Rio Juru, na regio

Sudoeste do Estado do Amazonas. O perodo enfocado corresponde aos anos de 1995 a 1998.

A escolha desta iniciativa justifica-se pelo fato de termos construdo junto com

o povo Kanamari um programa que traduzisse suas intenes e seus anseios. Isto foi possvel

pela presena da OPAN desde o incio da dcada de 1980 e pelo nosso contato cotidiano

durante mais de quatro anos.

A nfase da ao no perodo aqui explicitado, deu-se no campo da

escolarizao, porm a premncia da realidade cotidiana levou as equipes a darem ateno,

tempo e recursos tambm para os campos da sade e da regularizao fundiria. Ao concluir a

anlise das atividades desenvolvidas naquele contexto percebemos que tnhamos ainda a

responsabilidade de expor no espao acadmico tais experincias de forma clara e sem

ufanismos, trazendo luz as contradies e impasses do processo, bem como as experincias

dos sujeitos nele envolvidos.

O texto aqui exposto est organizado da seguinte maneira: iniciamos com

algumas informaes relevantes sobre o povo Kanamari e sobre a regio do Mdio Juru.

Daremos destaque aos aspectos da organizao social Kanamari e aos contornos culturais e

polticos dos seus grupos familiares Djapa tidos como unidades distintivas desta sociedade.

Ainda que saibamos que haja

[...] a uma certa iluso ao se acreditar que seja possvel identificar facilmente uma cultura particular, fixar seus limites e analis-la como uma entidade irredutvel a uma outra. Resta ainda o fato que, no plano metodolgico, s vezes til e at necessrio se agir como se uma cultura particular existisse enquanto entidade separada com uma real autonomia, mesmo que, na realidade, esta autonomia seja apenas relativa em relao s outras culturas vizinhas. (CUCHE, 2002, p 89).

17

Buscaremos elucidar os desdobramentos prticos e simblicos da sua forma de

organizao e da dinamizao das suas relaes internas e externas. Por esta razo, trataremos

das relaes interculturais l estabelecidas a fim de justificar as escolhas feitas no mbito das

iniciativas vinculadas ao indigenismo alternativo.

No segundo captulo refletiremos sobre a ao das principais agncias que

compem o cenrio do indigenismo brasileiro. Destacaremos o papel das denominadas

agncias oficiais, como o Servio de Proteo ao ndio (SPI) e a Fundao Nacional do ndio

(FUNAI) e das agncias do indigenismo alternativo, como a Operao Amaznia Nativa

(OPAN), o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) e uma iniciativa especfica da Secretaria

de Ao Social da Igreja Metodista, a partir de uma de suas equipes de rea, a Misso

Metodista junto aos Kanamari (MMK). Daremos destaque ao modo de ao da OPAN.

Ao traar o perfil de alguns dos principais agentes que historicamente

desenvolveram atividades indigenistas procuraremos descrever o cenrio poltico, econmico

e social que propiciaram o surgimento de tais agncias e como modificaes no cenrio macro

interferiram nas esferas local, regional e nacional. Pretendemos destacar as diferenas

existentes entre as posturas institucionais, na medida do possvel explicitando as linhas

terico-metodolgicas e os tipos de ao que desenvolvem e como se utilizaram de iniciativas

educacionais para implementar os seus propsitos.

Observaremos que atualmente o Estado adotou discursos semelhantes aos

gerados nos histricos movimentos populares. Ou, como diria Secchi, (2004)4 o Estado tomou

a bandeira de luta dos movimentos sociais. Nos discursos indigenistas j no h diferenas,

na prtica cotidiana que se percebe a efetividade das intenes que hoje encontramos

traduzidas em leis.

Ainda nesse captulo refletiremos sobre a atuao indgena e sobre as

condies que levaram as suas organizaes a passar de demandatrios a executores de

projetos de assistncia direta junto a seus parentes. Veremos que as diversas formas de

organizao indgena existentes atualmente contradizem as previses do desaparecimento

destas culturas.

No terceiro captulo analisaremos algumas atividades implementadas junto ao

povo Kanamari pelas instituies do indigenismo alternativo no Mdio Juru. Temos a

expectativa que essa reflexo explicitar as multi-dimenses imbricadas em um trabalho

direto em rea indgena e pontuar algumas das implicaes desse modo de ao indigenista.

4 Palestra proferida no Seminrio Polticas Indigenistas e as Pastorais. GTME, Julho de 2004, Chapada dos Guimares-MT.

18

Procuraremos demonstrar que o diferencial de uma ao indigenista alternativa, enquanto

ao poltica e pedaggica tem como princpio contemplar o discurso indgena e suas

especificidades na perspectiva do dilogo intercultural, considerando que o contato com o

mundo externo representa o seu desejo, mas tambm o seu temor.

Os depoimentos indgenas apontam que no pretendem deixar de ser o que so,

mas que querem apreender os cdigos necessrios para permanecerem nesta relao; dispondo

do arsenal organizativo, informativo e energtico que os favoream no convvio intercultural

(SECCHI, 2002). A articulao criativa entre o novo e o antigo, entre o que foi e o que estar

por acontecer uma habilidade desejvel e reforada nos vrios eventos em que os indgenas

tm participado. Dessa forma veremos que as reunies, assemblias, seminrios, comisses,

conselhos, escritas, documentos, mapas, etc. tornam-se ferramentas, smbolos adquiridos

neste longo e penoso processo indgena de pacificao do homem branco.

Nos apndices detalharemos as atividades realizadas pelas instituies no

perodo acima referido e traremos alguns exemplos de material didtico elaborado pelas

equipes indigenistas locais para facilitao das discusses das temticas nas aldeias.

Os dados levantados demonstram que naquele contexto regional, somente uma

ao abrangente e articulada seria capaz de garantir as condies para trabalhos estveis e

duradouros. Uma iniciativa estruturada em quatro pilares fundamentais e complementares:

relao com outros grupos militantes, com centros acadmicos do Brasil inteiro, com os

poderes pblicos nas trs esferas e principalmente relao com o prprio povo Kanamari, na

construo de um programa que traduzisse um jeito de ser indgena e de fazer indigenismo.

Demonstram que os fruns de discusso entre lideranas indgenas regionais,

assessores indigenistas e rgos oficiais, so estratgias para angariar apoiadores e ampliar o

envolvimento das comunidades nos trabalhos em curso. Os convnios e parcerias com os

rgos oficiais superavam os objetivos preliminares de somar esforos e dividir os custos na

execuo das atividades. A inteno era que o Estado assumisse as suas atribuies.

O povo Kanamari tem uma imensa capacidade de dar o seu tom, muito

sabiamente, sem confronto, mansa e alegremente vo se apropriando das tticas, refazendo

objetivos, re-estabelecendo as suas prioridades nesta desejada e temida aproximao com a

sociedade envolvente.

esta experincia profissional e humana vivida, a partir de um dilogo

constante e profundo entre ndios e indigenistas, que pretendemos trazer tona neste estudo,

num colorido caleidoscpio de personagens, cenrios, emoes, s vezes, ambivalentes, que

queremos apresentar aqui atravs destas linhas.

19

Ilustrao 1 Mapa da localizao da famlia lingstica Katukina Fonte: Silas Moraes. 1998.

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Ilustrao 2 Mapa das Aldeias Kanamari no Mdio Juru

Fonte: Histrias de Kanamari. Projeto Kanamari/MEC/UNESCO, 1998, Braslia DF.

21

2 O RIO JURU - TERRITRIO DJAPA

2.1 Do que trata o texto

Neste captulo pretendemos discutir o contexto geogrfico, poltico, social e

cultural do Mdio Rio Juru e um modo de ao indigenista desenvolvida junto ao povo

indgena Kanamari, entre os anos de 1995 e 1998.5

Os dados aqui apresentados, relativos ao povo, no pretendem abordar a

totalidade e a complexidade das manifestaes culturais Kanamari. Felizmente h muito mais

do que ser aqui apresentado. Pretendem isto sim, oferecer alguns dos elementos observados e

registrados no perodo descrito e que de alguma forma foram articulados aos eventos

educativos realizados entre as instituies do indigenismo alternativo e o povo Kanamari.

Elementos estes que caracterizam a especificidade do povo em foco e que

justificou o perfil da interveno indigenista aqui descrita, considerando o contexto histrico

local e regional onde tal iniciativa se deu. Recorremos aos aportes tericos de trs estudiosos

deste povo, a saber: Reesink (1993), Labiak (1997) e Carvalho (1998).

Porm a maioria das informaes foi obtida diretamente dos prprios ndios,

nas suas prprias aldeias, pois no perodo acima referido foi possvel conviver com eles em

todas as aldeias do Juru, do Juta e do Xeru. Tambm houve visitas de pessoas vindas dos

rios Itacoa e de duas famlias Katukina do Rio Bi. Faltando apenas os Kanamari do Rio

Japur, localizado na margem oposta do Rio Solimes.

Baseados nos registros da equipe indigenista e nos relatos indgenas, tendo os

referidos suportes tericos, no primeiro captulo pontuaremos alguns dados sobre localizao,

estrutura organizacional, econmica e social, hbitos alimentares e alguns dos rituais.

Desde aqui, tentaremos mostrar o grande investimento dos Kanamari na

relao com a sociedade envolvente.

5 A OPAN est presente nesta regio desde 1979. Entre 1995 e 1998 esta ao indigenista foi realizada em parceira com a Misso Metodista junto aos Kanamari (MMK). Trata-se de uma iniciativa da Secretaria de Ao Social da Igreja Metodista.

22

2.2 Contexto geral do estudo

Vivem atualmente no Brasil cerca de 230 diferentes povos indgenas. Cada

uma dessas sociedades (algumas muito reduzidas em termos demogrficos) possui

caractersticas culturais e lingsticas distintas. De acordo com Rodrigues

Cada lngua indgena brasileira no s reflete, assim, aspectos importantes da viso de mundo desenvolvida pelo povo que a fala, mas constitui, alm disso, a nica porta de acesso ao conhecimento pleno dessa viso de mundo que s nela se expressa. (RODRIGUES, 1986, p 27 apud MAHER, 1996, p 32).

Possuem passados histricos diferenciados e diferentes estratgias de

enfrentamento dos reveses que se apresentam. Porm um dos aspectos que as unem o

inegocivel desejo de sobreviverem como povos, a defesa do direito supremo vida, a sua

manuteno fsica e cultural em seu territrio imemorial.

Assim entendidos, os povos indgenas constituem sociedades que vivem (e por

vezes compartilham) universos mticos, tradies, histria e projetos de futuro. Seus costumes

e organizaes sociais esto fortemente baseados na relao com os mitos e o seu universo

simblico est fortemente pautado na vivncia em comunidade e em pertencimentos

recprocos.

Nesse contexto a noo de identidade cultural traz um sentido muito especfico.

Como sugerido pela cincia da Antropologia, a formao identitria forjada no convvio

entre as culturas. Para diferentes autores, que muitas vezes se situam em linhas divergentes, o

convvio determinaria a frico intertnica (OLIVEIRA,1976), diferentes graus de aculturao

(RIBEIRO, 1978), situao de contato (OLIVEIRA FILHO,1988), situao colonial

(BRAND, 1998; BALANDIER, 1973). Dessas relaes interculturais resultariam diferentes

formas de mudanas scio-culturais, quando no, o extermnio fsico ou cultural de um dos

plos da relao.

Em sntese: as sociedades indgenas teriam estabelecido ao longo da sua

histria diferentes formas de contato entre si e com as frentes de expanso, com o entorno

regional, com a sociedade envolvente, com a sociedade nacional, etc. e nessas relaes vm

forjando a sua identidade cultural.

A questo indgena enquanto temtica que abrange uma diversidade de

aspectos oferece-nos uma pista importante para compreender a influncia do simblico nas

23

complexas relaes sociais atualmente existentes no Brasil, considerando sua formao

tnica.

Persiste na sociedade brasileira, e em especial das pessoas que residem

prximos aos povos indgenas, um falso dilema em relao ao que fazer com os ndios. Para

Secchi (2002), esse dilema funda-se no entendimento que somos ns (colonizadores) que

devemos conceder seus direitos e definir o seu futuro.

Hoje j no se discute se os ndios tm ou no tm alma, se devem ou no ser 'civilizados', mas trata-se de admiti-los como cidados com direitos especficos e diferenciados. Mas a secular matriz colonial no foi totalmente superada. As atuais leis e regulamentos foram produzidos apenas com a "audincia" dos ndios, ou "contaram com a participao" das comunidades. Ou dito de outra forma: a legislao admitiu a alteridade e tolerou a diferena, mas resguardou o direito discricionrio de conceder direitos. (SECCHI, 2002, p. 72).

Este conflito est permeado de sentimentos contraditrios, inquietantes.

Historicamente existem formas diversas de enxergar os ndios e suas organizaes. Para uns,

os indgenas seriam seres sem alma, portanto passveis da domesticao; para outros, seres

com alma, portanto passveis de salvao (seja atravs de programas assistencialistas, seja

atravs de programas de evangelizao); para outros ainda, seriam seres racionais, portanto

aptos a se tornarem cidados, com direitos e deveres atribudos por seus colonizadores.

Nenhuma das trs perspectivas garantiu aos indgenas o princpio da

autonomia, a colocada como as condies objetivas destes povos se relacionarem entre si e

com a sociedade nacional de acordo com suas prprias expresses, as quais devem garantir a

sua sobrevivncia fsica e cultural. Na sua tese de doutorado, Darci Secchi (2002, p. 85)

afirma que o conceito de autonomia deve ser entendido como um [...] permanente processo

de construo e reconstruo identitria, e o seu dimensionamento deve expressar o embate

entre as comunidades indgenas e destas com o entorno regional.

De acordo com o etnlogo Denys Cuche (2002, p. 13-14)

A identidade cultural de um grupo s pode ser compreendida ao se estudar suas relaes com os grupos vizinhos. O estudo atento do encontro das culturas revela que este encontro se realiza segundo modalidades muito variadas e leva a resultados extremamente contrastados segundo as situaes de contato.

E Terezinha Maher (1996, p. 29) refora a importncia da dimenso contextual

na anlise das relaes interculturais, pois para ela: [a identidade] s pode ser entendida se a

pensarmos em termos de um fenmeno scio-cultural e histrico por natureza, e por isso

mesmo, essencialmente poltico, ideolgico e em constante mutao.

A identificao dos grupos tnicos se faz por um complexo processo que inclui

a auto-identificao. Mas no suficiente a auto-identificao para que sejam respeitados os

24

direitos dos grupos em se dizerem especficos. H nesta relao um forte jogo de poder que

determina quem concede ou no ao outro o direito de dizer-se.

Os povos indgenas no Brasil tm sido chamados genericamente de ndios,

apesar da diversidade lingstica e social encontrada de Norte a Sul do nosso pas. Por parte

da sociedade envolvente, h uma tendncia ao tratamento romntico ou, no plo oposto,

diabolizao destes povos e de seus costumes. Pacheco de Oliveira (1995, p.78) identifica que

A imagem tpica, expressa por pintores, ilustradores, artistas plsticos,desenhos infantis e chargistas, sempre de um indivduo nu, que apenas l no grande livro da natureza, que se desloca livremente pela flores e que apenas carrega consigo (ou exibe em seu corpo) marcas de uma cultura extica e rudimentar, que remete origem da histria da humanidade.

Tanto a tendncia ao romantismo quanto diabolizao da imagem dos povos

indgenas so perigosas por que mitificam, afastam o indgena de sua humanidade, negando a

relao histrica com os no-indgenas e destes com sua prpria origem tnica.

Concordando com a importncia do contexto na construo da identidade,

apresentaremos a seguir um rpido panorama da cena do encontro entre o povo Kanamari e os

no-indgenas no Vale do Juru.

2.3 A Vrzea Amaznica, cenrio de encontros e desencantos.

Fotografia 2: Coleta de cip na vrzea. Igarap Degredo. 1992

Fonte: Marcos Weslley.

25

Em meados do sculo XVI a vrzea amaznica surpreendera os primeiros

viajantes com uma populao numerosa, internamente estratificada e assentada em povoados

extensos, produzindo excedentes que alimentavam um significativo comrcio inter-tribal de

produtos primrios e manufaturados.

Em um resumo intitulado O futuro da questo indgena a antroploga Manuela

Carneiro da Cunha, afirma que, no sculo XVI, [...] quanto densidade demogrfica da

vrzea amaznica, era comparvel a da pennsula ibrica com 14,6 habitantes por km [...]

contra 17 habitantes por km em Espanha e Portugal. (CARNEIRO DA CUNHA, 1994, p.

124)6.

Segundo Meggers (1987, p. 120), o viajante ingls, Sir Walter Raleigh relatou

sua incurso pela vrzea amaznica e observou como esta regio era saudvel, no sculo XVI:

[...] quanto salubridade, bons ares, prazer e riquezas, acho que no h comparao com

qualquer outra regio, quer a Leste, quer a Oeste.

Infelizmente esta plenitude entrou em colapso aps o primeiro sculo de

contato com os colonizadores, causando a desarticulao entre os povos indgenas da regio e

a desestruturao da complexa organizao social existente.

Mais especificamente na vrzea do Rio Juru, afluente do Rio Solimes,

tributrio do Rio Amazonas, ocorreu uma significativa baixa na populao indgena, j no

sculo XIX, quando teve incio o primeiro ciclo para explorao dos recursos florestais.

Na mesma publicao, Meggers (1987, p. 210), esclarece que o

[...] aumento da imigrao durante o sculo XVII ps fim a esta situao abenoada. Uma epidemia de varola se alastrou pelo Baixo Amazonas, em 1621, e outra devastou a parte superior do rio, em 1651. Como os indgenas no tinham imunidade, aldeias inteiras foram destrudas. Para agravar a situao, a entrada de escravos africanos introduziu a malria e a febre amarela.

Abel Kana afirma que no rio Juru,7 as relaes estabelecidas na regio se

deram com muita velocidade e ferocidade. Afirma ainda, que [...] foram dizimadas naes

indgenas e, com elas modelos de micro-sistemas sociais que apontavam para diferentes

formas do homem se relacionar com a natureza, no apenas bem, mas fartamente no seu

habitat natural.

Alguns produtos da floresta comearam a ser valorizados, como por exemplo:

o ltex da seringa, do caucho e da bauxita. A arregimentao dos soldados da borracha,

realizado pelo governo brasileiro, propiciou a importao de escravos e de pessoas do

6 O futuro da questo indgena. Disponvel em . Acesso em: 20 fev. 2007. 7Depoimento concedido em junho de 1999. Salvador, Bahia.

26

Nordeste brasileiro repovoou a regio, gerando problemas de toda sorte para os povos nativos

e para os novos habitantes que precisaram se acomodar s situaes da derivadas.

Nas narrativas dos ndios Kanamari, a histria destes primeiros contatos e seus

desdobramentos tem rostos, nomes e locais bem delimitados. At os jovens sabem que [...]

todo o Rio Juru era do Kanamari: da foz at Cruzeiro do Sul. Morava tudo na beira mesmo,

depois o branco foi ficando mais valente e Kanamari foi morar nas cabeceiras dos igaraps,

assegura Djoreom Alfredinho8. A rea aqui descrita compreende as imediaes do municpio

de Tef, no estado do Amazonas e de Cruzeiro do Sul no estado do Acre.

At a metade do sculo XIX a regio do Mdio Juru e o povo Kanamari

permaneceram isoladas. Foi aps essa data que as frentes extrativistas, sobretudo de drogas do

serto e de ltex, comearam a realizar incurses peridicas para explorao dos recursos da

mata. At ento no se constituram significativos ncleos populacionais no-indgenas, pois

os exploradores dispersavam-se na mata de acordo com a existncia dos recursos naturais.

No auge dos dois ciclos da borracha, entre meados do sculo XIX e meados do

sculo XX, o seringal So Felipe foi considerado o maior centro de processamento e

distribuio de ltex de toda a Calha Sul do Amazonas. Posteriormente So Felipe foi

rebatizado com o nome de Eirunep9.

Para se instalar na regio, os seringalistas, a partir do destacamento dos

soldados da borracha, especialmente treinados para este fim, promoviam as chamadas

correrias, as quais consistiam em incurses na mata para capturar povos nativos para o

trabalho escravo ou para simplesmente extermin-los. As ordens eram para limpar a regio,

desta forma apossavam-se de grandes extenses territoriais - os seringais.

Os Kanamari moradores da Aldeia Aliana, prximo ao municpio de

Itamarati, relataram que aquela aldeia era uma antiga morada do povo Kaxinawa e que muitos

foram mortos pela exploso de um artefato, de uma bomba jogada por um avio militar. At o

ano de 1996 era possvel encontrar no local um buraco de aproximadamente trinta metros de

dimetro e estilhaos de cermica espalhados por todos os lados.

Os ancies Kanamari relatam que as mulheres e crianas sobreviventes dos

ataques s aldeias eram levadas ao Juru e vendidas como animais. O depoimento de um

velho seringueiro do Juru ao indigenista Egydio Schwade10, em 1987, destaca a ferocidade

8 Ancio Kanamari do Igarap Trs Bocas. 9 A palavra de origem Kulina. uma referncia aos ovos de baratas existentes, poca do contato. 10 Egydio Schwade foi o primeiro a trilhar cerrados e floretas na identificao de povos indgenas.

27

desta relao: Cada maloca, em cada cubixana tinha uma s sada. A os homens atiravam

para dentro desta porta e os ndios eram obrigados a sair um a um pela sada.

Diversos relatos informam que o sistema de aviamento empregado nos

seringais para abastecer os trabalhadores seringueiros, consistia num tipo de relao comercial

no qual, os patres (seringalistas), por intermdio de seus gerentes, entregavam mercadorias

as seringueiros em troca da produo de borracha. O barraco o local onde se d esse tipo

de escambo - um mercado rural onde o ltex e outros produtos da fauna e da flora, alm de

servios domsticos eram trocados por ferramentas para o corte da seringa, alimentos

industrializados, munio pra armas e tecidos para roupas e redes.

Para as pessoas trazidas de fora da regio, com seus costumes e meio

ambientes to diferentes, a relao com o barraco era o meio que se tinha de manter o elo

com o universo social e lingstico conhecido, j que as famlias trazidas eram dispostas em

colocaes distantes umas das outras. Alm do que, o ritmo exigido para manter as metas de

produo impossibilitava as visitas entre os moradores.

O histrico das relaes de produo em todo Brasil propiciou as

caractersticas desta investida na vrzea Amaznica. Os ciclos de caf, do ouro, do algodo,

da cana de acar e outros produtos, experimentados principalmente nas regies Sudeste e

Nordeste do Brasil, marcaram profundamente as relaes entre proprietrios dos meios de

produo e os despossudos que, at os nossos dias, disponibilizam sua mo-de-obra.

Os seringalistas devido ao modo rigoroso de tratar seus subordinados eram

chamados de coronis de barranco. Sua lei era o nico poder institudo, a nica regra

existente na regio. Submetidos a uma contabilidade perversa as dvidas dos seringueiros

avolumavam-se ano a ano. Pois, os preos praticados nos barraces garantiam a eterna

dependncia do trabalhador.

Segundo Djoreom Alfredinho, no tinha jeito do seringueiro ter saldo, era

sempre devedor do patro. Ainda segundo ele, em vrios seringais, at recentemente, havia o

pelourinho onde eram castigados os trabalhadores que no conseguiam pagar as supostas

dvidas. Os argumentos para o no pagamento era em muitos casos o acometimento de

doenas, pois a malria e a febre amarela abateram muitos trabalhadores ao longo dos anos.

Porm, ainda assim os castigos eram aplicados pelos capatazes.

No ano de 1995 ainda eram encontradas pessoas marcadas a ferro, uma forma

de demonstrar a quem serviam. Tanto os ndios quanto os ribeirinhos recordam e nominam os

seringueiros que tentaram fugir e foram tocaiados, surrados e ou mortos. Da mesma forma,

28

indicam tambm os nomes dos seringalistas escravagistas e de seus capatazes, muitos deles

ainda vivos.

Com a quebra da indstria do ltex em nvel nacional, toda a regio enfrentou

seguidas crises econmicas, culminando com o fechamento de barraces e de fbricas. Os

barraces foram substitudos pelos regates. O regato um mercador de rios e igaraps que

veio para suprir a demanda deixada pelos barraces. Eles se movimentam em embarcaes

que abastecem os moradores da rea rural. Transportam e comercializam toda sorte de

mercadorias, para trocar pelos produtos das florestas.

A quebra do ciclo da borracha determinou o arrefecimento do sistema de

servido, mas assim como ocorria com os seringalistas, os atuais regates mantm uma forte

influncia sobre seus fregueses. So os verdadeiros barraces ambulantes. Da mesma forma

que ocorria com os antigos seringalistas, atualmente os ndios e ribeirinhos envolvem-se em

impagveis dvidas com estes comerciantes.

Indgenas e ribeirinhos se referem a esses comerciantes, assim aos seringalistas

e capatazes, como patres. Esta denominao e a sua postura frente a estes se estende aos

comerciantes da sede municipal assim como aos funcionrios pblicos das reas de

assistncia. Pois, de acordo com Gohn (1997, p. 225-226)

O passado colonial-imperial, a subseqente repblica dos coronis e depois os lderes populistas levaram ao desenvolvimento de uma cultura poltica na sociedade latino-americana onde se observa uma naturalizao das relaes sociais entre os cidados (ou no-cidados) e o Estado, ou seja, relao de dominao expressa em termos de clientelismo e paternalismo passou a ser a norma geral, vista como natural pela prpria populao.

Com as sucessivas falncias dos patres, os seringueiros ficaram cada vez

mais desprovidos de qualquer meio de suprir suas necessidades e foram se achegando para

Eirunep e outros municpios vizinhos ou at mesmo para Manaus. Grandes fluxos

migratrios determinaram o inchamento dos centros urbanos no Amazonas.

De modo geral, os municpios no tinham estrutura fsica para absorver o

contingente populacional que aflura para as sedes; tampouco havia o entendimento de que a

populao rural devesse ter qualquer tipo de assistncia por parte do Estado.

O abandono dos poderes pblicos aos muncipes, rurais ou urbanos, traduz-se

na inexistncia de infra-estrutura bsica, seja na assistncia mdica ou educacional. A falta de

29

uma poltica de incentivo produo e ao trabalhador rural, fragiliza as comunidades e

submete-as s mais variadas formas de explorao11.

Esta situao de abandono empurra os indgenas e demais ribeirinhos para

prticas econmicas que assegurem o atendimento imediato de suas necessidades. Tais

prticas na maioria das vezes desrespeitam as leis ambientais, tais como: explorao de

madeira, comrcio de quelnios e peixe em larga escala, comprometendo o meio ambiente e

conseqentemente sua subsistncia futura.

Sendo os territrios indgenas os que mais conservam as florestas nativas e os

recursos nela existentes, freqentemente h tentativas de invases de exploradores. Em

algumas situaes h a conivncia de alguns indgenas, em busca de supostas vantagens.

O Municpio de Eirunep o ncleo urbano mais prximo dos Kanamari do

Mdio Rio Juru. Com altitude de 124m, sua populao em 1998 era de aproximadamente 30

mil habitantes. Ocupa uma rea de 15.946 km. Sua localizao e caractersticas geogrficas

dificultam o deslocamento de seus habitantes at os centros urbanos maiores. A cidade de Rio

Branco, no estado do Acre a capital mais prxima do municpio, entretanto o acesso s pode

ser feito por via area. As empresas areas regionais de mdio porte no conseguem manter a

regularidade dos vos na regio, devido aos altos custos e freqentemente necessrio

recorrer aos pequenos avies particulares para transportar cargas e passageiros12.

Pela via fluvial possvel seguir at o municpio de Cruzeiro do Sul, pelo Rio

Juru ou pelo Rio Envira. O percurso demora em torno de dez dias. No h regularidade no

transporte fluvial de passageiros. Os que pretendem fazer este percurso arriscam-se em

pequenas embarcaes particulares ou de carga ou ainda nas balsas que transportam toda

espcie de mercadorias e equipamentos.

Manaus, capital do Estado do Amazonas, localiza-se h 400 quilmetros de

Eirunep por linha area. Esse percurso, descendo o rio pode ser realizado tambm por via

fluvial, o que demora entre doze a vinte dias, dependendo nvel das guas e as condies de

navegabilidade do rio.

11 No texto Os Estabelecidos e os Outsiders, Norbert Elias (2000), afirma que um dos modos de minimizar o impacto desta relao entre desiguais a posse de uma tradio cultural comum, prpria, partilhada. Sem tal proteo, indivduos estigmatizados tm resultados negativos intelectuais e afetivos. 12 Em 1992, a minha primeira viagem para Eirunep se deu num desses avies monomotores. Fui acomodada entre caixas de frango congelado, tomate e cebola...

30

2.4 Contexto especfico do estudo

Aqui faremos um apanhado de algumas caractersticas prprias do povo

Kanamari. A maioria das informaes foi obtida a partir de nossa observao e dos prprios

ndios. Nos mais variados relatos, os oradores resvalam da histria para o mito e vive-versa,

dando ao interlocutor uma pista de quo emaranhadas so as diversas dimenses da vida

Kanamari.

Nos muitos relatos dos mitos Kanamari ou quaisquer histrias, o ouvinte tem

dificuldade de identificar quem so os personagens humanos, os animais ou as entidades que

intermedeiam a relao entre estas partes. Os dilogos so narrados detalhadamente, como se

todos estivessem em p de igualdade, devido relao ancestral do homem/Kanamari com o

animal/bara. Geralmente os relatos so acompanhados de gestos e encenaes, usando de

todos os sons que possam aproximar a assistncia da realidade. A platia participa da

encenao com muita ateno, como se fizesse parte do cenrio narrado.

Traremos alguns dos personagens e dos ritos que permeiam suas atividades

econmicas, espirituais, assim como as brincadeiras. Esta descrio se faz na tentativa de

explicitar a fora de suas instituies tradicionais.

O Rio Juru, desde sua foz at o municpio de Cruzeiro do Sul, no estado do

Acre era territrio exclusivo dos Djapa13. - os grupos formadores do tradicional grupo

Tkna14. Todos os Djapas so reconhecidos como falantes da famlia lingstica Katukina

(LABIAK, 1997).

Enquanto grupo tnico diferenciado, os Djapa constituem uma organizao

poltica que aciona um pertencimento a uma origem e uma raiz comum para se relacionar

entre os grupos familiares Djapa, para se relacionar com os outros grupos tnicos e ainda com

os no-ndios.

Referem-se ao ser mitolgico Tamakore como agente da criao de todos os

seres humanos. Tamakore criou Kerak a partir de uma fruta, coquinho do mato e fez todas as

espcies de gente do mundo a partir dos frutos de palmeiras; Kerak o ajudou neste trabalho.

13 Muitos fonemas na lngua Kanamari no encontram correspondente na lngua portuguesa. Adotamos neste trabalho a ortografia proposta pela Equipe da OPAN, ao final dos anos 1980. 14 Pelo observado nestes anos, o termo Tkna tanto se refere a uma pessoa como ao coletivo Djapa, quanto aos indgenas em geral e aos seres humanos como um todo.

31

Os Djapa foram criados do coco jaci e Tamakore ia deixando as sementes num

paneiro ao longo do Juru, desde a foz. Ao percorrer o caminho de volta, Tamakore e Kerak

j iam encontrando as pessoas feitas. Muita gente mesmo. Nas palavras de Djanom Benedito:

[...] quando Tamakore criou ns, deixou cada Djapa num canto, espalhado [...] tudo igual,

mas diferente. Ns entende[emos] a palavra, mas diferente.

Antigamente, no perodo pr-contato, os Djapa moravam guardando certa

distncia entre si. Segundo Reesink (1993), estes grupos tinham o ideal de autarquia na

relao com os outros Djapas, no que se refere organizao, economia, poltica e laos

matrimoniais.

Mas o que um Djapa? 'Djapa ndio [...] nome de ndio [...] tem qualidade de Djapa [...] Entendi que se tratava de uma unidade suficientemente abrangente para

abarcar todos os que assim se autodenominam, e o fazem porque falam, grosso modo, a mesma lngua e compartilham um mesmo horizonte ou tradio cultural. (CARVALHO, 1998, p. 80).

Entre 1910 e 1926, o padre holands Constant Tastevin recolheu e registrou

informaes etnogrficas, bem como localizao de 24 grupos Djapa, habitantes dos Rios

Juru, Tarauac, Xeru, Javari e Jandiatuba e seus afluentes (Carvalho, 1998). Dentre estes

grupos que se mantiveram isolados esto os Tsomhwk Djapa e Warekaman Djapa - ambos

com pouco contato com no-ndios, vivem nas cabeceiras do Rio Juta e os Peda Djapa e Om

Djapa, que vivem no Rio Bi, afluente do Rio Juta, so conhecidos como Katukina.

A nominao destes grupos Djapa sugere que a convivncia entre si no ser

de todo pacfica, pois, afirmam que os componentes dos grupos tm caractersticas fsicas e

comportamentais associadas aos animais que lhes emprestaram os nomes, pois referem-se a

aves, mamferos e anfbios.

Muitos grupos Djapa, localizados no perodo do pr-contato desapareceram.

H na atualidade, cerca de vinte diferentes Djapas, vivendo entre os Rios Itucum, Xeru,

Juta, Itacoa (na Terra Indgena Vale do Javari) e o Juru, nos igaraps Trs Bocas, Santa

Rita, Mamori, Restaurao, Matrinch e So Vicente.

Alguns dos que restaram estabeleceram laos matrimonias que determinaram

uma nova configurao e foram denominados pelos no ndios como grupo Kanamari15. Os

Kanamari citam como remanescentes os Djapa: Bem, Were, Potsohwk, Wadjo Teknem e

Wadjo Paranem, Kadjekere.16

15 A partir deste momento nos referiremos aos Djapa do ps-contato como Kanamari. 16 Traduzem-se como mutum, porquinho queixada, jap, macacos preto, branco e macaco de cheiro.

32

Os saldos da reorganizao dos grupos no perodo ps-contato, nem sempre

foram prazerosos, como deixa transparecer Hedje Nomia: [...] pudera, juntaram Djapa do

cu com o da gua e da mata. No d certo, melhor cada um morando no seu canto. No

entanto, morar cada um no seu canto, guardando certa distncia apenas qualifica a pretendida

relao de trocas intensas que sustentam as relaes cosmolgicas dos Kanamari.

Apesar de terem os Djapa se mesclado entre si, os Kanamari afirmam que o

ideal de autonomia permanece, assim como permanece a idia de interrelao dos grupos

Djapa de outrora. A definio de donos de igaraps, muitas vezes utilizadas pelos Kanamari,

parece ter relao com esta reorganizao social. Segundo Carvalho (1998, p. 95), ao dizerem

que um igarap de um determinado Djapa [...] sabe-se que a informao apenas retrica e

que no mximo possvel reivindicar a composio predominante de Djapa X.

Entre as aldeias e igaraps, muitas vezes uma teia de parentesco cria laos mais

ou menos fortes; em geral h grande circulao e visitas mtuas, mas cada Kanamari tendo

uma rea restrita de circulao determinada pela residncia de parentes prximos: irmo, me

e cunhado. Dificilmente vo andar por aldeias onde no tenham nenhum lao de parentesco.

Atualmente os ndios Kanamari do Mdio Rio Juru moram em casas no estilo

palafitas, habitaes sobre estacas com assoalho elevado a cerca de um metro em relao ao

solo, a fim de dar maior segurana em relao s guas e aos animais.

A lngua Kanamari difere lexicalmente e prosodicamente de acordo com a

regio onde se situam as aldeias, verificam-se diferenas na pronncia de algumas palavras.

De acordo com Maher (1996, p. 171).

Os estudos sociolingsticos tm, reiteradamente, alertado para o fato de que pequenas diferenas dialetais podem ser simblicas de fronteiras identificatrias importantes para um subgrupo: variedades de uma mesma lngua so afinal, diferenas que comunicam diferenas[...].

H tambm variaes na preparao de algumas iguarias tradicionais. Ser

fcil escutar de algum que sua aldeia tem roados maiores e mais variados, assim como a

koya de sua aldeia mais limpa e saborosa, ressaltando ainda que sua aldeia mais pacfica e

jamais jogar feitio, pois os pajs so apenas para curar as pessoas doentes.

Os ndios Kulina17, atualmente so os vizinhos mais prximos dos Kanamari.

Vieram do Rio Purus e chegaram ao Rio Juru para fugir das conhecidas correrias que eram

promovidas pelas frentes de explorao da seringa.

17 O povo Kulina auto-denomina-se Madija e assemelha-se ao povo Kanamari, no que se refere base nas bebidas rituais. Assemelham-se nas estruturas familiares extensas e so nominados com elementos da natureza.

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H muitos relatos dos Kanamari que asseguram que os Kaxinawa teriam vindo

do Rio Solimes pelas mesmas razes e foram subindo o Juru e logo guerreando com os

Djapa. Segundo Carvalho (1998, p. 82) Em quase todas as verses do mito de origem dos

Djapa, h referncia aos Kulina e aos Kaxinawa, como a demonstrar que a dialtica entre

identidade e alteridade, interioridade e exterioridade constitutiva da sua organizao social.

Em seguida os Ashaninka, conhecido como Kampa, que perambulavam pela

regio, se aliaram aos Djapa e os Kulina para abaterem os invasores Kaxinawa. Panaw

Lencio, nas rodadas de histria e mitos falava que os Kampa eram famosos por suas tcnicas

sofisticadas na arte da guerra. Fala ainda de vrios instrumentos usados nas batalhas, como o

escudo de couro de anta e de casco de tartaruga, flechas de taquara que atingiam a outra

margem do Juru, percorrendo, segundo o relato, mais de 100 metros de distncia.

Uma verso do mito18: da criao sugere que os Kanamari incorporaram os

no-ndios na relao dos seres humanos criados por Tamakore. Apesar de terem sido criados

do mesmo material - um coquinho -, os brancos teriam sido feitos de uma variedade diferente,

o que determinaria a sua cor de pele, estatura, etc. Contam tambm que os caris19 saberiam

muito mais coisas que os ndios porque Tamakore teria passado mais tempo entre eles e no

com os indgenas.

Vrias narrativas ouvidas cotidianamente deixam transparecer que h uma

avaliao mais positiva dos atributos destes em relao aos indgenas. Sobre esse assunto

Labiak fez o seguinte registro:

A desceram o rio, e do caroo do kotse [uma semente comprida e branca], Tamakore fez os caris. Tamakore e Kerak to l at hoje. Ficaram l com os americanos, que sabem mais ainda. O avio, o motor, a espingarda, tudo foi Tamakore que fez, que ensinou o cari fazer. Tamakore ficou mais tempo pra l ensinando, por isso que os caris sabem tudo (LABIAK, 1997, p. 23)

Alm dos fatos relatados no pargrafo anterior, Djawa Lourival, residente do

Igarap Trs Bocas e um profundo conhecedor de msicas e histrias Kanamari, contou que:

Naquele tempo [tempo do contato] tinha um chefe Kanamari que empatava a entrada dos brancos no Juru, no queria ser amigo, nem queria comida, nem presentes. Os Kanamari, de cada Djapa, traziam algodo de todo o Rio Juru para fazer troca por ferramenta e outras coisinhas. Depois que ele morreu a rapaziada resolveu experimentar ficar amigo, e a ningum mais segurou.

Este relato d-nos uma pista de que a aproximao deste povo com outros

tanto desejada quanto cercada de cuidados. A natureza Kanamari os impele a esta relao de

interdependncia constante. O que se observa que a identidade construda estabelecida a 18 Sobre os mitos Kanamari veja Imago Mundi Kanamari. REESINK, Edwin. UFRJ. 1993. 19 Termo regional que designa os no-ndios, ou os brancos.

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partir de vnculos que so firmados em determinados momentos histricos e que estas sero

reconstrudas diante de outros contextos, com outros sujeitos ou com os mesmos tambm

modificados por outras experincias.

A existncia do outro, seja outro Djapa, seja outra etnia, seja no-ndio, parece

demarcar a prpria essncia deste povo. De um modo geral, entre os Kanamari h uma

disposio para as relaes com os no-ndios, o que admite relaes comerciais, de namoro e

at casamentos. Para Maher, (1996, p. 157)

[...] na constituio da identidade do ndio, o branco no , necessariamente, um outro a quem o ndio quer sempre se opor. A depender das condies scio-histricas e do posicionamento ideolgico do indivduo, o ndio pode desejar estar em consonncia com o cari.

At hoje o comportamento de vrios indgenas sobre a relao com os

seringueiros de constantes movimentos de aproximao e afastamento20. No ano de 1998

havia cinco pessoas, sendo duas mulheres e trs homens Kanamari casados com no-

indgenas. Constituram famlia e continuaram na aldeia. Muitos verbalizam que no uma

situao ideal, mas h vantagens, pois que evita a evaso do parente e imaginam que facilita a

aceitao dos indgenas pelos brancos.

O povo Kanamari tem uma reconhecida diplomacia na resoluo das contendas

com a sociedade envolvente, mostra-se muito ciente de sua histria. Isto pode ser observado

na carta aqui apresentada a qual foi elaborada durante a Assemblia Kanamari realizada no

ano de 1997. Nesta ocasio os ancies presentes decidiram reagir a uma acusao de um

vereador de Eirunep de que alguns moradores teriam sido mortos pelos Kanamari na dcada

de 1970. Os idosos rememoraram os fatos passados e pediram que os mais novos (que se

encontravam em processo de escolarizao), escrevessem uma carta.

A carta se destinava Assemblia Legislativa do Amazonas e ao jornal que

publicou a denncia do vereador. Foi um intenso momento de reflexo elaborao coletiva

sobre o processo histrico de ocupao Kanamari na regio e da chegada dos no indgenas e

do carter da relao que se foi estabelecendo. A carta foi recebida pela Assemblia

Legislativa e publicada no referido jornal21 de circulao em todo o rio Juru. Dizia a carta:

Indgenas rebatem as acusaes feitas pelo vereador Paulo George.

O Povo Kanamari est mandando esta carta para os deputados. O vereador Paulo George escreveu uma mentira e agora vamos contar a verdade.

20 Os primeiros contatos devem ter sido impactantes para ndios e seringueiros, mas a receptividade dos primeiros e a necessidade de relao humana dos segundos podem ter possibilitado outras formas de relao. 21 O Jornal O Povo do Juru tinha, na poca descrita, circulao nos sete municpios que compe o Vale do Juru: Eirunep, Carauari, Itamarati, Envira, Guajar, Juru e Ipixuna.

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Existiu Kanamari, faz muitos anos. Onde era a cidade, antes era aldeia Kanamari. Os brancos invadiram e mataram os indgenas. Ns sofremos muito nas mos dos brancos. Os parentes que sobraram, fugiram para outros rios. Ns no nos acostumamos nos outros rios e voltamos. O vereador Paulo George no tem documento dessas terras. Ns temos documento: cemitrio, aguidar velho. por isso que ns lembramos, voltamos e estamos vivendo aqui. Ns viemos com nossos ps. Ningum foi buscar. Nem CIMI, nem OPAN, nem FUNAI, nem UNI. O vereador diz que Kanamari matou os brancos com gua envenenada. Isso no verdade. A verdade que foram as madeireiras que contaminaram os igaraps com a derrubada de Aacu, Samama, Gameleira e outros tipos de rvores venenosas22.

Esta carta mostra que a fora e a vitalidade do povo Kanamari tm garantido a

atualizao de suas estratgias para enfrentar os revezes de sua histria. Os dados de censo

levantados revelam um crescimento populacional de aproximadamente 64%, nos Kanamari do

Rio Juru entre os anos de 1984 e 199723. Ao final de 1998 havia 820 pessoas, excetuando os

moradores dos Rios Xeru e Juta.

Entre os anos de 1995 e 1998 os Kanamari do Mdio Rio Juru habitavam em

um nmero aproximado de 10 aldeias. A grande maioria das aldeias tem um nmero mdio de

at 50 pessoas e, de um modo geral, se constituem pela reunio de dois casais de idosos cujos

filhos, idealmente, se casam entre si24. Quando o nmero de habitantes excedido um

indicativo de que novos chefes de famlia surgiro ento a tendncia a disperso, criando-se

novos ncleos. Pode haver a, dois determinantes desta situao: um de cunho poltico e outro

de cunho econmico, para garantir a sustentabilidade do grupo.

A estratgia de domnio do territrio Kanamari est fundada na ocupao

sazonal de regies disponibilizadoras de alimentos (agricultura de subsistncia, caa, pesca e

coleta) e de outros recursos naturais necessrios para as atividades cotidianas. comum ter

muito bem definidos os espaos de coleta pesca e roado.

As residncias atuais em algumas aldeias chegam a comportar quatro famlias

nucleares, sendo um casal de idosos e as filhas casadas. Nestas situaes, a cozinha, ou

melhor, o fogo coletivo e a matriarca lidera os movimentos domsticos. Parecem aludir s

habitaes coletivas do pr-contato, onde todo o Djapa habitava uma nica maloca, chamada

hakneahnem ou djaneohak.

A organizao social Kanamari est intimamente relacionada aos mitos

fundadores, ao universo simblico e a outras instituies sociais que, baseados num sistema

22 Esta verso encontra-se publicada no livro Histrias de Kanamari, escritas no 2 Curso de Formao de Educadores. Projeto Kanamari/UNESCO/MEC. 1997. 23 Dado adquirido a partir de um estudo realizado com os participantes do II Curso de Formao para os Educadores Kanamari. 1997. Estes dados foram atualizados nas visitas posteriores junto aos Agentes Indgenas de Sade de cada aldeia no ano posterior 24 Para maiores informaes sobre sistema de parentesco Kanamari veja: Reesink, 1993 e Carvalho, 1998.

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de reciprocidade configuram o seu cotidiano. H uma forte conexo entre pessoa, grupo e

natureza, instncias indissociveis. As relaes a estabelecidas so de ordem poltica e

econmica mediada pelo seres mticos, vivenciados, materializados, nos rituais cotidianos.

importante localizar o leitor quanto aos aspectos fundamentais do universo

mtico Kanamari, devido dinmica de toda a vida deste grupo ser determinada pelas suas

concepes e relaes com o plano metafsico. Da mesma forma fundamental considerar a

dinmica da relao entre os Kanamari e a sociedade envolvente para compreender as

escolhas polticas e metodolgicas no processo constitutivo das iniciativas educacionais ali

ocorridas.

2.4.1 Djohko Universo Mtico

O paj - tkna-bau para a sociedade Kanamari o principal articulador das

suas variadas dimenses de existncia. Ao paj25 cabe o manuseio, a veiculao das energias

materializveis. Os Kanamari entendem que todos os acontecimentos de sua vida so

dinamizados pelo djohko - ou pedras, como eles prprios chamam na linguagem regional.

Estas energias so materializveis em pedras, confeccionadas da resina que

expelida por algumas rvores. medida que a resina vai coagulando, o paj vai-lhe dando a

forma e o tamanho desejados, impregnando-a da inteno, utilizando para tanto essncias,

plos de animais ou outra parte, cabelos, etc. Narua Joo Bolso nos alertou que o djohko

misturado perigoso.

Para voar, para ter vises, para curar, para matar, o paj introduz estas pedras

no seu corpo, abaixo das costelas, ou ao redor do umbigo. Quando envia as pedras a pessoas

que no foram preparadas para receb-las, estas passaro a ter efeitos diversos. So variadas

as formas de ao e de apresentao do djohko. Pode ser o espectro do paj em visita a outros

locais e outras dimenses/esferas da existncia; pode anunciar a determinao da fertilidade

ou seu contrrio; pode ser a energia da cura ou causadora de qualquer infortnio; pode ainda

determinar a destreza e a sorte de um caador, agricultor, pescador ou outros ou torn-lo

panema 26.

25 Em sua tese Carvalho (1998) aborda a preponderncia do Xamanismo na estrutura social Kanamari 26 Termo regional para designar a incapacidade de algum executar com xito sua funo.

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No exerccio de sua funo o paj transita entre o cu (kodohnake), a terra

(etsonem) e a aldeia, buscando aliados, identificando os inimigos. Os pajs neste transe

freqentemente se transfiguram em animais ou objetos. Segundo muitos relatos obtidos entre

1995 e 1998, os pajs mais fortes so aqueles que se transfiguram em onas e serpentes. Os

animais podem tambm ser apenas mensageiros dos pajs, assim sendo reconhecidos apenas

por outro paj forte pelo seu comportamento. Certa vez, Heyo Alfredo27 relatou que um paj,

j formado v bau he e identifica sua procedncia e constituio.

No caso de objetos, durante as caminhadas pelas trilhas os ndios Kanamari,

ficam atentos a gravetos ou outros sinais encontrados e sob suspeita de serem bau-he. O bau-

he pode ser deflagrador de ataques xamnicos, espritos espies ou mensageiros28.

O tabaco e o rap so essenciais para que o paj possa manter consigo as

energias de que necessita para o exerccio de sua funo. O paj fuma folhas de tabaco

soprando sua fumaa sobre o doente, exortando a energia patognica. O rap um preparo de

folha de tabaco torrada e moda misturada a casca de rvore de dap - espcie de cupuau

selvagem. O rap inalado ou simplesmente depositado entre o lbio inferior e a gengiva e

extensivo a homens e mulheres. O uso contnuo entorpece o usurio e agua seus sentidos.

O momento da cura precedido de especulaes a respeito dos possveis

ataques de agentes xamnicos, uma vez que para os Kanamari todos os males fsicos e

indisposies emocionais so conseqncias de uma intencionalidade externa. Quase sempre

as sesses de cura se do em ambiente pblico, terreiro da aldeia ou sala das casas e

dependendo da gravidade do caso, entre as conversas, afazeres cotidianos.

Localizando no corpo da pessoa a energia causadora do desconforto, o paj

pe-se a sugar o local a fim de extra-la, materializando esta energia malfica em pedras.

Depois de sug-las o paj as expele atravs de regurgito, vmito; logo coloca estas pedras em

seu prprio corpo, o que vem a lhe acrescentar poder. Se for um paj forte assegura-se de sua

procedncia, que ser publicamente revelada dependendo das implicaes polticas. Se o paj

identificar que o ataque procedeu de algum do grupo local, ainda mais sensvel a questo,

pois a eminente possibilidade de conflitos internos.

Num estado de conscincia intensificada o paj percebe a energia como um

fluxo vibratrio; segundo o paj Bastio, o djohko pulsa quando se encontra no corpo

27 Paj idoso da Aldeia Paraso. Relato obtido em junho de 1995. 28 Certa vez, no caminho do Rio Juta, um paj falou junto a uma semente (segundo ele, prpria para este fim) o local exato onde seu grupo estava. Orientou para que os ndios que se encontravam na aldeia preparassem a recepo. Em seguida lanou a semente no rumo da aldeia, reforando a mensagem e o grupo reiterava. O alvoroo foi geral, pois os demais davam tambm seus recados em meio s gargalhadas. Depois, na aldeia, os pajs afirmaram que providenciaram comida e Koya por que haviam sonhado com o grupo que estava na trilha.

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enfermo, sensao sentida apenas pelo paj. Ele relata que o paj em fase de formao,

quando no segue o resguardo previsto, sente choque que nem de um poraqu29.

O tempo de formao de um Kanamari para o seu trnsito no universo

xamnico varia de acordo com a idade de sua iniciao. Havia, entre 1995 e 1998, casos de

indivduos na tenra adolescncia que j realizavam curas simples e dois jovens (15 e 17 anos)

eram j respeitados pelos seus feitos complexos, tais como botar e tirar mah - pedra da

fertilidade ou realizar curas difceis.

Isto indica a insero destes pajs ainda quando crianas, pois a formao

requer uma sistemtica de procedimentos seqenciais, transformando em viso seus estmulos

sensoriais. Quando iniciado na fase adulta o indivduo sente ainda mais o peso das provas. A

esta altura da vida a maioria das pessoas j constituiu famlia e fica difcil fugir dos inmeros

compromissos demandados pelo matrimnio. comum a desistncia dos candidatos, pois

precisam dedicar-se a longas permanncias no etsonem - mata fechada, local de encontros

com os seres imateriais, isolado da convivncia em grupo.

Espera-se do candidato atitudes comedidas; participar em festas e eventos

coletivos de descontrao devem ser evitados. Diminui-se a ingesto de caiuma - Koya30 e

so vetados os contatos sexuais. Atividades pesadas: caa, agricultura, construo de casas,

so igualmente desaconselhados, sob pena de perda das pedras que vo sendo introduzidas

gradualmente na pessoa em formao. Isto se d de acordo com as condies de equilbrio

emocional ao lidarem com os fatos conflituosos do cotidiano, segundo muitos relatos os pajs

no podem ser muito valentes e a pessoa no pode ter raiva para ser Tkna bau.

H um esforo coletivo para que se formem pajs fortes, a fim de que se

mantenha a maior invulnerabilidade do grupo local. Sem um paj forte a aldeia fica a merc

dos ataques xamnicos reais e possveis. Dependendo do tamanho da aldeia e do nmero de

grupos familiares existentes, h um paj e alguns aprendizes31.

O rame, Ayawaska ou cip, como regionalmente conhecido, tambm

utilizado pelos Kanamari como porta de acesso a esta dimenso metafsica. Originrio dos

grupos tnicos mais ocidentalmente localizados, este ch foi inserido no acervo de rituais de

que se ocupam os Kanamari. O marenawa o mestre, o dono do rame. A ele cabe a coleta 29 Electrophoridae, uma espcie de enguia. 30 Caiuma Koya bebida feita do sumo da macaxeira (mandioca mansa), podendo ser fermentada ou no. Os Kanamari costumam consumi-la diariamente, dinamizando vrias atividades cotidianas; tambm tem uso em rituais mais elaborados. 31 Dos quase vinte e cinco (25) pajs em formao observados entre os anos de 1995 e 1998 os Kanamari, havia quatro (4) mulheres adolescentes; no conhecemos sequer uma mulher adulta na funo de paj. Dentre os outros vinte e um (21), apenas dois (2) eram adultos, ambos solteiros. A mulher-aprendiz tem que colocar mah: pedra da fertilidade para no engravidar durante a formao.

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dos componentes do ch, seu preparo e o cochicho na boca da panela do ch, solicitando que

o preparo seja forte e suficientemente bom para mirarem o que desejarem.

Enquanto o paj cura com passes, imposies de mo, sopros e suco, o

marenawa domina um grau de conhecimento sobre plantas curativas e mortais. Seu

conhecimento vai-lhe sendo revelado, aprofundado nas sees rituais do rame, nas incurses

de coleta. Sozinho ou com apenas uma companhia, o marenawa reverentemente localiza e

coleta o cip e as folhas para o preparo. Kaemo Paulo32 fala que anteriormente, para participar

do ritual do rame, faziam-se necessrias algumas restries alimentares: sal e carne no

deveriam ser ingeridos nos trs dias anteriores e nos trs dias posteriores s sesses rituais.

Segundo alguns nos relataram, comida industrializada e relaes sexuais tambm no so

recomendadas.

A ingesto de extrato de pimenta braba e